Você está na página 1de 18

A EMERGÊNCIA DAS INSTITUIÇÕES

DE EDUCAÇÃO INFANTIL

THE EMERGENCE OF CHILDREN


EDUCATION INSTITUTIONS

Rodrigo Saballa de CARVALHO*

Resumo: O presente artigo procura discutir as condições de emergência das institui-


ções de Educação Infantil. Nesta perspectiva, tais estabelecimentos são compreendidos
desde sua “entrada em cena”, enquanto espaços pedagógicos, disciplinadores e educa-
dores, implicados no “seqüestro” dos corpos, dos tempos e espaços dos indivíduos.
Dessa forma, ao longo do artigo são destacadas algumas relações que se estabeleceram
entre sociedade, crianças e adultos, a começar de suas atribuições, suas histórias, seus
discursos e condições de existência a partir da segunda metade do século XVIII. Ressal-
to que as instituições de Educação Infantil enquanto maquinarias disciplinares moder-
nas evidenciam sua positividade à medida que participam da produção de sujeitos
autogovernados. Desse modo, procuro evidenciar que esses estabelecimentos foram
postos em funcionamento no intuito de ordenar e regular as massas populacionais
difusas, permitindo a produção de saberes sobre os indivíduos, a classificação, a dife-
renciação e a normalização dos mesmos.

Palavras-chave: Instituições de educação infantil. Infância. Maquinaria disciplinar.

Abstract: This article is an attempt to discuss the conditions under which children
education institutions emerge. In this discussion such institutions are considered since
their “first step into the scene”, seen as pedagogical, disciplinary and educational
spaces, involved in the “kidnapping” of the bodies, of the time and of the space of
individuals. This way, throughout the article some of the relationships that developed
among society, children and adults are emphasized; these relationships are discussed
since their attributions, histories, discourses and existence conditions from the second
half of the XVIII century on. I point out that the institutions of children education that
are modern disciplinary machineries demonstrate their strength as they participate of
the production of self-governed subjects. Thus, I make an attempt to demonstrate that
these institutions were established in order to organize and regulate the diffuse population

*
Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Orientador
pedagógico educacional no Colégio Fundação Bradesco em Gravataí/RS. rsaballa@terra.com.br
Olhar de professor, Ponta Grossa, 9(2): 299-316, 2006. 299
allowing the production of individual knowledge, their classification, their differentiation
and their normalization.

Keywords: Children education institutions. Childhood. Disciplinary machinery.

A partir das contribuições de mas racionais de organização social


Kuhlmann (1998; 2004), Finkelstein anunciava como promessa a liberta-
(1992), Varela (1992; 1994) e Cambi ção das irracionalidades do mito, da
(1999), é possível dizer que as Insti- religião e da superstição. Para Cambi
tuições de Educação Infantil se con- (1999), a Modernidade apresentou-se
figuraram enquanto estabelecimentos como uma revolução nos âmbitos ge-
que serviram (ao mesmo tempo) como ográfico, econômico, político, social,
estratégia política, técnica e científica cultural e pedagógico. A partir do
de disciplinamento dos indivíduos, e entrecruzamento dos âmbitos desta-
estiveram relacionadas com o amplo cados, a formação do homem passou
projeto de constituição da Moder- a seguir novos itinerários sociais, ori-
nidade. Dessa forma, é preciso desta- entando-se conforme novos valores
car que, conforme Harvey (2000), tal e estabelecendo novos modelos. Os
projeto equivaleu a um extraordinário fins da educação começaram a se des-
esforço intelectual dos pensadores tinar a um indivíduo ativo na socieda-
iluministas no intuito de desenvolver de, mundanizado, nutrido de fé laica e
a ciência objetiva, a moralidade, as leis aberto para a “reflexão racional” de
universais e a arte autônoma, em bus- suas ações e possíveis conseqüênci-
ca da emancipação humana e do enri- as. Os meios educativos sofreram
quecimento da vida diária. As promes- transformações, pois a sociedade es-
sas que se destacaram nesse período timulou a difusão de locais formativos,
foram relativas ao domínio científico como a oficina, o exército, a escola,
da natureza, às formas racionais de os hospitais, as prisões, os manicô-
organização do pensamento e à libe- mios, além da família e igreja.
ração do uso arbitrário do poder, pois Entre essas instituições, a escola
se acreditava que somente por meio passou a ocupar um lugar funcional
de tal projeto poderiam as qualidades para o desenvolvimento da socieda-
universais, imutáveis e eternas de de moderna em relação à difusão dos
toda humanidade serem reveladas. princípios de ordem/produtividade e
É interessante observar que o do- formação de profissionais das quais
mínio científico da natureza preconi- o sistema tinha necessidade. Pode-se
zava a liberdade da escassez e da ar- dizer que as instituições dedicadas ao
bitrariedade das catástrofes naturais, cuidado e educação das crianças sur-
enquanto o desenvolvimento de for- giram depois das escolas e a sua en-

300 Olhar de professor, Ponta Grossa, 9(2): 299-316, 2006.


trada em cena pode ser associada ção de objetos de saber que se desti-
com o trabalho materno fora do lar, a navam ao controle da própria espécie
partir da Revolução Industrial. Assim, através da Demografia, Estatística,
percebe-se que a questão do traba- Medicina Sanitária, entre outras ins-
lho materno fora do lar esteve relacio- tâncias, que tinham como objetivo
nada à estrutura familiar conjugal. fazer viver.
Conforme destaca Kuhlmann Jr. Em relação à educação, é impor-
(2004), as instituições de educação tante destacar, nesse período, o pro-
infantil começaram a se delinear no cesso de laicização dos processos
continente europeu ainda no final do formativos através da escola, impren-
século XVIII com as escolas de trico- sa e vida social, destacando-se o nas-
tar de Oberlin, propagando-se por cimento e a difusão do livro pela ex-
meio de uma circulação de pessoas e pansão da alfabetização, o desenvol-
idéias pedagógicas, no intuito de aten- vimento de um novo perfil de intelec-
der às crianças pobres e às mães tra- tual, assim como a difusão das idéias
balhadoras. É importante ressaltar, que pedagógicas. Nesse sentido, o pro-
nesse período, a sociedade começou cesso de (re)orientação da educação,
a estabelecer aparelhos de poder so- operacionalizou-se devido ao nasci-
bre a vida da população no intuito de mento da Pedagogia como ciência,
preservar a vida dos sujeitos. Os pro- como saber da formação humana que
blemas sociais passaram a ser foco se dedicava a “calcular racionalmen-
de discussão e embate, pois os as- te” as complexas (e inúmeras) variá-
pectos relacionados à população, veis, que tornavam possível o funci-
como a repartição das epidemias, ob- onamento do processo educacional.
servação das condições de moradia e No entanto, foi somente na segun-
higiene dos sujeitos tornaram-se pau- da metade do século XIX que as ins-
ta das discussões. O aumento das tituições de educação infantil encon-
populações urbanas, a crescente di- traram as condições de meio favorá-
visão do trabalho, a organização ca- veis para sua difusão, acompanhan-
pitalista da acumulação e da proprie- do o processo de expansão do ensi-
dade e, posteriormente, a organização no elementar e sendo difundidas am-
dos estados nacionais fizeram emer- plamente durante as Exposições In-
gir formas de ver os indivíduos e as ternacionais como modelos de civili-
populações, caracterizando o que zação, por serem consideradas como
Foucault (1999) denomina como estabelecimentos modernos e cientí-
assunção da vida pelo poder, ou seja, ficos, conforme enfoca Kuhlmann Jr.
a tomada do poder sobre o homem (1998). As instituições européias dedi-
enquanto ser vivo/espécie. Esse fe- cadas à educação das crianças na pri-
nômeno enunciado pelo filósofo pas- meira infância localizaram-se (ini-
sou a operar no sentido da constitui- cialmente) nos países em que as mu-
Olhar de professor, Ponta Grossa, 9(2): 299-316, 2006. 301
lheres precisavam trabalhar para ga- partir de categorias relacionadas com
nhar o seu sustento, corroborando a “invenção” dos sujeitos modernos.
com um dos principais preceitos da Justifica-se, assim, o fato de que es-
civilização, que era o da obrigação de sas instituições foram (e continuam
ganhar a vida pelo próprio trabalho. sendo) os principais estabelecimen-
No Brasil, o cuidado e a educação tos encarregados de construir um tipo
das crianças pequenas iniciaram a de mundo chamado mundo moderno,
partir da metade do século XX, perío- cujos ideais estão sendo problema-
do marcado pela urbanização, indus- tizados pela pós-modernidade.
trialização, divulgação do discurso E é justamente a partir de todos
médico-higienista, constituição de um estes ditos que discutirei como as ins-
novo estatuto familiar e criação da tituições de educação infantil se cons-
república. As primeiras creches brasi- tituíram e se difundiram na sociedade
leiras, conforme Barbosa (2000), se enquanto instituições implicadas no
constituíram no intuito de atenuar a disciplinamento através do controle
mortalidade infantil, divulgar campa- dos corpos, tempos e espaços dos in-
nhas de amamentação, atender às divíduos. Dessa forma, ouso dizer que
mães solteiras e realizar a educação procurarei fazer a crítica conforme nos
moral das famílias. A difusão das ins- ensina Foucault (1981), tornando di-
tituições de educação infantil em ter- fíceis os gestos fáceis demais, ou seja,
ras brasileiras recebeu grande influ- problematizando sobre que tipo de
ência das idéias dos médicos higie- evidências, de familiaridades, de mo-
nistas e dos psicólogos que descre- dos de pensamento adquiridos e não
viam o que se considerava como sen- refletidos repousam as práticas que
do um desenvolvimento infantil nor- estiveram associadas às mudanças
mal e classificavam as condutas das econômicas, políticas e sociais que
crianças e de suas famílias como nor- ocorreram na sociedade.
mais ou patológicas.
Trago tais discussões para desta- 1 CONSTITUINDO (NOVOS) MO-
car que o intuito deste artigo é o de DOS DE PODER-SABER SOBRE A
discutir as condições de emergência INFÂNCIA
das instituições de educação infantil,
portanto de sua “entrada em cena” A ocorrência de uma série de fe-
conforme se refere Foucault (2000). nômenos políticos, econômicos e
Nessa perspectiva, procurarei com- demográficos, marcou o início dos
preender tais estabelecimentos en- tempos modernos no Ocidente. Tais
quanto maquinarias capazes de disci- fenômenos fizeram surgir (na segun-
plinar as subjetividades dos indivídu- da metade do século XVIII) uma
os para algumas formas muito parti- biopolítica da população, que é des-
culares de viver o espaço e o tempo, a crita por Foucault (1988, p. 131) como

302 Olhar de professor, Ponta Grossa, 9(2): 299-316, 2006.


sendo: “um conjunto de processos de saúde, a duração da vida, a longe-
[envolvendo] a proporção dos nasci- vidade, entre outras operações. Sen-
mentos e dos óbitos, a taxa de repro- do assim, as disciplinas do corpo e as
dução, a fecundidade de uma popula- regulações da população passaram a
ção” entre outros fatores. Dessa for- constituir os dois pólos em torno dos
ma, é possível dizer que essa tecno- quais se desenvolveu a organização
logia de poder fez com que a vida e do poder sobre a vida.
seus mecanismos entrassem no do- A articulação entre os pólos indi-
mínio dos cálculos explícitos, fazen- víduo e espécie pode ser destacada
do do poder-saber um agente de através da influência médica que foi
transformação da vida humana. Tal exercida na divulgação de uma políti-
poder sobre a vida dos indivíduos é ca natalista contraceptiva desenvol-
descrito pelo referido autor (1999, p. vida em relação às mulheres. Tal prá-
296) como sendo tica é explicada por Foucault (1979, p.
cada vez menos o direito de fazer 275) quando afirma que “praticava-se
morrer e cada vez mais o direito de a contracepção não para que as cri-
intervir para fazer viver, e na ma- anças não nascessem, mas para que
neira de viver, e no “como” da vida, as crianças pudessem viver, uma vez
a partir do momento em que, por- nascidas”.
tanto, o poder intervém sobretu- Pode-se dizer, portanto, que, no
do nesse nível para aumentar a século XVIII, o discurso sobre nasci-
vida, para controlar seus aciden- mentos passou a incorporar a idéia
tes, suas eventualidades, suas de contracepção, pois, nessa época,
deficiências, daí por diante a mor- mais crianças morriam do que sobre-
te, como termo da vida, é eviden- viviam à primeira infância. A contra-
temente o termo, o limite, a extre- cepção se mostrou como uma forma
midade do poder. de impedir o nascimento de crianças
Nesse sentido, é importante res- no intuito de preservar a vida das já
saltar que tal biopolítica se desenvol- nascidas. Iniciou-se, então, a contabi-
veu em relação a dois pólos comple- lização da alta taxa de mortalidade in-
mentares. O primeiro centrou-se no fantil e o exercício de controle sobre o
corpo-máquina, através de seu ades- cuidado dispensado pelas amas-de-
tramento, na ampliação de suas apti- leite, porém essa medida tornou-se
dões, na extorsão de suas forças, a pouco produtiva devido à grande dis-
partir da disciplina difundida pelas tância que muitas delas se encontra-
instituições. Já o segundo centrou- vam dos centros urbanos. A partir
se no corpo-espécie através de uma desse momento, os discursos médi-
série de intervenções e controles re- cos e higiênicos impuseram às mães
guladores, que possibilitaram estimar o amor e o cuidado em relação aos
a natalidade e a mortalidade, o nível seus filhos. De acordo com Dornelles
Olhar de professor, Ponta Grossa, 9(2): 299-316, 2006. 303
(2002), o combate ao trabalho das uma das principais leis morais no âm-
amas-de-leite e serviçais, possibilitou bito familiar. A família torna-se o lugar
novas formas de ver as tarefas edu- no qual se inscrevem determinadas
cativas e uma reorganização dos com- formas de transmissão de valores,
portamentos considerados educa- pois seu intuito é o de favorecer o pe-
tivos. Esse movimento trouxe consi- ríodo da infância. Tais relações ocor-
go a difusão da medicina doméstica, rem em forma de obrigações como a
ou seja, um conjunto de conhecimen- amamentação das crianças pelas mães,
tos e de técnicas que permitiu às clas- a preocupação com um vestuário sa-
ses burguesas tirarem seus filhos da dio, exercícios físicos para o um bom
influência “negativa” das serviçais. desenvolvimento do organismo, etc.
Por outro lado, tal campanha pela Nesse sentido, Foucault (1979) afir-
amamentação procurava, também, di- ma que a família, a partir de então,
minuir os custos sociais com a manu- adquire uma figura material, pois se
tenção de entidades destinadas aos organiza como o espaço mais próxi-
menores abandonados, assim como mo da criança, no qual ela encontra
controlar a reprodução dos mais po- condições de sobrevivência e desen-
bres. volvimento.
Nessa perspectiva, Yalom (1988) A partir de todas as discussões
afirma que, no referido século, houve apontadas, penso ser possível com-
por toda Europa um violento protes- preender a “campanha” pelo aleita-
to contra as amas-de-leite a partir das mento (no século XVIII) enquanto
fileiras de moralistas, filósofos médi- uma estratégia biopolítica. Tal estra-
cos e cientistas que tinham como in- tégia pode ser relacionada a um in-
tuito provar que o que era natural para vestimento no corpo da nação, pois
o corpo humano era basicamente bom se investe (e se regula) o corpo indi-
para o organismo político. É interes- vidual (da mãe e do lactante) para que
sante observar que a saúde física era o corpo social seja incrementado.
considerada uma metáfora da saúde Através de seus mecanismos de con-
do estado, e os seios representavam trole e governo da população, foram
a doença ou o bem-estar. Dessa for- estabelecidos aparelhos de poder, no
ma, os discursos circulantes que intuito de preservar a vida dos indiví-
enunciavam a defesa da amamentação duos. Dessa forma, a noção de popu-
pelas mães (uma forma de controlar o lação como um corpo múltiplo (neces-
corpo feminino), classificavam os sei- sariamente numerável) possibilitou
os entre “corruptos” (referentes às objetivar um campo de intervenção
amas-de-leite) e “maternais” (associ- que se introduziu no pensamento po-
ados à regeneração familiar e social). lítico com um papel organizacional
Sendo assim, difunde-se, conforme eficaz, pois, para governá-la, foi pre-
Uberti (2002), a lei do cuidado como ciso (antes de tudo) conhecê-la. As

304 Olhar de professor, Ponta Grossa, 9(2): 299-316, 2006.


estatísticas, os métodos, os cálculos, iniciou-se um processo de interven-
as estimativas, difundiram-se como ção na reprodução dos indivíduos,
meios de conhecer e governar a as- nos nascimentos e na condução de
cendente população. vida dos nascidos, através da propa-
Em função da crescente preocu- gação de discursos que visavam ao
pação com o fator populacional, a cri- investimento e ao controle da infân-
ança tornou-se objeto de investiga- cia. Nesse sentido, é importante des-
ção, investimento e preservação, es- tacar o dito por Foucault (1988) ao
pecialmente com a sua procriação e afirmar que o poder de verdade des-
sexualidade. A necessidade de asse- ses discursos fez com que a criança
gurar a preservação e utilidade dos passasse a ser vigiada por toda uma
indivíduos tornou necessária a preo- ronda de babás, serviçais, pedagogos
cupação com a saúde da população e médicos, fazendo do infantil um foco
em geral e das crianças em específico. local de poder-saber, que veiculava
Nesse sentido, Foucault (1979, p. 199) formas de sujeição e esquemas de
afirma que: conhecimentos, numa espécie de vai-
ao problema “das crianças”(quer vém incessante. Concordo com o au-
dizer, de seu número no nascimen- tor e saliento que médicos, pedago-
to e da relação da natalidade-mor- gos e professores começaram a diri-
talidade) se acrescenta o da “in- gir conselhos às famílias e autorida-
fância” (isto é, da sobrevivência des, prescrevendo a conduta infantil
até a idade adulta, das condições a partir da vigilância. É possível dizer
físicas e econômicas dessa sobre- que, a partir de então, houve um pro-
vivência, dos investimentos ne- cesso de produção e circulação de uma
cessários e suficientes para que variada literatura de preceitos e ad-
esse período de desenvolvimen- vertências em relação à educação das
to se torne útil, em suma, da orga- crianças. Nesse sentido, é importante
nização dessa “fase” que é enten- destacar que um dos efeitos da pro-
dida como específica e finalizada). dução da referida literatura foi a difu-
Não se trata, apenas, de produzir são de diferentes discursos a respei-
um maior número de crianças, mas to da conduta infantil que estavam
de gerir convenientemente essa imersos em uma gama de relações de
época da vida. poder.
Através deste investimento na Sendo assim, acompanho
vida, é possível dizer que a infância Dornelles (2002) quando afirma que a
tornou-se um problema, pois, além da emergência da criança como aconte-
necessidade de manter a sobrevivên- cimento visível fez com que essa pas-
cia das crianças, foi necessário que sasse a ser dita, explicada, caracteri-
esse período se tornasse útil. Assim, zada como um ser inocente, diferente

Olhar de professor, Ponta Grossa, 9(2): 299-316, 2006. 305


do adulto, que precisava de cuidado, tecnologias específicas e de “ela-
proteção e disciplinamento. É impor- borados” códigos teóricos; 4. a
tante observar que tais medidas em destruição de outros modos de
relação à criança, passaram a ser exer- educação; 5. a institucionalização
cidas na família e nos colégios, com propriamente dita da escola.
um controle de cunho cada vez mais (VARELA, 1992, p. 69).
rígido e total. Tais condições, que possibilitaram
Nessa perspectiva, é interessante o aparecimento da escola nacional e
observar, a partir da pesquisa realiza- do pensamento pedagógico moderno,
da por Souza (2000), que o século estiveram, de certa forma, relaciona-
XVIII acentuou a imposição de regras das à emergência e difusão das insti-
de comportamento, sendo que a Igre- tuições de educação infantil. A partir
ja e o Estado assumiram a responsa- da primeira metade do século XIX, na
bilidade pelo sistema educativo, tor- Europa, as crianças abandonadas, que
nando o processo de escolarização no século anterior eram recolhidas
mais evidente. Sendo assim, as famíli- juntamente com as populações des-
as foram incentivadas a colocarem viantes nas prisões, hospícios e asi-
suas crianças no espaço escolar, ao los de mendicidade, passaram a ser
mesmo tempo em que se foram deli- atendidas em locais específicos, pois
neando políticas de proteção à infân- começou a existir uma diferenciação
cia na Europa. Pode-se dizer, portan- em relação aos estabelecimentos as-
to, que as novas formas de perceber sistenciais. Através da busca pela di-
as famílias e a sociedade passaram a ferenciação do atendimento à infân-
atuar como propulsoras das institui- cia, foram criados os berçários, as ca-
ções educacionais modernas, das sas-asilo, os lactários, os consultóri-
quais podem ser destacados os esta- os de puericultura e as salas de cus-
belecimentos dedicados ao atendi- tódia para atender às crianças peque-
mento às crianças. nas.
A partir dos mecanismos de regu- Esses estabelecimentos nasciam
lação da população, foram-se confi- a partir de um novo sentimento em
gurando condições de possibilidade relação à infância e ao respectivo cui-
que tornaram possível o nascimento dado que deveria ser dispensado a
da escola nacional, dentre as quais se essa etapa da vida, sendo que foram
destacaram: apresentados em oposição aos locais
1. a definição de um estatuto de que recebiam crianças abandonadas,
infância; 2. a emergência de um com a intenção de que as mães manti-
espaço específico destinado à vessem a guarda de seus filhos con-
educação das crianças; 3. o apa- tando com o cuidado e assistência.
recimento de um corpo de especi- Justifica-se, assim, a estruturação das
alistas da infância dotados de instituições dedicadas às crianças, a
306 Olhar de professor, Ponta Grossa, 9(2): 299-316, 2006.
partir de uma gama de diferentes de- tizarem que os discursos circulantes
nominações, buscando viabilizar o na época do surgimento das institui-
atendimento do respectivo contexto ções de educação infantil européias
social no qual elas estavam situadas. argumentavam que elas estavam vin-
Nesse período, grande parte dos culadas à idéia de melhorar a qualida-
sistemas de educação nacional orga- de do ambiente dos/das filhos/as tra-
nizaram-se nos países europeus, uti- balhadores/as fabris. É possível dizer
lizando-se de fundamentação pedagó- que, nesse sentido, havia uma con-
gica, materiais e métodos para o tra- cepção de que a família seria, de certa
balho com as crianças. Tal difusão da forma, “incapaz” de administrar a edu-
educação foi considerada como um cação de sua prole.
dos critérios para medidas de desen- Pode-se dizer, portanto, que esses
volvimento dos países. As institui- locais de educação e cuidado das cri-
ções de educação infantil, segundo anças foram se constituindo a partir
Barbosa (2000), apesar de não faze- de embates políticos, econômicos e
rem parte dos sistemas educacionais, sociais situados no quadro das mu-
foram consideradas como elementos danças civilizadoras, que definiam
importantes de uma concepção cul- uma visão moderna de sujeito. Assim,
tural que definia que as crianças po- tais mudanças estiveram pautadas na
deriam ser cuidadas em um ambiente individualização dos sujeitos, no con-
extrafamiliar. trole das emoções, no desenvolvi-
Nesse sentido, Kuhlmann Jr. mento da autoconsciência e no esta-
(1998) afirma que tal difusão das ins- belecimento de um código de condu-
tituições de educação infantil esteve ta partilhado, impulsionados pelas
pautada em uma nova concepção nascentes configurações de socieda-
assistencial e científica, pois havia de e família.
uma proposta de progresso da ciên- Conforme Barbosa (2000), nesse
cia, que legitimava as práticas emer- processo de difusão das instituições
gentes relacionadas ao atendimento dedicadas ao atendimento da primei-
institucional das crianças na primeira ra infância, as práticas de educação e
infância. A partir das considerações cuidado das crianças foram deslo-
do referido autor, é possível destacar cadas de ações moldadas por grupos
que as creches “nascidas” na Europa familiares, privados para sistemas
foram consideradas como “solução” modernos, públicos e globais, eviden-
para os cuidados da infância, em fun- ciando uma preocupação com a as-
ção da necessidade do trabalho femi- cendente população infantil. Sendo
nino no processo de industrialização. assim, várias experiências marcaram
Carl Kaestle e Maris Vinosvskis (apud as iniciativas de atendimento educa-
FINKELSTEIN, 1992, p. 190) corrobo- tivo às crianças, tais como as creches,
ram com tais informações ao enfa- as salas de asilo francesas, as esco-
Olhar de professor, Ponta Grossa, 9(2): 299-316, 2006. 307
las de jogo, os Jardins de Infância brasileira), ambas as ações desenvol-
froebelianos, as Casas dei Bambini vidas em 1899. Dessa forma, é possí-
de Maria Montessori e as escolas ma- vel dizer que as primeiras creches bra-
ternais. Desse modo, tais espaços se sileiras foram criadas tendo como in-
constituíram com intuito disciplinar as tuito a redução da mortalidade infan-
crianças e suas famílias, de acordo til, a divulgação de campanhas de
com as necessidades de formação do amamentação e o atendimento às mães
que se acreditava como ideal de ho- solteiras para realização de uma edu-
mem e sociedade moderna. Dessa for- cação moral das famílias.
ma, é preciso levar em consideração Nesse processo, os estabeleci-
que tais pressupostos influenciaram mentos dedicados à educação infan-
outros países, como o Brasil, por meio til, começaram a ser reconhecidos
da circulação de discursos de prote- como sinônimo de progresso e difun-
ção e assistência à infância. Nesse diram-se a partir dos movimentos de
sentido, discutirei na próxima seção o urbanização, industrialização, divulga-
estabelecimento e expansão das ins- ção do discurso médico-higienista,
tituições de educação infantil no Bra- (re)organização da família e criação da
sil. república. Propagou-se uma série de
discursos (médicos, pedagógicos,
2 DISCIPLINANDO CORPOS E psicológicos, políticos e jurídicos),
“CIVILIZANDO” MENTES que defendiam a educação infantil
como sendo necessária à formação de
Os pressupostos de formação do (futuros/as) cidadãos/ãs “corretos/
homem moderno, difundidos na Eu- as” e disciplinados/as. Sendo assim,
ropa, repercutiram em terras brasilei- as instituições de educação infantil
ras. Dessa forma, a educação das cri- passaram a ter uma importante fun-
anças em nosso país também passou ção na operacionalização de uma nova
a ser um campo de regulação, contro- forma de exercício do poder, não mais
le e conseqüente intervenção social, centrada em punições e castigos físi-
sendo justificada pela influência da cos (conforme modelo pedagógico
classe média nos movimentos de as- corretivo), mas na normalização das
sistência à infância. Desse modo, as condutas das crianças e de suas fa-
primeiras propostas de instituições de mílias.
Educação Infantil no Brasil, confor- É importante salientar que, em re-
me Kuhlmann Jr. (1998), ocorreram a lação aos discursos da saúde, as ins-
partir da fundação do Instituto de tituições de educação infantil (assim
Proteção e Assistência à Infância como as escolas regulares) foram vis-
(IPAI-RJ) e da inauguração da Cre- tas pelos médicos e sanitaristas en-
che da Companhia de Fiação e teci- quanto espaços através dos quais se-
dos do Corcovado (a primeira creche ria possível realizar um trabalho com

308 Olhar de professor, Ponta Grossa, 9(2): 299-316, 2006.


as crianças e suas famílias, principal- anças, também evidenciou a preocu-
mente no que se referia aos aspectos pação da Medicina em relação à mor-
higiênicos e físicos. Pode-se dizer, talidade infantil, cujas propostas se
portanto, que a pedagogia higiênica integravam ao projeto geral de sanea-
tinha interesse (especial) pelas crian- mento que pretendia desenvolver a
ças, pois considerava que o trabalho civilidade das pessoas e a moder-
com os pequenos era um passo im- nidade do país.
portante na “produção” do adulto Destacaram-se, dessa forma, es-
adequado à ordem médica. pecialmente os movimentos de assis-
Nesse sentido, a preocupação tência à infância, relacionados à im-
com a saúde e bem-estar das crian- plantação de creches e iniciativas as-
ças, conforme Souza (2000, p. 6), le- sociadas à proteção à maternidade,
vava a família a operar como “uma que visavam à “produção” de mães
máquina voluntária e responsável pela que almejassem a constituição de la-
criação e moralização das crianças, na res higiênicos e a criação de filhos
qual os adultos se comprometeriam saudáveis. No entanto, é necessário
com a tarefa de promover o bem-estar dizer que tais instituições definiram
físico e mental de sua prole”, em ali- metas vinculadas à saúde, porque as
ança com os pressupostos médicos. crianças (assim como os imigrantes e
Levando em consideração os aspec- as etnias consideradas “inferiores”)
tos discutidos em relação ao interes- eram vistas como alvos principais da
se (dos médicos), é possível fazer uma higiene. Justificava-se, assim, a ação
aproximação com o dito por Foucault das práticas higiênicas em relação às
(1979), quando afirma que a família (a crianças e suas famílias, pois, dessa
partir do final do século XVIII) deixa forma, a medicina estaria contribuin-
de ser uma teia de relações que se ins- do para o saneamento da população
creve em um estatuto social e torna- menos abastada. Tais práticas repre-
se um meio físico denso, saturado, sentaram (naquele período histórico)
contínuo, permanente, que mantém e uma alternativa importante para imple-
favorece o corpo da criança. Nesse mentação da educação de hábitos nas
sentido, é possível observar que os crianças e de suas famílias através das
médicos higienistas e os sanitaristas instituições educacionais, que visa-
perceberam a potencialidade das fa- vam ao estabelecimento de um minu-
mílias para o desenvolvimento de uma cioso controle e “mudança” dos cos-
consciência sanitária na população, tumes mais simples e rotineiros.
utilizando-se da educação das crian- Nesse sentido, retomo as palavras
ças como estratégia de aproximação de Foucault (1999) quando afirma que
dos lares. Por outro lado, é preciso a Medicina tem efeitos disciplinares e
levar em consideração que esta influ- regulamentadores, pois incide ao mes-
ência higienista na educação das cri- mo tempo sobre o corpo e sobre as
Olhar de professor, Ponta Grossa, 9(2): 299-316, 2006. 309
populações, sobre os organismos e assim passaram a contribuir com a
sobre os processos biológicos. Em produção de saberes relacionado a
relação às instituições de educação uma “nova” concepção de infância.
infantil, os referidos efeitos podem ser Tais discursos fortaleceram, através
percebidos no lugar de destaque que da Pedagogia, os anseios das classes
esses espaços ocuparam na divulga- emergentes, que almejavam o título de
ção de uma mentalidade higiênica com modernas. Sendo assim, essa vonta-
vistas ao desenvolvimento de bons de de saber e de poder da Pedagogia,
hábitos nas famílias, crianças e comu- em medir, vasculhar, esquadrinhar,
nidade. passou a ser incorporada como medi-
Conforme destaquei no início do da constante na instalação das insti-
artigo, os discursos médicos afirma- tuições de educação infantil.
vam que era preciso criar não apenas É possível destacar que se estava
maternidades, mas também muitas cre- constituindo uma (nova) configura-
ches e escolas como objetivo de re- ção social no nosso país, evidencian-
duzir a mortalidade infantil. Essas do uma ascendente preocupação em
medidas estavam relacionadas à as- atender às emergentes demandas da
censão dos ideais burgueses, que vi- sociedade, a partir do ideal positivista
savam a alterar o perfil sanitário da de “ordem e progresso”. Tal ideal des-
família a partir da “apropriação” dos tacou-se através dos discursos polí-
costumes europeus e da urbanização ticos republicanos, que defendiam o
dos hábitos. Desse modo, as institui- desenvolvimento científico e tecnoló-
ções de educação infantil serviram gico como a “solução” para os proble-
como estratégia de consolidação de mas sociais. Nessa perspectiva, é im-
um discurso científico aplicado à edu- portante salientar que, segundo Sou-
cação, no qual se operacionalizava za (2000, p. 71):
uma pedagogia científica respaldada no Brasil a implantação dos Jar-
pelos discursos de racionalidade e dins de Infância, ocorrida no final
ordem. do século XIX, suscitou inúme-
Em relação à “produção” dos dis- ras resistências, apesar de alguns
cursos pedagógicos e psicológicos, esforços feitos no sentido de con-
Varela (1996) destaca que as institui- vencer educadores, políticos e fa-
ções de educação infantil se conver- mílias de sua importância enquan-
teram em “verdadeiros laboratórios”, to instituições educacionais mo-
nos quais se obtiveram saberes e se dernas. Dentre os discursos pro-
ensaiaram formas de trabalhar com as duzidos no sentido de defender a
crianças. Nessa perspectiva, as con- implantação dos Jardins, destaca-
tribuições da Psicologia (experimen- se o Parecer ao Projeto da Refor-
tal e genética) foram sendo incorpo- ma do Ensino Primário de 1882,
radas pelos/as pesquisadores/as, que, elaborado por Ruy Barbosa.
310 Olhar de professor, Ponta Grossa, 9(2): 299-316, 2006.
As resistências apontadas pela programas de higiene. Pode-se dizer,
autora em relação à implantação dos portanto, que a educação sanitária
Jardins de Infância em nosso país se continuava sendo vista (ainda com
devem, entre outros fatores, aos mo- maior ênfase) como estratégia através
dos de como se entendia a educação da qual se poderia desenvolver um
das crianças (desde os fins do perío- sistema de hábitos, cujo alvo priori-
do imperial), pois tais estabelecimen- tário era a infância. Nesse sentido,
tos eram concebidos a partir de uma educação e saúde passaram a ser con-
visão filantrópica, religiosa e assis- siderados como elementos indisso-
tencialista. Nos referidos discursos ciáveis de um programa de moraliza-
políticos, que defenderam a difusão ção, cujo principal pressuposto con-
das instituições de educação infantil, sistia na higienização da população.
houve uma ênfase em relação ao aten- A partir da pesquisa desenvolvida por
dimento educativo que deveria ser Rocha (2003b, p. 40), é possível sali-
prestado às crianças, como forma de entar que, no referido século, acentu-
promoção da “civilidade” e de sanea- aram-se as preocupações com as ques-
mento das condições de vida das po- tões relativas à higiene, sendo que os
pulações pobres. Nesta campanha objetivos de tal proposta eram de
educacional difundida pelos referidos eliminar atitudes viciosas e incul-
discursos, destacaram-se os eixos car hábitos salutares, desde a mais
saúde, moral e trabalho, através dos tenra infância. Criar um sistema
quais deveria ser desenvolvida a edu- fundamental de hábitos higiêni-
cação do povo. Assim, enfatizo que cos, capaz de dominar, inconsci-
esses eixos destacados pela autora em entemente, toda a existência das
relação à promoção da educação esti- crianças. Modelar, enfim, a natu-
veram primeiramente direcionados à reza infantil, pela aquisição de há-
família nuclear burguesa, sendo ex- bitos que resguardassem a infân-
pandidos em relação às classes po- cia da debilidade e das moléstias.
pulares posteriormente.
Conforme salientei anteriormente À medida que os referidos objeti-
a respeito da influência médico-higie- vos foram sendo divulgados, houve
nista na difusão da educação infantil, a necessidade de elaboração de pro-
assim como na normalização dos há- gramas para o ensino da higiene nas
bitos das crianças e de suas respecti- escolas, tendo em vista o desenvol-
vas famílias, considero relevante re- vimento da consciência sanitária nas
tomar tal discussão e destacar que, crianças e o respectivo alcance dos
no século XX, a escola continuou propósitos almejados. Sendo assim,
sendo chamada a oferecer a sua cola- a educação das crianças passou a ser
boração na divulgação de campanhas orientada por um programa cujos prin-
de saúde e no desenvolvimento de cípios “correspondiam” ao (suposto)

Olhar de professor, Ponta Grossa, 9(2): 299-316, 2006. 311


caminho que elas “deveriam” percor- desenvolvimento de campanhas de
rer na aquisição dos hábitos higiêni- aprendizado da higiene e de medi-
cos. Esse caminho, conforme os mé- calização da população.
dicos-higienistas, era composto por Torna-se imprescindível enfatizar
quatro etapas, que consistiam em imi- que nessa difusão da educação infan-
tação, obediência, amor-próprio e ra- til, além do higienismo, também foram
ciocínio. significativas as influências jurídico-
A partir das discussões desenvol- policial e religiosa como articulado-
vidas a respeito da expansão das ins- ras do processo de legitimação da ne-
tituições de educação infantil e de cessidade de criação dos estabeleci-
suas metas relacionadas à saúde, con- mentos específicos para o atendimen-
sidero possível compreender tais to às crianças. É Kuhlmann Jr. (1988)
ações enquanto estratégia biopolítica, quem destaca em suas pesquisas que,
pois se evidencia uma preocupação em relação ao ponto de vista jurídico-
com a população como um problema policial, foram as preocupações com
a um só tempo científico e político, as legislações trabalhista e criminal
com vistas à preservação da vida. que trouxeram como pauta de discus-
Dessa forma, considero relevante são a preocupação com a infância mo-
retomar o conceito de biopolítica, a ralmente abandonada, sendo estabe-
partir de Foucault (1997, p. 89), como: lecida a fundação do Patronato de Me-
a maneira pela qual se tentou raci- nores. Por outro lado, para o referido
onalizar os problemas propostos autor, a influência religiosa também
à prática governamental, pelos fe- obteve destaque nesse processo de
nômenos próprios de um conjun- difusão das instituições de educação
to de seres vivos constituídos em infantil, pois, seguindo o exemplo de
população: saúde, higiene, nata- outros setores, foram realizados con-
lidade, raças, etc. Sabe-se o lu- gressos católicos tendo em vista a or-
gar crescente que esses proble- ganização do clero e dos leigos mili-
mas ocuparam, desde o século tantes para a implementação de po-
XVIII, e as questões políticas em líticas assistenciais. Nesse aspecto,
que eles se constituíram até os destaco que havia a orientação da cri-
dias de hoje. ação de creches junto às indústrias,
sendo que o intuito da operaciona-
Sendo assim, é interessante ob-
lização de tal recomendação consis-
servar que, desde o final do século
tia na regulamentação do trabalho fe-
XVIII, a Medicina passou a ter como
minino fora do âmbito familiar.
uma de suas (principais) atribuições
a higiene pública, através da coorde- As considerações abordadas no
nação dos tratamentos médicos, cen- decorrer da seção permitem perceber
tralização das informações e normali- que as instituições de educação in-
zação do saber, operacionalizando o fantil tiveram sua difusão em nosso

312 Olhar de professor, Ponta Grossa, 9(2): 299-316, 2006.


país, devido às (emergentes) concep- a aquisição de hábitos e atitudes
ções de infância, ao papel social das de vida social, mas especificamen-
crianças e à possibilidade de torná- te construindo hábitos mentais,
las “produtivas” e disciplinadas, atra- morais, sociais, cívicos, higiêni-
vés da educação. Justifica-se, assim, cos e estéticos conforme Boletim
o dito por Souza (2000) quando afir- do CPOE/RS (1950, p. 35).
ma que as instituições de educação As contribuições da autora per-
infantil foram acionadas (desde a sua mitem salientar o caráter disciplinar da
criação) como aparatos de controle, educação infantil e a sua produtivi-
que tinham como intuito a formação dade em relação à “formação” de in-
de crianças educadas para a obediên- divíduos em consonância com as ex-
cia, disciplinadas e cumpridoras dos pectativas sociais do referido perío-
seus deveres. Sendo assim, o proces- do. É possível dizer, portanto, que tais
so de implantação das instituições instituições se estruturaram no Brasil
conviveu com argumentos que legiti- (assim como em vários países ociden-
maram a produção de saberes sobre tais) com diferentes denominações e
as crianças, através do olhar dos adul- prestações de serviços de cuidado e
tos, com seus diferentes objetivos e educação diversificados, procurando
propostas, que, a partir de certo mo- atender às demandas sociais do con-
mento, começaram a ser divulgados texto no qual estavam inseridas. Por
na legislação como forma de conquis- outro lado, é possível dizer que, a par-
tar espaço para instalação de um nú- tir da década de 50 do século XX,
mero crescente de instituições dedi- houve propostas de consolidação das
cadas à educação das crianças. Con- propostas de implementação e expan-
forme Souza (2000, p. 79), no Brasil, o são das instituições de educação in-
discurso oficial principalmente a par- fantil (Jardins de Infância), pois, em
tir de 1940, passou a defender a diferentes locais do país, começaram
expansão dos Jardins como impor- a surgir novas turmas, assim como
tantes instrumentos de governo publicações a respeito da instalação
das crianças e de suas famílias. O e funcionamento de tais estabeleci-
decreto-lei número 90, de 15/08/ mentos. Dessa forma, percebe-se que
42 estabelecia como objetivos do as instituições de educação infantil
Jardim de Infância proporcionar à passaram a fazer pauta das discussões
criança condições que pudessem a respeito da oferta de cuidado e edu-
favorecer o desenvolvimento in- cação para as crianças na primeira in-
tegral, preencher deficiências da fância.
educação dada no lar, prepará-la Sendo assim, considero importan-
para a aprendizagem escolar, ini- te destacar que não prosseguirei a
ciá-la na vida social proporcionan- discussão a respeito da expansão das
do-lhes situações e recursos para instituições de educação infantil (e de
Olhar de professor, Ponta Grossa, 9(2): 299-316, 2006. 313
suas problemáticas) até os dias atu- jurídicos, empresariais, políticos, mé-
ais. Justifico essa escolha retomando dicos, pedagógicos e religiosos en-
o objetivo do artigo, que é o de evi- quanto uma composição de forças que
denciar e problematizar (algumas) possibilitou a difusão de tais estabe-
condições de emergência desses es- lecimentos. Nessa perspectiva, é im-
tabelecimentos, para (na medida do portante destacar que participaram
possível) compreender algumas estra- como elementos da referida composi-
tégias de exercício do poder discipli- ção a infância a maternidade e o tra-
nar, assim como seus efeitos. Passo, balho feminino fora do lar, enquanto
então, a destacar, na próxima seção, aspectos presentes na história das
(algumas) considerações para pensar instituições.
a escola infantil enquanto “maquina- Trago tais discussões com a in-
ria” disciplinar. tenção de apontar para o fato de que,
conforme Veiga-Neto (2003), o elo
3 CONSIDERAÇÕES PARA PEN- entre a escola e a sociedade moderna
SAR AS INSTITUIÇÕES DE EDU- é a disciplinaridade (no que se refere
CAÇÃO INFANTIL tanto à disciplina-corpo quanto à dis-
ciplina-saber). Embora o autor esteja
Através de incursões na história se referindo à escola regular, penso
da educação, procurei enfocar algu- ser possível realizar uma aproximação
mas condições de emergência das de tal contribuição em relação às ins-
instituições de educação infantil e tituições de educação infantil. À me-
suas respectivas relações com o am- dida que as instituições de educação
plo projeto de constituição da Moder- infantil se expandiram paralelamente
nidade. Dessa forma, retomo as dis- ao processo de escolarização (de mas-
cussões desenvolvidas no decorrer sas), receberam influências das esco-
do artigo e saliento que tais espaços las regulares e também estiveram
educativos foram pensados como ins- implicadas na operacionalização do
tituições que se estabeleceram e se poder disciplinar – que teve (e tem)
desenvolveram relacionadas com as como intuito o desenvolvimento da
práticas sociais, culturais, religiosas “capacidade” dos indivíduos se auto-
e econômicas, que se produziram na governarem.
sociedade moderna. Justificam-se, Sendo assim, é possível dizer que
dessa forma, as contribuições de as instituições de educação infantil
Kuhlmann Jr. (1998) quando afirma operaram (e continuam operando)
que, embora exista uma diversidade através de suas diferentes práticas
de opiniões sobre as causas e temas escolares na produção de subjetivi-
que influenciaram a constituição das dades, “ensinando” aos indivíduos
instituições de educação infantil, des- formas de ser e se relacionar com o
tacam-se a articulação dos interesses mundo no qual estão inseridos. Justi-

314 Olhar de professor, Ponta Grossa, 9(2): 299-316, 2006.


fica-se, dessa forma, o dito por Veiga- jan./jul. 1992.
Neto (2003), quando afirma que a es- FOUCAULT, M. Microfísica do poder.
cola (incluo também as escolas infan- Traduzido por Roberto Machado. Rio de
tis) “funcionou e continua funcionan- Janeiro: Graal, 1979.
do como uma fábrica que fabricou e ______. Então, é importante pensar?
continua fabricando novas formas de Libération, n. 15, p. 21, maio 1981. Dis-
vida”. Nesse sentido, é preciso levar ponível em: < http://www.unb/fe/tef/
em consideração que muitas das prá- filoesco/foucault/importantepensar.hml >.
ticas que são desenvolvidas nessas Acesso em: 19 jul. 2004.
instituições não têm somente o obje- ______. O dispositivo da sexualidade. In:
tivo de que as crianças aprendam FOUCAULT, M. História da sexuali-
melhor, mas também o de que sejam dade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro:
“produzidos” (novos) sujeitos. Graal, 1988.
Desse modo, penso ser possível ______. Nascimento da biopolítica. In:
dizer que os ditos que auxiliaram na FOUCAULT, M. Resumo dos cursos do
organização da trama do presente ar- Collège de France (1970-1982). Rio de
tigo podem-nos ajudar a pensar e a Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
problematizar as instituições de edu- ______. Aula do dia 17 de março de 1976.
cação infantil desde a sua “entrada In: FOUCAULT, M. Em defesa da soci-
em cena”, como estabelecimentos dis- edade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
ciplinares que possuem uma relação HARVEY, D. Passagem da modernidade à
imanente com a sociedade da qual fa- pós-modernidade na cultura contemporâ-
zem parte. nea. In: ______. A condição pós-moder-
na: uma pesquisa sobre as origens da
mudança cultural. São Paulo: Loyola,
REFERÊNCIAS 2000.

BARBOSA, M. C. S. Por amor e por KUHLMANN, M. J. As exposições in-


força: rotinas na educação infantil. Tese ternacionais e a difusão das creches e jar-
(Doutorado em Educação) - Universidade dins-de-infância. In: ______. Infância e
Estadual de Campinas, Campinas, 2000. educação infantil: uma abordagem his-
tórica. Porto Alegre: Mediação, 1998.
CAMBI, F. A modernidade como revolu-
ção pedagógica. In: ______. História da ______. Instituições pré-escolares assis-
pedagogia. São Paulo: UNESP, 1999. tencialistas no Brasil (1899-1922). In:
KUHLMANN, M. J. Infância e educa-
DORNELLES, L. V. Meninas no papel. ção infantil: uma abordagem histórica.
Tese (Doutorado em Educação) – Univer- Porto Alegre: Mediação, 1998.
sidade Federal do Rio Grande do Sul, Por-
to Alegre, 2002. ______. Trajetórias das concepções de
educação infantil. São Paulo, 2004. Dis-
FINKELSTEIN, B. Incorporando as cri- ponível em: < http://www.omep.org.br/
anças à história da educação. Teoria & artigos/palestras/05.pdf >. Acesso em: 10
Educação, Porto Alegre, n. 6, p.183-220, out. 2004.

Olhar de professor, Ponta Grossa, 9(2): 299-316, 2006. 315


ROCHA, H. P. Educação escolar e higie-
nização da infância. Caderno Cedes,
Campinas, v. 23, n. 59, p. 39-56, abr.
2003.
SOUZA, J. F. Governando mulheres e
crianças: jardins de infância em Porto
Alegre na primeira metade do século XX.
Tese (Doutorado em Educação) – Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Sul, Por-
to Alegre, 2000.
UBERTI, L. Diário de um bebê: gover-
no da subjetividade infantil. Dissertação
(Mestrado em Educação) – Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Ale-
gre, 2002.
VARELA, J.; URIA, F. A. A maquinaria
escolar. Teoria & Educação, Porto Ale-
gre, n. 6, p. 68-96, jan./jul. 1992.
______. O estatuto do saber pedagógico.
In: SILVA, T. T. (Org.). O sujeito da edu-
cação: estudos foucaultianos. Petrópolis:
Vozes, 1994.
______. Categorias espaço-temporais e
socialização escolar: do individualismo ao
narcisismo. In: COSTA, M. V. Escola
básica na virada do século: cultura, po-
lítica e currículo. São Paulo: Cortez, 1996.
VEIGA-NETO, A. Pensar a escola como
uma instituição que pelo menos garanta a
manutenção das conquistas fundamentais
da Modernidade. In: VORRABER, M. C.
(Org.). A escola tem futuro? Rio de Ja-
neiro: DP&A, 2003.
YALOM, M. O seio político: seios para a
nação. In: ______. História do seio. Lis-
boa: Teorema, 1988.

Encaminhado em: 03/07/06


Aceito em: 28/09/06

316 Olhar de professor, Ponta Grossa, 9(2): 299-316, 2006.

Você também pode gostar