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Ordem de Cister - herança cultural em Portugal e na Europa

Termina este domingo em Alcobaça o Congresso Internacional Mosteiros Cistercienses, que


pretendeu estudar o passado, presente e futuro da marca deixada no «território e na memória
de Portugal» pela Ordem de Cister e os seus mosteiros.
Da obra “O esplendor da austeridade”, editada pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, com
direção de José Eduardo Franco, extraímos alguns excertos sobre a herança que os Monges
Brancos deixaram a Portugal e à Europa, num artigo de V.G. Teixeira.

O dealbar da Ordem de Cister


Em 1098, nos confins de uma floresta na Borgonha, França, junto a pântanos e terras bravias,
emergiu o rebento de uma renovação monástica e uma futura abadia de grande projeção na
Cristandade coeva e nos tempos vindouros. Falamos de Cister, Cîteaux (“estevas”). Trata-se da
Abadia-Mãe da reforma beneditina.
O lugar de nascimento era o mais afastado do mundo, inóspito, agreste, duro, austero, uma
explosão de natureza em todos os sentidos. Roberto de Molesmes, monge clunicense
(beneditino), à frente de um grupo de confrades do seu mosteiro (Moslesmes), ansiosos por
renovar a sua experiência de vida monástica, solicitou ao abade que os deixasse ir viver mais
áspera e rigorosamente a Regra do Glorioso Patriarca S. Bento, numa época em que estas
experiências de refundação, renovação ou mesmo fundação ex novo de ordens (novas) era
frequente, como sucedeu igualmente com a Cartuxa (...) e outras ordens canonicais, numa
sequela reorganizadora da vida monástica suscitada pela reforma gregoriana do séc. XI.
S. Bernardo de Claraval
Nascia um novo milénio da Encarnação com um reforçado vigor monástico, ainda que com
muitas experiências que não sobreviveriam às primeiras contrariedades e agruras da História,
ou mesmo à Idade Média.
Muitos viram em Cister uma contestação a Cluny, ao fausto e pompa litúrgicos e à vida
quotidiana dos Monges Negros, com roberto a representar uma fuga do mundo antigo e a
procurar o recolhimento ainda maior na natureza, em austeridade e estrita observância à Regra
de S. Bento de Núrsia.
Mas aquele 21 de março de 1098 (primeiro dia da primavera, data simbólica do início da
renovação e renascimento da natureza) representou a satisfação da necessidade de uma
renovação não com base em contestação ou crítica mas antes com o intuito de ir mais além, de
experimentar de forma diferente a vivência de um ideal monástico com cerca de 500 anos e
uma obra civilizadora ímpar.
Roberto quis ousar e radicalizar a sua vida beneditina, algo comum nesta época, em que a
tentação eremítica era forte e a pobreza, a renúncia de bens materiais e a procura do deserto
surgiam como caminhos para a perfeição da vida monástica, simplificando a liturgia e a vida
quotidiana.
Alcobaça
Roberto, no seu ir para novos mundos e para novas experiências, mas na fidelidade à Regra
Beneditina e ao espírito cristyão. Todavia, recriam a experiência regular beneditina imprimindo-
lhe um novo vigor e uma nova roupagem, bem expressa no hábito, que passa a ser branco/cru
(em lã, símbolo da pureza e da renúncia, da pobreza) e não negro, como em Cluny.
O hábito alvo envergado pelos Cistercienses passou a ser apenas pautado por um escapulário
negro passado alguns anos, embora a forma e a claustralidade do mesmo fossem as mesmas do
hábito beneditino: uma mortalha vivente do monge em clausura perpétua, simbolizada pela
solidão e interioridade do capuz.
O novo monasterium (de Cister), designação inicial deste cenóbio, pautou-se por uma vida
religiosa eremítica, um ascetismo radical, numa combinação de monaquismo (comunidade) com
vida solitária (eremitismo). Roberto tinha já começado em 1075 uma tentativa de renovação em
Molesmes mas as dificuldades suplantaram o fervor e o ideal da experiência e da novidade,
obrigando a comunidade sobrevivente a regressar ao mundo clunicense, 20 anos depois.

Lorvão. Foto: João P.S. Amaro/Olhares


Mas em 1098 o apelo mantinha-se e novamente Roberto tentou, fixando-se em Cister.
Recebendo em 1099 ordem do papa Urbano II de regressar à experiência de Molesmes, Roberto
abandonou o novum monasterium(morreria em 1118, como abade de Molesmes), sucedendo-
lhe Alberico (Aubry), seu fiel companheiro havia muitos anos, que esteve à frente de Cister até
1109 – dez anos de dificuldades, de quase desistência, de quase extinção do ideal.
Seria Bernardo de Fontaine, monge chegado a Cister em 1112, que traria o impulso decisivo. À
frente de 30 companheiros, nobres e clérigos, assumiu o hábito cisterciense e conferiu um vigor
que tornou irreversível e imparável o movimento de renovação monástica de Cister.
Autoridade, carisma e grande dimensão espiritual foram as linhas de força da ação de Bernardo,
que exerceu grande influência na cristandade medieval. Em 1115 ornou-se abade de Claraval
(Clairvaux), abadia que fundou naquele ano; fundaria mais 60 depois, durante a sua vida.
No mundo feudal europeu do séc. XII, Bernardo foi uma das maiores luminárias, impelindo o
enxamear cisterciense a níveis nunca vistos. À data da sua morte, em 1153, contavam-se mais
de 350 mosteiros fundados sob o seu impulso (161 eram filhos de Claraval). Em finais do século
XIII o manto branco de Cister cobria já toda a Europa de forma verdadeiramente ímpar na
história monástica: em fins desta centúria, eram já cerca de 700 as comunidades da Ordem na
cristandade.
Santa Maria de Salzedas, Tarouca

Contributos para a cristandade medieval


O trabalho manual, imperativo monástico que na Cister primitiva ganhou foros de diferenciação
face a Cluny, teve de sofrer uma revisão em termos de ideais, pois colidia com as necessidade
de vida litúrgica e com o ritmo de orações que a Regra de S. Bento prescrevia. Assim, criou-se
uma das singularidades de Cister, o instituto de irmãos conversos, efetivo a partir de 1165,
data em que se compôs a versão final das observâncias da Ordem.
Outra particularidade surgiu também deste primeiro século: o modelo de organização. Aquele
texto de 1165 previa o governo da Ordem através do Capítulo Geral, anual, reunindo todos os
abades de todos os mosteiros. Em cada ano, cada abadia devia ser visitada e controlada pela
abadia que a fundou, pois Cister funcionava através do sistema de abadias-mãe.
Nascia um novo modelo monástico, em que não há uma centralidade nem uma total
independência nas abadias, antes existia um sistema hierárquico de filiação com base na
Caridade. A “mãe” funda as “filhas”, vela por elas, nomeia-lhes abade, visita-as anualmente. A
coesão e unidade são conferidas pelo Capítulo Geral anual e pelos Estatutos que emana. A par
de S. Bernardo e do seu impulso, podemos hoje afirmar que foi este modelo de organização que
mais ajudou ao êxito cisterciense durante muitos séculos.
S. Bento de Cástris, Évora
A força e o pensamento místico mais a organização alavancaram a Ordem para os maiores
sucessos, nomeadamente tornando-se um modelo de organização que inspirou até a vida
canonical. A unidade litúrgica e de costumes e usanças confere também uma nota de
incremento e força na expansão da Ordem, caracterizando-a e reforçando a sua vertente de
simplificação e austeridade da vida quotidiana.
Os Cistercienses destacaram-se como pregadores e capelães no movimento cruzadístico da
Ideade Média, em especial o apoio dado, através da pregação caristmática de Bernardo de
Claraval, à Segunda Cruzada (1147-1149), promovida pelo papa Eugénio III (1145-1143). monge
cisterciense e discípulo do santo de Claraval. Apoiaram também a cruzada contra os Cátaros ou
Albigenses (1209-1229), num século em que estiveram ativos no ensino universitário, como em
Paris, por exemplo. De Cister nasceram também ordens religiosas militares, como Calatrava, que
foi mais tarde anexada aos Cistercienses.

Tempos de declínio e mudança


A partir do séc. XIV, principalmente depois da Peste Negra (1347-1350), da Guerra dos Cem Anos
(1339-1453) e do Cisma do Ocidente (1378-1417) e com a chegada das comendas aos mosteiros,
Cister entrou num período de certo declínio, ou retração, comum à maior parte das ordens
religiosas.
Santa Maria de Cós
A Reforma Protestante, no séc. XVI, desencadeou ventos ainda mais ameaçadores,
seculaarizando abadias e fechando a maior parte delas, no centro e norte da Europa. Depois
surgiram as tendências congregacionistas em Cister – como sucedeu em Portugal, com a
Congregação de Alcobaça (1567) – mais ou menos independentes. As querelas internas entre
rigoristas, observantes e os que defendiam um modo de vida mais mitigado acentuaram-se a
partir de Seiscentos, criando duas observâncias dentro da Ordem.
O Renascimento, após a supressão e abalos desencadeados pela Revolução Francesa, registou
já a corporização das duas tendências, uma das quais, a mais estrita observância, materializada
na abadia de Nossa Senhora da Trapa (LA Trappe), em 1791, por 26 monges. Aqui nasceram os
Trapistas, organizados em 1892, por determinação da Santa Sé, distinguindo-se da Ordem de
Cister da Comum Observância.
Os Trapistas, depois dos exílios norte-americanos em princípios de Oitocentos, regressaram à
Europa e o seu crescimento tornou-se mais forte que o dos seus irmãos da Comum Observância,
embora atualmente estejam equilibrados em termos de efetivos. É de recordar que houve
sempre também ramos de ambos os sexos em Cister, com as monjas a terem elevadas cifras
demográficas ao longo da história.
Os Cistercienses regressaram a quase todas as nações onde tiveram uma presença histórica,
exceto Portugal, único país onde Cister foi historicamente importante e não foi efetuada
qualquer restauração depois da extinção dos mosteiros da Congregação de Alcobaça, em 1834.
Santa Maria de Aguiar

Presença cisterciense em Portugal


Portugal foi extremamente importante na história de Cister, tal como Cister foi relevante no
processo de afirmação do Reino de Portugal como entidade política autónoma.
Desde a (re)fundação cisterciense de Tarouca em 1144, depois de várias tentativas de fixação
dos Monges Brancos em Portugal sob patrocínio e proteção de D. Afonso Henriques e da
aristocracia portucalense, até à exclaustração de 1834, Cister foi uma das mais destacadas
instituições religiosas da história nacional, moldando mentalidades, animando cultural e
educacionalmente, arroteando terras, explorando, produzindo, como pioneiros de
povoamento, entre outras realizações.
Os sécs. XII e XIII foram as centúrias do apogeu de Cister em Portugal, como em toda a
cristandade, destacando-se a abadia de Alcobaça, a maior do reino e uma das maiores da
Ordem. As comunidades cistercienses sofreram as mesmas vicissitudes que as das outras ordens
religiosas a partir de Trezentos, com o declínio económico, espiritual e demográfico que
provocou a reforma da Ordem no séc. XVI, quando se instituiu a Congregação de Alcobaça.
In O esplendor da austeridade
A malha conventual foi renovada, em termos estruturais e de formação dos monges, assumindo
a estética do Barroco de forma imponente no panorama monástico português. O património,
material como imaterial, de Cister em Portugal é enorme, com um legado impressivo, mesmo
depois da extinção de 1834.

Legado histórico-cultural
Uma das marcas mais originais de Cister tem que ver com os mosteiros característicos da Ordem,
o que originou a designação de “estilo cisterciense”, ou da tendência homónima no Românico e
principalmente no Gótico, já que depois do Renascimento assumiu programas e gramáticas
estético-estilísticas idênticas às de outras ordens e da Igreja em geral.
Os mosteiros tinham designações baseadas na natureza (Noirlac, Clairvaux, Cîteaux...);
obedeciam, quando criados de origem, a um modelo-tipo, com a divisão dos espaços dos
monges e dos conversos; tinham uma grande proximidade e aproveitamento dos rios (água,
elemento simbolicamente importante em Cister, além de ritual e ablutório, para além de os rios
serem marcas de fronteira).

Santa Maria Maceira Dão


Os espaços funcionais estavam mais ou menos colocados da mesma forma em quase todos os
mosteiros; a austeridade e sobriedade decorativas, as linhas puras, a realçar a luz e a claridade;
o quase aniconismo figurativo no inerior como nas fachadas dos templos; cantochão e a
simplicidade litúrgica, enfim, tantas são as marcas distintivas de Cister e talvez as explicações de
tantas adesões e apoios suscitados na sua história secular.
Ordem contemplativa na sua essência, os Cistercienses, enquanto Beneditinos reformados, não
deixaram de valorizar a oração e o trabalho como um binómio basilar na sua marcha de vida.
Procurar Deus e orar era melhor em solidão, o que motivou a busca de lugares afastados da
“civilização”. Sete vezes diárias de Ofício Divino no coro e a prática de muita meditação
contemplativa são importantes em Cister, mesmo no trabalho, intelectual ou manual, embora
este tenha sido atribuído mais aos irmãos conversos, já que a hierarquia social medieval, muito
transporta nos mosteiros da Ordem, assim obrigava, pois os monges eram quase todos
sacerdotes, sendo maioritariamente de origem nobre.
Mosteiro de Arouca
Nesta faceta do trabalho manual os Cistercienses inovaram, ao criar granjas agrícolas ou
mineiras, além de pesqueiras e salinas, onde os conversos produziam e administravam
produções e geriam os territórios, favor da abadia de que dependiam.
Lá, na abadia, os monges oravam, ilustravam-se na Lectio Divina, geriam a propruiedade
monástica no seu todo, celebravam, ensinavam, por vezes. Este esquema de organização foi um
dos motivos do êxito de Cister, principalmente em termos económicos. A hidráulica, a
metalurgia e a mineração, muitas técnicas agrícolas, a piscicultura, entre outras inovações,
muito devem ao labor dos Monges Brancos.
Luz, claridade (como no hábito), sobriedade nos ornamentos e até mesmo na alimentação (sem
carne) eram notas distintivas dos Cistercienses.

V. G. Teixeira
In O esplendor da austeridade, ed. INCM

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