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Alfredo Simonetti Manual de Psicologia Hospitalar gZ Z Fr Casa do Psicélogo PRIMEIRA PARTE DIAGNOSTICO O diagnéstico Olhos para ver além do biolégico Diagnosticar é 0 instante de ver, seguido pelo tempo de enten- der que leva ao momento de intervir, nio necessariamente nessa or- dem, mas necessariamente interligados. A principal razdo pela qual os diagnédsticos sao feitos é eles facilitarem o tratamento, de modo que diante de um diagnéstico bem feito a melhor estratégia terapéu- tica se evidencie, naturalmente, na mente do psicdlogo bem treina- do. As outras razGes sao a pesquisa cientifica e a comunicacio entre os profissionais. Em medicina, diagnéstico é 0 conhecimento da doenga por meio de seus sintomas, enquanto na psicologia hospitalar o diagnéstico é © conhecimento da situagdo existencial e subjetiva da pessoa adoentada em sua relagao com a doenga. Sendo assim, na psicologia hospitalar nao diagnosticamos doengas, mas 0 que acontece com as pessoas relativamente 4 doenga e ele, 0 nosso diagnéstico, nao é expresso em termos de nomes de doengas, mas sim por uma descri- ¢4o abrangente dos processos que influenciam e sao influenciados pela doenga. Nao oferecemos rétulos, e sim uma visio panoramica. O paciente apresenta para o psic6logo um mundo de informagées: queixas, relatos, problemas, sintomas, emogGes, atuag6es, defesas, sua histéria de vida, seus projetos, desesperangas, dores fisicas e psfquicas, 34 Manual de Psicologia Hospitalar etc. Em meio a isso tudo, o que deve ser trabalhado? O diagnéstico é a maneira de organizar todo esse material, o modo de construir um mapa para depois analisd-lo e decidir o melhor caminho a seguir. E claro que sempre é possivel seguir sem o mapa, mas isso j4 é bem mais complica- do. O psicdlogo “nao dirige a vida do paciente, mas dirige o tratamento” (Lacan, 1966), e com um mapa fica bem mais facil direcionar as inter- vengées terapéuticas. O diagnéstico é a modo que o psicdlogo dispée para melhor organizar 0 seu pensamento. O diagnéstico é uma hipétese de trabalho, nao uma verdade absoluta. Hipotese é uma teoria sobre alguma coisa que nos permite intervir sobre tal coisa, e se a intervencao guiada por essa hipdtese gerar a mudanca esperada, entio ela é uma 6tima hip6tese, caso con- trario, nao o é (Nobrega, 1996). Isso nada tem que ver com alguma verdade essencial da coisa, ¢ aliés a verdade nao interessa, ou me- lhor: como nao € possivel alcangarmos a verdade absoluta sobre as coisas, ela nao deve ser 0 objetivo primario. Nao é preciso descobrir qual “a verdade” de uma doenga para que possamos ajudar um paciente a enfrentd-la. Basta descobrir a verdade do paciente sobre essa doenga, isso sim é essencial. O psicdlogo trabalha com o senti- do das coisas, nao com a verdade das coisas. A medicina também trabalha com essa filosofia pragmatica pois sao intimeras as doen- gas de que nfo consegue descobrir a causa, mas consegue curar. Se uma hipotese ndo se mostra util, ela pode ser modificada; j4 as ver- dades tendem a se transformar em rétulos definitivos. Todo trabalho pode ser feito de duas maneiras diferentes: intui- tivamente ou de maneira metédica. A intuigdo se dé quando fazemos uma coisa sem saber claramente como fizemos tal coisa. Baseia-se no talento, numa disposig&o natural. J4 o método se refere a uma seqiiéncia de acgdes que conseguimos explicar racionalmente. Para trabalhar em psicologia hospitalar € preciso um minimo de talento, de intuigao, de jeito, mas isso nao basta: h4 que se buscar o entendi- mento racional do processo de adoecimento e o planejamento cons- ciente das ages terapéuticas. Alias, é exatamente isso 0 que diferen- cia o psicélogo hospitalar de outros profissionais que também cui- Primeira Parte: Diagndstico 35 dam psicologicamente de pessoas adoentadas, como religio: luntérios. Sim, porque vontade de ajudar, carinho pelos pacientes, disposigdo para sentar-se calmamente a seu lado e€ ouvi-los, bem, isso € algo que todos esses profissionais tém de ter, psicélogos e voluntdrios, mas 0 psicdlogo pode e deve ter um conhecimento mais metodoldégico dos processos psiquicos envolvidos no adoecer. Os voluntarios e€ os religiosos atuam a partir do amor e da fé, e nisso sao insuperdveis. Ja os psicdlogos atuam a partir do amor e do saber, ¢ isso lhe é especifico. Na verdade, se for para “dar um forga”, dar conselhos, estimular a fé, melhor é chamar algum dentre esses voluntérios do que um psicdlogo. Essas pessoas em geral possuem mais experiéncia de vida e mais fé. Se o psic6logo quer ter um lugar no hospital, precisa acrescentar ao seu amor um método racional de trabalho. Sem amor nao ha como trabalhar em psicologia hospitalar, mas s6 com amor também no é possivel. O amor e a razao sao como as duas asas de um passaro: necessdrias. O diagnéstico em psicologia hospitalar nada tem que ver com © psicodiagnéstico, velho conhecido dos psicélogos, que é um pro- cedimento estruturado por meio de testes psicolégicos que visam a determinar a posigao do sujeito em determinas escalas de inteligén- cia ou em outra fungao psfquica. Jé o diagnéstico em psicologia hos- pitalar nao se vale de testes. Seu instrumento é 0 olho clinico do psicélogo, e ademais nao se estabelece uma escala quantitativa para comparagées. Atualmente, 0 psicodiagnéstico nao tem aplicagaéo em psicologia hospitalar. Na década de 1960, o diagnéstico como categoria cientifica foi bastante questionado na comunidade dos psicdlogos. Era tido ape- nas como rétulo e instrumento de discriminagao dos pacientes, em especial na 4rea da satide mental. O uso perverso de diagnésticos psiquidtricos por regimes politicos totalitérios, como o da antiga Unido Soviética, a ambigiiidade dos diagndsticos da psiquiatria clas- sica, com suas incontdveis e confusas classificagdes nosolégicas, além do costume popular de transformar diagnéstico em xingamento, como, por exemplo “sua histérica!”, justificavam essas criticas.

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