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(1929-1989)
A proposta deste texto é realizar algumas considerações sobre o papel e a
importância da chamada "Escola dos Annales" para a cultura historiográfica do século
XX e nestes idos do século XXI, pois embora a chamada Quarta Geração, não possua
o mesmo impacto paradigmático das gerações anteriores, ainda sim, a influência
dessas três gerações são sentidas nos dias de hoje, principalmente da terceira em
aspecto de estudos culturais, e nas duas primeiras em aspectos de estudos sociais e
teóricos.
INTRODUÇÃO:
Auguste Comte
O Positivismo foi concebido pelo filósofo e sociólogo francês,Auguste Comte (1798-
1857), consistindo numa doutrina filosófica, sociológica e política que ao longo da
História tomou novos conceitos e sentidos. Daí ser recomendável usar Positivismo
Comteano para se referir a doutrina original, pois hoje existem várias formas de
Positivismo, e nem todas são iguais ao conceito original. Mas, na sua origem, Comte
concebia o positivismo como uma doutrina que se opunha ao racionalismo
cartesiano, ao idealismo, as explicações teológicas e metafísicas. Para ele, o
mundo deveria ser explicado através do sentidos e do que era palpável, logo, a ideia
de racionalismo deRené Descartes, que considerava a razão acima da própria
realidade, e que o conhecimento era nato, não era vista como fundamento empírico
por Comte, assim como, o fato de você atribuir causas a questões divinas e
metafísicas, que estariam relacionadas a vontade de Deus. Comte privilegiava o
conhecimento empírico, assim como Francis Bacon havia escrito no começo do
século XVII. Ao mesmo tempo, sua doutrina visava construir um modelo de ética,
para o trabalho científico, e até mesmo para a convivência em sociedade.
"O positivismo foi considerado por Augusto Comte como a base e o fundamento
metodológico de uma nova ciência social, a 'física social' ou 'sociologia'. Mais tarde,
o positivismo foi concebido por Comte como uma nova religião da humanidade".
(Grande Enciclopédia Larousse Cultural, 1998, p. 4736).
Para Comte a humanidade deveria cada vez mais, buscar a razão e o conhecimento
científico, evitando explicações teológicas e metafísicas, as quais ele via como
crendices e superstições de mentes ignorantes. A ciência seria a explicação para o
mundo e o universo. Tais ideias foram bastante fortes no século XIX, a ponto de
influenciar o meio acadêmico da época, e no caso da história não foi diferente.
"O que era novo sobre a abordagem historicista era sua generalização de que a
atmosfera e a mentalidade das eras passadas tinham que ser também reconstruídas,
pois só assim o registro formal dos eventos teria qualquer significado". (TOSH, 2011,
p. 22).
Um dos problemas que o historicismo apresentou, foi seu forte conservadorismo em
se tratar da história política nacional, algo que inibiu o desenvolvimento da
historiografia pelo restante do século, pois mesmo a história cultural, a história social
e econômica que já existiam no século XIX, não tinham muito espaço no meio
acadêmico, fortemente historicista, e posteriormente metodista e positivista,
metodologias que possuíam em comum essa tentativa de se "resgatar o passado" ou
se "refazer o passado".
Mas se por um lado o historicismo sofreu duras críticas no começo do século XX,
especialmente pelos franceses e ingleses, não significa que Ranke não tivera em o
que contribuir. Ranke chegou a escrever mais de 60 livros, embora muitos não são
tão conhecidos e alguns até raros de se encontrar hoje, mas como Holanda [1979]
dissera, sua principal contribuição não se encontra na forma de se entender a História
e pensar sobre ela, mas sim na metodologia de como se estudá-la.
"Foi ele quem criou para os estudos históricos o sistema dos seminários, que aos
poucos iriam proliferar em outros países Ao mesmo tempo desenvolveu recursos de
pesquisa e crítica das fontes, adaptando para isso, à História, processos já em uso,
antes dele, entre filólogos e exegetas da Bíblia. (HOLANDA, 1979, p. 16).
Contudo, embora sua defesa de uma "historia ciência" e de um "método mais eficaz"
para se escolher as fontes, analisá-las e desenvolver a crítica documental, sua
tendência em se privilegiar a história política, foi um dos principais motivos de crítica
ao seu trabalho, embora que é inegável que o historicismo esteve em alta na
Alemanha e França no final do século XIX e começo do XX, tornando-se uma área
dominante, e um dos principais motivos de crítica que Bloch e Febvre viriam fazer
com sua revista futuramente.
Unindo-se as ideias comtianas sobre o positivismo e o método de
pesquisa de Ranke, surgiu na Alemanha um grupo de historiadores que
passaram a serem chamados de metódicos. Ranke se tornou um dos
principais expoentes dessa cultura historiográfica na Alemanha.
"A escola metódica é criada “em torno de um axioma, o da história como “ciência
positiva” (DOSSE, 2003ª, p. 39-40), fugindo do subjetivismo em nome da ciência e
do respeito à verdade. Estes historiadores metódicos afirmavam, através de suas
revistas não serem defensores de nenhum credo dogmático e que apenas buscavam
o máximo possível de exatidão para com as fontes". (FARIAS;FONSECA;ROIZ,
2006, p. 121).
Gabriel Monod
Outro importante metodista francês, foi o historiador Gabriel Monod (1844-1912)
lembrado entre algumas de suas obras, por ter criado a Revue historique(Revista
histórica ou Revista de história) em 1904. Monod foi um árduo defensor da
profissionalização do historiador, pois no século XIX e começo do XX, vários
historiadores amadores escreviam sobre história. Monod foi mais conservador e
menos flexível que Langlois e Seignobos acerca do metodismo. Para ele apenas os
historiadores deveriam escrever a História, e essa escrita deveria ser isenta de
qualquer influência literária e passional. Neste sentido, ele alegava que alguns temas
só deveriam ser tratados muitos anos depois, para se evitar que as "paixões" do
historiador interferissem em seu julgamento.
Por essa perspectiva, os metódicos defendiam que a História deveria apenas ser
escrita e ensinada por historiadores, estando recluso o seu debate ao meio
acadêmico. Essa questão é importante a ser mencionada, pois na França antes de
1870 não havia um Curso de História regular nas universidades.
"A primeira geração, liderada por Marc Bloch e Lucien Febvre, compreende o período
entre 1929 e 1946. É marcada por alianças entre história, economia, sociologia,
geografia e demografia, pelos conceitos de compressão, história-problema, história
global e pelo trabalho de superação dos princípios que regiam a história tradicional
como a história política e a história dos eventos". (PORTO, 2010, p. 133).
Os fundadores:
"O movimento dos Annales, em sua primeira geração, contou com dois líderes:
Lucien Febvre, um especialista no século XVI, e o medievalista Marc Bloch. Embora
fossem muito parecidos na maneira de abordar os problemas da história, diferiam
bastante em seu comportamento. Febvre, oito anos mais velho, era expansivo,
veemente e combativo, com uma tendência a zangar-se quando contrariado por
seus colegas; Bloch, ao contrário, era sereno, irônico e lacônico, demonstrando um
amor quase inglês por qualificações e juízos reticentes. Apesar, ou por causa dessas
diferenças, trabalharam juntos durante vinte anos entre as duas guerras". (BURKE,
1992, p. 28).
Marc Bloch
Marc Léopold Benjamin Bloch nasceu em 6 de julho de 1886 em Lyon, sendo filho
de Gustave Bloch(1848-1923) o qual também foi um historiador, sendo
especializado em Idade Antiga e Idade Média. Marc ingressou no Liceu Louis-le-
Grand, e em 1904 passou para a Escola Normal Superior de Paris, onde quatro
anos depois, prestou o agregátion, e foi aprovado como professor de história e
geografia. Viajou por um breve tempo a Berlim e Leipzig, até que foi aprovado em
1909 na Fundação Thiers, onde estudou por quatro anos como bolsista. Atuou
como professor de história no ensino médio até a eclosão da Primeira Guerra
Mundial (1914-1918), Bloch foi convocado a servir o país, atuando na infantaria,
onde recebeu as patentes de sargento, tenente e capitão. Liderou tropas, foi ferido
em batalha, e também ganhou duas honrarias: a Legião de Honra e a Cruz Militar.
Em 1919 casou-se com Simone Vidal, com quem teve seis filhos. No mesmo ano
foi aceito para se tornar professor de história na Universidade de Estrasburgo.
Mudou-se com a família para essa importante cidade no leste da França, próximo a
fronteira com a Alemanha.
"Em segundo lugar, o livro era uma contribuição ao que Bloch denominava “psicologia
religiosa”. O núcleo central do estudo era a história dos milagres e concluía com
uma discussão explicita do problema de como explicar que o povo pudesse acreditar
em tais “ilusões coletivas” (Idem, p. 420 ss). Observou ainda que alguns doentes
retornavam para serem tocados uma segunda vez, o que sugere que sabiam ter o
tratamento fracassado, mas que o fato não destruía sua fé". (BURKE, 1992, p. 37).
Bloch realizou uma análise não política como tradicionalmente era feito devido a forte
influência historicista, mas procurou abordar outros tipos de fontes, e chegou a
realizar um estudo social e cultural. Uma das grandes questões que ele quis mostrar
com esse livro, era que o poder dos reis também poderia está ligado a causas
"sobrenaturais", milagrosas, ou como chamava-se na época supersticiosas, crendice
popular, mas uma crendice que assegurava a autoridade real.
"Les caractères originaux de l’histoire rurale française é mais famoso, talvez, pela
aplicação do “método regressivo”. Bloch encarecia a necessidade de ler a “ história ao
inverso”, pois conhecemos mais a respeito dos últimos períodos e deve proceder-se
de maneira a ir do conhecido ao desconhecido (Idem, p. xii). Bloch trabalha de
maneira eficiente o método, contudo não reclama sua criação. Sob o nome de
“método retrogressivo” havia já sido empregado por F.W. Maitland – um estudioso
admirado por Bloch – em sua obra clássica Domesday Book and Beyond (1897); o
“além” do título refere-se ao período anterior à realização do Domesday Book, em
1086". (BURKE, 1992, p. 45).
Em 1939, ele publicou seu último livro ainda em vida, intitulado A sociedade
feudal (Le Société féodale). Nessa obra, Bloch procurou estudar as características
do feudalismo como suas origens, formação, desenvolvimento, consolidação,
estruturas de poder, estruturas sociais, etc. Ainda hoje, é um livro recomendável
para se compreender o feudalismo, embora que hoje já tenhamos trabalhos mais
atualizados sobre o assunto.
"La societé féodale, é o livro pelo qual Bloch é mais conhecido. É uma ambiciosa
síntese que abrange mais de quatro séculos de história européia, vai de 900 a 1300,
enfocando uma grande variedade de tópicos, muitos dos quais discutidos em outras
obras: servidão e liberdade, monarquia sagrada, a importância do dinheiro e outros.
Por isso, pode-se afirmar que se trata de uma obra que sintetiza o trabalho de toda
a sua vida. Diferentemente de seus primeiros estudos sobre o sistema feudal, não
se restringe à análise das relações entre a propriedade agrária, a hierarquia social, a
guerra e o estado. Preocupa-se com a
sociedade feudal como um todo, com o que hoje designaríamos “a cultura do
feudalismo”. Como também, ainda uma vez, com a psicologia histórica, com o que o
autor chamava de “modos de sentir e de pensar”". (BURKE, 1992, p. 46).
Foi durante essa longa fase em Estrasburgo de 1919 a 1936 que Bloch conviveu com
outros historiadores, e entre eles, Lucien Febvre, seu grande amigo.
Lucien Febvre
Lucien Paul Victor Febvre nasceu em 22 de julho de 1878 em Nancy (Meurthe-et-
Moselle). Estudou no Liceu de Nancy, posteriormente mudou-se para o Liceu Louis-
le-Grand, onde por dois anos estudou retórica superior. Em 1897 com 21 anos,
ingressou na Escola Normal Superior e depois por um tempo na Universidade Paris-
Sorbonne, até que em 1902 prestou o agregátion em história e geografia. Passou a
trabalhar como professor no ensino médio e a escrever sua tese de doutorado, tendo
sido orientado por Gabriel Monod. Em 1911defendeu sua tese intitulada Phillipe II
et la Franche-Comté: la crise de 1567, ses origines et ses conséquences,
étude d'historie politique, religieuse et sociale. No ano seguinte a Editora
Champion publicou sua tese. Nessa obra como aponta no longo título, Febvre
procurou analisar essa crise no reinado do rei espanhol, Filipe II, não apenas sob
uma óptica política, mas religiosa e social. Aqui podemos notar que o seu estudo
sobre essa crise ocorrida no Franco-Condado partiu de um viés triplo, e não do
tradicionalismo historicista. Além disso, o foco também não foi estudar a pessoa do
rei, mas suas decisões governamentais. Novamente rompia-se com o estudo dos
"grandes homens".
"Essa fase de sua carreira iniciou-se com quatro conferências sobre os primórdios do
Renascimento francês, uma biografia de Lutero e um artigo polêmico sobre
as origens da Reforma francesa, a qual descreveu como “uma questão mal posta”.
Todos esses trabalhos referiam-se à história social e à psicologia coletiva". (BURKE,
1992, p. 39).
"Escreveu mais de uma dezena de livros e mais de dois mil artigos em revistas
especializadas. Participou como fundador da Revue d'Histoire Moderne (1926),
da Revue d'Historie de la Seconde Guerre Mondiale, dos Cahiers d'Historie Mondiale.
[...]. Colaborou, principalmente, na Revue de Synthèse Historique, na Revue
Historique, na Revue de Histoire Moderne e na Revue de Critique d'Historie et
Littérature. Dirigiu a Encyclopédie Française (1935-1940), onde pode pôr em prática
as suas ideais contra a especialização em história e a favor do espírito de colaboração
entre as ciências humanas e sociais". (CORDEIRO JR, 2010, p.71).
Um dos livros que publicou nessa época foi Martinho Lutero, um destino (1928).
Talvez, o seu segundo trabalho mais importante se tratando de estudos sobre a Idade
Moderna, até então feitos por ele. A temática do Renascimento, da Reforma, das
mentalidades modernas, seriam objetos de estudo de Febvre em outras de suas
obras.
Émile Durkheim
No campo das ciências sociais, a sociologia, filosofia, geografia, antropologia,
psicologia, etc., haviam se modificado em relação ao século anterior. Na sociologia,
o notório sociólogo francês, Émile Durkheim (1858-1917) ainda no final do século
XIX começou a publicar importantes trabalhos que redefiniriam o rumo da Sociologia,
rompendo com o positivismo de Comte, propondo um novo método para se estudar
sociologia, algo visto em seu livro Regras do método sociológico (1895).
Em 1896 ele criou a revista L'Année Sociologique que contribuiu para difundir
suas ideias pela França e depois Europa e América do Norte. Os trabalhos de
Durkheim tiveram grande influência na formação de Bloch. Ainda na sociologia
também tivemos os trabalhos do sociólogo, jurista e economista alemão, Max
Weber (1864-1920), que ficou mundialmente conhecido com a publicação de seu
livro, A ética protestante e o espírito do capitalismo (1904). Obra essa que
Burke [2010] disse que além de tratar de sociologia também possui aspectos
culturais.
"Febvre reconheceu também seu débito para com inúmeros historiadores anteriores.
Durante toda a vida expressou sua admiração pela obra de Michelet.
Reconheceu Burckhardt como um de seus “mestres”, juntamente com o historiador
da arte Louis Courajod. Confessa também uma surpreendente influência, a do político
de esquerda Jean Jaurès, através de sua obra Histoire socialiste de la révolution
française (1901-3), “tão rica em intuições sociais e econômicas” (Febvre, 1922, p.vi.
Cf. Venturi, 1966, 5-70)". (BURKE, 1992, p. 30).
Após a Primeira Guerra a educação em França sofreu alguns abalos. Parte dos
investimentos foram reduzidos, o acesso as universidades ficou mais difícil; o ensino
de história nas escolas começou a ser questionado, especialmente na fase do ensino
fundamental, pois alguns políticos alegavam que não havia necessidade de ensinar
as crianças a História; no campo historiográfico, ao se estudar as causas que levaram
ao desencadeamento da guerra, alguns historiadores começaram a observar que
apenas fatores de ordem política não justificavam o início daquele conflito. Havia
mais por trás de tudo aquilo. Isso levou a uma "crise da história", ou pelo menos, a
uma das "várias crises" que a história vivenciou no século XX. Pois de acordo com
Chartier [2010] até os anos 90 ainda vivenciava-se uma "crise da história".
"Eis que nos permite notar que a crise da história, a incontestável crise que atravessa
a história no nosso mundo contemporâneo, os ataques ao mesmo tempo de vários
flancos opostos dos quais ela é o objeto, as incerteza e os torvelinhos sobre ela
mesma de quem ela dá o espetáculo cotidiano, tudo isto não a sequela de um mal
próprio a esta velha Clio; tudo isto é o aspecto especificamente histórico de uma
grande crise do espírito, melhor, ela é somente um dos signos, e ao mesmo tempo
uma das consequências, de uma transformação muito recente da atitude dos homens
de ciência diante da ciência". (CORDEIRO JR, 2010, p. 76 apud FEBVRE, 1955, p.
306).
"Baseada nas críticas formuladas desde a aurora do século XX, o movimento dos
Annales vem com o objetivo de revolucionar o trabalho e o universo científico do
historiador. Será dessas críticas que a escola dos Annales extrairá seu caráter
inovador, da história-problema à promoção de pesquisas coletivas (DOSSE, 2003ª,
p. 48). A “escola” dos Annales sacramentaria a guerra à história tradicional tendo
“como alvo essencial a escola metódica, chamada pejorativamente de “história
historicizante (...) tratava-se, portanto, de se afastar o sujeito para quebrar o relato
historicizante e fazer prevalecer a cientificidade do discurso histórico renovado pela
ciências sociais” (FARIAS;FONSECA;ROIZ, 2006, p. 123 apud DOSSE, 2003b,
p. 327).
Os anos em Estrasburgo:
"Nos anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial, Estrasburgo era efetivamente
uma nova universidade, pois a cidade vinha de ser recentemente desanexada da
Alemanha, criando um ambiente favorável à inovação intelectual e facilitando o
intercâmbio de idéias através das fronteiras disciplinares". (BURKE, 1992, p. 34).
Henri Pirenne
Em 1920 Lucien Febvre havia planejado criar uma revista de história econômica, a
qual seria dirigida pelo renomado historiador belga Henri Pirenne(1862-1935), mas
devido a algumas dificuldades, entre elas, a recusa de Pirenne a aceitar a direção,
Febvre acabou abandonando a ideia. Oito anos depois, Bloch tentou retomar esse
antigo plano. Febvre concordou, e no ano seguinte criaram osAnnales d'historie
économique et sociale.
"O primeiro número surgiu em 15 de janeiro de 1929. Trazia uma mensagem dos
editores, na qual explicavam que a revista havia sido planejada muito tempo antes,
e lamentavam as barreiras existentes entre historiadores e cientistas sociais,
enfatizando a necessidade de intercâmbio intelectual. O comitê editorial incluía não
somente historiadores, antigos e modernos, mas também um geógrafo (Albert
Demangeon), um sociólogo (Maurice Halbwachs), um economista (Charles Rist), um
cientista político (André Siegried, um antigo discípulo de Vidal de la Blache)".
(BURKE, 1992, p. 42).
"Entre o ano de sua fundação (1929) e 1945, quando esteve em mãos do “duo
de Estrasburgo” (Lucien Febvre e Marc Bloch), cerca de 60% dos trabalhos por ela
publicados estiveram dedicados à história econômica. De 1946 a 1969, período em
que mais se fez sentir o peso da influência de Fernand Braudel, tal porcentagem
oscilou ao redor de 40%". (FRAGOSO; FLORENTINO, 1997, 53).
Em 1933 Bloch mudou-se com sua família para Paris, para ingressar como professor
no Collège de France, renomada instituição a qual por duas vezes lhe foi negado
trabalho. Três anos depois, foi a vez de Febvre se mudar para a capital francesa, pois
foi nomeado professor de história econômica na Sorbonne, e presidente do comitê
da Enclyclopèdie Française. Essa mudança do centro "aberto" de Estrasburgo para as
instituições mais conservadoras e tradicionais na capital, não interferiu no modo de
pensar dos "annalistes" como ficariam conhecidos seus membros e colaboradores. A
partir desse posicionamento na capital, Bloch, Febvre e seus colaboradores
aproveitaram para intensificar suas propostas e debates.
Essa ideia de crítica e combatividade, levou alguns como o historiador Antoine Prost
a chamar osAnnales de uma "revista de combate". Um "combate" a "Escola
Metódica", ao historicismo e ao positivismo comteano. Castro [1997] fala que o
surgimento dos Annales, e sua abordagem a história econômica e social, pode ser
considerado como uma ruptura e um confronto a cultura historiográfica vigente, daí
ela falar que a ideia que hoje temos de "história social", começou com o Annales,
embora essa área já existisse antes.
"Há dois eixos gerais que subentendem a experiência dos Annales: a reivindicação
de uma história experimental científica (mais do que culta) por um lado; e, por outro,
a convicção de uma unidade em construção entre a história e as ciências sociais. Os
dados acerca destes dois pontos eram, à partida, abertos; e continuaram a ser
reformulados desde os primórdios do movimento, ao mesmo tempo que se
transformavam as próprias condições do trabalho histórico". (CORDEIRO JR, 2010,
p. 77apud REVEL, 1989, p. 12).
"Sob o signo mais forte dos Annales, desenvolvia-se, desde a década de 1930, uma
“história econômica e social”. Apesar da maior ênfase na história econômica, nos
primeiros anos da revista, a “psicologia coletiva” e as hierarquias e
diferenciações sociais também encontravam-se presentes. A oposição
à historiografia rankiana e a definição do social se construía, assim, a partir de uma
prática historiográfica que afirmava a prioridade dos fenômenos coletivos sobre os
indivíduos e das tendências a longo prazo sobre os eventos na explicação histórica,
ou seja, que propunha a história como ciência social". (CASTRO, 1997, p. 79).
Repensando a história:
Para Febvre o historiador inicia sua investigação a partir de um "problema", onde ele
irá procurar nas fontes a solução para esse "problema", de forma a confirmá-lo ou
desmenti-lo. Aqui Febvre reforça sua concepção que os fatos históricos não são
inatos, não residem "prontos" nos documentos, pois um documento pode ter muito
a dizer, ou pelo contrário, pouco a dizer. E além disso, nem todo documento possui
uma significância para a História. Uma fonte tem serventia para a História, quando
um historiador concede a ela uma cadeia de significados que a permitam ser
encaixada num conjunto de significância maior em sua pesquisa que leve a alguma
contribuição para algum aspecto da História. É a partir do "problema" proposto pelo
historiador que se inicia a pesquisa histórica.
"A novidade dos Annales não está no método, mas nos objetos e nas questões .
As
normas da profissão foram integralmente respeitadas por L. Febvre e
M. Bloch: o trabalho a partir dos documentos e a citação das
fontes. Eles haviam aprendido o ofício na escola de Langlois e Seignobos, sem
deixar de criticar a estreiteza das indagações e a fragmentação das pesquisas;
rejeitam a história política factual que, nessa época, era dominante em uma
Sorbonne que, além de se isolar, estava corroída pelo imobilismo". (PROST, 2008,
p. 39).
Além dessa tendência de ruptura com o tradicionalismo historiográfico
vigente na época, e além de propor uma interdisciplinaridade com as
ciências sociais, e repensar o estudo e a pesquisa da História, Febvre
e Bloch também propuseram uma aproximação da sua revista com o
público leigo. OAnnales nessa primeira geração procurou dar atenção
ao fato que a História não tratava apenas do passado, mas também do
presente, e também procurou levar dar acesso a esses debates ao
público "não iniciado", ao público não acadêmico, de forma que os
aproximassem não necessariamente dos embates teóricos, mas da
ciência histórica.
Nos Annales, o estudo da história passou a ser tratado de fato como uma ciência,
fosse ela chamada de "ciência humana" ou "ciência social", mas de qualquer forma,
eles queriam mostrar que havia essa identidade científica no saber histórico. Não
obstante, uma característica que reforça essa tendência, foi o uso de
uma temporalidade relativa, baseada na Relatividade de Albert Einstein. Com
essa ideia, o tempo não era visto como algo homogêneo e monolítico, mas o tempo
passou a ser visto como sendo interpretado de diferentes formas pelos povos, de que
a ideia de progresso não era unânime, que o tempo da História não é igual ao tempo
natural. Sobre isso, voltaremos a ver durante a Segunda Geração, onde Braudel
desenvolveu essa questão de temporalidade.
Outro aspecto que os Annales defenderam foi uma maior atenção para o estudo
da materialidade histórica (não confundir com o materialismo histórico proposto
por Marx e Engels), ou seja, estudar o papel do desenvolvimento tecnológico nas
sociedades, e a importância do consumo e da produção para a economia e o
desenvolvimento das sociedades. Pelo fato dos Annales de se proporem e escrever
sobre história econômica, esse viés da materialidade histórica foi bastante
empregado nessa área.
Contudo, Vainfas [1997] também assinala que ainda nessa primeira geração,
podemos destacar a produção de artigos ligados a "história das mentalidades",
tendência que aumentaria na segunda geração, mas principalmente na terceira
geração. A "história das mentalidades" como Chartier [1997] fala, consiste num
termo difícil de ser conceituado fora da língua francesa, daí de se haver confusões
para se identificar o início desses estudos.
"Bloch e Febvre inauguraram, pois, nos primórdios dos Annales, o estudo das
mentalidades, delas fazendo um legítimo objeto de investigação histórica. Mas não
se pense que foram eles os primeiros a se dedicarem ao estudo de sentimentos,
crenças e costumes na historiografia ocidental. Para citar apenas alguns autores que
lhes antecederam ou foram deles contemporâneos nessas preocupações, vale
lembrar o próprio Michelet, autor de La sorcière, em 1862 (traduzido em Portugal),
e o importante Georges Lefebvre, autor de La grande peur, livro sobre a onda de
pânico que varreu a França rural no contexto revolucionário francês. E se for o caso
de dar exemplos fora da França, não se pode esquecer do grande historiador
holandês Johan Huizinga, autor de O outono da Idade Média (de que há várias
traduções), obra publicada em 1919 sobre sentimentos, costumes e religiosidades
na França e nos Países Baixos nos séculos XIV e XV, nem de Norbert Elias, sociólogo
e historiador alemão que, antecipando-se a Foucault em décadas, publicou em 1939
o seu 0 processo civilizador, livro sobre a sociedade de corte e o surgimento da
etiqueta na Europa moderna". (VAINFAS, 1997, p. 197).
Marc Bloch acabou sendo torturado pela Gestapo (a polícia secreta do Estado
alemão), a fim de delatar informações sobre a Resistência, e em em 16 de julho de
1944 em Saint Didier de Formans, perto de Lyon, foi fuzilado pelos nazistas. Bloch
recebeu honrarias por parte dos familiares, amigos e do próprio Estado. Sendo
lembrado não apenas como um grande historiador, mas como um francês que serviu
e lutou por sua pátria durante duas guerras mundiais.
Pós-guerra:
"Depois da guerra, Febvre teve finalmente sua chance. Foi convidado a auxiliar na
reorganização de uma das instituições mais prestigiosas no sistema francês
de educação superior, a École Pratique des Hautes Études, fundada em 1884. Foi
eleito membro do Instituto e tornou-se também o delegado francês na UNESCO,
participando da organização da coleção sobre a “História Cultural e Científica da
Humanidade”. Em razão dessas múltiplas atividades, sobrou-lhe pouco tempo para
escrever com vagar, e os projetos de seus últimos anos jamais foram concluídos
(como o volume sobre o “Pensamento ocidental e a crença”, de 1400 a 1800), ou,
então, foram terminados por outros". (BURKE, 1992, p. 56).
"Os Annales começaram como uma revista de seita herética. “É necessário ser
herético”, declarou Febvre em sua aula inaugural, Oportet haereses esse (Febvre,
1953, p.16)46. Depois da guerra, con tudo, a revista transformou-se no órgão oficial
de uma igreja ortodoxa. Sob a liderança de Febvre os revolucionários intelectuais
souberam conquistar o establishment histórico francês. O herdeiro desse poder
seria Fernand Braudel". (BURKE, 1992, p. 57).
"A segunda geração, dirigida por Fernand Braudel, compreende o período entre 1946
e 1968 e é marcada pelo tema das civilizações e temas demográficos. Constitui-se
como escola, ao aportar conceitos (estrutura e conjuntura) e métodos (história serial
das mudanças na longa duração) definidos. O estudo das utensilagens mentais (ou
psicologia histórica dos anos 30), ao lado de fontes massivas, representativas e
temporalmente comparáveis e com certa regularidade, os leva a utilizar os conceitos
de regularidades, quantificação, séries, técnicas, abordagem estrutural, tendo como
centro de um projeto intelectual oferecer certa dinâmica às estruturas trabalhadas
pelas ciências sociais e ainda tentar articular a longa duração como acontecimento".
(PORTO, 2010, p. 133).
O historiador do mar:
Naquela época a Argélia ainda era uma colônia francesa, e havia a necessidade de
professores para lecionar principalmente em Argel, a capital do país, vista como um
"modelo de cidade francesa" em solo africano. Braudel se mudou para a colônia ainda
em 1923 e permaneceria até 1932.
"Seu primeiro artigo importante, publicado nesse período, tinha por tema a presença
dos espanhóis no Norte da África, no século XVI. Esse estudo, cujas dimensões são
a de um pequeno livro, merece ser resgatado de seu imerecido esquecimento. Era,
ao mesmo tempo, uma crítica a seus predecessores no tema pela ênfase que haviam
atribuído aos grandes homens e às batalhas; uma discussão sobre a “vida diária” das
guarnições espanholas; e também uma demonstração da estreita relação, embora
invertida, entre a história africana e européia, isto é, quando estourava a guerra na
Europa as campanhas africanas eram suspensas, e vice-versa (Braudel, 1928)".
(BURKE, 1992, p. 58-59).
Entre 1925 e 1926 tivera que servir no Exército, já que não havia prestado serviço
militar anteriormente. Ele atuou um ano na região da Renânia na Alemanha, local
do qual achou bastante belo. Em 1927 seu pai morreu, Braudel retornou para a
França, buscou sua mãe a qual passou a morar com ele e ainda no mesmo ano,
casou-se com Paule Valier. Retornou para a Argélia e continuou com sua carreira
como professor de história nas escolas, além de também coordenar eventos e
comissões científicas.
Nesses nove anos que passou transitando entre a Europa e a África, Braudel se
encantou com odeserto do Saara, mas principalmente com o Mar Mediterrâneo,
o qual cruzou várias vezes em suas jornadas de idas e vindas. Ainda em 1927 ele
começou a planejar sua tese de doutorado, estava interessado em abordar o governo
do rei de Espanha e Portugal, Filipe II (Filipe tornou-se rei de Portugal e suas colônias
a partir de 1580, e manteve-se como soberano das duas coroas até o fim da sua vida
em 1598). Ele chegou a se corresponder com Febvre, pois esse havia escrito sua tese
sobre o rei espanhol. Febvre lhe respondeu com uma carta: "Mais que Filipe II, seria
apaixonante conhecer o Mediterrâneo dos povos berberes".
"Eu havia na cabeça a ideia de descobrir o passado desse mar que via todos os dias
e do qual os hidroaviões de então, que voavam baixo, me proporcionavam imagens
inesquecíveis. Ora, as séries ordinárias de arquivos falavam sobretudo dos príncipes,
das finanças, dos exércitos, da terra, dos camponeses. De depósito de arquivos em
depósito de arquivos, eu me embrenhava, então, através de uma documentação
fragmentária, mal explorada, por vezes mal ou não classificada. Lembro-me de meu
deslumbramento ao descobrir, em Dubrovnik, m 1934, os maravilhosos registros de
Ragusa; finalmente, barcos, fretes, mercadorias, seguros, tráficos... Pela primeira
vez, eu via o Mediterrâneo do século XVI". (FLORES, 2010, p. 98 apud BRAUDEL,
2002, p. 9-10).
Ele também chegou a escrever um pequeno trabalho sobre a Bahia, como também
mostrou interesse pelos cangaceiros (em geral grupo de homens que usavam a
violência, força e medo para combater o Estado, mas também causavam problemas
a sociedade devido a seus crimes. Hobsbawm os comparou com uma espécie de
banditismo). Na Bahia, Braudel chegou a comprar peças do traje dos cangaceiros e
a ouvir histórias sobre Lampião (1898-1938) notório chefe cangaceiro.
Durante sua permanência no Brasil ele ainda continuou a realizar suas pesquisas e
estudos para sua tese embora de forma mais restrita devido a distância e o tempo
de férias, pois aproveitava as férias de verão para retornar a Europa. Braudel chegou
a dizer que os quase três anos que viveu no Brasil foram seus anos mais felizes de
sua vida. Embora ele não tenha voltado a morar no país, realizou viagens para o
mesmo posteriormente.
Acabado seu contrato, em 1937 enquanto ele e sua família embarcavam no navio
que os levaria a França, Braudel se encontrou com Lucien Febvre o qual retornava
de uma viagem feita a Argentina. Febvre havia viajado para a Argentina e o Chile,
apresentar e participar de congressos. Ambos seguiram viagem de volta a França, e
isso contribuiu muito para a visão histórica de Braudel e a sua aproximação ainda
mais com os Annales, pois ele passaria a se tornar colaborador da revista.
"Foi no retorno de sua viagem ao Brasil que Braudel conheceu Lucien Febvre, que o
adotou como um filho intelectual e persuadiu-o – se é que ainda necessitava
de persuasão – de que o título da tese deveria ser realmente “O Mediterrâneo e Felipe
ll”, e não “Felipe II e o Mediterrâneo” (Braudel, 1953, especialmente p. 5; conf.
(Febvre, 1953, p. 432)". (BURKE, 1992, p. 59).
Contudo o retorno para a França lhe traria momentos difíceis e perigosos. Em 1938
seu nome foi escolhido para compor uma lista de soldados, devido a eminência de
problemas militares com a Alemanha nazista de Adolf Hitler. No ano seguinte os
alemães invadiram a Polônia e a Segunda Guerra se iniciou. Em 1940 Braudel foi
oficialmente convocado para a guerra.
Embora tenha ficado cinco anos preso, diferente dos quase dois anos que Bloch ficou
preso, o cárcere de Braudel foi menos danoso do que o de Bloch. Com o fim da guerra
ele foi libertado com seus companheiros e retornou para casa. Acabou se unindo a
Febvre para pedir conselhos e orientação na conclusão de sua tese. Em 1946 a
apresentou na Seção IV da Escola Prática de Altos Estudos, e no ano seguinte,
a defendeu na Sorbonne, sob o título de O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo
na época de Filipe II (La Méditerranée et le monde méditerranéen à l'époque de
Philippe II), livro que o consagraria.
Uma edição de O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na época de Filipe II.
"O Mediterrâneo é um livro de grandes dimensões, mesmo que consideremos os
padrões da tradicional tese de doutoramento francesa. Sua edição original
continha aproximadamente 600.000 palavras, o que perfaz seis vezes o tamanho de
um livro comum. Dividido em três partes, cada uma das quais – como o prefácio
esclarece – exemplifica uma abordagem diferente do passado. Primeiramente, há
a história “quase sem tempo” da relação entre o “homem” e o ambiente; surge então,
gradativamente, a história mutante da estrutura econômica, social e política e,
finalmente, a trepidante história dos acontecimentos". (BURKE, 1992, p. 60).
Braudel dedicou sua obra a seu amigo e mentor, Lucien Febvre. Ele tentou publicar
sua volumosa tese, mas as editoras se recusaram a financiar esse livro, pois
consideraram a obra demasiadamente cara e com baixo público de leitura, no que
renderia péssimos ganhos. Ele teve que juntar dinheiro para vim a publicar seu livro
dois anos depois. Ainda em 1947 viajou para o Brasil, Argentina e Chile para
participar de conferências e congressos.
A era Braudel:
"Após a guerra, os Annales - cuja revista passou a ter o título de Annales, Économies,
Sociétés, Civilisations - perseguiram essa dupla estratégia em um contexto diferente.
Em primeiro lugar, em 1947, com o apoio de fundações americanas e da diretoria do
ensino superior, a criação de uma VI section na École pratique des hautes études
direcionada para as ciências econômicas e sociais, cuja presidência foi entrega a L.
Febvre. No início da década de 50, o revezamento foi assumido por Fernand Braudel
que vinha de ser consagrado por sua tese sobre La Méditerranée à l' époque de
Phillippe II(1949)". (PROST, 2008, p. 40-41). Em 1950, Braudel se tornou professor
do Collège de France e na sua aula inaugural como de obrigatório para todos aqueles
que entram nesta instituição, ele explanou um pouco da sua vida, mas principalmente
da sua opinião sobre como a História estava sendo vista e estudada.
De 1950 a 1952, Braudel cooperou com Febvre não apenas nos Annales, mas
também no Centro de Pesquisas Históricas na Escola de Altos Estudos. Eles
publicaram três séries entre os anos de 1951-1952: A primeira série intitulava-
se “Portos-Rotas-Tráficos"; a segunda, “Negócios e Gente dos Negócios”; e a
terceira, “Moeda-Preço-Conjuntura”.Visivelmente aqui nota-se a presença da
história econômica a qual retomou um lugar de destaque nas publicações
dos Annales nesta época, como atesta também a mudança do nome da revista.
Robert Mandrou
Em 1954 o historiador francês Robert Mandrou (1921-1984), especialista em
história moderna e história da França, discípulo de Lucien Febvre, tornou-se
secretário da revista, cargo esse que manteve até 1962, quando se demitiu devido a
desavenças com Braudel. Em 1956 com a morte de Febvre, Braudel se tornou de fato
o diretor dos Annales, contudo, ele não se dava bem com Mandrou e outros dos
membros e colaboradores da revista. Isso ficaria mais visível nos anos 60. Mandrou
também é lembrando como tendo sido ao lado de Duby, iniciador do campo de
pesquisa chamado "história das mentalidades", o qual hoje é visto como sendo
história cultural. Mandrou e Duby apresentaram interesse para se estudar o
comportamento, as representações, as opiniões, a compressão das classes sociais e
das sociedades na História. A "história das mentalidades" se popularizaria na terceira
geração. Phillipe Àries e Michel Vovelle ainda no final da segunda geração,
também passariam a estudar o lado cultural da história.
"Tendo conservado em suas mãos, durante os seus anos de direção, o controle dos
fundos para a pesquisa, publicações e nomeações, guardou para si um grande poder,
que usou para promover o ideal de um “mercado comum” das ciências sociais, onde
a história era um membro dominante. (Braudel, 1968b, p.349). As bolsas de estudo
concedidas a jovens historiadores estrangeiros, como os poloneses, para estudar em
Paris ajudaram a difundir no exterior o novo estilo francês, de fazer história. Por
outro lado, era notório que Braudel destinava os recursos preferentemente
aos historiadores que se dedicavam à época moderna (1500-1800). Se seu império
não foi tão vasto quanto o de Felipe II, tinha, porém, um dirigente mais decidido".
(BURKE, 1992, p. 75-76).
No caso de Braudel sua teoria temporal não foi concebida para nomear períodos
históricos como mencionado acima, mas sim tornar-se uma metodologia para a
pesquisa e a escrita da história. Braudel concebeu dividir o tempo em três
durações: curta, média e longa durações, sendo a última a mais famosa, pois foi
a qual ele usava e desenvolveu o conceito, embora que a partir da conceitualização
da longa duração, ele chegou a repensar as outras duas temporalidades também.
"Entendamo-nos: não há um tempo social com uma única e simples corrente, mas
um tempo social com mil velocidades, com mil lentidões que quase nada têm a ver
com o tempo jornalístico da crônica e da história tradicional. Creio assim na realidade
de uma história particularmente lenta das civilizações, nas suas profundezas abissais,
nos seus traços estruturais e geográficos. [...]. Além disso, há, ainda mais lenta que
a história das civilizações, quase imóvel, uma história dos homens e suas relações
estreitas com a terra que os suporta e os alimenta; é um diálogo que não cessa de
repetir-se, que se repete, que pode mudar e muda na superfície, mas prossegue,
tenaz, como se estivesse fora do alcance e da mordedura do tempo". (FLORES, 2010,
p. 108 apud BRAUDEL, 1992, p. 25-26).
Braudel dizia que certas mudanças históricas só seriam apenas perceptíveis após se
passarem dezenas de anos, pois tais mudanças agiriam de forma lenta, que em
determinado momento chegariam ser quase que "imóveis", e quase passariam
despercebidas, mas para se notar que elas transcorreram, o historiador deveria olhar
para a História a partir de um ponto de vista da longa duração, abrangido um século
ou mais.
"Será Braudel, o historiador das águas, montanhas, planícies, barcos e carros de boi
(e seus usuários e modificadores), e não a primeira geração dos Annales, a libertar
o século XX historiográfico das prisões biográficas oitocentistas". (FLORES, 2010, p.
105).
"Águas mais calmas, que correm mais profundamente, são o objeto da segunda parte
do Mediterrâneo, denominada “Destinos coletivos e movimentos de conjunto”;
sua preocupação, a história das estruturas-sistemas econômicos, estados,
sociedades, civilizações e formas mutantes de guerra. Esta história se movimenta a
um ritmo mais lento do que a dos eventos. As mudanças ocorrem no tempo
de gerações, e mesmo de séculos, por isso os contemporâneos dos fatos nem sempre
se apercebem delas. Mas, mesmo assim, eles são carregados pela corrente. Numa
de suas mais famosas análises, Braudel examina o império de Felipe II como uma
“colossal empresa de transporte terrestre e marítima”, que “se exauriu por sua
própria dimensão”, e não poderia ser diferente numa época em que
“cruzar O Mediterrâneo de norte a sul levava uma ou duas semanas”, enquanto
atravessá-lo de leste a oeste “dois ou três meses” (Ibid., p. 363). A observação
lembra o veredicto de Gibbon sobre o Império Romano destruído pelo seu próprio
peso e suas afirmativas sobre geografia e comunicações, no primeiro capítulo
do Declínio e Queda". (BURKE, 1992, p. 62-63).
Por sua vez, seu primeiro volume, ele dedicou a abordar a média duração, ou pelo
menos referir-se a ela, pois essencialmente o livro como um todo, tende a longa
duração, mas ao mesmo tempo, mescla essas três temporalidades. Braudel
comparou a média duração ou "tempo social", com a chamada"história
ocorrencial" ou "história conjectural", onde estuda-se um tempo que varia de
uma década a décadas, mas jamais se passando de um século.
"A parte mais tradicional, a terceira, parece corresponder à idéia original de Braudel
de uma tese sobre a política exterior de Felipe II. Ele oferece aos seus leitores
um trabalho altamente profissional de história política e militar. Traça breves mas
incisivos esboços do caráter dos atores principais da cena histórica, do Duque de
Alba, “esse falso grande homem”, “de mente estreita e curta visão política”, ao seu
senhor Felipe II, lento, “solitário e discreto”, cauteloso e perseverante, um homem
que “via sua tarefa como a sucessão infindável de pequenos detalhes”, mas ao qual
faltava uma visão do todo. São descritos com vagar a batalha de Lepanto, o cerco e
a libertação de Malta, e as negociações de paz do final da década de 1570". (BURKE,
1992, p. 60-61).
"Como poucos livros anteriores, se é que algum o fez, O Mediterrâneo torna seus
leitores conscientes da importância do espaço na história. Braudel consegue
isso fazendo do mar o herói de seu épico, e não uma unidade política como o Império
Espanhol, deixando abandonada uma personagem como Felipe II – e também pela
constante repetição da importância da distância e da comunicação". (BURKE, 1992,
p. 71).
As ideias sobre temporalidade de Braudel foram bastante atrativas por vários anos,
mas hoje em dia, sua noção de longa duração está praticamente em desuso. Os
historiadores hoje preferem trabalhar com a curta duração e a média duração, mas
sob metodologias diferentes das quais eram aplicadas na época de Braudel. Além
disso, há também o fato que recortes menores ajudam a se aprofundar mais nos
temas, pois um dos problemas dos recortes em longa duração, é que não se tem
como realizar um trabalho profundo e específico, pois o torna inviável devido a
abrangência de informações e possibilidades a se levar em consideração.
"A segunda, bem mais útil, é a palavra estrutura. Boa ou má, ela domina os
problemas da longa duração. Por estrutura, os observadores do social entendem uma
organização, uma coerência, relações bastante fixas entre realidades e massas
sociais. Para nós, historiadores, uma estrutura é sem dúvida uma articulação,
arquitetura, porém mais ainda, uma realidade que o tempo utiliza mal e veicula mui
longamente. Certas estruturas por viverem muito tempo tornam-se elementos
estáveis de uma infinidade de gerações: atravancam a história, incomodam-na,
portanto, comandam-lhe o escoamento". (BRAUDEL, 1978, p. 49).
A cultura material:
Vimos que Braudel foi um adepto da "história das civilizações", assim como Duby,
Vouvelle e Mandrou escreveram acerca da "história das mentalidades", mas outro
aspecto que também marca essa segunda geração, é o aumento dado a cultura
material, algo iniciado na primeira geração com estudos econômicos, mas apenas
realmente salientado a partir da segunda geração. Braudel ora e outra faz referências
a cultura material em seus livros e artigos.
"Sua preocupação nos três volumes está mais ou menos concentrada nas categorias
econômicas do consumo, distribuição e produção, nessa ordem, mas ele
prefere caracterizá-las de maneira diferente. A introdução ao primeiro volume
descreve a história econômica como um edifício de três andares. No andar térreo,
está a civilização material – a metáfora não está longe da “base” de Marx – definida
por “ações recorrentes, processos empíricos, velhos métodos e soluções manipuladas
desde tempos imemoriais”. No andar intermediário, há a vida econômica “calculada,
articulada, emergindo como um sistema de regras e necessidades quase naturais”.
No andar superior – para não dizer superestrutura – existe o “mecanismo capitalista”,
o mais sofisticado de todos (Braudel, 1979a, pp. 23-26)". (BURKE, 1992, p. 78).
Essa volumosa obra dividida em três volumes procura contar a história do capitalismo
desde o chamado "capitalismo mercantilista" do século XV até chegar ao "capitalismo
industrial" do século XVIII, durante a Revolução Industrial na Inglaterra. Embora o
foco da obra se der sobre a Europa, Braudel explorou bastante as relações
econômicas com a Ásia, passando pelo Oriente Médio, Índia e China. Nestes livros,
ele aborda vários aspectos dos mercados europeus, asiáticos e um pouco dos
africanos, mostrando as relações de consumo e produção e o uso desses produtos na
sociedade.
"Na introdução à segunda edição, declara que o objetivo de seu livro era nada menos
do que “a introdução da vida cotidiana no domínio da história”. Não foi, é claro,
o primeiro historiador a tentar.La civilization quotidienne era o título de um dos
volumes da Encyclopédie Française de Lucien Febvre, para o qual Bloch contribuiu
com um ensaio sobre a história da alimentação". (BURKE, 1992, p. 80).
Braudel além de ser chamado de o "historiador do mar", também pode ser chamado
de o "historiador do capitalismo". Além de seu livro Civilização Material, Economia e
Capitalismo (1979), ele também escreveu A Dinâmica do Capitalismo (1985),
como também alguns artigos sobre o assunto.
Ernest Labrousse
Peter Burke [1992] chama atenção do papel da história econômica na segunda
geração dos Annales, especialmente os trabalhos de Ernest Labrousse como já
mencionado aqui. Burke fala que os estudos ligados ao preço ("história dos preços"),
taxas, câmbios, ciclos econômicos, dados demográficos, foram determinantes para
essa "revolução quantitativa".
"Foi com Labrousse que o marxismo começou a penetrar no grupo dos Annales. O
mesmo ocorreu com os métodos estatísticos, pois Labrousse foi incentivado
pelos economistas Albert Aftalion e François Simiand a empreender um rigoroso
estudo quantitativo da economia francesa do século XVIII, publicado em duas
partes: Esquisse (1933), sobre os movimentos dos preços de 1701 a 1817, e La crise
de l’économie française à la fin de l’Ancien Régime et au début de la
Revolution (1944), sobre o fim do antigo regime. Estes livros, saturados de gráficos
e tabelas, referem-se a movimentos de longa duração e a ciclos de curta duração,
“crises cíclicas” e “interciclos”. Labrousse, muito engenhoso em encontrar maneiras
de mensurar as tendências econômicas, utilizou conceitos, métodos e teorias
de economistas como Juglar e Kondratieff, preocupados respectivamente com os
ciclos econômicos de curta e longa duração; e de seu professor Albert Aftalion, que
escrevera sobre crises econômicas". (BURKE, 1992, p. 91).
Pierre Goubert
No campo da história demográfica, Pierre Chaunu e Pierre Goubert foram seus
principais representantes ligados aos Annales. Como vimos, Chaunu teve influência
das obras de Labrousse, Simiand e de Braudel, no caso de Goubert, seu
trabalho Beauvais et le Beauvaisis de 1600 à 1730, embora tenha sido uma obra
de história social, influenciou as perperctivas demográficas, sociais e econômicas de
Braudel, Labrousse e outros estudiosos do século XX. Goubert se tornou colaborador
dos Annales durante as três gerações. É considerado por alguns como um dos
principais responsáveis pela introdução dos estudos demográficos durante a primeira
geração.
"Ele fez mais, contudo, do que demonstrar a relevância para os beauvisianos do que
veio a se tornar a interpretação ortodoxa da recessão econômica e da crise
demográfica, no século XVII. Deu considerável ênfase no que chamou “demografia
social”, isto é, no fato de que as chances de sobrevivência variavam de um grupo
social para outro. Considerou seu estudo uma contribuição à “história
social”, uma história preocupada com todos, não somente com o rico ou com o
poderoso, um aspecto reiterado em sua obra posterior, Louis XIV et vingt millions de
français (1966)". (BURKE, 1992, p. 96).
"A parte mais interessante do livro, a meu ver, são os capítulos sobre a sociedade
rural e a sociedade urbana, sobre o mundo da produção têxtil em Beauvais, por
exemplo, ou sobre os camponeses ricos, médios e pobres. Esse cuidadoso estudo das
diferenciações sociais e das hierarquias sociais, que Goubert, posteriormente,
ampliou num ensaio sobre o campesinato francês do século XVII, é um
excelente corretivo para qualquer visão simplista da sociedade do antigo regime
(Goubert, 1982)". (BURKE, 1992, p. 96-97).
"A maioria desses estudos locais foi orientada por Braudel ou Labrousse, e tinham
por objeto o início da época moderna. Houve exceções, contudo, a essas regras.
O medievalista Georges Duby foi um dos primeiros a escrever uma monografia sobre
a propriedade, a estrutura social e a família aristocrática na área de Mâcon nos
séculos XI e XII. A monografia de Duby era supervisionada por Charles Perrin, um
antigo colega de Bloch, e tinha como fonte a geografia histórica". (BURKE, 1992, p.
98).
Nesse aspecto como Burke [1992] dissera, os anos 60 nos Annales foram marcados
por trabalhos monográficos de cunho regional e local, relacionados a história
econômica e demográfica. Além dos nomes citados acima, Ladurie, Vovelle e Vilar
também foram alguns membros dos Annales que produziram obras regionalistas
nestes aspectos por essa época, embora que a obra de Ladurie rompeu com algumas
características tradicionais vigentes na época, e a obra de Vilar teve foco não na
França, mas sim na Catalunha e na Espanha em si.
Pierre Vilar
Pierre Vilar (1906-2003) escreveu sobre economia, política e sociedade na Espanha
moderna, tornando-se um dos principais historiadores em seu tempo em referência
aos estudos. De vertente marxista, ele introduziu em suas obras a influência dessa
vertente, ao mesmo tempo, influenciado pela longa duração braudeliana e a "história
total" de Febvre, Vilar escreveu livros abordando séculos de extensão, estudando
estruturas econômicas e sociais na Espanha, na Europa, no Mediterrâneo e no
Atlântico. O seu livro Ouro e Moeda na História: 1450-1920 (Oro e Moneda en la
Historia: 1450-1920), esboça o uso das metodologias assimiladas dos Annales.
A crise de 1968:
Os anos 60 foram uma década conturbada do breve século XX. Durante esses dez
anos alguns acontecimentos de nível regional e mundial causaram impactos nos
âmbitos sociais, políticos, legais, econômicos, culturais, ideológicos, etc. Enumerar
todos os acontecimentos importantes é algo extenso, mas citarei alguns destes.
Yuri Gagarin se tornou o primeiro homem a ir ao espaço (1961);
Início da construção do Muro de Berlim (1961);
Guerra colonial portuguesa (1961-1974);
Fim da Guerra da Argélia (1956-1962): Os franceses perderam sua colônia
africana, e a Argélia se tornou independente;
Concílio Vaticano II (1962): Presidido por João XXIII e Paulo VI;
Crise dos misseis de Cuba (1962): por pouco não se iniciou uma Terceira
Guerra Mundial;
Movimento pan-africanista pela independência das colônias europeias em
África (1950-1980);
Embargo econômico de Cuba feito pelos Estados Unidos (1963);
Assassinato de John F. Kennedy (1963);
Discurso "I have a dream" de Martin Luther King Jr. (1963);
Nelson Mandela é preso por liderar e organizar grupos contra o Apartheid
(1963);
Instauração de ditaduras militares nas América Latina, Europa, África e Ásia;
Assassinato de Malcom X (1965);
Revolução Cultural Chinesa de Mao Tsé-tung (1966-1976);
Assassinato de Che Guevara (1967);
Guerra dos Seis Dias (1967): Conflito que pois Israel contra o Egito, Síria,
Jordânia, Iraque, etc.
Guerra Civil na Nigéria (1967-1970): mais de um milhão de mortos;
Massacre de Tlateloco (1967): Vários estudantes foram assassinados durante
uma passeata nesta cidade mexicana;
Assassinato de Martin Luther King Jr (1968);
Primavera de Praga (1968): Revolta para se libertar a Checoslováquia do
domínio da URSS;
Chegada do homem à Lua (1969);
França e Estados Unidos abandonam a Guerra do Vietnã (1956-1975) ainda
nos anos 60;
Festival de Woodstock (1969);
Movimento hippie;
Onda de protestos pelos Estados Unidos, Europa e América Latina contra as
políticas neoliberalistas, a crise do sistema capitalista, a opressão das ditaduras, etc.;
Aumento de movimentos estudantis na América Latina e Europa: Brasil,
Argentina, Chile, México, França, Inglaterra, Itália, Alemanha, Polônia, Iugoslávia e
Ucrânia são tomados por várias manifestações estudantis;
A China rompe com a URSS;
Judeus voltam a ser expulsos da Polônia;
Movimento literário e cultural indiano chamado "Geração com Fome";
Greves universitárias na América Latina e Europa;
Lutas pelos direitos humanos em todo mundo, em resposta aos crimes de
guerra e aos crimes cometidos pelas ditaduras;
Lutas pelos direitos civis em todo o mundo;
Expansão da televisão em cores;
Popularização do cinema hollywoodiano no Ocidente;
Após essa breve lista podemos ver como os anos 60 foram conturbados, foram uma
fase de mudanças, algumas eu diria mesmo que extremas. No caso da França, o ano
de 1968 foi marcado por vários protestos estudantis principalmente em Paris, onde
universidades como a Sorbonne e Nantarre chegaram a ter suas atividades
paralisadas. Grupos de estudantes chegaram a fazerem barricadas na rua e entrar
em conflito com a polícia. Os estudantes protestavam pelo fim da Guerra do Vietnã,
protestavam por melhorias na educação, nos direitos civis, na oportunidade de
emprego, por condições sociais; por liberdade de expressão (movimento de
contracultura, algo visto em vários outros países), etc.
Embora tenha sido ligado ao governo francês pelo menos no âmbito das políticas de
educação, Silveira [2010] fala que Braudel nem por isso se mostrou engajado nas
manifestações de maio de 1968. Ele meio que se manteve neutro nesses protestos,
pois via que as revoltas não eram organizadas, não aparentavam ter uma ordem,
mas apenas um surto caótico de estudantes enfurecidos ou se deixados por levar
pela efervescência do momento. Embora se mostra-se opositor ao controle do
governo sobre as universidades, Braudel reivindicava maior autonomia das
universidades perante o Estado, mas não negava sua atenção a uma sociedade
hierarquizada não no sentido de classes sociais, mas numa estrutura de poder.
Fernand Braudel
No mesmo ano diante dessas mudanças vistas ao longo de 1968 em França e
ocorridas no mundo nestes últimos anos, Braudel discordando do futuro dos estudos
históricos, pois havia uma crise não apenas na história política, mas agora também
na história social e na história econômica, Braudel viu que as tendências cambiavam
para um aspecto já explorado pelos Annales nesta segunda geração, mas que
cresceria muito a partir dos anos 60, a história cultural. Pelo fato dele não ser muito
chegado a história cultural, preferiu se afastar da direção dos Annales. Braudel
passaria os anos seguintes escrevendo novos livros, artigos, além de ainda trabalhar
como professor e participar de eventos acadêmicos.
Com a saída dele da direção, os Annales iniciava sua terceira geração a qual seria
bastante marcada pela história cultural.
"A terceira geração se constitui a partir de 1968 e foi dirigida por vários
pesquisadores, não apresentando assim uma marca pessoal, tal como nas anteriores
fases. Uma de suas formas mais visíveis foi como história das mentalidades, que terá
seduzido uma geração com seus acenos de profundezas: a 'reconstituição de
comportamentos, expressões e silêncios que traduzem concepções do mundo e as
sensibilidades coletivas, as representações de imagens (da natureza, da vida e das
relações humanas, deus) mito e valores, todos parte de uma psicologia coletiva', tal
como expressa por R. Mandrou [1988]". (PORTO, 2010, p. 134).
"O surgimento de uma terceira geração tornou-se cada vez mais óbvio nos anos que
se seguiram a 1968. Em 1969, quando alguns jovens como André Burguière e
Jacques Revel envolveram-se na administração dos Annales, em 1972, quando
Braudel aposentou-se da Presidência da VI Seção, ocupada, em seguida, por Jacques
Le Goff; e em 1975, quando a velha VI Seção desapareceu e Le Goff tornou-se o
Presidente da reorganizada École des Hautes Études en Sciences Sociales, sendo
substituído, em 1977, por François Furet". (BURKE, 1992, p. 107).
Parte dos novos "annalistes" não viviam em França, mas viviam nos Estados Unidos,
Inglaterra, Itália, Espanha, Alemanha, etc., viveram por poucos anos ou há bastante
tempo, mas se tornaram colaboradores da revista e até mesmo seus membros. A
partir destes distintos lugares, estes historiadores propuseram ampliar a
interdisciplinaridade dos estudos históricos realizados nosAnnales. Procuraram se
aproximar da psico-história e da "nova história econômica" ambas
desenvolvidas nos Estados Unidos; a história da cultura popular em evidência na
Inglaterra, aantropologia simbólica, em evidência na própria França; a história
das mulheres, praticada em várias locais da Europa, etc.
Além disso, houve também o que Rosa Godoy chamou de "retorno ao político", neste
caso, trataria-se de um interesse pela história política, renegada pelas duas gerações
anteriores. Não obstante, a tendência de uma história quantitativa embora tenha sido
tentada a ser adaptada a história cultural, os historiadores preferiram manter a
tendência de uma "história serial", mas com base nas perspectivas de Michel
Foucault, assim como um apoio conceitual na antropologia histórica,
especialmente na conceituação da palavra cultura.
Nessa "virada" mencionada por Burke, ele apontara que entre os nomes da
antropologia da época, o que causou grande impacto para essa nova perspectiva
foi Clifford Geertz (1926-2006). Anteriormente tal lugar era ocupado por Lévi-
Strauss, fato esse que Le Goff e Duby foram influenciados pelo seu trabalho sobre
mitologia dos povos ameríndios. Contudo, o conceito de cultura proposto por Geertz
além de outros conceitos por ele desenvolvidos influenciou uma nova leva de
historiadores em estudos sociais e culturais.
Podemos notar que o livro de Ladurie estudou um período da Idade Média, mas ele
não foi o único a dedicar obras ao medievo; Le Goff e Duby também fizeram isso.
Assina-lo tal aspecto, pois durante a segunda geração, Braudel prezou muito
pesquisar-se a Idade Moderna, especialmente os séculos XVII e XVIII. Além dele,
Labrousse e outros annalistes como o próprio Ladurie também dedicaram-se a
modernidade. Le Goff e Duby que já também adentraram os Annales nos anos 60,
mantiveram-se ligados ao medievo, assim como Bloch fizera anteriormente. No caso
dos dois como já mencionado, o foco dado foi a "história das mentalidades".
Jacques Le Goff
Le Goff sofisticou as generalizações de Febvre, elas mesmas um pouco imprecisas, e
discutiu o conflito entre as concepções do clero e as dos mercadores. Sua
contribuição mais substancial, contudo, para a história das mentalidades, ou à
história do “imaginário medieval”, como agora denomina, foi realizada vinte
anos depois com a publicação do La naissance du Purgatoire, uma história das
mudanças das representações da vida depois da morte. Segundo Le Goff, o
nascimento da idéia de Purgatório fazia parte da “transformação do cristianismo
feudal”, havendo conexões entre as mudanças intelectuais e as sociais. Ao mesmo
tempo, insistia na “mediação” de “estruturas mentais”, de “hábitos de pensamento”,
ou de “aparatos intelectuais”, em outras palavras, de mentalidades, observando que,
nos séculos XII e XIII, surgiram novas atitudes em relação ao tempo, espaço e
número, inclusive o que ele chamava do “livro contábil da vida depois da morte”.
Le Goff também foi um admirador de Braudel e até mesmo seu "discípulo" como foi
Ladurie. Além disso, ambos chegaram a serem diretores da revista ou pertencerem
ao grupo da direção. São dois nomes bastantes conhecidos da terceira geração.
Georges Duby
No caso de Georges Duby (1919-1996), assim como Le Goff e Ladurie, ele ingressou
durante a segunda geração, tendo como influência nem tanto Braudel, mas sim
Bloch. Duby escreveu artigos e outros trabalhos seguindo uma ideia parecida com a
vista em A sociedade feudal e em As características originais da sociedade rural
francesa, ambas obras escritas por Bloch e já mencionadas neste texto. Contudo
Duby começou a se enveredar mas para o lado da história cultural como Burke
[1992], procurando pensar o "imaginário social", a cultura material, as ideologias,
etc.
"Seu mais importante livro, Les trois ordres, em muitos aspectos, caminha
paralelamente ao livro de Le Goff, O Purgatório. Sua investigação recai sobre o que
autor denomina “as relações entre o mental e o material no decorrer da mudança
social, através do estudo de caso, a saber, o da representação coletiva da sociedade
dividida em três grupos, padres, cavaleiros e camponeses, isto é, os que rezam, os
que guerreiam e os que trabalham (ou lavram – o verbo latino laborare é
convenientemente ambíguo)". (BURKE, 1992, p. 118).
Duby foi um dos grandes nomes da terceira geração dos Annales, embora tenha sido
um medievalista escreveu sobre a Idade Moderna, e até mesmo atuou em parceria
em trabalhos sobre história urbana e história das mulheres.
Philippe Ariès
"Seus últimos anos foram dedicados a estudos sobre as atitudes perante a morte,
focalizando de novo um fenômeno da natureza refratado pela cultura, a cultura
ocidental, e atendendo a um famoso reclamo de Lucien Febvre, em 1941, “Nós não
possuímos uma história da morte” (Febvre, 1973, p. 24). Seu alentado
livro,L’Homme devant la mort, distingue, num panorama de seu desenvolvimento
sob uma muito longa duração, quase mil anos, uma seqüência de cinco atitudes, que
vão desde a “morte domada” da baixa Idade Média, uma visão definida com um
“compósito de indiferença, resignação, familiaridade e ausência de privacidade”, ao
que ele chama “morte invisível” (la mort inversée), de nossa própria cultura, na qual,
subvertendo as práticas vitorianas, tratamos a morte como um tabu e discutimos
abertamente o sexo (Ariès, 1977). L’Homme devant la mort tem os mesmos méritos
e defeitos do livro L’Enfant et la vie familiale sous l’Ancien Regime. Nele se encontram
a mesma audácia e a mesma originalidade, o mesmo uso de uma ampla variedade
de evidências, que inclui literatura e arte, mas não a estatística, e a mesma vontade
de não traçar cartas regionais ou sociais de diferenças". (BURKE, 1992, p. 112).
Jean Delumeau
Nesse âmbito de se estudar a morte, um historiador que começou a despontar nesta
geração foi Jean Delumeau, pois até aqui, os nomes citados acima, já estavam
ligados a revista desde a segunda geração. Delumeau seguiu um caminho
compartilhado por Ariès e Mandrou, o que Burke [1992] chamara de
"psicologia histórica". Mandrou havia deixado osAnnales após desentendimentos com
Braudel, mas acabou posteriormente retornando e seguindo nos estudos culturais,
tendo a psicologia como referência em seus estudos. No caso de Delumeau, ele
estudou a Idade Média e a Idade Moderna, estudando as "mentalidades" e
representações culturais ideológicas e o impacto destas nas sociedades europeias.
Um dos seus livros mais famosos é A história do medo no ocidente: 1300-
1800 (1978), obra na qual Delumeau estudou o medo e suas representações
culturais e ideológicas: Delumeau aborda o medo do mar, da escuridão, das florestas,
de monstros, de fantasmas, de demônios, da peste negra, do Apocalipse cristão, etc.
Ele realizou um trabalho sobre uma "psicologia do medo", mostrando que em muitos
casos o medo é uma tendência mais cultural do que natural.
"Outros membros do grupo dos Annales iam na mesma direção, especialmente Alain
Besançon, um especialista na Rússia do século XIX, que escreveu um longo ensaio
na revista sobre as possibilidades do que ele denominava “história psicanalítica”.
Tentou pôr em prática essas possibilidades num estudo sobre pais e filhos. O
estudo focalizava dois tzares, Ivã, o Terrível, e Pedro, o Grande, o primeiro matou
seu filho, e o segundo condenou o seu à morte (Besançon, 1968, 1971)". (BURKE,
1992, p. 116).
Marc Ferro
Na terceira geração também não podemos esquecer de antigos nomes como Michel
Vovelle e Pierre Nora, ambos já citados, contudo, temos também novos nomes a
citar, como Marc Ferro o qual tivera seu talento descoberto por Braudel, e na terceira
geração ganhou destaque, chegando a ser co-diretor da revista. Ferro é
principalmente lembrado neste período por sua empreitada em se unir o cinema e a
história, em se usar a cinematografia como fonte de estudo, assim como, meio para
se compreender a retratação do mundo e da História. Além de trabalhar com cinema,
Ferro também trabalha com a Segunda Guerra Mundial, Revolução Russa, história da
Rússia soviética, movimentos sociais, o papel da mídia na sociedade, etc. Marc
chegou a ter um programa de televisão semana chamado Histórias
Paralelas (Historie parallèle) onde abordava temas sobre o século XX. O programa
era transmitido aos sábados no pela emissora FR3, e se tornou um sucesso na
época. Ferro ainda hoje é uma referência para quem estuda cinema e história.
Michelle Perrot
Além do ingresso de historiadoras, a terceira geração também passou a tratar acerca
da história das mulheres, gênero, sexualidade, família, trabalho, etc., envolvendo em
muitos casos o papel e o lugar das mulheres na História, de forma a revelar que elas
não eram e não são coadjuvantes do processo histórico como se pensou por muito
tempo. A obra mais ousada dessa produção feminista dos Annales, foi o livro
organizado por Michelle Perrot e Georges Duby, Histoire des femmes en
Occident (1990-1991) lembrando que tal coleção em cinco volumes foi publicada
por uma editora italiana, a Laterza, pois as editoras francesas na época não
mostraram interesse por publicar uma história das mulheres, mesmo estando na
década de 90. Além disso, a própria Perrot e Duby foram convidados para organizar
essa extensa obra que ainda hoje é referência para a "história das mulheres". Nesta
coleção a qual traça a trajetória das mulheres da Antiguidade ao tempo presente,
procurou mostrar sob vários aspectos o papel e o lugar das mulheres nas sociedades
ocidentais: a mulher como esposa, filha, mãe, dona de casa, concubina, escrava,
trabalhadora, governanta, etc. Analisou aspectos culturais e sociais, e até mesmo o
machismo sobre elas.
De acordo com François Dosse em seu livro História em migalhas (1987) a "nova
história" no sentido de movimento, ingressa nos Annales durante a terceira geração,
logo após a saída de Braudel da direção, contudo Barros [2010], lembra que Iggers
enfatizava que a "nova história" já tivesse começado bem antes, ainda na segunda
geração, nessa perspectiva, se lembrarmos o que foi lido neste texto, a "história das
mentalidades", os estudos de cultura material, a "história das civilizações", etc., sob
este ponto de vista, já eram estudadas na segunda geração, embora a "história das
mentalidades" não possuísse naquela época tanto espaço como as outras formas de
estudo, mas mesmo assim, ela estava presente.
Burke [1992] assinala que o termo "nova história" já existia desde pelo menos 1912,
tendo sido utilizado por um estudioso americano chamado James Harvey Robinson.
Além disso, Burke também ressalva que para ele, os Annales surgidos em 1929, de
certa forma propunham uma "nova história", embora que ele acabe concordando com
o uso do termo para referir-se a cultura historiográfica da terceira geração. Para
Barros [2010], a "nova história" nos Annales representa um paradigma difícil de ser
conceituado e temporalizado.
Também é importante lembrar que nem todos os países adotaram a "nova história"
neste período. A mesma surgida em França, influenciou alguns historiadores ingleses,
especialmente o caso daRevista Past and Present; no caso da Itália, houve
influência conjunta a surgida micro-história. Outros países ainda demorariam a
adotar tais perspectivas, e no caso dos Estados Unidos, nos anos 80, surgiria a
chamada "nova história cultural", herdeira dessas mudanças vigentes nos anos
60 e 70.
A influência da micro-história:
Carlo Ginzburg
A micro-história surgiu nos anos 70 com dois historiadores italianos, Carlo
Ginzburg e Giovanni Levi, ambos ainda estão vivos. Os dois historiadores
passariam a ficarem bastante conhecidos no mundo a partir da abordagem de
pesquisa e estudo, posteriormente chamada micro-história. Aqui é importante
ressalvar que a micro-história é uma abordagem, uma metodologia de estudo e não
uma área de estudo como a história política, social, econômica, etc. No início, tal
metodologia foi confundida com a história das mentalidades, estudos de cultura
material, história cultural, história descritiva, etc. Porém, o certo é que a micro-
história é uma metodologia de estudo que visa estudar acontecimentos em um
recorte temporal de curta duração, ao mesmo tempo aprofundar o máximo que for
possível a pesquisa, pois uma das críticas que estes historiadores fizeram, era que
os estudos históricos estavam "superficiais", exploravam pouco as possibilidades,
assim como, certas fatos só poderiam ser conhecidos a partir de uma análise mais
meticulosa, daí Burke [2008] referir-se a micro-história como "um estudo da História
sob a lente do microscópio". Burke também dá três motivos para o surgimento da
micro-história:
"Em primeiro lugar, a micro-história foi uma reação contra um certo estilo de história
social que seguia o modelo da história econômica, empregando métodos
quantitativos e descrevendo tendências gerais, sem atribuir muita importância à
variedade ou à especificidade das culturas locais". (BURKE, 2008, p. 61).
"Em terceiro lugar, a micro-história era uma reação à crescente desilusão com a
chamada 'narrativa grandiosa' do progresso, da ascensão da moderna civilização
ocidental, pela Grécia e Roma antigas, a Cristandade, Renascença, Reforma,
Revolução Científica, Iluminismo, Revolução Francesa e Industrial. Essa história
triunfalista passava por cima das realizações e contribuições de muitas outras
culturas, para não falar dos grupos sociais do Ocidente que não haviam participado
dos movimentos acima mencionados". (BURKE, 2008, p. 62).
"O título do livro deve-se a explicação de Mennocchio de que no princípio tudo era o
caos, e os elementos formavam uma massa 'exatamente como o queijo faz com o
leite, e naquela massa apareceram alguns vermes, que eram os anjos'". (BURKE,
2008, p. 62).
"O queijo e os vermes pode ser descrito como uma 'história de baixo', porque se
concentra na visão de mundo de um membro do que o marxista italiano Antonio
Gramsci chamava de 'classes subalternas'. O herói do livro, Menocchio, pode ser
descrito como um 'extraordinário homem comum', e o autor explora suas ideias sob
diferentes ângulos, tratando-o algumas vezes como um indivíduo excêntrico que
deixava seus interrogadores desconcertados porque não se encaixava no estereótipo
de herege, e em outras ocasiões como porta-voz da cultura camponesa, tradicional
e oral". (BURKE, 2008, p. 63).
Giovanni Levi
A segunda obra, foi escrita por Giovanni Levi, lançada em 1985, intitulada A
herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século
XVII (L'eredità immateriale. Carriera di un esorcista nel Piemonte del seicento).
Nesse livro, Levi estudou as práticas mágicas de um exorcista chamado Giovan
Battista Chiesa, habitante do pequeno povoado de Santena. Assim como Ginzburg
fizera com Mennocchio em seu estudo sobre a vida e as ideias daquele moleiro, aqui
vemos algo parecido, mas agora voltado para um exorcista. Contudo, o grande marco
da obra de Levi, não foi nem tanto estudar a trajetória de Giovan Battista, mas sim
a cultura imaterial de sua época. Levi deu grande atenção para se estudar as práticas
sociais e culturais vigentes em Santena e na região de Piemonte, como forma de
compreender o mundo em que Giovan Battista vivia e atuava. A cultura imaterial se
defere basicamente da cultura material, pois trata-se de algo não palpável, não se
trata de objetos, mas sim de práticas, costumes, ritos, performances. Festas,
cerimônias, ritos, música, cantos, poesia oral, etc., são aspectos que pertencem a
cultura imaterial. No caso do livro, Levi procurou analisar como se dava as relações
ligada a herança imaterial, a transmissão de costumes, de saberes comunitários.
O terceiro livro a ser mencionado já foi comentado anteriormente aqui; trate-se
de Montaillou: vilarejo occitânico do "annaliste" Emmanuel Le Roy Ladurie publicado
em 1975. Na época a obra não chegou a ser identificada por todos como sendo uma
abordagem micro-histórica, mas a medida que tal abordagem italiana ficava mais
conhecida, principalmente após o lançamento de O queijo e os vermes, e nos anos
80 com a coleção intitulada Microhistória (Microstorie), organizada por Ginzburg e
Levi, o livro de Ladurie passou a ser reconhecido como exemplar dessa abordagem,
e o mesmo chegou a fazer outras obras nesta perspectiva.
Voltando aos Annales, além de Ladurie, Jacques Revel, um dos nomes importantes
da atual quarta geração também é adepto da micro-história. Embora a micro-história
tenha surgido no campo da história social, Burke [2008] salientara que ela contribuiu
muito nos estudos culturais, e na consolidação da "nova história cultural" nos anos
80.
O pensamento foucaultiano:
Michel Foucault
O filósofo e historiador francês Michel Foucault (1926-1984), tivera uma grande
influência nos estudos filosóficos e históricos nos anos 60 e 70. Embora não tenha
sido historiador de formação, mas dedicou-se vários anos a lecionar história, assim
como também escreveu livros de história cultural, e para mim, isso o torna
historiador, ainda mais, pelo fato dele estudar filosofia da história e pensar em forma
de se repensar o estudo da História. Foucault por algum tempo foi negligenciado ela
historiografia francesa, de fato, ele viveu alguns anos fora da França, retornando em
1960 para concluir seu doutorado, tendo publicado sua tese intitulada História da
Loucura na Idade Clássica(1961) obra a qual Vainfas [1997] dissera que "custou
a ser assimilada pela historiografia francesa". De fato, aHistória da Loucura só viria
a ser reconhecida como um trabalho importante, mais de dez anos depois. Em 1966
ele publicou outro de seus importantes livros, A ordem das coisas, que na época
fez sucesso, tendo sido recebido bem pela crítica, contudo, Foucault acabou sendo
chamado de estruturalista, algo que não lhe agradava.
"A ordem das coisas (1966) trata das categorias e dos princípios subjacentes e
organizadores de tudo o que possa ser pensado, dito ou escrito em um dado período,
no caso, os séculos XVII e XVIII; em outras palavras, os 'discursos' do período. Nessa
obra, Foucualt sugeriu que tais discursos coletivos, mais que os escritores
individualmente, são o objeto adequado de estudo, o que chocou alguns leitores, mas
inspirou outros". (BURKE, 2008, p. 75).
Neste caso, Foucault realizou algumas obras bastante importantes na época, dentre
algumas irei mencionar aqui: A já mencionada História da Loucura, analisa como a
loucura era interpretada pela medicina e pela sociedade, assim como os loucos eram
tratados socialmente; neste caso, Foucault chama a atenção que em diferentes
épocas a loucura era concebida de forma diferente, e não consistia numa ideia
imutável. O nascimento da clínica e outros livros também voltam analisar essa
questão de saúde e psicológica, pois a psicologia teve influência nos estudos
foucaultianos.
Em seu livro Microfísica do poder (1979) outra de suas famosas obras, ele encara
o "poder" estando dividido em várias camadas e lugares, e não apenas centralizado
nas mãos de alguns. Para ele, cada camada, lugar, grupo, etc., possuía suas
hierarquias, seus chefes, suas ordens, seus deveres, etc. Novamente, vemos aqui a
ideia de descontinuidade e ruptura, assim como o seu conceito de "epistemes".
Burke [2008] falara que a reação de alguns "annalistes" as críticas de Foucualt, foi
criar os estudos chamados de "imaginário social", o qual passou a estudar alguns
dos assuntos trabalhados por Foucault. Ao mesmo tempo, Burke fala que isso
começou a ficar mais nítido no decorrer dos anos 70 e 80, com a "nova história
cultural", da qual, segundo Burke, foi influenciada por Foucault. Embora ela não
tenha se unido a Escola dos Annales, suas críticas contribuíram para gerar mudanças,
pelo menos em alguns dos membros dessa escola.
Considerações finais:
Atualmente a Escola dos Annales vivencia sua quarta geração desde 1989, quando
novas rupturas levaram ao início de uma nova geração, pois lembrando os dizeres
de Roger Chartier, um dos membros da atual quarta geração: a História vem
vivenciando uma crise de identidade desde os anos 30, que vai se transformando ao
longo do tempo. Ele chega a dizer que nos anos 80 e 90 vivenciamos alguns aspectos
dessa crise, e isso levou a novos rumos nos Annales. Em 1994 a revista mudou de
nome para Annales. Historie, Sciences sociales, título que conserva até hoje.
Pelo fato de não dispor de material para falar acerca da quarta geração, me prendi a
comentar as outras três, as quais são mais abordas pelos historiadores. Futuramente
acho que haverá um maior número de análises sobre a atual quarta geração, embora
das quatro, ela seja a menos paradigmática. Além de Chartier, outros nomes que se
mantêm ligados direta ou indiretamente a quarta geração estão: Jacques Revel,
Emmanuel Le Roy Ladurie, Jacques Le Goff, Marc Ferro e André Burguière.
Todavia o que podemos concluir nesse extenso texto é que de fato a Escola dos
Annales foi um movimento como defende Revel, foi uma mudança paradigmática,
como sustentam Burke, Chartier, Barros, Vainfas, Reis, Porto, entre outros; as
mudanças historiográficas, ou melhor dizendo os debates sobre a forma de como
estudar e pesquisar a História realmente foram pertinentes a ponto de não apenas
influenciar a França no século XX, mas outras nações como visto, embora que é
necessário lembrar que nem todos os historiadores franceses foram adeptos
aos Annales.
Uma questão também a se deixar clara é que embora os Annales tenham evitado de
se trabalhar com a história política, não significa que ela seja algo ruim ou errado,
mas sim foi fruto de uma momento, de uma crise de conceitos no início do século
XX. A história política hoje em dia não é igual a daquela época.
Também é necessário salientar que os Annales não foram perfeitos em tudo, Burke,
Chartier, Dosse, entre outros assinalam problemas nas teorias e ações dos
"annalistes", pois como Burke [1992, p. 168-169] mencionara: "A contribuição dos
Annales pode ter sido profunda, mas foi também profundamente desigual. Uma das
críticas feitas aos annalistes foi sua grande atenção dada ao Antigo Regime Francês,
cerca de 1600 a 1789, pois embora houvessem trabalhos no período medieval como
visto alguns aqui, a Idade Antiga e a Idade Contemporânea ficaram de fora dessas
pesquisas. Aqui podemos notar que após Bloch e Febvre a ideia de "história total"
acabou se tornando limitada em um espaço (a França) e em um tempo (o Antigo
Regime). A segunda geração foi o auge dos estudos modernos, já na terceira vemos
mudanças nesse âmbito, mas o direcionamento para outros temas, mas ainda
mantendo a questão temporal da modernidade.
Mas, mesmo com esse problemas e outros dos quais alguns aqui mencionados, é
inegável que os Annales tiveram a contribuir para moldar a historiografia ocidental
nestas últimas oito décadas, pois embora a quarta geração não tenha o mesmo
impacto das gerações anteriores, alguns de seus membros como Chartier, Le Goff e
Ferro ainda continuam a contribuir para a historiografia atual.
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