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O mito é o nada que é tudo?

Curso de Extensão Universitária “A geração de Orpheu: entre o espanto


de existir e a busca de renovação da poesia portuguesa”
FCL/UNESP – Araraquara
Profa. Márcia Gobbi – Departamento de Literatura
“ULISSES” – Fernando Pessoa
O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo -
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre."
O mito é o nada que é tudo?
• Roland Barthes: “O mito, hoje” – Mitologias (1957)

• “O mito é uma fala”

• “Sistema de comunicação”; Barthes (1987, p. 133): o mito “não é um


objeto, um conceito ou uma ideia: ele é um modo de significação,
uma forma” – Sistema Semiológico
O mito é o nada que é tudo?
• K. K. Ruthven – O mito: “Para os gregos, o mythos era originalmente
apenas uma coisa falada, proferida pela boca e, portanto, meramente
o correlativo falado do rito feito, a coisa feita.” (1997, p. 58)

• Etimologicamente: mytheomai = desocultar pela palavra


O mito é o nada que é tudo?
Jolles – Formas simples (1930; 1976):

• Mito: “disposição mental” fundada em uma interrogação, cuja


“resposta” se dará por um “gesto verbal” (“proposta de resposta”
para uma pergunta “irrespondível”, formulada como uma narrativa):
o homem interroga o universo e cria, por seu gesto verbal, respostas
que garantam a solidez desse universo.

• Narrativa não atestada: construção de um discurso verossímil para o


qual os valores de falso e verdadeiro não se colocam.
O mito é o nada que é tudo?
• BARTHES: O MITO É UMA METALINGUAGEM – “uma segunda língua, na qual se
fala da primeira” (p. 137, grifo do autor)

De que maneira?
• Apropriação da linguagem-objeto por um sistema semiológico segundo,
ideologicamente motivado por um determinado uso social que dele se pretende
fazer.
• A linguagem “toma posse de si mesma” e reduplica o seu próprio mecanismo de
construção de sentido.
• Essa estratégia imprime uma perigosa “naturalidade” que apaga o traço
fundamental da “fala mítica”: o de ser uma fala escolhida pela história (p. 162)
• Mito = “linguagem roubada”; “presença emprestada”; “álibi” (“toda uma história
nova é implantada no mito” – p. 140)
O mito é o nada que é tudo?

• Processo de desmitologização ou “desnaturalização” (tais motivações


precisam ser reveladas, mostradas como a construção intencional de
um sentido, cujos limites são definidos pela sociedade e pela história,
pelo uso social que se acrescenta ao discurso): “o mito não esconde
nada e nada ostenta também: deforma; o mito não é nem uma
mentira nem uma confissão: é uma inflexão” (p. 150)
O mito é o nada que é tudo?
• O mito como repetição, redundância (Levi Strauss, Durand, Mircea
Eliade) - também para Barthes: quando o conceito é pobre, a fala
mítica serve-se da frequente reapresentação dele para suprir,
quantitativamente, essa carência de relevância para o seu sentido
(repetição do conceito por variadas formas)

• Essa insistência é justamente o que revela a sua intenção, já que “o


mito é um valor, não tem a verdade como sanção”. (p. 144; grifo do
autor)
A que serve esta mitologia?

• Bauman: “A ideia de ‘identidade’, e particularmente de ‘identidade


nacional’, não foi ‘naturalmente’ gestada e incubada na experiência
humana, não emergiu dessa experiência como um ‘fato da vida’ auto-
evidente. Essa ideia foi forçada a entrar na Lebenswelt de homens e
mulheres modernos – e chegou como uma ficção. (...) A ideia de
‘identidade’ nasceu da crise do pertencimento (...). Nascida como
ficção, a identidade precisava de muita coerção e convencimento para
se consolidar e se concretizar numa realidade (mais corretamente: na
única realidade imaginável) – e a história do nascimento e da
maturação do Estado moderno foi permeada por ambos.” (2005, p.
26; grifos do autor)
A que serve esta mitologia?
• Durand (2001): recorrências/redundâncias: MITOLOGEMAS: função
de criar, recuperar ou manter uma estabilidade, uma articulação, uma
coesão que configuram manifestações do imaginário e que podem ser
verificáveis na produção artística (na literatura, no texto).

• MITO = “ o imaginário em discurso”


A cidade de Ulisses (Teolinda Gersão, 2011)
• “ [a lenda da fundação de Lisboa] dava à cidade um estatuto singular,
uma cidade real criada pela personagem de um livro, contaminada
portanto pela literatura, pelo mundo da ficção e das histórias
contadas” (Gersão, 2011, p. 34-35)
• “[os turistas] vão à procura de lugares para fugirem de si próprios;os
viajantes vão à procura de si, noutros lugares [...] As agências de
viagem e os turistas só se interessam, obviamente, pelas cidades
reais. Os viajantes preferem as cidades imaginadas”. (Gersão, 2011, p.
31).
A cidade de Ulisses (Teolinda Gersão, 2011)

• “Havia aliás vinte e nove séculos que o rasto de Ulisses andava no


imaginário europeu, a civilização helénica foi o berço da Europa, e ao
lado da Bíblia judaico-cristã a Odisseia (muito mais que a Ilíada) foi,
ao longo dos séculos, o outro grande livro da civilização ocidental. Tal
como há uma ‘vulgata’ bíblica há também uma ‘vulgata’ homérica, e,
num caso e noutro, uma série de histórias fora das ‘vulgatas’
circularam em torno das personagens.” (GERSÃO, 2011, p. 34)
A cidade de Ulisses (Teolinda Gersão, 2011)
• “Joyce partira do nada para escrever o Ulisses, Dublin estava
completamente fora da rota imaginária da personagem de Homero.
Lisboa, pelo contrário, estava historicamente ligada à Grécia, às
rotas marítimas e comerciais dos gregos.[...]
Sobre a relação de Ulisses com Lisboa não tínhamos portanto
que inventar nada, já tudo tinha sido inventado havia dois mil anos, e
essa história, porque tinha pés para andar, continuara a andar pelos
séculos fora.” (Gersão, 2011, p. 35)
A cidade de Ulisses (Teolinda Gersão, 2011)
• “Ninguém portanto nos pedisse contas pelas palavras que chegavam
até nós, vindas de tantas e tão ilustres bocas” (p. 37)
• “[Ulisses] obviamente nunca aqui esteve, desde logo porque nunca
existiu” - p. 35-36)
• “Colhi aqui e ali alguns dados (Penélope, prima de Helena e menos
bela, é de facto numa das versões a segunda escolha de Ulisses), mas
no essencial esse mito inventei-o eu”. (p. 43).
A cidade de Ulisses (Teolinda Gersão, 2011)

• “no Castelo de São Jorge a Torre de Ulisses, que já foi Torre do Tombo,
onde escreveram Fernão Lopes e Damião de Góis; na Rua do Carmo a
Luvaria Ulisses, sofisticada e pequeníssima, do tamanho de uma caixa
de lenços; no Largo da Misericórdia a livraria Olisipo; a Ulisseia
Filmes; a editora Ulisseia; e Fernando Pessoa fundara a editora
Ulissipo, onde publicara o primeiro volume dos seus poemas ingleses,
as Canções de António Botto e Sodoma Revisitada de Raul Leal, e
logo depois falira. [...]” (p. 37)

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