Catalogação-na-Publicação
Câm ara Brasileira do Livro, SP
O CELESTE PORVIR
A inserção do protestantismo no Brasil
Cp EDIÇÕES P A U LIN A S
Rua Dr. Pinto Ferraz, 183
04117 — São Paulo — SP (Brasil}
End. tefegr.: PAULINOS
5
documentos de igrejas que me forneceram; Sr. Alfredo Marques do Vale,
que me hospedou em sua casa e me proporcionou acesso aos documentos da
Igreja Presbiteriana Independente de Cachoeirinha do Avaré-SP e ao meu
dileto amigo Rev. Josué Xavier, que me auxiliou na leitura desses documentos;
José Carlos Wiezel, pelo preparo do gráfico sobre as denominações protes
tantes; Antonio Br az Menck e Araci Z. Menck, distinto casal que muito me
incentivou e apoiou.
Á Elisa, dedico.
6
"Comparando com a plenitude do universo católico, o protestantismo
aparece como um truncamento radical, uma redução ao essencial, às
expensas de uma grande riqueza de conteúdos religiosos.”
1 Dados de 1980, Instituições Evangélicas de Ensino Teológico no Brasil, ASTE, São Paulo.
9
do protestantismo na sociedade brasileira deu-se num momento histórico-social
propício (e que talvez outro melhor não chegaria a haver); segundo, que
a aceitação do protestantismo ocorreu na camada “livre e pobre” da população
rural e só ali provavelmente poder-se-ia dar; terceiro, que a expressão do
protestantismo foi facilitada pela expansão do café ou melhor, seguiu a trilha
do café.
Ao lado do esforço de análise dessas três facetas do mundo social
brasileiro da segunda metade do século XIX, terá naturalmente de ser levado
em conta o conteúdo ideológico da mensagem missionária protestante, recebida
e filtrada a partir do lugar social em que o receptor da mensagem se encontrava.
Ao reconstruir essa mensagem acabei percebendo que ela só teria sentido se
fossem rastreadas suas vicissitudes históricas que remontam às lutas da
Pós-Reforma, principalmente na Inglaterra, assim como suas repercussões na
formação do protestantismo norte-americano, raiz do protestantismo brasileiro.
Daí, justificar-se o longo levantamento que tive de fazer das lutas teológicas
que se desenvolveram por quase três séculos. É minha convicção que, apesar
de todos os preconceitos, é a teologia a mais importante fonte de construção
que a mente humana já tenha criado. Creio poder ser entendido, assim,
esforço que faço ao longo de todo este trabalho para involucrar sempre as
disputas teológicas nas tensões sociais cujas origens e soluções são, na maior
parte das vezes, buscadas na história e na filosofia. O preconceito repousa
na idéia mais ou menos explícita de que a teologia não passa de “querela
de clérigos” . Mas quando a linguagem teológica é desvelada mostra todo o seu
poder de explicação da realidade, assim como a sua capacidade modeladora
da sociedade. Aliás, esta é a compreensão de Max Weber: a religião aponta
para um além mas suas motivação é o “aqui e agora”:
10
O mesmo que Kolakovski diz da filosofia, desde que se leve em conta
certos distanciamentos, pode ser válido para a sociologia. Não nos esquecendo
de que a sociologia tem seu método próprio e que se esforça para ser uma
ciência empírica, creio ser razoável admitir o mesmo paralelo. Quando a
sociologia intenta compreender a relação entre o mundo construído pela
religião e a sociedade, pelo menos ao nível da linguagem exerce uma função
paralela à da filosofia. Peter Berger diz que “toda sociedade humana é uma
empresa de edificação de mundos e que a religião ocupa um lugar destacado
nesta empresa4. A minha já explícita convicção parte daqui, desta idéia de
Peter Berger.
A construção do mundo social pelo homem constitui, segundo Peter
Berger, um processo dialético uma vez que o homem é um produto da sociedade.
Peter Berger entende esse processo como composto de três momentos: exter-
nalização, objetivação e intemalização. A extemalização é um avanço em
direção ao mundo como uma atividade física e mental que tem como efeito
a sociedade que, assim, resulta um produto humano. A extemalização é uma
necessidade antropológica, o homem se complementa como ser neste lançar-se
sobre o mundo. A objetivação é o mundo criado pelo homem como estando
“ali fora” e que alcança um caráter de realidade objetiva como a linguagem,
os valores e as instituições. Por último, a intemalização é a reabsorção, na
consciência, do mundo objetivado, de maneira que as estruturas deste mundo
chegam a determinar as estruturas subjetivas da consciência. Assim, a inter-
nalização é um processo de socialização. A dialética reside, então, nessa
contínua relação entre o produtor da sociedade e o seu produto.5
Então, se a teologia com a sua linguagem própria, expressa essa dialética
da relação entre o homem e o mundo a partir da qual a religião pode ser
vista como uma empresa construtora de mundos, justifica-se o esforço para
aclarar os seus meandros e descobrir as ações e reações entre a religião e a
sociedade. Esta é uma tarefa da sociologia e, a partir daqui, penso justificar
os fastidiosos esforços para pôr em relçvo o pensamento teológico nos vários
momentos deste trabalho.
Sendo o protestantismo brasileiro ponta de linha do norte-americano, sua
índole e seu espírito deveriam proceder do “espírito” do protestantismo norte-
americano em geral e, especificamente, da corrente teológica preponderante
nas missões que empreenderam sua implantação no Brasil. Procurei investigar
o modelo teológico missionário para entender o “espírito” do protestante
brasileiro comum.
Em suma, a convicção de que os fatores específicos da ordem histórico-
social do Brasil, aliados à especificidade da mensagem religiosa dos missionários
modelaram aqui um protestantismo com características muito próprias, até
certo ponto negador de seus modelos históricos ligados ao liberalismo e à
modernidade, é que me levou a empreender este estudo. Pretendo encontrar
o
11
caminhos para compreender o “espírito” do protestantismo no Brasil e para
dar respostas às questões levantadas no início desta Introdução.
Este trabalho é uma análise, uma tentativa de compreensão. Isso explica
o uso preponderante de fontes secundárias que, no confronto, permitiram
uma certa forma de reconstrução. Mas o valor das fontes secundárias usadas
pode conferir uma boa margem de segurança às propostas apresentadas no
final. Trabalhei principalmente do ponto de vista do receptor da mensagem
protestante, das formas de assimilação das crenças propostas. Além das fontes
usadas para isso, pesaram muito as minhas próprias experiências pessoais.
O protestantismo brasileiro começa a ser estudado como uma realidade
social. Temos de deixar de lado, naturalmente, todas aquelas obras exclusi
vamente preocupadas com os problemas eclesiásticos ligados institucionalmente
às denominações protestantes. Neste caso, estão as obras de Júlio Andrade
Ferreira, “História da Igreja Presbiteriana do Brasil”, as de A. R. Crabtree
e A. N. de Mesquita, “História dos Batistas no Brasil”, J. L. Kennedy, “Cin
qüenta Anos de Metodismo no Brasil”, J. G. da Rocha, “Lembranças do
Passado” (história dos Congregacionais), George Lepton Krischke, “História
da Igreja Episcopal Brasileira”, Egmont M. Krischke, “História da Igreja
Episcopal no País do Futuro”, assim como os “Anais da Primeira Igreja Pres
biteriana de São Paulo”, de Vicente Themudo Lessa. São obras de história
inteiramente desvinculadas da realidade social brasileira. Pode-se incluir neste
rol, embora com reservas, dada a sua maior objetividade e ausência de triun-
falismo eclesiástico, a obra de Émile G. Léonard, “O Protestantismo Brasileiro”.
Uma obra de história muito abrangente e vinculada à História do Brasil
é a recente “O Protestantismo, a Maçonaria e a Questão Religiosa”, de David
Gueiros Vieira, importante pela sua objetividade e independência mas, prin
cipalmente, pela rica documentação e fontes primárias que apresenta. Deverá
constituir-se, portanto, numa fonte de referência constante para o estudo do
protestantismo no Brasil.
Com objetivos de interpretação sociológica ou antropológica, só nos
restam praticamente o trabalho de Emílio Willems, “Cunha — Tradição e
Transição de uma Cultura Rural no Brasil”, os de Boanerges Ribeiro, “Pro
testantismo no Brasil Monárquico” e o recente “Protestantismo e Cultura
Brasileira”, Waldo César, “Para uma sociologia do Protestantismo Brasileiro”,
e Cândido Procópio F. de Camargo, “Católicos, Protestantes e Espíritas” . O
trabalho de Willems, ao abranger no complexo social específico de uma vila
brasileira um grupo de metodistas, fornece de passagem importantes subsídios
para o estudo do papel dos protestantes diante da sociedade mais ampla e
das mudanças que ali ocorrem. As duas de Boanerges Ribeiro têm objetivo mais
dilatados ao pretender demonstrar que o protestantismo se inseriu na cultura
brasileira e como isso ocorrey. O pequeno trabalho de Waldo César, dentro
dos limites de uma conferêppià, Emita-se a fornecer elementos para estudos
sociológicos do protestantismír? Cândido Procópio F. de Camargo fornece
dados comparativos do crescimento dos vários segmentos protestantes, assim
12
como observações sobre a sua ética em relação à sociedade brasileira. Mas
dentro dos limites propostos, a parte referente ao surgimento do protestantismo
no Brasil, só apresenta um relato histórico.6
Há outras obras sociológicas e históricas significativas em que o protes
tantismo de missão é tratado de passagem, como Roger Bastide que dedica
um capítulo de seu extenso trabalho “As Religiões Africanas no Brasil”, ao
sincretismo produzido pelo negro em relação ao catolicismo e ao protestantismo.
Outra é a de Richard Graham, “Grã-Bretanha e o Início da Modernização
do Brasil” que, no seu capítulo 11, introduz um estudo muito interessante
sobre a doutrina da salvação individual no protestantismo e sua contribuição
para a concretização do ideal individualista e do Estado secularizado. Sobre
o único movimento messiânico protestante conhecido no Brasil temos a
descrição e análise que Maria Isaura Pereira de Queiroz faz em “O Messia
nismo no Brasil e no Mundo” sobre os Mucker. Um estudo específico sobre
este movimento é o de Janaína Amado, “Conflito Social no Brasil — A Revolta
dos ‘Mucker’”.
Há ainda um outro trabalho sobre a sociologia de pequenos grupos
protestantes, o de Maria Isaura Pereira de Queiroz e Ebe Martha Urbano,
“Estudo sociológico de um grupo protestante do Município de Itapecerica da
Serra” (São Paulo, s/data).
Nenhuma das obras relacionadas responde às indagações que coloquei
de início. Aliás, não se propuseram a isso. As de Boanerges Ribeiro, as mais
abrangentes e que colocam a questão da inserção do protestantismo na socie
dade brasileira, não descem à análise da crença protestante e nem ao seu
confronto com o campo religioso brasileiro. Não tentam construir um perfil
do protestantismo. Têm um significativo valor informativo por que partem de
informações documentais primárias, principalmente “Protestantismo e Cultura
Brasileira”, que, apesar do título, não chega a demonstrar que o protestantismo
se inseriu na cultura brasileira. Aliás, a tese deste trabalho é inteiramente
oposta como se verá ao longo dele. Ainda, os trabalhos de Boanerges Ribeiro
focalizam exclusivamente os presbiterianos como se eles constituíssem a tota
lidade do protestantismo.
Feito este balanço, creio poder contribuir para os estudos do protestantismo
histórico e de missão no Brasil ao tentar um levantamento de maior abran
gência e profundidade que leve em conta o pensamento protestante, a sociedade
brasileira e as formas de assimilação da nova forma de crença. Em suma,
este estudo é uma busca de caracterização do “espírito” do protestantismo
brasileiro.
13
Reafirmo que a pretensão desse trabalho, apesar de seu volume, não
vai além de uma contribuição inicial. Se as suas conclusões não forem as
melhores, espero que, pelo menos, as questões levantadas estimulem o dire
cionamento de estudos posteriores.
14
PARTE I
A HISTÓRIA
CAPITULO I
17
1. BRASIL COLÔNIA
1 Holanda, Sérgio Buarque de e Pantaleão, Olga, in Holanda, Sérgio Buarque (org.) 1960
(A), p. 149.
2 Lery, Jean de 1972, p. 61.
3 Ribeiro, Domingos 1937, p. 37.
4 Lery, Jean 1972, p. 52; Braga, Erasmo e Crubb, Kenneth G. 1932, p. 47.
18
no entanto, é ver no grande empreendimento holandês na época do Brasil
filípico, a expansão colonialista e capitalista da Companhia das Índias, visando
o comércio do açúcar. Tivesse, contudo, a conquista sido definitiva, é bem
pouco provável que o Brasil permanecesse católico, ao menos uniformemente
católico. A história tem mostrado que o conquistador quase sempre acaba
impondo a sua cultura e, com ela, o seu sistema religioso.
Durante quinze anos (1630-1645), Pernambuco e outras áreas do
Nordeste brasileiro foram protestantes. Embora Maurício de Nassau fosse
bastante tolerante com os católicos, o esforço dos “predicantes” logo conseguiu
reunir flamengos, ingleses e franceses moradores no Recife e, com eles,
organizar a primeira igreja5. Procurando aprender a língua geral, os pregadores
neerlandeses não perderam de vista os indígenas, os africanos e os portugueses.
Abriram guerra à imoralidade reinante entre os locais e mesmo entre os próprios
neerlandeses.
Consoante às normas reformadas foram organizadas duas classes (pres
bitérios), uma no Recife e outra na Paraíba, e, unindo ambas, o Sínodo, o
primeiro a ser instituído no Brasil. Com os consistórios (conselhos) das
congregações locais, estava implantada, de modo completo, a organização
eclesiástica calvinista6.
A disciplina religiosa na Colônia era rigorosa e atingia a ordem civil e
política, uma vez que cabia às Classes examinar os documentos de identidade
trazidos pelos colonos flamengos e extraditá-los, no caso de mau comporta
mento, assim como realizar casamentos. Essas Classes estavam jurisdicionadas
à Igreja da Metrópole sendo, assim, fácil sentir como os interesses da Com
panhia das Índias se ajustavam à disciplina eclesiástica7.
A leitura das Atas Clássicas e Sinodais8 mostra como a Igreja Reformada
Holandesa no Brasil era caracteristicamente puritana e rigorosa na disciplina.
Ordem e silêncio próximos aos locais de culto, santificação absoluta do domingo
com a proibição do trabalho e de diversões, interdição de juramentos, prague-
jamentos e duelos, lembram Genebra dos tempos de Calvino9.
Com a restauração portuguesa, em 1649, desapareceram, por muito tempo,
os vestígios institucionais do cristianismo reformado no Brasil10.
Na primeira década do século XVII novamente tentaram os franceses
ocupar um espaço no Brasil. A expedição de Rasily e La Ravardière tinha a
intenção de fundar a França Equinocial no Maranhão. Apesar de Rasily ser
católico militante e de se fazer acompanhar de numerosos capuchinhos", havia
19
na expedição um significativo contingente de huguenotes. É certo, no entanto,
que havia no Maranhão um clima de liberdade religiosa sob a inspiração do
Edito de Nantes12. Com a presença numericamente mais significativa de cató
licos e a liderança religiosa dos frades capuchinhos, é possível que os protes
tantes tenham se limitado às devoções particulares domésticas. A curta exis
tência da França Equinocial encarregou-se, também, de eliminar as possíveis
futuras influências protestantes no Maranhão.
O século XVIII foi a era da Inquisição no Brasil. A intensificação das
atividades do Santo Ofício e a legislação restritiva quanto à imigração quase
paralisou a vida na Colônia nos seus mais variados aspectos. Foi a “idade
das trevas” na expressão de Erasmo Braga e Kenneth G. Grubb13. Em 1720,
uma lei proibiu que qualquer pessoa entrasse no Brasil, a não ser a serviço
da Coroa ou da Igreja. Estrangeiros foram proibidos de visitar a Colônia.
Em 1800, o Barão von Humboldt foi proibido de entrar na Colônia, pois que
o Governo Português informou ao seu representante no Pará que Humboldt
podia influenciar o povo com “novas idéias e falsos princípios” 14. Isso natu
ralmente porque o Barão procedia de país protestante.
Pode-se dizer que até a vinda da Família Real não houve mais protestantes
no Brasil. Com a profunda modificação política ocorrida com a presença de
D. João VI, principalmente por causa da dependência portuguesa em relação
à Inglaterra e expressa no ato de abertura dos portos “às nações amigas”, é
que protestantes anglo-saxões começam a chegar e se estabelecer no Brasil,
com relativa liberdade para suas práticas religiosas.
O Tratado de Aliança e Amizade e Comércio e Navegação, celebrado
com a Inglaterra em 1810, criou um impasse com a hegemonia católica, uma
vez que a intolerância religiosa seria forte obstáculo à execução do Tratado e,
conseqüentes dificuldades políticas à Coroa por causa de sua situação de de
pendência da Inglaterra. Assim, progressivamente passando pela Constituição
de 1824 até a de 1891, foi sendo reduzida a hegemonia católica e os protes
tantes foram conquistando o seu lugar no espaço social brasileiro. Vão che
gando, espalhando suas bíblias e praticando seu culto dentro de normas legais
muito restritivas, tanto à propaganda religiosa quanto às formas arquitetônicas
de seus lugares de serviço religioso15. Assim, até 1824, ingleses, alemães, suecos
e americanos foram chegando e vivendo sua fé conforme a situação lhes per
mitia. Os ingleses e os americanos constituíam comunidades religiosas fechadas
à sociedade brasileira16, ao passo que os alemães e suecos, pela falta inicial de
20
assistência religiosa, foram sendo absorvidos pela sociedade abrangente ao
ponto de grande parte deles abandonar a antiga fé17. Há algumas referências
à presença de comerciantes escoceses, suecos e dinamarqueses, principalmente
no norte do Brasil, mas de curta permanência18, sendo provável ter havido
entre eles numerosos protestantes.
2 . BRASIL IMPÉRIO
21
litos, apesar da interdição constitucional, será feita no capítulo 5. Ademais,
a liberdade para vender e distribuir bíblias por parte de agentes das sociedades
bíblicas estrangeiras, bem antes da chegada e estabelecimento das missões
protestantes, constituiu-se num fator ponderável da estratégia protestante de
penetração. Documentos significativos desse preâmbulo da história do pro
testantismo no Brasil são as narrativas de Daniel P. Kidder e J. C. Fletcher21.
É certo, portanto, que foram os protestantes aproveitando as oportunidades
que o clima de tolerância oferecia e no final do século XIX já estavam prati
camente implantadas no Brasil todas as denominações clássicas do protestan
tismo. Os distribuidores de bíblias encontraram simpatias e facilidades por
parte de membros das várias camadas da sociedade, que manifestavam boa
vontade em recebê-las23. Erasmo Braga e Kenneth G. Grubb afirmam que os
primeiros livros publicados no Brasil contra o protestantismo foram entre
1837 e 1889 pelo Padre Luiz Gonçalves dos Santos que, em linguagem pesada
e grosseira, reagia contra a atividade de Kidder33, o mais importante distri
buidor de bíblias. Não há indícios de que os livros do Padre Luiz tenham
criado obstáculos ao trabalho de Kidder.
A distribuição de bíblias não se limitou às cidades onde, por certo, o
potencial de leitores era mais significativo. Entrou pelas áreas rurais em que,
ao contrário, poucos eram os que podiam lê-las porque poucos eram os
alfabetizados. Houve, porém, resultados. A distribuição de bíblias como fator
estratégico importante da penetração do protestantismo será retomada no
capítulo 4.
A necessidade de incrementar a imigração esbarrou logo com a questão
das garantias religiosas, como apontou o Marquês de Barbacena24. O Parla
mento teve, então, que abordar problemas como casamento, registro de
crianças, sepultamentos em cemitérios públicos e assim por diante. Uma ne
cessidade trazia outra. Mais tarde não teria a Constituição republicana outra
saída a não ser abrir mão da religião oficial para o que concorreu, por outro
lado, a forte pressão dos liberais e dos positivistas.
Vencendo gradativamente as dificuldades nos últimos quarenta anos do
Império, os protestantes, tanto os imigrantes quanto os brasileiros que iam
aderindo, espalharam-se bastante pelo território nacional, embora nunca che
gassem a ser parcela significativa da população.
Os anglicanos e alemães foram sempre nesse período comunidades fechadas
que não tiveram origem missionária, mas que se constituíam em capelanias
de assistência religiosa aos imigrantes. A partir de 1810 foram surgindo as
igrejas anglicanas com seus capelães. Os primeiros imigrantes alemães, entre
1824 e 1863, não tiveram nenhuma assistência religiosa por intermédio de
22
pastores; leigos faziam o papel dos pastores sem poderem, no entanto, realizar
os atos privativos dos agentes oficiais da religião, principalmente os que se
referem aos sacramentos. O governo brasileiro chegou a prover o sustento de
pastores habilitados mas em número insuficiente para atender às necessidades
cada vez maiores dos vários pontos de colonização alemã. Só em 1863 foi
que os constantes pedidos das igrejas protestantes alemãs do Brasil começaram
a ser atendidos com o envio de pastores através de um comitê organizado em
Barmen.
Em 1835, chegou o primeiro missionário metodista ao Rio de Janeiro,
o Rev. Fountain E. Pitts, do Board of Mission of the Methodist Episcopal
Church in the United States, que começou a pregar em residências particulares.
Em 1836, aporta outro missionário, o Rev. Justus Spaulding, que organizou
uma igreja com quarenta membros, todos estrangeiros. Em 1837, chegou
Daniel P. Kidder, o distribuidor de bíblias já mencionado, também metodista.
Em 1842, essa primeira igreja metodista encerrou suas atividades. As causas
do encerramento dessa primeira missão metodista não são muito claras, mas,
certamente, não foram as violentas acusações do Padre Luiz Gonçalves dos
Santos dirigidas diretamente aos metodistas. O mais provável é que a crise
das igrejas protestantes americanas por causa da escravidão e que atingiu a
Igreja Metodista em 184425, tenha cortado os recursos missionários.
Vinte e cinco anos depois, em 1871, os metodistas fundaram uma nova
igreja no Brasil, desta vez entre os imigrantes confederados em Santa Bárbara,
Província de São Paulo24. Essa missão parece ter-se encerrado com a retirada
de seu fundador e mantenedor, o Rev. J. E. Newman (1890), e o melancólico
e, até certo ponto, misterioso desaparecimento da colonização americana no
Brasil27.
A Igreja Metodista parece considerar como seu estabelecimento oficial
no Brasil o ano de 187628, quando o Rev. J. J. Ramson fundou, no Rio de
Janeiro, a terceira igreja metodista no Brasil com seis pessoas, todas estran
geiras. Só aos poucos, como ocorreu com as demais denominações, é que foram
chegando os primeiros elementos brasileiros. A partir daí os metodistas se
estabeleceram definitivamente no país.
Até o período já considerado, o protestantismo no Brasil era constituído
quase que unicamente de estrangeiros. Havia muito poucos brasileiros conver
tidos. Mas, em 1855, chega ao Rio de Janeiro o médico escocês Robert Reid
Kalley que, fugindo de violenta perseguição religiosa na Ilha da Madeira, reúne
em tomo de si alguns correligionários também fugidos da perseguição e começa
23
em Petrópolis atividade proselitista em português. Em 1858, organiza a igreja
congregacional com pequeno número de prosélitos brasileiros, além dos madei-
renses. Em 1873, foi fundada outra igreja congregacional em Pernambuco, mas
não ligada, como a do Rio de Janeiro, a qualquer organização missionária.
Usando com liberdade o vernáculo, pois seu líder procedia de área de língua
portuguesa, os congregacionais produziram um importante instrumento para que
outras denominações, principalmente os presbiterianos, atingissem os brasileiros.
Esse instrumento, que nos capítulos finais deste trabalho terei oportunidade de
examinar mais detidamente, foi o SALMOS E HINOS29. Posteriormente, em
1892, o Dr. Kalley organizou, na Grã-Bretanha, a Help for Brazil Mission
que incrementou bastante a atividade missionária dos congregacionais.
O afã missionário norte-americano, começado com os distribuidores de
bíblias, como Kidder e Fletcher, da American Bible Society, tendo prosseguido
com os metodistas, continuou com a chegada do missionário Ashbel Green
Simonton, da Presbyterian Church in the United States of America30, em 12
de agosto de 1859, ao Rio de Janeiro. Foi enviado pela Junta de Missões
Estrangeiras, mais conhecida pelos brasileiros como Board de Nova Iorque,
atendendo ao pedido do próprio Simonton que escolhera o Brasil como campo
de sua atividade missionária. Naturalmente conhecia o Board a situação religio
sa do Brasil e, por isso, as condições oferecidas a Simonton previam o seu
envio para outro campo se “as portas não estivessem abertas no Brasil”31.
Simonton gastou os seus três primeiros anos no Rio e em vários lugares
na Província de São Paulo, enfrentando as dificuldades do novo meio e da
língua. Como os missionários anteriores, organizou a primeira igreja presbite
riana no Brasil com pouquíssimos membros, e todos estrangeiros. Eram só
dois adeptos, um americano e um português. Foram chegando outros estrangei
ros e, dois meses mais tarde, chegou e foi recebido o primeiro brasileiro, Serafim
Pinto Ribeiro32. A fundação da primeira igreja presbiteriana deu-se em 12
de janeiro de 1862. Naquela altura Simonton já não estava só pois tinham
chegado dois novos missionários para ajudá-lo: o Rev. Alexander L. Blackford,
em 24 de julho de 1860, e o Rev. F.J.C. Schneider, em 1861.
Simonton, provavelmente alertado por Kalley, com quem logo entrara
em contato33, embora vivendo e convivendo com estrangeiros, mostrava grande
preocupação em começar a pregar em português e em não se misturar muito
com os seus compatriotas34 e outros estrangeiros. Sua intenção primordial era
24
envolver-se com brasileiros e conseguir adeptos entre eles. Talvez seja essa
a explicação para o crescimento relativamente rápido do presbiterianismo35.
Em 5 de março de 1865, Blackford organiza em São Paulo a segunda
igreja presbiteriana, com dezoito pessoas. De São Paulo, lançam-se os presbi
terianos para o interior, o que veio a caracterizar a ação missionária tipicamente
rural dessa denominação em seu período inicial. Assim, em 13 de novembro
de 1865, em Brotas, no sertão paulista, organizaram a terceira igreja presbi
teriana, com onze pessoas. Pela primeira vez eram todas brasileiras36. Além do
missionário A.L. Blackford, que presidiu o ato, estava presente José Manoel
da Conceição, ex-padre e ex-vigário de Brotas, e que viria a ser o primeiro
pastor protestante brasileiro. Aquelas pessoas, ex-paroquianas de Conceição,
tinham sido influenciadas por ele no seu período de crise religiosa com relação
ao catolicismo. Posteriormente à sua ordenação como pastor presbiteriano,
passou Conceição a viajar incansavelmente por suas ex-paróquias propagando
as suas novas crenças e, com isso, certamente colaborou para a já dita expansão
do protestantismo na Província de São Paulo e na zona fronteiriça de Minas37.
Outro fator favorável à expansão presbiteriana foi o estabelecimento em
Campinas, em 1868, da Missão da Igreja Presbiteriana do Sul dos Estados
Unidos. Esta Igreja sulista preocupou-se com a situação religiosa dos emigran
tes confederados que, em 1866, estabeleceram-se em Santa Bárbara — SP,
nas vizinhanças de Campinas38. As igrejas do Sul, não somente a presbiteriana,
mas a metodista e a batista, não ficaram insensíveis aos apelos dos seus fiéis
que emigraram. Todas elas procuraram atender aos pedidos que partiram de
Santa Bárbara. Em 1868, o Sínodo Presbiteriano da Carolina do Sul enviou
os missionários Edward Lane e G. Nash Morton, que se estabeleceram em
Campinas. No entanto, o atendimento religioso aos confederados de Santa
Bárbara não parece ter sido o objetivo exclusivo da Igreja do Sul, porque
logo mais, em 1873, os missionários William Leconte e J. Rockwell Smith
foram enviados para o Recife. Pode ter havido, entre 1868 e 1873, alguma
mudança na política missionária dos sulistas, mas o fato é qué houve a intenção
inicial de atender aos norte-americanos de Santa Bárbara, caso contrário não
seria uma cidade do sertão paulista escolhida para sede missionária.
As profundas diferenças de forma de pensar que deveriam estar presentes
nas duas facções presbiterianas não impediram que elas no Brasil ao formarem
em 1888, o Sínodo do Brasil, constituíssem uma única igreja sob o ponto de
vista institucional39. Essa união deu-se em 6 de setembro de 1888, logo após
25
a abolição do escravismo no Brasil. Isto parece ser sugestivo. Mas, se for
aceita a hipótese de Erasmo Braga e Kenneth G. Grubb, o simples fato de
não mais existir escravidão no Brasil não foi suficiente para eliminar as
diferenças de ordem política e eclesiástica que permaneciam entre os dois
grupos. A união entre presbiterianos sulistas e nortistas no Brasil, embora
tivesse contribuído para o crescimento dessa denominação, provavelmente tenha
contribuído para a evolução das crises futuras do presbiterianismo brasileiro40.
Entre a chegada de Simonton (1859) e o fim do Império, já tinham os
presbiterianos mais de dnqüenta igrejas, quatro presbitérios (unidades regionais
eclesiásticas), um seminário para preparar pastores nacionais, dois colégios e
diversos periódicos4’.
Os mesmos confederados de Santa Bárbara serviram de atração para os
batistas. Em 1845, já os batistas americanos tinham organizado a Southern
Baptist Convention por causa dos mesmos problemas escravocratas, embora em
clima de boa vontade e sem ressentimentos42. Em 10 de setembro de 1871,
em Santa Bárbara, foi fundada a primeira igreja batista no Brasil, provável»
mente pelo Pastor Richard Ratcliff43. A nova igreja previa ser reconhecida
como missão e, provavelmente, expandir-se entre os brasileiros. Vários pedidos
foram feitos, nesse sentido, à Junta Missionária de Richmond, até que, em
1881, chegou o primeiro missionário batista para pregar aos brasileiros, William
B. Bagby. Após ter naturalmente passado por Santa Bárbara, pastoreando ali
duas igrejas dos colonos e aprendido a língua, escolheu a Bahia como base
missionária entre os brasileiros. Na Bahia fundou, em companhia do ex-padre
Antonio Teixeira, em 15 de outubro de 1882, a primeira igreja batista nacional,
com cinco pessoas, quatro americanos e um brasileiro44.
Estabelecida esta base, os batistas se expandiram pelo nordeste e norte
do Brasil, espaço ainda relativamente desocupado pelos protestantes. Os presbi
terianos, já presentes na área, ainda não tinham começado a se estender, o
que ocorreu mais tarde.
A missão mais tardia, entre as principais denominações protestantes, foi
a da Igreja Protestante Episcopal dos Estados Unidos da América. A American
Church Missionary Society enviou dois jovens missionários para iniciarem suas
atividades no Brasil, os Revs. James Watson Morris e Lucien Lee Kinsolving,
chegados aqui em 1889. No ano seguinte, em 1.° de junho de 1890, em Porto
Alegre, Rio Grande do Sul, oficiaram o primeiro culto episcopal no Brasil.
Os presbiterianos do Board de Nova Iorque já haviam iniciado uma missão na
40 Ibidem, p. 60.
41 Atas do Sínodo da Igreja Presbiteriana doBrasil, 1894; Léonard, Émile G., 1963,
pp. 91/92.
42 Olmstead, Clifton E., 1961, pp. 97/98.
43 Crabtree, A.R. 1962, p. 60; Jones Judith MacKnight, p. 202.
44 Crabtree, A.R. 1962, p. 75.
26
cidade de Rio Grande mas, por um acordo de divisão de território, cederam
aos episcopais a área do sul do Brasil. O trabalho de propagação foi promissor,
pois que na primeira visita episcopal, em 1893, foram ordenados quatro
diáconos das cento e quatorze pessoas confirmadas. Na visita seguinte, em
1897, foram ordenados três diáconos e confirmados cènto e cinqüenta e seis
convertidos. Em 1900, um dos dois primeiros missionários, Kinsolving, foi
consagrado bispo. Isto, até certo ponto, atesta o desenvolvimento dos episcopais
no Brasil, especialmente na Província do Rio Grande do Sul45.
Deixando de lado, por causa dos objetivos destes trabalhos, os luteranos
e os anglicanos, por não se terem envolvido na sociedade nacional, pelo menos
no período histórico em questão, isto é, até o fim do Império, vemos que os
presbiterianos foram os que mais cresceram.
Segundo os dados coletados por Boanerges Ribeiro, nas atas do Sínodo
da Igreja Presbiteriana no Brasil, o número de membros comungantes, em
1891 (era de 2.947, o que acusa uma média de crescimento anual (de 1859 a
1891) de mais de 90 novos membros. Naturalmente, este cálculo é muito
precário porque não leva em conta os que entraram e saíram ou que faleceram.
Nesse mesmo ano de 1891 a Igreja contava com 31 pastores, sendo 12 nacionais
e 19 missionários, o que não leva em conta, também, os que faleceram, tanto
nacionais como missionários, assim como os missionários que regressaram à
pátria44. Se os dados não são muito impressionantes, considerando-se, no
entanto, as dificuldades da época e os problemas naturais de uma religião que
procurava espaço numa sociedade que lhe era inteiramente estranha e já
ocupada por uma religião nela culturalmente enraizada, o crescimento dos
presbiterianos não deixa de ter alguma significação. O crescimento relativo
dos presbiterianos aparece no gráfico anexo47.
Entre 1859 e 1889, as duas missões presbiterianas, entre evangelistas e
educadores, enviaram para o Brasil 45 missionários. Empregaram, também,
17 pastores nacionais48. A relação entre o vulto da empresa missionária e os
adeptos em 1891 mostra cerca de 50 convertidos para cada agente empregado.
Por este prisma, os recursos humanos empregados pelas missões revelam ser
um investimento, confiantes que estavam nas possibilidades futuras de desen
volvimento do presbiterianismo brasileiro.
45 Braga, Erasmo e Grubb, Kenneth G. 1932, 65; Ferreira, Júlio A. 1959, 1.° vol., p. 193.
46 Ribeiro, Boanerges, 1981, 331 (quadro 5).
47 Extraído de Braga Erasmo e Grubb, Kenneth G. 1932.
48 Ribeiro, Boanerges 1981, p. 325 (quadro 3).
C A PITU L O II
AS RAIZES
Introdução
1. A REFORMA NA INGLATERRA
29
choque da Reforma em relação à Igreja Católica. Naturalmente, no extremo
do percurso entre o calvinismo ortodoxo e o último produto que foi o Wesleya-
nismo, sente-se a acomodação da teologia reformada mais extrema com certos
resíduos da teologia católico-romana’
Por questões políticas, Henrique VIII, que reinou entre 1509 e 1547,
separou a Igreja da Inglaterra da Igreja Romana. O Parlamento não teve
dúvidas em apoiar o Rei uma vez que jamais os ingleses se sentiram à vontade
sob a supremacia de bispos italianos. Pelo ATO DE SUPREMACIA, votado
em 1535, o Rei foi transformado em chefe da Igreja da Inglaterra. A Igreja
Anglicana continuou, no entanto, mantendo as formas e os credos católico-
romanos. Mas durante a maioridade de Eduardo VI os nobres começaram a
protestantizar a Igreja reformando o culto de acordo com as idéias da Reforma,
fazendo publicar as duas primeiras versões do Livro de Oração Comum. A
violenta reação chefiada pela Rainha Maria, que pretendia fazer a Inglaterra
voltar ao que era antes de Henrique VIII, paralisou a reforma da Igreja, mas
não impediu que o espírito do protestantismo permanecesse, e talvez se fortifi
casse, por causa da violência da perseguição. A maioria dos ingleses estranhou
essa forma de cristianismo2 e, por isso, aceitou normalmente o restabelecimento
do anglicanismo no reinado de Isabel I.
Isabel I, filha de Henrique VIII, que reinou entre 1558 e 1603, restabe
leceu o anglicanismo com a LEI DOS TRINTA E NOVE ARTIGOS (1563),
de inspiração calvinista, e do LIVRO DE ORAÇÃO COMUM, usado até hoje
sem grandes modificações. A solidez da Igreja Anglicana, apoiada no Estado
como igreja oficial, e o crescente poderio econômico e político fizeram da
Inglaterra o baluarte do protestantismo no mundo.
No entanto, sob o ponto de vista teológico, a Igreja Anglicana não
permaneceu monolítica. A efervescência de idéias filosóficas e políticas que
afluem do Continente e vão constituir o esplendor da “era isabelina” levam no
seu bojo as lutas que já se manifestavam dentro do calvinismo.
1 Alguns calvinistas, como Jorge Whitefield, acusaram João Wesley de papista porque
sua teologia dava lugar a participação da vontade humana na salvação. Lembre-se quepara o
calvinista ortodoxo, a salvação é obra exclusiva da graça de Deus.
2 Nichols, Robert H. 1978, p. 177.
3 Christianae Religionis Institutio, publicada em 1S36, em Basiléia.
30
santos). Toda essa seqüência lógica é extraída do ponto de partida fundamental
de Calvino que é a sua tese de Soberania Absoluta de Deus. Para a maioria
dos defensores de Calvino, a ênfase da sua teologia não estava na doutrina
da predestinação, mas na da Soberania. Aquela era meramente uma ilação
natural desta, mas não constituía preocupação central do Reformador. A insis
tência na predestinação foi obra dos discípulos de Calvino que afluíam a
Genebra e de lá refluíam para várias partes da Europa.
Quem desses discípulos provocou a rachadura mais importante no calvinis
mo ortodoxo foi Theodoro Beza (1519-1605), que ensinava ter Deus decretado
a queda do homem mesmo antes de tê-lo criado4. Essa doutrina extrema, que
fazia de Deus um déspota temível, só podia levar os espíritos mais liberais da
época a reagir. Realmente essa reação ocorreu na Holanda quando Tiago
Armínio (1560-1609), que havia estudado com Beza em Genebra, envolveu-se
em lutas teológicas decorrentes das críticas mais ou menos generalizadas contra
o calvinismo extremado5. Essas lutas o levaram a reestudar o predestinismo
de Beza que não se coadunava com o espírito holandês da época. O ambiente
na Holanda era de reação contra o fanatismo e a intolerância que respirara
durante o domínio espanhol. A aspiração à liberdade, tanto civü como religiosa,
influenciou naturalmente Armínio para quem a predestinação era contra a
natureza de Deus e do homem, gerava o desespero, tirava o estímulo para a
vida de santidade e diminuía a importância do Evangelho. Procurando uma
posição intermédia entre SOLA FIDE e SOLA GRATIA cria que a justificação
era pela fé mediante a graça4. Essa posição intermédia introduz uma parcela
de participação humana no processo de salvação, o que é compreensível no
clima de humanismo que caracteriza o tempo da Reforma. Logo adversários
de Armínio, como o seu colega de Leiden, Gomarus, o acusaram de
pelagiano7.
O Sínodo de Dort (1618-1619), pressionado pelos partidos em luta, ameni
zou o calvinismo original adotando a teoria sublapsoriana, segundo a qual o
decreto da eleição vem depois do que permitiu a queda do homem. Em termos
mais explícitos, essa amenização é a seguinte: a eleição só se refere aos que
aceitam a Cristo como seu Salvador; quanto aos que o não aceitam, essa
atitude que os perderá, é tomada por eles mesmos e não por força de um
decreto divino. Vê-se que o Sínodo, ao adotar essa posição, tenta preservar
31
o que parecia essencial na doutrina de Calvino e ao mesmo pagar tributo aos
anseios de participação humana em tudo o que lhe diz respeito, especialmente
naquilo que na época era o mais importante, como a salvação da própria alma.
Embora a crença da Igreja Holandesa institucionalizada continuasse sendo a
do calvinismo original, a posição arminiana, mais adequada ao clima social
e de pensamento da Holanda em fins do século XVI, foi ganhando o consenti
mento do clero e de muitos leigos influentes.
Na sua essência, a teologia de Armínio pode ser resumida assim: Cristo
morreu por todos os homens e o propósito de Deus desde o princípio foi salvar
todos os que crêem em Cristo. Desse modo, os propósitos soberanos de Deus
deixam uma margem para a decisão humana, o que valoriza de certo modo
o homem ao lhe garantir a liberdade de aceitar ou não pela fé, essa graça
que lhe é oferecida.
b) O calvinismo na Inglaterra
32
já se nota a influência do calvinismo genebrino na severidade da moral pública
instituída: havia uma polícia de costumes que proibia os bailes, vestimentas
luxuosas e tudo o que pudesse parecer mundano10.
As sucessivas edições das INSTITUTAS, tanto em latim como em francês,
já em 1540 haviam feito de Calvino um dos líderes mais destacados da
Reforma. Sua influência começou a ser muito ampla, chegando às áreas de
influência do pensamento de Lutero onde penetrou em profundidade, pondo
em choque alguns pontos fundamentais da teologia luterana, como as questões
sobre a primazia da fé ou da graça e, especialmente, sobre o significado do
sacramento da eucaristia. Esse desacordo entre os dois reformadores só serviu
para enfraquecer, de algum modo, o movimento da Reforma em territórios
alemães quando “evangélicos” (luteranos) e “reformados” (calvinistas) começa
ram a se defrontar violentamente, do que se aproveitou a Contra-Reforma
para obter algum êxito11. No entanto, fora dos territórios alemães e da Escandi
návia, Calvino suplantou Lutero. Comunidades calvinistas proliferaram ao
ocidente da Europa.
Depois de 1550, foi o calvinismo penetrando lentamente nos Países Baixos,
suplantando seus predecessores luteranos e anabatistas. Sua penetração se deu
principalmente entre os camponeses atrasados e o proletariado das cidades.
Em 1560 introduziu-se na Escócia de nobres turbulentos e camponeses pobres,
em que não havia comerciantes e nem classes médias. Embora o calvinismo
tivesse se expandido também pela Polônia, Boêmia e Hungria, seu domínio
mais relevante foi nos Países Baixos, Inglaterra e Escócia onde, acentue-se,
encontrou guarida mais entre dominados do que entre dominantes. A explica
ção talvez possa ser encontrada tanto na doutrina da predestinação do calvi
nismo ortodoxo, em que a soberania de Deus suplanta todas as soberanias
humanas e extrai os eleitos de qualquer classe social não levando em conta
nem ricos nem pobres, assim como no calvinismo mitigado em que o amor
de Deus oferecido a todos os homens indistintamente oferece margem de
participação humana na graça de Deus, que valoriza o indivíduo seja qual
for a sua extração social. Desse modo, embora o calvinismo possa parecer
elitista com a sua doutrina da eleição, na realidade parece ter exercido na
Inglaterra o papel oposto ao combater toda forma de autoridade, tanto eclesiás
tica como civil, sendo cada vez mais levado a assumir posturas revolucionárias,
tanto diante da Igreja Oficial, com seu clero hierarquizado, como das autorida
des civis, que tendiam sempre a exercer o poder de cima para baixo. O
calvinismo, ao contrário do luteranismo, não teve a intenção de aliar-se a
governantes para que estes o impusessem por decreto. Ao contrário, sua
índole republicana o conduzia a opor-se às formas políticas dominantes na
Inglaterra. Por outro lado, o rejuvenescimento da Igreja Romana, a partir de
1550, como resultado da Contra-Reforma, fazia dela novamente um inimigo
poderoso que tendia a se manifestar através da Igreja Anglicana que mantinha,
33
2 -C eleste porvir
pelo menos por via de suas formas institucionais e litúrgicas, o seu parentesco
temivelmente próximo do papismo.
Aprofundando um pouco mais a questão, o calvinismo contava com dois
elementos a seu favor na sua expansão por entre povos que começavam a
se despertar para a luta contra formas despóticas de poder, sendo eles as duas
principais contribuições da teologia de Calvino nessa direção. Primeiro, a
teologia da predestinação dava aos calvinistas a certeza do triunfo: se contavam
com a amizade de Deus, o que mais importava? A convicção de que eram
eleitos os transformava em sectários cônscios de que estavam do lado certo
e de que o erro devia ser combatido e eliminado. Daí, a tenacidade calvinista
que se manifestava nos vários aspectos da vida e que se sobressaía de modo
tão evidente no puritanismo. Segundo, o modo calvinista de governo eclesiástico
com seu sistema eletivo e sua dinâmica combinação de participação leiga e
clerical, lhe permitiu concretizar sua organização em paróquias autônomas,
sem bispos e sem qualquer outro sistema autoritário de disciplina que lembrasse
a Igreja Católica ou a Anglicana. Os calvinistas podiam fazer funcionar, pelo
menos na área religiosa, um sistema republicano-democrático que atendia às
aspirações vigentes de liberdade e, ao mesmo tempo, respeitava o individua
lismo uma vez que a participação nas congregações era voluntária. O plano
de governo de Calvino era popular, democrático e republicano: permitia
eleições de baixo para cima mais do que nomeações e ações de cima para baixo.
A esses dois elementos, a doutrina da predestinação e o sistema de governo
eclesiástico, pode-se acrescentar ainda, como significativos para à expansão do
calvinismo, a clareza e a sistematização dos escritos de Calvino em relação
aos de Lutero. Embora Lutero tenha sido mais prolífico e mais humanamente
sensível, seus escritos são pouco sistemáticos, ao passo que Calvino construiu
um sistema coerente e lógico, que dava resposta a todas as perguntas. No
entanto, a rigidez calvinista, mais tarde irá ser, talvez, o seu ponto fraco porque
não conseguiu ajustar-se a formas sociais diversas ou em mudança. Acrescen
te-se ainda que o calvinismo teve um centro poderoso de irradiação que foi
Genebra. Ao mesmo tempo em que se erigia como modelo de uma sociedade
moldada nos princípios cristãos da Reforma, Genebra, com a sua Academia
(fundada por Calvino em 1558) formava calvinistas fervorosos e de largo
preparo intelectual, aliás uma grande preocupação de Calvino. Essa valorização
inicial do preparo acadêmico dos pastores, assim como a sistematização da
teologia calvinista, muito ao gosto da época, foram sempre fatores de grande
atração para os intelectuais. Como muitos estudantes da Academia eram
estrangeiros, ela se tomava um dos poderosos elementos da dinâmica
expansionista do calvinismo. Genebra, desde logo, ultrapassou em influência a
Wittemberg de Lutero e a Estrasburgo de Bucer12.
Em princípios do século XVII o calvinismo já se espalhava pela Inglaterra,
Irlanda e Escócia, seja com sua participação teológica dentro da Igreja Angli
34
cana, seja pela presença das igrejas presbiterianas, congregacionais e batistas.
O movimento responsável por essa vitória do calvinismo foi o puritanismo que
ocupará a parte seguinte deste capítulo.
c) O puritanismo
35
mesmo do surgimento do movimento puritano, a partir de certos textos de
Calvino, desenvolvera-se a corrente teológica do Pacto ou Federal. Essa corrente
ganhou muita ênfase por causa dos escritos de Heinrich Bullinger (1504-1575),
sucessor de Zuinglio, em Zurique, e que é destacada no Catecismo de
Heidelberg (1563). Foi desenvolvida e detalhada por uma sucessão de teólogos
no Reno e nos Países Baixos. Na Inglaterra pontificou na Universidade de
Cambridge, onde se destacou William Ames (1576-1633), que, em 1610, deixou
suas aulas na universidade por se recusar a usar a sobrepeliz. Foi para a
Holanda, onde deixou um famoso discípulo: Johannes Cocceius (1603-1669),
que levou a teologia do Pacto à sua mais completa e sistemática expressão,
tomando-se líder de uma extremada escola de pensamento. Note-se, desde
logo, que Ames viria a ser o mentor teológico dos puritanos da Nova Inglaterra
através da tradução para o inglês de seus livros originalmente escritos em
latim'4.
“O coração da Teologia do Pacto reside na insistência em que os decretos
predestinantes de Deus não são parte de vasto esquema impessoal e mecânico,
mas que, sob a dispensação do Evangelho, Deus estabeleceu um pacto de graça
com a semente de Abraão. Isto deve ser apropriado pela fé e, por essa razão,
é irredutivelmente pessoal”15.
Embora os puritanos não concordassem “in totum” com a idéia, propen-
deram a admitir que o efetivo chamado de cada eleito seria através de um
encontro pessoal com as promessas de Deus. O pacto entre Deus e Abraão
(Gênesis, 17) foi pessoal e de iniciativa divina, logo um ato de graça. Pede-se
ao homem, portanto, mais do que um ato de adesão à divina mercê. A
verdadeira fé exige íntima, manifesta e obediente preparação, apropriação,
humildade, dedicação, gratidão e uma disposição para andar nos caminhos
de Deus de acordo com a sua lei. Embora os dispositivos do calvinismo
continuassem presentes, como a iniciativa divina na concessão da graça e a
ênfase no ascetismo, havia um elemento novo: a iniciativa humana e pessoal
na apropriação dessa graça. Surge assim uma valorização do homem e da
pessoa. Apesar disso, a específica experiência de conversão raramente ocorria;
para a maioria bastava adquirir a segurança da eleição.
O que era importante na Teologia do Pacto, encampada pelos puritanos,
era o individualismo nos seus mais variados aspectos e que fornecia armas
para a oposição a todas as formas de soberania de cima para baixo, especial
mente os episcopados, tanto romanos como anglicanos. É importante notar
que os “presbiterianos escoceses tomaram-se literalmente um povo do pacto”16.
Quando a Assembléia de Westminster se reuniu (1643-1649) por convo
cação do parlamento, as várias tendências teológicas calvinistas convergiam
para a Teologia do Pacto e a confissão de Westminster surgiu como a mais
36
definitiva confissão pactuai da história da pós-Reforma. Sua adoção por
numerosas igrejas e pelos presbiterianos em geral'7 fará dessa Confissão o mais
influente símbolo doutrinai na história da América Protestante. A Teologia
do Pacto, talvez pela sua quase universalidade entre as igrejas de origem
calvinista, via Confissão de Westminster, e estar na origem da própria história
do povo americano, parece ser a raiz da ideologia do Destino Manifesto.
c) 2 — O “spectrum” do puritanismo
37
pelas presbiterianas em geral. Houve outros grupos menores e mais radicais
que não chegaram a exercer grande influência. É importante não esquecer
que na base dessas organizações eclesiásticas estava a teologia do pacto: cada
congregação é composta por “santos visíveis” que têm um pacto individual
com Deus e com mais ninguém. A congregação é que determina quem são
os santos, estabelece a disciplina e exclui seus membros quando julga necessário.
As nuanças desse princípio estabelecem as diferenças entre os vários tipos de
igrejas puritano-reformadas. Mas o que é significativo é o ponto de partida
em que o voluntarismo e o individualismo são ressaltados. Só entra para a
igreja quem quer e as relações do fiel com Deus é questão que somente a
ele toca.
O sistema de governo eclesiástico dos calvinistas puritanos foi muito
importante para a expansão do protestantismo, uma vez que sua estrutura era
facilmente ajustável a outras situações político-sociais. Isso a história se encar
regou de mostrar. Mas o que mais impressionou no puritanismo foi a sua visão
do mundo e a sua maneira de viver nele, seu ascetismo austero e sua piedade
bíblica.
A teologia do puritanismo está expressa, em seus termos mais radicais,
nas obras de Milton (Paraíso Perdido, 1667) e de João Bunyan (O Peregrino,
1678). Para Max Weber só a leitura deste último já é suficiente para se
conhecer a atmosfera peculiar do puritanismo19, no que parece estar ele certo.
Bunyan mostra a vida do cristão como uma caminhada áspera em direção à
Cidade de Deus. Nesta caminhada o cristão passa por toda sorte de perigos,
tentações e dúvidas. A caminhada é muito penosa porque o caminho é íngreme
e estreito. No entanto, a escolha deste caminho foi um ato de vontade, uma
opção que o cristão tomou diante de uma outra alternativa que se lhe oferecera:
a do caminho largo e tranqüilo em que o andar não é penoso, ao contrário, é
alegre, festivo, cheio de atrações, mas que conduz ao sofrimento eterno na
Cidade da Destruição. A famosa alegoria de Bunyan contém elementos desvian-
tes da teologia calvinista, devidos às várias influências já sofridas por ele
naquela altura do século XVII. A possibilidade de escolha por parte do
indivíduo, do caminho a seguir (contra a predestinação) e a possibilidade de,
mesmo no fim da carreira, passar para o lado oposto (contra a graça irresistível
e a perseverança dos santos). Veja-se esta passagem final da obra de Bunyan:
“Fiquei surpreendido; mas serviu-me isto de importante lição, pois fiquei
sabendo que da porta do céu há caminho para o inferno, do mesmo modo
que o há na cidade da Destruição”50.
A célebre obra de Bunyan foi, posteriormente mas em data incerta, repre
sentada pela célebre gravura conhecida como “O caminho largo e o estreito”,
muito difundida nos meios protestantes em várias adaptações do original. O
38
quadro mostra o plano individual e o coletivo na escatologia cristã,21 consti
tuindo-se em típico exemplo de uma visão dualista da História.
A teologia do calvinismo puritano parece ser a dominante ainda hoje
numa extensa área do protestantismo, especificamente naquele que percorreu
o longo caminho Inglaterra-Estados Unidos-América Latina. É o que ten
tarei mostrar na parte final desta trabalho.
21 Sobre esta gravura, ver o sugestivo trabalho de Duglas Teixeira Monteiro, Cadernos
do ISER (Instituto Superior de Estudos da Religião), n.° 5, nov. 1975, p. 21.
22 Richard Hooker é considerado o teólogo clássico do anglicanismo pela sua obra em
oito volumes: The Laws of Ecclesiastical Polity (publicada a partir de 1594).
23 Salmos e Hinos, n.° 360, edição de 1899.
39
versai da obra vicária de Cristo e a responsabilidade do homem pela sua
própria salvação.24
Na segunda metade do século XVII a Igreja da Inglaterra entrou em
declínio. No século XVII dá-se o grande avivamento de João Wesley (1703
1791), que já na Universidade de Oxford, onde estudara, manifestara preo
cupação com a santificação da vida religiosa. Ministro da Igreja Anglicana,
estivera na Geórgia onde teve contato com os moravianos, cuja doutrina influiu
sobre ele. Em 1738 “converteu-se” em Londres durante um movimento reli
gioso. Wesley, por cinqüenta anos, viajou por toda a Inglaterra, Irlanda e
Escócia, pregando e organizando sociedades metodistas, verdadeiras igrejas,
embora não reconhecidas.
Logo, João Wesley e seu irmão Carlos, assim como Jorge Whitefield,
grande pregador do movimento, todos clérigos anglicanos, foram proibidos
de pregar nas igrejas oficiais, o que não impediu de surgir dentro delas um
significativo grupo de adeptos. A teologia do avivamento de Wesley era armi-
niana, bem nutrida no pensamento de George Buli: a livre graça de Deus
em Cristo, salvação livre pela fé no Salvador mediante o convite de Deus
ao arrependimento e à fé. Parece que, pela primeira vez, a música é usada espe
cificamente como canal da mensagem religiosa ao mesmo tempo que apela para
as emoções. Carlos Wesley (1707-1788) foi o grande compositor do meto-
dismo, mas outros, como Augustus Toplady (1740-1778), deram sua contri
buição. Veja-se este conhecido hino de Toplady:
Ô amante Salvador,
Sê tu meu amparador!
Negras ondas de aflição
Fortes ventos perto estão;
D ’este espanto e do terror
Salve-me meu bom Senhor;
E no porto faz entrar
Minha barca sem quebrar16.
24 Na exposição da teologia de George Buli segui o que está em Salvador, A.G., pp. élss.
25 Salmos e Hinos, n. 274, edição de 1899.
26 Salmos e Hinos, n. 28, edição de 1899.
40
Nota-se, nestes cânticos, forte inspiração pietista que, sem dúvida, trazia
a sua contribuição emotiva.
Embora não fosse intenção de João Wesley organizar uma nova igreja,
pois que o seu desejo era melhorar a situação religiosa da sua própria, foi
inevitável que isso ocorresse. Sua maneira de pregar e seus cultos informais,
assim como a sua insistência na conversão mais do que no batismo, na
experiência religiosa pessoal mais do que pertencer a uma instituição eclesiás
tica27, não lhe ofereciam espaço na Igreja Oficial.
Wesley alargou ainda mais a brecha entre o arminianismo e calvinismo
com a sua doutrina da perfeição cristã, que é a sua mais importante
contribuição para a teologia protestante. A justificação do pecador é absolu
tamente necessária à salvação, mas a santificação era a “plenitude da fé”
(“fulness of faith”). Salienta uma interação entre a graça divina e a vontade
humana, o que levou o seu companheiro Whitefield, assim como outros cal
vinistas, a acusarem Wesley de “papista”28.
Os metodistas continuaram enfatizando o conflito penitencial (arrependi
mento), a convicção de pecado e a experiência pessoal de regeneração. Em
seus pontos principais, a teologia de Wesley é Reformada e Puritana, espe
cialmente na ênfase moral. O pietismo moraviano parece fortalecer a ênfase
no conflito penitencial do pecador.
A presença do pietismo no pensamento de Wesley surge após a sua
experiência de conversão em uma reunião religiosa em certa casa da Rua Al-
dersgate, em Londres, em 24 de maio de 1738.
Eis como o próprio Wesley relata essa experiência:
“Esta noite fui com muita má vontade a uma sociedade na rua Aldersgate,
onde alguém estava lendo o prefácio de Lutero à Epístola aos Romanos. Por
volta das oito e quarenta e cinco, enquanto ele estava descrevendo a mudança
que Deus opera no coração mediante a fé em Cristo, senti um estranho ardor
em meu coração. Senti que confiava em Cristo, somente em Cristo, para a
minha salvação; e me foi dada a segurança de que ele havia pago os meus
pecados e me havia salvo da lei do pecado e da morte”29.
Essa confissão de fé de Wesley, ao relatar a sua experiência religiosa, é
caracteristicamente pietista e se deu logo após a sua volta da Geórgia, onde
os moravianos que visitara lhe deixaram profunda impressão. Foi como se o
que estava confuso na mente se tomasse evidente no coração.
Talvez essa experiência tenha estimulado Wesley a visitar Herrnhutt30, o
que fez um pouco depois.
41
O misticismo e o pietismo fazem, portanto, parte da herança religiosa
de Wesley, assim como isto também é verdade em relação ao puritanismo.
Ocorre que Wesley soube fazer uma produtiva síntese dessas três correntes,
o que valeu ao seu movimento religioso e social um extraordinário crescimento
na Inglaterra e ainda mais extraordinário na América. Apelo para a conversão
e mudança de vida, a ação social no sentido da moralidade e o emocionalismo
lembram, respectivamente, a pregação arminiana da responsabilidade pessoal,
o puritanismo e o pietismo. O sentimento de conhecer a Deus através da união
íntima com ele lembra o misticismo que, por sua vez, deve ter influído no
pietismo.
É bom lembrar, no entanto, que Wesley tinha restrições ao pietismo por
causa de sua compassividade originada na crença de que a piedade, por si só,
produziria resultados na vida pessoal e social3'. Wesley cria, a sua atividade
religiosa o comprova, que a prática é uma conseqüência necessária da vida
e da experiência religiosa. Por outro lado, nem Wesley como tampouco os
pietistas atacavam o “status quo”. Econômica e politicamente eram conserva
dores, porém, o sentido de disciplina e de direcionamento da vida que Wesley
sustentava teve conseqüências sociais muito importantes. Seu conhecido afo
rismo “ganha tudo o que podes, economiza tudo o que podes, dá tudo o que
podes” indica componentes de atividade, frugalidade e caridade na vida cristã.
Consiste, por outro lado, num estímulo à vida econômica, proporcionando-lhe
uma consciência muito clara das situações que a vida urbana, que começava
a sentir os efeitos da industrialização, já apresentava como novas. Como
resultado, os metodistas a miúdo estavam na primeira fila nos movimentos
de reforma relacionados com o novo industrialismo®, não no sentido de sub
verter as estruturas, mas no de disciplinar e direcionar os movimentos que
tendiam a tumultuar a vida social. “Wesley conseguiu combinar nas proporções
corretas democracia e disciplina, doutrina e emotividade”33.
A teologia básica de Wesley está nos “Quarenta e Quatro Sermões”, em
sua “Notas sobre o Novo Testamento” e nos “Vinte e Cinco Artigos da Re
ligião”, versão condensada dos “Trinta e Nove Artigos” da Igreja Anglicana,
depurados dos elementos calvinistas ou, dizendo de outro modo, vistos pelo
prisma arminiano. Como já disse alguém, a teologia de Wesley é um arminia
nismo tingido pelo emocionalismo.
Com o movimento wesleyano, o processo da Reforma atingiu o seu termo
e, parece, com uma feliz síntese das tendências do protestantismo que, na
linha da Reforma de Calvino, passou pelo arminianismo e pelo puritanismo,
não deixando, por outro lado, de capitalizar elementos do luteranismo, como
a ênfase na fé do luteranismo ortodoxo e o emocionalismo dos pietistas. Daí
a sua vigorosa ascensão nas colônias inglesas da América logo após a Inde-
42
pendência34. Essa ascensão teve que ter suas razões, e elas parecem residir em
dois pontos principais que serão analisados oportunamente: primeiro, na sua
convergência teológica já mencionada e, segundo, por introduzir uma forma
de vida e ação religiosa que se adaptava melhor a uma sociedade em for
mação35. O estudo do protestantismo americano e sua empresa missionária
tem necessariamente que levar em conta, entre outros múltiplos fatores, essa
síntese feliz das tendências protestantes que foi o metodismo.
43
a) A formação do protestantismo americano
44
Os puritanos, cansados de suas lutas pelo igualitarismo e liberdade reli
giosa na sua pátria, lutas permeadas de vitórias e perseguições, sentem-se
agora com o direito e a liberdade de construir no Novo Mundo um Estado
Puritano (Puritan Model State) para servir de orientação a todos os verdadeiros
cristãos em todos os lugares. Sentiam-se como o Povo Escolhido de Deus
(God’s Chosen People), tanto no sentido espiritual como no intelectual. Evi
dencia-se desde logo o ideal de uma sociedade em que o sagrado e o profano
seriam indistintos, a concretização renovada do “Corpus Christianum”. Isto
realmente ocorreu, como escreve Duncan A. Reily:
“ .. . nunca houve uma separação entre cristianismo e povo americano”.
.. . “Os exemplos são bastante numerosos, porém só mencionaremos alguns.
O moto ‘In Good we Trust’ na moeda americana. Os capelães como por
exemplo o capelão do Senado, que faz uma breve oração na abertura das
sessões do Senado. Há capelães nas forças armadas, oficiais do exército, mari
nha e força aérea, sustentados pelas próprias forças armadas. Os templos e
outras propriedades das igrejas são isentos de impostos”39.
Realmente, o objetivo dos puritanos era bem concreto e foi levado a
termo logo após o desembarque do “Mayflower” através do instrumento de
governo chamado “Mayflower Compact” (Pacto do Mayflower). Nesse do
cumento está explicitado que eles tinham empreendido a viagem de colonização
“para a glória de Deus e o avanço da fé cristã e honra de nosso rei e país. . .
solene e mutuamente, na presença de Deus e cada um dos demais, compactua
mos e combinamos em corpo político civil”. Como novos israelitas, os “puri
tanos querem construir no ‘deserto’ americano uma cidade edificada sobre o
monte, um modelo de sociedade humana segundo a planta que Deus revelou
no Novo Testamento”40.
Antes de traçar, em linhas gerais, o desenvolvimento do protestantismo
americano de linha calvinista, é bom registrar a orientação a que obedeceram
seus fundadores. O protestantismo americano desenvolveu o fenômeno religioso
que se chama denominacionalismo, desenvolvimento esse que obedeceu a certos
princípios que caracterizaram um modelo novo de sociedade civil-religiosa.
Para facilitar, tomo ainda de empréstimo a Duncan A. Reily os princípios
característicos coletados por ele em vários autores41. Primeiro, a denominação
americana é uma associação voluntária o que significa a realização do ideal
puritano. Na Inglaterra, pertencer à Igreja Oficial e freqüentá-la era uma obri
gação a que ninguém podia furtar-se a não ser sob severas penas. A denomina
ção era uma igreja desestabilizada, composta por pessoas que a ela aderiam
espontaneamente e de acordo com suas preferências e convicções pessoais.
Por outro lado, a liberdade religiosa conduzia à realização do Reino de Deus
nos moldes do espírito da livre empresa. Os fundamentos teológicos desta
característica religiosa serão examinados mais adiante. Segundo, a associação
45
voluntária tinha um propósito ou intenção, o que justificava a existência de
denominação diante de outras, com seus pontos a serem propagados, seus mé
todos e seus traços definitivos. Certamente, os propósitos deviam contar, como
suporte, com uma base teológica que caracterizava a doutrinação como porta
dora de um propósito divino. Terceiro, a denominação americana de um
propósito unitivo e ecumênico, isto é, nenhuma denominação se julgava exclu
siva dona da verdade. Vejamos o que Winthrop Hudson® diz sobre esta
característica, o que parece suficiente para a sua compreensão:
“A palavra ‘denominação’ sugere que o grupo referido é apenas membro
de um grupo maior, chamado ou denominado por um nome particular. A afir
mação básica da teoria denominacional de Igreja é que a igreja verdadeira não
deve ser identificada em nenhum sentido exclusivo com qualquer instituição
eclesiástica particular. .. Nenhuma denominação afirma representar toda a
igreja de Cristo. Nenhuma denominação afirma que todas as outras igrejas
são falsas. Nenhuma denominação insiste que a totalidade da sociedade e
igreja devem submeter-se aos seus regulamentos eclesiásticos. No entanto, todas
as denominações reconhecem sua responsabilidade pela totalidade da sociedade
e esperam cooperar em liberdade e respeito mútuo com outras denominações
e cumprir tal responsabilidade”.
Finalmente, a denominação era instrumental na tarefa comum de cristia-
nizar a sociedade, não somente a República, mas o mundo.
Toda a estrutura do protestantismo americano aparece como o outro lado
da moeda em relação ao protestantismo inglês, em que a Igreja Oficial se
erige como um bloco monolítico, que funciona dentro do princípio de coerção
e a partir de uma hierarquia autoritária.
46
outras formas européias de organização e governo eclesiásticos, prevalecendo
no entanto, na maioria quase absoluta, formas intermediárias entre a congre
gacional e a hierárquica clerical. Esta última forma eclesiástica permaneceu
minoritariamente na Igreja Anglicana colonial e na sua sucessora, a Igreja
Episcopal Protestante. Bem mais tarde surge e cresce a Igreja Católica Romana
como resultado de intensa imigração de católicos. Mas o que prevalece na
sociedade americana, em seu espírito, é o protestantismo composto por asso
ciações voluntárias, de organização livre a partir de representações das bases
embora se encontrem resíduos de clericalismo hierárquico, como os bispos
metodistas.
Não foi só o sistema de organização das igrejas que refletiu os anseios
dos puritanos. Cansados também da pesada liturgia anglicana, continuadora da
igreja medieval, simplificaram os puritanos de maneira profunda, o culto nas
novas igrejas. O culto passou a ter uma simplicidade extrema, estando ausente
praticamente toda a tradição litúrgica. A pregação passou a ocupar o lugar
central nas celebrações religiosas. A centralidade da pregação exigiu, com-
preensivelmente, um elevado padrão de preparo acadêmico dos pastores, preo
cupação que se perpetua ao longo da história da tradição calvinista, exata
mente por causa dessa centralidade do discurso teológico. Por outro lado, o
modelo puritano de costumes e as implicações do testemunho pessoal como
exemplo da própria pregação, exigia dos pastores elevados padrões de vida
moral. O empenho no preparo acadêmico dos pastores e a concepção intelec
tualizada de cultura dos puritanos levou-os logo a organizar escolas, algumas das
quais permanecem até hoje, como Harvard, fundada em 1636. Aliás, um histo
riador americano contemporâneo, André Siegfried43, ao construir as tipologias
dos vários ramos protestantes norte-americanos, coloca os congregacionais e
presbiterianos, descendentes diretos da tradição dos puritanos da Nova Ingla
terra, na categoria dos intelectuais. Volto a insistir que a centralidade da pre
gação em detrimento do ritual podia muito bem estar por trás dessa preocupação
intelectual e acadêmica. Mais adiante, no lugar apropriado, voltarei às tipo
logias de André Siegfried.
A disciplina rígida dessas igrejas indicava uma religião puritana, solida
mente bíblica, de espiritualidade profunda, zelosa e severa, dominando todos
os setores da vida, tanto social como individual. O historiador Robert H. Ni
chols44 entende que foi salutar para a jovem nação a grande influência inte
lectual e moral dos puritanos da Nova Inglaterra.
As perseguições que ocorreram subseqüentemente parecem indicar que
os puritanos não tinham a intenção de manter o pluralismo religioso como
forma de expressão de liberdade. Sugere, antes, que a liberdade era vista sob
o prisma de uma igreja não tutelada pelo estado e o “pertencer à igreja” não
fosse obrigatório como na Inglaterra.
43 Siegfried, André, Os Estados Unidos Hoje (apud Èmile G. Léonard, 1964, III vol.
pp. 425/427.)
44 Nichols, R.H., 1978.
47
As igrejas congregacionais logo se organizaram de maneira sólida. Outros
grupos, como batistas e “quakers”, foram perseguidos. Onde prevalecia maior
liberdade religiosa foram surgindo novas associações, batistas em maior nú
mero. No fim do século XVII começou a prevalecer o espírito de tolerância.
Paulatinamente, o pluralismo protestante foi se acentuando por causa das
sucessivas imigrações européias. A Igreja Reformada Holandesa estabeleceu-se
em 1628 em Nova Iorque, colônia da Cia. das índias Ocidentais. Nessa mesma
colônia havia puritanos, presbiterianos escoceses, luteranos suecos e alemães,
católicos romanos e judeus. Quando essa colônia, que se chamara Nova Ams
terdã, passou para o domínio inglês, estabeleceu-se ali a Igreja Anglicana com
apoio oficial. Durante o reinado de perseguições de Carlos II (1660-1685)
houve uma emigração em massa para as colônias. Milhares de “quakers” vieram
para Nova Iorque, entre eles William Penn, fundador da Pensilvânia, para
onde afluiram também europeus do Continente, como alemães do Palatinado,
na maioria anabatistas e menonitas, luteranos e membros da antiga Igreja
Reformada Alemã também afluiram nas primeiras décadas do século XVIII.
Nova Jersey recebeu grande contingente de presbiterianos, principalmente esco
ceses. Desperta intensa admiração o fato de que uma sociedade tão pluralista,
sob o ponto de vista das tradições religiosas, tenha sido o cadinho onde se
fundiu o mais poderoso protestantismo, tão diversificado nas suas formas his
tóricas mas com um mesmo e sólido espírito. A explicação deve residir no
fato de que, à semelhança do Brasil formado à sombra do catolicismo romano
e dele recebendo um colorido indesbotável, a sociedade americana constituiu-se
numa atmosfera protestante, toda ela embebida daquilo que se chama Espírito
do Protestantismo. Mais tarde esse sólido espírito vai se constituir na mais
formidável empresa missionária de todos os tempos.
c) Enfraquecimento e despertaraento
48
çada ou criada pela razão. O Iluminismo tocou também a Teologia do Pacto,
que involucrava o pensamento puritano. Aos poucos essa poderosa forma de
pensamento teológico foi cedendo lugar a um moralismo individualista45. A
sujeição do homem à vontade soberana de Deus e o conseqüente caráter elitista
da Teologia do Pacto não saíram incólumes do impacto iluminista do alto
conceito da natureza humana e das novas idéias sobre os direitos do homem.
A teologia e a disciplina prevalecentes nas igrejas, ainda fortemente
carregadas de calvinismo ortodoxo,' firmavam o princípio da incapacidade total
do homem para se aproximar de Deus, o que não deixava de ser motivo de
desânimo para muita gente. Por outro lado, a exigência muito rigorosa de
experiência religiosa para a admissão de membros nas igrejas, era também
sério estorvo para o crescimento delas. Essa característica elitista do protes
tantismo será mais tarde transportada pelos missionários para todas as áreas
de ação das missões. Será uma marca distintiva dos protestantismos de origem
americana.
Essa situação de enfraquecimento demandava novas formas teológicas e
eclesiais que atendessem às exigências diferentes da sociedade. O estudo dos
Grandes Despertamentos (“revivais”) do protestantismo americano pode mos
trar a evolução de seu pensamento religioso que, apesar das tradições muito
diversificadas e de algumas divergências internas, apresenta notável unidade
na teologia e no espírito. Pode-se dizer que foi nos movimentos de desper-
tamento que se forjou e consolidou essa teologia e esse espírito. Fato
interessante é o paradoxo do puritanismo que, na Inglaterra, lutava por liber
dade religiosa e política, vindo buscar na América o espaço de vida que
almejava. Aqui tende a se tomar exclusivista e só cede mediante o poder de
idéias que não eram tão novas e das quais eles, os puritanos, de certo modo,
tinham sido portadores. Parece que essa ambigüidade está no cerne do pro
testantismo: ao mesmo tempo que conduz idéias libertárias e proclama o livre
exame, tende a enrijecer-se no dogmatismo.
O racionalismo produziu a negação de certas doutrinas cristãs, um forte
espírito ateísta e o enfraquecimento sensível do primitivo fervor cristão das
colônias.
O Grande Despertamento, caracterizado por movimentos de avivamentos
do fervor religioso que vão surgindo em diversos lugares e grupos religiosos
distintos, começa na terceira década do século XVIII e vai até a Guerra de
Independência. Em 1734, Jonathan Edwards, pastor em Northampton (Mass.),
começou a pregar no sentido de conduzir seus ouvintes ao arrependimento dos
pecados e à fé em Jesus Cristo. O avivamento se espalhou pelas cidades
vizinhas, atingindo puritanos e presbiterianos tradicionais. Parece que a chegada
de George Whitefield, companheiro de João Wesley no movimento metodista
da Inglaterra e notável pregador, deu o tom característico à teologia deste e
dos demais avivamentos, dada à grande influência que exerceu. Os resultados
desse avivamento foram sensíveis: aumentou o número de membros das igrejas
49
existentes e novas igrejas surgiram. Começa, também, o interesse missionário
pelos índios.
Ao mesmo tempo que os metodistas se firmavam, presbiterianos e congre
gacionais que compunham a maioria da sociedade, aumentaram bastante o
seu poder religioso. O historiador Robert H. Nichols, na sua “História da
Igreja Cristã”, entende que o sentimento religioso muito contribuiu para a
Independência Americana. Esses presbiterianos e congregacionalistas, descen
dentes históricos diretos dos peregrinos puritanos, temiam que a Inglaterra
estabelecesse a Igreja Oficial em todas as colônias, uma vez que isso já se dava
em algumas delas. Ora, fora exatamente a imposição de uma igreja oficial
que levara seus ancestrais a saírem da Inglaterra cerca de dois séculos antes.
Daí, a intensificação do desejo de cortar os vínculos políticos com a
Inglaterra.
A morte de Jonathan Edwards, em 1758, marca o fim do I Desperta-
mento. Nas décadas seguintes há uma nova queda do fervor religioso. É nesse
período que o metodismo penetra oficialmente na América com sua ênfase
mais na conversão do que no batismo, na experiência religiosa mais do que
simplesmente pertencer a uma instituição eclesiástica. Embora originado no
anglicanismo, divergia dele no pensamento e na ênfase46. A certeza da conversão
se dava pela capacidade de renúncia aos prazeres sociais: jogo de cartas, jogos
de azar, dança, freqüência a teatros e assim por diante. A moralidade metodista
irá exercer grande influência nas concepções protestantes na América e nas
suas áreas de missão.
A expansão do metodismo na América do Norte se dá na esteira da
conquista e colonização do sudoeste americano e das áreas do sudoeste que,
por compra ou conquista, foram sendo incorporadas ao território da nova
nação. As demais denominações acompanharam essa expansão, mas os meto
distas, por suas peculiaridades, conseguiam se adaptar melhor às condições
sociais da “fronteira”. Os metodistas estavam habituados à prática religiosa
informal, a realizar suas reuniões ao “ar livre”, com seus pregadores leigos
e itinerantes e sua teologia simples e emotiva. Desse modo, a igreja metodista
estava sempre na linha de frente, era a primeira a chegar, pois não exigia
lugares sagrados, nem ministros formados e nem aparato litúrgico. Os acam
pamentos, as clareiras na floresta, eram lugares para seus pastores cavaleiros
realizarem cultos e prédicas. As outras denominações, como os presbiterianos
por exemplo, mais formalistas, ajustavam-se com certa dificuldade a essas
novas condições e por isso ficaram mais ou menos na esteira dos metodistas,
que cresceram extraordinariamente. Fator importante, ainda, eram as diferenças
teológicas entre os metodistas e os demais de origem calvinista.
“A mensagem metodista arminiana. . . era mais condizente com a demo
cracia fronteiriça do que a doutrina elitista de Calvino; quando o pregador
50
metodista pregava, ele convidava ‘todo aquele que quer’ ; o calvinismo oferecia
salvação só aos eleitos”47.
O mesmo autor aduz ainda, como fator ponderável, a linguagem comuni
cativa dos pregadores metodistas que, não tendo preparo acadêmico, era mais
acessível àquela gente rude do que a dos presbiterianos.
A “era metodista”, como foi chamado o extenso período que marca a
expansão territorial dos Estados Unidos, parece ter contribuído para cunhar
o espírito do protestantismo americano, que afastou-se dos modelos europeus
ao ajustar-se de modo perfeito à cultura “sui-generis” que surgiu no médio-
oeste, fundada sobre o valor do homem e sua capacidade de realizar coisas,
em suma o individualismo e o desempenho.
“Na fronteira o broto do individualismo e do progresso esculpiu uma
nova civilização, selvagem e rude, fundada na dignidade do homem e em
sua infinita perfectibilidade”48.
Na primeira década do século XIX uma nova onda avivalista se ergue
entre as várias denominações e prossegue pelas décadas seguintes até à metade
do século. E interessante que as mesmas idéias do Iluminismo que haviam
contribuído para enfraquecer a religião americana, agora ajudam o surgimento
do novo despertamento. É a era do idealismo romântico do homem comum
e da democracia popular. Tanto o indivíduo como a sociedade podem caminhar
infinitamente no sentido do aperfeiçoamento. As cruzadas evangélicas refletem
o novo espírito de democracia, na sua ênfase sobre as obras humanas, na
capacidade do homem de tomar decisões e de desempenhar tarefas cada vez
mais complexas, afastando-se, desse modo, do elitismo calvinista. A soberania
de Deus vai sendo cada vez mais esquecida, assim como a clássica doutrina
da eleição foi relegada para segundo plano à medida que os homens, dentro
do novo espírito de desempenho, tornavam-se seguros de que todo o que quer
se salvar pode fazê-lo através de uma “fé viva” e “obras de justiça”. Essa
era exatamente a tendência da pregação metodista.
O ano de 1858 caracteriza o Segundo Grande Despertamento do protes
tantismo americano. Esse ano foi chamado o ANNUS MIRABILIS em que as
reuniões de avivamento, desde pequenos grupos até verdadeiras multidões
tomaram conta de todos os espaços. A ênfase era na “descida do Espírito
Santo” e na guerra contra os vícios em gigantescas reuniões de conversão e
santificação. A pregação procurava introduzir todas as tradições teológicas
contribuindo, assim, para amainar muitas controvérsias sectárias49. Sobre esse
despertamento assim se refere o Bispo Mc Ilvaine, de Ohio, em seu Relatório
de 1858:
51
d) A teologia dos avivamentos
53
3 . CIVILIZAÇÃO PROTESTANTE E “DESTINO MANIFESTO"
54
líptico, e a efervescência “millerista” que se cristalizou ulteriormente no
adventismo eclesiástico59. Ao lado dessa mentalidade mais ou menos generali
zada sobre uma sociedade teocrática, cujo projeto era o “Céu na Terra”,
desenvolveram-se dezenas de comunidades micromilenaristas com característi
cas diversas, mas ostentando todas elas os traços de espera do milênio. Das
trinta e seis que Desroche relaciona, destacam-se pelas suas peculiaridades os
SHAKERS (1776-1940), característica pela presença de um “messias feminino”,
Ann Lee, que surgiu como o Segundo Cristo, a UNITED ORDER (mórmons),
que após sucessivas experiências comunitárias a partir de 1830, acabou no
amplo movimento dos LATER-DAY SAINTS, e a WOMEN’S COMMON-
WEALTH (1874-1908), uma “República de mulheres” mais ou menos perfec
cionistas na linha dos “Shakers”. É bastante curiosa a comunidade dos BLACK
JEWS, cuja principal declaração do profeta fundador era que os descendentes
das “tribos perdidas de Israel” eram os negros. Em suma, o estudo de Desroche
mostra uma incrível inquietação messiânico-milenarista na América do Norte
que atinge o auge no século XIX, refletindo-se de modo amplo nas denomina
ções religiosas. A Conferência Metodista de Nova Iorque, em 1808, declarava:
“Os campos estão brancos para a ceifa diante de nós”.
O mesmo ocorria com a Assembléia Geral Presbiteriana, em 1815, que
recomendava orações especiais para que a “vinda gloriosa do Reino se apres
sasse”. Para muitos líderes e pensadores eclesiásticos a vida do Reino se daria
após a implantação da civilização cristã; por isso, a cristianização da sociedade
seria uma preparação para a vinda do Reino de Deus60. Sendo a vinda do
Reino, não algo particular para os americanos mas um evento cósmico, é
mais ou menos claro que foi fácil passar dessa crença para a empresa missio
nária via “Destino Manifesto”.
A crença na possibilidade da realização do Reino de Deus na terra
intensificou a cooperação entre todas as denominações protestantes que, embora
mantivessem suas características próprias assim como suas formas específicas,
nivelavam-se numa teologia mais ou menos uniforme como produto dos reaviva-
mentos e do metodismo. As denominações dispunham-se a cooperar para a
reforma do mundo61 a partir da visão de uma população religiosa, livre, letrada,
industriosa, honesta e obediente às leis62.
Durante todo o século XIX imperava a idéia de que religião e civilização
estavam unidas na visão da América cristã e que Deus tem sempre agido
através de povos escolhidos. Os de língua inglesa, escolhidos mais do que
quaisquer outros, são obrigados a propagar as idéias cristãs e a civilização
cristã. Alguns autores escreveram que a mais alta expressão da civilização
55
anglo-saxônica eram os Estados Unidos. Um ministro metodista disse: “Deus
está usando os anglo-saxões para conquistar o mundo para Cristo a fim de
despojar as raças fracas e assimilar e moldar outras”. O destino religioso do
mundo está nas mãos dos povos de fala inglesa. À raça anglo-saxã Deus parece
ter entregue a empresa de salvação do mundo”63.
A preocupação com a construção de uma sociedade digna dessa grandiosa
missãó levava as igrejas a grandes esforços para regular a vida social em todos
os seus detalhes, revelando que o velho espírito do puritanismo, colorido pelo
metodismo tinha muito poder, embora tudo fosse feito sem coerção pois que a
liberdade religiosa não permitia ir além do esforço de persuasão. Se a persuasão
não produzir efeitos, a opinião pública bem formada se encarregará de mediante
pressão social e coerção moral, ir corrigindo as distorções e os abusos.
“Os ideais, as convicções, a linguagem, os costumes, as instituições sociais
estão tão entrelaçados com as pressuposições cristãs que a própria cultura é
nutrida e mantida pela fé cristã”64.
Desse modo, buscava-se resolver a questão de como poderia uma nação
ser distintamente cristã e ao mesmo tempo religiosamente livre. Dentro do
princípio da persuasão e dos mecanismos de autocontrole social, foram desen
volvidas intensas campanhas pela temperança, principalmente pela moderação
no uso de bebidas alcoólicas. Se o alcoolismo, o tabagismo e os jogos de azar
eram combatidos por constituírem males sociais, observâncias de natureza
especificamente religiosa também foram objeto de lutas por parte das igrejas,
como a observância da guarda do domingo em que se conseguiu que nem o
Correio funcionasse nesse dia por lei do Congresso. O domingo era regulado
nos moldes do Decálogo mosaico:
“Faça tudo no sábado. Comece o domingo ao entardecer do sábado.
Não visite nem assuma compromissos em qualquer negócio secular no
domingo. Gaste a maior parte do dia do Senhor em oração, meditação
e na leitura da Escritura”65.
Buscava-se um modelo de sociedade, e a certeza de tê-lo encontrado
estava na mente da maioria, assim como a convicção de que esse modelo
servia, no espírito do evangelho, ser compartilhado com todas as nações para
que se abreviasse a vinda do Reino de Deus. O ideal do milênio surge no
fim de um processo de construção social de que todos deviam participar no
mundo inteiro e sob a inspiração e a liderança americanas.
é nesse contexto que se insere a ideologia do “Destino Manifesto” calcada,
parece, na Teologia do Pacto. O mesmo comissionamento outorgado aos judeus
através de Abraão se transferia agora para os americanos num messianismo
nacional66 direcionado para a redenção política, moral e religiosa do mundo.
56
“A profunda convicção alimentada pelos americanos de que sua nação
tinha sido escolhida para uma missão universal foi nutrida e sustentada
através da Guerra Civil e recebeu um novo batismo de poder no
período que se seguiu. Muitas forças se combinaram para exaltar o
papel do “Destino Manifesto” na consciência americana. A partir do
danvinismo os americanos tiveram a intuição de que pela seleção
natural os Estados Unidos tinham-se tornado uma nação superior
destinada a dirigir os povos mais fracos. A s filosofias idealistas enfati
zavam a capacidade natural do homem e, interpretada a história em
termos de progresso, tudo vinha favorecer a ideologia expansionista.
Num período em que as nações européias expandiam seus interesses
imperialísticos pela África, Ásia, América Latina e Pacífico, os ameri
canos se sentiram comissionados para estender as bênçãos da civilização
cristã e o governo democrático”.67
4 . A EMPRESA MISSIONÁRIA
57
O motim de Sepoy (Nidia) dominado pelos ingleses em 1857.
O fim da Rebelião de Taiping (China), em 1864, após o que o interior
da China foi aberto aos missionários.
Conclusão do Tratado entre os Estados Unidos e o Governo Coreano,
em 1883.
N o Japão, só depois da queda do “shogunado” Tokugawa (1867) é
que as missões floresceram.
Este mesmo autor vai desenvolvendo estas idéias que, em resumo, expli
cam a ideologia da empresa missionária americana. Os missionários foram
chamados para promover o avanço da influência política americana no sentido
de salvar os países atrasados do despotismo nativo ou do imperialismo europeu.
Nesse sentido, Theodore Roosevelt (1858-1919) — e o Capitão Alfred T.
Mahan pediram uma marinha mais poderosa para promover o imperialismo
mercantil da nação e estender uma cultura superior. Roosevelt e Mahan
defendiam uma doutrina nova para os americanos, de que a guerra não é o
maior dos males, desde que assegure o triunfo da justiça de Deus. As igrejas
e os americanos, preparados ideologicamente, aceitaram a guerra contra a
Espanha, visando interesses em Cuba, Porto Rico e Filipinas. A expansão
da fé tudo justificava.
Nos últimos anos do século XVIII e nos primeiros vinte do século XIX
surgiram, nos Estados Unidos, mais de vinte sociedades missionárias, com o
objetivo de evangelizar os índios e dar assistência religiosa às frentes pioneiras.
Entre congregacionais e batistas, na formação dessas sociedades, prevaleceu o
princípio da associação voluntária, e entre presbiterianos e reformados holande
ses, o princípio institucional70. As missões americanas se inserem no período
em que o cristianismo mais se expandiu em toda a sua história (séc. XIX).
A expansão colonial européia, ligada à época do progresso dos meios de
comunicação e transporte, muito contribuiu para isso. A euforia do expansio-
nismo colonialista das nações protestantes parecia indicar realmente uma “era
58
protestante”. O historiador Robert T. Handy expressa essa euforia, quando
assim descreve esse período:
“O Cristianismo na América tem uma visão mundial, um sonho de um
mundo ganho para Cristo. No ímpeto missionário dos séculos XVIII e XIX
procurou-se tomar esse sonho realidade.. . O futuro do mundo parece estar
nas mãos de três grandes forças protestantes: Inglaterra, Alemanha e Estados
Unidos . . . Os seguidores do verdadeiro Deus estão herdando o mundo . . . O
cristianismo é a religião dos povos dominantes da terra. Em pouco tempo ele
será a única religião do mundo. O plano divino era que os não-cristãos se
tomassem cristãos . . . O progresso das nações cristãs se explica pela sua
descoberta da verdade, dos etemos princípios com que Deus criou o mundo”71.
É bom não perder de vista que cristianismo para os pensadores desse
período era protestantismo, pois que a idéia de que o catolicismo romano era
cristão foi sendo posta em xeque ao longo desse período, chegando a ser
ponto polêmico nos congressos missionários de Edimburgo (1910) e do Panamá
(1916), pendendo a balança sensivelmente contra os católicos. Embora muitas
mentes influentes naqueles congressos e antes deles relutassem em negar que
os católicos fossem cristãos, num sentido geral a ação missionária protestante
dirigiu-se de modo a desconhecer essa qualidade nos católicos. Eles foram
nivelados aos demais não-cristãos, embora de modo diverso. Os católicos foram
vistos como produtos da descaracterização e paganização do verdadeiro cristia
nismo recuperado pela Reforma, ao passo que os pagãos eram encarados a
partir de conceitos evolutivos. Para aqueles a mensagem era recuperadora e
para estes um esforço para fazê-los passar para um estágio superior de evolução
em que o desenvolvimento da compreensão religiosa os levaria rumo à revela
ção mais elevada e plena de Deus72.
Foram organizadas diversas missões nos Estados Unidos com objetivos
internos. Além da já mencionada preocupação com as frentes pioneiras, escra
vos e índios também caíram na mira missionária. Mas como o objetivo era o
mundo, logo se organizaram missões estrangeiras, como fez a ala conservadora
da Igreja Presbiteriana (Velha Escola) ao fundar o BOARD OF FOREIGN
MISSIONS (1837) com planos para a África,Oriente e América Latina.
O desenvolvimento desta parte girou, até agora, em torno da ideologia
do “Destino Manifesto”. Mas há fatores filosóficos e teológicos que contribuí
ram para o direcionamento da atividade missionária. Dentre os fatores filosó
ficos, além do evolucionismo, estão os da renovada ênfase na dignidade e
importância do homem, a filosofia do direito natural e o individualismo
jeffersoniano. O conceito da importância do homem tende a criar maior
interesse em seu progresso. A mola propulsora desse interesse filosófico pelo
homem parece ter sido a teoria da “bondade desinteressada” (“desinterested
benevolence”), de Samuel Hopkins, congregacional da Nova Inglaterra. Hopkins
acreditava que enquanto Deus desejava o melhor para todos os homens, o
59
verdadeiro cristão, com maiores motivos devia sacrificar seus interesses pessoais
em favor do interesse de seus semelhantes. Esta teoria levou muita gente a
dedicar suas vidas ao trabalho missionário entre os pagãos73. No entanto, para
concluir, a empresa missionária tinha, sem dúvida, como fulcro de sua atividade
a doutrina arminiana do INFINITO AMOR DE DEUS e sua mercê para todos
os homens, que só podia ser universalmente conhecida através da extensão
das missões. Termino esta parte com mais uma citação de Clifton E. Olmstead:
60
criança é susceptível ao bem, mesmo que seja contaminada por tendências
pecaminosas desde o nascimento. Os cristãos não devem refrear a experiência
de conversão em seus filhos, mas conduzi-los como parte da família da fé, de
modo que eles jamais venham a pensar ter sido outra coisa que não cristãos75.
A doutrina de Bushnell foi instrumento valioso como uma nova filosofia de
educação cristã contra o calvinismo e, principalmente, como pano de fundo
generalizado do princípio do voluntarismo.
A Escola Dominical, como instituição paralela à Igreja, passou a desem
penhar função importante no desenvolvimento e consolidação das igrejas. A
sede de aprender construiu, pouco a pouco, uma epistemologia cristã-protes-
tante, desenvolveu métodos próprios e, nas áreas missionárias, foi servindo de
atração para futuros convertidos, principalmente por intermédio das crianças
que aderiam às reuniões conduzidas por habilidosas missionárias-professoras.
Por outro lado, exerceu também o papel de fixar as doutrinas e a ética nos
recém-convertidos.
Após a Guerra Civil Americana surgiram as sociedades auxiliadoras
femininas. Essas associações leigas exerceram poderoso papel na empresa
missionária, seja entusiasmando jovens para as missões, seja sustentando-os com
suas contribuições, ao lado das agências missionárias oficiais. A YMCA (Young
Men’s Christian Association), fundada em Londres em 1844, logo passou para
os Estados Unidos (Boston, 1856) atingindo, em 1861, duzentas associações
em todo o país76. A YMCA tinha por objetivo o desenvolvimento espiritual
dos moços, promovia reuniões devocionais, classes bíblicas, escolas missionárias
e organizava bibliotecas e salas de leitura. Após a Guerra Civil, dedicou-se ao
desenvolvimento físico dos jovens da classe média, não perdendo de vista, no
entanto, o desenvolvimento neles do conhecimento e virtudes cristãs77. Enfim,
desenvolvia atividades sociais, educacionais, esportivas e religiosas.
A distribuição de Bíblias foi outra atividade importante na era missionária.
A convicção de que a simples leitura da Bíblia, “sem notas e sem comentários”,
era capaz de formar mentes e sentimentos cristãos, promoveu a fundação de
associações livres para imprimir e distribuir Bíblias em todas as nações da
Terra. Depois de 1816, o principal trabalho passou a ser feito pela AMERICAN
BIBLE SOCIETY. Organização semelhante foi a AMERICAN TRACT
SOCIETY, fundada em 1825. Seu objetivo era espalhar as doutrinas básicas
do protestantismo através de biografias e de folhetos devocionais exortativos.
São expressão das exortações à temperança, folhetos como “The Evils of
Excessive Drinking” e “The Ruinous Consequences of Gambling”.
A doutrina humanitarista da “bondade desinteressada” parece ter, realmen
te, colorido o impulso do “Destino Manifesto” nas áreas missionárias estran
geiras, que exigiram dos americanos o dispêndio de vultosos recursos financeiros
e humanos. Mas a instauração mundial do Reino de Deus bem que valia a pena.
61
6 . RESISTÊNCIA ÀS MUDANÇAS
62
1859, um presbiteriano influenciado pelo metodismo, iniciou grande movimento
em favor da possibilidade de uma vida de perfeita santidade. O perfeccionismo
foi definitivamente “quietista”, ensinando que o cristão é capaz de conseguir
a santificação quando abandona todo esforço e permite uma inteira possessão
pelo divino.
O apocalipsismo às vezes acompanhou o avivalismo na América. A idéia
do retomo de Cristo à terra teve duas interpretações: a pós-milenista e a
pré-milenista. A primeira interpretação afirma que a volta de Cristo se dará
após o milênio, que será conseguido pela ação normal da Igreja na história;
a segunda afirma que Cristo virá e estabelecerá pessoalmente o seu Reino
milenário antes do julgamento final da humanidade.
O pós-milenismo, entendendo que o milênio seria uma continuação da
vida presente, uma transformação para ótimo das instituições sociais, sob o
poder cada vez maior da Igreja, introduzia na teologia um colorido de seculari-
zação, cuja expressão mais conhecida foi o Evangelho Social. O pós-milenismo,
ensinado por Jonathan Edwards no século XVIII, foi uma das inspirações
da empresa missionária americana nos princípios do século XIX. O Reino de
Deus não seria um evento sobrenatural mas um ápice glorioso da história,
mediante os esforços da própria Igreja. O milênio era algo que estava, em
boa medida, afeto aos desígnios humanos.
A concepção pré-milenista do retomo de Cristo desenvolveu-se simulta
neamente com a pós-milenista. É uma concepção radicalmente sobrenaturalista.
Por volta da década de 70 do século XIX, o pré-milenismo ganhou grande
ímpeto e gradativamente foi estabelecendo um distanciamento entre a Igreja
e o mundo, formando um hiato que só será suprimido pela volta de Cristo.
A volta de Cristo será uma ponte que restabelecerá a unidade entre dois
mundos adversos.
O pré-milenismo incompatibilizou a Igreja com qualquer atividade de
melhoria social. A Igreja concentrou-se em salvar almas, em arrancar “tições
da fogueira” — “plucking brands from the buming”79 antes do breve retomo de
Cristo. Muito crítico do Evangelho Social, o pré-milenismo mostrou grande
zelo na evangelização e nas missões estrangeiras. Vê-se que tanto o pós-milenis
mo como ô pré-milenismo eram dedicados à empresa missionária, mas variavam
nas ênfases; enquanto aquele se ocupava com as mudanças soôiais na direção
da implantação do Reino de Deus na terra, estabelecendo assim o milênio,
este tinha em mira o discipulado de indivíduos para que o retomo de Cristo
se abreviasse. Embora à primeira vista possa não significar grande diferença, a
compreensão das estratégias das missões americanas no estrangeiro depende
muito da distinção entre essas duas ideologias. De certo modo, o pós-milenismo
iria usar a educação como estratégia, como veículo de transplante de institui
ções sociais; visava a cristianização da sociedade como um todo, era uma
cultura a serviço do Reino de Deus. Já o pré-milenismo se apresentava eminen
79 Smith, H. Shelton, et alii, 1963, vol. II, p. 314. A expressão é bíblica, conforme
Zacarias 3,2 — “não é este um tição tirado do fogo?"
63
temente como uma religião, como uma crença na irrupção do sobrenatural na
história para a consumação dos negócios humanos.
Tanto o pietismo como o apocaliptismo, juntos ou separados, recusam
os termos das mudanças teológicas ou sociais; o pietismo por ignorá-las e
preocupar-se unicamente com a vida espiritual, e o apocaliptismo por escapar
para um tempo futuro de bem-aventurança. No último quartel do século XIX
o pré-milenismo firmou-se em igrejas como a presbiteriana, a reformada, a
episcopal e a congregacional.
Com freqüência, embora seja estranho, o escolasticismo pode desenvol
ver-se em áreas ocupadas pelo pré-milenismo. Por sua excessiva ênfase na
razão não é confortável para o escolasticismo estar ao lado do sobrenatura-
lismo pré-milenista, mas isto pode ocorrer quando há um inimigo comum a
combater, neste caso o liberalismo.
Resumindo, o escolasticismo com suas fórmulas acabadas, com a sua
sistemática, o autoritarismo com sua ênfase no reforço da autoridade, seja ela
institucional, pessoal ou dogmática, o pietismo com seu subjetivismo e o
apocaliptismo com a sua indiferença pelos eventos da história tornaram-se
instrumentos de entrave para mudanças tanto teológicas como sociais80.
Considerações finais
80 Devo muito do que foi escrito nesta parte a Smith, H. Shelton et alii, 1963, vol. II,
capítulo V III — “Variant Orthodoxies”.
81 Tocqueville, A., 1977.
82 Weber, Max. 1974, cap. 12 (Parte III).
64
comercial girava em tomo da filiação religiosa. Parece não haver razão, no
entanto, para descartar o velho temor das penas eternas. O que se faz errado
aqui será corrigido no além. Por isso é melhor pagar as dívidas aqui mesmo.
Por isso só tinham êxito nas atividades comerciais os que, de algum modo,
provassem sua filiação a alguma das numerosas seitas. A credibilidade residia
no fato de que as seitas só admitiam como membros, pessoas cuja conduta
fosse ilibada. A exclusão de uma igreja por motivos de ofensas morais signifi
cava, economicamente, a perda de crédito e, socialmente, a perda de “status” .
As pregações nas igrejas refletiam a ética burguesa respeitável e consis
tente, do gênero mais doméstico e sólido. Testemunha Max Weber que as
congregações não apreciavam sermões sobre dogmas e distinções entre as seitas.
Os metodistas, mais numerosos e talvez já liderando o comércio83, extrema
vam-se na regulamentação da vida, proibindo coisas como: regatear nos preços,
negociar mercadorias antes de pagar os tributos a elas referentes, cobrar juro
mais alto do que o legal, “amontoar tesouros na terra”, transformar capital
de investimento em riqueza consolidada, tomar empréstimo sem ter certeza de
poder pagar a dívida, luxos de todos os tipos etc. Essa regulamentação religiosa
da vida, na opinião de Max Weber, deve ter operado com penetrante eficiência
na formação e consolidação da sociedade americana.
Observou ainda Max Weber que as seitas eram a antítese mais coerente
da Igreja Católica universalista e compulsória para a administração da graça.
Esta observação de Max Weber foi feita num momento da história da religião
americana em que a Igreja Católica já se apresentava como séria concorrente
do protestantismo, mas o espírito deste tinha sido formado dentro do antago
nismo histórico com a Igreja Anglicana. “Mutatis mutandis”, a observação
continua válida.
Concluindo, aquilo que se tem chamado, com muita propriedade, de
religião civil americana84, com suas seitas e sua teologia mais ou menos
indiferenciada, sua regulamentação da vida social dentro da ética rigorosa do
puritanismo colorido pelo metodismo, constituiu-se sem dúvida numa das mais
perfeitas simbioses entre religião e sociedade, na história ocidental moderna.
83 Sigfried, André, Les États-Unis d’ajourd’hui, citado por Léonard, 1964, III vol. p. 426.
84 Reily, Duncan A., 1977.
.
3 - Celeste porvir
65
A P Ê N D IC E I
O PIETISMO
67
história do cristianismo em que estas tendências se tornaram demasiadamente
fortes, mostram quase sempre o recrudescimento de movimentos de caráter
pietista. Um outro fator, este de ordem mais social e política, é a intolerância
religiosa que se manifesta em pressões e perseguições que dificultam a vivência
eclesial livre. Nos períodos de perseguição os mestres de doutrinas (pastores etc.)
raramente estão presentes, porque são eles os primeiros a serem presos ou
eliminados, por isso os fiéis ficam a sós com a sua fé e a sua Bíblia, isto
essencialmente no caso dos protestantes. “Abandonados a si mesmos, mas com
a Bíblia e a oração”, como diz Émile G. Léonard2.
O mesmo Émile G. Léonard, na mesma página citada, referindo-se a
período de grandes perseguições aos protestantes na França (fins do século
XVII), transcreve as palavras de um mentor espiritual dos perseguidos:
“Nós nos reunimos — escreve o Dieppois Jean Périgal, — cuja casa tinha
sido reduzida às quatro paredes pelos dragões — para ler com muita freqüência
a palavra de Deus e cantar louvores; sobretudo lemos as passagens do Evange
lho onde se encontram exortações à perseverança. . . Isto é que fortalece muito
a nossa coragem e a nossa fé e nos dá uma santa alegria na alma, que nos
faz olhar sem parar para tudo o que nos possa acontecer, colocar só nas
mãos de Deus os nossos cuidados e todas as nossas preocupações, seguros de
que se tivermos de passar por duras provas, ele nos dará forças suficientes
para vencermos”.
Com freqüência, a leitura bíblica se acompanha de outras leituras piedosas
que se destinam a suprir a ausência de pastores e a falta de cultos3. A piedade
pessoal, exercitada pelas leituras bíblicas e devocionais, acompanhava-se de
reuniões que podiam se realizar em qualquer lugar. Há dois caracteres impor
tantes no pietismo, portanto: o culto privado, pessoal da família, e os cultos
comunitários, que não dependem dos ministros ordenados e nem de templos.
A prática piedosa é, parece, típica de tempos de insegurança e de insatisfações
e de modos de vida que não favorecem a prática de religião institucionalizada,
pelo menos no que se refere à presença física de ministros ordenados e ao
acesso a lugares ou edifícios consagrados.
Dadas essas características gerais do pietismo, torna-se mais fácil com
preender o ramo dessa forma de religiosidade que parece ter influído mais na
teologia protestante que, no fim de um longo processo histórico, acabou
colorindo acentuadamente o protestantismo americano e, conseqüentemente, o
brasileiro, é o pietismo de Hermhut.
O pietismo em territórios luteranos parece ser, nos seus caracteres mais
gerais, resultado, ao mesmo tempo, de novo clima de pensamento proporcio
nado pelo Iluminismo e da insatisfação gerada pela situação decadente da
68
Igreja Luterana, presa a uma ortodoxia fechada e pouco propícia à vida
religiosa mais intensa. A vida religiosa estava presa ao “saber da reta doutrina”,
ligada, portanto, a uma epistemologia oficial que limitava o acesso ao texto
bíblico, uma vez que ele já estava interpretado e sistematizado.
O racionalismo iluminista, ao mesmo tempo que levanta problemas, que
põem em xeque algumas crenças por causa de formas novas de abordar os
textos bíblicos e mesmo certas doutrinas estabelecidas, fornece um clima de
liberdade intelectual que permite abandonar os dogmas e procurar na Escritura,
na própria fonte, inspiração e normas para a vida. Daí a importância que
assumem no pietismo a leitura e a meditação bíblicas, assim como os estudos
bíblicos que começam a surgir com características novas: interpretação livre
das peias doutrinárias, sob a iluminação do Espírito, envolta num halo de
piedade, embora rigorosamente montada sobre os textos originais da Bíblia4.
A literatura devocional também tem sua origem nesse clima de libertação
doutrinária e da necessidade de auto-satisfação pessoal em questões de religião.
O pietismo medra também em áreas de pressão, perseguição e. insatisfação;
é freqüente nele um certo sentido milenarista que se revela, principalmente,
numa clara condenação da sociedade abrangente. O próprio Bengel, um dos
mais ilustres teólogos do pietismo, chegou a marcar o ano de 1736 como o
início dos Últimos Tempos5.
O fundador do pietismo dentro do luteranismo foi Felipe Jacó Spener
(1635-1705), cuja obra principal (PIA DESIDERIA, 1675) traça um quadro
severo dos males da sociedade leiga e sacerdotal e indica o remédio em seis
“desejos pios”:
4 Um dos mais importantes desses eruditos estudiosos da Bíblia foi João Albrecht Bengel
(1687-1751). SUa obra mais famosa foi Gnomon N ovi Testamenti (1742). O subtítulo desta obra
é sintomático — “in qua ex nativa verborum vi simplicitas, profunditas, concinnitas, salubritas
sensum coelestium indicatur”.
5 Léonard, Émile G., 1964, III vol, P- 88.
6 Citado por Léonard, Émile G , 1964, III vol, p. 81. João Tauler (1300-1361), dominicano,
notório pregador místico que influenciou Lutero; João Arndt (1555-1621), teólogo luterano
místico. A TEOLOGIA ALEMA é uma obra mística anônima elogiada por Lutero. A
IMITAÇAO é a IMITAÇÃO DE CRISTO, geralmente atribuída a Tomás de Kempis.
69
Vê-se aí toda uma recorrência de Spener ao misticismo medieval no sentido
de substituir o escolasticismo. A epistemologia de Spener se funda na experiên
cia que é o fundamento de toda certeza, tanto no nível natural como no da
revelação. Assim, a experiência pessoal é fundamento da certeza em matéria
do conhecimento teológico. Há um conhecimento físico e um conhecimento
espiritual. A doutrina é acessível sem o auxílio do Espírito, mas o verdadeiro
conhecimento vem através de experiência pessoal com Deus.
A teologia de Spener, bem na tradição mística, era negativa face à vida
neste mundo. O cristão deve morrer para o mundo, isto é, abster-se de tudo
o que é mundano, dos prazeres e diversões. Embora a vida perfeita dos cristãos
não seja possível neste mundo, há alguns que conseguem libertar-se dos pecados
intencionais. Como resultado, o pietismo, principalmente o de Spener, produziu
uma ética mais ou menos ambivalente: exigências mais rigorosas feitas aos
cristãos do que aos homens em geral.
A interpretação da Bíblia tem um sentido literal, espiritual e místico, o
que facilita a superação de passagens embaraçosas, principalmente do Antigo
Testamento. Em suma, o pietismo foi e é, no seu todo, uma reação contra
o racionalismo, as especulações teológicas particulares que não valia a pena
defender e suas conseqüências sociais como perseguições e guerras de religião.
O núcleo da fé pietista consiste na “experiência com Cristo” e no cultivo
de sua presença. A experiência com Cristo santifica um sentimento vivido de
seu sofrimento substitutivo, que ao mesmo tempo mostra ao fiel a extensão
de seus próprios pecados diante da justiça divina, justiça que se transforma
em amor e perdão na cruz. O cultivo da presença do Cristo sofredor mantém
viva a premência do pecado assim como a certeza do amor e do perdão.
Dentre as correntes diversas do pietismo alemão parece-nos mais impor
tante para os objetivos propostos neste trabalho, o desenvolvido pelos Irmãos
Moravianos na Comunidade de Hermhut, onde se estabeleceram em 1727, a
convite do Conde von Zinzendorf. Remanescentes dos hussitas da Boêmia,
recusaram-se a entrar para a Igreja Luterana, constituindo sua própria Igreja.
Zinzendorf é o teólogo dos moravianos, sendo consagrado bispo em 1737. Os
moravianos, embora tivessem alto conceito de igreja, não eram sectaristas mas
abertos a todas as denominações.
O centro da teologia de Zinzendorf é a comunhão com Cristo através da
contemplação da cruz, no que não difere de outros grupos pietistas. O interes
sante em Zinzendorf é a função epistemológica da cruz e dos sofrimentos do
Crucificado, que são o único caminho para o conhecimento de Deus. Ao
contemplar a cruz, os ferimentos e o sangue, fica-se sabendo que Deus é amor
e ama os homens, assim comó se tem consciência do pecado e do perdão.
Mas o que chama mais a atenção é o elevado tom emocional e a subjetividade
da teologia da cruz.
O herrnhutismo exagerava a experiência emocional do sofrimento de
Cristo, sendo a relação com Deus descrita em linguagem de intimidade humaná
freqüentemente vista como de mau gosto, como já foi dito. Noutra parte deste
70
trabalho esta questão será vista em maiores detalhes. Por enquanto, basta citar
este hino de H.M. Wright:
Foi na cruz, foi na cruz, onde, um dia eu vi
meu pecado castigado em Jesus; '
Foi ali, pela fé, que os olhos abri,
E agora me alegro em sua luz7.
Vê-se aí a implicação epistemológica da cruz: abrir os olhos, luz.
Este outro hino, de autor anônimo, mostra o tipo de relacionamento do
homem com Deus:
Ês tu, Jesus, meu bem e meu tesouro;
RiqueZa e fonte de prazer do céu;
Ês tu, meu Deus, meu Pai, e meu Amigo,
Ês meu, Jesus, e eu sou somente teu?
Em suma, o pietismo é essencialmente uma crença em Jesus, uma fé
centrada no Crucificado. Zinzendorf, em sua adolescência, teve uma experiên
cia marcante quando viu, em Dusseldorf, a seguinte inscrição embaixo de um
ECCE HOMO: HOC FECI PRO TE, QUID FACIS PRO ME?9. É uma grande
devoção à Bíblia, à sua leitura, estudo e interpretação pessoal. É uma certa
descrença neste mundo onde, no entanto, se deve viver asceticamente a espera
de outro melhor. O pietismo aceita a igreja institucionalizada, à qual atribui
uma função purificadora, mas valoriza mais a devoção pessoal e as reuniões
de oração e estudo da Bíblia em qualquer lugar que seja. Não se pense, porém,
que o pietismo é um simples quietismo. Os Irmãos Moravianos, por exemplo,
manifestaram um grande impulso missionário e se tomaram muito conhecidos
pelo seu esforço educacional.
71
A P Ê N D IC E II
73
A literatura polêmica nem sempre foi limpa. Célebres sermões anticatóli-
cos foram proferidos e publicados, como “PLEA FOR THE WEST” (1834),
de Lyman BEECHER, que fala dos católicos imigrantes como agentes dos reis
católicos reacionários da Europa, engajados numa conspiração organizada para
tomar o Vale do Mississipi3. Participa da luta SAMUEL F. B. MORSE, o
inventor do telégrafo, com o seu “FOREIGN CONSPIRACY AGAINST THE
LIBERTIES OF THE UNITED STATES” (1834).
O nativismo anticatólico imaginava uma formidável conspiração, uma
santa aliança, entre o papa, a hierarquia e os jesuítas “para subverter a
democracia pela promoção da imigração católica na América”. Em 1849 foi
fundada a “AMERICAN AND FOREIGN CHRISTIAN UNION” com o
programa de difundir os “princípios de liberdade religiosa e o puro e evangé
lico cristianismo, tanto na pátria como fora dela, onde exista cristianismo
corrupto.”4
Como se vê, mesmo na luta entre as históricas facções do cristianismo,
protestantes e católicos, a religião está profundamente envolvida pelas preo
cupações sociais e políticas em que se reconhece a religião, não somente como
legitimadora da organização da sociedade, mas como a matriz geradora dessa
organização. A discussão teológica não gira em tomo de seus próprios gonzos
na busca de uma verdade metafísica, mas se projeta numa práxis sócio-política
apaixonante porque é quase uma luta de vida ou de morte entre ideais sociais
e políticos, distintos e bem nítidos.
A projeção protestante no Brasil e na América Latina vai produzir uma
sensível ambigüidade no confronto entre protestantismo e catolicismo. Enquanto
alguns missionários e, principalmente, os líderes nacionais falam em verdade
e não-verdade, reproduzindo assim as polêmicas da Reforma, uma grande
facção de missionários se preocupa com os ideais democráticos e republicanos
conduzidos pelo protestantismo, assim como o seu liberalismo e progressismo5.
De um lado, vê-se a preocupação conversionista de católicos ao protestantismo,
de outro o transplante cultural, a exportação da “American way of life”, tudo
em obediência ao “Destino Manifesto”.
Enfim, o tenaz esforço missionário americano na América Latina pôde ter
muitas razões, mas uma delas e, talvez, a não menos importante, foi o
“monroísmo”. A idéia de que a Igreja Católica era portadora e legitimadora
de regimes políticos antagônicos aos ideais nòrte-americanos podia justificar
uma grande preocupação com a América Latina que se apresentava como um
grande bloco oficialmente católico. Apesar de que os sucessivos movimentos
de independência vão, na América Espanhola, partindo para regimes republi
canos, a presença da Igreja Católica não era tranqüilizadora, pois ela tendia
74
a forçar a reprodução da sociedade hierárquica independentemente do regime
político.
Para concluir, não seria fora de propósito ver o Brasil como o objetivo
principal da preocupação norte-americana. Constituía o maior território e o
seu potencial político podia se tomar relevante na América Latina e, ainda
por cima, ao fazer sua independência, tomara-se monarquia. Este fator pode
ter justificado o grande esforço da empresa missionária americana no Brasil,
que parece ter sido muito mais volumoso do que nos demais países latino-ame
ricanos. Nem mesmo a febre amarela, que dizimava impiedosamente pregado
res e educadores-missionários, conseguiu deter a “invasão”6 que continuou
crescendo à medida que o século XIX caminhava para o fim.
75
PA R T E II
A ESTRATÉGIA
C A PÍTU L O I
O CATOLICISMO BRASILEIRO
NA VISÃO DO PROTESTANTISMO TRADICIONAL
INTRODUÇÃO
79
a) O ponto de partida
1 Por exemplo, o Rev. Miguel Gonçalves Torres que, por volta de 1879, sai a campo
para refutar o “Catecismo sobre a Igreja Católica”, escrito por D. Antonio de Macedo Costa,
Bispo do Pará. O título completo da obra de Miguel Torres é “A Igreja Romana à Barra do
Evangelho e da História na Pessoa de seu Campeão o Bispo do Pará ou Análise do Catecismo
sobre a Igreja Católica de D. Antonio de Macedo Costa”. O Rev. Miguel Torres pertenceu à
primeira geração de pastores nacionais composta, além dele, por Antonio Bandeira Trajano,
Antonio Pedro de Cerqueira Leite e Modesto Perestrelo Carvalhosa.
2 Otoniel Mota, Ernesto Luiz de Oliveira e Lisâneas Cerqueira Leite.
80
Vou tentar, a seguir, estabelecer os pontos de partida para se construir
uma imagem do catolicismo brasileiro que se ajuste à visão que dele tinha e,
quase certo ainda tenha, o protestantismo implantado na sociedade nacional.
b) Asbbel G. Simonton
81
e sobre o rito inconsciente do batismo5. Os hábitos e o desconhecimento da
Bíblia é que conduzem às exterioridades da sua prática religiosa que não condu
zem a nenhum consolo ou conforto na morte e nas vicissitudes da vida6. Reli
gião que não dá segurança (imortalidade) e consolação de nada serve. Então,
a melhor religião não é a da maioria, mas a que tem os elementos de acesso
à verdadeira salvação e está ao alcance de todos. As penitências pelo sofri
mento corporal voluntário atemorizam as pessoas mais débeis e as dispendiosas
providências funerárias tornam-se só acessíveis aos ricos7. O temor a um Deus
cruel e vingativo deixa as pessoas aterrorizadas com a vida futura e lança-as
às superstições e à gerência de homens que fazem da religião meio de vida e
negócio8.
Em resumo, com toda a prudência mas com clareza, Simonton vai
construindo nos seus sermões a figura que ele tinha da Igreja Católica. Seu
sermão “A Morte e o Futuro Estado dos Justos”, bastante longo e publicado
inicialmente na “Imprensa Evangélica”’, por partes, durante 1868 (em forma
de artigos ou “tratados” como se dizia), é um dos mais ricos de alusões ao
catolicismo. Nesse sentido (talvez nem tenha sido pregado tal como está na
coletânea em exame), Simonton diz que a Igreja Católica, naturalmente, é
“ . . . um triste sistema. Nem sabemos que haja nada mais doloroso no meio da
cegueira do espírito humano” . Essa cegueira decorre do abandono e desco
nhecimento da Bíblia por parte dos teólogos10 e que reflete nos fiéis que nada
sabem da existência de Deus, de sua alma, da imortalidade e da vida futura".
As práticas litúrgicas, os ritos, as cerimônias, a pompa, os intermediários (santos)
identificam a Igreja Católica como uma religião pagã com forte dependência da
mitologia12. Não é cristã, uma vez que se afastou do Evangelho13. É também
uma religião de ricos, porque só eles podem financiar as cerimônias e pagar o
necessário para a salvação das almas14. O culto católico é culto inferior e apaga
do em que “se pede a intervenção de amigos na corte do céu”15. Ainda, o
82
catolicismo é uma religião contraditória porque quanto melhor a pessoa, mais
cerimônias são feitas em sua intenção, o que indica a sua maior dificuldade
em passar para “o melhor lugar”, quando o contrário é que seria o certo.
Simonton afirma isto a partir da leitura, em jornais, de anúncios de missas e
de necrológios de pessoas importantes16. Essas contradições contribuem para
que muitas pessoas se refugiem no indiferentismo e na incredulidade.
Uma religião cristã só de nome, distante de suas origens, mitológica, mais
propícia aos ricos, contraditória, mantida por um cerimonial externo e respon
sável por boa parte da irreligiosidade reinante na sociedade e que caracterizava
a Igreja Católica pelas facilidades que oferecia aos seguidores17 era a religião
da maioria. Por isso, Simonton exortava os seus ouvintes a se acautelarem
contra essa aparente superioridade.
83
livros de Langaard19. Conhecido desde logo por “Padre Protestante”, Con
ceição, em seus vinte anos de sacerdócio, vagou por numerosas paróquias,
mudado constantemente pelos bispos, preocupados com sua influência não
ortodoxa.
Parece que as intenções de Conceição, quando agindo na Igreja Católica,
eram reformistas. Mas a época, falta dos meios de comunicação, as distâncias,
o despovoamento e o meio cultural pobre eram inteiramente adversos aos
seus esforços. Homem inconformado e inquieto, quando se encontrou com os
missionários presbiterianos, em 1863, iniciou uma jornada que iria ser um
dos grandes triunfos do protestantismo no Brasil.
Em setembro de 1864, por carta enviada ao Bispo D. Sebastião Pinto do
Rego, abandonava o sacerdócio e a Igreja Católica e, no mês seguinte, era
batizado pelo missionário Rev. A. L. Blackford, no Rio de Janeiro. Em
dezembro de 1865 foi ordenado pastor evangélico pelo Presbitério do Rio de
Janeiro reunido em São Paulo. Foi, historicamente, o primeiro pastor pro
testante a ser ordenado no Brasil.
As biografias de Conceição20 mostram um homem inquieto e melancólico,
mas não fica claro se se tratava de algum problema de saúde ou se as dúvidas
religiosas teriam afetado seriamente o seu comportamento. Logo após o seu
batismo por Blackford, atitudes estranhas por parte dele começaram a preocupar
os missionários, atitudes essas que o acompanharam durante toda a vida.
Segundo testemunharam os missionários, Conceição, acometido de intenso zelo
religioso, sentia “remorsos de ter sido padre, de ter praticado e deixado
praticar a idolatria da hóstia e das imagens e de haver pastoreado almas para
o erro”21.
Depois de ordenado pastor, dedicou-se a visitar e revisitar suas antigas
paróquias a fim de corrigir seus ensinamentos passados e apresentar uma nova
mensagem religiosa. Em que pese sua profissão de fé presbiteriana, não parece
ter Conceição aderido inteiramente às formas eclesiásticas denominacionais.
Não assumiu, nenhum pastorado e só se dedicava a anunciar a mensagem
nuclear da Reforma, a salvação pela fé em Jesus Cristo, e isso de sítio em sítio,
de casa em casa, de cidade em cidade, viajando incansavelmente, quase sempre
a pé e até a exaustão. Parece não se ter preocupado em nenhum momento
com conversão e proselitismo denominacionais, em conduzir conversos para
entrar oficialmente para a Igreja Presbiteriana. Embora comparecesse sempre
às reuniões conciliares e apresentasse relatório de suas atividades missionárias,
ao que tudo indica não há indícios de disciplina e submissão aos programas
missionários. Ao contrário da maioria dos padres que se convertem ao protes-
84
tantismo, Conceição nunca revelou espírito diretamente polêmico nem anticle-
rical22. Entendia, dentro do espírito da Reforma do século XVI, que a Igreja
Católica continuava com os mesmos erros que os reformadores apontaram.
Era a mesma Igreja conforme ele mesmo expõe na resposta que deu à sua
excomunhão23. Nessa resposta,24 Conceição condena a missa, os sacrifícios e
penitências e reafirma os princípios da Reforma da salvação pela fé em Jesus
Cristo, cuja causa eficiente é a leitura da Bíblia.
Foi dito antes que Conceição não parece ter orientado sua ação missioná
ria no sentido de engrossar as fileiras do protestantismo com novos conversos.
Realmente, sua forma de agir e de pregar dá a idéia de que ele estava mais
preocupado com uma reforma nos hábitos religiosos do povo a partir do
conhecimento da Bíblia. Não se vê nele a prática usual dos missionários de
concentrar suas atividades em torno de um grupo inicial de simpatizantes até
conseguir formar uma congregação permanente. Ao contrário, contentava-se
em apresentar sua proposta reformista e ia embora. Por isso, parece ter razão
Boanerges Ribeiro em dizer que Conceição não desejava o estabelecimento de
uma “igreja protestante transplantada de outra raça, outra cultura, diversa
tradição e temperamento, mas um movimento profundo de Reforma nos senti
mentos e experiência religiosa do povo aliada ao esclarecimento bíblico, que
tomasse possível a criação de um cristianismo brasileiro. . . ”25.
De qualquer modo, a ação evangelística de Conceição traçou o itinerário
da expansão protestante nas províncias de São Paulo e Minas Gerais e, com
certeza, foi uma das causas do rápido desenvolvimento do presbiterianismo nos
seus primórdios.
22 Ibidem, p. 205.
23 Publicada no Correio Paulistano, de 23/4/1866.
24 José Manuel da Conceição, Sentença de Excomunhão e sua Resposta, apud Ribeiro,
Boanerges, 1950, pp. 168 e 169.
25 Ribeiro, Boanerges, 1950, p. 206.
85
Sem dúvida, Eduardo Carlos Pereira foi uma das grandes conquistas dos
missionários presbiterianos norte-americanos. No entanto, entendia ser distan
ciada a visão que as missões norte-americanas tinham sobre a evangelização
na América Latina, visão essa involucrada pela posição de indulgência para
com a Igreja Católica24 e pelos ideais civilizatórios que regra geral acompanha
vam as missões cristãs. Procurou, desde logo, encaminhar os esforços da
Igreja nascente, com vigorosas atuações nos concüios, na direção da evangeli
zação conversionista de católicos ao protestantismo. Esse seu esforço, visava
o fortalecimento cada vez maior da igreja nacional, com a formação cada vez
melhor e em maior número de pastores brasileiros e, para isso, esforçou-se
pela criação de seminários e quando percebeu que os missionários estavam
cada vez mais preocupados com a educação leiga, encetou campanha para a
educação teológica. Conseguiu seu intento, embora a duras penas.
Ainda bem antes, tomara outras iniciativas para dotar a Igreja Presbite
riana de maior poder proselitista. Uma delas foi fundar a Sociedade Brasileira
de Tratados Evangélicos (1883) com o objetivo de produzir literatura evangé
lica em linguagem bem trabalhada e acessível ao povo dentro do contexto
nacional. Bem depois, já no fim da vida, Eduardo C. Pereira se referiu à
sociedade de Tratados como sendo “o prenúncio sagrado da independência
eclesiástica”27. Dos dezessete folhetos publicados, deles sendo distribuídos mais
de noventa mil exemplares28, foi o autor de nove.
Pelos títulos dos seus folhetos pode-se ver que eram, na maioria, dirigidos
contra as doutrinas da religião dominante: “O Culto dos Santos e dos Anjos”,
“O Único Advogado dos Pecadores”, “Um Brado de Alarma”, “Trabalho e
a Economia ou a Felicidade de Deus”, “O Nosso Pai nos Céus”, “Aventura
da Virgem Maria” e assim por diante.
Em 1886, Eduardo concebe o Plano de Missões Nacionais com o fim
de tom ar a igreja brasileira auto-suficiente o mais rapidamente possível para
sustentar pastores, professores e evangelistas sem ajuda estrangeira29. Para
incrementar o plano, toma ainda Eduardo C. Pereira, a iniciativa de fundar
a Revista das Missões Nacionais, em 1887,30 publicação sempre preocupada
com os recursos financeiros da jovem igreja. Em 1893 fundou, juntamente
com outros, “O Estandarte” que, por algum tempo, encartou a Revista.
Vê-se, portanto, a grande preocupação de Eduardo Carlos Pereira em
libertar o presbiterianismo brasileiro da tutela norte-americana, ao seu ver
enviesada, com o sentido de orientá-lo para a evangelização protestante exclu
26 Simonton como já foi visto, embora procurasse apresentar uma nova mensagem religiosa,
nunca atacou diretamente a Igreja Católica.
27 Lessa, Vicente Themudo, 1938, p. 229.
28 Ibidem, p. 232.
29 Pierson, Paul E., 1974, p. 34.
30 Lessa, Vicente Themudo, 1938, p. 281.
86
sivamente. Essa preocupação vai orientar a ação ministerial de Eduardo Carlos
Pereira.
Essa é a primeira face de Eduardo Carlos Pereira. Achava que o Brasil
precisava, antes de tudo, ser evangelizado e nesse sentido é que o protestan
tismo devia caminhar. Por isso, insurgiu-se contra a orientação dos Boards
missionários e com eles abriu polêmicas por muito tempo. A outra face de
Eduardo Carlos Pereira foi a sua longa polêmica com a Igreja Católica. Essa
polêmica pode ser dividida em dois momentos: antes do Congresso do Panamá31
e depois do Congresso do Panamá. Antes do Congresso destaca-se a que foi
travada com um representante da Federação Católica de São Paulo32 que,
através do jornal ou revista “A Pátria”, dirigiu pesadas críticas ao protestan
tismo. Não tive acesso ao que escreveu o adversário de Eduardo, mas pela
resposta dada pelo “O Estandarte”, em duas séries de artigos33, pode-se sentir
que a tese fora para provar que o protestantismo é “uma nulidade estigmatizada
por três séculos de maldições e divisões”34. Nesses artigos, Eduardo C. Pereira
procura refutar seu adversário baseado em fatos históricos quase que exclusi
vamente fundamentado num só autor35, buscando mostrar que a afirmação de
“N.C.” de que “o protestantismo era uma nulidade” aplicava-se antes, e com
maior justeza, ao catolicismo. Comparando os povos católicos, sempre seguindo
Laveleye, com os povos protestantes, procura provar a superioridade civiliza-
tória do protestantismo que se espelhava tanto no progresso material como
moral dos países anglo-saxões. Responsabiliza veementemente as doutrinas e
práticas católicas pelo atraso material e moral dos países latinos. Esses artigos
contêm, naturalmente, pontos de vista que o polemista firma a respeito da
Igreja Católica, mas que serão resumidos no fim deste tópico.
O segundo e mais importante momento da polêmica de Eduardo C. Pereira
com a Igreja Católica foi motivado diretamente pelo Congresso do Panamá,
a que esteve presente com dois outros pastores brasileiros, Álvaro Reis e
Erasmo Braga.
O Congresso, à semelhança do anterior realizado em Edimburgo30, não
abriu a discussão do problema das relações com a Igreja Católica, sendo o
clima geral do Congresso, ao contrário, de cooperação entre todas as igrejas
protestantes e com a esperança de conseguir a da própria Igreja Católica.
87
Essa cooperação se encaminharia no sentido de cristianizar os pagãos latino-
americanos, índios e negros escravos, aliás na linha de Edimburgo. A América
Latina continuava sendo considerada pelas missões protestantes anglo-saxônicas
como cristã37.
As poucas vozes latino-americanas no Panamá foram abafadas. A orienta
ção do Congresso acabou sendo esta: a nova preocupação não devia ser a de
converter católicos-romanos, mas atender às necessidades de milhões de
latino-americanos não evangelizados. Mas os representantes latino-americanos,
principalmente Eduardo Carlos Pereira e Álvaro Reis, continuavam entendendo
que a América Latina era pagã.
Eduardo C. Pereira reagiu energicamente, como era de seu estilo, ao
Congresso do Panamá. Chegando ao Brasil, empreendeu a tarefa de publicar
o documento que ele pretendia ter sido discutido pelo Congresso. O resultado
foi o livro “O Problema Religioso da América Latina” , publicado em 1920,
e que reflete, creio, toda a visão que o protestantismo tem tido, desde seu
início no Brasil, da Igreja Católica. É por isso que, embora esteja fora do
período histórico considerado neste trabalho, julgo pertinente trazê-lo à baila
para os fins pretendidos de construir uma imagem do catolicismo a partir da
ótica protestante. É uma retroprojeção válida no meu entender.
“O Problema Religioso na América Latina” provocou talvez a maior
polêmica católico-protestante que já houve no Brasil, embora Eduardo C.
Pereira tenha saído dela antes que começasse, pois faleceu em 1923, antes
do Pe. Leonel Franca publicar a sua resposta38. A réplica aLeonelFranca
foi dada por Ernesto Luiz de Oliveira39 e seguiu-se a tréplica, entrando na
liça Otoniel Mota e Lisâneas Cerqueira Leite. A leitura dos volumosos textos
dessa polêmica mostra como a Igreja Católica era vista pelo protestantismo
brasileiro.
O que Eduardo Carlos Pereira diz em seu livro pode ser o resumo de
tudo aquilo que ele pensava sobre o catolicismo latino-americano. No Congresso
Evangélico Regional do Rio de Janeiro40 ele apresentou um documento em
que o seu pensamento está por inteiro4', cujo resumo tento apresentar em
seguida.
1. A Igreja Católica merece ser reconhecida como um dos ramos do
Cristianismo por conservar os credos, os grandes dogmas da cristandade e por
seu valor como guardiã da “idéia” cristã e que ela, por suas crenças, tem
produzido no seu seio numerosos caracteres nobres;
88
2. Aberra, no entanto, a Igreja Católica, por seu apego à tradição, à
nova trindade Jesus, Maria e José, aos Santos e às obras meritórias, indulgên
cias, absolvição sacerdotal, purgatório, missas, culto à Virgem Maria, mono
pólio do clero, uso mágico dos sacramentos (ex opere operato) e o Papa
como corporificação da Igreja visível;
3. Por tudo isso, a Igreja Católica Romana desfigurou o cristianismo
e se tomou pagã;
4. Pelas suas aberrações, a Igreja Católica fracassara na sua missão
civilizadora. Comparando os países católicos com os protestantes, Eduardo
Carlos Pereira concluiu que o grande mal da América Latina era o catolicismo
romano, responsável pelo seu atraso moral e material comparado com o grande
progresso dos países protestantes, em ambos os campos.
Da extensa lista de erros que Eduardo C. Pereira atribui à Igreja Católica,
além dos pontos doutrinários impugnados pelo protestantismo, constam algumas
práticas típicas do chamado catolicismo popular: uso e adoração de imagens,
água benta, rosários, relíquias, benzeduras, sinal da cruz.
Para Eduardo C. Pereira, o catolicismo com seus dogmas multiplicados,
suas cerimônias pueris, milagres e peregrinações, colocava-se fora do
pensamento moderno. O excesso de superstição conduz inevitavelmente à
incredulidade e à apatia religiosa encoberta sob a capa da religião social que
se nota nos intelectuais mais liberais42. A seguinte citação que Eduardo faz
de Agassiz parece englobar suas idéias sobre os efeitos do catolicismo sobre
o povo: “O padre é o instrutor do povo. Deve cessar de crer que o espírito
possa se contentar por único alimento, com procissões grotescas, com santos
coloridos, velas acesas e ramalhetes baratos. Enquanto o povo não reclamar
outro gênero de instrução religiosa, irá se deprimindo e não se levantará”43.
Eduardo Carlos Pereira, em suma, via a Igreja Católica como um dos
ramos do cristianismo por guardar ainda os seus grandes princípios, mas que
na prática havia se paganizado. Suas práticas supersticiosas e pueris
tornavam-na avessa aos espíritos cultivados, sendo por isso responsável pela
irreligiosidade das classes intelectuais.
89
também com os de dentro, isto é, com o estado de desprestígio e de atraso
da Igreja no Brasil.
A descrição que o Pe. Júlio faz da Igreja em fins do século XIX45 parece
sair da pena de qualquer protestante. Para ele, a Igreja estava desviada por
uma falsa devoção composta de festas que apenas divertiam, cerimônias que
não edificavam e pelo desvirtuamento do simbolismo católico. Esse estado de
coisas levava a Igreja a sofrer muitas críticas, entre elas a de que as festas,
procissões e romarias obrigavam o povo a despesas desnecessárias e que o
seu culto pueril só interessava a mulheres e crianças. A empresa do Pe. Júlio
é dirigida para a recuperação do prestígio da Igreja pela doutrinação, isto é,
pela teologia, visando purificá-la de suas “puerilidades”, para que ela pudesse
ser não somente uma religião do povo, mas também dos intelectuais. Entendia,
também, que a Igreja tinha uma função política a desempenhar no Brasil e
só podia fazê-lo se se reformasse. Parece que o Pe. Júlio diagnosticou bem
a situação da Igreja no seu tempo. Reivindica para ela, como de direito,
algumas das depurações que seus adversários positivistas e protestantes tenta
vam assumir.
Em princípios do século, Pe. Júlio Maria pronunciou, no Rio de Janeiro
e em Fortaleza, uma série de conferências contra o protestantismo. As de
Fortaleza foram respondidas pelo pastor presbiteriano Jerônimo Gueiros e
publicadas em 190546 e as do Rio de Janeiro pelo pastor, também presbiteriano,
Álvaro Reis,47 e publicadas em 1908. Interessam-me estas últimas.
O pregador redentorista fez em suas conferências três afirmações que
Álvaro Reis empreendeu refutar: 1.° que o protestantismo é uma negação
religiosa, 2.° que o protestantismo é uma negação da autoridade da Igreja e
3.°, que o protestantismo é uma negação política.
Álvaro pronuncia do púlpito da Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro48
três conferências refutando as teses de Júlio Maria. A leitura dessas conferências
mostra-nos sua eloqüência e ardor polêmico, assim como certa fraqueza de
provas, uma vez que à semelhança de Eduardo Carlos Pereira que se funda
menta quase que exclusivamente num autor49, Álvaro baseia seu argumentos em
Rui Barbosa, na sua famosa introdução ao “Papa e o Concilio”, de Doelinger,
da qual cita extensos trechos.
As idéias de Álvaro Reis sobre a Igreja Católica são mais ou menos as
mesmas de Eduardo Carlos Pereira, mas são expostas com certa irreverência.
Para ele, a Igreja Católica não professava mais o cristianismo e o seu culto
90
se paganizava tomando-se supersticioso. Os oratórios, os terços, a cinza benta,
os jejuns com as pingües consoadas, a missa, a procissão, tudo se superpõe
à ignorância religiosa do povo e contribui para a superstição e o fanatismo.
Na segunda conferência, faz Álvaro Reis forte crítica às representações
católicas: Deus como um velho de cabelos e barbas brancas, as várias
fisionomias de Cristo, os diversos nomes da Virgem Maria (chega a ridicularizar
alguns)50 e até a cor de N.S. Aparecida5'. O cultivo da superstição e do
fanatismo tomava o povo fetichista.
Para Álvaro, a Igreja Católica falhara na educação religiosa e moral do
povo, pois, em vez de distribuir os Sagrados Livros (a Bíblia) que ensinam e
libertam o homem do vício, espalhava “rosários, verônicas, bentinhos e palmas
bentas. . . bugigangas da idolatria papal que rebaixam o nosso povo até o
fetichismo!”52.
Como conseqüência do conteúdo religioso que a Igreja Católica oferecia
ao povo brasileiro, Álvaro Reis diagnosticava: “A plebe é ignorante e crendeira;
as outras classes indiferentes e incrédulas”53. Paradoxalmente, suas conclusões
coincidem até certo ponto com as críticas que Júlio Maria fazia à sua própria
Igreja. Para este, no entanto, a salvação estava na correção dos devios pela
doutrinação, uma vez que só a Igreja Católica tinha condições de exercer o
papel de mentora dos povos; para Álvaro Reis, como para outros líderes
protestantes, esse papel civilizatório só poderia ser exercido pelo protestantismo.
Para provar essa tese lança mão dos costumeiros argumentos da diferença
entre os povos latinos católicos e os anglo-saxões protestantes.
Como Eduardo Carlos Pereira, Álvaro Reis esforçou-se muito no Congres
so do Panamá para que a América Latina católica-romana fosse considerada
campo missionário à semelhança das nações pagãs, contra o expresso desejo
do Congresso de cooperar com a Igreja Católica. Evidentemente sua visão
religiosa do Brasil não poderia levá-lo a outra posição54.
Conclusão
91
res, oriundas do sincretismo local sob a complacência de uma religião exterior
e despreocupada, provavelmente por causa de sua hegemonia absoluta. A
religião dominante, por isso, nada fizera pelo progresso moral e material da
sociedade. Não cumprira seu papel. De cristã só tinha o nome.
Embora alguns historiadores, como Léonard55 e Boanerges Ribeiro,54
refiram-se ao protestantismo brasileiro como a Reforma no Brasil, isso creio
que só se aplica por referência histórica, uma vez que a ação protestante foi,
antes de tudo, conversionista. A não ser Eduardo Carlos Pereira, que admite
ser a Igreja Católica pelo menos um dos ramos cristãos, embora termine seu
livro mais importante com um convite para sair dela e entrar no cristianismo57,
todos os demais negam que ela seja cristã. Portanto, não se trata de reformar
mas de apresentar uma alternativa religiosa verdadeira58. A mensagem era
um convite para sair do erro e entrar na posse da verdade e a partir daí
sim, uma reforma dos costumes no sentido dos padrões de moral típicos do
protestantismo.
Penso, portanto, que colocada a questão por esse prisma, poder-se-á
entender melhor a ação missionária protestante contra o catolicismo. Não
somente isso, mas também suas próprias questões internas.
92
C A PITU LO II
A ESTRATÉGIA MISSIONÁRIA
Introdução
93
“tais colégios prepararão o caminho para a marcha das igrejas.. .
Colégios fundados nestes princípios triunfarão sobre todo o inimigo e
conquistarão a boa vontade até dos nossos adversários. Mandai mis
sionários que estabeleçam colégios evangélicos, e o poder irresistível
do evangelho irá avante na América do Sul e a terra do Cruzeiro
do Sul brilhará com a luz resplandescente do Reino de Cristo’’.2
2 Apud Crabtree, A.R., 1962, pp. 69 e 70. As expressões entre aspas, que vêm antes da
citação são de Crabtree, à p. 69.
3 “Embora não conheça o Romanismo muito bem, concluo que ele perdeu seu poder
nesta sociedade” —. Simonton, Board Leters I, 12 de novembro de 1859 (citado por Mclntire,
1959, p. 4/12).
4 “O brasileiro é pouco religioso, e o pouco que tem parece ser superficial, limitando-se
a tirar o chapéu e curvar-se às portas das igrejas”, ibidem.
5 “Tenho a impressão de que há um grande sentimento público por liberdade religiosa”
— Simonton, Board Letters I, 23/10/1859 — (citado por Mclntire, ibidem, 4/13).
94
O intento de transplante cultural, do qual o veículo intencional foram os
grandes colégios cuja clientela foi principalmente conquistada nos escalões
dominantes, trazia no seu bojo a visão do Reino de Deus na terra que animou
os primeiros puritanos que chegaram à nova Inglaterra. O “Puritan Model
State”, que ainda entusiasmava a nação americana no século XIX através da
ideologia do “manifest destiny”, impulsionava a grande empresa de exportação
do “American way of life” pois que, para isso, se acreditava chamada por
Deus6. Por outro lado, sendo o protestantismo a “religião do livro”, deve ter
surgido logo um severo embaraço para os missionários: o analfabetismo do
segmento da sociedade que lhes oferecia espaços para a tarefa conversionista,
isto é, a dos homens livres e pobres da população rural7. Os protestantes têm
como postulado básico de sua fé que a leitura da Bíblia, por si só, não somente
instrui os indivíduos na religião, mas é instrumento de conversão. Além disso,
o próprio culto protestante exige a leitura, pois que o seu material litúrgico
são a Bíblia e o livro de hinos. Para atender a esta necessidade, os missionários
colocaram ao lado de cada comunidade uma escola. Estas foram as escolas
paroquiais, alfabetizadas e elementares.
95
nização das primeiras igrejas já se implantaram também as escolas paroquiais'1.
Mas logo a seguir, por volta de 1870, surgem os primeiros colégios em várias
partes do país, quase sempre nas capitais e cidades mais importantes sob o
ponto de vista da estratégia missionária. A maior parte das escolas paroquiais
desapareceu com o tempo e com a evolução das escolas públicas, assim como
alguns colégios se fecharam por circunstâncias várias.
Podemos avaliar a importância do sistema educacional protestante, consi
derando que o protestantismo é minoria religiosa no Brasil'2, ao verificar-se
que hoje, depois de cessada, ou quase cessada a atividade das missões ameri
canas, conta o protestantismo com mais de trinta colégios, quase todos eles
de significativa expressão'3, não se contando evidentemente escolas não con
troladas pelas cúpulas denominacionais, mas adstritas a concílios regionais ou
congregações locais e que, por isso, não são relacionadas nas publicações ecle
siásticas oficiais. Apesar do aparente desinteresse inicial das missões pelos
cursos superiores, há hoje duas universidades protestantes e diversas faculdades
isoladas ou federadas em funcionamento. Essas escolas superiores, na sua
maioria, evoluíram de colégios fundados no século passado'4.
Para imprimir uma seqüência hierárquica a este estudo, procurarei ana
lisar a educação protestante de um modo global e dentro dos estreitos limites
que se impõem, do seguinte modo: escolas paroquiais, colégios e cursos supe
riores. Não pretendo ter compreendido perfeitamente o fenômeno da educação
protestante. O meu objetivo é simplesmente enfocá-la, nos seus diversos planos,
como uma estratégia missionária, como um canal de inserção do protestantismo
nà sociedade brasileira.
A leitura dos historiadores das denominações protestantes no Brasil'5
mostra, com insistência, embora de passagem e sem maiores comentários, a
11 Parece, no entanto, que as escolas particulares de índole protestante pelo menos por
causa da crença de seus fundadores, já tinham sido implantadas muito antes do estabelecimento
das primeiras missões. Disso há uma indicação em Gilberto Freyre, 1975, p. 418.
12 Segundo o Anuário Estatístico do Brasil de 1975, era de 3.202.383 o número de
protestantes no país. Considerando-se que nesse momento estão cerca de 2.000.000 de pentecos-
tais, cujas igrejas geralmente não criam escolas, restam cerca de 1.200.000 das chamadas igrejas
históricas, que são responsáveis pelo sistema educacional no país. Quanto a essa proporção da
população protestante, ver Cândido Procópio F. de Camargo, 1973, p. 122.
13 Dados extraídos de: Relatório da Equipe de Pesquisas sobre a Avaliação de Doze
Escolas Presbiterianas Relacionadas com a Igreja e Missões no Brasil, Conselho Interpresbiteriano,
1961, e Estudo das Instituições de Ensino Metodista, COGEIME, 1968/69. Quanto aos colégios
batistas vali-me de Jether P. Ramalho, 1976, pp. 175/79. Não estão incluídas as escolas luteranas
e episcopais (Comunhão Anglicana) por me faltarem dados e, também, por não serem relevantes
para os fins deste estudo.
14 Universidade Mackenzie, em São Paulo, da Igreja Presbiteriana do Brasil, e Universidade
Metodista de Piracicaba, da Igreja Metodista. A primeira evoluiu do Colégio Protestante,
fundado em 1870; a segunda, do Instituto Educacional Piracicabano, fundado em 1881.
15 Chamam-se denominações históricas as igrejas presbiterianas, metodistas, batistas, congre-
gacionalistas, luteranas e episcopais (ramo do anglicanismo). Para fins do presente estudo, estou
considerando as três primeiras, cuja infiltração e aclimatação na sociedade brasileira é mais nítida.
96
contínua fundação de escolas ao mesmo tempo que de igrejas’6. Parecem mesmo,
ser as escolas um complemento natural das igrejas. Estas escolas paroquiais
permanecem ainda misteriosas quanto aos seus objetivos principais, métodos,
currículos, professores etc. As referências são raras e esparsas quanto a essas
questões, assim como não há nada a respeito da extinção delas, isto é, se tive
ram sucesso, se atingiram suas finalidades e se, no momento oportuno, cederam
lugar ao sistema oficial, por influência do positivismo no início da República,
e assim por diante.
Procurarei, a partir de algumas indicações desses historiadores e da própria
ideologia do protestantismo, levantar algumas hipóteses justificadoras das es
colas paroquiais protestantes17.
O sistema escolar no Império apresentava notável fraqueza, especialmente
quanto à sua extensão. Não conseguia alcançar todas as crianças em idade
escolar. A zona rural era, naturalmente, a mais prejudicada. Como a vida
urbana era menos intensa do que a rural18, compreende-se porque essa carência
educacional atingia na classe dirigente elevado grau de preocupação. Ocorre
que a infiltração do protestantismo deu-se principalmente na zona rural, bairros,
sítios e fazendas. Isso ocorreu muito nitidamente com os presbiterianos como
será demonstrado no capítulo 5.
Embora os historiadores protestantes pequem pela imprecisão de suas
indicações quanto à localização das igrejas que se iam organizando, um estudo
mais atencioso revela o caráter rural das primeiras igrejas. Havia circunstâncias
especiais vigentes no Império, isto é, nos primeiros anos da propaganda pro
testante, que condicionavam essa inserção rural do protestantismo19. Nesses
primórdios, por essas razões de ordem cultural e política, as igrejas protes
tantes tinham características neo-testamentárias20 que precisam ser compreen
didas, sob pena de nos escaparem aspectos fundamentais de sua estrutura. A
igreja era, simplesmente, o grupo de pessoas inscritas no livro de rol após a
sua admissão segundo o rito de cada denominação, e que se reunia regular-
16 J.K. Kennedy, 1926, mostra que todos os relatórios eclesiásticos indicavam a fundação
e a situação das escolas como rotina na vida da Igreja; Vicente Themudo Lessa, 1938, p. 127:
“Como de costume, criou-se escola e construiu-se casa de oração”. Esse registro também é
constante neste historiador presbiteriano.
17 Dos historiadores eclesiásticos brasileiros só os batistas justificam a fundação de escolas
a partir da ideologia protestante. Ver A.R. Crabtree, 1962.
18 A decadência da vida urbana, depois de um certo progresso a partir do início da
colonização, começa no séc. XVIII, com o “grande ciclo do ouro” (Oliveira Viana, 1973, vol I,
p. 87). A nova expansão da vida urbana dá-se no início da República (Otávio Ianni, O Progresso
Econômico e o Trabalhador Livre, in Sérgio Buarque de Holanda (org.), 1976, tomo II, vol. 3,
p. 313.
19 Sendo a Igreja Católica oficial, gozava de favores especiais de exclusividade, quanto
as manifestações religiosas. Sobre este ponto, ver Boanerges Ribeiro, op. cit. Havia ainda o
interessante estatuto do “patrimônio dos santos” que vinculava os incipientes centros urbanos
ao domínio exclusivo da Igreja Católica. Ainda hoje, em algumas cidades, pelo menos no
Estado de São Paulo, há algumas igrejas protestantes que não têm a posse de seus imóveis e
pagam laudêmio às respectivas dioceses.
20 “Diariamente. . . partiam o pão de casa em casa” (Atos dos Apóstolos, 2:26). O
capítulo 6 da Epístola aos Romanos mostra que a “igreja” se reuniu nas casas dos adeptos.
97
mente para o culto, os sacramentos e a instrução religiosa. Reuniam-se nas
casas dos adeptos, não havendo lugar fixo, as mais das vezes. Só com o
passar do tempo é que foram surgindo os salões especiais para as reuniões
religiosas e, com eles, as salas para a escola. Mas mesmo antes de surgirem
os salões de culto já funcionavam as escolas nas casas particulares, às vezes
do próprio pastor21.
Quais as razões que levavam os missionários, e também os pastores nacio
nais, a essa preocupação com a educação paralela à propaganda religiosa?
Poderia haver algum traço de espírito filantrópico diante da escassez de instru
ção vigente que chocava os norte-americanos vindos de uma sociedade muito
mais complexa sob todos os aspectos. Mas por outro lado, a carência de
instrução podia ser um notável empecilho ao aprendizado da doutrina protes
tante, todo ele calcado na leitura da Bíblia, livros, revistas e jornais, que logo
começaram a ser publicados por iniciativa das missões22. O culto protestante,
especialmente como foi introduzido aqui é, ao contrário do católico, essen
cialmente simbólico e ritualizado, caracteristicamente informal e discursivo.
O informal supõe improvisação (que requer atenção e certa vivacidade mental),
e o discurso, uma progressiva aquisição de vocabulário para entender a prédica
do pastor. Além disso, o cântico dos hinos sagrados exige leitura relativa
mente rápida, embora a memorização pudesse ser largamente usada. De
qualquer modo, o livro e o discurso estão sempre presentes na prática religiosa
protestante. Daí não ser difícil concluir que a evolução do protestantismo
dependia, em grande dose, da alfabetização de seus adeptos atuais e em po
tencial, a criança.
Se na zona rural os protestantes estavam mais ou menos à vontade por
causa da distância da influência da religião dominante23, nas cidades onde
conseguiam se estabelecer a situação parece não ter sido tão tranqüila. Há
algumas referências nas obras dos cronistas a respeito de discriminação e into
lerância religiosa contra as crianças filhas de protestantes nas escolas públicas.
Essa é a razão inicial, por exemplo, da fundação do Mackenzie24. Creio, porém,
que não se deve exagerar esta causa como fortemente impulsionadora da
educação protestante. Pode ter sido causa de urgência em certos lugares, mas
a principal seria, com certeza, a questão da permanência do protestantismo
21 Além desse fato, ocorria que o pastor podia também ser o professor (Júlio A. Ferreira,
1950, p. 44).
22 Foi intensa a preocupação dos missionários e pastores brasileiros com a imprensa para
a publicação de livros e periódicos com o intuito de doutrinar. Como exemplo, A Sociedade
Brasileira de Tratados Evangélicos instituída pelos presbiterianos em 1883. Publicava sermões e
folhetos evangelísticos, livros com historietas piedosas e até “cartilhas para a infância nas
escolas” (Vicente Themudo Lessa, 1938, pp. 229ss.). Foram numerosas também as publicações
pelas outras denominações protestantes. Sobre estas o mesmo autor fornece muitas informações.
23 A falta de assistência religiosa é fartamente sentida por parte da maioria dos estudiosos
da sociedade brasileira. “Os sacerdotes, em sua maioria, permanecem nas cidades ou nas zonas
mais populosas; no sertão e nas zonas rurais em geral são sempre escassos” (Queiroz, Maria
Isaura P., 1973, p. 74).
24 Garcez, Benedito Novaes, 1970, pp. 14 e 15.
98
depois de pregado, o que parecia ser a praxe das missões americanas25. As
escolas paroquiais foram instrumentos necessários para a implantação e per
manência do protestantismo em qualquer lugar.
É importante saber como funcionavam essas escolas. As referências são
muito parcas, no entanto. Podemos buscar, aqui e ali, alguma informação e
levantar algumas hipóteses. Primeiramente, quem seriam os professores nessas
escolas? Sabemos que, às vezes, era o próprio pastor. Mas, dado o caráter iti
nerante do ministério protestante, nos primeiros tempos26, o magistério do
pastor devia ser exceção. Evidentemente, não seriam contratados professores
fora da comunidade protestante: haveria de ser alguém dentre os arrolados na
igreja e que tivesse algumas letras27. Mas não encontrei, no caso desse profes-
sorado primitivo e certamente masculino, como era o uso da época, nenhuma
afirmação que possa esclarecer essa questão. Mais tarde sim, e com notável
progresso da obra educativa missionária, é que surge um magistério qualificado
feminino, e como procedia dos quadros das missões americanas, está bem
registrado, e com detalhes, nos livros e documentos oficiais.
O primeiro aspecto interessante dessa educação protestante é o magistério
feminino. Os historiadores, principalmente os presbiterianos e os metodistas,
registram a chegada anual de várias missionárias educadoras. São mesmo deze
nas delas nos primeiros anos da atividade missionária, isto é, nos últimos trinta
anos do século XIX, tomando-se algumas delas notáveis mesmo fora do
âmbito exclusivamente protestante28. Além do aspecto naturalmente maternal
desse magistério feminino, os novos métodos de ensino trazidos por essas
missionárias contribuíram bastante para modificar o ambiente das escolas,
antes amedrontador e maçante, conforme afirmam alguns autores29. Entre outras
coisas é pertinente perguntar até que ponto o contraste entre as escolas pro
testantes e a tradicional brasileira não influiu na modificação gradual da
disciplina.
Outro aspecto, já levemente tocado mas que merece mais algumas consi
derações, é o método que logo passou a ser usado tanto nas escolas paroquiais
99
como nos colégios. O sistema de cantarolar as sílabas e a tabuada em coro,
foi substituído pelo método americano, intuitivo e silencioso, sem a excessiva
memorização30. Os historiadores protestantes são unânimes em afirmar que os
métodos americanos eram superiores aos tradicionais usados no Brasil3'. Essa
opinião parece ser confirmada pelo fato de Miss Mareia Brown ter sido cha
mada pelo governo para participar de uma reforma do ensino primário no
Estado de São Paulo junto com outra educadora brasileira32 que se preparara
nos Estados Unidos e pela preferência que muitas famílias, quase sempre não
protestantes, davam às escolas americanas33. Isso pode ser levado em conta
da novidade, mas como houve sensível mudança na pedagogia brasileira com
a proclamação da República, é necessário reconhecer que a educação missio
nária protestante deve ter entrado com alguma contribuição nessa transforma
ção. Em que grau isso se deu é uma questão que me parece não ter sido
ainda avaliada.
O que era ensinado nas escolas paroquiais e nos cursos elementares dos
colégios divergia dos currículos em voga na escola tradicional. Nota-se a intro
dução de várias novidades no ensino elementar, como regras da arte literária,
ciências, recitação de poesias em português, francês e inglês, execuções
musicais, canto ao piano, exercícios calistênicos etc.34. É quase certo, porém,
que nas escolas paroquiais rurais esse currículo devia ser bastante simplificado,
embora contivesse elementos característicos do protestantismo, como o ensino
da Bíblia, do catecismo e dos Dez Mandamentos. Havia cânticos de hinos sa
grados durante a aula35. A escola tradicional, sob a forte influência da religião
dominante, dava muita ênfase ao latim e à história sagrada. Quanto à história
sagrada, tal como era dada em compêndios, os protestantes a recusavam por
fidelidade aos princípios da Reforma36. O latim, embora não tanto enfatica
mente, permaneceu por causa da tradição humanística brasileira e mesmo por
que os norte-americanos não eram infensos aos estudos humanísticos. Há
numerosos registros de exames de candidatos ao ministério pastoral em que o
latim ocupa lugar destacado, entre outras matérias. O Presbitério do Rio de
100
Janeiro da Igreja Presbiteriana, por exemplo, inclui no seu plano de “Estudos
para os Candidatos ao Ministério Evangélico”, o estudo do latim do 2.° ao
5.° ano, num currículo de seis anos37. Mas o latim não era veículo de expressão
religiosa, como no caso da religião dominante, mas simplesmente, instrumento
de cultura do espírito, uma vez que toda a literatura religiosa que chegava ao
Brasil para ser usada nas escolas era em inglês.
O uso da Bíblia como livro-texto nas escolas protestantes aparece com
freqüência nos registros dos historiadores. Não se sabe como isso se dava,
conhecendo-se a insistência protestante em recusar qualquer simplificação,
atualização ou paráfrase do texto bíblico. É de se imaginar as crianças lutando
com as dificuldades da versão usada no Brasil no século passado38. Mesmo
que os textos fossem selecionados, as dificuldades não seriam pequenas.
As escolas paroquiais e os cursos elementares, dos colégios protestantes,
tinham o objetivo fundamental de oferecer um mínimo de instrução como
condição “sine qua non” da introdução do protestantismo na sociedade bra
sileira. A leitura da Bíblia, como canal de conversão, era tão importante que
os missionários, possivelmente como medida de emergência, chegaram a em
pregar leigos para ler a Bíblia para os prosélitos, quase que na totalidade
analfabetos. Esses “leitores da Bíblia” substituíam, assim, os pregadores pro
fissionais sempre insuficientes em número39. Por outro lado, a educação das
crianças dentro dos princípios protestantes seria a garantia da permanência e
do progresso do protestantismo.
Se a escola paroquial estava ligada diretamente à atividade de introdução
e permanência da nova forma de fé, através da leitura da Bíblia e participação
no culto, a ação educativa dos colégios tinha como meta o estabelecimento
de uma “civilização cristã”, de um reino de Deus na terra segundo os ideais
norte-americanos que vinham na esteira de seu sistema econômico, em plena
expansão em fins do século passado. Émile G. Léonard, historiador do pro
testantismo, não vê na intenção missionária do protestantismo americano nada
de novo. Ao contrário, na sua opinião, o protestantismo reproduzia, no
século XIX, a prática católica da era dos descobrimentos e que se estendeu
ao longo do período de expansão colonialista dos povos ibéricos40. Natural
mente que o modelo de civilização diferia entre católicos e protestantes, mas
as intenções eram as mesmas. Talvez a mensagem religiosa conversionista que
penetrou na camada pobre da zona rural estivesse mais ligada à tradição dos
grandes reformadores, cuja preocupação primordial fora “unicamente religiosa
37 Imprensa evangélica, 17/1/1878, p. 22, apud. Ribeiro, Boanerges, 1981, pp. 355/6.
38 A versão corrente entre os protestantes do Brasil, no século passado, era a do Padre
Antonio Pereira de Figueiredo, feita da Vulgata Latina em 1778. . .quase nada tínhamos para
ler senão a bíblia, que fora praticamente o livro de leitura (na escola primária)”. Júlio A.
Ferreira, 1959, 1.° vol. p. 150.
39 Diversas referências a esses “leitores da bíblia” podem ser encontradas em Ferreira,
Júlio A., 1959, 1.» vol., pp. 117/118, 151 e 238.
40 Leonard, Émile G., 1963, p. 133.
101
e diretamente evangélica”, como diz Léonard41. O objetivo dos colégios, no
entanto, era de serem mais ou menos conscientemente exportadores de um novo
esquema sócio-político. Era uma evangelização segundo o modelo protestante,
mas indireta, visando a vinculação de uma ideologia religiosa profundamente
abrangente no sentido de mudar os rumos de uma sociedade ainda em busca
de seus caminhos42.
O exame dos currículos desses colégios pouco revela de diferente, a não
ser algumas disciplinas novas na direção de uma certa ênfase pragmatista de
cunho científico-tecnológico43. A chave da questão está nos objetivos que orien
tam a prática educativa e que procuram encaminhar os educandos para
a aceitação de uma maneira nova de ver a realidade, especialmente a valoriza
ção da natureza e do trabalho. Sabe-se muito bem que os efeitos de uma
educação indireta por via de atitudes, modos de vida, visão uniforme e coe
rente da realidade etc. são mais importantes do que a instrução. A combinação
da educação humanística com o trabalho e a tecnologia está bem exemplifi
cada nesta descrição pitoresca de um dia de estudos feita por um ex-aluno
do colégio presbiteriano de Ponte Nova, Bahia:
“Que vida a do Dr. Bixlerl Pela manhã, conosco na faina intelectual,
tendo César e começando Xenofonte! Isto no centro daquelas matas!
 tarde ele mesmo ia com os alunos na baixa do canavial, arado em
punho, suando. . . A agricultura, auxiliada pela grade, pelo arado,
pelo Planet. . . e o Dr. Bixler de ‘over-all’ azul, capacete branco,
rente com a gente! Quem era ele! Universitário de Princetort.. , ”M
O admirado aluno referia-se ao Dr. C. Edwin Bixler, missionário que
trabalhou no colégio de Ponte Nova, de 1914 a 1924. Enquanto que para o
Dr. Bixler, estudar os clássicos com seus alunos pela manhã, e à tarde ensinar-
lhes praticamente as técnicas agrícolas nada tinha provavelmente de extra
ordinário, para o autor daquelas linhas era difícil de entender um “doutor”
segurando o cabo de um arado. O pensar e o fazer eram incompatíveis na
mentalidade tradicional, mas as atitudes dos educadores protestantes procura
vam indicar o contrário. O modo de vida americano aparecia no contraste
entre o ambiente de suas escolas, e as escolas e casas brasileiras. Eis como
uma missionária educadora descreve a sua escola:
“Não quer você visitar a Escola Americana de Curitiba?. . . Entremos
na sala de visita. Não parece casa de morar? Os móveis são muito
velhos — das nossas próprias casas. A s paredes cheias de livros fa-
zem-na muito atraente — as enciclopédias e outros livros velhos de
nossos pais; alguns, porém, são novos, comprados aqui e outros
102
mandados por amigos generosos de nossa pátria. . . Veja a grande
bandeira como ‘portiere’ no grande corredor. ‘A s estrelas e as listratf
(a bandeira americana) são a primeira cousa que se vê quando se
entra em nossa casa. Percorramos as grandes salas de aula, altas,
arejadas, bem iluminadas, enfeitadas com quadros interessantes, colhi
dos de muitos lugares. Da varanda podemos apreciar as brincadeiras
no quintal. Olhemos o jardim além, com centenas de rosas, cravos,
lírios de toda espécie, dálias e outras maravilhas”*5.
104
a questão explorada deste modo, não leva em conta o problema da definição
de classe social no Brasil nesse período, isto é, Império e Primeira República.
O fato de a escola média ser preparatória para as superiores não se
devia a outro fato se não que a ela só tinham acesso os que possuíam condi
ções de aspirar ao “doutorado”, ou seja, a elite dirigente. A ausência de uma
definição de classes, nesse período, era, provavelmente, a responsável pela
dificuldade que a elite dirigente tinha para estabelecer uma política educacional
para a nação. Embora me adiante um pouco no assunto, cabe aqui perguntar
se os colégios protestantes, que se inserem exatamente nessa conjuntura, e que
procuraram suprir essa lacuna, conseguiram essa formação média e por meio
dela, a modificação da mentalidade brasileira, como era seu objetivo inicial.
Penso que é necessário fazer um balanço para ver na ideologia brasileira
atual se há traços da influência educativa protestante. Embora alguns autores,
como Waldo César55, apoiado em Erasmo Braga e Kenneth G. Grubb56, assim
como em Sérgio Buarque de Holanda57, tenham levantado este problema pelo
lado negativo, um estudo em profundidade ainda deverá ser feito, apesar de o
protestantismo não ter crescido na proporção do aumento da população do
país e do relativo esvaziamento ideológico de seus colégios.
O protestantismo trazido pelas missões americanas para o Brasil já não
era o original da Reforma. Sofrerá, no seu transplante para o solo norte-ame
ricano, mutações oriundas do amálgama das múltiplas correntes protestantes
que floresceram na Europa a partir do século XVII. De modo que, diante
da ideologia que se forma paulatinamente a partir da independência política
norte-americana, vai surgir um protestantismo teologicamente indiferenciado,
com ênfase na salvação individual58, embora guardasse os limites de suas res
pectivas formas de governo eclesiástico59. Assim, no bojo das missões protes
tantes e expressos na pregação religiosa e, especialmente na educação, vinham
o liberalismo, o individualismo e o pragmatismo. A responsabilidade pessoal
diante de Deus, implícita na idéia de salvação individual, requer liberdade indi
vidual na busca e aceitação de princípios religiosos e, no caso protestante
especialmente, no livre exame e interpretação privada da Bíblia. Individualismo
e liberalismo andam intimamente unidos.
105
De todos os historiadores protestantes no Brasil, vinculados aos interesses
de suas respectivas denominações, os batistas são os mais francos em deixar
bem clara a ideologia embasadora de sua missão religiosa e educativa40. Os
demais simplesmente deixam entrever como esse liberalismo estava presente
na prática religiosa e, principalmente, educativa. A idéia predominante na
obra educativa protestante era a da não-discriminação, o que já estava presente
na mente de Ashbel G. Simonton, primeiro missionário presbiteriano61, o que
parece confirmar a idéia de que a formação de uma “mentalidade” protestante
caminhava lado a lado ou mesmo se superpunha à obra de propaganda con-
versionista religiosa. Esta última suposição parece fundamentar-se razoavel
mente no fato de que o antagonismo que progressivamente se formou no
protestantismo presbiteriano entre a pregação exclusivamente religiosa e as
metas educacionais, foi a causa da dissensão entre os elementos nativos de
liderança e os missionários norte-americanos62.
A idéia do individualismo religioso, antagônico ao catolicismo tridentino
preso ao magistério da Igreja e à hierarquia, na opinião dos missionários, só
podia ser disseminada através da educação. £ interessante notar que havia uma
conotação política intimamente ligada a essa preocupação63, o que demonstra
profundo amálgama entre a teologia das missões e a ideologia norte-americana.
Princípios evangélicos e ideologia norte-americana era uma coisa só,
isso na expressão de um entusiasmado missionário, como A. R. Crabtree, do
que não temos razões para duvidar, porque está no contexto implícito e ex
plícito dos demais64. A partir daqui podemos compreender o aparente exagero
de Moniz Bandeira ao referir-se às missões protestantes americanas, através
de seus colégios, como um dos instrumèntos da ação colonizadora norte-ame
ricana no Brasil, comparando-as com a catequese jesuítica em relação a Por
tugal, no início de nossa história65.
Quanto ao pragmatismo norte-americano, ele está presente na escola-
trabalho a que já me referi. Foram fundadas várias escolas agrícolas e, nas
escolas urbanas, que já recebiam moças da elite66, as próprias professoras mis
sionárias davam exemplo de trabalho manual67. Em alguns colégios os alunos
60 Crabtree, A R ., 1962, passim. Ferreira, Júlio A., 1959, 1.° vol., p. 398, ao referir-se
ao político brasileiro João Café Filho, que estudara no Colégio Americano de Natal, diz: “Ali
bebeu sem dúvida seu espírito liberal, o Sr. João Café Filho”.
61 Carta de Ashbel C. Simonton à junta de Missões nos Estados Unidos, em 24/4/1867:
“Parece-me quç é chegada a ocasião propícia de conseguir licença para abrir aqui uma escola,
sem qualquer cunho religioso” (Simonton, 1962, p. 163).
62 “Protestamos em nossa longa campanha primeiro contra a enfeudação da Igreja aos
grandes colégios m issionários...” (Pereira, Eduardo Carlos,1965,p. 41).
63 “A democracia não pode florescer entre um povo sem instrução” (A R . Crabtree,
1962, p. 140).. “ .. .semeava o evangelho entre os alunos, desenvolvia o sentido de responsabili
dade pessoal e outros princípios evangélicos. . . ” (Ibidem), p. 295).
64 Ramalho, Jeter P., 1976, passim.
65 Bandeira Moniz, 1973, p. 124.
66 Ferreira, Júlio A., 1959, 1.° vol., p. 398; Long, Eula K., 1968, p. 68.
67 Ferreira, Júlio A., 1959, 2.° vol. p. 195.
106
eram levados a executar trabalhos manuais para prover, no todo ou em
parte, o custo da permanência e estudos68, além de terem de fazê-los também
como itens obrigatórios do currículo escolar. Aliás, a própria prática religiosa
do protestantismo brasileiro não escapou ao entranhado pragmatismo ameri
cano, o que levou um historiador francês69 a compará-lo com o europeu da
seguinte forma: a divisa do europeu é “adorar e orar” e a do brasileiro é
“aprender e trabalhar”. As próprias reuniões religiosas dos protestantes bra
sileiros são chamadas “trabalho”, exceto a Escola Dominical, da qual, parti
cipam também os adultos, cuja divisa é “aprender”. Aprende-se a vida toda.
Nela estão presentes pessoas que nasceram no protestantismo e que no fim
da vida ainda ali permanecem.
Na época em que as missões protestantes se estabeleceram definitivamente
no Brasil, já se esboçavam desejos de modernização, de encaminhamento da
vida política e econômica nacional no sentido da civilização anglo-saxônica
como conseqüência da expansão capitalista dos países protestantes. De maneira
que a ideologia do protestantismo norte-americano foi bem recebida pelas
elites dirigentes, não faltando mesmo o apoio de alguns expoentes da vida
nacional da época. Havia outros grupos pregando as mesmas doutrinas com
objetivos políticos; o individualismo e o estado secular, componentes da ideo
logia da modernidade, receberam alguma ajuda do protestantismo, como diz
Richard Graham70. Penso que esta questão precisa ser mais aprofundada para
ver até que ponto e em que medida a pregação e a educação protestantes
foram relevantes para esse esforço, uma vez que Graham parece fundamentar-se
tão somente no depoimento de Thomas Ewbank7', um tanto unilateralmente,
portanto.
Mas é fora de dúvida que a educação nos colégios protestantes reproduzia
os padrões da ideologia norte-americana do individualismo, do liberalismo e do
pragmatismo. Não desconheceram os missionários, logo de começo, o formi
dável obstáculo que representava a civilização católica, transplantada da Penín
sula Ibérica pelos jesuítas, logo no começo da colonização. Transplantar para
cá e ver medrar aqui a cultura norte-americana era tarefa de gigantes. Recursos
materiais e humanos empregados nela foram grandes, embora ainda não
avaliados.
Embora alguns segmentos importantes da empresa missionária protestante
mundial não incluíssem os países católicos nas áreas de missão, prevalecia
entre os missionários que trabalhavam no Brasil, inclusive a maioria dos pas
tores nativos, a idéia de que os povos católicos deviam ser considerados pagãos.
A implantação da fé protestante era equivalente ao estabelecimento do reino
de Deus na terra, isto é, uma “cilivização cristã” em contraposição a uma
“civilização pagã” , devotada a um culto idólatra. Como a elite nacional era
68 Ibidem, p. 96.
69 Léonard, Émile G., 1963, p. 241.
70 Graham, Richard, 1973, pp. 287/288.
71 Ewbank, Thomas, 1973, passim.
107
cliente da educação jesuítica, era necessário conquistar essa clientela. Bons
e modernos colégios seriam uma forte atração para um povo que vivia numa
época de busca de um novo pólo de orientação. Daí ser uma constante nos
relatos dos cronistas protestantes as entusiasmadas referências à aceitação,
por parte das elites, dos seus estabelecimentos, que tinham por bandeira o
ensino moderno e mais eficiente do que o tradicional. Como meio de propa
ganda dessa desejada superioridade, faziam festas de conclusão dos anos
letivos, introduzindo nos programas, como demonstração de eficiência, amos
tras, por parte dos alunos, de aprendizado e de capacidade artística adquiridas
no decorrer dos trabalhos escolares72.
A cultura americana, isto é, o ambiente típico da vida americana, era
reproduzida nas escolas protestantes, como já vimos. O reforço do estudo das
línguas inglesa e alemã mostra os novos ideais de educação e a inserção de
um novo universo de idéias, num mundo de cultura latina.
O historiador batista Crabtree entende que o conflito de sistemas, isto é,
a cultura católica e a cultura protestante colocadas frente a frente no Brasil,
só seria resolvido se a educação evangélica comprovasse a sua superioridade.
Somente a doutrinação religiosa não seria suficiente para a solução do conflito
a favor dos protestantes. Para Crabtree a “superioridade do cristianismo evan
gélico” só seria demonstrada de modo indireto, quer dizer, por meio do teste
munho da superioridade da cultura que vinha no bojo da educação missionária
protestante73, Crabtree exprime uma convicção que provavelmente estivesse na
consciência de todos os missionários: eles eram portadores de uma cultura
superior que devia ser compartilhada com outros povos porque era a expressão
do reino de Deus. Princípios como democracia, individualismo, igualdade de
direitos, responsabilidade pessoal, liberdade intelectual e religiosa, que encerram
todo um complexo ideológico, e que, no entender de Crabtree, estão no
conteúdo do evangelho, são abstratos demais para poderem ser com sucesso
transmitidos nas práticas religiosas; eles necessitam de um mecanismo mais
apropriado para atingir a camada social dirigente, que dificilmente seria parti
cipante das reuniões religiosas protestantes.
Os missionários estavam cônscios de sua missão de preparar os povos
para o exercício dos direitos de soberania e democracia, e a América Latina
estava no centro dessa preocupação. Os presbiterianos, portadores das tradições
genebrinas de governo eclesiástico que reproduz, em todos os seusescalões,
a prática de Calvino em Genebra, procuram mostrar que talprática política
só é possível num povo educado. Sentiam como missão do protestantismo
preparar o Brasil para esse evento renovador74. O missionário presbiteriano
Thomas Porter, em 1926, escrevia assim:
“A Igreja precisa ponderar os problemas da educação. O cristianismo
sendo a verdade sem a qual o mundo não pode viver, esta verdade
108
precisa ser levada a todo o campo da vida humana em todas as relações
para endireitar o mal e conseguir o bem do reino de Deus. ... Do longo
e rico estudo pela Assembléia Americana seria proveitoso citar muito
que o Brasil precisa ponderar tanto como a América do Norte. Nós da
Igreja Presbiteriana temos a certeza do Evangelho e do seu poder de
encontrar a todas as condições novas” (sic).75
75 Porter, Thomas, 1926, p. 83. Porter escreveu em português, daí a linguagem um tanto
desajustada.
76 “Apenas alguns cidadãos entre os milhões são inteligentes no tocante ao republicanismo
e desejosos dele e capazes e preparados para as suas responsabilidades da sua operação no nosso
Brasil. Portanto, o eleitorado restrito e as dificuldades políticas no vasto país de povo variado”
(sic). Thomas Porter, 1926, p. 83. Notar a dificuldade do autor missionário, ao escrever o
português, sendo por vezes difícil de apreender o sentido, como nesta última frase. Parece
querer ele dizer que os males do eleitorado restrito e as dificuldades políticas são decorrentes
da incapacidade brasileira de exercer os direitos políticos por causa da falta de instrução popular.
77 Berger, Peter, 1971, p. 191.
109
camadas da elite dominante. Neste sentido, ainda na linha de pensamento de
Peter Berger, o protestantismo se apresentava como uma estrutura viável de
plausibilidade que ia ao encontro da necessidade de racionalização, por parte
da burguesia liberal, de programas de mudanças que começavam a ser ensaia
das. A ação educativa protestante parecia repousar, portanto, na crença de
que “uma estrutura social particular é o resultado de certos movimentos no
âmbito das idéias”78. Cônscios de que estavam apresentando uma proposta que
vinha ao encontro de anseios, pelo menos da camada da burguesia ligada aos
ideais de modernidade, é compreensível o entusiasmo dos missionários pelos
seus triunfos iniciais ao verem crescer as matrículas em seus colégios com
representantes dessa burguesia.
Num período em que as classes sociais no Brasil ainda não estavam
definidas suficientemente e que a elite dirigente era muito reduzida, não era
desmedida a ambição de mudar a mentalidade dessa elite através da educação.
Se esse objetivo foi atingido é questão de uma averiguação que não cabe nos
limites deste trabalho.
Como os missionários não distinguiam religião de ideologia, o que
talvez não seja mesmo possível fazer, a religião era componente da prática
educativa dos colégios. Já citei registros de que a Bíblia não somente aparece
como leitura nas devoções diárias dos alunos dos colégios, mas até como
livro-texto em algumas escolas. Daniel P. Kidder, pastor metodista que se
dedicou à distribuição de Bíblias no Brasil antes do estabelecimento definitivo
das missões, conseguiu do governo da Província de São Paulo autorização
para colocar em cada escola pública primária da Província, gratuitamente, doze
exemplares do Novo Testamento traduzido para o português pelo Padre
Antonio Pereira de Figueiredo e distribuídos pela American Bible Society79.
Embora a autorização fosse oficial, a distribuição nunca foi executada, talvez
por interferência oficiosa. O governo da Província, no entanto, nunca revogou
essa autorização, naturalmente para não arranhar a honrabilidade dele mesmo.
Essa é a razão que dá o próprio Kidder.
Ê muito pouco provável que as missões protestantes tenham conseguido
introduzir a Bíblia como leitura habitual na sociedade brasileira.
Havia obstáculos quase intransponíveis, desde os oficiais até o analfabe
tismo da população. Daí ser difícil a compreensão do esforço tão grande
desses missionários educadores, que davam instrução e, ao mesmo tempo,
propagavam sua fé e ideologia através do livro que era, para eles, “a única
regra de fé e prática”, um dos princípios da Reforma. Não é minha intenção
fazer um levantamento numérico desse esforço educativo protestante no Brasil.
Desejo somente levantar algumas questões que julgo importantes no sentido
de compreender aquilo que penso ser a missão ideológica da empresa missioná
ria, missão essa que o protestantismo esperava cumprir especialmente pela
110
educação. Mas a leitura dos historiadores das denominações objeto deste
trabalho mostra que esse esforço foi sem querer exagerar e consideradas as
circunstâncias da época, imenso. Creio, ainda, que o possível exame dos
arquivos das missões nos Estados Unidos revelará aspectos novos e ampliado-
res do que estou afirmando.
Alguns missionários, educadores e educadoras protestantes tomaram-se
conhecidos fora de seu próprio meio. É o caso de Samuel Rhea Gammon,
em Lavras-MG, William A. Wadell, no Mackenzie, em São Paulo, G. Nash
Morton, em Campinas-SP e em São Paulo, e as bem conhecidas Carlota
Kemper, em Lavras-MG, e Mareia Brown, em São Paulo. Mas quem percorrer
os historiadores, verá que a cada ano vinham novas missionárias educadoras
que se esparramavam por quase todo o território nacional. Muitas regressaram
depois de algum tempo para os Estados Unidos, mas um bom número delas
ficou definitivamente no Brasil.
Alguns resultados desse esforço educativo são já conhecidos. Magistério
feminino, classes mistas, novos métodos pedagógicos e de disciplina, valoriza
ção do trabalho, educação física e desportos, são notáveis antecipações do
que, provavelmente, ainda demoraria algum tempo para chegar ao Brasil.
Mesmo um autor como João Camilo de Oliveira Torres80, que dá tão pouca
atenção ao protestantismo reconhece esses resultados. Mas esses fatores são
externos, não sendo preciso muito esforço para percebê-los. Um estudo de
grande valor seria buscar na ideologia brasileira os traços que a educação
protestante teria aí introduzido, para ver se as verdadeiras intenções das
missões teriam dado algum fruto. João Camilo de Oliveira Torres entende
que a influência protestante foi escassa, mas não mostra como chegou a essa
conclusão.
Resumo
111
Por outro lado, a ideologia americana, em expansão, procurava atingir,
de modo indireto e por saturação, as classes dirigentes, intelectuais e políticas.
Mais precisamente, contribuir para a construção de uma civilização cristã-
protestante, no modelo anglo-saxão. Era uma missão divina.
Desse modo, as escolas paroquiais tinham função de apoio à pregação
conversionista e os colégios a de introduzir a nova ideologia.
A P Ê N D IC E I
113
O certo é que o Rev. era geralmente estimado e conquistava a afeição
dos alunos.
Deixemos por ora a palavra do Sr. Eduardo Westin. Ouçamos as filhas
da casa:
“O Rev. Miguel levantava-se cedo. Estudava muito. Depois do almoço
é que dava aula”.
“Os bancos da escola tinham umas tábuas móveis que, erguidas, se
tomavam carteiras”.
“À tarde fazia muitas visitas. Cada criança queria recebê-lo na porta”.
Fála o Dr. Horácio Nogueira, filho do saudoso Rev. Caetaninho:
“Quando papai estudava com ele para o ministério e o auxiliava nas aulas,
eu, com 7 para 9 anos, fui seu aluno.
“Lembro-me até das perguntas de uma lição religiosa:
— “Quem é Deus? É Espírito? Estará aqui? Vê o que se faz?
Recompensa?”
114
A P Ê N D IC E II
O COLÉGIO PIRACICABANO*
115
alunas em diversas matérias, como sejarti: português, francês, inglês, aritmética,
álgebra, história e retórica. O adiantamento que todas mostraram naquelas
discipinas chegou a surpreender as muitas pessoas que estavam presentes. Não
trepidamos em afirmar que é um dos melhores estabelecimentos de ensino do
Estado de São Paulo” (27/12/1890).
Diz-se que quando o Senador Prudente foi eleito presidente da Província
estava tão convicto dos princípios e ideais de Miss Watts, que a convidou
para vir a São Paulo para ajudá-lo a estabelecer na Província um sistema
de escolas públicas. Foi tal a influência do Colégio que outro editorial em
Piracicaba declarou: “A transformação radical, a adoção de métodos america
nos no ensino, a orientação inteiramente nova na pedagogia e na formação
do magistério que o Senador João Sampaio afirmou ter saído do Colégio
Piracicabano, através de Prudente de Moraes, foi obra de madura reflexão e
longa experiência que só no tempo de Miss Watts se tomou possível”.
O número de alunos aumentava de ano a ano, e eram das melhores
famílias da cidade. Miss Watts escreveu à Junta das Missões de Senhoras
Metodistas que o Colégio não só progredia financeiramente, mas que sua
arrecadação pagava todas as despesas, menos as dos salários das missionárias.
Acrescentou que estava trazendo almas a Cristo: “Há entre as alunas verda
deiro interesse em coisas espirituais; e três alunas e uma empregada já se
uniram à igreja”.
116
A P Ê N D IC E III
117
Perfeita como aluna, ela é a mesma como professora; uma firmeza otimista
leva estes pequenos malandros à uma atividade em perfeita ordem.
“Entremos na sala de visita. Não parece casa de morar? Os móveis são
muito velhos: das nossas próprias casas. As paredes cheias de livros fazem-na
muito atraente — as enciclopédias e outros livros velhos de nossos pais;
alguns, porém, são novos, comprados aqui e outros mandados por amigos
generosos de nossa pátria. . . Esta estante de revistas ilustradas e encadernadas
serve muito para as aulas de geografia e para a sociedade missionária, como
também para divertir e instruir as famílias que se reúnem aos sábados à noite
para ensaiar os hinos. Veja a grande bandeira como “portiere” no grande
corredor. “As estrelas e as listras” (a bandeira americana) são a primeira coisa
que se vê quando se entra em nossa casa.
“Percorramos as grandes salas de aula, altas, arejadas, bem iluminadas,
enfeitadas com quadros interessantes, colhidos de muitos lugares. Da varanda,
podemos apreciar as brincadeiras no quintal. Olhemos o jardim além, com
centenas de rosas, cravos, lírios de toda espécie, dálias, e outras maravilhas.
“Quantas crianças vêm cedo para a aula. Orgulho-me de seu zelo. Algu
mas vêm às sete horas, pois o estudo, em muitas casas, é quase impossível.
Em nossa mesa de estudo, os grandes dicionários e livros de referência, com
espaço, tranqüilidade e flores, fazem do estudo um prazer.
“As classes intermediárias, dirigidas por nossa admirável Dna. Bertha,
formam-se em fila no salão nobre para tomar parte nos hinos, cânticos. Há
uma marcha rá p id a ...
“Vocês têm interesse de escutar as aulas? Alemão, com a graciosa e
competente Fraulein Mathilde; francês e português com o Sr. Raposo. E inglês,
matemática, história, geografia...
“Não estudam eles bem e não parecem bem espertos? Nosso estudo
bíblico está a acabar agora. É o único ensino religioso que muitos deles
recebem e não pode deixar de impressioná-los.
“Depois do jantar, às quatro horas, as moças internas fazem rápido
passeio; ou, se chover, um jogo de bola ou de “sacos de feijão”. Voltam às
pressas para ouvir a leitura de algum livro dos clássicos. Depois, na grande
sala de estudo, passa-se a hora agradável, süenciosa, ocupada, em estudo das
obrigações escolares, seguida de um chá e de uma noite grande de descanso.
No inverno e no verão levantamo-nos às seis horas; tomamos café, fazemos
ginástica, temos vinte minutos para devoções pessoais, uma lufa-lufa para
arrumarmos a casa toda muito bem”.
118
CAPITULO III
Introdução
1 Ferreira, Júlio A., 1959, 1.° vol., pp. 52, 53, 104, 134 etc., ver também apêndices 3 e 4
deste capítulo.
2 Lessa, Vicente Themudo, 1938, pp. 99 e 127; Ferreira, Julio A., 1959, 1.° vol., pp. 17.
119
curiosidade, interesse e indiferença. A maioria do clero brasileiro, espalhado
pelas vilas sertanejas, pacato e mais interessado, talvez na política e em seus
próprios negócios3 parecia estar mais curioso do que preocupado. Alguns, não
excluindo um ou outro bem situado na hierarquia, tendo como exemplo suges
tivo o Padre Feijó, manifestavam franca simpatia pelos protestantes. Neste
sentido, é muito atrativa a hipótese de que as idéias jansenistas que permeavam
o clero4 estivessem dando a sua contribuição para essa atitude, especialmente
por causa da centralidade bíblica da pregação protestante. O anticlericalismo,
como é sabido, tinha guarida em setores liberais da liderança política interessa
da na modernidade5. Isso podia conduzir esses setores da sociedade, senão ao
interesse, pelo menos à indiferença quanto à presença protestante. Por outro
lado, a maçonaria ao mesmo tempo que contava com a franca oposição
católica, era solidária com os protestantes e “muitas vezes ajudou as causas
protestantes”6. Realmente, e acima de tudo, parecia estar a Igreja Católica
em período de letargia e suas instituições principais em questionamento7.
A história dos atos de perseguições regra geral se insere nos quadros
dos atos particulares e individuais8, sendo logo condenados esses atos pelas
autoridades políticas e reprimidos pelos policiais, de acordo com a Constituição
do Império’. Mesmo quando a crônica procura realçar as perseguições, sendo
que em alguns casos elas foram mesmo violentas, pode-se dizer que nem o
Estado nem a Igreja Católica oficialmente se levantaram contra o protestan
tismo. Muito menos se registraram grandes levantes de massa como a história
registra em outras partes do mundo, à semelhança do que se deu na Ilha da
Madeira, em 1846, que dispersou totalmente os protestantes, vindo alguns para
o Brasil ajuntar-se à Congregação de Robert R. Kelley, no Rio de Janeiro,
indo outros para os Estados Unidos10. Estes últimos buscaram guarida num
país protestante, mas os primeiros ao se dirigirem para um país católico,
3 Benedetti, Luiz R., 1981, p. 66 e ss.; Carrato, José Ferreira, 1968, pp. 66/67.
4 Fragoso, Hugo, A Igreja na Formação do Estado Liberal, in História da Igreja no
Brasil, tomo 11/2, 1980, 211.
5 Exemplo sugestivo é Tavares Bastos. Ver Vieira, David Gueiros, 1980, pp. 95ss.
6 Vieira, David Gueiros, 1980, p. 279.
7 O interesse de Feijó pela vinda dos Irmãos Morávios para educar os indígenas (Ferreira,
Julio A., 1959, 1.° vol. p. 14) e a sua luta pela abolição do celibato clerical (Feijó, Diogo
Antonio, 1887) são exemplos deste questionamento. .
8 Tarsier, Pedro, 1936; Leite, Antonio Pedro Cerqueira, 1879 (o Autor deste manuscrito
se refere à tenaz oposição que lhe faz o Padre Sizenando, pároco da Faxina (hoje Itapeva — SP).)
9 Constituição Imperial, arts. 5 e 179; o pastor G.A. Landes registra no livro de atas do
Conselho da Igreja Presbiteriana de Rio Novo — SP, que dois soldados, por ordem do delegado,
tentaram interromper o culto que realizava. Informados os dois soldados de que tinham ordem
do Governo, levaram avante o serviço religioso. Mais tarde, o delegado informou que se
enganara por ter sido informado de que o culto se realizava na rua (a Constituição só permitia
cultos não-católicos em recintos fechados sem forma exterior de templo) — Livro n.° 1, fls.
25, 22/7/1883.
10 Braga, Henriqueta Rosa Fernandes, 1961, p. 107.
120
deviam estar relativamente seguros de que não seriam molestados por motivo
de religião.
Além desse clima político e religioso, se não favorável de todo, mas de
certo modo não repressivo soube o protestantismo encontrar uma brecha no
campo social por onde penetrou. O estudo das camadas sociais que compunham
a sociedade brasileira nos meados do século XIX, assim como as formas de
dominação política e religiosa, pode dar-nos a chave de como o protestantismo
evitou ou contornou os naturais obstáculos que lhe oferecia uma sociedade
patriarcal, informada por uma religião tradicional e do estado.
A história dos presbiterianos, denominação protestante que estou tomando
como modelo pelas razões já expostas, mostra que apesar de terem èles se
estabelecido nos seus primeiros dez anos no Rio de Janeiro, São Paulo (capital
e interior), Pernambuco e Ceará, o seu alto índice de crescimento em relação
às demais denominações e a eles mesmos nos anos anteriores" deve-se ao fato
de se terem embrenhado pelas zonas rurais da Província de São Paulo e zonas
fronteiriças da Província de Minas Gerais12. Aí encontraram as condições
favoráveis para expandir-se e fixar-se definitivamente. Pretendo explorar a
hipótese sugestiva de que os presbiterianos aproveitaram o momento da expan
são cafeeira e acompanharam o domínio rural na trilha do café, quando as
frentes pioneiras apresentavam uma população móvel e em estado de cresci
mento. Se tal não aconteceu com as outras denominações foi porque tentaram
penetrar nas áreas urbanas, onde as condições não eram favoráveis ao protes
tantismo, não só pela incipiência desses núcleos, como no caso de cidades e
vilas do interior, mas principalmente pela proximidade física da Igreja Católica.
Este último fator é válido, com maioria de razão, para os centros urbanos
mais importantes, as capitais e sedes de município.
A presença física da Igreja Católica não deve ser entendida só como área
de influência religiosa em que uma outra mensagem religiosa não encontrasse
espaço espiritual. Essa presença física era também uma presença jurídica, pois
que a formação dos bairros, vilas, cidades e municípios brasileiros está intima
mente ligada à Igreja. Havia terras devolutas em grande quantidade, mesmo
considerando as distribuições oficiais de sesmarias que eram feitas para
favorecer a colonização. Assim, os pioneiros iam chegando abrindo fazendas
e sítios, chamando parentes e conhecidos que, por sua vez, iam se estabelecendo
nas vizinhanças. Agricultores e criadores se multiplicavam. O sentimento
religioso do colonizador o levava, em breve, a erguer rústica capela onde logo
os vizinhos passavam a se reunir, para os atos religiosos.
Como testemunho de sua fé, o posseiro um dia procura o tabelião e faz
escritura pública de doação do terreno da capela e adjacências para o santo
de sua devoção, passando esses terrenos para uma pessoa jurídica, administra
dos pela Igreja. A fundação de Avaré-SP, por exemplo, é narrada assim:
121
“E m 1861, o major Vitoriano da Silva Rocha ergueu uma capela com
o nome de Nossa Senhora das Dores do R io Novo. Em 1862, o major
Vitoriano e seu vizinho e compadre Domiciano Santana vieram a
Botucatu e procuraram o tabelião Francisco Antonio de Castro para
redigir uma escritura de doação que ambos faziam de um terreno de
um quarto de légua (27 hectares) para o patrimônio de Nossa Senhora
das Dores. Nesse tempo já havia um cruzeiro em frente da capela e
oito casinhas de pau a pique, cobertas de sapé. A capela foi inaugurada
em 10/7/1861, dizendo a Missa ( l.a) que ali se realizou, com licença
do Sr. Bispo, o vigário de Botucatu, padre Joaquim Gonçalves Pache
c o . . . O Bispo de São Paulo, em 1870, criou a paróquia de Nossa
Senhora do Rio Novo”'3.
122
Não lhes restava alternativa a não ser as áreas rurais, distantes fisicamente
da Igreja e fora do patrimônio do santo.
Em outras regiões do Brasil onde o fenômeno do café não ocorreu, e
em que na época ainda predominavam os grandes engenhos, como no Norte
e Nordeste, e era ainda escassa a população livre, dispersa por grandes extensões
geográficas, principalmente na economia de pastoreio, parece ter o protestan
tismo aguardado o momento em que o urbano se desenvolveu suficientemente.
A evolução do protestantismo nessas áreas parece ter ficado à espera de um
outro ciclo de desenvolvimento, que foi a passagem do predomínio do rural
para o predomínio do urbano. O que estou querendo dizer é que o protestan
tismo nas áreas fora do âmbito da civilização do café foi predominantemente
urbano, mas teve de aguardar momentos de mudanças sociais propícios. E
esse momento só vai começar a se apresentar em princípios do século XX.
Considerando todos esses fatores julgo compreensível a curva tão expressi
vamente ascendente do crescimento dos presbiterianos entre 1859, ano de seu
início no Brasil, e 1905, quando começaram a ceder terreno para outras
denominações'7. Pretendo, pois, neste capítulo, investigar como os presbiterianos
se situam como raízes do protestantismo de missão no Brasil.
123
inserindo no sistema ao lado da imigração estrangeira é importante para se
entender como se deu a penetração protestante. Esse segmento de homens livres
e pobres tinha características peculiares que o distinguia de vários modos do
contingente estrangeiro. Entre outras características do imigrante que o tornava
pouco permeável à mensagem religiosa protestante estava o seu catolicismo
arraigado, no caso específico dos italianos em São Paulo, como componente
forte de sua própria cultura. Embora esta questão exija tratamento mais
aprofundado, é possível, pelo menos como hipótese, afirmar que a contínua
entrada de italianos, espanhóis e portugueses, reforçou e deu consistência à
religião dominante, isto é, o catolicismo, no momento em que ela mais precisava.
Este fator, quer dizer, a imigração de europeus católicos e de orientais
não-cristãos para os centros mais desenvolvidos do país, aliado a outras causas,
pode ter oferecido forte resistência à expansão protestante, tão promissora
nos primeiros tempos. Só tardiamente foi que a mensagem protestante atingiu
os imigrantes, principalmente os seus descendentes, mas isto já na fase urbana
do protestantismo.
A burguesia rural, representada pelos grandes proprietários de terras,
engajada no sistema capitalista de economia de exportação, no período consi
derado, isto é, na segunda metade do século XIX, politicamente dominante,
estava profundamente envolvida pela religião tradicional. A posse da terra e
o processo colonizador deram-se ao mesmo tempo e do mesmo modo com
que fora formada a ideologia nacional paternalista e hierárquica exatamente
dentro do modelo regalista e católico romano. É lugar comum na história do
Brasil o mesmo ideal milenarista dos povos ibéricos quanto à colonização de
novas terras, isto é, a implantação do “corpus christianum” à semelhança do
que foi dito a respeito dos norte-americanos21. Ê notável como a posse ideoló
gica é o instrumento de posse territorial e suas conseqüências. A absorção
cultural é condição para outras absorções no sistema de expansão capitalista22.
À burguesia rural brasileira não interessava nenhuma mudança de esquema
uma vez que o vigente lhe dava o conforto de uma situação consolidada, além
do que a ideologia religiosa católica viera com ela e como representante do
colonizador. Por outras palavras, a posse da terra e a colonização foram feitas
dentro do esquema monárquico, hierárquico e paternalista em que se confundem
as estruturas políticas e religiosas do reino português. Fortalece este argumento
o célebre regime do padroado regalista vigente em Portugal ao tempo dos
e a incipiente população urbana, restará um vasto contingente para compor a população livre,
rural e pobre. (Números extraídos de Cardoso, Fernando Henrique, in História Geral da
Civilização Brasileira, cap. I, vol. 8).
21 “Os jesuítas fizeram o trabalho de catequese para os colonizadores portugueses através
da religião e do ensino. Os protestantes para os americanos” (Bandeira, Moniz, 1973, p. 124).
22 Hoomaert, Eduardo, 1977, defende com vigor a tese de que a doutrinação católica no
Brasil foi sempre “uma imposição cultural” (ver especialmente o primeiro capítulo, embora a
tese se encontre presente por todo o livro, ao menos nas partes escritas pelo citado Autor.)
124
descobrimentos portugueses e da colonização do Brasil23 e que, curiosamente,
se estende até o final do regime monárquico brasileiro. Esse sistema é funda
mental para se conhecer bem a formação da classe dominante brasileira, uma
vez que a subordinação da hierarquia eclesiástica à hierarquia política fez
com que a ideologia religiosa assumisse o relevante papel de legitimadora do
sistema político de dominação. Por outras palavras, na medida em que o
grande senhor de engenho e do café, pelas circunstâncias especiais da povoação
do solo brasileiro e da respectiva distribuição do espaço geográfico, assumia
uma grande parcela de poder em suas mãos, estendia também esse domínio
sobre a própria religião que passava, através especialmente do dero secular
pobre e, até certo ponto, desamparado, a exercer o fraco papel de sacramen-
talizadora e legitimadora do poder político desse mesmo senhor de terras.
Hoomaert chama o produto dessa simbiose entre religião e poder local de
“catolicismo patriarcal”24.
É mais ou menos compreensível que a Igreja não tinha outra alternativa,
embora protestasse com freqüência, senão submeter-se a essa injunção como
decorrência histórica do poder do rei sobre a Igreja25. Assumia ela, assim,
aquele papel assinalado por Pierre Bourdieu26 de legitimada e legitimante
no sistema político social brasileiro. Isto é, Igreja e camada dominante estavam
muito entrelaçadas de modo que uma não podia sobreviver sem a outra, mas
isto com sensível desequüíbrio a favor da classe dominante representada pelo
senhor de terras. Se a burguesia rural representada pelos grandes latifundiários
inseridos no sistema de monocultura de exportação intentasse aceitar e assumir
uma outra forma ideológica que viesse no bojo de qualquer outra religião,
poria em risco o sistema e conseqüentemente os seus próprios interesses. Mesmo
que visse uma ou outra vantagem, haveria os riscos naturais das mudanças
de estrutura27.
É razoavelmente fácil concluir que a pregação protestante, principalmente
a presbiteriana, portadora de uma ideologia formalmente democrática e repu
blicana, dificilmente conseguiria atingir, de modo a alterar o comportamento,
a classe dominante brasüeira. Os historiadores do protestantismo brasileiro
23 Sobre o padroado, ver o mesmo Hoomaert, Eduardo, 1977, que trata mais ou menos
extensamente do assunto. É útil também, Ribeiro, Boanerges, 1973, p. 34ss.
24 Hoomaert, Eduardo, 1974.
25 É interessante observar as diferenças de comportamento entre os clérigos membros das
ordens religiosas, sempre tentando vencer as peias do padroado, e do clero secular, quase
sempre no papel de capelães de bandeiras, engenhos e fazendas, pobre e quase abandonado e,
por isso, dependente dos chefes das bandeiras e do senhor de terras. Ver Hoomaert, Eduardo,
1974 e 1977 e Oliveira Viana, 1973, vol. I.
26 Bourdieu, Pierre, 1974.
27 Sobre a profunda imbricação entre a estrutura político-social brasileira e a ideologia
católica há vários estudos. São bons exemplos Pereira de Queiroz, Maria Isaura, 1973, Freyre,
Gilberto, 1975, Monteiro, Duglas Teixeira, 1974. Parece valiosa nesse sentido, a literatura
regional, como José Lins do Rego, que mostra pitorescamente, a relação de subordinação do
padre ao senhor de engenho para os atos religiosos que ele mesmo, o senhor de engenho,
programa e faz executar.
125
fazem referências a alguns Barões do Império que manifestaram simpatia pela
ideologia protestante,28 mas não se encontra em nenhum deles, nem em outro
lugar qualquer, registro de que algum deles tenha sido admitido numa igreja
protestante. Há numerosas referências a conversões ao protestantismo de
famílias da elite brasileira de fins do século XIX, mas curiosamente, só na
linhagem feminina29 e, talvez por isso, suas descendências não tenham perma
necido nas igrejas protestantes por causa do tipo de constituição da família
patriarcal. Com algum cuidado pode-se distinguir ainda na Igreja brasileira
alguns nomes de brasão, mas já diluídos e sem nenhuma participação na vida
política atual. Acresce ainda que essas conversões femininas deram-se sempre
nas cidades, o que parece indicar que a vida urbana e o distanciamento do
núcleo familiar patriarcal que permanecia ainda na fazenda, as desligava de
certo modo dos compromissos do esquema em vigor. Assim é que, em 1878,
a Igreja Presbiteriana de São Paulo recebeu a adesão de “sete damas da mais
alta aristocracia brasileira”. Júlio A. Ferreira30 relaciona uma irmã do Marquês
do Paraná e do Barão de Santa Maria e ainda “a paulista de 400 anos,
Dna. Maria Antonia da Silva Ramos, filha do Senador do Império, barão de
Antonina”. A mesma Igreja de São Paulo recebeu, ainda, a adesão de várias
representantes femininas da família do Brigadeiro Luiz Antonio de Souza
Barros. São só exemplos. O levantamento total não daria cifra desprezível
dada a pequenez do grupo protestante que ensaiava seus primeiros passos.
Mas é importante não perder de vista o fator intrigante de que as adesões
só eram de mulheres.
Esta questão da presença da elite dominante no protestantismo brasileiro
teria de constituir um estudo à parte para verificar exatamente o que se deu,
e em que proporção, e se houve permanência. No entanto, volto a insistir
que há duas questões que devem ser levadas em conta. Primeiro, que essas
adesões foram proporcionalmente pequenas e não chegaram nem de longe a
influir na ideologia dominante principalmente, como já foi abordado, porque
se deram na ala feminina das famílias e, segundo, porque quando os historia
dores compreensivelmente triunfalistas, falam em fazendeiros deve-se desconfiar
de que se tratava de simples sitiantes31. Podiam ser até relativamente abasta
dos, mas isso não significava que pertencessem à burguesia agrária politicamente
dominante. Então, para os fins deste estudo, considero, a partir das razões
126
expostas, que a mensagem religiosa protestante no Brasil não atingiu a classe
dominante.
Quanto ao segmento escravo, pouco se tem a dizer no que se refere à
propaganda protestante entre eles. Se a mensagem protestante não teve acesso
ao grande fazendeiro na casa grande, muito menos à senzala32. Mesmo a
catequese católica dos escravos foi praticamente inexistente. Por ordem do
fazendeiro limitava-se o capelão a ministrar-lhes assistência religiosa nas épocas
propícias do calendário cristão.
Há, por outro lado, relatos de admissões de escravos às igrejas protestan
tes, mas trata-se, creio, na falta de maior precisão por parte dos registros,
de escravos domésticos, não do eito nem da senzala. Parecem ser, ainda,
não de propriedade de fazendeiros, mas de sitiantes que tinham condições
de possuir um ou outro para pequenos serviços, inclusive domésticos. São
geralmente escravos que acompanhavam as senhoras à igreja, e eram, segundo
o costume conhecido, quase tidos como da família33. Isso acontecia nas cidades
e também nos sítios, onde parece tratar-se de escravos nas mesmas condições34.
Esses casos indicam que havia uma camada de sitiantes relativamente abastados
e não ligados diretamente ao sistema, mas que tinham condições para possuir
alguns escravos. Não há, portanto, indícios de acesso da mensagem protestante
ao escravo da senzala e do eito, ligado ao grande latifúndio da monocultura
de exportação. A partir daí creio poder afirmar que o segmento escravo
inserido no sistema não foi objeto da ação missionária protestante35.
127
pelos meios rural e urbano, indo sua gama de ocupação desde a posse de
razoáveis porções de terra onde se ocupavam de, às vezes, prósperas agriculturas
de subsistência, em certos casos até com algum excedente, a paupérrimos
campesinos vivendo da simples extração dos meios de subsistência e, nos
centros urbanos incipientes, de pequenos expedientes36.
A questão fundamental desse segmento da população na segunda metade
do século XIX, principalmente a que habitava o vasto mundo rural, a que
me interessa para os fins deste estudo, é que era despossuído dos meios de
produção. Embora boa porção desse segmento possuísse terra, às vezes até
extensa, porque geralmente não era comprada, mas simplesmente ocupada nas
zonas pioneiras, não tinha meios para organizar empresa produtiva de bens
de exportação o que significava entrar no sistema capitalista e ascender à
camada dominante, embora isso pudesse se constituir em aspiração.
Essas propriedades constituíam o que comumente se chama sítio. É difícil
estabelecer a distinção entre sítio e fazenda, porque essa distinção se faz tendo
em vista a extensão da propriedade, quando devia ser feita a partir da forma
econômica de seu uso, isto é, se ela tem em vista a produção de bens de
subsistência, mesmo que ofereça algum excedente, explorada pela família, ou
se visa a comercialização extensa da produção, com uso amplo de mão-de-obra
escrava ou assalariada. No primeiro caso, teríamos a sítio e no segundo a
fazenda. O fato de aparecer um ou outro agregado ou assalariado, ou mesmo
algum escravo, juntamente com a família do sistiante, não alteraria a situação37.
O pequeno excedente dessa agricultura de subsistência quase nunca chega a
favorecer a acumulação necessária para que o dono da terra alcance o nível
da grande lavoura caracterizada pela monocultura com trabalho escravo ou
assalariado. De maneira que o modo de vida do sitiante continua sendo o de
pobre, uma vez que o seu único bem é a terra, de escasso ou mesmo nenhum
valor. Isto é provado pelo fato de que ela era abandonada com freqüência,
passando o seu ocupante adiante em busca de novas terras.
O campesinato brasileiro parece não ter noção de posse da terra, mas
só de seu cultivo, o que tende a indicar uma certa herança indígena, ao
contrário do notável apego à terra que deveria proceder de seus ancestrais
europeus. Alguns desses sítios constituíam marcos distantes e isolados de
ocupação do território, mas com bastante freqüência vários deles se localizavam
lado a lado como verdadeiros cortes longitudinais com cabeceira no mesmo
espigão e fundos para um rio comum. A casa principal, moradia do sitiante,
ia do barrote coberto de sapé à madeira aparelhada e coberta de tabuinhas
ou telhas de bica, pequena ou às vezes espaçosa, mas de qualquer maneira
revelando extrema simplicidade e pobreza no arranjo interno, sendo a falta
128
de ordem e limpeza uma constante. Esta foi uma constatação sempre chocante
para o viajante estrangeiro38.
A proximidade desses sítios produzia, regra geral, o bairro caipira tão
bem estudado por Maria Isaura P. de Queiroz e Antônio Cândido39, caracteri
zado pela capela, pela venda e por alguns moradores, constituindo rudimentar
centro comunitário. Os sítios distantes constituíam verdadeiro fator de isola
mento, sendo raras as incursões desses sitiantes nos bairros para fazer seus
suprimentos40.
Além dos sitiantes, outros moradores faziam parte do vasto mundo
rural. Famílias se estabeleciam nas fímbrias das grandes fazendas, formando
núcleos de moradores vivendo em regime de parceria com o fazendeiro
ou simplesmente, sob licença do mesmo, à custa de rudimentar agricultura
de subsistência41.
Para os objetivos deste estudo, isto é, verificar como foi possível a
aceitação do protestantismo pela sociedade brasileira e de que maneira ele
se expandiu, só vou considerar os núcleos de sitiantes, formando ou não
bairros, e os parceiros e agregados das grandes propriedades monocultoras
nas regiões do café, tentando fazer um levantamento das características dos
“homens livres e pobres” que são importantes para se compreender o fenômeno
da expansão protestante, caracteristicamente rural na sua implantação e
crescimento inicial42. Vou deixar de lado os sitiantes isolados porque ficaram
naturalmente fora da linha dos vendedores de bíblias e dos missionários43.
A partir dos mais importantes estudos feitos sobre o segmento da
população brasileira que me preocupa, vou tentar construir dele uma tipologia
a mais compreensiva possível e que sirva de base para a tese que pretendo
defender.
A integração do escravo à produção mercantil expropriou uma vasta
camada de homens livres dessa mesma produção. Os grandes latifúndios
deixaram ociosas grandes áreas das antigas sesmarias que puderam ser cedidas
para uso de outrem, o que ocorreu quando os sesmeiros, por doações legais,
incorporaram terras já ocupadas por posseiros. Para Maria Silvia de Carvalho
38 “Passei a maior parte do tempo no sítio de João Carlos Nogueira. A família é extrema
mente hospitaleira e cordial. Proporcionaram uma recepção sincera e mesa farta, embora servida
com pouca cerimônia. Mas a casa, tão descuidada e suja em conseqüência da falta de assoalho,
janelas e portas, porcos e frangos, cães, vacas, cavalos e mulas entrando e saindo, crianças
brancas e pretas engatinhando no chão, impediam-me de apreciar a hospitalidade” — (Simonton,
1962, p. 75).
39 Queiroz, Maria Isaura P., 1973 (A) e 1973 (B), Antonio Cândido, 1975.
40 A literatura regional mostra-nos o isolamento e a pobreza em que vivia o sitiante
avançado: Valdomiro Silveira, O Mundo Caboclo; Otoniel Mota, Selvas e Choças; Monteiro
Lobato, Cidades Mortas, Negrínha.
41 Antônio Cândido, 1975. Embora este estudo tenha sido feito mais ou menos recente
mente, reflete o mundo arcaico a que me refiro.
42 Reid, William R., s/ data, pp. 49/50.
43 “ . . . j á haviam organizado pelo menos umas doze igrejas nos centros mais importantes
das áreas rurais (grifo meu) — Reid, William R., ibidem, p. 50.
129
5 -C eleste porvir
Franco isso possibilitou a existência de homens não proprietários, mas que
tinham acesso ao uso da terra; não submetidos a pressões econômicas porque
o sistema não dependia deles; que não conheceram os rigores do trabalho e,
portanto, não se proletarizaram. “Formou-se assim uma ‘ralé’ que cresceu e
vagou ao longo de quatro séculos: homens a rigor dispensáveis, desvinculados
dos processos essenciais à sociedade”44.
Essa colocação de Maria Silvia permite estabelecer pelo menos quatro
categorias descritivas para o tipo humano de que estou tratando. Era indepen
dente porque tinha acesso à terra, ou por posse de devolutas ou por permissão
dos latifundiários, assim como não estava sujeito ao sistema; era livre porque
não era assalariado e muito menos escravo; era extremamente móvel em
decorrência dos dois fatores anteriores; era participante de um universo
igualitário por não haver, nele, nenhuma descriminação de autoridade. É bom
que fiquem livres de equívocos as expressões “independente” e “livre” . Estou
entendendo por independente o homem isento de dependência de qualquer
tipo e, no caso específico de que trato, não sujeito ao sistema e livre por
oposição ao escravo e às obrigações do trabalho regulamentado.
A independência desse tipo humano “sui generis” era tanto econômica
como política. Creio ser essa independência decorrente de sua simplicidade
de vida e conseqüentemente de suas parcas necessidades45, quase totalmente
supridas pela abundância da natureza circundante que lhe fornecia frutas e
verduras silvestres, caça e pesca acompanhada da criação de animais domésti
cos. A necessidade de bens de uso e de consumo, só obteníveis no mercado,
era suprida, ou pelo sistema de trocas ou pelo dinheiro obtido através de
pequenos excedentes da agricultura ou da predação46. Esta simplicidade de
vida era responsável pela sua independência econômica e, como conseqüência,
por sua independência política. Não estava ligado aos grandes senhores de
terras porque não dependia deles e nem ao governo porque, estando na
periferia do sistema, não estava implicado nas flutuações e demandas de
mercado do mundo capitalista47.
É certo que essa independência é relativizada em vários momentos pela
troca de favores econômicos e lealdade política entre fazendeiros e sitiantes,
como alguns estudos importantes evidenciam48, assim como a eclosão da
dominação nos momentos cruciais em que os interesses dos grandes proprie
tários eram postos em xeque. Mas esses mesmos estudos revelam que a
dominação só se dá no plano político, ficando pois o dominado livre em
130
outros setores da vida como a organização do trabalho e do lazer, as relações
familiares e vicinais e o mundo do pensamento49 e da religião. Essa área de
independência do sitiante era, talvez, gerada pelo igualitarismo50 e pelos resíduos
dos sentimentos de honra e cavalheirismo51 que regulavam as relações entre
as pessoas e, logo, entre os fazendeiros e sitiantes. Seria, portanto, mais justo
falar-se em interdependência, uma vez que, no plano das situações normais da
vida o fazendeiro pedia ao sitiante o seu apoio político,52 mas não interferia
nas demais formas de pensar e agir dos sitiantes. É verdade que instituições
de cunho religioso como o compadrio, ao tentar reforçar a situação de igual
dade só fazia acentuar uma certa assimetria nas relações entre uns e outros.
Creio, no entanto, que mesmo essa assimetria só se tomava transparente no
plano das relações políticas, quando o fazendeiro esperava do sitiante a sua
contraparte em lealdade política. Não vejo, portanto, razões que impeçam
considerar o sitiante como independente nos níveis de condução de sua vida
pessoal.
Há ainda um outro ponto a considerar. Não se deve exagerar as conse
qüências desse relacionamento entre sitiantes e fazendeiros a ponto de se
construir a tipologia do sitiante a partir dessa relação. É certo que numerosos
sitiantes isolados ou reunidos em grupos vicinais não mantinham relações com
fazendeiros por não existirem estes na região. Numerosos bairros caipiras
viviam distantes das fazendas e suas relações eram simplesmente familiares e
vicinais. Nesses casos, a autonomia podia deixar de ser relativa para ser
integral, mesmo no plano político53. Nesse sentido, parece-me ser típico para
os fins deste estudo, o mundo arcaico que Antonio Cândido descreve,54 que se
projeta como um verdadeiro recorte do passado. O mesmo se pode dizer dos
agregados que, vivendo nas fímbrias das grandes fazendas, fímbrias estas às
vezes ainda não incluídas na monocultura escravista, gozavam de liberdade
desde que não perturbassem os interesses do fazendeiro. Eram estes agregados,
às vezes simples inquilinos vivendo de favor em terras da fazenda, úteis ao
fazendeiro para preservar os limites de suas terras e garantir-lhe, de certo
modo, a posse ou evitar esporádicas intromissões. Eram como que sentinelas
de seus vastos domínios.
A segunda característica do homem “livre e pobre” era exatamente a
sua liberdade. Por liberdade estou entendendo a sua totaldisponibilidade.
Podia ir e vir, organizar o seu trabalho, ocupar o seu tempo como bem lhe
aprouvera. Nenhuma regulamentação o atingia. Como diz Maria Sylvia, “eram
homens a rigor dispensáveis, desvinculados dos processos essenciais à
131
sociedade. A agricultura mercantil baseada na escravidão simultaneamente abria
espaço para sua existência e os deixava sem razão de ser”55.
A terceira era a sua mobilidade. Não estou preocupado com as causas
dessa mobilidade,56 mas somente em considerá-la como um fato influente no
que pretendo demonstrar. Parece-me plausível afirmar que a mobilidade desse
segmento da população brasileira está ligada, pelo menos em parte, ao desapego
à terra, oriundo não de um atavismo qualquer, mas de sua pobreza. A falta
de meios para construir casas boas e duráveis, instalações adequadas para a
guarda dos excedentes da produção (galpões, currais, cercas limítrofes etc.) e,
principalmente, a incapacidade material para cultivar adequadamente a terra,
permitindo que ela logo se mostrasse pouco produtiva, exigia do homem pobre
o abandono periódico de seus sítios ou de seus cultivos de agregação ou de
parceria. Em poucos anos, quatro ou cinco, as terras estavam fracas e já com
os primeiros sinais das “pragas” (ervas daninhas, formiga), a casa e as cercas
em ruínas. Era mudar para construir tudo de novo em terras ainda não
ocupadas ou nas orlas das grandes fazendas que ainda tinham terras virgens
e disponíveis.
E, por último, os homens livres e pobres constituíam o setor mais escassa
mente regulamentado da vida social. Estavam mesmo à margem e distantes
da vida social organizada, com divisão de trabalho e discriminação de autori
dade. Diz Maria Sylvia: “Basta lembrar que o soldado, o padre, a autoridade
pública estiveram sempre referidos a instituições alheias ao mundo caipira”57.
Os núcleos de povoamento eram feitos sempre na base de núcleos de famílias
independentes, sitiantes, posseiros ou proprietários, mas todos com acesso à
terra em igualdade de posição social58. A vida rústica e simples sem divisão
de trabalho não sustenta formas de especialização e nem estratificação social.
Daí o igualitarismo presente no interior desses grupos59.
A vida comunitária gira em tomo de três setores fundamentais: a proximi
dade espacial (vizinhança), a cooperação (trocas de dias de trabalho, mutirões
e ajuntamento para construção ou conservação de estradas vicinais etc.) e o
ser comum (parentesco). Como a competição não está presente porque ela
pertence à sociedade regulamentada, todos os setores apontados, estavam
permeados pelo lúdico, mas na própria falta de estrutura social lúdica, o
lúdico acabava envolvendo as pessoas, os corpos das pessoas. As atividades
lúdicas tendiam a estabelecer os valores pessoais, isto é, a dar o lugar devido
ao valor de cada um. A violência e o lúdico caminhavam de parelha.
132
As relações de vizinhança se davam em dois níveis: a troca de favores,
especialmente de alimentos60, e as ocasionais festas, principalmente religiosas,
que pareciam ser freqüentes dados os numerosos dias santificados. O escritor
anônimo da história de Avaré-SP assim descreve uma dessas festas:
“Todos os domingos havia ladainha ‘puxada’ pelo major Vitoriano,
na capela, com a presença da caboclada. Após a ladainha, no terreiro
da capela, Chico Biriba, famoso violeiro da redondeza, entoava com
aplauso geral, modinhas sertanejas. Depois, o major distribuía quentão
jeito com pinga de seu pequeno engenho de açúcar”.6'
A cooperação, embora se desse em diversos planos, adquiriu o seu símbolo
no mutirão, já suficientemente estudado por muitos autores. O meu interesse
aqui reside na intensa expressão de competição pessoal e na permeabilidade
ao lúdico que o mutirão apresenta. No momento oportuno retomarei a este
ponto.
As relações de parentesco são caracterizadas ainda, na linha de expo
sição de Maria Sylvia, por relações exclusivamente pessoais, faltando nessa
cultura da pobreza os referenciais econômicos, cujos níveis de interesse podiam
colocar em outro plano as relações estritamente pessoais. Isto é visível na
família tipicamente patriarcal. Na família patriarcal, a sua constituição se assen
tava sobre a tendência para a formação de poderosos grupos econômicos. Como
diz Maria Sylvia, “A família moldou-se dominantemente para realizar essa
função ordenadora das relações sociais, antes que para resolver problemas, de
ordem emocional ou sexual” .62 Por ilação, e sem querer simplificar demais,
pode-se dizer que a família da cultura da pobreza se constituía para resolver
estes problemas. São seguramente bases frágeis, fundadas estritamente em
relações de ordem diretamente pessoal.
Linhas atrás afirmei que o lúdico caminhava de parelha com a violência.
Mas antes seria preciso dizer que a competição e o lúdico seguiam a mesma
trilha. Como a sociedade não oferecia àqueles homens estrutura em que os
níveis de ascensão e auto-afirmação fossem independentes das pessoas e isto
por causa da falta de divisão de trabalho, as tarefas comunitárias eram mo
mentos propícios para a competição. Os canais de prestígio estavam abertos
para aqueles que revelassem mais destreza e competência na realização de
tarefas. A ausência de referenciais externos para a avaliação das “perfor
mances” abria espaço para o confronto direto entre as pessoas. Mais ainda
pelo fato da ausência daqueles referenciais, a competição assumia caracte
rísticas lúdicas, o colorido do jogo. Por outro lado, a pobreza e a vida à
margem da sociedade não propiciava àqueles homens outra forma de preen
chimento do lazer. De maneira que, tanto no trabalho como no próprio lazer,
60 Antonio Cândido, 1975, pp, 143 e 209. A instituição do “potlatch” foi extensamente
estudada por Mauss, Mareei, 1971.
61 Avaré, 1939.
62 Franco, Maria Sylvia de Carvalho, 1976, p. 42.
133
a competição colorida pelo lúdico estava presente. Ora, em tudo isso, o con
fronto pessoal direto gerava extrema violência por ser a única forma de afir
mação pessoal. Tanto no trabalho como nas festas de fim de mutirão, casa
mentos, batizados ou domingueiras no povoado da capela, o potencial de
violência estava presente.
As simples relações de vizinhança também propiciavam motivos para a
violência. O não cumprimento do princípio do “potlatch” podia ocasionar
malquerenças geradoras de violência. Aliás, Mareei Mauss no seu estudo sobre
o “potlatch”, liga-o à rivalidade e à guerra entre clãs43. É sugestiva a hipó
tese de que o princípio da prestação e contraprestação de favores ligados à
cultura da pobreza, além de se constituir em meio de repartição de alimentos,
num ambiente social caracterizado pela carência de tudo, como diz Antônio
Cândido, “tenha seus fundamentos antropológicos em ritos muito antigos, regu
ladores da paz e da guerra. A complicadíssima etiqueta da oferta e aceitação
de alimentos, por exemplo, tão bem observada e descrita por Antônio Cân
dido, geradora, quando não suficientemente observada, de ressentimentos pro
fundos e duradouros”64, não dificilmente desencadeadores de atos de violência,
parece ser elemento fortemente regulador de relações de vizinhança ao lado
do trabalho comunitário. Maria Sylvia descreve as circunstâncias de um assas
sinato entre vizinhos em que cenas de oferta e consumo de aguardente e
comida desembocam em ato de violência extrema65.
As relações de parentesco, por se situarem ao nível das relações pessoais
muito fracas, eram facilmente perturbáveis por interesses irrisórios. Maria
Sylvia analisa vários relatos de violência interfamiliar por questões de tra
balho, de alimentos e outras em que surge “a labilidade do conteúdo das
relações pessoais definidas com base em vínculos íntimos e não submetidos a
controles formalmente estatuídos”66.
Em suma, a violência como componente essencial da cultura da pobreza
revela a fraqueza dos laços sociais em todos os níveis que regulavam a vida
dos homens livres e pobres. A luta e a violência permeavam o cotidiano e o
valor pessoal é o único instrumento de conquista de um lugar no espaço
social67.
134
com o objetivo de mostrar como uma nova religião teria escassas vias de
acesso tanto à camada dominante quanto à de escravos. Para isso, foi neces
sário levar em conta a estreita vinculação entre a classe dominante e, por
conseguinte o Estado, com a religião representada oficialmente pela Igreja
Católica. Espero ter ficado claro que naquele “spectrum” o nível de discussão
era o da religião oficial, institucional. Ali, a religião era a do “Deus estabe
lecido”48, o catolicismo patriarcal em que o padre, capelão e mestre, estavam
mais ligados ao senhor de terras do que ao bispo, não tendo nenhuma ligação
com o povo, não formando portanto comunidades. Desse modo, sua função
tinha um colorido mais legitimante e estabilizador do sistema do que propria
mente religioso.
A organização da Igreja se confunde com a estratificação política:
“Nos velhos documentos paulistas, bairro sempre aparece como divisão
administrativa da freguesia, que o é por sua vez, da vila. Esta era a sede da
Câmara e Paróquia e cabeça de todo o território, quase sempre vasto; a
freguesia supunha um núcleo de habitação compacto e uma igreja provida
de sacerdote, geralmente coadjutor do vigário da paróquia; o bairro era divisão
que abrangia moradores esparsos, não raro com sua capelinha e às vezes
cemitério”49.
Assim, a presença oficial da Igreja se confunde com a presença da socie
dade organizada hierarquicamente, com sua organização de trabalho e sistema
de valores70. O bairro, às vezes com sua capelinha e cemitério, e os moradores
esparsos pela amplidão do território, ainda em processo de ocupação, com
punham o mundo do homem livre e pobre, com suas características já des
critas e com a sua religião. Se a religião do mundo organizado e estratificado
era a do “Deus estabelecido”, a religião do mundo dos homens pobres era a
dos “santos nômades”71.
Se tomarmos como referencial teórico o que Bourdieu propõe como
universos propícios à diferenciação entre “monoteísmo” e “politeísmo”, o
mundo dos homens pobres com seus “santos nômades” corresponderia a esta
última forma de religião. De fato, o mundo dos homens pobres com sua
economia indo da coleta à uma agricultura primitiva, era o universo dos
deuses múltiplos e nômades. Naturalmente, à medida que os espaços geográ
ficos iam sendo alcançados e incorporados à exploração mercantil e, conse
qüentemente, incluídos nas cartas políticas, os santos nômades tendiam a se
transformar no Deus estabelecido da religião oficial. Se for possível descartar
qualquer preconceito de valor com referência à relação entre politeísmo e
monoteísmo, é extremamente atraente a idéia de que o processo de expro
priação religiosa, teoricamente muito bem desenvolvida por Benedetti, corres
135
ponde ao processo da clássica passagem de uma estrutura indiferenciada de
produção religiosa, peculiar à ausência de divisão de classes, para uma estru
turação expressamente diferenciada de produção e gestão de bens religiosos,
em que o surgimento da classe sacerdotal, no plano da dominação religiosa,
corresponde à dominação no plano sócio-político.
Embora o processo de expropriação religiosa seja importante para o meu
propósito, vou abandoná-lo para retomá-lo mais adiante. O importante agora
é tentar levantar algumas características sugestivas da religião do homem pobre,
ou melhor, de seu campo religioso. Toda vez que se intenta a teorização do
popular esbarra-se com dificuldades. Por isso, vou buscar somente caracte
rísticas que, ao mesmo tempo que são mais ou menos aceitas, sirvam paia
os meus objetivos teóricos. De maneira que não haverá nada de novo nesta
exposição.
Em primeiro lugar, a religião do homem pobre era uma religião difusa.
Não sistematizada, estava em tudo e em todos. Era produzida e consumida
como o eram os outros bens necessários à existência. Era coletiva e indife
renciada, sem autonomia como o era a própria sociedade a ela correspon
dente. Correspondia, assim, ao que Bourdieu afirma:
" . . . domínio prático de um conjunto de esquemas de pensamentos e
de ação objetivamente sistemáticos, adquiridos em estado impUcito por
simples familiarização e, portanto, comuns a todos os membros do grupo
e praticados segundo a modalidade pré-reflexiva. . .”n
O fato de ser difusa não significa caos e competição, ou se quiser-se,
fraqueza. Ao contrário, a religiosidade do homem pobre dava sinais de pro
fundo enraizamento nos atos comuns ou dramáticos do cotidiano. A descrição
que Maria Sylvia faz da cena dos últimos momentos de um assassinato73 intro
duz formas de comportamento religioso, que refletem a religião como um
componente fundamental da vida e que, nos seus componentes simbólicos,
pode-se encontrar a tessitura de uma visão mágica do mundo, razoavelmente
coerente. Na cena em questão, uma das pessoas presentes pergunta ao mori
bundo se ele queria ser ajudado a “bem morrer” . Diante da resposta afirma
tiva, seguiu-se a reza. Sem dúvida, está presente a crença em boas e más
alternativas para um mundo futuro e que a reza tem um poder mágico para
assegurar o melhor. A bênção que o moribundo dá aos seus filhos reproduz
a relação de poder entre o sagrado e os homens. A vela acesa que lhe colo
caram nas mãos traduz “a correspondência analógica entre a chama da vela
e as luzes divinas”74.
A difusão a que me refiro é a qualidade de oposição a qualquer sistema
de dominação ou imposição por parte de um corpo autônomo de gerência
136
religiosa. Significa, ainda, a crença comum em objetos e palavras com poderes
mágicos para definir o destino das pessoas. Não é exagero dizer que a religião
do homem pobre tinha uma razoável uniformidade neste aspecto.
Em segundo lugar, como já foi sugerido, pelo menos como um refe
rencial teórico, a religião santorial do homem pobre revela um colorido poli-
téico pela presença de numerosos santos de devoção regional, familiar e pes
soal. Isto não afasta a crença cristã institucionalizada no “deus único e verda
deiro”. Ela devia estar por trás de toda a prática religiosa dele, mas a neces
sidade de uma proximidade maior com o sagrado, uma intimidade mesmo
com ele exigia uma forma de intermediação que ele não tinha à mão pela
ausência do sacerdote. Este fato pode ter favorecido as formas de especiali
zação dos santos, o que não excluía as devoções familiares e pessoais que,
às vezes, não levava em conta as especializações. O santo da casa servia para
todas as ocasiões. Uma visão mais ou menos abrangente da religião santorial
parece mostrar uma certa racionalização das necessidades existenciais e de
seus canais de satisfação. É como diz Bourdieu:
“Nem o pensamento nem a atividade religiosa encontram-se igualmente
distribuídos entre a massa de fiéis. Conforme os meios, as circunstâncias,
tanto as crenças como os ritos são percebidos de maneira diferentes”75.
137
Mas, diz ainda Pedro A. R. de Oliveira, tanto a aliança quanto o con
trato entre o fiel e o santo têm como marca característica o relacionamento
direto e pessoal. O devoto não precisa de intermediários e nem o santo é
uma entidade abstrata longe de seu alcance. Ao contrário:
" . . . vai diretamente a ele, conversa com ele, expõe seus problemas,
agradece as 'graças’, ou simplesmente presta seu ato de culto”78.
Julgo importante assinalar que uma das fontes importantes usadas por
João Dias na sua construção do “Cristo brasileiro” foi a literatura de cordel.
A figura e a presença de Jesus Cristo na teodicéia do catolicismo popular
brasileiro foram historicamente formadas ao longo do catolicismo ibérico, e
mesmo brasileiro, através de circunstâncias e componentes diversos. No en
138
tanto, um fator lembrado por Hubert Lepargneur83 parece ser muito signifi
cativo: a falta de aparato conceituai e filosófico, por parte do catolicismo
popular, para operar a síntese metafísica do Deus-Pai (espiritual) e do Deus-
Filho (encarnado). Daí, a presença muito pouco significativa de Jesus Cristo,
ora como o Cristo-Morto ora como o Cristo docético (desencarnado) como
verifica João Dias. Se essa articulação constitui historicamente um desafio
para o teólogo profissional, é lícito imaginar-se o que representa para o cris
tianismo popular, aduz ainda Lepargneur.
Para concluir esta tentativa de reconstrução da teodicéia da religião do
homem livre e pobre, resta registrar o aspecto predominantemente messiânico
que ela parece apresentar e que decorre entre outros fatores não menos impor
tantes, de sua cristologia. Sigo aqui a hipótese muito atraente que ainda
acompanha a linha de raciocínio de Lepargneur. A dificuldade que atinge o
cristianismo popular para operar a síntese entre Deus-Pai e Deus-encamado
produz nele duas saídas: ora Jesus Cristo é confundido com Deus-Pai (Deus
encarnado) ora ele aparece na galeria dos santos menos invocados. Se enten
dermos, como o faz Lepargneur, que o cristianismo comporta duas interpre
tações fundamentais, uma na linha das religiões de salvação (salvação como
vida bem-aventurada além desta vida terrestre e outra na linha das religiões
messiânicas (a universal reconciliação de tudo e de todos na história) será
possível perceber o colorido messiânico que a história social do Brasil apre
senta. O relacionamento popular com o Deus-Pai, espiritual e afastado do
mundo, orienta mais para uma salvação além da vida terrestre, ao passo que
as afinidades do povo com os seus santos, exemplos temporais de sofrimentos,
humilhações e renúncia a um mundo pecador e injusto, pode produzir modelos
de um mundo historicamente reverso do presente.
Agora, algumas questões de ordem mais sociológica com respeito à reli
gião do homem pobre. A primeira é que ao nomadismo do homem pobre,
seguia-se o nomadismo religioso. Sua religião santorial possibilitava esse noma
dismo; o lugar do santo de devoção pessoal ou familiar era o nicho, o altar
caseiro ou a bandeira fronteira à casa. Altares, nichos e bandeiras eram tão
transitórios quanto a casa mesma. Os santos emigravam com seus devotos
como os parcos utensílios da casa. Mesmo quando os sitiantes pediam com
empenho às autoridades a ereção de capela em seus bairros, não estavam
aspirando ao estabelecimento da religião, sua fixação ao espaço, mas a assis
tência religiosa do padre, de outro modo impossível. Presença temporária
e esporádica do padre significava ao mesmo tempo, a desobriga periódica
dos deveres religiosos, só possível mediante o agente religioso oficial, e a
autonomia do campo religioso construído e mantido pela difusa ação cole
tiva. Assim, ao nomadismo dos homens e de seus deuses, seguia-se a itine-
rância do padre.
“ . . . a preocupação por parte dos sitiantes pobres, apenas com a pre
sença ocasional do padre, traduz a ausência de controle religioso efetivo
139
da Igreja através do especialista, produtor, reprodutor e difusor dos bens
de salvação”*4.
140
de teodicéias87. Esse confronto não se deu nos níveis da classe dominante
com possibilidades iguais entre a católica e a protestante. Ao contrário, ali,
embora contasse com a simpatia de alguns políticos e intelectuais liberais —
Tavares Bastos, Rui Barbosa, Abreu Lima e, quem sabe se até o Imperador
— o nível de interesse seguramente não foi o religioso. Ele se deu nos planos
intelectual, político e ideológico, em voga no momento. Esta questão já foi
explanada no início deste capítulo.
O confronto de teodicéias, na linha da exposição de Peter Berger, ocorreu
na camada dos homens livres e pobres da população rural. A pregação pro
testante encontrou ali, não somente um espaço social aberto, mas interstícios
através dos quais pôde penetrar e ocupar pequenos claros deixados pela reli
giosidade dominante. Não quero afirmar que o protestantismo só ocupou es
paços vazios, caso em que não teria havido confronto. Na parte c. deste
capítulo procurei mostrar que havia realmente um certo distanciamento reli
gioso entre a camada dos homens pobre e as agências religiosas oficiais, e
isto deixava um espaço maior para o confronto. Por outro lado, o balanço
entre as duas teodicéias apresentou, pelo menos a alguns pequenas grupos,
vantagens para o lado protestante. É este balanço que pretendo fazer nesta
parte.
Quando se estuda o contato das missões protestantes com a população
brasileira, pode-se ter uma falsa idéia de impacto, principalmente se partirmos
dos historiadores protestantes e dos relatórios dos missionários, naturalmente
triunfalistas por causa de seus sucessos parciais e locais vistos pelo prisma de
seus ideais religiosos. Mas desde que se tenha o distanciamento necessário
para uma visão de conjunto, sente-se que esse contato foi fraco e fragmen
tário e, justamente por isso, apesar de todo o esforço e dos recursos dispen-
didos pelas missões, o Brasil esteve longe de se protestantizar. Fica logo
descartada, portanto, a idéia de impacto. O que pretendo mostrar é a maneira
pela qual o protestantismo conseguiu penetrar e ocupar um certo espaço e,
principalmente, que a única via que encontrou para essa penetração foi a
camada livre e pobre da população rural.
O levantamento do conteúdo da mensagem protestante no Brasil deve
ser feito, não abstratamente a partir das doutrinas históricas da Reforma, mas
concretamente sobre os sermões publicados pelos missionários e pastores na
cionais, de seus artigos em revistas, jornais e livros publicados no Brasil e
dos cânticos sagrados impressos para uso nos serviços religiosos. Mas o que
está nesse material todo é a mensagem oficial, produto da teologia do tempo,
já um tanto distanciada da Reforma. Mas, de qualquer modo, era a teologia
oficial emanada das missões. Mas essa mensagem foi apresentada a uma
camada social com características muito próprias e que tinha o seu campo
religioso estruturado. O problema real é saber como essa camada social recebeu
essa mensagem e de que modo a assimilou e reproduziu. Isto é, o meu inte
resse é conhecer o protestantismo no mesmo nível em que a camada social
141
que o recebeu vivenciava a sua anterior religião. Em suma, desejo encontrar
a crença do protestante comum brasileiro. Isto não é fácil, especialmente
quando se trata do protestantismo, religião exclusivamente discursiva e ética.
Sua expressão são palavras e formas de conduta, e nada mais. Quero captar
o “popular” no protestantismo, a mensagem oficial filtrada e reinterpretada
e, quem sabe, reinventada. A única via que encontrei foi a análise dos cân
ticos sagrados que, por um processo de seleção natural por parte do receptor
da mensagem, pode conduzir-nos à percepção aproximada do sistema de
crenças do protestante comum. A ética foi, sem dúvida, um ajustamento am
biental da oficialmente ensinada. “A religião popular não deixa testemunho
e scrito .. . sintoma de religião dominada. Estamos num terreno em que se
trabalha muitas vezes apenas com hipóteses”88. Os cânticos protestantes estão
escritos, mas os critérios de sua seletividade e de sua interpretação pelo povo
nunca o foram.
Desejo fazer o levantamento proposto em dois níveis: primeiro, a prega
ção oficial e os canais que lhe franquearam a penetração. Isto será feito agora;
segundo, as formas de assimilação dessa mensagem, o que será feito nos dois
últimos capítulos deste trabalho segundo o método proposto. Haverá, ao longo
da exposição que se segue, algumas antecipações necessárias mas somente a
título de exemplos de doutrinas expostas.
Primeiramente, o protestantismo que nos chegou através da pregação
missionária estava estreitamente vinculado ao liberalismo que no século XIX
permeava tanto o pensamento europeu como o norte-americano. A primeira
e única missão inglesa que se estabeleceu no Brasil89, e cuja mensagem não
divergiu das missões norte-americanas, já demonstrava que o liberalismo atin
gira o protestantismo também na Europa90. O protestantismo embora no período
pós-Reforma tenha se manifestado, por vezes, tão intransigente quanto o cato
licismo no que se refere à liberdade religiosa, posteriormente passou a pro-
pugnar essa liberdade à medida que o liberalismo tomava corpo. Desse modo,
não é ilógico que no Brasil, em que o pensamento liberal encontrava tantos
adeptos, as missões passassem a fazer intensa pregação liberal no sentido de
conquistar, contra a religião do Estado, as prerrogativas inerentes à liberdade
religiosa.
O protestantismo norte-americano, assim como o inglês da “HELP FOR
BRAZIL”, dava ênfase muito grande à liberdade do indivíduo quanto à sua
salvação, isto é, para aceitar ou recusar a salvação. Essa responsabilidade
individual que veio em certo momento histórico a ser comum a quase todo
142
o protestantismo norte-americano91 parece ter dominado toda a pregação mis
sionária protestante no Brasil, sendo realmente uma novidade a valorização
do indvíduo, especialmente se considerada a camada social que recebeu dire
tamente esta mensagem, composta por homens cujos referenciais de valor resi
diam quase que somente no confronto pessoal em que a violência era decisiva.
Outro ponto a considerar é o igualitarismo da pregação protestante que
afirma serem todos os homens iguais perante Deus em virtude da universa
lidade do pecado92. Embora os protestantes aprçsentassem esta mensagem, é
bem possível que não estivessem pensando em mudar a ordem social no sen
tido de qualquer forma de nivelamento, mas na aceitação do “status quo”
com a consolação de que na vida futura todos seriam iguais e, ainda que as
posições atuais de nada adiantariam na hora do julgamento final93.
A doutrina da salvação pela fé e pela graça, ponto fundamental da
Reforma, é básica na mensagem protestante. Ao contrário da Igreja Cató
lica, que ensina serem as obras pias fundamentais para a salvação, cuja interme
diária é a Igreja, a pregação protestante afirma que a salvação é uma decisão
individual oriunda da responsabilidade exclusiva do indivíduo perante Deus e
não depende de nenhum ato moral e nem de ofertas votivas ou filantrópicas94.
A salvação é gratuita pela fé no ato expiatório de Jesus Cristo. O volunta-
rismo individualista, presente na teologia dos missionários, foi um produto
relativamente tardio de Reforma Calvinista. Esta questão já foi discutida no
capítulo 2 e será retomada no capítulo 6 deste trabalho.
O protestantismo se apresenta, ainda, como uma visão maniqueísta do
mundo. O mundo presente é mau e o homem nele luta e sofre como um
143
peregrino até chegar a uma terra feliz, e este final venturoso depende da
forma de vida que ele escolher95. A idéia de peregrinação foi sempre, sem
dúvida, um patrimônio comum das denominações protestantes no Brasil, pelo
menos das de origem missionária96. Por essa doutrina, o indivíduo é levado
a conformar-se com sua situação penosa atual, uma vez que a sua permanência
nela é efêmera em comparação com a feliz eternidade futura97.
Uma visão coerente da história é patrimônio de todo o cristianismo. O
catolicismo rústico brasileiro, apesar de sua propensão para movimentos mile-
naristas, o que à primeira vista pode sugerir alguma visão sobre o desenrolar
da história, aparentemente não desenvolveu algo de significativo nesse sentido.
Esta questão de mentalidade milenarista será discutida mais adiante, no capí
tulo 7. O protestantismo, porém, mais discursivo e intelectualizado, buscou
desde logo um tempo histórico estruturado em torno de suas doutrinas do
pecado e da salvação. O mundo é apresentado como originalmente bom e
logo depois desordenado e corrompido pelo pecado para aguardar, em sofri
mento e com resignação, sua regeneração futura e eterna. Esta visão do mundo
inserido num tempo linear de três épocas contém a parte fundamental da
doutrina cristã e aparece com clareza na mensagem protestante em que o fiel,
como colaborador de Deus, empenha-se e espera pela vinda do mundo rege
nerado em que ele, assim como todos os fiéis, será feliz. Esse mundo novo,
a-histórico, colocado além do tempo, às vezes parece confuso ao entrecruzar-se
com idéias divergentes, ao introduzir noções de espaço vertical, como a do
universo clássico de três andares: céu, terra e inferno. Aqui, o mundo intem-
poral e feliz confunde-se com um lugar no céu. De qualquer modo, tanto um
como outro significa negação do presente estado de coisas, o mundo da história.
Ao morrer, o fiel tem garantido um lugar no céu e, após o grande julgamento,
viverá no mundo perfeito e eterno. Apesar disso, a noção de tempo se superpõe
à de espaço porque afinal sobrevirá um tempo a-histórico para substituir o
presente. O lugar no céu-espaço — acaba cedendo ensejo a um não-tempo
144
porque o céu significa eternidade. De modo que o conceito de tempo pre
valece sobre o de espaço. Mas o caminhar da história desembocará também
num outro mundo intemporal, mas de eterno sofrimento, para o qual, após o
grande julgamento, o infiel será enviado. A história, no seu desenlace, se bifur-
cará. Cabe ao indivíduo escolher desde agora o caminho que quer seguir:
aceitar este mundo com seus prazeres temporais e entrar, após, num outro
de sofrimentos eternos ou negar este com seus atrativos efêmeros e gozar eter
namente no porvir. A escolha é individual, de modo que cada um participa
livremente da escolha de seu destino eterno. Mas como este mundo é mau
para o fiel, a história deve ser abreviada; para isso, o fiel colabora porfiando
na propagação da fé numa verdadeira guerra contra o mal em que o crente
se alista como soldado98.
O mundo protestante é um mundo dual. É um tempo dual; tempo sagrado
e tempo profano. O fiel vive a sua fé em atos que se realizam no tempo, suas
devoções não estão ligadas ao espaço; qualquer lugar é adequado e sagrado
para as suas devoções pessoais ou coletivas. Seus atos, sua ética, ao negarem
os dos infiéis, constroem um outro tempo que é aquele em que ele vive. O
tempo intemporal, a-histórico do futuro, é também dual: o de felicidade eterna
e o de sofrimento eterno.
Creio ter mostrado como a mensagem protestante tem uma vigorosa
coerência interna que estrutura a realidade e apresenta com clareza ao indivíduo,
para que ele escolha a forma de se inserir nessa realidade. E mais, que nessa
mensagem, o tempo se superpõe ao espaço e que a relação do fiel com o
sagrado é ética e não utilitária. Negando o tempo presente de prazeres o seu
prêmio consistirá, não em retribuições efêmeras, mas na aquisição de um não-
tempo futuro de felicidade.
A mensagem protestante proporciona ao fiel, como conseqüência dessa
estruturação da realidade, normas de vida que o orientam de modo seguro. É
espiritual, isto é, transcendente e pragmática ao mesmo tempo. Se o crente está
neste mundo e aqui tem de viver enquanto aguarda a irrupção de outro
melhor, deve fazê-lo de acordo com certas regras que tendem a caracterizá-lo
como um inconformado com o atual arranjo das coisas, de modo que suas
ações são inconformistas. Este é um dos estranhos paradoxos do protestantis
mo: sua maneira de viver é inconformista diante da sociedade mais ampla,
mas nada faz para mudá-la como um todo. Antes, despreza-a e dela procura
afastar-se. Nisto se resume todo o seu inconformismo. Há um amplo confor
mismo e um inconformismo particular interno. Se o crente está na luta ao
lado de Deus, tem de agir segundo os seus mandamentos: guardar o domingo,
não matar, não roubar, não adulterar, não mentir, não beber, fugir dos pra-
145
zeres, não ser ocioso". Enquanto ele se esforça por viver em conformidade com
essas regras que colidem, na prática, com a sociedade abrangente, ele é incon-
formista; mas como está interessado num mundo que ainda está por vir,
desinteressa-se pelo presente e nada intenta para modificá-lo e, neste sentido,
é conformista. Assim, é inconformista e conformista, ao mesmo tempo.
Em resumo, a teodicéia protestante é radicalmente transcendentalista na
relação do fiel com o sagrado. A sua interpretação do cristianismo, a partir
da dicotomia estabelecida por Lepargneur,100 é predominantemente a de uma
religião de salvação; a salvação é gratuita através de uma concessão soberana
de Deus aceita pelo fiel através da fé que consiste num ato individual e
voluntário. É solidamente cristológica; Cristo, além de exercer a função de
único mediador entre o fiel e Deus, no protestantismo brasileiro, como tentarei
mostrar mais adiante, chega a incorporar as três pessoas da Trindade. A visão
da história aparece bem estruturada no sentido linear, e o seu caminhar ganha
sentido pelo implícito maniqueísmo muito bem elaborado no seu interior. Por
fim, a relação do fiel com o sagrado dá-se no plano estritamente individual;
as relações entre as pessoas, no plano religioso, são igualitárias porque as
posições e bs haveres não contam na relação fiel-sagrado.
3 . TEODICÉIAS EM CONFRONTO
146
na “Palavra de Deus”. A graça, diz Peter Berger, é o único e verdadeiro
milagre protestante. O mundo em que o protestante vive é um mundo desen
cantado.
Por outro lado, para o católico, a divindade não é tão radicalmente trans
cendente e a humanidade não é tão radicalmente decaída. A distância entre
Deus e os homens não é tão longa; entre eles há uma variedade de canais de
comunicação.
147
protestantismo, diante da expectação da vitória final do bem num embate
cósmico, é a formação de uma mentalidade messiânica passiva.
Até aqui tentei mostrar as distinções que se podem encontrar entre ambas
as teodicéias. Entendo que a distinção mais significativa, até este ponto, reside
no comportamento do católico e do protestante a respeito do mundo. Ê claro
que esse comportamento decorre das teodicéias correspondentes, mas é im
portante para compreender-se o encaminhamento do protestantismo na his
tória do Brasil.
Agora algumas questões correlatas. A pregação do protestantismo continha
um elemento importante: o individualismo. A aceitação e a prática de uma
religião dependia de uma decisão individual. Ora, no catolicismo popular embo
ra o coletivo não deixe de estar presente nas ocasiões especiais, como nas
festas, romarias e reuniões em torno da capela, o culto propriamente é privado,
a devoção ao santo nas suas várias formas é individual103. Por outro lado, os
antecedentes políticos do protestantismo davam-lhe um caráter igualitarista,
justificado teologicamente pelo texto bíblico “Todos pecaram e carecem da
glória de Deus”104. Ora, a contínua ameaça de expropriação religiosa fazia
com que o homem pobre sentisse na própria pele o mundo desigual em que
vivia105. Pode ser que o igualitarismo protestante fosse uma mensagem religiosa
que fizesse eco, de um lado à própria situação de igualdade social do homem
pobre; e de outro lado, à resistência dele à expropriação religiosa em favor
do sistema de dominação. Benedetti entende que a instituição católica do
compadrio, embora constituísse um mecanismo de igualização, só conseguia
revestir de caráter religioso as relações assimétricas entre senhores e depen
dentes106. Se está certa a colocação feita sobre o igualitarismo protestante,
pode-se entender melhor o esvaziamento que ele fez da instituição do
compadrio.
Por último, a questão da itinerância. O sagrado protestante, radicalmente
transcendente, não estava sujeito ao espaço. O seu espaço era o espaço ocupado
pelo fiel. De modo que os indivíduos ou grupos imigravam sem preocupação
com os “lugares dos deuses”. A igreja migrava, os pastores itineravam. O
Deus protestante, embora estabelecido, nada tinha a ver com o nomadismo do
homem pobre. O católico migrava e com ele os seus deuses. Sagrado e fiel
itineravam. Os padres, como os pastores, também eram itinerantes. De modo
que, estabelecidas as necessárias nuanças, o catolicismo e o protestantismo
do homem pobre eram nômades107.
148
a) Prós e contras; uma balança viciada
Feito o confronto das duas teodicéias, cabe agora tentar verificar como
a protestante conseguiu vencer o bloqueio de uma teodicéia estabelecida há
séculos, componente vigoroso da cultura de todas as camadas sociais. Ela, a
teodicéia protestante, encontrou naturalmente os interstícios, os espaços através
dos quais se inseriu. O protestantismo não mudou o colorido e muito menos
fissurou a cultura brasileira. Embora o confronto de teodicéias possa significar
mudanças sensíveis naquela já estabelecida com as conseqüentes mudanças
sociais, sendo isto empiricamente verificável, o inverso também pode ocorrer,
isto é, que as mudanças sociais estruturais podem alterar as idéias religiosas108.
Isto se insere na questão “bergeriana” da plausibilidade de uma determinada
teodicéia. Embora Peter Berger conduza sua análise da relação dialética entre
religião e sociedade na direção da compreensão do fenômeno da secularização,
em que a credibilidade da religião é progressivamente posta em xeque, ela é
importante para a percepção do confronto protestantismo-catolicismo ao nível
das respectivas crenças.
Realmente o confronto não foi no sentido de uma opção radical. A men
sagem protestante veio na forma de uma nova proposta que, dadas as condições
já descritas da camada social que a recebeu, oferecia alternativas plausíveis,
Janto ao nível das crenças como ao das condições de existência. Vou tentar
mostrar, em seguida, como isto se deu no interior da camada social dos homens
livres e pobres. Mais adiante, como a classe dominante da burguesia rural,
não opôs resistência à nova religião.
Em primeiro lugar, a mensagem protestante encontrou um espaço religioso
rarefeito. A população pobre do mundo rural era esparsa pela vastidão do
território, formando núcleos distantes uns dos outros. As distâncias entre esses
núcleos e a precariedade dos meios de comunicação faziam com que fossem
praticamente auto-suficientes. À rarefação da população seguia-se o seu no-
madismo. Fator e motivos destas afirmações têm sido muito estudados e aceitos
de modo que é possível designar como rarefeito o campo religioso do homem
livre e pobre da população rural. Núcleos pequenos, distantes e extremamente
móveis, eram precariamente alcançados pelos agentes da religião oficial, e isto
abria espaço para uma autogestão religiosa, uma autonomia no campo religioso
que podia muito bem abrir brechas para outras formas de pensar religioso.
Em segundo lugar, acompanhando a pesquisa de Benedetti sobre o campo
religioso de Campinas109, é possível que o constante temor dos sitiantes diante
da expropriação religiosa a que estavam sujeitos, uma vez que ela acompanhava
a expropriação de seus domínios, abrisse campo para o rompimento com a sua
religião, pelo menos no nível do inconsciente. É claro que a expropriação
simbólica ocorria do mesmo modo, não sendo necessário dizer o mesmo sobre
a terra. É uma hipótese sugestiva esta de uma forma impotente de reação.
149
Em terceiro lugar, a presença do padre, representante do poder dominante,
ora ele mesmo senhor de terras, ora como expropriador do simbólico, não era
simpática ao sitiante. Daí a preferência deles por capelas em que a presença
do padre era esporádica, só por ocasião das desobrigas ou dos ritos da vida
e da morte. Este fator pode ter aberto pequenos espaços para o missionário
ou o pastor protestante. Eles, pelo menos aparentemente, estavam muito longe
daquilo que o padre representava como agente expropriador. A começar pelos
trajes deles que, embora citadinos, não eram clericais; por outro lado, sendo
estrangeiros na maior parte e morando nos centros urbanos mais adiantados
e distantes, não estabeleciam relação visível com os grandes senhores de
terras"0. O missionário e o pastor nacional, ao contrário do padre, hospeda
vam-se nas casas humildes de seus paroquianos, comiam à mesa deles, tomando
vivo o princípio do igualitarismo.
150
Essa descrição corresponde às que se encontram nos relatos dos missio
nários e quase todos os protestantes sabem como ela é verdadeira. Nenhum
material litúrgico. Nada que significasse despesas a não ser a hospedagem dos
missionários e pastores, muito espaçadas. Há registros de que nas permanências
mais longas eles alugavam casa para si mesmos, proviam suas próprias despe
sas. Os proventos deles vinham das missões estrangeiras. O sistema continuou
ainda durante muito tempo até que os protestantes começassem a contribuir
para o culto. Mas no início a nova religião nada exigia de seus parcos recursos,
o que podia, entre outros, ser um fator de atração.
Em quinto e último lugar, o nomadismo para o protestante podia ser
ainda mais simples do que para o católico. Embora reconhecendo que teorica
mente a hipótese seja de consistência duvidosa, ela pode ser adicionada às
demais como, pelo menos, uma tentativa de explicação a mais. Os santos do
catolicismo popular estão muito ligados ao espaço; há um momento qualquer
marcado por um evento qualquer que liga um determinado santo a um deter
minado espaço. Isto ocorre no catolicismo popular embora, quase sempre, e
posteriormente, a religião oficial acabe sancionando essa espacialização do
sagrado. Quando isso ocorre com os santos de “aliança”, a que se refere
Pedro A. R. de Oliveira112, os seus fiéis são obrigados a cumprir seus deveres
de devoção para com eles através de penosas e dispendiosas caminhadas. É
verdade, como demonstra Benedetti, que os santos acompanham o nomadismo
de seus fiéis, mas a tendência do catolicismo é a sacralização do espaço e o
processo de expropriação religiosa que persegue tenazmente o sitiante pobre,
acaba introduzindo um elemento a mais na perturbação de seu campo religioso.
Parece que, mais uma vez, a opção da teodicéia protestante pode se tornar
atraente por ser ela desligada do espaço. O protestante emigra e onde ele se
estabelecer o seu Deus lá está. Ou melhor, já lá estava. Nada tem de levar
consigo e nem voltar ao encontro de seu santo que se fixou ao espaço que
para trás ficou. Como já disse, pode esta razão não ser crucial, mas se cons
titui num interstício, por mais estreito que fosse, oferecido à mensagem e à
prática religiosa protestante.
Em resumo, o campo religioso rarefeito, o temor constante da expropria
ção religiosa, a recusa do padre como sinal dessa expropriação, a pobreza
do receptor da mensagem protestante e, finalmente, o nomadismo religioso
que parecia oferecer nuanças de vantagem ao protestantismo, afiguram-se ter
sido as pequenas brechas através das quais, o protestantismo penetrou na
camada livre e pobre da população rural113.
No jogo dos prós e contras estabelecido pelo confronto das teodicéias
protestante e católica pode se insinuar a idéia de equilíbrio de forças, e mesmo
de um certo favoritismo para o protestantismo. Mas a balança estava viciada.
Havia poderosas resistências à implantação do protestantismo que, se não forem
percebidas, deixarão no ar questões fundamentais a respeito da presença do
151
protestantismo no Brasil. Por isso, na falta de uma balança de precisão, é
necessário, pelo menos, ter uma bem aferida e não esquecer de colocar no
prato nenhum dos pesos.
Essas forças de resistência ao protestantismo são de duas naturezas:
uma interna, isto é, componente da própria mensagem protestante, e outra
externa, quer dizer, componente do meio que a recebeu. Essas forças conju
gadas é que viciam a balança, uma vez que a teodicéia protestante parecia ter
tão boas razões de plausibilidade quanto a católica.
Pode parecer contraditório afirmar que o protestantismo resiste-se a si
mesmo. Mas essa contradição está na sua natureza e tende a se tornar mais
ou menos poderosa em suas áreas de missão, principalmente em países tradicio
nalmente católicos. Isto porque as respectivas teodicéias não oferecem oposição
tão radicais como regra geral se pensa e como já tentei mostrar; e as razões
de opção entre uma e outra podem ficar um tanto diluídas o que, provavel
mente, não acontece em áreas de missão ocupadas por religiões não-cristãs em
que a opção é radical.
A dificuldade de natureza interna que o protestantismo tem para penetrar
em áreas de cultura católica oferece dois aspectos. O primeiro é o seu excessivo
institucionalismo e o segundo é o seu intelectualismo. O excesso institucional
protestante começou com a sua implantação nos Estados Unidos, mas o em
brião já surgira nas igrejas livres da Inglaterra nas lutas eclesiásticas de pós-
Reforma. O excesso institucional a que me estou referindo é a constituição
de igrejas autônomas por associação voluntária por oposição ao universalismo
da Igreja Anglicana. O rito de ingresso nas igrejas livres era mais rigoroso e
os membros eram inscritos no livro de rol. O denominacionalismo americano
parece ter reforçado essas exigências diante da necessidade de auto-identifica-
ção por causa da concorrência entre as denominações. Ora, num país católico
como o Brasil a religião era oficial e universal. Os meios de rompimento com
ela eram escassos e o rigor institucional protestante, como se comprova pelos
documentos existentes, tornou-se muito apurado. Os que iam simpatizando com
a “nova religião” eram observados por algum tempo para que as evidências
de sua nova fé pudessem ser patenteadas, após o que eram submetidos a exames
de experiência e conhecimentos religiosos. Muitos candidatos eram reprovados
apesar do desejo natural de aumentar constantemente as fileiras de adeptos.
O ingresso do neófito, após a sua aprovação, implicava em compromissos for
mais e públicos perante a congregação reunida de assumir um comportamento
que evidenciasse, diante da sociedade mais ampla, a sua nova opção religiosa.
Daí por diante estaria sujeito a uma disciplina rigorosa exercida pela própria
comunidade a que passara a pertencer. O ingresso numa igreja protestante
significa o rompimento com a cultura, às vezes até com laços familiares114.
114 Os livros de Atas das igrejas presbiterianas atestam a disciplina rigorosa a que estavam
submetidos os fiéis. No Livro da Igreja Presbiteriana do Rio Novo lê-se que, em 13/3/1887,
foi suspenso da comunhão, Ananias Dias da Costa por “crimes de fomicação e embriagues”
(Livro n.° 1, fls. 42). No Livro de Atas da Igreja Presbiteriana da Faxina (Itapeva-SP), lê-se
que Paula Augusta de Souza foi “suspensa da comunhão da igreja indefinidamente e de todos
os privilégios da Igreja por ter confessadamente quebrado o Sétimo Mandamento do Decálogo”
152
O protestantismo, apesar de estar se esforçando por penetrar numa
camada da sociedade brasileira caracterizada pelo analfabetismo, única via
que lhe era oferecida, parece não ter em momento algum aberto mão de
seu intelectualismo. Tanto não abriu que se esforçou por criar condições pró
prias para introduzir-se, expandir-se e permanecer. Já procurei mostrar que
uma de suas estratégias foi a educação por intermédio de escolas paroquiais.
Apesar de ser este um aspecto muito positivo do protestantismo tendo em
vista o serviço que prestou à uma coletividade praticamente à margem do
sistema e, conseqüentemente da educação, pode ter sido nos primeiros tempos
sério entrave para o aumento quantitativo de seus adeptos uma vez que as
adesões eram de adultos e eles ainda não tinham tido acesso à alfabetização.
O culto protestante não inclui o gesto e a imagem, não oferece o apoio do
sensível: ele é discursivo e racional, mais uma aula do que um encontro com
o sagrado. O pequeno espaço reservado à emoção corre por conta do cântico
congregacional, mas os hinos também são discursos. De modo que a partici
pação no culto protestante exige um significativo domínio da linguagem. Por
outro lado, as provas de ingresso no rol de membros incluíam conhecimentos
bíblicos que pressupunham leitura ou pelo menos a memorização de questões
essenciais obtidas pelo ouvir. Mas ler a Bíblia fazia parte do essencial do
cotidiano protestante. Daí, exigir-se conhecimentos bíblicos, tanto no rito de
admissão como no do batismo de crianças em que os pais se comprometiam
solenemente a “ler a bíblia com os seus filhos'15. Daí ser possível afirmar que
um dos traços mais louvados do protestantismo pode ter sido no Brasil um
componente negativo dadas as condições sociais que enfrentou, no momento
de sua implantação.
A dificuldade de natureza externa que o protestantismo teve para penetrar
foi apresentar-se como uma contracultura. Ao exigir de seus adeptos comporta
mento radicalmente diferenciado das normas de conduta usualmente aceitas
não somente afastou a maior parte dos possíveis simpatizantes mas provocou
reação por parte da sociedade mais ampla. Vou considerar aqui dois aspectos
desta questão: primeiro, o rompimento com o lazer e com o lúdico e, segundo,
a sua ética. É claro que a quebra do lazer e do lúdico e a ética são verso e
reverso de uma mesma moeda. O que desejo considerar aqui, porém, é a
resistência da cultura estabelecida que isolou, naturàlmente, os grupos pro
testantes, não lhes oferecendo espaços para a convivência do cotidiano.
As oportunidades de convivência daquela população rarefeita ocorriam
nos dias de lazer, domingos e dias santos e no trabalho comunitário como os
(Livro n.° I, folhas 48, 1887). Trata-se de adultério. A Ata do dia 10/4/1888, do mesmo Livro,
fls. 63, registra o fato muito curioso de que Luís Antonio de Ávila, não tendo cumprido sua
promessa de deixar a profissão militar e continuando, portanto, a violar o Quarto Mandamento,
foi suspenso da comunhão da Igreja por tempo indeterminado. O Quarto Mandamento refere-se
à guarda do domingo. Naturalmente, por ser militar, o acusado não podia deixar de trabalhar
aos domingos.
115 Nas referidas atas da Igreja Presbiteriana do Rio Novo-SP encontram-se registros
como este: “Foram examinadas Sebastiana Maria Gertrudes e Rita de Camargo, mas não foram
recebidas por não terem ainda o necessário conhecimento.” (Livro 1, Ata de 23/4/1882).
153
mutirões. A convivência nestas situações era colorida pelo lúdico; festas na
capela, jogos de cartas, de malha e outras competições. Ora, além da tradição
protestante repelir o ócio, negava-se a respeitar os dias santos porque estavam
ligados à religião que haviam repudiado, e a desrespeitar o domingo que era
o seu dia de guarda preceitual116. Os mutirões, exemplos típicos do trabalho
comunitário do homem livre e pobre, eram motivos para festas após o dia de
labor, com o correspondente consumo de bebidas alcoólicas. Os mutirões
constituíam as melhores ocasiões para a violência, tanto pela competição pessoal
que ensejavam, como pela ingestão de álcool. Ora, o protestante era contra o
álcool e contra a violência, o que podia afastá-lo das oportunidades de traba
lho comunitário117. A recusa do lúdico por parte do protestante não se limitava,
porém, aos aspectos da abstinência do álcool e do repúdio à violência; a
festa no seu todo, a dança118 e o cântico eram signos do profano. O profano
não podia ocupar o tempo do protestante; o tempo protestante é um tempo
inteiramente sagrado.
A ética protestante, restritiva e severa em todos os aspectos da vida,
concorria como elemento fortemente diferenciador e identificador do grupo e
do indivíduo na sociedade abrangente. A ética protestante parece ter forne
cido aos grupos que o aceitaram um forte elemento de coesão, organização
e identificação social, um sub-sistema mais ou menos diferenciado do sistema
vigente. A ética do protestantismo não traz em si nenhuma novidade para os
que conhecem os trabalhos de Max Weber, mas o que me parece muito suges
tivo é que no Brasil essa ética parece sugerir uma certa assimetria com a
teodicéia proposta. O transcendentalismo radical assim como a corresponderite
e também radical idéia de desvalorização do homem, produz um vazio histó
rico. Ò mundo histórico do cotidianQ não vale, é efêmero e ilusório. Ora,
isto deveria ter como correspondente um abandono total, uma fuga geográfica.
Mas a teodicéia protestante, cuja transcendental radicalização teve conseqüên
cias muito importantes no Brasil como tentarei mostrar nos capítulos poste
riores, contentou-se com a sua ética tradicional que, nas suas origens européias,
foi vista como um poder suficiente para alterar estruturas sociais.
O confronto de teodicéias entre o catolicismo rústico e o protestantismo,
que me parece não ter sido uma opção radical ao nível das crenças, não podia
deixar de se constituir em visões diferenciadas do mundo: o mundo mais ou
menos mágico do católico, em que os problemas do cotidiano eram solucionados
na base das trocas simbólicas do dar e receber, ajustes imediatos sem maior
116 No mesmo livro de atas, citado na nota 115, está registrado que um adepto foi
suspenso da comunhão porque “entregava-se a passeios aos domingos, não indo aos cultos”
(Ata de 15/11/1880).
117 Willems, Emílio, 1947, pp. 30-40, entende que o comportamento dos protestantes
metodistas dos bairros de Cunha com respeito aos mutirões concorria para a desorganização
social tendo em vista a alteração de relações vicinais básicas.
118 O autor deste trabalho lembra-se de ter assistido a festas de casamento em que se
dançou o cateretê. Isso parece significar que a razão principal da intolerância ao baile era a
promiscuidade de sexos, o que não ocorre no cateretê.
154
preocupação com a totalidade do real, não era o mesmo mundo do protestan
te em que os ajustes entre as forças do bem e do mal se apresentavam com
dimensões cósmicas, muito além da capacidade humana de participação. O
campo religioso bifurcava-se em dois discursos diferentes em que o protestante
via-se, de repente, num mundo desarticulado, “anomizado”. A urgência de
restabelecer o “nomos” tem sua correspondência na construção de uma ética
que insira o indivíduo numa ordem que reproduza a ordem cósmica119. Assim,
a ética do protestante brasileiro surge nele como normas valorizadoras da
vida e do mundo quando a sua teodicéia parece conduzir ao oposto.
No contexto da mensagem protestante a sua ética surge como normas do
provisório, como modo de vida da espera e da recusa, da desqualificação do
mundo. Num universo pouco coeso socialmente, regulado por normas frágeis
e cujo traço principal era a violência como força reguladora das relações
entre os grupos e indivíduos, os protestantes se propuseram a seguir um ética
que os afastou radicalmente do universo em que viviam. O melhor exemplo,
e já clássico entre os protestantes, são as normas de vida que um sitiante e
líder leigo de um grupo de protestantes em Minas fez circular entre os
adeptos (“Recomendações aos Crentes”):
1. O crente não pode ficar ocioso, nem mesmo uma hora por semana.
Se ficar estará perdendo tempo e roubando o sustento de sua
família.
2 . O crente deve ter uma casa limpa, mesmo que ela seja um rancho.
Ele também deve ser limpo. Jesus ama o pobre mas condena a
preguiça.
3 . O crente não mente. Isso é condenável.
4 . 0 crente não faz dívidas. Não pagar ê roubar.
5 . O crente não é triste. Ele é o templo de Deus.
6 . O crente não é fanático, mas com amor procurará atrair os pe
cadores aos pés de Jesus.
7. O crente não deixa de pagar impostos, mesmo que eles sejam pe
sados.
8 . O crente não leva arma quando vai ao culto.'20
Não é difícil perceber como essas normas de vida deviam soar estranhas
no universo cultural em que o protestantismo se introduziu. A recusa na dia
lética religião-sociedade foi seguramente mútua, embora isso não signifique
que os protestantes não tenham pela austeridade de vida que sustentavam,
gozado de certa admiração e respeito.
119 Berger, Peter, 1$71: “ . . . esta realidade dirige-se a ele e insere sua vida numa ordem
que possui uma significação última”, p. 41.
120 Chaves, Maria de Melo, Bandeirantes da Fé, apud Pierson. Paul, 1974, p. 104. Como,
infelizmente, não tive acesso ao livro de Maria de Melo Chaves, muito conhecido e citado,
não houve alternativa a não ser reverter do inglês ao português a citação de Paul Pierson.
155
A institucionalização excessiva, com suas exigências e obrigações, assim
como o intelectualismo, limitaram, sem dúvida, o ingresso de adeptos no pro
testantismo. A sua ética muito distanciada dos padrões vigentes na sociedade
brasileira fizeram do protestantismo uma contracultura. Os protestantes acaba
ram se circunscrevendo a grupos pequenos, fechados. Para o católico, o pro
testante era ou outro, o de fora. E vice-versa. Por isso, no confronto de
teodicéias a balança estava viciada.
156
Valdomiro Silveira12', mostra como um sitiante protestante e liberal, embora
sempre levasse desvantagem diante de seu oponente mais forte, talvez econo
micamente, mas por certo politicamente porque votava no governo, era tole
rado até com certa simpatia. Era visto mais como um teimoso do que como
um inimigo.
Resta ver a questão da lealdade compadresca. Essa relação, quando assi
métrica, podia reforçar bastante as relações não só de lealdade, mas tam
bém de dependência. Sendo o compadrio uma instituição católica, era natural
mente desqualificada pelo protestante, mas possuo algumas experiências pes
soais que me levam a estabelecer a hipótese de que os compromissos de
compadrio assumidos antes da conversão eram mantidos pelo protestante, quer
dentro quer fora do grupo. Faz parte das minhas recordações da infância o
tratamento de compadre entre protestantes e entre estes e católicos. É certo
que o campadrio se constitui numa forma de aliança sacralizada, mas entendo
que ele não se constitui em entrave radical para a opção religiosa protestante.
O fundamento religioso podia ser desqualificado pelo protestante mas os laços
sociais podiam permanecer. Aliás, é o que parecia realmente contar. Em suma,
quando a mensagem protestante começou a ser apresentada como uma opção
religiosa, parece não ter encontrado obstáculos no plano das relações sociais,
tanto econômicas como políticas ou religiosas.
O outro ângulo da questão, quando se procura entender a penetração
do protestantismo tendo em vista as possíveis reações por parte da classe rural
dominante, é o modo de vida protestante, a sua ética. Já mostrei que a ética
protestante ao lado de outros traços de sua teodicéia se constituiu em elemento
regulador negativo do crescimento da nova religião, o que por si só já afastava
a ameaça de perturbação do “status quo”. Uma simples leitura daquelas “Re
comendações aos Crentes” já mostra que gente que adotava tais princípios
como normas de vida, não somente deixava de criar problemas, mas poten
cialmente se constituía em elementos favoráveis ao sistema.
Os núcleos protestantes constituíam-se num mundo à parte sob todos os
ângulos da vida social: a relação comunitária era reforçada pelos ideais comuns,
pela fraternidade que de certo modo substituía o compadrio e pelas normas de
comportamento ordenadas da vida num plano exterior e superior ao do mero
nível pessoal, de modo a eliminar ou reduzir o potencial de violência. Era
gente ordeira, pacífica, de confiança nos negócios e, acima de tudo, não afeita
à ociosidade. Muito embora os núcleos protestantes continuassem, como todos
os homens pobres, à margem do sistema, as relações com eles, tanto no plano
individual como comunitário, eram sempre bem vistas. Se havia recusa, era
por parte do protestante, mas isto ocorria sempre no aspecto lúdico de vida
social e não no dos negócios. O modo de vida dos protestantes era esquisito
por negar todos os valores vigentes. Mas eram simpáticos. Esquisitos mas sim
páticos.
157
4 . NA H ULHA DO CAFÉ
122 Como certas áreas do Triângulo Mineiro, como Alto Jequitibá e o Bairro dos
Coutinhos, em Borda da Mata, e na Província de São Paulo como Jericó, no Município de
Cunha, descrito por Willems, 1947. Os protestantes do Triângulo Mineiro foram descritos por
Maria de Melo Chaves, 1947.
123 Exemplo mais recente é a vigorosa presença protestante no Norte do Paraná, região
do café nos anos 30.
158
por causa de hábitos de agricultura tradicional sedentária e por força de
contratos com o fazendeiro, não tinha disposição e nem liberdade para deslo-
cações constantes. Daí, embora esta hipótese requeira maior verificação, creio
poder-se dizer que o trabalhador nacional, e entre eles os protestantes, foi o
pioneiro na expansão do café'24. É surpreendente a mobilidade do trabalhador
rural, mudando sempre de local, em busca de plantações novas125.
Partindo da Baixada Fluminense, o café toma o rumo de São Paulo e,
acompanhando os antigos caminhos do século XIX, estabelece-se no Vale do
Paraíba e daqui se estende transpondo a Mantiqueira, de Embaú a Minas e,
pela Serra do Mar, escoa-se pelos portos de Ubatuba e São Sebastião126. Do
Sul de Minas sobe, acompanhando a linha fronteiriça correspondente à Pro
víncia de São Paulo. Por esta Província desloca-se no sentido oeste via Cam
pinas, para o norte e para o interior acompanhando a linha de Araraquara e,
mais para o centro, Jaú, Bauru e assim por diante. Entre 1870 e 1890, a deca
dência da cafeicultura no Vale do Paraíba já era notória. A região despovoa-se
e paralisa-se127.
Ao acompanhar a trilha do café o trabalhador livre leva seus hábitos de
vida e de uso da terra, inclusive seus traços predatórios. Como a lavoura de
café é permanente e só é compensatória como atividade comercial, ela é quase
exclusiva nas grandes propriedades e, a não ser nos primeiros quatro anos, a
partir do plantio, não admite outra cultura, mesmo cíclica e intercalada. Deste
modo, a lavoura de subsistência, ocupação preferencial do trabalhador livre,
só é admitida nas grandes plantações de café nos primeiros quatro anos de
sua abertura.
O ciclo de atividades do trabalhador livre pode ser discutido assim: o
fazendeiro abre uma nova fazenda ou novas frentes em seu próprio território,
planta o café e entrega o seu cuidado ao trabalhador livre que, em troca
desse cuidado, tem licença para intercalar milho, arroz, feijão, mandioca, fumo,
leguminosas e algumas frutas nos carreadores. Geralmente o contrato era feito
por quatro anos, porque, a partir daí, por causa da altura do cafeeiro já em
produção e do início do cansaço da terra tem de cessar o plantio intercalado.
159
Daí por diante, outras formas de contrato deviam ser feitas, principalmente
a do trabalho assalariado, o que não era muito do feitio do homem livre. A
sua propensão para o trabalho mais livre fazia-o partir para novas frentes em
que pudesse continuar com os seus hábitos de lavoura de subsistência, abando
nando suas casas precárias que, a essa altura, já estavam em ruínas128.
Os núcleos mais estáveis foram constituídos pelos sítios que iam sendo
montados na mesma trilha por pioneiros, ocupando terras devolutas e que
procuravam aliar o plantio de pequenas áreas de café (de três a cinco mil pés,
na medida dos braços que a família possuía) à lavoura de exportação, uma
vez que a quantidade de café que plantavam ultrapassava de muito às necessi
dades do autoconsumo. Talvez o café lhes proporcionasse, ao lado de outros,
os excedentes necessários para a aquisição de bens de mercado. Mas o que
realmente importa é que talvez o café fosse o principal responsável pela
relativa estabilidade de alguns sitiantes, o que permitiu a formação de bairros
na medida em que a vizinhança ia aumentando.
Já vimos como a mensagem protestante se ajustava, interna e externa
mente, ao tipo de vida dessa camada da população. Não estando a religião
protestante ligada ao espaço, mas sendo seu Deus radicalmente transcendente,
o nomadismo podia ser até mais fácil para eles do que para os católicos.
Onde estivessem alguns, ou mesmo uma só família, ali estava a igreja. O
caminhar protestante na trilha do café foi um pontilhar de pequenas comuni
dades, rurais na sua quase totalidade e constituídas de núcleos familiares
extensos como regra geral, nos sítios, bairros e fímbrias das grandes fazendas
de café129. A formação de comunidades protestantes independia da presença do
agente oficial da religião. Elas surgiam com a simples presença de uma pessoa
ou de uma família que, dado o campo religioso católico rarefeito, se propagava
através da influência do leigo. Os missionários e pastores iam na esteira e
regra geral, nada mais faziam do que oficializar e institucionalizar essas peque
nas comunidades. Feito isso, iam adiante e deixavam-nas entregues a si mesmas.
As comunidades protestantes eram essencialmente leigas e se autogeriam na
falta de pastores. Diz Boanerges Ribeiro:
160
Aí estão, nesse autor bem documentado, as notas distintivas das primeiras
congregações protestantes: núcleos pequenos, distantes de seus respectivos
centros de poder e com escassa assistência dos agentes de religião e, principal
mente, extremamente móveis (“gente que vai, gente que vem”).
Acompanhemos o roteiro das igrejas presbiterianas, denominação que
tomei como modelo deste no período em questão, isto é, de meados do
Império até o advento da República. Estou deixando de lado as demais regiões
do país, em que o seu desenvolvimento foi mais lento e seguiu outros roteiros.
As duas primeiras igrejas presbiterianas organizadas no Brasil foram
urbanas: a primeira, no Rio de Janeiro, em 1862, formada por estrangeiros,
e a segunda, em São Paulo, em 1865, com seis pessoas, na maioria estrangeiras.
É notório o fato de que em dois dos mais importantes centros urbanos da
época o crescimento inicial da Igreja deve-se a estrangeiros, sendo a presença
de nacionais mínima, evidenciando condições sociais que pareciam dificultar a
penetração urbana da nova religião em comparação com a relativa facilidade
com que entrou na zona rural. A presença física institucional da Igreja Católica
deve ser considerada como elemento ponderável nessa questão'31.
Estabelecidas as cabeças-de-ponte urbanas do Rio de Janeiro e São Paulo,
estenderam-se as igrejas presbiterianas pela zona rural no sentido do roteiro
do café: Brotas, SP (1865), Lorena, SP (1868), Borda da Mata, MG (1869),
Santa Bárbara, SP (1870), Caldas, MG (1873), Rio Novo, SP e Rio Claro,
SP (1873), Embaú, SP, Machado, MG, Itapira, SP (1874), Dois Córregos, SP,
São Carlos, SP (1875), Araraquara, SP e Faxina, SP (1879), Lençóis, SP e
Ubatuba, SP (1880), Areado, MG e Cabo Verde, MG (1881), Guareí, SP.
(1882), Itatiba, SP (1883), Campanha, MG e Mogi Mirim, SP (1884), Botucatu,
SP, Itapetininga, SP, Pirassununga, SP (1885), Cana Verde, MG, Tatuí SP
(1888), São João da Boa Vista, SP (1889), Boa Vista do Tatuí, SP, Espírito
Santo do Pinhal, SP, Fartura, SP (1890), Boa Vista do Jacaré, SP, Jaú, SP,
São Sebastião da Grama, SP (1891), Sengó, MG (1892), Araguari, MG,
Bagagem, MG, Paracatu, MG (1893), Palmeiras, SP, Iacanga, SP, Ribeirão
do Veado, SP (1895), Tietê, SP (1896), Cajuru, SP (1897) e Lavras,
MG (1899).
Apesar de os historiadores protestantes serem imprecisos, não indicando,
regra geral, o lugar exato da criação das igrejas, elas sempre foram rurais
como se pode ver nos livros de atas que ainda existem. William R. Read,
missionário presbiteriano no Brasil, confirma esse fato no seu trabalho sobre
o crescimento das igrejas protestantes no Brasil132.
com autogestão religiosa, o Autor deste trabalho preparou duas pequenas memórias que consti
tuem os apêndices 1 e 2 deste capítulo.
131 Dados comparativos mostram a diferença de crescimento entre as igrejas urbanas e
as rurais. Por exemplo, durante todo o período do século XIX, a Igreja Presbiteriana de
Brotas — SP, rural, foi maior do que as do Rio de Janeiro e São Paulo. Lessa, Vicente
Themudo, 1938, p. 36 e Ferreira, Júlio A., 1959, 1.° vol., p. 40. Em 1870 essa Igreja tinha 289
membros arrolados (Lessa, Vicente Themudo, 1935, p. 39).
132 Read, William R., s/ data, p. 50.
Resumo
162
A P Ê N D IC E 1
163
— “Para a sua própria glória”.
E assim ia a turma respondendo as perguntas, com muitos trejeitos,
contorções e torcidas nas pontas das fraldas das camisas. O suplício dominical
ia se escoando devagar. Os meninos não viam a hora de terminar tudo para
saírem correndo dali para a liberdade. Liberdade restrita, embora. Não se
podia caçar passarinhos de estilingue, nem jogar bola de meia no terreiro de
café e muito menos ir nadar no remanso do ribeirão. Era domingo.
164
A P Ê N D IC E II
165
Os cultos dominicais se realizavam geralmente nas extremidades do bairro,
ora na casa de Nhonhô, ora na casa de Osório Monteiro. Suas casas eram
melhores: de tábuas, grandes e altas, cobertas de telhas de bica, com parapeito
em toda a extensão da ampla frente. Quem dirigia os cultos eram os subpatriar-
cas. O pastor vinha uma ou duas vezes por ano, quando orientava, disciplinava,
casava e batizava a safra do ano anterior. Eram dias de festa e mesas fartas
em que os frangos do terreiro sofriam diminuição sensível. Mas, no meio da
semana, às quartas-feiras, o culto era na casa de Neném. Bem no meio do
bairro, dividia as distâncias para a caminhada noturna.
À noitinha iam chegando as pessoas. As mulheres, puxando as crianças
pela mão, com alguns acavalados às ilhargas, outros no colo. Porque sempre
havia os que estavam andando, engatinhando ou fazendo nem uma nem outra
coisa. Os homens, sérios e compenetrados, iam entrando e pendurando os
chapéus nos cabides e depondo suas armas numa mesinha à porta, coberta
com uma toalha branca de crochê (muito respeito pelas armas!). Eram canive-
tões de meio palmo, facas, punhais de dois palmos com guarda e tudo (para
picar fumo e cortar palha!), lustrosos porretes de pau-ferro, alguns deles
verdadeiras bordunas de meter medo (para espantar cachorros!) e até rebrilhan-
tes “rabos de égua” (pode aparecer algum bicho!). A pilha de armas tão
diversas formava, na mesinha, impressionante arsenal. Porque não era permi
tido assistir ao culto armado (mesmo que de armas só tivessem o nome, vez
que eram instrumentos de uso inocente!).
Assentavam-se todos ao redor da comprida mesa da sala da frente, em
bancos longos, baixos e sem encosto. Nas paredes, em aparadores de folha,
fumarentas lamparinas de querosene, e na cabeceira da mesa uma especial
para o manejo do dirigente. Aqui, também, uma enorme Bíblia de capa preta,
ocupando o lugar de honra. Neném Coutinho levanta-se e dá início ao culto.
Abrem-se os “cadernos” e começam os cânticos. Alguém, mais “entoado”,
“tira” o hino e os outros acompanham. Poucos são os “cadernos” porque
poucos são os que sabem ler.
166
são feitas, pelas chuvas que não chegam, pelas colheitas e pela saúde. Dificil
mente pedem-se coisas de ordem pessoal. A linguagem das orações e a forma
de dirigir o culto são copiadas dos pastores. Por isso soam esquisitas nas
noites daqueles sertões.
No momento próprio levanta-se Neném Coutinho com a grande Bíblia
nas mãos calosas. Ajeita os óculos, aproxima a lamparina e começa a leitura
do Salmo predileto.
Vai aos tropeções, caindo aqui e levantando ali, brigando com as sílabas
e com as palavras, penosamente. Mas lê até o fim sob a atenção reverente
de todos.
Recomeçam os cânticos.
167
E os bons profetas, fiéis antigos,
Já entraram na rua Glória,
Onde vêm em esplendor o grande Rei!4
Chegam o grande bule e os terrinões de bolinhos de fubá. Servem-se,
mas alguns continuam cantando. De repente, saem todos. As mulheres arreba
nham as crianças e os homens se rearmam. Amanhã as lidas domésticas e as
ruas de café os esperam.
VOCABULÁRIO
168
A P Ê N D IC E III
Uma nota curiosa relatada pelo Rev. Chamberlain nessa visita inicial que
servirá de subsídio para a história do Evangelho em Mogi. “Fomos visitados
e obsequiados pelo venerável vigário dessa cidade que nos disse ser assinante
da IMPRENSA EVANGÉLICA desde o princípio de sua publicação e que
partilhava as idéias dela. Proibira os seus coadjutores de pregarem contra nós,
dizendo que estimava a nossa presença na cidade. Cedendo ao manifesto
interesse, demoramo-nos dias lá, pregando diariamente com auditório sempre
crescente”.
Quando morei em Mogi-Mirim ouvi alguma coisa a respeito daquele
vigário amigo.
Era o popular Padre José, cujo nome ficou ligado à rua em que se
construiu depois o primitivo templo presbiteriano.
Possuo na minha coleção o volume XI da IMPRENSA EVANGÉLICA,
de 1875, oferta que me fez o presbítero José Soares.
Contava-me o velho João Soares, antigo membro da igreja de Mogi-
Mirim, já falecido como o citado presbítero, que o Rev. Conceição quando
passava por ali se hospedava com o Padre José. Passando em certa ocasião
com destino ao Rio, necessitava de um camarada para a viagem. O vigário
contratou para isso João Soares, que por fim se tornou evangélico. Não pude
averiguar se Conceição pregou também em Mogi. Nesse caso teria, talvez,
precedido a Chamberlain. Mas a linguagem deste parece decisiva quando diz
haver inaugurado o culto na localidade.
Não deixa de ser curioso que tanto o Padre José, que tão benevolente
mente acolhia ao Padre Conceição, teve o seu nome consagrado numa das
ruas de Mogi, como o mesmo se deu com João Soares, o camarada de
Conceição, contratado pelo vigário. A rua João Soares (antiga 13 de maio)
169
vai entroncar com a do Padre José, mesmo no local onde existiu o primeiro
templo. João Soares, como funcionário da repartição sanitária, prestou excelen
tes serviços à população mogiana em tempos de epidemia. Daí a sagração
de seu nome.
NOTA: Imprensa Evangélica foi o primeiro jornal protestante a ser publicado no Brasil, tendo
o seu número inicial saído em 5 de novembro de 1864. Foi fundado pelo primeiro
missionário presbiteriano, Rev. Ashbel G. Simonton (Nota do Autor).
170
A P Ê N D IC E IV
171
“O nome do Padre José Manoel está espalhado pelo universo, não há
lugar onde se passe que não falem em seu nome”.
Em Cachoeira:
“Aqui já estivemos com o vigário, e mostra ser uma bela pessoa; ele
recolheu-nos em sua sala, conversamos muito tempo com ele sobre religião,
e em muita coisa concorda conosco. Deseja muito ouvir o Padre José Manoel
pregar, e disse que a religião do Padre José Manoel pouco diferença faz
da s u a . . . ”
Antonio Pedro — “Aqui não há mais a desejar, pois que todas as noites
fica em frente da casa onde se prega, isto é, a rua, muito cheia de gente,
além dos que estão ocupando todos os assentos da sala. Ontem o Sr. Blackford
e o Sr. Miguel Torres foram a Pindamonhangaba para pregar lá, e eu com o
Sr. Conceição ficamos para pregar aqui e eu tenho feito o que posso, não só
vendendo bíblias mas espalhando folhetos e falando; há muita gente que tem
gostado, o que dá ânimo para prosseguirmos na causa do Evangelho. Aqui
moram doze padres, e já experimentei a força de quatro, encontrando-me com
dois numa casa, onde me recolheram para dentro e me trataram com muito
agrado. Apresentaram a Bíblia e começamos logo a discussão por e l a . . . Os
dois padres disseram que gostaram muito de mim, e que sentiam ser eu
protestante, e eu lhes disse que também simpatizava com eles e sentia que
eles não fossem protestantes”.
172
em Borda da Mata, mesmo dentro da freguesia. Houve boa reunião, à qual
assistiu o vigário, que afirmou ao Sr. Chamberlain, na presença de todo o
povo, concordar com tudo o que ele tinha pregado; era a verdade. Pregaram,
também, em Samambaia onde houve uma grande reunião”.
173
A P Ê N D IC E V
Era ainda moço quando a morte o trasladou para os céus. Contava apenas
53 anos. Estava viajando a cavalo pelo sertão, bem longe do lar, anunciando
aos perdidos o Salvador Jesus, quando um antraz o prendeu ao leito em casa
de crentes humildes da família de José Esteves. Sem recursos médicos e o
conforto das grandes cidades, só recebeu os cuidados de alguns corações
174
amigos, bem como de um dos seus filhos — o Samuel. Deus quis que ele
morresse com a mesma simplicidade com que tinha vivido! Foi a 20 de abril
de 1909, à uma hora da tarde, que ele expirou.
NOTA: O Rev. Caetano Nogueira Jr. foi ordenado pastor presbiteriano em 3/9/1886, pelo
Presbitério do Rio de Janeiro.
PA R T E III
A NOVA RELIGIÃO
CAPÍTULO I
A MENSAGEM INSTITUCIONAL
179
rios de Edimburgo (1910) e Panamá (1916) já vinham agitando os meios
missionários e Gammon se esforça por defender a tese de que o Brasil, assim
como a América Latina toda, era pagão por causa do afastamento da Igreja
Católica das “verdades e práticas básicas do Cristianismo”. Daí, era imperioso
que o Brasil não fosse riscado do mapa das Missões. Já tratei deste assunto
em outro lugar deste trabalho. Gammon, após historiar, um tanto ingênua e
triunfalisticamente, como era do estilo dos missionários, a “invasão evangélica
da terra do Cruzeiro do Sul”, apela para que a invasão continue em “nossa
República Irmã do Sul”.
0 exame do relato da “invasão”, como a história Gammon, pode dar-nos
uma visão das contradições ideológicas que permeavam as missões americanas
no século XIX e que, seguramente, ao se transferirem para o Brasil e ao
encontrarem aqui condições adversas se aguçaram ou assumiram formas de
ajustamento que vieram a marcar, e mesmo descaracterizar, o protestantismo
brasileiro em relação às origens históricas do Cristianismo reformado.
O ideal civilizatório do “Destino Manifesto” estava presente no pensamento
de Gammon. Ele reconhecia que o Brasil era um grande e admirável país,
para que o seu progresso continuasse era necessário algo mais. Nas suas
próprias palavras:
“Ê necessária a religião de Jesus Cristo em sua pureza. O propósito
deste livro é apresentar os atrativos, as possibilidades e as necessidades
da terra e do povo e que o Cristianismo Evangélico pode ser ativado
com determinação e persistente esforço para ganhar a nação para
Cristo e para seu Reino”'.
Vê-se que o progresso e o desenvolvimento material e social estavam
ideologicamente vinculados ao estabelecimento do Reino de Deus na Terra.
Mas Gammon, ao defender seu ponto de vista da necessidade de intensificar
a empresa missionária no Brasil, acaba desvelando a contradição fundamental
que permeia toda a história do protestantismo no Brasil. Havia nos Estados
Unidos os que entendiam não ser o Brasil campo missionário: era civilizado
e era cristão, mesmo sendo “papista” .
Na mesma página 68 Gammon conta a seguinte história:
‘‘Há alguns anos atrás, um missionário foi convidado para fazer uma
conferência nas montanhas da Virgínia. Perante um auditório em que havia
pessoas de idades diversas, credos variados assim como de interesses religiosos
também múltiplos, o conferencista, à guisa de introdução, começou a falar
sobre o progresso e a riqueza material do Brasil, suas estradas de ferro, luz
elétrica e bondes, bancos, comércio e suas belas e modernas cidades. Ele, o
missionário conferencista, quase caiu de costas quando um de seus ouvintes,
interrompendo-o, disse que estava certo, após ouvir a conferência, de que o
Brasil não precisava de missionários”.
180
Esta história ilustra a ideologia do modelo civilizatório do protestantismo
americano. Mas Gammon argumenta com uma outra forma ideológica, e esta
essencialmente religiosa e oriunda das lutas teológicas dos avivamentos america
nos do século XIX: “O apóstolo Paulo não pensou assim quando levou o
Evangelho nascido na ‘pobre e obscura Judéia’ para as ricas e cultas Atenas
e Roma de seu tempo, porque a Judéia possuía o ‘Poder de Deus para a
Salvação’. A civilização salva um homem ou uma nação? A luz elétrica ilumina
os caminhos para o Reino dos Céus? Bondes e trens transportam pecadores
aos Portais Eternos? À luz da Palavra de Deus e da História Sagrada, essa é
uma idéia absurda”, conclui Gammon.
Mas Gammon entendia que a objeção mais séria era a dos que colocavam
seriamente em questão a propriedade de missões protestantes em “terras
papistas”. O Brasil era um país católico, os brasileiros possuíam uma forma
de Cristianismo. A essa objeção respondia Gammon com o ponto de vista mais
ou menos uniforme dos missionários no Brasil e dos líderes protestantes
nacionais: a Igreja Católica, dominante durante quatro séculos, por seus desvios,
não havia conseguido cristianizar o Brasil. As classes educadas estavam quase
que inteiramente tomadas pelo ceticismo nas suas variadas formas e as massas
não educadas estavam absorvidas num sistema de supersticiosa idolatria que
as aproximava mais dos antigos e modernos paganismos do que da religião de
Jesus Cristo. Essa era, inclusive, a situação dos demais países católicos.
Civilização e progresso material não são indícios seguros da presença do
Reino de Deus, uma vez que a sociedade pode ser má porque os indivíduos não
são bons; é necessário que os indivíduos sejam regenerados para que a sociedade
seja transformada. Esta ideologia, bastante influenciada pelo individualismo,
pode ser entendida como essencialmente religiosa e originada da teologia dos
avivamentos americanos. A ideologia do protestantismo civilizador, isto é, de
que as formas sociais e políticas que o povo americano havia descoberto e
implantado em sua própria sociedade podia ser entendida como produto da
Teologia do Puritanismo. As instituições americanas, refletindo os ideais
puritanos de “povo escolhido por Deus”, eram modelos que deviam ser
compartilhados com os outros povos a fim de que o Reino se implantasse
no mundo todo.
No fundo, essas ideologias só se contradizem no método. Uma queria
transferir para outros povos as instituições americanas acabadas (“American
way of life”) e a via escolhida era a educação; a outra queria começar pelas
bases, isto é, converter os indivíduos à fé protestante segundo o modelo dos
avivamentos na expectativa de que os indivíduos transformados em grande
número acabariam por instituir uma nova sociedade segundo os modelos da
civilização protestante. Esta ideologia escolheu a via religiosa propriamente
dita. Em última instância, trata-se do grande sonho messiânico norte-americano
do “Destino Manifesto” visto dos dois lados de uma mesma moeda2. No
181
entanto, é curioso ver como ambas as ideologias, isto é, os dois lados da
moeda, ocuparam seus espaços na empresa missionária americana e o resultado
foi um verdadeiro despejo (“invasão” na expressão dç Gammon), no Brasil,
de educadores, principalmente educadoras, e de pregadores. Isto ocorreu,
sensivelmente, após a Guerra Civil Americana, quando problemas internos das
igrejas, criados pela questão abolicionista, foram superados. Ocorreu que essa
dupla invasão, portadora de duas ideologias pelo menos sob o ponto de vista
metodológico, foi recebida no Brasil sob prismas diversos e provocou profundas
dissenções nos campos missionários brasileiros3.
É minha intenção, neste capítulo, buscar a compreensão do fenômeno
protestante no Brasil pela via religiosa, isto é, a pregação e a aceitação da
mensagem protestante e seus efeitos na caracterização de nosso protestantismo.
Embora tenha estudado a educação protestante no capítulo intitulado “A
Estratégia Missionária”, a intenção foi somente a de mostrar exatamente a
educação como uma das estratégias missionárias e para ressaltar o ponto de
apoio que as escolas paroquiais representaram para a evangelização propria
mente dita. Fica, portanto, fora da minha preocupação, a educação protestante
representada pelos grandes colégios embora ela possa, vez por outra, inciden-
talmente, vir à tona.
182
nível do discurso religioso abstrato apresentado pelo especialista e ao nível
da reinterpretação desse discurso a fim de fazer com que ele desça ao concreto
e ao nível de ajustamento às necessidades existenciais imediatas. £ por isso
que a religiosidade popular tende a escapar constantemente do controle dos
especialistas4. Isto não significa, a experiência o demonstra, que ambos os lados
não possam conviver, embora ressentimentos e atritos estejam constantemente
em latência, podendo mesmo se tomarem conflituosos e excludentes conforme
demonstra Pierre Bourdieu5. A divisão leigo-especialista pode introduzir no
plano interno do campo religioso a oposição de classes existente no plano da
sociedade global. Estudos recentes4 tendem a explicar os atritos e ressentimen
tos, efetivos ou latentes, como uma rejeição ao especialista por parte dos
leigos. Com referência ao protestantismo, no entanto, não creio que se possa
falar em conflito como no caso da religião estabelecida e dominante, o
catolicismo. Isto é verdade, pelo menos no momento da implantação do
protestantismo. Mais tarde, após o reforço institucional das igrejas, é bem
possível que o conflito tenha se estabelecido. É por isso que prefiro ficar, na
relação mensagem religiosa do especialista/ assimilação por parte do receptor,
no plano prévio da reinterpretação.
Para fins de compreensão e de análise da apresentação da mensagem
protestante e da forma que assumiu essa mensagem na crença e na prática do
protestante comum brasileiro, vou tentar mostrar os dois lados da questão:
o do especialista, isto é, do missionário, e o do receptor, isto é, do homem
rural brasileiro. Por outras palavras, o aspecto institucional da mensagem e
o aspecto da crença e/o u vivência religiosa propriamente dita.
Sob o ponto de vista institucional, ou do especialista, a mensagem
protestante foi dogmática-epistemológica e polêmica. O aspecto dogmático-
epistemológico envolveu o inculcamento da doutrina ou teologia, e sua respecti
va visão do mundo e do homem; o polêmico foi o confronto com a religião
dominante no sentido de mostrar a sua falsidade em relação à verdade7 do
cristianismo protestante. A polêmica com o catolicismo foi necessária na medida
em que representava a tentativa de desalojar a religião estabelecida para abrir
espaço para a “nova religião”8.
Sob o ponto de vista da crença ou vivência religiosa, o protestantismo
se apresentou como pietista, de um lado, e milenarista-messiânico, de outro,
embora em ambos os aspectos com características próprias. Estas formas de
4 Sobre estes níveis em relação à religião camponesa, ver Wolf, Eric R., 1976, p. 136.
5 Bourdieu, Pierre, 1974, capítulo 2.
6 Benedetti, Luiz R., 1981.
7 A palavra “verdade” para significar a mensagem protestante em relação à fé e prática
católicas, é constante nos sermões e artigos de pregadores protestantes e assume um conteúdo
epistemológico coloridamente racionalista.
8 “Nova Religião” era uma designação freqüentemente dada ã mensagem protestante pelos
que a ouviam pelas primeiras vezes.
183
crença, como já foi dito, resultaram da herança cultural religiosa fortemente
inculcada e das condições sociais abrangentes.
A conseqüência da relação entre a forma institucional da mensagem
protestante e as respostas em formas de crenças foi uma forma de vida
representada por uma ética fortemente individualista e ascética, negadora do
mundo e apolítica.
a) A mensagem institucional
9 Sobre esse tema do “cansaço do protestantismo”, ver Handy, Robert T., 1971, p. 33.
10 Sintoma muito nítido na já comentada obra de João Bunyan, O Peregrino.
11 Handy, Robert T., 1971, p. 33.
184
a) 1 — Robert R. Kalley (1809-1888)
185
Assim como estou, sem ter que dizer
Se não que por mim vieste morrer,
E me convidaste a Ti recorrer;
Bendito Jesus, me chego a Ti!'s
Ensina-me a fugir
Do lobo Satanás,
E no caminho prosseguir
Da Santidade e paz!'6
186
a) 2 — Ashbel G. Simonton (1833-1867)
187
Coletânea, não é de Simonton, mas reproduz o seu pensamento, exposto em
artigos na IMPRENSA EVANGÉLICA.
Realmente, a afirmativa de Blackford sobre a “importância do assunto”
e “o precioso testemunho de que se trata nestas páginas” põe em relevo o
pensamento de Simonton nesse seu trabalho, que aparece às páginas 183 e
seguintes da Coletânea. Já examinei esse trabalho nas suas alusões à Igreja
Católica (Cap. III).
Este prefácio de Blackford, parente e companheiro de trabalho de
Simonton, é importante como testemunho do tipo de conversão do pioneiro,
assim como de seu pensamento; a própria seleção de sermões feita por
Blackford pode indicar que, com certeza, conhecendo ele muito bem o modo
de pensar “simontoniano”, é o que melhor representa esse mesmo modo de
pensar.
Mas é necessário, antes de encetar a análise do pensamento de Simonton,
buscar mais alguns informes sobre suas origens. Os anos de formação de
Simonton foram o período de lutas políticas e econômicas que antecederam
a Guerra Civil e que se refletiram em tensões dentro dos círculos presbiterianos.
Principalmente por causa da questão escravocrata, os presbiterianos se
dividiram em 1837, formando a Igreja do Sul e a Igreja do Norte, à semelhança
do que ocorreu com a maioria das denominações americanas. Embora Simonton
pertencesse ao “Board” de Nova Iorque, mantido pela Igreja do Norte, menos
conservadora, suas tendências teológicas, seguindo sua experiência de con
versão à maneira metodista, vão mostrar uma certa ambigüidade quando se
tem em vista o clima do pensamento do protestantismo americano do seu
tempo, já sob a intensa influência do metodismo. A partir de 1830 os pres
biterianos já se achavam teologicamente divididos. A linha mais ortodoxa
da tradição escocesa-irlandesa dos puritanos da Nova Inglaterra era represen
tada pela chamada “Velha Escola” (Old School Presbyterians), e a linha de
tendência avivalista nò espírito metodista pela “Nova Escola” (New School
Presbyterians). Havia rachaduras mais profundas na teologia dos presbiteria
nos, como a negação do pecado original por Albert Barnes, teólogo da “Nova
Escola”, para quem “o pecador não era responsável pela transgressão de
Adão”. Lyman Beecher, presidente do Lane Seminary, também foi acusado
pelas autoridades eclesiásticas, em 1834, de heresia em relação ao pecado ori
ginal23. A negação do pecado original era necessária para que pudesse ser
ressaltada a capacidade humana em todos os sentidos e se constituía na avenida
pela qual os presbiterianos podiam caminhar para a teologia dos avivamentos.
Mas era uma rachadura imensa na ortodoxia calvinista. Segundo Clifton E.
Olmstead, a menor causa de tensão entre os presbiterianos era a questão es
cravista, embora a “Nova Escola” fosse mais agressivamente oposta à escra
vidão do que a “Velha Escola”. Com o passar do tempo, a rigidez da “Velha
Escola” foi diminuindo através de formas compromissadas de pensamento,
188
como Charles Hodge (1797-1878), que ensinava em Princeton a centralidade
da Teologia do Pacto, assim como a inspiração verbal da Bíblia e ao mesmo
tempo uma visão mais liberal nesta questão, ao admitir a possibilidade de
erros por parte dos escritores sagrados. Insistia, também, na salvação de todos
que morriam na infância. Hodge contribuiu para abrandar o espírito polêmico
da “Velha Escola”24. ■
Apesar de Simonton ter estudado em Princeton, então reduto do
pensamento presbiteriano conservador do Norte25, ele apresenta, como já foi
dito, uma certa ambigüidade de pensamento e de ação refletindo a situação de
tensão vigente nos círculos presbiterianos até bem depois de ter ele deixado
o Seminário24. Por exemplo, em Princeton o pensamento conservador defendia
a chamada teologia da Igreja Espiritual, isto é, que a Igreja nada tem a ver
com os negócios humanos, que são objeto da política (‘Dai a César o que é
de César e a Deus o que é de Deus’). Simonton aderiu à teologia da Igreja
Espiritual, o que se infere pelo seguinte registro em seu Diário:
“Um jovem, que tem assistido aos cultos, parece ávido da verdade e
da importância de uma religião espiritual”27.
Anteriormente ele já registrara o seguinte:
“O mundo apela para o que é sensual. . . Para viver é necessário ele
var-se a outra atmosfera, absorvendo todo o poder de um mundo des
conhecido da vista, e de Jesus, o Salvador invisível”28.
Simonton está preocupado com um outro mundo, distante das preocupa
ções humanas. O “sensual” para ele é o oposto do mundo platônico para o
qual a Igreja devia transportar-se.
A teologia da Igreja Espiritual constituía-se num esforço para contornar
o agudo problema da escravidão, no sentido de afastá-lo da Igreja para o da
política. Hodge, o já citado teólogo de Princeton, afirmava não ter encontrado,
nas Escrituras, nenhuma condenação da escravidão assim como nenhuma evi
dência de que Cristo ou os apóstolos tivessem clamado contra ela. Esperava,
no entanto, que o progressivo desenvolvimento do negro trouxesse de modo
natural o fim da servidão29. Vê-se que havia uma preocupação por parte da
mentalidade conservadora de sair do impasse sem grandes arranhões.Parece,
por aí, que a teologia da Igreja Espiritual era bastante adequada para um
prudente distanciamento da Igreja dos graves problemas da sociedade abran
gente.
24 Ibidem, pp. 79/80. Não deixa de ser significativo o fato de que Simonton deve ter
sido aluno de Charles Hodge pelo que ele diz em seu Diário, dia 11/4/1860.
25 Reily, A.D., 1977, p. 18.
26 Mclntire, Robert L., 1969, p. 4/2.
27 Simonton, Ashbel G., 1962, pp. 79/80. O grifo é meu.
28 Ibidem, p. 77, registro de 14/2/6/1861. Os grifos são meus.
29 Olmstead, Clifton E , 1961, p. 95.
189
Simonton não assume inteiramente, porém, o ensino de Hodge na
eqüidistância em relação à escravidão. Surpreende-nos vê-lo colocar-se em
posição contrária, pelo registro que ele fez no seu Diário, em 28/9/1859:
“Tive uma discussão com S., que muito lamento. Foi uma discussão
sobre escravos. Ele é desarrazoadamente pró-escravatura, e eu,
opondo-me à idéia, só consegui prejudicar a minha posição, perdendo
influência sobre ele’’30.
Simonton escrevia isto dois dias após o Presidente Lincoln ter proclamado
a libertação dos escravos nos estados rebeldes. Desse modo, vê-se que Simonton,
adepto de uma escola teológica que parecia adequada para justificar, ou pelo
menos eludir o problema da escravidão, firma-se na linha oposta, isto é, da
“Nova Escola”. No entanto, toda a carreira ministerial de Simonton está
ligada institucionalmente à “Velha Escola”. Em 1855 foi recebido como
membro da Igreja Presbiteriana Inglesa de Harrisburg, Pensilvânia, ligada à
“Nova Escola”. Mas quando esta Igreja foi destruída pela fogo, Simonton e
outros membros dela fundaram, em 1858, a Igreja Presbiteriana de Harrisburg,
jurisdicionada ao Presbitério de Carlisle, ligado à “Velha Escola”. Simonton,
em abril de 1859, recebeu ordens sacras desse mesmo Presbitério. Quando
em 1865, ele ajudou a fundar o primeiro presbitério no Brasil, o Presbitério
do Rio de Janeiro, base da relativa autonomia da Igreja Presbiteriana no
País, foi ele filiado ao Sínodo de Baltimore, também da “Velha Escola”33.
Como bem diz Robert L. Mclntire, as tendências teológicas de Simonton
só podem ser inferidas no seu Diário, uma vez que jamais ele se declara desta ou
daquela Escola. Assim, em 21/2/1855, antes de entrar para o seminário, ele
registrou:
190
“John chama-me de velho antiquado, que defendo doutrinas velhas e
gastas que estão na iminência de serem ultrapassadas. Há muita
verdade nesses ataques. Eu não sustento que mudança é progresso,
revolução, reforma”34.
A preferência de Simonton pela teologia da Igreja Espiritual e sua carreira
ligada institucionalmente à “Velha Escola”, parecem confirmar a tendência
conservadora registrada precocemente em seu Diário. Seu antiescravismo mais
coerente com a “Nova Escola” pode ser levado à conta de seus sentimentos
humanos, mas não a de uma rigorosa coerência teológica. Daí, aquela ambigüi
dade de pensamento que parece situar Simonton como que suspenso entre o
céu e a terra.
O que parece explicar essa ambigüidade de Simonton é a sua conversão
à maneira metodista. Simonton formou-se, repetimos, num clima de grandes
controvérsias teológicas, especialmente entre os presbiterianos. Como diz Ro
bert L. Mclntire, “é freqüente os períodos de controvérsias teológicas condu
zirem a despertamentos espirituais”35. Essas controvérsias teológicas, A Guerra
Civil e os “avivamentos”, opina ainda Robert Mclntire, influíram na história
das missões no Brasil através de Ashbel Green Simonton. Parece-me, portan
to, que ele trazia a marca do conservadorismo dos puritanos calvinistas e
mais a influência religiosa dos avivamentos.
A onda do “avivamento” da década de 50 chegou a Harrisburg, onde
Simonton se encontrava, em 1855, e atingiu as igrejas Metodista, Luterana e
Presbiteriana, da qual ele era membro. Havia reuniões todas as noites, e a
religião passou a ser assunto predominante na cidade. Simonton, que estudava
direito na ocasião, aceitou o apelo da última noite de reuniões e registrou no
seu Diário, em 10/3/1855:
“Já vivi o suficiente para refletir que os assuntos da eternidade são
muito mais importantes do que os temporais, que a eternidade ê mais
longa que o tem po. . . a alma imortal tem que ser satisfeita. Honras
e riquezas são suprema loucura"36.
Esse registro da decisão de Simonton confirma sua adesão à Igreja Espi
ritual. Insisto neste ponto porque essa doutrina, colorida pelo individualismo
e demais ênfases metodistas e pietistas, irá condicionar o pensamento protes
tante no Brasil ao lado do conservantismo puritano. É bastante significativo o
fato de que “O Peregrino” de Bunyan tenha sido, à semelhança do que ocorrera
com Kalley, um dos primeiros textos que Simonton usou no Brasil para o
ensino religioso. Em 28/4 /1 8 6 0 ele registra em seu DIÁRIO:
“Sábado passado, dia 22, dirigi uma Escola Dominical em casa. Foi
■ o meu primeiro trabalho em português. Os filhos de Ewbank estiveram
34 G tado por Mclntire, ibidem, pp. 4/3. John era irmão de Simonton.
35 Ibidem, pp. 4/4.
36 a ta d o por Mclntire, Robert L., 1959, p. 415.
191
todos presentes, além de Amália e Mariquinhas Knaack. A Bíblia, um
catecismo de história sagrada e “O Peregrino" de Bunyan foram os
compêndios usados”37.
Bem mais tarde, após passar pela crítica experiência da perda de sua
mulher, aparentemente vítima de complicações puerperais, registra Simonton:
“O céu ê o lar dos crentes. Tudo o que é mais caro se encontra lá:
pai, mãe, irmã e esposa. Jesus está lá”*2.
192
da verdadeira religião para Simonton, o que ele desenvolve com brilho sem
dúvida, nos seus sermões.
A crença nos dois mundos pressupõe uma fé interior e uma ética que
estabelece as normas para se viver no provisório com os olhos no permanente.
Essa ética, ao afirmar o permanente nega o provisório, não pode se constituir
só de regras exteriores, mas deve ser o resultado de uma disposição interior e
pessoal. Não depende dos recursos humanos, mas decorre da graça divina. No
seu sermão “Entrai pela Porta Estreita”43, que pelo título se sente a influência
da “Jornada do Peregrino”44 e do clima do famoso quadro “Os Dois Caminhos”
que surgiu não se sabe bem quando, Simonton vai delineando sua teologia que,
aqui e ali, já se esboçara no seu DIÁRIO. As citações abaixo mostram como ele
encaminha suas idéias no citado sermão:
• “Para ser cristão é não só necessário ser batizado, mas é preciso
estar arrependido e contrito de coração” (p. 15).
• “A verdadeira religião exige um culto não fingido e falso, mas
nascido de um espírito atribulado e sincero” (p. 16).
• “A verdadeira religião é uma religião que aperta” (p. 18).
• “A vida do cristão é uma carreira. O cristão nunca pode encostar
suas armas para descansar” (p. 23).
• “Não se pode gozar a amizade de Cristo e do Mundo” (p. 24).
Para Simonton, uma verdadeira religião tem que atender aos anseios
humanos diante das realidades existenciais. No sermão “A MORTE E O
FUTURO ESTADO DOS JUSTOS”45 ele afirma:
“Só pode ter jus de chamar-se religião verdadeira, divina e católica,
aquela que é adequada a estas circunstâncias invariáveis do ente ao
qual ela se dirige, que supre as necessidades que ele sente, ministra-
lhe o alívio de que carece, satisfaz as suas aspirações, dá-lhe a segu
rança de uma vida feliz no porvir, tão duradoura como a imortalidade”
(p. 197).
A valorização da vida futura permite superar os sofrimentos do presente
e dá consolo diante da morte. Para Simonton, esta é a função da verdadeira
religião.
Não vou abrir um espaço especial para o companheiro e sucessor de
Simonton, que foi A. L. Blackord. No prefácio que ele escreveu para o livro
de sermões revela-se a sua identificação com o pensamento do pioneiro. Os
historiadores concordam que Blackford não foi um homem de pensamento
vigoroso, mas sim um grande trabalhador.
193
7 - Celeste porvir
No entanto, se Simonton deixou sermões e poesias, que aparecem às
vezes no fecho dos sermões, Blackford deixou um hino que não destoa da
linha geral de Kalley e Simonton, da teologia dos dois mundos, mas que
acrescenta um forte acento pietista46:
“A o Céu eu vou, ao Céu, ao Céu eu vou;
Eu me firmo em ti, Jesus!
Já salvo sou, pois me salvou
Tua morte sobre a cruzJ (coro)
Teu puro sangue carmezim
Da culpa vil livrou-me aqui,
Ventura gozarei ali;
Viverei com meu Jesus!’’ (2.a estrofe)
194
Este outro:
O combate pela vida moral pessoal está bem exemplificado no hino inti
tulado “O Cristão como cidadão”:
195
afirmativas, mas o certo é que o pensamento de Conceição parece ter acom
panhado a crença protestante no Brasil, ao menos ao nível do subliminar.
Os biógrafos de Conceição, principalmente Boanerges Ribeiro52, entendem
que o pensamento e ação desse homem de comportamento estranho, que
causou perplexidade aos seus amigos missionários, não estava preocupado em
protestantizar mas em reformar a religião na direção de uma nova compreen
são do cristianismo a partir do conhecimento da Bíblia. Daí, escrever ele na
sua “Sentença de Excomunhão e Resposta”, publicada em maio de 1867:
196
c quatro de W. E. Entzminger54. Alguns desses cânticos, especialmente os
deste último autor, foram incluídos tardiamente nos SALMOS E HINOS,
isto é, no terceiro volume da coleção que estou usando, editado em Londres,
em 1916. Os dois primeiros foram editados em Edimburgo, em 1899. É pro
vável, no entanto, que aqueles cânticos já circulassem nas congregações a
ponto de justificar sua inclusão posterior. Se isto não ocorreu, prova-se pelo
menos que eles não destoavam da linha doutrinária dos presbiterianos, prin
cipais usuários da coleção, e, muito menos dos congregacionais, proprietários-
editores até hoje dos SALMOS E HINOS.
De fato, o exame desses cânticos mostra desde logo a uniformidade de
pensamento que há entre eles e os de Kalley, de Blackford, Conceição e de
outros da mesma tradição denominacional e teológica e, para isso, alguns
exemplos são suficientes.
Este de Salomão L. Ginsburg sobre conversão pessoal e recusa do
mundo:
Todo, ó Cristo, a ti entrego,
Corpo e alma eis-me aqui!
Todo o mundo eu renego,
Digna-te aceitar-me a mim!55
Este sobre o milênio:
Cristo em breve do céu virá,
Ele prometeu e não tardará!
Que alegria e glória será,
Quando Jesus regressarZ54
De W. E. Entzminger basta mencionar um:
Em breve a vida vou findar, aqui não mais eu cantarei
Mas eu então irei morar lá, na presença do meu R e i57
Os metodistas contribuíram com nove cânticos para os SALMOS E
HINOS. Justus H. Nelson escreveu sete e J. J. Ransom dois. Destes nove
só dois podem ser considerados tardios. Os demais aparecem no segundo
volume, editado em 1899.
Dos sete hinos de Justus H. Nelson, cinco versam sobre o tema do
milênio e sobre o motivo pietista. Todos eles são dos mais cantados pelos
protestantes, como será mostrado mais adiante.
Sobre o milênio há dois muito significativos e de boa qualidade poética
em relação à maioria dos que constam do tradicional hinário:
197
Na terra abençoada estou;
Por Beulá peregrino vou;
Delícias abundantes são;
E só dos céus saudades dão ( l.a estrofe)
Coro — Ó bela terra de amor!
Do alto monte encantador
Olhando vejo além do mar
(Que em breve hei de atravessar)
a praia áurea, eternal,
Querido lar celestial58.
198
O Escolhido dos milhares para mim;
Dos vales é o Lírio;
Ê o forte mediador,
Que me purifica e guarda para Si;
Consolador amado,
Meu protetor do mal,
Solicitude minha toma a Si;
Dos vales é o Lírio,
A Estrela da Manhã,
O Escolhido dos milhares para mim.60
Eu te quero, eu te quero,
Meu Jesus e meu Senhor,
Sê meu guarda, vem guiar-me
Nesta vida de horror.
Livra-me dos meus pecados,
Dá-me puro coração,
Pois seguindo-te obediente,
Provarei a salvação41
Por meus delitos expirou
Jesus, a vida e luz;
O meu castigo ele esgotou
Na ensangüentada cruzf2.
199
a) 5 — Unidade teológica dos protestantes no Brasil
20 0
Unidos, talvez ciosas de suas tradições peculiares, passaram a organizar suas
próprias sociedades missionárias e, pelo menos, ao se transferirem para a
América Latina, conservaram suas formas eclesiais. Assim, os presbiterianos
com a sua democracia representativa e autoridade conciliar, os congregacionais
e os batistas com a sua democracia direta e autonomia das congregações locais
e os metodistas com o seu governo episcopal. Mas a relativa uniformidade
teológica dos “avivamentos” e da “era metodista” do protestantismo ameri
cano foi mantida.
Se em outras áreas missionárias a multiplicidade de estranhas religiões
tinha de ser vencida, na América Latina o inimigo a ser enfrentado era a
presença vasta de um ramo do cristianismo implantado pelo conquistador e
colonizador, e solidamente instalado em todos os segmentos da sociedade, e,
ainda, intimamente ligado ao poder político. Era o velho e conhecido inimigo
da Reforma que importava vencer novamente. Contra um inimigo poderoso
nada melhor que uma coligação. Esta foi mais uma razão para a unidade de
esforços das missões denominacionais no Brasil do século XIX, e sem uma
ideologia comum, essa cooperação se transformaria em séria dificuldade. Daí,
a simplificação teológica e litúrgica, cujo atestado maior foi o uso comum de
um único livro de hinos sagrados que serviu às denominações do Brasil pelo
menos até fins do século XIX64. Já tenho citado extensamente esse hinário
ao longo deste trabalho, mas agora é necessário mostrar como essa famosa
coletânea de cânticos sacros, comum a quase todo o protestantismo brasileiro
e praticamente a matriz de todas as que foram aparecendo posteriormente, foi
sendo elaborada. Por volta do fim do século XIX ela já estava pronta. Repre
senta o mais significativo repositório da fé protestante no Brasil. Ê um com
pêndio de teologia para ser cantado.
A primeira edição dos SALMOS E HINOS saiu em 1861, preparada
pelo casal Kalley, contendo traduções e adaptações de poesias estrangeiras e
outras escritas aqui mesmo por necessidades ocasionais. Os presbiterianos
fizeram uso dessa coletânea desde o início, mas em 1867 publicaram a cole
tânea intitulada “CÂNTICOS SAGRADOS PARA USO DOS QUE ADORAM
A DEUS EM ESPIRITO E EM VERDADE” . A edição desse hinário, que
tenho em mãos65, não traz data nem editora, mas parece corresponder à des
crição que Henriqueta Rosa Fernandes Braga66 faz da edição de 1867. Con
cluo que um deve corresponder ao outro. Contém 138 cânticos e algumas
músicas. Está bem encadernado, mas mostra falta de páginas.
O missionário presbiteriano John Boyle (1845-1892), autor de diversos
hinos que foram incorporados à edição final dos SALMOS E HINOS, publi
cou uma coletânea intitulada HINOS EVANGÉLICOS E CÂNTICOS SA
GRADOS, datado de Bagagem-MG, 1888, edição LAEMMERT, Rio de Ja-
64 Salmos e Hinos.
65 Exemplar pertencente à biblioteca da Faculdade de Teologia da IgTeja Metodista, Rudge
Ramos, São Bernardo do Campo — SP.
66 Braga, Henriqueta Rosa Fernandes, 1961, p. 154.
201
neiro. O exemplar que tenho em mãos67 apresenta uma curiosidade: acima do
título do hino n.° 475, “O lar do céu”, está escrito a lápis “Sweet by & by or
over there”. Parece tratar-se de nota bem antiga. Talvez seja o título original
do hino, traduzido ou adaptado, e que corresponde nos SALMOS E HINOS,
edição de 1899, ao número 485, muito cantado pelos protestantes. Suas
primeira e última estrofes são assim:
202
Hymn Time Book”, “Wesleyan Conference Office”, “Congregational Hymn
Tune Book”, “Musical Board of Salvation Army”, “Musical, Salvaüonist”,
“Songs of Peace and War”, “Chants de Délivrance et de Combat”, “European
Psalmist”, “English Hymnal”, “Alexander’s New Revival Hymns”, “Wesleyan
Methodist Sunday School Department”, “Methodist School Hymnal” e assim
por diante.
A teologia explícita nos sermões e hinos dos congregacionais, presbite
rianos, metodistas e batistas, nos seus contornos gerais, é a do metodismo
americano: o amor de Deus por todos os homens pecadores, o perdão gra
cioso pela aceitação, através da fé, do sacrifício expiatório de Cristo, a vida
regenerada visível na ética mundana e a expectativa da vida eterna no céu.
Dois novos elementos são superpostos a essa teologia: a teologia da Igreja
Espiritual, justificadora e consetvadora do “status-quo” social e certos traços
da teologia do pietismo, com seu emocionalismo característico. Calvinistas
por tradição como congregacionais, presbiterianos e batistas, tiveram de abrir
mão da predestinação em favor do voluntarismo, como já o haviam feito nos
Estados Unidos: a necessidade de conservar os neoconversos no redil diante
de uma sociedade ameaçadora obrigou-os a pôr de lado a doutrina calvinista
da “perseverança dos santos”, a fim de manter os fiéis em permanente vigi
lância, válvula esta aberta para a doutrina metodista da santificação. Justi
fica-se isto pela procedência dos missionários, cujas agências americanas sur
giram no clima dos avivamentos e da questão da abolição, ficando o pietismo
por conta do pano de fundo do metodismo wesleyano. Mas, pergunta-se: num
Brasil monoliticamente católico teria sido possível introduzir uma outra forma
de pensamento religioso? Se nos Estados Unidos, cujo colorido era protestante,
foi necessário o conversionismo instantâneo e emocionalista para que o protes
tantismo se firmasse, no Brasil isso teria de ocorrer com maior razão.
Há, portanto, uma dupla justificação.
A unidade teológica produziu, desde o início, franca colaboração entre
os protestantes. Os presbiterianos colaboraram e receberam colaboração dos
congregacionais, anglicanos do Rio e luteranos de Nova Friburgo.
Mais tarde, quando chegaram os dois missionários, J. W. Morris e L. L.
Kinsolving, que iriam estabelecer definitivamente a Igreja Episcopal no Brasil,
ficaram eles seis meses em Cruzeiro-SP, aprendendo o português com o pastor
presbiteriano Benedito Ferraz. Ao se estabelecerem posteriormente em Porto
Alegre, onde fundaram igreja em 1891, por um acordo com os presbiterianos
receberam deles uma congregação na cidade de Rio Grande-RS69.
Colaboração mais intensa e freqüente foi entre presbiterianos e metodis
tas. J. L. Kennedy70 registra momentos de íntima cooperação com pastores
presbiterianos nos primeiros anos do metodismo. Em 1881, em Piracicaba, os
203
metodistas estavam em apuros para atender aos múltiplos encargos com a
igreja e o colégio. Diz J. L. Kennedy:
“A Igreja Presbiteriana, de coração generoso, acudiu às necessidades
dos metodistas nesse momento de anseio. O Rev. F. J. C. Schneider,
ministro ilustrado dessa igreja irmã veio a Piracicaba para prestar
serviços fraternais aos metodistas. Fez três trabalhos nessa cidade:
ajudou os missionários no estudo do português, lecionou no Colégio
Piracicaba.no e pregou o Evangelho duas ou três vezes por semana.
Um dia nos visitou outro ministro do Evangelho, o Rev. Dr. Cham-
berlain, que pregou excelente sermão no salão de cultos, a um audi
tório seleto. . . ’m
Em 1884 visitou os metodistas em Piracicaba, outro presbiteriano, o
Rev. Eduardo Carlos Pereira, que fez uma série de conferências religiosas
“que atraiu grande atenção”73.
Por outro lado, o Sínodo Presbiteriano, reunido no Rio de Janeiro, em
1884, registra a presença do pastor metodista Rev. J. W. Tarboux, recebido
como representante da “Brazil Mission Conference”73. As atas deste mesmo
Sínodo registram também a distribuição de seus membros pelas igrejas do
Rio de Janeiro, a fim de celebrar ofícios religiosos, incluindo-se, além das
presbiterianas, as congregacionais, metodistas e batistas. A III Sessão do mes
mo Sínodo registra, também, em sua ata, a presença do pastor batista W. B.
Bagby, que foi recebido como membro visitante.
A l .a Conferência Anual Missionária, realizada pelos metodistas, no
mesmo ano de 1884, em Piracicaba, teve no seu temário a questão “da divisão
do território entre as diversas igrejas evangélicas, desejosas de cooperar do
melhor modo possível, com as denominações cristãs, manifestando-lhes real
simpatia e amor”.74
Simpatia e amor continuou havendo principalmente entre presbiterianos
e metodistas. O Sínodo da Igreja Presbiteriana, em sua reunião de 1900,
adotou um “modus vivendi” com a Igreja Metodista a respeito de ocupação
de território e transferência de membros de uma igreja para outra. Ficou
estabelecido que nenhuma cidade com menos de 25.000 habitantes seria ocupa
da por mais de uma denominação e que seria considerado território ocupado
aquele em que “o serviço divino venha sendo observado com regularidade”.
A transferência de membros entre as igrejas deveria merecer cautelas75. Sen
te-se que presbiterianos e metodistas queriam afastar o espírito de concor
rência e proselitismo entre os próprios protestantes. Para dirimir dúvidas e
fisr.alizar o acordo foi nomeada uma Comissão Permanente Interdenomina-
204
cional de três membros de cada uma das duas igrejas. Esta resolução do
Sínodo Presbiteriano foi o resultado das atividades de uma Comissão Inter-
denominacional Presbiteriana e Metodista que vinha trabalhando há alguns
anos.
Resta dizer alguma coisa mais sobre os batistas. Como já vimos, embora
tenha havido cultos batistas na colônia americana de Santa Bárbara, em 1871,
foi só em 1882, na Bahia, que foi fundada a primeira igreja batista com
objetivos missionários. Portanto, os batistas, assim como os episcopais, são
os mais tardios dos protestantes a se estabelecerem no Brasil, o que não os
impediu de crescer bastante.
Já havia mais de um ramo batista na Europa e, durante a colonização
americana, surgiram outros grupos. Regra geral, os batistas mais tradicionais
eram calvinistas, variando para mais ou para menos a ênfase na ortodoxia.
Por exemplo, no sul dos Estados Unidos os chamados Batistas Primitivos
levavam tão a sério o calvinismo, que protestavam contra um clero educado,
escolas dominicais e sociedades missionárias76. O extremo da doutrina da pre
destinação talvez levasse estes batistas a negarem qualquer iniciativa humana.
Mas o certo é que a grande maioria dos batistas sofreu o impacto dos aviva-
mentos e do arminianismo. Já vimos páginas atrás que a teologia dos batistas
que vieram para o Brasil era a mesma dos presbiterianos, congregacionais e
metodistas.
Mas os batistas no Brasil, ao contrário do que ocorreu com os outros
protestantes77, foram sempre arredios quanto à proximidade e colaboração
com outros grupos. A causa deste distanciamento dos batistas deve remon
tar-se às suas origens no Brasil, à mentalidade de seus primeiros missionários.
Naturalmente e antes de outra coisa, os batistas brasileiros guardam
aquelas características distintivas históricas de todos eles. Autonomia completa
das congregações locais, composição da igreja só por pessoas regeneradas,
negação do batismo infantil, batismo exclusivo por imersão e uma tenaz con
vicção de liberdade religiosa. Entendem que a vida religiosa é uma relação
exclusiva entre o homem e Deus através da experiência religiosa pessoal, no
que não diferem muito dos demais grupos protestantes. Mas como essa expe
riência religiosa é alimentada principalmente pela leitura e interpretação pes
soal da Bíblia, eles são levados a desvalorizar um clero academicamente prepa
rado78 e os sacramentos como meios exclusivos de graça, realizando-os só no
sentido de ordenanças, assim como os credos e confissões de fé que só servem
para tirar a liberdade de interpretação pessoal da Bíblia. O único credo batista
é o Novo Testamento interpretado diretamente pelo fiel. É uma vigorosa
recusa de qualquer autoridade, seja pessoal ou escrita. A autoridade do pastor
205
decorre unicamente da assembléia que o elege e é exclusivamente profética
e exortativa79.
A idéia batista da composição da igreja só por pessoas regeneradas está
intimamente ligada à teologia da Igreja Espiritual. O exclusivismo visa fechar
as portas ao mundo e manter bem nítida a distinção entre igreja e mundo.
O Reino de Deus é espiritual e invisível. Qualquer confusão entre autoridade
civil e autoridade eclesiástica impede a constituição de uma Igreja Espiritual80.
Entendo que, em linhas gerais, estas questões dos batistas em relação a
congregacionais e presbiterianos acabam sendo mais enfáticas do que distin
tivas. Os primeiros são tão congregacionais quanto os batistas e se identificam
pelo nome; os presbiterianos, não se sabe se desde o início ou se é fenômeno
posterior, e por causa de condições diferentes, como distribuição geográfica
e condições da sociedade brasileira, mostram uma sensível tendência congre-
gacionalista, com prejuízo de sua tradição hierárquica-conciliar. A presença
dos bispos talvez tenha atenuado a tendência congregacionalista entre os meto
distas. Mas as características comuns da teologia arminiana e pietista perpassam
essas quatro denominações. E me arriscaria a dizer que o reduzido sacramen-
talismo dos batistas tem a sua correspondência nas demais denominações em
comparação.
Mas, voltemos à questão da relativa separação dos batistas dos demais
protestantes, apesar de tantos pontos em comum. Os missionários batistas
f o r a m enviados ao Brasil pela Convenção Batista do Sul, sendo pioneiros
W. C. Bagby e Z. C. Taylor, os mesmos que, com suas esposas e um brasi
leiro, o ex-padre Antonio Teixeira de Albuquerque, fundaram a já mencionada
primeira igreja batista no Brasil. Um desses pioneiros, Z. C. Taylor, era
adepto do “landmarkismo”, corrente batista radical que considerava “a ecle-
siologia batista como a única neotestamentária”8'. Realmente o historiador A.
R. Crabtree, na introdução à sua obra, segue claramente as idéias de Taylor
que, por sua vez, acompanha os “landmarkistas”:
“O povo desta fé é mais antigo do que o seu nome histórico, porque
é da mesma fé e ordem dos cristãos do Novo Testamento. A s igrejas
apostólicas eram verdadeiramente batistas porque constavam somente
de crentes batizados, porque eram democráticas, e porque respeitavam
a consciência e a responsabilidade pessoal”82.
Diz ainda Crabtree:
“Um estudo cuidadoso e livre de preconceitos das igrejas apostólicas,
convencerá qualquer pessoa de que elas eram essencialmente da mes
ma fé e ordem das igrejas batistas de nossos dias”83.
206
Os “landmarkistas” afirmavam que as associações locais (congregações
batistas), sendo diretamente descendentes do tempo de Cristo, constituíam,
através da história, marcos de uma sucessão apostólica, não através de uma
linha de bispos mas de uma ininterrupta corrente de congregações volun
tárias idênticas às do Novo Testamento, desde os tempos apostólicos até o
presente. Para James R. Graves (1870-1893), um dos teólogos do “landmar-
kismo”, os demais ramos do protestantismo, como herdeiros do catolicismo
medieval, haviam conservado muitas corrupções da Igreja Católica.
Em 1855, a Convenção Batista do Sul colocou o problema da igreja e
do ministério. Rejeitando o batismo infantil (pedobatismo) como não neo-tes-
tamentário, rejeitava-se conseqüentemente, um ministro (pastor) que tivesse
sido batizado na infância porqúe o seu batismo não seria válido. Só se reco
nhecia, portanto, o ministério de quem tinha sido corretamente batizado, isto
é, por imersão e na idade da razão. Por outro lado, a grande ênfase na auto
nomia e disciplina da congregação local levou os “landmarkistas” a colocar
em questão o direito de membros de uma igreja participarem da mesa (co
munhão) de outra, mesmo sendo da mesma fé e ordem. Assim, o relaciona
mento com outros ramos do cristianismo ficou, pelo “landmarkismo”, com
prometido pela idéia da sucessão apostólica, não como a entendem a Igreja
Católica e as da Comunhão Anglicana, mas na compreensão dos batistas.
O zelo pela autonomia e clausura da congregação local dificulta, às vezes,
as relações até entre os próprios batistas. Concluindo, a Convenção Batista
do Sul, sob influência dos “landmarkistas” já havia, em meados do século
XIX, decidido pela negativa de comunhão com as denominações pedoba-
tistas por “não trazerem as marcas (‘landmarkers’) da sucessão neotestamen-
tária”.
O movimento “landmarkista” recebeu seu nome de um tratado escrito
por James M. Pendleton (1811-1891) e publicado por Graves, em 1854, sob
o título de AN OLD LAND MARK RESET84.
Parece não haver dúvidas de que o “landmarkismo” “marcou” os batistas
brasileiros, explicando assim o seu relativo isolamento dos demaisprotestantes
brasileiros, apesar da unidade teológica que a todos identifica.
84 Sobre este tema ver Smitb, H. Shelton e outros, 1963, vol. II, pp. 108ss.
207
Por ora vou tratar do primeiro aspecto. A simples leitura dos sermões
não é suficiente para dar idéia da paixão e da veemência profética com que
eram pregados. Mas as descrições que até nós chegaram dos grandes prega
dores avivalistas como Jorge Whitefield (1714-1770), Dwight L. Moody (1837
e 1899) e Charles H. Spurgeon (1834-1892), explicam o estilo oratório que
ainda hoje se vê nos púlpitos protestantes. Sermões longos, veementes e
emocionalistas. Não é difícil imaginar-se o casamento feliz que houve entre
o estilo avivalista dos missionários e a oratória latina dos brasileiros bem na
tradição das academias de direito.
O sermão avivalista pretendia convencer o indivíduo de seu pecado,
desencadear suas emoções e levá-lo a uma decisão existencial e, por isso, quan
to mais dramático o pregador, melhores os resultados. Regra geral, a teologia
da pregação avivalista era simples:
“Os indivíduos eram confrontados com o terrível juízo de Deus sobre
os pecados da indiferença, infidelidade e imoralidade. Estes eram des
critos em quadros gráficos que infundiam temor e pânico aos ouvintes,
uma vez conseguido isto, o pecador proclamava o perdão de Deus
para aqueles que se arrependiam de seus pecados e nasciam de navo
por seu espírito”*5.
O arrependimento do ouvinte, quando atingido pela mensagem, regra
geral era marcante, isto é, transformava-se em sinais externos de emoção
como choro, gritos e, às vezes, êxtases. De modo que o convertido podia, até
o fim de sua vida, lembrar-se com pormenores do dia de sua conversão. Podia
datar a sua “experiência religiosa” e desenvolvê-la como uma emoção profun
da seguida de uma decisão existencial caracterizada por um “antes” e um
“depois”. Nas devidas proporções, reproduziram-se no Brasil as mesmas condi
ções do protestantismo avivalista de fronteira dos Estados Unidos. Para come
çar, os próprios missionários, como ocorreu com Ashbel G. Simonton, o
pioneiro presbiteriano, deviam ser frutos dos avivamentos. Depois, a mensagem
deles era para gente tão fronteiriça quanto os seus patrícios do norte: frontei
riços sob o ponto de vista da geografia, da sociedade e da religião. Tinham
que ser ganhas para a nova religião; portanto, a pregação, reproduzindo o
mesmo estilo das fronteiras norte-americanas, devia gerar os mesmos resul
tados, embora sem a mesma dramaticidade que descrevem, às vezes, os
historiadores do norte.
Não encontrei, em minhas pesquisas, nenhum relato completo de uma
reunião evangelística dos primeiros tempos do protestantismo brasileiro, isto
é, registro do sermão pregado e dos hinos cantados. Sabemos que os sermões
eram conversionistas e polêmicos; o pregador procurava apelar para a distin
ção entre a “verdade” e o “erro”, entre a nova mensagem e a religião domi
nante. O tom do sermão era dogmático e racionalista ao mesmo tempo;
dogmático ao fundamentar-se nos dogmas comuns do cristianismo que deviam
208
ser recuperados diante de uma melhor e mais verdadeira fundamentação escri-
turística, e racionalista ao procurar tecer o sermão numa lógica irrecusável.
O objetivo era convencer o ouvinte de uma verdade contra outra. Mas o dog-
matismo-epistemológico-polêmico nem sempre era suficiente para mover o
ouvinte a uma mudança de atitudes; daí a necessidade de aliar ao sermão, já
na maior parte das vezes dramático, cânticos apropriados para auxiliar a ele
vação do “tonus” emocional da reunião, formando ambiente favorável às
decisões individuais (conversão).
A insistência com que os grupos protestantes tradicionais ainda cantam
certos hinos de penitência e conversão parece indicar que eles fazem parte
do patrimônio cultural do protestante brasileiro, construído a partir dos marcos
experienciais de conversão da primeira e segunda gerações de protestantes.
Na análise que fiz dos hinos que compõem o volume “SALMOS E
HINOS”, encontrei mais de 70 cânticos de penitência e conversão entre os
608 do total. Esta análise não é rigorosa; a composição desses hinos é, regra
geral, eclética. Tratam de vários temas ao mesmo tempo, de maneira que
muitos outros incluem apelo para conversão. Mas, o que parece mais impor
tante é que eles eram os mais cantados nas congregações e no dia-a-dia do
protestante. Apesar de ter de voltar a este assunto mais adiante, vou dar dois
exemplos desse tipo de cântico:
Ó quão cego andei, e perdido vaguei
Longe, longe do meu Salvador;
Mas do céu ele desceu, e seu sangue verteu
P’ra salvar a um tão pobre pecador*6
Vem, filho perdido!
Ô pródigo, vem!
Ruina te espera
Nas trevas além!
Tu, de fome gemendo!
ô ! filho perdido,
Vem, pródigo, vemZ87
A estratégia das grandes campanhas de avivamento religioso de João
Wesley na Inglaterra foi essa de acompanhar os dramáticos sermões com
hinos desse teor, o que se repetiu nos movimentos de fronteira nos Estados
Unidos; há, portanto, razões para se crer que a mesma estratégia tenha sido
usada no Brasil. Percebe-se, portanto, que nos primórdios do protestantismo
no Brasil, a crença religiosa era uma composição de dogmastimo, raciona-
lismo e emocionalismo. Esta difícil composição epistemológica e emocional
parece que marcaria uma permanente dialética nos desdobramentos históricos
do protestantismo no Brasil.
209
O fenômeno da conversão instantânea não ocupa de modo exclusivo a
história da expansão do protestantismo no Brasil. Embora não tenhamos
dados seguros para comparação, é certo que outro tipo de conversão tenha
também o seu lugar nas histórias de vida de muitos protestantes. Há indicações
biográficas de conversões que se deram após muitos anos de apréndizado das
doutrinas protestantes. Embora as lideranças eclesiásticas sempre busquem no
neófito aquele momento decisivo em que ele, por um ato de vontade, resolveu
dar o passo de ingresso na igreja como adepto, não se despreza upi longo
aprendizado. A experiência de muitos protestantes mostra mesmo qjue a apren
dizagem anterior tom a a conversão mais confiável para a liderança. Nas igrejas
presbiterianas, por exemplo, o rito de ingresso de um candidato na comunhão
da igreja é precedido de um exame de conhecimentos bíblicos e doutrinários.
Há mesmo aulas de preparação prévia em classes especiais. Creio que, pelo
menos entre os presbiterianos, o aspecto epistemológico é mais importante
do que a experiência emocional da conversão. Numa das atas do Conselho da
Igreja Presbiteriana do Rio Novo — SP está registrado o seguinte:
“Foram examinadas Sebastiana Maria Gertrudes e Rita Camargo, mas
não foram recebidas por não terem, ainda, o necessário conheci
mento”.88 -
O Rev. Miguel Torres registrou no livro de atas da Igreja Presbiteriana
de Borda da Mata — MG:
“A 31 de julho de 1886, Pedro C. do Lago e Amador Marques Pe
reira, tendo sido previamente examinados, professaram publicamente
sua fé. . . O ato das profissões teve lugar na fazenda denominada
Parcúso, pertencente ao Sr. Pedro C. do Lago”.69
O rigor da exigência desses exames pode ser avaliado pela observação
que o Presbitério São Paulo, ao qual estava jurisdicionada a Igreja Presbite
riana de Rio Novo, apôs ao livro de Atas dessa Igreja pelo fato de se regis
trarem vários ingressos de novos membros sem que se declarasse terem sido
eles regularmente examinados.
Não seria demais lembrar aqui a concepção teológica que valoriza a ação
do intelecto no processo de conversão, embora não tenha eu encontrado refe
rência específica sobre sua influência na teologia dos missionários, mas que
de algum modo deve ter ocorrido em meio às refregas teológicas que prece
deram a era missionária. Em 1633, a Academia de SAUMUR, na França,
tradicionalmente calvinista, passou a adotar um ponto de vista intermediário
entre o calvinismo e o arminianismo. Nem o arbítrio divino nem a livre
vontade humana, mas uma conjunção das duas partes: a ação divina sobre
21 0
o intelecto e através deste sobre a alma. Ou, dizendo de outro modo, o ato da
vontade se dá após o ato cognoscitivo90. Creio que a notória tendência do
protestantismo para se apresentar como um saber se deve, pelo menos em
parte, a essa corrente teológica que se esforçava para ajustar o calvinismo
ortodoxo às novas tendências humanísticas da época e que ganhou notável
importância no espírito do protestantismo americano, tomando-se, parece,
importante lastro da Nova Escola dos presbiterianos.9’
3 . NEOPLATONISMO E TRANSCENDENTALISMO
90 O principal teólogo de Saumur foi Moisés Amyraldus (1596-1664), not&vel por seus
esforços para atenuar a doutrina da predestinação. Sua obra mais polêmica foi o Tratado da
Predestinação, publicado, parece, em 1634.
91 Briggs, Charles A., 1916, vol. II, p. 160.
92 Smith, H. Shelton et alii, 1963, vol. II, p. 119.
93 Idem, p. 119.
94 Em 17/10/1859, Simonton escreveu no seu Diário: “Recebi ontem uma nota da
Sra. Cordeiro, pedindo-me para batizar-lhe seu filho. Lembrei-me da minha última visita a ela
e da impossibilidade de aceder, visto que rejeita uma das doutrinas fundamentais ^o cristianismo.
Visitei-a a caminho da Saúde e conversamos novamente. Repeti as razões da recusa, discutindo
com ela a divindade de Cristo. Conversa bem e parece inteligente, mas seus pontos de vista
211
cendentalismo e que apresentava amplo espectro no pensamento protestante
americano no século XIX, o fato é que nas estantes dos protestantes cultos
brasileiros, inclusive pastores, livros sobre Emerson começaram a aparecer.95
O autor deste trabalho viu, em bibliotecas de igrejas, exemplares de livros de
e sobre Emerson. Hoje passou da moda, mas nas primeiras décadas do século
XIX, o transcendentalismo de Emerson provavelmente se apresentava como
a confirmação do pensamento conservador protestante que viera por canal
qualquer da empresa missionária. O fato é que o platonismo subjacente ao
transcendentalismo está presente na mensagem institucional protestante desde
sua implantação no Brasil.
As linhas mestras do pensamento de Emerson apareceram em 1826 no
seu sermão pregado perante a Associação de Pastores de Middlesex, como
prova para seu ingresso no ministério. Essas linhas mestras se baseiam em
duas idéias filosóficas: 1) a supremacia do espírito sobre a matéria, e 2) o
imediatismo de Deus na alma humana. Esse idealismo de Emerson, sem entrar
em complicações mais avançadas tem, pelo menos, duas implicações muito
significativas: o distanciamento entre a religião e a ordem social e a negação
da religião como um saber ordenado, lógico, em favor de um certo tipo de
intuicionismo pessoal. A tradição idealista, desde Platão até o neokantismo,
fornece o principal estímulo a essa forma de pensamento95. A questão episte-
mológica parece ter, posteriormente, encontrado bom apoio na teologia do
sentimento de Schleiermacher (m. 1834), em que o subjetivismo em religião
se transforma em crítica aos dogmas e, por conseqüência, à toda sistemati-
zação objetiva de doutrinas. Para Schleiermacher, religião não é um saber nem
um fazer, mas uma experiência do divino. Em suma, era a velha luta entre
o racionalismo e o romantismo idealista.
Há muitas razões para se admitir que o transcendentalismo, com suas im
plicações iniciais pelo menos, encontrou algum canal para se instalar no pro
testantismo brasileiro. As múltiplas referências em sermões e hinos sobre a
superioridade da vida no além sobre a presente, do céu sobre a terra e do
espírito sobre a matéria indicam que o transcendentalismo deixou aqui a sua
marca, constituindo considerável reforço para a doutrina da Igreja Espiritual.
Não pode deixar de causar curiosidade, ainda, que o neoplatonismo tenha
adquirido, no pensamento protestante brasileiro, aproximações estranhas com
o maniqueísmo. Não se trata, por certo, de criação do espírito brasileiro; ele
encontrou canais que o filtraram dos portadores da mensagem protestante.
Não importa agora buscar essas origens; basta constatar sua presença nos
sobre as verdades religiosas são muito superficiais. Para ela, a religião consiste em conseguir
chegar ao céu por meio da imitação de Cristo. Acha que esse propósito é de todos os que se
dizem cristãos e considera intolerância da minha parte não reconhecer os unitários como
discípulos de Cristo”.
95 Não confundir com Harry Emerson Fosdick (1878), fundador da igreja interdenomina-
cional Riverside Church, em New York, autor de muitos livros conhecidos no Brasil.
96 Smith, H. Shelton et allii, 1963, vol. 11, p. 121.
212
cânticos sagrados protestantes. Na guerra temporária entre dois poderes, do
bem e do mal, da luz e das trevas, da verdade e do erro, o cristão se alista
como soldado do bem, da luz e da verdade. No levantamento que fiz nos SAL
MOS E HINOS, encontrei trinta e cinco cânticos que versam sobre o tema
queu classifiquei como “HINOS DE BATALHA”, embora, como já afirmei
em outro lugar, o tema apareça em numerosos outros, dado o ecletismo doutri
nário idos hinos.
Transcrevo, como exemplo, algumas estrofes dos hinos mais represen
tativos desse “tema de batalha”.
Este, traduzido por Sara Kalley:
213
RESUMO E ALGUMAS CONCLUSÕES
214
que eles trouxeram para o culto no Brasil não foi a acadêmica, mas a teologia
das suas formas de crença, no seu conjunto a teologia dos avivamentos à
qual as diversas tradições haviam se esforçado para encontrar meios de ajusta
mento. De modo que a teologia dos púlpitos e do culto em geral não foi a dos
seminários e academias. Essa mesma defasagem ocorreu no Brasil quando os
presbiterianos começaram a formar os seus pastores em seminários. As compli
cações da teologia não eram levadas para o púlpito. O púlpito desempenhou
no Brasil um triplo papel: o de polemizar contra a Igreja Católica, o de infun
dir moral e o da explanação bíblica. Este último papel talvez tenha sido respon
sável pela única via pela qual o protestantismo pode mostrar sua presença na
cultura brasileira. O conhecimento das línguas bíblicas, a prática da exegese e
da hermenêutica sobre os textos sagrados produziu filólogos e gramáticos
conhecidos. Por outro lado, a polêmica e o moralismo isolaram os protestantes
da cultura, assim como este último, o moralismo, parece ter fechado as portas
dos eruditos protestantes para a literatura.
Se, como dizem H. Shelton Smith e os demais autores de “American
Christianity”103, “a teologia americana, em 1865, tinha muita mobília na des
pensa que nunca era usada na sala de visitas”, o mesmo ocorreu no Brasil.
Se alguma mobília eles descarregaram nos seminários, dela pouco chegou
aos púpitos.
As pontas de linha da teologia que chegaram ao culto protestante no
Brasil tinham, repito, como trilho mestre a ideologia dos avivamentos, mas
traziam o colorido das múltiplas tendências dos diversos estratos missionários.
Encontrando aqui um meio social diferente sofreu por sua vez um processo
de filtragem que acabou produzindo um protestantismo “sui generis”. Tentarei
analisar e entender esta questão logo a seguir.
215
A P Ê N D IC E
A PEDAGOGIA DA DIFERENÇA
104 O exemplar que tenho em mãos pertence ao arquivo do Rev. Vicente Themudo Lessa,
Vol. n.° 39. Traz a lápis, na primeira página, a indicação “a. 1889”. Há evidências de que
tenha sido publicado pela “Livraria Evangélica”, Travessa da Barreira, 15, Rio de Janeiro. Pela
editora, deve tratar-se de produção dos presbiterianos.
217
C . A Igreja é o papa, os bispos, os curas.
P . De sorte que para interpretar a Bíblia deveis recorrer a homens?
C . E vós a quem recorreis?
P . Ao Espírito Santo.
C. Isso agora é outra coisa.
P . Sem dúvida; pois o vosso intérprete é o homem e o meu intérprete
é Deus.
C. Mas Deus não vos vem explicar no vosso aposento. . .
P . Não; mas eu lhe peço; e, segundo a sua promessa, ele pode e deve
mesmo enviar-me seu Espírito Santo.
C. Isso não é seguro!
P . Dizei-me: quando vosso filho vos pede pão, lhe dais uma pedra?
Ç. Não.
P . E sois melhor do que Deus?
C . Não.
P . Então estais vendo que se eu peço a Deus o seu Espírito de verdade,
ele (que é melhor do que vós) não me mandará um espírito de erro. É ele
mesmo quem diz isso.
C. Bom. . . E depois?
P . Depois (vou fazer-vos outra pergunta): quem é o chefe da vossa
Igreja?
C . O papa.
P . Quem é o papa? ,
C . O papa, o papa. . . é o papa.
P . Sim; porém que qualidade de ente é ele? é um anjo? é. . .
C . Não senhor; nem mesmo é um santo; o papa é homem e nada mais.
P . Pois então em quanto vós tendes por chefe da vossa Igreja o papa,
eu tenho por chefe da minha Igreja Jesus Cristo. O vosso papa é um homem;
o meu Jesus Cristo, é um Deus!
C. Mas nós também temos Jesus Cristo por chefe da Igreja.
P . E quem vos transmite as suas ordens?
C. O papa, seu vigário.
P . E como sabeis que são exatamente as ordens de Jesus Cristo?
C . Porque o papa assim o diz.
P . De maneira que para garantia do papa tendes o próprio papa; o papa
que vos governa, que é o vosso chefe, é que dá a si mesmo o diploma de
vigário!
C. Ele não se nomeia a si; são os cardeais que o nomeiam.
P . Esses cardeais são anjos? são .. .
C. Não são mais que o papa.
218
P. Logo são homens. Ora, homem por homem, amo tanto uns como
outros, e a minha conclusão é sempre justa: os vossos chefes são homens, o
meu chefe é Deus.
C. Percebo a vossa astúcia; dissemos há pouco que a Santa Escritura
era explicada ao católico pela Igreja composta de homens, e ao protestante
pelo Espírito Santo que é Deus, agora me dizeis que o meu chefe é homem,
pois é o papa, e que o vosso chefe é Deus, pois é Jesus Cristo, tudo para
me persuadir que. . .
P . Justamente a vossa religião é de homens, e a minha religião é de Deus?
C. Mas vejamos o fim. O protestante também é um Deus?
P. Não, caro amigo, tanto os protestantes como os católicos são homens
que mais se assemelham a Satanás do que a Deus.
C. Que dizeis?!
P . Digo que o homem é de natureza mau, e tão mau que perante Deus
está condenado e perdido.
C. Assim ides muito longe; para todos os pecadores há misericórdia:
não se diz mesmo que é preciso perdoar até setenta vezes sete? Logo, seremos
perdoados.
P . Mas para ser perdoado é preciso ao menos sentir e confessar suas
faltas.
C. De certo; e o católico se confessa.
P . A quem?
C. Ao cura. E o senhor a quem se confessa?
P. Todo mundo sabe que o protestante se confessa a Deus.
C. É muito mais agradável.
P . Dizei por conseguinte que é muito mais razoável.
C . Por que?
P . Dizei-me: quando éreis criança, provavelmente mais duma vez ofendes-
tes a vosso pai?
C. É verdade.
P . E então, íeis pedir perdão a vosso primo?
C. Compreendo: Deus é o meu pai, e o padre é o meu primo.
P . Exatamente. Porém isto não é tudo; não basta pedir perdão para
apagar uma falta; o devedor que se desculpa não fica livre da prisão se não
tiver um amigo que lhe pague a dívida; o matador que chora não fica livre
do cadafalso se não tiver um rei que lhe mande o perdão.
C. É exato.
P . Segundo a fé protestante, é Jesus quem paga a nossa dívida, é Jesus
quem nos concede o perdão, pois foi Jesus quem morreu por nós para ser
nosso Salvador.
C . E o nosso também.
219
P . Não!
C . Como não?
P . Não vos admiraste quando há pouco vos disse, que o homem era mau?
C. Sem dúvida.
P. Logo julgais que ele é bom.
C. Ao menos um pouco.
P . Então julgais que o homem é capaz de merecer um pouco o céu,
ou ao menos, por suas qualidades, apagar as suas faltas e contribuir por si
mesmo para sua própria salvação!
C. Isto me parece justo.
P . Logo, em parte, o homem é seu próprio salvador? Ora nós somos
homens e não deuses.
C. Sim; mas eu conto também com Jesus Cristo para me salvar; por
exemplo, no sacrifício da missa.
P . Quem diz essa missa?
C. O padre.
P . De modo que o padre é necessário para esse sacrifício de Jesus Cristo.
C. É claro.
P . Então o padre é em parte vosso salvador. Bem vedes, portanto, que
tenho razão de dizer que enquanto o meu Salvador é unicamente Jesus Cristo
Deus, o vosso salvador (sejais vós ou seja o padre) é um simples homem!
C. Não sei como vos arranjais que chegais sempre a mesma conclusão!
P. Ainda não chegastes ao fim.
C. Continuemos pois.
P . Quando o padre acaba a sua missa, quando pronuncia sobre vós a
sua absolvição, ficais perfeitamente salvo?
C. Não; depois da absolvição devo cumprir algumas penitências e fazer
algumas boas obras.
P . Isso quer dizer que vos santificais por vossas próprias obras; enquanto
que eu penso que não possa ser santo na minha vida senão pelo socorro do
Espírito Santo. Portanto, santificando-vos por vossas próprias forças, sois
ainda santificado por um homem; e quanto a mim, reconhecendo minha
incapacidade de fazer o bem e esperando tudo do Espírito Santo, sou santifi
cado por Deus. Por conseqüência a vossa religião é de homem, e a minha
religião é de Deus.
C. Está acabado?
P. Ainda um pouco. Dizei-me: quem intercede por vós no céu?
C. Maria.
P . E mais quem?
C. Meu padroeiro.
220
P. E depois?
C. O santo da minha paróquia.
P. Quem mais?
C. Todos os santos do paraíso.
P. O que são esses santos!
C. Sei-o eu. . . são homens.
P . Certamente que são homens; e eu não recorro senão a intercessão
onipotente de Jesus Cristo Deus, conforme a seguinte declaração da Bíblia:
— “Não há senão um só intercessor entre Deus e os homens, a saber, Jesus
Cristo” ( l.a a Timóteo 5).
P . Agora concluamos: Para interpretar a Bíblia tendes a Igreja composta
de homens; eu tenho o Espírito de Deus. Por chefe tendes o papa que é
homem; eu tenho o filho de Deus. O vosso confessor é um homem; o meu
confessor é Deus. Para vos salvar tendes uma missa cantada por um padre
que é homem; eu tenho a sacrifício cumprido na cruz por Jesus Cristo Deus.
Para vos santificardes confiais nas vossas penitências e boas obras, isto é, nas
forças do homem; eu confio unicamente no socorro do Espírito de Deus.
Por intercessor tendes no céu criaturas outrora homens; eu tenho Jesus Cristo,
sempre Deus. Por conseguinte, estais vendo que a vossa religião é de homens,
o que a minha religião é de Deus.
C . Então, por este cálculo toda a vossa salvação vem de Deus?
P . Certamente, e eis exatamente a razão por que esta salvação é perfeita!
É Deus mesmo quem me explica a Bíblia, que a minha fraca inteligência não
poderia compreender. É Deus que me serve de chefe, e eu nunca devo temer
que o meu rei seja destronado. É a Deus que me confesso, e estou certo que
ele não será nem muito severo, nem fora de propósito clemente; perante ele
não posso ser tentado a esconder a verdade, e não tenho necessidade de alegar
longas razões para me desculpar. É Deus que oferece o sacrifício base da
minha salvação, e então tenho a certeza de que ele ficará satisfeito: o sacrifício
de um Deus! quem poderia dar mais? E eu sinto que ele dá a paz à minha
consciência e alegria ao meu coração. É Deus mesmo quem intercede por
mim no céu; como temerei eu que uma tal oração não seja eficaz? E é
justamente por que esta salvação vem toda de Deus que eu me sinto em
segurança!
C. E se eu pretender ser salvo sem a intervenção do padre, farei bem
ou mal?
P . Não fareis senão bem.
C . Mas vós tendes muitos ministros ou pastores.
P . Sem dúvida; mas não para me salvar.
Entre o ofício do ministro e o do padre a diferença é grande: o padre
chama o pecador a si; o ministro dirige o pecador a Deus. O padre declara-se
necessário para cumprir a vossa salvação; o ministro não é senão um amigo
221
mais instruído que me mostra o caminho e me deixa andar ou antes, me
coloca debaixo do ensino do Espírito Santo. O padre monopoliza as graças
divinas para depois ceder-vos uma parte a preço de dinheiro: o ministro me
mostra o tesouro das graças e me convida para fartar-me ali. Se o padre não
vos absolve, se não diz sua missa para vosso proveito, se antes da morte
não vos traz os sacramentos, passareis do seu purgatório para o inferno, ou
ao menos ficareis mais tempo no seu purgatório; enquanto que sem absolvição,
sem missa, sem extrema unção de meu ministro eu posso, com fé no coração,
ir diretamente para o paraíso. Na vossa religião o padre exagera sua importân
cia até fazer-se indispensável, e acaba colocando-se na porta do céu para não
vos deixar passar com a vossa carga de pecados se não depois de lhe terdes
pago o bilhete de entrada. Eis justamente o que me torna esse padre suspeito;
quanto mais ele engrandece o seu papel, engrossa a sua voz, incha as bochechas,
mais desconfio.
C . Para vos dizer a verdade, nisso concordo convosco, e espero salvar-me
sem ele; portanto o que importa é ser homem honrado e não ter de que
se acusar.
P . Caro amigo, tal não é o catolicismo de vosso cura; mas em suma é
ainda o espírito do catolicismo; por que isso importa dizer que podemos
merecer o céu por nossas boas obras.
C . Sem dúvida.
P . Mas esse resumo da vossa religião é ainda oposto à nossa. Segundo
vós, a salvação vem das obras do homem; segundo nós, vem sempre da
graça de Deus.
C . A graça de Deus! a graça de Deus! Trazeis sempre a mesma coisa!
há pouco, para me salvar não queríeis nem padre nem santos; agora nem
mesmo precisais de mim. . .
P . Eu vos aceito. Vejamos que bem podeis fazer. Mas notai que repelindo
a graça, não deveis invocar senão a justiça, numa justiça completa, estrita,
absoluta. Deus recompensará as vossas menores ações, mesmo um copo de
água fria dada ao desgraçado. Recordemos: que bem tendes feito na vossa vida?
C . Em primeiro lugar, toda a minha vida tenho trabalhado.
P . Para quem?
C . Para mim, sem dúvida.
P . E é por terdes trabalhado para vós que exigis a recompensa?
C. Porém tenho trabalhado também para meus filhos.
P . Assim como vosso pai trabalha para vós; logo não tendes cumprido
que as vossas obrigações.
C . Mas eu não devia nada a meus filhos.
P . Sendo assim, são eles que vos devem recompensar e não Deus.
C . De mais a mais, sempre fui homem honrado, nunca matei nem roubei.
222
P . Mas, respeitando a vida e a propriedade de vossos irmãos, não tendes
feito senão aquilo mesmo que deles exigíeis; até ali Deus nada vos deve.
C . Posso ainda dizer que nunca tive os vis defeitos de tanta gente; nunca
fui beberão nem libertino.
P . Para poupar vossa saúde e dinheiro, que são a vossa recompensa.
C. Enfim, sempre me comportei como um homem honrado!
P . Para conservar vossa reputação; e por tudo isso, Deus nada vos deve.
Para ser pago de alguém, é preciso ter feito alguma coisa para ele; ora, o
que tendes feito por Deus?
C . Ma s . . .
P. Sempre mas! Visto que pretendeis merecer o céu por vossas obras,
deveis ser tratado com justiça; Deus não vos pode dar senão à proporção
do que lhe tendes dado. Ora, torno a perguntar-vos, o que tendes feito para
ele?. . . Não respondeis? Quem não responde de certo que está embaraçado.
Não importa, eu mesmo quero tirar-vos do embaraço. Suponho que tendes
consagrado ao vosso Criador, toda a vossa vida: com isso não fizestes mais
do que dar-lhe o que lhe pertencia, pois esta vida vem dele, e não é propriedade
nossa. Quero ir mais longe: admiti que esta vida seja propriedade vossa, e
que, tendo o direito de empregá-la para vós, a tendes entretanto consumido
toda inteira para vosso Deus; o que mereceis por isso?
C. Mereço o céu por toda a eternidade.
P . Como! quarenta ou cinqüenta anos de vida valem milhões de milhões
de anos! Como! algumas esmolas sobre a terra merecem as inegáveis alegrias
do céu. Não tendes pensado sobre isso! Para que sejais tratado com equidade
é preciso que se vos dê o justo preço das vossas obras ou da perseverança de
vossa devoção. Empregastes vinte ou trinta anos de felicidade.
C. Zombais de mim?!
P . Não meu amigo; eu julgo que desta maneira Deus vos recompensa
com justiça. Ousareis dizer que Deus vos deve tantos séculos quantos minutos
lhe tendes dado? Ainda sendo assim, haveis de concordar que essa felicidade
deve acabar. Os vossos minutos tiveram fim; a recompensa o terá também.
Exagerai as vossas obras quanto quiserdes; é preciso reconhecer um termo
ao seu preço, e este termo será o da vossa felicidade nos céus. Pagar-se-vos-á
até o último óbolo; mas depois de terdes sido pago deveis retirar-vos.
C. Nós o veremos quando lá estivermos; e enquanto espero vou
desfrutando.
P . Um instante! Um instante! exigistes uma estrita justiça, uma exata
recompensa de vossa vida: e nós não temos feito a conta senão do bem.
C . Como?
P . Sem dúvida; o mal também deve ser recompensado, e a sua recom
pensa é o castigo.
C . Ides falar-me das penas eternas?
223
P . Vou falar-vos da simples justiça; da justiça segundo as vossas próprias
idéias. Visto que aceitais a recompensa de vossas virtudes, recebei também a
recompensa de vossos vícios. Ou nunca fizestes o mal? Eu não quero exagerar
a punição, quero diminuí-la tanto quanto quiserdes; mas depois de todas estas
concessões haveis de concordar que tanto as vossas faltas como os vossos
merecimentos devem ser premiados; ora, a recompensa de uma falta é um
castigo.
C. Mas eu não tenho feito tanto mal!
P . Assim como não tendes feito tanto bem; e a conseqüência de tudo
isto é que não tereis nem grande recompensa nem grande castigo. Quando
Deus vos tiver pago tudo, ficareis reduzido a nada.
C . Nada?
P . Sem dúvida. Deve-se-vos alguma coisa dos vossos merecimentos. Não
estão eles acabados. Vejamos; o que quereis por uma boa ação.
C. Longos anos de felicidade.
P . E por uma só falta tereis longos anos de sofrimento.
C. Porém eu tenho feito mais bem do que mal; e ficando assim apagado
o mal, o excedente do bem é só o que resta para ser recompensado.
P . Caro amigo, tudo o que tendes dito, assim como tudo aquilo em
que tenho concordado convosco, está cheio de erros e de absurdos! Não
importa; quero seguir-vos até o fim. Supondo ainda (contra toda a verdade)
que Deus, tomando conta das vossas boas e más ações, fica sendo vosso
devedor; é preciso que fiqueis convencido de que a sua dívida para convosco
não é grande, e que por conseguinte a vossa felicidade no céu há de acabar.
Pedi, se quiserdes, em lugar de quarenta anos, quarenta séculos; ficareis no
fim reduzido a nada, para sempre nada!
C. Não! eu não quero o nada! Quero, como vós, uma vida sem fim!
Deus é bom demais para me condenar!
P . Deus é muito bom! E é justamente por ser muito bom que ele vos
oferece desde já a salvação sem condições, sem boas obras e apesar mesmo
das vossas más obras. Numa palavra: este Deus perdoa e vos salva: mas ao
menos reconhecei que ele vos dá o perdão sem que o tenhais merecido!
C. Não! não! e eu vos declaro que antes quero ajuntar às minhas boas
obras, os merecimentos dos santos, as missas do meu cura e as orações de
meu padroeiro, do que ir mendigar a vossa graça de Deus.
P . Podeis fazer o que quiserdes; mas então reconhecei que o vosso
catolicismo, pondo vossa salvação dependente das cerimônias do padre e das
virtudes do fiel, descansa no homem; enquanto que a minha fé protestante,
pondo todas as minhas esperanças no perdão de Jesus, na influência do
Espírito Santo e na graça do Pai, firma-se unicamente em Deus. Logo, em
todos os sentidos são verdadeiras as seguintes palavras: A vossa religião é de
homens; a minha religião é de Deus!
224
C . É o vosso modo de ver; mas não é o meu.
P . Conheço que desejais terminar a discussão; mas escutai somente uma
pequena história: — “Jesus nos conta que dois homens subiram ao templo de
Jerusalém para orar. Um disse: Graças te dou, meu Deus, porque não sou
como os mais homens, que são uns ladrões, uns injustos, uns adúlteros. Jejuo
duas vezes na semana e pago o dízimo de tudo o que tenho. O outro pelo
contrário não ousava nem ainda levantar os olhos ao céu, mas batia nos
peitos, dizendo: Meu Deus sê propício a mim pecador.” Qual dos dois pensais
vós que voltou justificado para casa?
C. Não sei.
P. Pois lede o capítulo XVIII do Evangelho segundo S. Lucas, e
sabê-lo-eis.
* *
*
225
C A PÍTU LO II
“M ais belo que um rosai, o lar celeste tem a bênção p‘ra o m ortal,
o gozo eterno além; A li só há prazer, vos manda o R ei dizer”.
Elisa R . Smart*
227
Os presbiterianos, relutantes nos Estados Unidos quanto ao sistema meto
dista de expansão nas frentes pioneiras e, com freqüência, quanto à teologia
pregada por eles, tiveram, por causa das condições geográficas, aqui encon
tradas, de aderir aos mesmos métodos. A única diferença é que, pelo menos
nos primeiros tempos, raramente admitiram a ordenação de pastores sem
preparo acadêmico. Nisto não acompanharam os metodistas cujos pastores,
nos Estados Unidos, eram quase sempre leigos. Foi por isso que, já em 1867,
os presbiterianos haviam instalado no Rio de Janeiro o primeiro seminário
protestante de toda a América Latina. Pelo que se lê nas crônicas dos pri-
mórdios do protestantismo no Brasil, as condições de ordem intelectual e
pessoal para admissão às ordens eclesiásticas entre os presbiterianos eram
rigorosas. Com toda a carência de pessoal habilitado, dada a relativamente
rápida expansão dos presbiterianos nas primeiras décadas, a seleção de candi
datos ao pastorado era cuidadosa e o seu preparo intelectual prolongava-se
por cerca de cinco anos ou mais.
Já afirmei que a teologia que os pastores pregavam buscava um equilíbrio
entre o calvinismo e o arminianismo. Embora o sistema eclesiástico e certas
doutrinas como a da soberania e a glória de Deus fossem mantidas na pregação,
havia uma notável quebra do núcleo do calvinismo, isto é, da célebre doutrina
da predestinação. Não havia como pregá-la quando o objetivo era atrair cató
licos para o redil protestante e para isso era impossível fugir à prédica conver-
sionista do arminianismo avivalista. A oratória dramática dos avivalistas ganhou
bons adeptos no Brasil. Mas, regra geral, a prédica tanto conversionista como
polêmica, em que o pregador procurava ressaltar a “verdade” protestante con
tra o “erro” católico, era pedagógica. O bom pregador era aquele que, além
de saber arrebatar os ouvintes por uma retórica dramática, podia construir um
arcabouço lógico capaz de conseguir a adesão intelectual do seu auditório. É
neste sentido que a teologia de Saumur parece ter dado boa contribuição ao
produzir no Brasil um protestantismo construído mais sobre o saber do que
sobre o sentimento.
Não estou disposto a descartar o sentimento no ato da conversão. Ela é
um ato de emoção e vontade ao mesmo tempo, regra geral produzida pelos
pregadores dramáticos com a ajuda de cânticos avivalistas apropriados ou
mesmo simplesmente pelos cânticos sem a pregação. Estes dois elementos
produziram resultados juntos ou em separado. Mas o que caracteriza o protes
tantismo no Brasil como sendo essencialmente um saber é que antes ou depois
da conversão, os indivíduos são levados à uma adesão intelectual. Varia o lugar
mas não o fato. A experiência dos protestantes é que a “datação da conversão”
nem sempre é fundamental para o ingresso na igreja, mas o conhecimento, a
adesão intelectual a uma verdade, é decisiva. Noutra parte deste trabalho já
mostrei como postulantes ao rol eclesiástico eram recusados, pelo menos tem
porariamente, por não revelarem conhecimentos suficientes. Os presbiterianos
pelo menos, desde o início, submetem seus adeptos a um “exame” prévio ao
ritual de ingresso. Ora, exame pressupõe pesquisa de conhecimento.
228
Mas, os presbiterianos, desde o início ainda, continuaram apresentando
uma outra forma de ruptura entre a teologia e a prática. Quando se organizou
institucionalmente no Brasil, a Igreja Presbiteriana adotou, à semelhança da
Igreja-mãe americana, como padrão doutrinário, a Confissão de Fé de West-
minster e seus Catecismos1. Essa Confissão, produzida pela Assembléia de
Westminster, entre 1643 e 1649, a última das confissões produzidas no período
da Reforma, constituiu, para os calvinistas posteriores “um pequeno sistema de
teologia. Esse sistema é conhecido pelo nome de calvinismo, por ser o que
João Calvino ensinou, e foi aceito pelas Igrejas Reformadas, que diferiam
das luteranas”2. Vê-se aí que a Confissão de Westminster, assim como a
maioria das Confissões Protestantes, é aceita como um “Sistema de Teologia” .
Talvez isso se aplique muito bem à Confissão em questão porque ela é a mais
extensa e elaborada das Confissões do período da Reforma. Sua sistematização
se completa pelos dois catecismos que a acompanham: o MAIOR e o BREVE,
elaborados segundo o tradicional sistema de perguntas e respostas.
Pelo menos nos primeiros cinqüenta anos, talvez até o surgimento dos
primeiros materiais didáticos da Escola Dominical, que parece ter ocorrido na
década de 30, o Breve Catecismo funcionou como material de instrução reli
giosa. Embora ao ensino do Catecismo, super-sistematização da Confissão de
Fé, não correspondesse à pregação arminiana dos pastores, o tempo do Cate
cismo caracterizou, parece, o período mais genuinamente presbiteriano dos
presbiterianos brasileiros. Quando, bem mais tarde, o material de doutrinação
passou a ser produzido pela Confederação Evangélica do Brasil, órgão protes
tante ecumênico, a teologia calvinista dós presbiterianos foi substituída pela
teologia mais ou menos uniforme de todas as denominações brasileiras consi
deradas neste trabalho, isto é, a dos avivamentos americanos, arminiana e
pietista. Então ocorreu o seguinte: a doutrinação, tanto do púlpito como da
Escola Dominical, continuou a ser uniformemente arminiana, avivamentalista e
pietista, ficando o sistema calvinista circunscrito ao seu último reduto: a cátedra
dos seminários.
Tentando, enfim, construir um quadro compreensivo da situação, poder-
se-ia dizer o seguinte: o culto presbiteriano, que estou tomando como modelo,
no seu todo, isto é, cânticos e pregação, era arminiano-metodista; a teologia da
doutrinação catequética e a da cátedra era calvinista. Isto antes da evolução
descrita. No culto restou um resíduo do calvinismo ortodoxo: a oração. Na
oração o presbiteriano ressalta a soberania e a glória de Deus. É corrente,
entre presbiterianos pelo menos, a expressão dessa ambigüidade teológica: “o
presbiteriano quando ora é presbiteriano, mas quando prega é metodista” .
A Confissão de Fé de Westminster, produto um tanto tardio da Reforma,
é uma das mais típicas expressões do escolasticismo protestante. Aliás, o esco-
229
lasticismo protestante, reavivado no século XIX, como vimos no final do
capítulo II, I Parte, estendeu-se até fins desse século.
No protestantismo brasileiro, fim de linha de quase todos os movimentos
de idéias ocorridas na Europa e principalmente nos Estados Unidos, o escolas-
ticismo, com o seu espírito de sistema, permaneceu nas cátedras de seminários
até muito recentemente3. É provável que o escolasticismo esteja, aos poucos,
sendo abandonado no ensino teológico, mas ele permanece irredutível como
pano de fundo da ortodoxia dos presbiterianos, como baluarte final, última
instância, no julgamento de questões de fidelidade. A prova é que, no rito de
ordenação de presbíteros docentes e regentes os candidatos são obrigados a
declarar publicamente que aceitam “a confissão de Fé e os Catecismos de
Westminster como fiel exposição do sistema doutrinário ensinados nas Santas
Escrituras”4.
Embora a Confissão de Fé seja o último reduto do escolasticismo, o gosto
pela exposição lógica e coerente, a partir de princípios gerais e indiscutíveis,
ainda marca o protestantismo. Concluindo, o escolasticismo parece ter, de fato,
feito sua tenda no protestantismo do Brasil. Pelo menos isso é verdade para os
de tradição presbiteriana.
A pregação, quando não expositiva-doutrinária ou polêmica, era ética e
moralista. Embora posteriormente, como pretendo demonstrar, ela tenha sofrido
elaboração mais complicada a fim de atender a novos aspectos da vida, de iní
cio foi certamente baseada, em sua fase mais significativa, nos Dez Manda
mentos. É natural que a pregação polêmica usasse como argumento contra a
Igreja Católica o Primeiro e o Segundo Mandamentos5. Mas a vida religiosa
e moral enfatizava a observância do domingo e a moral sexual6.
A Confissão de Fé, sendo a última instância da ortodoxia e da disciplina,
encerra em si o princípio de autoridade. É a partir dela que se julga a fidelidade
dos adeptos à Igreja. A negação implícita ou explícita da Confissão eqüivale à
excomunhão da Igreja uma vez que ela encerra a razão de ser da Igreja como
instituição. Não importa que a teologia explícita e vivida seja de outra natureza;
a razão de ser e a autoridade eclesiástica constituem-se no sistema teológico
oficial que pode ser invocado pela ortodoxia. De modo que a ambigüidade
continua, uma vez que os adeptos não são julgados pelos padrões da fé que
vivem, mas por um sistema teológico fechado, e às vezes desconhecido para
a maioria deles.
230
1. A FÉ EXPLICITA
231
como objetivo, a estabilização e institucionalização das seitas e igrejas (a insti
tuição e o sistema ideológico correspondente), o que, em última istância, era
uma garantia contra as flutuações sociais; o pietismo de colorido moraviano
produzia o mesmo efeito no plano individual, isto é, protegia o indivíduo das
controvérsias doutrinárias perturbadoras de sua vida religiosa; finalmente, o
apocalipsismo projetava definitivamente as preocupações de qualquer natureza
para o mundo a-histórico do além (aqui se misturam os planos individuais e
sociais da vida futura).
A compreensão do protestantismo no Brasil reside na percepção da inter-
secção histórica do espírito dinâmico do protestantismo americano surgido no
bojo dos sucessivos avivamentos que sofreu, e de seu próprio “quietismo”
gestado pelo cansaço de seus próprios embates. Só o elemento dinâmico “rea-
vivalista” do protestantismo americano teria dificuldade para se instalar na
sociedade brasileira, já socialmente estratificada e culturalmente informada pelo
catolicismo ibérico; os canais de mudança social eram escassos, assim como o
campo para a compreensão de novas idéias era pouco fértil. Desse modo, para
doxalmente, foram os elementos “quietistas” do protestantismo americano que
acabaram dando o “ponto” exato na mensagem da “nova religião” para que
fosse aceita pela camada social que a recebeu.
As igrejas protestantes se institucionalizaram no Brasil e, por isso, oficiali
zaram seus sistemas de fé como base de disciplina e autoridade; esse foi o papel
das Confissões e outros símbolos, como credos, princípios normativos de fé etc.
Eles são ensinados nos seminários e eventualmente, nas Escolas Dominicais,
instituição poderosa de canalização e reforço do sistema de crenças implícitas.
De certo modo, os sistemas teológicos aqui entendidos caracterizaram, no
período do protestantismo7, a individualidade das diversas denominações histó
ricas que foram chegando. Os sistemas oficiais se constituíram no reduto final
da ortodoxia, baluarte da identidade denominacional.
Mas entre o sistema simbólico e a mensagem religiosa ia uma certa
distância, principalmente com respeito às tradições calvinistas. A pregação era
aquela dos avivamentos, colorida e reforçada pelo pietismo e pelo apoca
lipsismo.
A intermediação do pregador e de sua mensagem residia no fato de que,
por si sós, seriam inócuos diante das circunstâncias existenciais da camada
social receptiva. Talvez não tivesse a mensagem muito sentido ao falar em
conversão e santificação da vida moral para grupos humanos situados quase à
margem da vida social mais ampla. Certos tipos de comportamento e falhas
morais, talvez nem fossem conhecidos ou, de qualquer modo, só podiam ser
incorporados ou corrigidos em âmbito tão restrito que se tomariam até excên
tricos. A conversão e a conseqüente mudança de comportamento só têm sentido
quando abrem novos canais para aspirações existenciais e, quem sabe, sociais.
7 Já mostrei que, por volta da terceira década do século XX, com o advento do
ecumenismo protestante no Brasil, a Escola Dominical se transformou em instrumento de
unificação do pensamento protestante popular. A Confederação Evangélica do Brasil passou a
publicar material didático aceito pela maioria das denominações.
232
Mas ocorreu que a mensagem intermediária veio colorida pelo pietismo e pelo
apocaliptismo do pré-milenismo. Se o escolasticismo dos sistemas teológicos
garantiu a institucionalização das denominações num meio estranho e difícil
para a identificação delas diante da religião oficial, foram o pietismo e o apoca
liptismo que viabilizaram a aceitação da mensagem.
A camada dos “homens livres e pobres” da população brasileira com
todas as características já descritas no capítulo “Religião, Mundo Rural e
Frentes Pioneiras”, era certamente aberta para o apocaliptismo. Se os canais
para a participação e ascensão sociais eram escassamente acessíveis, nada
mais adequado do que uma crença que acenava com um porvir compensador
para uma existência incolor, vazia e sem nenhuma esperança. Por outro lado,
o isolamento relativo dos grupos, o distanciamento, no tempo e no espaço, dos
líderes religiosos (isso ocorreu mesmo entre os protestantes em que os pastores
itinerantes ficavam meses sem contato com suas congregações), em muito favo
receu o cultivo do convívio individual com a Bíblia, o que desenvolveu um
apego sentimental do protestante ao Livro Sagrado; a Bíblia acabou, por falta
de agente interpretador na maior parte do tempo, assumindo função oracular
ao dar respostas imediatas para as várias situações existenciais. Em suma, o
protestante assumiu uma postura caracteristicamente pietista, principalmente
com relação à Bíblia. Isto o distanciou, como ocorrera na Europa, do escolas
ticismo dos sistemas teológicos. Assim, parece ser possível entender a ambi
güidade existente entre o ensino institucional protestante no Brasil e o modo
de vivência religiosa de seus adeptos. Por isso, as denominações, como insti
tuições, são identificáveis, mas as formas pessoais de crença e vivência religiosa,
por si sós, não favorecem essa identificação. A razão dessa ambigüidade parece
residir, de um lado, na intermediação e, de outro, nas condições sociais do
receptor da mensagem religiosa.
Como parece ser verdade que o que identifica uma religião não é o siste
ma ideológico de instituição vinculada a contextos históricos-sociais já fora do
alcance dos adeptos, mas a vivência da crença no cotidiano, vou tentar identi
ficar a crença do protestante comum brasileiro a partir do principal documento
repositório delas, que é o seu livro de cânticos sagrados já anteriormente iden
tificado. Vimos, também, a origem diversificada dos cânticos inseridos nessa
obra e que mostra o seu vasto sincretismo teológico.
As denominações protestantes históricas, objeto deste trabalho, herdaram
a tradição das igrejas livres da Inglaterra e Escócia e não têm, a não ser para
ritos específicos como sacramentos, casamentos, ordenações e ocasiões espe
ciais, ordem litúrgica formalizada e obrigatória. Algumas, como a presbiteriana,
têm o “Diretório e Culto” que ordena as diversas partes do culto como orien
tação para os celebrantes. Mas não as formaliza. O culto fica ao arbítrio do
oficiante. Essa informalidade deve ter sido muito maior nas primieras décadas,
em que ao ministério itinerante se juntava a itinerância relativa dos lugares de
culto. Isto quer dizer que não temos nenhum material que indique as formas
de expressão de fé por parte do povo. As orações serviriam, mas não ficaram
registradas por serem espontâneas. Os sermões, além de partirem da instituição,
não ficaram escritos nas suas formas mais legítimas que, certamente, ocorreram
233
na informalidade e espontaneidade dos encontros espaçados dos pastores com
os seus fiéis nos longínquos rincões sertanejos.
Não nos resta, portanto, outro documento que expresse a resposta e a
organização da crença por parte do protestante comum a não ser o seu livro
de cânticos sagrados. Eles eram cantados no culto, onde a presença dos pastores
e líderes podia talvez selecioná-los a partir do sistema teológico institucional.
Mas mesmo assim é provável que eles procurassem atender, na escolha de
cânticos, as predileções dos adeptos. No entanto, a regra geral era que os pró
prios fiéis selecionassem os cânticos preferidos, vez que ficavam longos meses
sem a presença dos pastores. Além disso, o protestante não cantava os seus
hinos só nos momentos formais do culto, mas no cotidiano de seus afazeres e
lazer. Isso ocorria como expressão de fé e, é certo, em substituição aos cânticos
profanos que lhes ficavam interditos. Os cânticos profanos eram expressões
mundanas e deviam ser abandonados.
É minha intenção, portanto, afirmar que o sistema de crença do protestante
comum brasileiro pode ser detectado através da seleção que ele mesmo fez
dentre as centenas de hinos sagrados que a instituição lhe pôs nas mãos. Na
detecção dessa seleção entrarão a experiência do próprio autor deste trabalho,
depoimentos pessoais, alguns escassos registros e a contagem objetiva, por
temas, dos cânticos contidos no próprio hinário. Vou começar por este último
processo, uma vez que a seleção dos cânticos a serem inseridos no livro já
revela os pendores da própria instituição.
Antes de entrarmos nessa análise, seria bom aprofundar mais um pouco
essa questão do cântico sagrado na religião e que encontra no protestantismo
talvez a sua maior expressividade. David Martin8, um moderno estudioso da
religião inglesa, afirma:
" . . . não há dúvidas de que o hino prociona a mais ressonante evo
cação do sentimento religioso na Bretanha: maior mesmo do que a
liturgia. A própria Bíblia dificilmente se rivaliza com os hinos, mesmo
entre os mais biblicistas dos crentes”9.
O que David Martin diz da Bretanha pode-se dizer de todos os protestan
tes quanto ao lugar do cântico no culto. Mas o mais interessante no estudo
desse autor é a sua teoria sobre a relação entre os tipos de cânticos religiosos
e os níveis culturais dos freqüentadores dos cultos. Ele divide os cânticos em
hinos, “carols” (cânticos alegres especialmente os de Natal) e coros. Os dois
primeiros, geralmente ligados a Hándel, Mendelssohn, Bach e outros clássicos,
são preferidos pelos adeptos da música mais erudita, geralmente pessoas de
nível intelectual e “status” mais elevados. Os apreciadores de “coros” procedem
freqüentemente dos estratos intelectuais e sociais inferiores.
Os coros só podem ser apreciados, continua David Martin, quando
relacionados com os movimentos de avivamento a partir de Ira Sankey
234
(1840-1908), grande compositor de cânticos, e Dwight L. Moody (1837-1899),
um dos principais avivalistas ingleses. Esses coros foram inspirados em melo
dias populares, com ritmos dançantes que lembram os de “music-hall”, ligados
a letras fortemente caracterizadas pelo incentivo à coragem face às desditas da
vida10. Esse tipo de cântico sagrado desenvolveu-se durante os avivamentos
ingleses dos séculos XVIII e XIX, assim como nos correspondentes norte-
americanos do mesmo período. Representa um movimento histórico do protes
tantismo mundial que acompanhou a expansão do mundo anglo-saxão, é de
se crer que as grandes igrejas protestantes desse mesmo mundo continuaram
mantendo suas tradições musicais clássicas ou a elas gradativamente retorna
ram. É muito atrativa a hipótese de que o protestantismo brasileiro seja talvez
o último reduto de um momento histórico do protestantismo mundial ao
conservar vivos os cânticos dos avivalismos e do movimento missionário.
235
tido; por um lado, pela teologia dos missionários que tinham bebido na fonte
comum do “melting-pot” religioso norte-americano, com a sua teologia dos
avivamentos, igreja espiritual, escolasticismo, pietismo e apocalipsismo e, por
outro lado, pelas condições do novo ambiente, com seu sistema piramidal-
hierárquico, pobreza e isolamento social, que favoreceu o escapismo, assim
como o condicionamento religioso dos próprios adeptos.
A edição do SALMOS E HINOS com músicas sacras de que estou me
servindo contém 608 cânticos distribuídos em 3 volumes. Os dois primeiros
foram editados em Edimburgo, 1899, e o terceiro em Londres, 1916. Tendo em
vista o período histórico objeto deste estudo, deixei de lado este último volume
que já pertence ao século XX. Por simples razões metodológicas, uma vez
que os cânticos que ele contém, quase na sua totalidade, pertencem ao século
XIX e, provavelmente, já circulavam nas congregações através de outros canais.
Dos 500 cânticos, contidos nos dois primeiros volumes, examinei mais de 400
que, ao meu ver, são classificáveis pelo critério já apontado, na linha dos
“coros” ligados aos avivamentos e à efervescência missionária. Os demais,
inclusos os 25 salmos metrificados, parecem remontar às tradições anteriores
da Igreja Cristã, especialmente da Reforma. Tentei distribuir os cânticos desses
dois volumes pelos diversos temas teológicos do cristianismo protestante. O
empreendimento não é simples porque a ordenação deles não obedeceu a
qualquer critério observável, como temas, lugar no culto, ou calendário litúr-
gico11. Por sua vez, o sincretismo doutrinário dos cânticos que, na maioria
absoluta deles, incluem a um só tempo muitos temas, dificulta ainda mais as
tentativas de classificação. Assim, tratei de distribuir os temas pela ÊNFASE,
não procurando uma classificação rigorosa e exaustiva, mas simplesmente sentir
o espírito da crença que neles se encontra. Assim, quando temas como cruz,
morte, sangue, sofrimento, céu etc., surgem nos textos, o cântico é inserido
em temas inclusivos como EXPIAÇÃO SANGRENTA, VIDA FUTURA /
CÉU, e assim por diante.
Antes de qualquer outra consideração, constatei que todos os cânticos
examinados, direta ou indiretamente, referem-se a Cristo ou Deus-Filho. Os
demais componentes da Trindade são quase que completamente esquecidos
e, se recordarmos que o protestantismo estudado neste trabalho é herdeiro
direto do calvinismo, sente-se, desde logo, um notável distanciamento. Creio
que não haveria nenhum exagero em dizer que se trata de um protestantismo
essencialmente CRISTOLÓGICO. O que estou querendo dizer é que é mais ou
menos sensível um certo desequilíbrio na fé essencialmente trinitária do cristia
nismo. Nos limites desse amplo horizonte cristológico, se inserem os outros
temas em maior ou menor amplitude. Na grande maioria dos hinos cristológicos
está implícita a teologia do “amor de Deus”, central nos movimentos de aviva-
mento, outro notório afastamento do calvinismo original.
11 Coisa que o missionário John Boyle já tentara fazer, ao menos quanto aos temas e
momentos de culto, em seu já citado Hinos evangélicos e Cânticos sagrados, 1888.
236
Cerca de 70 cânticos se referem à penitência (confissão de pecados) e ao
convite ao pecador para a conversão. Mais de 130 referem-se ao sacrifício
expiatório na cruz (morte do Deus-Filho), acentuando o teor dramático da
pregação dos avivamentos e muito coloridos e adocicados pelo espírito pietista
da exacerbação do sofrimento físico e moral de Cristo, seus ferimentos, sangue
e pelo quase-erotismo no tratamento de temas como amizade e amor íntimos
com Jesus (amante, esposo, esposa, gozo etc.). Os temas de vida futura (céu,
vida no além, negação do mundo) são enfatizados em cerca de 100 cânticos.
Outra coisa que surpreende é que o tema crucial do cristianismo que é a
“ressurreição”, ainda mais em se tratando de uma religiosidade essencialmente
cristológica, ocupa um espaço relativamente pequeno: cerca de 10 cânticos.
Nota-se, por fim, um extremo individualismo; a maioria absoluta dos cânticos
é disposta na primeira pessoa do singular. Não se sente o coletivo, o sentido
de povo como predominante.
QUADRO 1
N.° aproxi
Temas Descrição sumária do tema
mado
1. GERAIS DA FÉ CRISTÃ
Salmos Deus-Pai, criador do universo, protetor dos
perigos, provedor das necessidades. Louvo
res e ações de graças 25*
Deus-Pai Louvores 16
Espírito-Santo Súplicas por companhia ou ensino 5
Trindade Louvores 16
Sub-Total 62
2. CRISTOLÕGICOS
(todos os temas)
Cruz Expiação, paixão, redenção (colorido pie
tista) 92
Jesus-amante Amor, esposo, noivo (colorido pietista) 26
Jesus-amigo Intimidade com Jesus (colorido pietista) 14
Jesus (conversão a) Convite ao pecador para se converter a Jesus
(arminianismo wesleyano) 32
Jesus (confissão de O homem se reconhece pecador (peni
pecado) tência) 38
Jesus (amor de Deus) Teologia dos avivamentos: Deus ama e quer
salvar todos os homens. 13
237
N.° aproxi
Temas Descrição sumária do tema
mado
Sub-Total 375
62
375
* Número exato.
QUADRO 2
238
2 .1 — O protestantismo pietista
239
de reconciliação com Deus e com o mundo, tem íntima correlação com o
conversionismo, este visto como o aspecto dinâmico e prático do subjetivismo
pietista. O conversionismo, aqui colocado como uma vertente do pietismo,
nada tem a ver com questões como “verdade” e “erro” ; estas se colocam
noutro plano da opção religiosa.
O enclausuramento do crente com a sua Bíblia e a busca e cultivo inces
santes da experiência e da comunhão com Jesus, levam-no à negação do
mundo e ao desprezo dos prazeres da vida. Essa atitude se caracteriza positiva
mente pela afirmação de um valor maior, o cultivo de sua devoção, e negativa
mente, pela consciência de que os prazeres mundanos são antagônicos aos
prazeres e gozos espirituais. São numerosos os cânticos que exaltam essa “vida
superior”, mas um exemplo basta: este cântico traduzido e adaptado por
H. Maxwell Wright (1849-1931), intitulado “Quem é por Jesus?” (“Who is
on the Lord’s side?”15:
240
John Boyle, missionário presbiteriano em Bagagem-MG, hinólogo muito
lúcido, no prefácio do seu livro de hinos defende a necessidade do uso dos
Salmos metrificados porque “a respeito de Deus, seus atributos e sua glória
os Salmos são melhores do que os hinos” (aliás, na linha do calvinismo
tradicional). Mas, sabendo dos escolhos que certos salmos apresentam para
a fé, Boyle aconselha16:
“Naqueles Salmos que Davi fala de seus inimigos, fala como tipo dos
cristãos, e os seus inimigos eram tipos dos nossos inimigos espirituais,
e devemos cantar tais hinos com os mesmos sentimentos que temos
ao cantar
‘Eia às armas camaradas’ e outros hinos semelhantes”.u
9 -C e le s te porvir
241
institucionalmente, tendem a manter inócuas a pesquisa e a criatividade na
área do pensamento religioso.
O espírito pietista ao desenvolver uma antiteologia fecha as portas da
reflexão, não permite que as inquietações sociais agitem a instituição. Desse
modo, a instituição, assim como a vivência religiosa do cotidiano, podem
pairar acima das contradições sociais.
Para terminar: se no protestantismo americano o espírito pietista consti
tuiu-se numa tendência subjacente que não chegou a perturbar a profunda
involucração da teologia no social, no Brasil é um lago extenso e pacífico em
que as contradições se chegaram a produzir pequenas marolas, elas logo desapa
receram na quietude bucólica desse lago esquecido da geografia social.
2 .2 — O protestantismo peregrino
242
Neste outro traduzido por João Gomes da Rocha19:
Marchando triste aqui na solidão,
Paz e descanso a mim teus braços dão (2.°).
Mas o mundo em que o peregrino caminha oferece, por outro lado,
prazeres enganosos que podem desviá-lo da sua meta, como neste hino de
Justus H. Nelson, “O Exilado” (“Old Folks at Home”):
Da linda pátria estou bem longe;
Cansado estou.
Eu tenho de Jesus saudade;
Oh! quando é que vou!
Passarinhos, belas flores
Querem me encantar.
Oh! terrestres esplendores!
De longe enxergo o lar!20
A esperança do peregrino é expressa neste hino, traduzido por João Go
mes da Rocha, “Vou à Pátria” (“I am a Pilgrim”):
Vou à Pátria — eu peregrino —
A viver eternamente com Jesus21
A sensação de ser estrangeiro neste mundo, cidadão de uma outra pátria
para a qual espera voltar em breve, expressa-se neste hino traduzido por Elisa
Smart, “A Mensagem Real” (“The King’s Business”):
Sou forasteiro aqui, em terra estranha estou,
Celeste pátria, sim, é para onde vou:
.Embaixador, por Deus, de reinos dalém Céus,
Venho em serviço do meu Rei.22
Neste hino surge a idéia muito sugestiva do peregrino embaixador, apres
sado em apresentar a mensagem de que é portador e regressar à pátria.
Um mundo escuro, hostil e misterioso, em que o peregrino desenvolve a
sua jornada ansioso pela luz que dissipa as trevas da ignorância e da dúvida,
é descrito neste hino traduzido por Benjamim Rufino Duarte, “Brilho Celeste”
(“Heavenly Sunlight”):
Peregrinando por sobre os montes,
Dentro dos vales, sempre na luz!
Cristo promete nunca deixar-me
“Eis-me convosco”, disse Jesus.23
243
Sobre estes dois últimos hinos cabe uma observação. O exame limitou-se
aos dois primeiros volumes do SALMOS E HINOS, editados em 1899, que
incluíam os hinos já em circulação nas congregações desde o início. O terceiro
volume, editado em 1916, embora inclua hinos que então circulavam por diver
sas vias, apresenta, regra geral, contribuições tardias, isto é, já do século XX.
Assim, “A Mensagem Real” e “Brilho Celeste” foram traduzidos em 1907 e
1906, respectivamente. Não circulavam, portanto, no século XIX nas congre
gações brasileiras. Como são tradicionalmente cantados com prazer pelos
protestantes, é de se crer que refletiram, desde logo, o espírito da crença
protestante; por isso, abri uma exceção ao incluí-los neste estudo por acreditar
que são sugestivos para os objetivos propostos.
2 .3 — O protestantismo guerreiro
244
para o combate, como que num esforço final de conquista, mas cantando desde
logo o triunfo certo e seguro.
Diz ainda Hoomaert que a versão santorial guerreira consistiu num intento
do dominador. O povo continuou com a sua versão tradicional em que os
santos se constituíam, antes de outra coisa, em “milagreiros” porque a versão
guerreira não lhe interessava. “A guerra hão muda a condição dele”25. Para o
protestante a situação era outra. Ele, pelo menos, na versão trazida preponde
rantemente pelos missionários, como veremos mais adiante, não tinha nenhuma
esperança de que alguma mudança para melhor se operasse neste mundo.
Portanto, não tinha sentido nenhuma ação guerreira de conquista. Não havia
inimigos visíveis a combater, nem chefes guerreiros materialmente presentes a
seguir. A ideologia guerreira é transportada para o espiritual: o inimigo a ser
combatido é o mal e o chefe guerreiro é Jesus. O triunfo final sobre o mal será
assinalado pela vinda pessoal de Jesus que, vitorioso, inaugurará o Milênio. A
convicção é de que a vinda do Milênio será abreviada na medida em que o
mal for sendo suplantado pelo bem.
Na expectação do Reino de Deus, intensa no século XIX em ambas as
versões, isto é, pré-milenista e pós-milenista, vai prevalecer no Brasil a versão
pré-milenista, isto é, a expectação da invasão do sobrenatural na história. O
protestantismo guerreiro não se constitui numa guerra santa contra os infiéis,
como no catolicismo guerreiro, mas numa guerra contra poderes metafísicos
nos espaços espirituais.
Como ocorreu com o protestantismo peregrino, os cânticos de guerra são
também relativamente poucos no período considerado neste trabalho. Não posso
deixar de assinalar, no entanto, que eles aumentaram consideravelmente, nos
primeiros anos do século XX, como atesta o terceiro volume do SALMOS E
HINOS. Mas o que torna válida a idéia do protestantismo guerreiro é o favo
ritismo dos cânticos pelos protestantes, e não a suã presença quantitativa no
hinário. Apresento, em seguida, vários exemplos da ideologia guerreira do
protestantismo expressa em vários cânticos.
O protestante é chamado para alistar-se como soldado (Avante! Avante!
— trad. de Sarah Kalley, 1875):
245
Este outro, de H.M. Wright, “Erguei-vos Cristãos” (“Stand like the
brave”), 1890, estimula o cristão à batalha:
Erguei-vos cristãos! O clarim já soou!
à guerra vos chama o que vos libertou,
Os lombos cingidos, nas armas pegai,
À sombra da cruz corajosos lutaiF
A guerra é contra o mal (“Grito de Guerra”, “Sound the Battle Cry!”),
traduzido por Manoel A. Camargo, 1894:
Moços, declarai guerra contra o mal,
Exaltai a cruz do Salvqdor;
Firmes empunhai armas não carnais,
Sempre confiai em seu favor2S.
O soldado deve guardar o reduto do Bem — “Guarda o forte” — (“Ho,
my comrades!”), traduzido por Sara Kalley, 1875:
"Guarda o forte! em breve eu venho!”
Clama o Salvador!
Responderemos: " Venceremos
Pelo teu favor/”29
O soldado deve seguir a bandeira erguida pelo poder celestial do Bem,
como no hino “O Estandarte” (‘Armageddon’), de H.M. Wright, 1898):
Eis o estandarte, tremulando à luz!
Eis a sua divisa: C’roa sobre cruz!
Para a santa guerra Ele vos conduz
Quem quer alistar-se sob o Rei Jesus?zo
Em torno da coroa e da cruz, estandarte e divisa do Rei, reúnem-se os
soldados para combater as forças do mal e guardar o forte do bem. É uma
batalha permanente enquanto não se der a irrupção do sobrenatural na história
para inaugurar um novo tempo. Mas a batalha se dá no plano espiritual; o
protestantismo guerreiro é uma espiritualização da guerra.
O protestantismo guerreiro assumiu formas polêmicas contra o catolicismo.
Embora o protestante comum não expresse enfaticamente o seu espírito polê
mico nos atos de culto, como nos seus cânticos, intelectualmente o anticatoli-
cismo foi, desde logo, forte apoio para a sua auto-identificação. A polêmica foi
uma expressão institucional do protestantismo brasileiro, responsável por uma
mentalidade polêmica, por um espírito polêmico. Mas se a hinologia guerreira
ocupa um espaço significativo na crença e no culto, â expressão hinológica do
246
espírito polêmico foi pouco enunciada, embora indiretamente ele esteja presente
em quase toda a hinologia pela afirmação de princípios de fé opostos aos do
catolicismo. Encontrei somente dois hinos de expressão polêmica direta, mas
muito cantados pelos protestantes ligados à tradição dos SALMOS E HINOS.
O primeiro deles foi escrito por Sarah P. Kalley, em 1864, apropriado para o
princípio do culto:
Não vemos altar, nem hóstias aqui,
Desconto nenhum trazemos a Ti;
Por nossos pecados, já morreu Jesus!
O grande Pontífice, Oferenda e Luz.31
O segundo, escrito por José Augusto dos Santos e Silva, em 1908, inspi
rado em Júlia Ward Howe, 1861, “Alma Sequiosa” (‘Battle Hymn’), embora
tardio quanto ao período do SALMOS E HINOS, é uma forte expressão do
espírito polêmico. Hino muito cantado, expressa principalmente o protestantis
mo guerreiro, mas o autor inclui, na 3.a estrofe, o espírito polêmico:
Da vaidade fiéis servos,
Ou romanos ou ateus,
Muitas vezes nos assaltam
Para nos tomarem seus;
Mas se alguém procura ver-nos
Sem o gozo do bom Deus,
Vencendo vem Jesus!32
2 .4 — O protestantismo milenarista
247
diversos movimentos sebastianistas no século XIX, quase todos eles com
desenlaces trágicos. O sebastianismo, crença no regresso vitorioso do rei D.
Sebastião, morto na batalha de Alcácer-Quibir (1578), difundiu-se muito em
Portugal nos séculos XVI e XVII. Ao tomar-se rei foi chamado O DESEJADO
e ao morrer foi aguardado como o ENCOBERTO; toda uma feição do messia
nismo hebraico. O sebastianismo desenha o anseio popular pelo aparecimento
e um personagem redentor, messiânico. Esse estado de espírito português
transferiu-se naturalmente para o Brasil. A partir de 1640, o principal dissemi-
nador do sebastianismo foi o padre Antonio Vieira, fato que muito provavel
mente tenha ajudado a impregnar de sebastianismo as crenças religiosas no
Brasil. Logo a crença sebastianista deu lugar à expectação de um salvador no
sentido mais geral, aproximando-se sensivelmente do Messias de Israel. O
“Encobertismo”, como é também conhecido o sebastianismo, teve muita gua
rida entre os judeus e é possível que os cristãos-novos tenham dado sua contri
buição para a disseminação da crença no Brasil.
No século XIX ocorreram no Brasil diversos movimentos sociais de inspi
ração sebastianista, como o de Pedra Bonita, em Pernambuco, em 1817, O
Reino Encantado, também iniciado em Pernambuco por volta de 1836, Canu
dos, na Bahia, cerca de 1873, quando surge a figura de Antonio Conselheiro
pregando com fervor o Paraíso Terrestre (Nova Jerusalém) objetivado no
Império de Belo Monte (Canudos) a Cidade Santa (Juazeiro, Ceará), fundada
em 1872 pelo Padre Cícero, o mais extenso movimento messiânico brasileiro,
pois que hoje ainda permanece. Já no século XX (entre 1912 e 1916) registra-
se o movimento milenarista do Contestado, Santa Catarina, mais ou menos com
as mesmas características dos anteriores.
Os estudiosos desses movimentos concordam, regra geral, que eles surgem
em populações rurais subalternas em situações anômicas ou de mudança social,
em que os modos de vida tradicionais são ameaçados. Quando a esses fatores
soma-se a falta de assistência religiosa, como ocorreu durante quase todo o
desenvolvimento da sociedade brasileira “rústica”, as condições para a emer
gência de messianismos são bastante favoráveis.
Creio ser válida a hipótese de que a junção das crenças indígenas sobre a
“Terra sem Males” com as crenças sebastianistas formou na “civilização rústi
ca” brasileira uma mentalidade messiânica. Embora não se deixe de lado o
fato de que o material religioso de inspiração milenarista tenha sido produzido
na Europa e nos Estados Unidos, o que indica que por lá circunstâncias propí
cias para essa crença deviam estar ocorrendo, é fato que a introdução da hino-
logia protestante de inspiração milenarista dá-se inconfundivelmente no mesmo
período dos principais movimentos sociais brasileiros já relacionados, isto é,
a partir de 1880 como se verá mais adiante.
Em outros lugares deste trabalho foi dito que o pré-milenismo foi, nas
fontes do protestantismo brasileiro, uma reação contra o liberalismo assim
como um sinal de cansaço das lutas teológicas. Ê necessário recordar aqui os
traços principais do liberalismo teológico. O liberalismo teológico cria nas
248
virtudes humanas, na possibilidade de a consciência individual transformar-se
em consciência social. Enfatizava o papel do homem cristão na sociedade como
fundamental para a formação de uma sociedade justa e feliz. O Reino de Deus
era tido como um ideal genuíno para o mundo contemporâneo.
O liberalismo teológico foi expresso em muitas novelas, algumas delas
lidas pelos protestantes brasileiros, por estarem presentes nas bibliotecas das
igrejas urbanas na primeira metade do século XX. No entanto, por serem lidas
fora do contexto e por não encontrarem respaldo no ensino institucional, per
maneceram no plano da ética individual sem chegar a formar os contornos de
um projeto social. As novelas por excelência do liberalismo teológico, encar
nado no Evangelho Social, foram “Em seus Passos que Faria Jesus”, de Carlos
M. Sheldon (1896), e “A Cabana do Pai Tomás”, de Elizabet Beecher Stowe
(1851-1852).
Foi nas questões escatológicas que o liberalismo causou maior impacto.
Para o liberal Deus não interfere nas leis da natureza; ao contrário, opera
através delas e conduz o mundo no sentido do seu próprio aperfeiçoamento.
O problema da vida após a morte não ganha, no liberalismo, relevo acentuado.
A atenção do liberal concentra-se no cumprimento da vida aqui e agora “inter
pretando-se cada vez mais a vida futura como imortalidade do espírito melhor
do que ressurreição do corpo”36.
A reação contra o liberalismo consistia em afirmar que o Reino de Deus
não é o produto final de uma cristianização progressiva da ordem social. Este
conceito de Reino era mais o reflexo da posição evolutiva do que da esperança
do Novo Testamento. O Reino virá por iniciativa divina e não por qualquer
esforço humano. O que compete ao homem não é “edificar” o Reino, mas
estar pronto para a sua vinda sobrenatural mediante o arrependimento e a fé.
Para uma sociedade impotente e sem esperança era necessário pregar o arre
pendimento, a fé e a esperança num mundo compensador para o atual, corrom
pido e feio. Em suma, o Reino não é um desenvolvimento histórico contínuo;
simboliza o fim da era presente, é o “para lá da história” . Na teologia esta
forma de crença chama-se pré-milenista, isto é, que o Messias virá instaurar
o Milênio; a concepção liberal, embora não esteja tão preocupada com a esca-
tologia, concebe a vinda do Messias após o Reino Milenial: é um pós-milenismo,
portanto.
Está fora de dúvida de que na teologia dos missionários americanos em
geral, excetuando-se talvez os educadores que seguramente representavam a ala
liberal do protestantismo americano, o pré-milenismo ocupava espaço especial.
Já vimos isto na apreciação dos sermões dos pioneiros em outro lugar deste
trabalho. Por outro lado, é de se crer que as duas teorias, nas áreas institu
cionais, eram confrontadas. É por isso que Alfredo Borges Teixeira, um bri
lhante discípulo dos missionários presbiterianos do fim do século XIX, assim
atesta a sua conversão definitiva ao pré-milenismo:
249
"Educados no pós-milenismo sempre sentíamos a força deste argu
menta27 ao mesmo tempo que notávamos o ardor religioso e gozo
espiritual que caracterizam os irmãos pré-rmlenistas por efeito de esta
rem sempre à espera de J e su s.. . Em nosso espírito, todavia, perma
neceu sempre o fato irredutível de que os irmãos pré-milenistas podiam
esperar sempre a vinda de Jesus e nós não podíamos. Obedecem eles
à recomendação do Senhor nesse sentido e nós não o podíamos fazer
por força da nossa teoria! Afinal, maior atenção dada ao assunto e
a leitura de melhores livros nos levaram à conclusão de que, nos
domínios obscuros da Escatologia, o pré-milenismo é a teoria mais
luminosai” .38
250
A amostragem que preparei desses cânticos fomece-nos os contornos de
um apocaliptismo, isto é, que o Reino de Deus se estabelecerá pela segunda
vinda de Jesus em glória. Sua derrota na primeira vinda será compensada
pela segunda vinda triunfal. Sua vinda, bem ligada com os aspectos guerreiros
do protestantismo, será como um guerreiro vitorioso. Pelo menos no Brasil,
o Reino de Deus parece ser a reprodução de uma Idade do Ouro: as saudades
da pátria e o embaixador ansioso por regressar à própria terra indicam a
anterioridade de uma vida melhor à qual se deseja voltar. A pátria não é algo
novo a ser construído, mas um bem que foi perdido. Se para o liberalismo
teológico há um progresso na direção do novo, para o pré-milenismo espera-se
uma recuperação do que foi perdido.
A seguir encontram-se os mais expressivos e prediletos hinos do pré-
milenismo protestante brasileiro. Note-se que nenhum deles é anterior à década
de oitenta do século XIX; a intensificação da preferência pelo tema do milênio
parece indicar que o clima social e religioso era propício a essa forma de
crença, desde que não se esqueça o fato já mencionado de que o período
corresponde a importantes movimentos milenaristas no Brasil. Embora os
títulos e as correspondentes ênfases constantes do quadro já possam dar idéia
do que estou afirmando, à semelhança do que já vem sendo feito ao longo
deste trabalho, dou alguns exemplos transcrevendo trechos dos cânticos indica
dos, escolhendo alguns dos temas do QUADRO 1.
a. O Reino Messiânico
John Boyle, A Pátria Celestial (1888):
251
Cantaremos no belo pais,
Melodias de Santo ardor;
Nossa terra celeste e feliz
Não há pranto, gemido nem dor. (2.°)a
252
presentes também os componentes dos mitos da Idade do Ouro, a ausência de
sofrimento e de velhice. No entanto, o transcendentalismo platônico que condi
ciona o pré-milenismo, espiritualiza-o, projeta-o para além da história. A
oposição terra/céu sempre presente na expressão hinológica mostra outra
oposição fundamental: vida/morte, no sentido de uma inversão básica em que
vida significa morte (negação da vida presente) e morte significa vida (afirma
ção da vida futura). Acresça-se que a expressão dessa fé é individualista,
sempre na primeira pessoa do singular, não se encontrando nela o sentido do
coletivo. Assim, embora as primeiras comunidades protestantes constituíssem
grupos milenaristas, não houve entre eles nenhum movimento social desse tipo
por causa do individualismo, do sobrenaturalismo e, possivelmente, pela falta
de liderança carismática. Havia uma mentalidade milenarista assim como uma
expectação milenarista.
O milenarismo protestante, concluindo, não é análogo ao milenarismo dos
surtos ocorridos em áreas católicas. Estes foram dinâmicos no sentido do
esforço de construção de novos modelos sociais; de certo modo, alegres e
festivos, dada a experiência presente do novo. O milenarismo protestante é
triste, um misto de esperança e de nostalgia por um estado perdido. Uma
alegria tristonha.
Consideração final
253
REFLEXÕES FINAIS
255
de escapismo das contingências sócio-políticas na “teologia da Igreja Espiritual”
e no pré-milenismo.
A análise do emaranhado de idéias teológicas que formavam o clima
religioso ao tempo da expansão missionária mostrou que aquelas formas de
pensar eram até certo ponto minoritárias no campo religioso norte-americano.
Mas ocorreu que foram elas carreadas para o Brasil através da maioria dos
missionários que aqui se entregaram à prática conversionista na implantação
do protestantismo.
Nos Estados Unidos as idéias teológicas, se não tinham sido o produto
total de uma nova sociedade, traziam pelo menos as marcas de uma adequação
e ajustamento feitos ao longo da sua história. Isto não ocorreu no Brasil. A
mensagem missionária protestante encontrou aqui uma sociedade profundamente
estratificada e informada por uma cultura religiosa muito diferente. O protes
tantismo foi visto desde logo, pelo menos pela camada social atingida pela
sua mensagem, com uma “nova religião” .
A mensagem protestante canalizada pelos missionários para a camada
de “homens livres e pobres” da população rural constituiu-se num saber
(conhecer a Bíblia e os símbolos da fé), numa crença (preceitos éticos e
expectação milenarista) e num comportamento piedoso na vida religiosa (cultivo
pessoal da fé). As condições próprias do receptor da mensagem, dentro da
sociedade mais ampla, selecionou e filtrou a mensagem religiosa a partir do
seu lugar social e da mentalidade messiânica subjacente, formando comunida
des micromilenaristas de tipo pré-milenarista, mais ou menos nômades e de
“espera”.
A formação de comunidades micromilenaristas, isto é, de pequenos grupos,
deveu-se ao fato de que o protestantismo, além de ter de inserir-se em
interstícios do campo religioso católico, apresentou-se como uma religião ética
e cognoscitivamente rigorosa, tomando bastante difícil a admissão de adeptos
dados os conhecimentos religiosos exigidos e as renúncias oriundas de sua
ética.
A análise, até o quanto possível penetrante das condições ideológicas,
teológicas e sociais do protestantismo na sociedade brasileira pode permitir,
agora, a formação de algumas respostas às indagações levantadas. A primeira
idéia a que se pode chegar é a da índole fundamentalmente conservadora da
“nova religião”. Realmente, o protestantismo no Brasil, apesar de aqui chegar
como portador do liberalismo e da modernidade, mostrou-se incapaz de acompa
nhar as transformações da sociedade brasileira. Ao mesmo tempo, fechou suas
portas às aragens inovadoras que, de tempos em tempos, têm chegado vindo
do lado de suas próprias origens.
O conservadorismo está condicionado e expresso na herança da escolástica
protestante; ao que se sabe, até hoje, num sentido amplo, o protestantismo
histórico de missão no Brasil permanece fiel aos símbolos de fé recebidos
das igrejas-mães no século XIX, quando estas já devem ter feito, para si
mesmas, possíveis e diversos ajustamentos. Como os condicionantes quase
256
nunca estão isolados, a explicação desse escolasticismo, reduto do conservado
rismo, pode ser entendido a partir do pietismo, naturalmente infenso à reflexão
teológica, e do apocaliptismo de tipo pré-milenarista, inibidor da construção
de qualquer utopia social. Neste ponto é viável admitir que, dadas as caracte
rísticas da sociedade brasileira, o pós-milenarismo de alguns missionários, ou
mesmo a política missionária, tenham sofrido uma transmutação pré-milenista
como medida de prudência diante das dificuldades que teriam de enfrentar e
contornar a fim de evitar choque direto com o “status quo”. Realmente, uma
proposta modificadora do “aqui e agora” esbarraria com dificuldades que
fatalmente comprometeriam toda a empresa missionária. Isto de passagem.
Assim, o individualismo do pietismo e a indiferença pelo social por parte
dos fiéis, assim como o escolasticismo por parte das instituições eclesiais,
constituem o firme solo do conservadorismo.
A mentalidade conservadora e individualista do protestantismo, condicio
nada e alimentada pelo tripé escolasticismo-pietismo-apocaliptismo, afastou-o
dos movimentos sociais que, ao longo de um século, mudaram a fisionomia
do Brasil. Daí, sua quase nula presença na política, na cultura e na participação
efetiva nos movimentos de mudança social.
A crise atual do protestantismo histórico de missão no Brasil, expressa na
sua paralisação e, possivelmente, na sua diminuição numérica, pode ser enten
dida a partir da inadequação de sua rigidez teológica, de seu pietismo individua
lista e de seu milenarismo, diante das mudanças sociais que esvaziaram as suas
propostas iniciais. Com efeito, seus credos e suas coníissõe de fé, datados de
séculos atrás e produzidos em contextos significativamente diferentes, se já
não tinham muito sentido, ao serem transportados para o Brasil no século
XIX, acabaram sendo marcos históricos aos quais as instituições religiosas se
amarraram enquanto a sociedade caminhava. Se se aceita que a reflexão teoló
gica é a roupagem com que a instituição eclesiástica reveste seu pensar sobre o
social, o pietismo constitui-se em um permanente entrave para o ajustamento
protestante à sociedade mais ampla. Ainda, a mentalidade milenarista caracte-
risticamente produto do mundo rural, geralmente com traços alienadores de
segmentos da população em relação ao sistema social, compreensivamente
tem de esvaziar-se com a crescente urbanização e progressiva inserção das
camadas receptoras do protestantismo no sistema de produção. Daí, a inade
quação da proposta protestante a partir de um dado momento da vida
brasileira.
Uma última razão: o protestantismo teve um êxito inicial, em boa parte
devido à sua proposta religiosa que tendia a ocupar alguns espaços deixados
pela religião oficial e cultural, devidos à fraqueza momentânea desta. Sem
dúvida, o ímpeto polêmico foi uma grande força. Mas com a arregimentação
de suas próprias forças por parte da Igreja Católica, que começa ainda no
século XIX e se estende pelas primeiras décadas da República, no sentido de
substituir o catolicismo ibérico, acomodado e, em muitos pontos sensivelmente
liberal, por um outro tridentino e agressivo, as adesões ao protestantismo já
não continuaram tão fáceis. Por outro lado, as próprias inadequações entre a
257
proposta protestante e a realidade social deram a sua contribuição para o
arrefecimento do ímpeto conversionista. Restaria um último reduto protestante:
a educação. Mas a secularização de suas escolas e a expansão da educação
oficial que acompanhou a política laicizante republicana que atingiu todo o
sistema educacional religioso, inclusive o católico, acabou por esvaziar também
este último reduto da estratégia missionária protestante.
Pode ser que a crise atual do protestantismo de missão no Brasil tenha
causas mais amplas. Mas é de se crer que as causas apresentadas neste trabalho
lancem alguma luz sobre ela. £ o que espero dele.
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ÍNDICE
9 INTRODUÇÃO
Parte I
A HISTÓRIA
17 Cap. I — PRESENÇA PROTESTANTE NO BRASIL:
UM ESBOÇO HISTÓRICO NECESSÁRIO
18 1. Brasil colônia
21 2. Brasil império
29 Cap. II — AS RAIZES
29 1. A Reforma na Inglaterra
30 a) A evolução da teologia calvinista
32 b) O calvinismo na Inglaterra
35 c) O puritanismo
35 c) 1 A teologia do pacto e o puritanismo
37 c) 2 O “spectrum” dopuritanismo
39 d) O fim da Reforma na Inglaterra
43 2. O protestantismo missionário americano
44 a) A formação do protestantismo americano
46 b) O desenvolvimento do protestantismo americano
48 c) Enfraquecimento e despertamento
52 d) A teologia dos avivamentos
54 3. Civilização protestante e “Destino Manifesto”
57 4. A empresa missionária
60 5. Atividades missionárias leigas
62 6. Resistência às mudanças
64 Considerações finais
67 Apêndice I — O PIETISMO
73 Apêndice II — O PRO TESTANTISM O AM ERIC AN O
E A IGREJA CATÓLICA
Parte II
A ESTRATÉGIA
79 Cap. I — O CATOLICISMO BRASILEIRO NA VISÃO DO
PROTESTANTISMO TRADICIONAL
79 Introdução
80 a) O ponto de partida
81 b ) Ashbel G. Simonton
83 c) José Manuel da Conceição
85 d) Eduardo Carlos Pereira
89 e) Álvaro Reis e a polêmica com o Pe. Júlio Maria
91 Conclusão
93 Cap. II — A ESTRATÉGIA MISSIONÁRIA
94 Introdução
95 Educação e estratégia missionária ,
111 Resumo
113 Apêndice I — A ESCOLA DO R E V . M IGUEL TO RRES
115 Apêndice II — O COLÉGIO PIRAC IC ABANO
117 Apêndice III — A ESCOLA A M E R IC A N A DE CURITIBA
119 Cap. III — RELIGIÃO, MUNDO RURAL E FRENTES PIONEIRAS
119 Introdução
123 1. O homem pobre e seu campo religioso
123 a) Projeção de um “spectrum” abrangente
127 b) O homem pobre e seu mundo
134 c) O homem pobre e sua religião
140 2. O anúncio de uma nova religião
146 3. Teodicéias em confronto
149 a) Prós e contras; uma balança viciada
156 b) Gente esquisita mas simpática
158 4. Na trilha do café
162 Resumo ,,
163 Apêndice I — ESCOLA D O M INICAL NO SÍTIO
165 Apêndice II — CENA RELIG IO SA SERTAN EJA
169 Apêndice III — O PAD RE JOSÊ D E M OGI-M IRIM
171 Apêndice IV — M ISSIONÁRIOS, PRO TESTANTES E PADRES
174 Apêndice V — O EVAN G ELH O DOS SERTÕES
266
Parte III
A NOVA RELIGIÃO
179 Cap. I — A MENSAGEM INSTITUCIONAL
182 1. A teologia do protestantismo missionário no Brasil e suas
formas de assimilação
184 a) A mensagem institucional
185 a) 1 Robert L. Kalley (109-1888)
187 a) 2 Ashbel G. Simonton (1833-1867)
194 a) 3 José Manuel da Conceição
196 a) 4 A teologia dos metodistas e batistas
200 a) 5 Unidade teológica dos protestantes no Brasil
207 2. Emocionalismo e dogmatismo epistemológico
211 3. Neoplatonismo e transcendentalismo
214 Resumo e algumas conclusões
217 Apêndice — A PEDAGOGIA DA DIFERENÇA
227 Cap. II — CRENÇAS E SUAS FORMAS DE ASSIMILAÇÃO
231 1. A fé explícita
235 2. A fé explícita nos cânticos
239 2.1 O protestantismo pietista
242 2.2 O protestantismo peregrino
244 2.3 O protestantismo guerreiro
247 2.4 O protestantismo milenarista
253 Consideração final
255 REFLEXÕES FINAIS
259 Bibliografia
267
Esta obra tem com o preocupação básica m ostrar a configuração
de um dos im p o rtan tes segm entos da religião no Brasil: o p ro
testantism o, o m ais sentido depois do catolicism o, m as o m enos
conhecido nos seus fundam entos, apesar de já estar no país há
quase século e m eio. Tal desconhecim ento deve-se à literatu ra,
sobre o protestantism o, existente entre nós: m ais apologética que
científica. A A u to r procura lan çar luzes sobre o protestan tism o
brasileiro, até certo ponto desfigurado, distante das raízes de um a
história iniciada em outro lugar e em outro tem po. Consciente
de que à presença visível do p ro testan tism o no Brasil, seus te m
plos, escolas e m eios de com unicação não corresponde um a p re
sença espiritual na cultura, levanta em torno desse p ro b lem a a l
gum as questões, às quais procura responder ao longo do trabalho.
A proposta do livro enfoca três ângulos: 1. °) a inserção do p ro
testantism o na sociedade brasileira deu-se num m o m e n to
histórico-social propício (outro talvez jam ais ocorresse): 2. °) a acei
tação do p ro testan tism o ocorreu na cam ada "livre e p o b re " da
população rurai; 3. °) a expansão do p ro te s ta n tism o fo i facilitada
p ela rota do café.
Este trabalho busca c ap tar algo extrem a m en te abstrato: o "es
p ír ito " do p ro testan tism o brasileiro.