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27 outubro 2018
Três anos depois, em 22 de abril de 2018, outra foto do mesmo ponto apresentava algo
novo: um prédio com estrutura de segurança reforçada havia se materializado. Ele estava
rodeado por uma cerca de dois quilômetros de extensão - eram 16 torres de guarda.
Esse é um dos locais na província autônoma de Xinjiang que o governo mantém milhares
de muçulmanos.
A região abriga cerca de 10 milhões de islâmicos da etnia uigur, minoria que há anos vive
uma escalada de tensão com o Estado chinês.
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A BBC tentou chegar perto da construção. Para tentar evitar o rigoroso escrutínio policial a
qualquer jornalista que se aproxime, nós pousamos no aeroporto de Urumqi, nas
proximidades, nas primeiras horas da manhã.
Já estava claro que nosso plano de visitar uma dúzia de campos de internação nos dias
seguintes não seria nada fácil. À medida que avançamos pela estrada, descobrimos que
mais cedo ou mais tarde o comboio de policiais iria tentar nos impedir.
Foi impossível falar abertamente com qualquer pessoa - nossos seguidores tratavam com
agressividade qualquer pessoa que trocasse conosco um aceno.
Então decidimos telefonar para números aleatórios da cidade. Alguém sabe dizer o que
são essas 16 torres que as autoridades estavam tão desesperadas para nos impedir de
filmar?
"É uma escola de reeducação", diz um hoteleiro. Um lojista concorda: "Há dezenas de
milhares de pessoas lá agora. Eles têm alguns problemas com seus pensamentos."
A China tem constantemente negado que esteja prendendo muçulmanos sem julgamento
ou qualquer processo. Nesse contexto, um eufemismo para as prisões tem ganhado
terreno - educação.
Não há menção aos motivos pelos quais os estudantes foram escolhidos ou quanto tempo
esses cursos duram.
O objetivo desses campos, segundo nos contaram, seria combater os extremismos, por
meio de uma mistura de teoria jurídica, desenvolvimento de habilidades para o trabalho e
aulas de chinês.
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O vídeo também sinaliza que as escolas criaram regras de vestimenta - nenhuma das
mulheres está usando lenços na cabeça, como normalmente é costume entre
muçulmanos.
A cidade de Kashgar, no sul do país, é muitas vezes apontada como geograficamente mais
próxima de Bagdá do que de Pequim - culturalmente, a população também sente essa
proximidade maior com o Iraque.
A riqueza mineral, em particular de óleo e gás, é quase cinco vezes maior que a da
Alemanha, por exemplo. Ela também trouxe uma enorme quantidade de investimentos,
rápido crescimento econômico e uma onda de migração de colonos chineses da etnia
Han.
Os uigures, entretanto, têm constantemente reclamado que a distribuição dos lucros desse
crescimento é desigual. Em resposta a essas críticas, as autoridades chinesas alegam que
houve melhorias nas condições de vida dos moradores da região.
No ano seguinte, 31 pessoas foram mortas em um ataque a faca perpetrado por membros
da comunidade uigur em uma estação de trem na cidade de Kunming, a mais de 2 mil km
de Xinjiang.
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Ao longos dos últimos quatro anos, Xinjiang tem sido alvo de algumas das medidas de
segurança mais restritivas e abrangentes já implantadas por um governo contra seu
próprio povo.
Isso inclui uso de tecnologia em larga escala: reconhecimento facial por câmeras,
dispositivos capazes de monitorar e ler conteúdos de celulares e coleta em massa de
dados biométricos.
Essa mudança coincide com um aperto proposto pelo atual presidente do país, Xi Jinping,
no qual a lealdade à família e à fé, pilares da cultura uigur, deve ser subordinada ao Partido
Comunista.
A identidade única dos uigures desperta suspeitas no governo chinês. Esse ponto de vista
foi reforçado por relatórios que mostraram que centenas deles viajaram à Síria para lutar
em vários grupos rebeldes.
Nos últimos anos, os uigures passaram a conviver com "verificações étnicas" em diversos
pontos de checagem de pedestres e veículos, enquanto os residentes chineses da etnia
han são frequentemente liberados sem qualquer questionamento.
Eles também enfrentam severas restrições de viagem, tanto dentro quanto fora de Xinjiang
- um decreto força os residentes a entregarem todos os passaportes à polícia.
Diante de tudo isso, talvez não seja tão surpreendente que a China tenha introduzido outra
solução mais antiga e mais direta para a "deslealdade" que enxerga em muitos de seus
cidadãos uigures.
Apesar das negativas do governo, a evidência mais convincente da existência dos campos
de internação vem de informações das próprias autoridades.
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Páginas de licitações do governo local, descobertas pelo acadêmico alemão Adrian Zens,
convidam potenciais contratantes e fornecedores a concorrer em projetos de construção
das instalações. Os documentos mostram detalhes dos novos prédios e também da
reforma de estruturas que já existiam em Xinjiang.
Cruzando essas informações com outras fontes da mídia, o pesquisador Adrian Zenz diz
que várias centenas de milhares e possivelmente mais de um milhão de uigures e outras
minorias muçulmanas podem ter sido internadas para "reeducação".
Uma das licitações provavelmente se refere à área que visitamos - um concurso de julho
de 2017 oferece a instalação de um sistema de aquecimento em "um local de
transformação por meio da escola de educação" em algum lugar no distrito de
Dabancheng.
No ano passado, sua mãe a visitou como faz todos os verões, passando um tempo com a
filha e o neto e fazendo um pouco de turismo em Londres.
Xiamuxinuer Pida, de 66 anos, é uma engenheira aposentada com longos anos de serviços
prestados a uma companhia estatal chinesa. Ela voltou para Xinjiang em 2 de junho.
Sem notícias da mãe, Reyila ligou para verificar se ela tinha chegado em casa. A conversa
foi curta e aterrorizante.
"Ela me disse que a polícia estava revistando a casa", lembra. E era Reyila o alvo da
investigação. Ela precisava enviar cópias de seus documentos, prova do endereço no
Reino Unido, uma cópia do passaporte britânico, os números de telefone e informações
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sobre os cursos que fez.
E então, depois de pedir a ela para enviá-los através de um serviço de bate-papo chinês,
Xiamuxinuer disse algo que causou um arrepio na espinha de Reyila.
"Não me ligue de novo", pediu sua mãe. "Não me ligue nunca mais."
Foi a última vez que a filha ouviu a voz de sua mãe. Ela acredita que engenheira
aposentada esteja em algum campo de internação.
"Minha mãe foi detida sem motivo", diz ela. "Até onde sei, o governo chinês quer excluir a
identidade uigur do mundo."
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"Havia uma sala de punição para quem não corresse rápido o suficiente", diz. "Na sala
havia dois homens, um para te bater com um cinto, e outro para te chutar", conta.
O pátio de exercícios do campo onde ele diz ter ficado detido, na cidade de Hotan, ao sul
de Xinjiang, pode ser claramente visto por fotos de satélite.
"Nós tínhamos de cantar uma música chamada 'Sem o Partido Comunista não pode haver
uma nova China'. Também aprendemos sobre legislação. Se você não as recitasse da
forma correta, você podia apanhar."
Ablet ficou no campo por um mês ao final de 2015 e, de qualquer forma, ele é uma das
pessoas que tiveram sorte. Naquela época, os cursos de "reeducação" foram mais curtos.
Nos últimos dois anos, há poucos relatos de pessoas libertadas.
Ele foi um dos últimos uigures que conseguiram deixar a China antes da apreensão em
massa de passaportes. Ele conseguiu se refugiar na Turquia, um país com grande
quantidade de uigures, por causa da proximidade cultural e linguística.
Ablet conta que seu pai de 74 anos e seus oito irmãos estão internados nos campos de
reeducação. "Não há ninguém da família do lado de fora", diz.
Outro sobrevivente é Ali (nome fictício), que tem 25 anos. Ele conta que em 2015 foi levado
a um campo de internação depois de a polícia encontrar em seu celular fotos de uma
mulher usando um niqab, um véu que cobre o rosto.
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"No campo havia uma velha senhora, que foi levada lá por ter feito uma peregrinação a
Meca", ele conta. "Também tinha um idoso que não pagou sua conta de água a tempo."
Durante uma sessão de exercícios forçados, um carro oficial entrou no campo e o portão
ficou aberto por alguns momentos.
No lugar das limpas salas mostradas pelos comerciais da TV estatal, emerge dos relatos
uma imagem bastante diferente.
"As portas dos dormitórios ficavam trancadas à noite", lembra Ablet. "E não havia
banheiros nos quartos, eles davam apenas um tigela."
Como resultado das prisões e separação entre parentes, dois valores centrais na cultura
uigur - fé e família - estão sistematicamente sendo eliminados. Há casos de crianças
deixadas em orfanatos depois que seus pais foram presos.
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Bilkiz Hibibullah chegou à Turquia em 2016 com cinco de seus filhos. Sua filha mais nova,
Sekine Hasan, que agora teria três anos e meio, ficou em Xinjiang com o pai - marido de
Bilkiz.
O plano da família era fazer um passaporte para a menina e juntá-la ao restante dos
parentes em Istambul, mas os pais nunca conseguiram o documento para a filha.
Bilkiz acredita que seu marido foi preso em março do ano passado. Desde então ela
perdeu contato com a família que ainda vive na China e não faz ideia do paradeiro de sua
filha menor.
"No meio da noite, depois de meus filhos dormirem, eu choro muito", conta. "Não há nada
mais triste do que não saber onde sua filha está, se está viva ou morta. Se ela pudesse me
ouvir agora, eu não diria nada além de pedir desculpas."
Suas análises passaram por uma lista de 101 instalações localizadas em Xinjiang. O
relatório foi desenvolvido a partir de informações da imprensa e pesquisas acadêmicas
sobre os campos de "reeducação".
Então, eles fixaram a captação de imagens por satélite dessas localidades ao longo do
tempo. As imagens mostram a construção do campo onde Abdusalem Muhemet ficou
preso, por exemplo.
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A GMV não é capaz de dizer como as estruturas estão sendo usadas, mas está claro que,
nos últimos anos, a China tem construído muitas novas instalações de segurança, a uma
velocidade notável e crescente. Também há indícios de que o governo tem construído
instalações cada vez maiores.
A maior prisão dos Estados Unidos, por exemplo, tem 10 mil prisioneiros - ela fica em Nova
York. A maior da Europa, nos arredores de Istambul, tem 11 mil.
"Acho que 11 mil pessoas é uma estimativa subestimada… Pelas informações que temos,
não podemos dizer como o interior dos prédios é usado. Por isso, quando alguém fala em
130 mil me parece, infelizmente, bastante possível."
Algumas das prisões não foram construídas do zero. São adaptações de escolas e
fábricas. Essas são mais próximas de áreas urbanas.
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No condado de Yining, no norte do país, também tentamos visitar alguns campos. Antes,
tivemos acesso a projetos de construção de cinco "centros de treinamento e educação de
habilidades vocacionais" com o objetivo de "salvaguardar a estabilidade".
Do lado de fora, familiares formavam uma fila para passar pela revista da equipe de
segurança. Mais uma vez, dois ou três carros nos seguiram. Quando nós tentamos gravar
os campos, os policiais colocaram as mãos sobre as lentes. Disseram que havia um
treinamento militar naquele momento e, por isso, deveríamos nos retirar.
Próximo havia uma família, uma mãe e duas crianças, esperando ao lado da cerca. Um dos
seguranças tentou impedir que eles falassem com a reportagem. Outro oficial pediu que a
família se pronunciasse. Questionado sobre quem eles estavam visitando, um dos filhos
respondeu: "Meu pai".
Em uma delas, podemos ver um cartaz instruindo as pessoas a como responder perguntas
sobre o paradeiros de seus familiares. "Diga que eles estão sendo cuidados pelo bem da
sociedade", diz o aviso.
A principal mesquita da cidade mais parece um museu. Tentamos descobrir quando será a
próxima oração, mas ninguém parece saber. "Estou aqui apenas para lidar com turistas.
Não sei nada sobre orações", diz um funcionário.
Na praça, há alguns homens velhos sem barba. Perguntamos onde as outras pessoas
foram. Um deles murmura que não pode falar com jornalistas. Outro homem responde:
"Ninguém mais vem aqui."
Deixamos Kashgar por uma rodovia, rumo ao sudoeste, uma área pontilhada de vilarejos e
fazendas uigur, além de muitos campos suspeitos. Como sempre, fomos seguidos, mas
logo fomos surpreendidos: a estrada foi fechada.
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Os policiais disseram que o solo havia derretido pelo sol quente. "Não é seguro
prosseguir", afirmaram. Percebemos que outros carros estavam sendo direcionados para o
estacionamento de um shopping center. No rádio da polícia, ouvimos instruções para que
a estrada continuasse fechada "por enquanto".
Depois, eles disseram que a espera poderia demorar de quatro a cinco horas. Nos
aconselharam a retornar.
Procuramos rotas alternativas, mas outros obstáculos sempre se materializam, mas com
explicações diferentes. Outra estrada foi fechada por "treinamento militar". Tentamos por
quatro vias diferentes, todas fechadas inesperadamente. Desistimos.
Alguns quilômetros à frente havia outro acampamento para cerca de 10 mil pessoas.
Embora alguns digam que o sistema de prisões e controle seja semelhante ao apartheid da
África do Sul, isso não é inteiramente verdade.
O mundo ainda não ouviu ninguém que ficou preso em Dabancheng, a gigantesca
instalação secreta.
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