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PARK, Robert Ezra. A migração humana e o homem marginal.

Tradução de Mauro Guilherme Pinheiro


Koury. Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v.1, n.3, p. 114-123, novembro
de 2017. ISSN 2526-4702.
Tradução
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/

A migração humana e o homem marginal

Human migration and the marginal man

Robert E. Park
Tradução de Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Resumo: As migrações, como todas as colisões incidentais, conflitos e fusões de povos e


de culturas que ocasionam, são contabilizadas entre as forças decisivas da história. Todo
avanço na cultura, como se tem dito, começa com um novo período de migração e
movimento das populações. As tendências atuais indicam que, muito embora a mobilidade
dos indivíduos tenha aumentado a migração dos povos, relativamente, diminuiu. As
consequências da migração e da mobilidade parecem, no geral, no entanto, parecem ser as
mesmas. Em ambos os casos, o cake of custom é quebrado e o indivíduo é liberado para
novas empresas e para novas associações. Uma das consequências da migração é criar uma
situação em que o mesmo indivíduo - que pode ou não ter um sangue misto - se encontra
lutando para viver em dois grupos culturais diversos. O efeito é produzir um caráter instável
- um tipo de personalidade com formas características de comportamento. Este é o "homem
marginal". É na mente do homem marginal que as culturas conflitantes se encontram e se
fundem. É, portanto, na mente do homem marginal que o processo de civilização está
visivelmente em curso, e é na mente do homem marginal que o processo de civilização
pode ser melhor estudado. Palavras-chave: migração, homem marginal, culturas
conflitantes, processo de civilização

Abstract: Migrations, with all the incidental collision, conflicts, and fusions of peoples and
of cultures which they occasion, have been accounted among the decisive forces in history.
Every advance in culture, it has been said, commences with a new period of migration and
movement of populations. Present tendencies indicate that while the mobility of individuals
has increased, the migration of peoples has relatively decreased. The consequences,
however, of migration and mobility seem, on the whole, to be the same. In both cases the
"cake of custom" is broken and the individual is freed for new enterprises and for new
associations. One of the consequences of migration is to create a situation in which the
same individual-who may or may not be a mixed blood-finds himself striving to live in two
diverse cultural groups. The effect is to produce an unstable character-a personality type
with characteristic forms of behavior. This is the "marginal man." It is in the mind of the
marginal man that the conflicting cultures meet and fuse. It is, therefore, in the mind of the
marginal man that the process of civilization is visibly going on, and it is in the mind of the
marginal man that the process of civilization may best be studied. Keywords: migrations,
marginal man, conflicting cultures, process of civilization

Estudiosos da grande sociedade, olhando para a humanidade na longa


perspectiva da história, frequentemente se dispõem a buscar uma explicação para as
diferenças culturais existentes entre raças e povos em alguma causa ou em alguma
condição dominante. Uma escola de pensamento, representada com grande destaque por

Publicado originalmente sob o título “Human migration and the marginal man”. The American Journal
of Sociology, v. 33, n. 6, p. 881-893, May, 1928. A Sociabilidades Urbanas Revista de Antropologia e
Sociologia agradece a autorização para a tradução e publicação em português.
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Montesquieu, encontrou essa explicação no clima e no ambiente físico. Outra escola,


identificada com o nome de Arthur de Gobineau (1915), autor de The Inequality of
Human Races (A desigualdade das raças humanas), procurou uma explicação para as
culturas divergentes nas qualidades inatas das raças biologicamente herdadas. Essas
duas teorias têm isso em comum, ou seja, ambas concebem a civilização e a sociedade
como resultado de processos evolutivos, - processos pelos quais o homem adquiriu
novos traços hereditários, - e não processos pelos quais novas relações foram
estabelecidas entre os homens. Em contraste com estes dois, Frederick Teggart
recentemente reiterou e amplificou o que pode ser chamado de teoria catastrófica da
civilização, uma teoria que remonta a Hume1, na Inglaterra, e a Turgot2, na França.
Deste ponto de vista, o clima e os traços raciais inatos, importantes como podem ter
sido na evolução das raças, têm sido de pouca influência na criação de diferenças
culturais existentes. De fato, as raças e as culturas, até agora, longe de serem idênticas, -
ou até mesmo o produto de condições e forças semelhantes, - talvez possam ser postas
uma contra a outra como efeitos de contraste, o resultado de tendências antagônicas,
para que a civilização possa florescer a custa das diferenças raciais ao invés de ser
conservada por elas. De qualquer forma, se é verdade que as raças são produtos do
isolamento e da endogamia, é tão certo que a civilização, por outro lado, é uma
conseqüência do contato e da comunicação. As forças que foram decisivas na história da
humanidade são aquelas que juntaram os homens em frutuosa competição, conflito e
cooperação. Entre as mais importantes dessas influências estão - de acordo com o que
eu chamo de teoria catastrófica do progresso, - a migração e as colisões, conflitos e
fusões incidentais de pessoas e culturas que elas ocasionaram. "Todo avanço na
cultura", - diz Bücher (1911), em seu livro Evolução Industrial, - "começa, por assim
dizer, com um novo período de errância" e, em apoio a esta tese, ele ressalta que as
formas de comércio anteriores eram migratórias, e que as primeiras indústrias a se
libertar da agricultura doméstica e se tornar ocupações independentes foram realizadas
de forma itinerante. "Os grandes fundadores da religião, os primeiros poetas e filósofos,
os músicos e atores de épocas passadas, são todos grandes vagabundos. Até hoje, o
inventor, o pregador de uma nova doutrina e o virtuoso viajam de um lugar para outro
em busca de adeptos e admiradores - apesar do imenso desenvolvimento recente nos
meios de comunicação da informação" (Bücher, 1911, p. 347).
As influências das migrações não foram limitadas, é claro, pelas mudanças que
efetuaram nas culturas existentes. Em longo prazo, determinaram as características
raciais dos povos históricos. "Todo o ensinamento da etnologia", como observa Griffith
Taylor (1927, p. 336), "mostra que os povos de raça mista são a regra e não a exceção".
Toda nação, após o exame, acaba por ser uma mistura mais ou menos bem sucedida. A
esse filtro constante de raças e povos, a geografia humana deu o título de "movimento
histórico", porque, como diz Miss Ellen Churchill Semple (1911, p. 75) em seu volume
sobre as Influências do Ambiente Geográfico, "está subjacente à maior parte da história
escrita e constitui a maior parte da história não escrita, especialmente, a das tribos
selvagens e nômades".
As mudanças na raça é verdade, seguem, inevitavelmente, a certa distância, as
mudanças na cultura. Os movimentos e a mistura de pessoas, - que trazem mudanças
rápidas, súbitas e muitas vezes catastróficas nos costumes e hábitos, - são seguidos, com

1
David Hume (1711-1776) filósofo, historiador e ensaísta britânico, nascido na Escócia, que se tornou
célebre por seu empirismo radical e seu ceticismo filosófico. [Nota do tradutor].
2
Anne Robert Jacques Turgot (1727-1781). Economista e estadista francês cuja obra é considerada um elo
entre a fisiocracia e a escola britânica de economia clássica. (Nota do tradutor]

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o passar do tempo, - como resultado do cruzamento, - por modificações no


temperamento e no físico. Provavelmente nunca houve um caso em que as raças tenham
vivido juntas nos contatos íntimos que uma economia comum impõe, na qual a
contiguidade racial não tenha produzido híbridos raciais. No entanto, mudanças nas
características raciais e nos traços culturais seguem taxas muito diferentes, e é notório
que as mudanças culturais não são consolidadas e transmitidas biologicamente, ou pelo
menos apenas, se for o caso, em uma proporção muito pequena. As características
adquiridas não são herdadas biologicamente.
Os escritores que enfatizam a importância da migração como uma agência de
progresso são invariavelmente levados a atribuir um papel semelhante à guerra. Assim,
Theodor Waitz, comentando a questão da migração como uma agência da civilização,
aponta que as migrações são "raramente de natureza pacífica no início". Da guerra, ele
diz: "A primeira consequência da guerra é que relações fixas são estabelecidas entre os
povos, que tornam possível uma relação amigável, relação esta que se torna a mais
importante, favorecendo o intercâmbio do conhecimento e experiência, do que com o
mero intercâmbio de mercadorias" (Waitz, 1963, p. 347). E então ele acrescenta:
Sempre que vemos um povo, de qualquer grau de civilização, que não vive
em contato e ação recíproca com os outros, geralmente encontraremos certa
estagnação, inércia mental e falta de atividade, que tornam qualquer mudança
de condição social e política impossível. Esta é, em tempos de paz,
transmitida como uma doença eterna, e a guerra aparece, então, apesar do que
os apóstolos da paz possam dizer, como um anjo salvador, que desperta o
espírito nacional e torna todas as forças mais elásticas (Waitz, 1863, p. 348).
Entre os escritores que concebem o processo histórico em termos de intrusões,
tanto pacíficas, quanto hostis, de um só povo ao domínio de outro, se encontra os
sociólogos Ludwig Gumplowicz3 e Franz Oppenheim (1914). O primeiro, no esforço de
definir o processo social de forma abstrata, o descreveu como a interação de grupos
étnicos heterogêneos, onde a subordinação resultante e a super-ordenação de raças
constituem a ordem social – a sociedade, - de fato.
Do mesmo modo, Oppenheim, em seu estudo sobre a origem sociológica do
estado, acredita que demonstrou que, em todos os casos, o estado teve seu começo
histórico na imposição, pela conquista e força, da autoridade de um nômade sobre um
povo sedentário e agrícola. Os fatos que Oppenheim reuniu para sustentar sua tese
mostram, de qualquer forma, que as instituições sociais, na verdade, em muitos casos
pelo menos, surgiram abruptamente por uma mutação, em vez de um processo de
seleção evolutiva e a acumulação gradual de pequenas variações? (Oppenheimer, 1914).
Não é aparentemente evidente o porquê uma teoria que insiste na importância da
mudança catastrófica na evolução da civilização não deva, ao mesmo tempo, levar em
consideração a revolução como um fator em progresso. Se a paz e a estagnação como
sugere Waitz, tendem a assumir a forma de uma doença social; se, como diz Summer,
"a sociedade precisa ter algum fermento em si" para acabar com esta estagnação e
emancipar as energias dos indivíduos encarcerados dentro de uma ordem social
existente; parece que alguma "loucura aventureira", como as cruzadas da Idade Média,
ou algum entusiasmo romântico, como o que se expressou na Revolução Francesa, ou
na mais recente aventura bolchevique na Rússia, pode ser tão eficaz quanto a migração
ou a guerra para interromper a rotina do hábito existente e quebrar o cake of customs4.
3
Ludwig Gumplowicz (1839- 1909). Autor de uma teoria sociológica do Estado baseada na luta de raças
e na conquista dos povos mais fracos pelos mais fortes. [Nota do tradutor].
4
Expressão inglesa que sugere o conjunto de costumes em que uma sociedade está enraizada. [Nota do
tradutor].

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As doutrinas revolucionárias são naturalmente baseadas em uma concepção de mudança


catastrófica e não evolutiva. A estratégia revolucionária, tal como foi elaborada e
racionalizada nas Reflexões sobre a Violência de Georges Sorel (1914), faz da grande
catástrofe, da greve geral, um artigo de fé. Desse modo, tornam-se um meio de manter a
moral e impor a disciplina nas massas revolucionárias.
A primeira e mais óbvia diferença entre revolução e migração é que na migração
a ruptura da ordem social é iniciada pelo impacto de uma população invasora e
completada pelo contato e fusão de nativos com povos estrangeiros. No caso do
primeiro, o fermento revolucionário e as forças que perturbaram a sociedade
normalmente tiveram, ou parecem ter tido, suas fontes e origens, principalmente, se não
inteiramente, dentro, e não fora, da sociedade afetada. É duvidoso que possa ser
sustentado com sucesso que toda revolução, cada Aufklärung (esclarecimento), todo
despertar intelectual e renascimento tenha sido ou será provocado por algum movimento
populacional invasor ou pela intrusão de alguma agência cultural externa. Pelo menos,
parece ser necessária alguma modificação desta visão, pois, com o crescimento do
comércio e da comunicação houve, progressivamente e relativamente, mais movimento
e menor migração. O comércio, ao juntar as extremidades da terra, tornou as viagens
relativamente seguras. Além disso, com o desenvolvimento da indústria de máquinas e
o crescimento das cidades, são as commodities (mercadorias) em vez dos homens que
circulam. O mascate, que carrega suas mercadorias nas costas, cede lugar ao vendedor
ambulante, e o catálogo de mala postal agora atinge regiões remotas, que, até mesmo, os
mascates estrangeiros raramente, se é que alguma vez, penetraram. Com o
desenvolvimento de uma economia mundial e a interpenetração dos povos, as
migrações, como Karl Bücher (1901) apontou, mudaram seu caráter:
As migrações que ocorrem na abertura da história dos povos europeus são
migrações de tribos inteiras, empurrando e pressionando unidades coletivas
de leste a oeste que duraram séculos. As migrações da Idade Média sempre
afetam classes individuais específicas: os cavaleiros nas cruzadas, os
comerciantes, os artesãos salariais, os jornalistas, os malabaristas e os
trovadores, os servos que procuram proteção nos muros de uma cidade. As
migrações modernas são, pelo contrário, geralmente, uma questão de
interesse privado, os indivíduos sendo liderados pelos motivos mais variados
e, quase invariavelmente sem organização. O processo que se repete
diariamente mil vezes é unido apenas por uma característica única, que é a
questão de mudança de localidade por pessoas que buscam condições de vida
mais favoráveis (Bücher, 1901, p. 349).
A migração, que a princípio assumia a forma de uma invasão, seguida pelo
deslocamento forçado ou pela subjugação de um povo por outro, assumiu o caráter de
uma penetração pacífica. A migração dos povos, em outras palavras, foi transmutada
para a mobilidade de indivíduos, e as guerras que esses movimentos tão frequentemente
ocasionaram assumiram o caráter de lutas internas, das quais as greves e as revoluções
devem ser consideradas como tipos.
Além disso, se alguém tentasse avaliar todas as formas em que ocorreram
mudanças catastróficas, seria necessário incluir as mudanças que são efetuadas pelo
surgimento súbito de algum novo movimento religioso como o maometanismo ou o
cristianismo, ambos iniciados como movimentos cismáticos e sectários, e que, por
extensão e evolução interna, se tornaram religiões independentes. Observado desse
ponto de vista, a migração assume um personagem menos original e excepcional do que
até agora foi concebido pelos escritores, a quem o problema mais intrigou. Aparece,
meramente, como uma de uma série de formas nas quais as mudanças históricas podem
ocorrer. No entanto, considerado abstratamente como um tipo de ação coletiva, a

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migração humana exibe em todos os lugares características que são suficientemente


típicas para torná-la um assunto de investigação e estudo independente, tanto em relação
à sua forma quanto em relação aos efeitos que produz.
A migração não é, no entanto, identificada com mero movimento. Isso envolve,
pelo menos, a mudança de residência e a quebra dos laços domésticos. Os movimentos
de ciganos e outros povos párias, - porque não produzem mudanças importantes na vida
cultural, - devem ser considerados antes que um fato geográfico, como um fenômeno
social. A vida nômade é estabilizada com base no movimento, e mesmo que os ciganos
agora viajem de automóvel, eles ainda mantêm comparativamente inalterados a sua
antiga organização e os seus costumes tribais. O resultado é que a sua relação com as
comunidades, que podem ser encontradas a qualquer momento, deve ser descrita como
simbiótica, em vez de social. Isso tende a ser verdade para qualquer seção ou classe da
população - os hobos, por exemplo, e os moradores de hotel - que são instáveis e
móveis.
A migração como fenômeno social deve ser estudada não apenas em seus efeitos
mais grosseiros, como se manifesta nas mudanças no costume e nos mores, mas pode
ser contemplada em seus aspectos subjetivos, como se manifesta no tipo novo de
personalidade que produz. Quando a organização tradicional da sociedade desmorona,
como resultado do contato e colisão com uma nova cultura estrangeira, o efeito é, por
assim dizer, o de emancipar o homem individual. As energias anteriormente controladas
pelo costume e pela tradição são isentadas. O indivíduo torna-se livre para novas
aventuras, mas ele encontra-se mais ou menos sem direção e controle. A declaração de
Frederick J. Teggart sobre esta questão é a seguinte:
Como resultado da quebra dos modos de ação e do pensamento habituais, o
indivíduo experimenta uma "liberação" das restrições e constrangimentos a
que tem sido submetido e evidencia essa "liberação" em uma auto-afirmação
agressiva. A sobre-expressão da individualidade é uma das características
marcadas em todas as épocas de mudança. Por outro lado, o estudo dos
efeitos psicológicos da colisão e do contato entre diferentes grupos revela o
fato de que o aspecto mais importante da "liberação" não consiste em libertar
o soldado, o guerreiro ou o enraivecido da restrição dos modos de ação
convencionais, mas liberar o julgamento individual das inibições dos modos
de pensamento convencionais. Assim, pode ser visto [ele acrescenta] que o
estudo do modus operandi de mudança no tempo oferece um foco comum
aos esforços dos historiadores políticos, dos historiadores da literatura e das
idéias, dos psicólogos e dos estudantes de ética e da teoria da educação
(Teggart, 1925, p. 196).
As mudanças sociais, de acordo com Teggart, têm sua origem em eventos que
"liberam" os indivíduos dos quais a sociedade é composta. Inevitavelmente, no entanto,
esta versão é seguida no decorrer do tempo pela reintegração dos indivíduos lançados
em uma nova ordem social. Contudo, certas mudanças incidem no caráter dos próprios
indivíduos. Eles se tornam, no processo, não apenas emancipados, mas esclarecidos.
O indivíduo emancipado invariavelmente se torna, em certo sentido e até certo
ponto, cosmopolita. Ele aprende a olhar para o mundo em que nasceu e se criou com
algo do desapego de um estranho. Ele adquire, em suma, um viés intelectual. Simmel
descreveu a posição do estrangeiro na comunidade, e a sua personalidade, em termos de
movimento e migração.
"Se o vagar", diz ele, "considerado como a libertação de cada ponto no espaço, é
o oposto conceitual da fixação em qualquer ponto, então certamente a forma sociológica
do estrangeiro apresenta a união de ambas as especificações". O estrangeiro permanece,
mas não se pauta como estabelecido. Ele é um perambulador potencial. Isso significa

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que ele não se encontra enlaçado, - como os outros estão, - pelas convenções e acordos
locais. "Ele é o homem mais livre, prática e teoricamente. Ele vê a sua relação com os
outros com menos preconceito; ele os submete a padrões mais gerais, mais objetivos, e
não se encontra confinado em sua ação por costume, piedade ou precedentes".
O efeito da mobilidade e da migração é o de secularizar as relações
anteriormente sentidas como sagradas. Pode-se descrever o processo, em seu duplo
aspecto, ou seja, como secularização da sociedade e como individuação da pessoa. Para
uma imagem breve, vívida e autêntica da forma como a migração do tipo anterior, - a
migração de um povo, - de fato, provocou a destruição de uma civilização precedente e
liberou os povos envolvidos para a criação de uma civilização posterior, - uma
sociedade mais secular e mais livre, - sugiro a Introdução de Gilbert Murray (1907) para
o seu livro The Rise of the Greek Epic, em que procura reproduzir os eventos da invasão
nórdica da região do Egeu.
O que se seguiu, diz ele, foi um período de caos:
Um caos no qual uma civilização antiga é quebrada em fragmentos, suas leis
são nulas, e a intrincada rede de expectativas normais, que forma a própria
essência da sociedade humana, despedaçada tantas vezes e de forma tão
profunda, por contínuos desapontamentos que, finalmente, deixa de haver, de
modo absoluto, qualquer expectativa normal. Para os colonos fugitivos pelas
margens que seguiram para Ionia, e a seguir, também, para Doris e Aeolis,
não havia deuses tribais ou obrigações tribais, porque não havia tribos. Não
havia leis antigas, porque não havia ninguém para administrar e nem mesmo
para lembrá-las; apenas as compulsões que o poder mais forte do momento
resolveu impor. A vida familiar e a família haviam desaparecido, com todos
seus incontáveis laços. O homem, agora, não estava mais vivendo com uma
esposa de sua própria raça, mas com uma mulher estranha e perigosa, de
linguagem e de deuses alienígenas, a mulher cujo marido ou pai talvez
tivesse sido assassinado ou, na melhor das hipóteses, que havia sido
comprado como escravo pelo assassino. O velho lavrador ariano, como
veremos a seguir, viveu com seus rebanhos em uma espécie de conexão
familiar. Quando ele matava o "seu irmão o boi", por estresse ou por razões
religiosas, esperava que suas mulheres o chorassem quando o assassinato era
realizado. Mas, agora, ele deixou o seu próprio rebanho longe, e este foi
devorado por inimigos. E, a partir de então, ele viveu com animais de
estranhos, de quem roubou ou se manteve em servidão. Ele deixou os
túmulos de seus pais, os fantasmas bondosos de seu próprio sangue, que
colheram a comida de sua mão e o amaram; e agora estava cercado pelos
túmulos de mortos estranhos, de fantasmas estranhos cujos nomes não ele
conhecia e que estavam além de seu poder de controle, e a quem aplacar com
medo e aversão. O único fato concreto a seguir, a partir de agora, como o
centro de sua fidelidade, era o de abastecer o lugar de seu antigo coração
familiar, seus deuses, seus costumes tribais e santidades. Era um circuito de
muros de pedras, uma Polis; o muro que ele e seus companheiros, homens de
diversas línguas e cultos unidos por uma tremenda necessidade, construíram
para ser a única barreira entre eles e um mundo de inimigos (Murray, 1907,
p. 78-79).
Foi no interior dos muros da polis e nessa companhia mista que a civilização
grega nasceu. Todo o segredo da vida grega antiga, a sua relativa liberdade das
superstições mais grosseiras e do medo dos deuses, está ligada, dizem-nos, com esse
período de transição e caos, no qual o mundo primitivo anterior pereceu e da qual uma
mais livre, e mais esclarecida ordem social surgiu. O pensamento foi emancipado, a
filosofia nasceu e a opinião pública se estabeleceu como uma autoridade contra a
tradição e o costume. Como Arnold Guyot, em seu Earth and Man (1857), citado por
Thomas (1921, p. 205), diz: "O grego com seus festivais, suas canções, suas poesias,

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parece celebrar, em um hino perpétuo, a libertação do homem dos poderosos grilhões da


natureza".
O que ocorreu na Grécia, primeiro, ocorreu a seguir no resto da Europa e, agora,
está acontecendo na América. O movimento e a migração dos povos, a expansão do
mercado e do comércio e, particularmente, o crescimento, nos tempos modernos, desse
cadinho de raças e culturas, que são as cidades metropolitanas, afrouxaram os laços
locais, destruíram as culturas da tribo e do povo, e substituíram as lealdades locais pela
liberdade das cidades; e a ordem sagrada do costume tribal, pela organização racional
que chamamos de civilização.
Nessas grandes cidades, onde todas as paixões, e todas as energias da
humanidade são liberadas, estamos em posição de inquirir os processos da civilização,
por assim dizer, sob um microscópio.
É nas cidades que os antigos grupos de clãs e parentes se fragmentaram e foram
substituídos por organizações sociais baseadas em interesses racionais e predileções
temperamentais. É nas cidades que se realiza, de forma mais intensa, a grande divisão
do trabalho que permite e, mais ou menos compele o homem individual, a concentrar
suas energias e seus talentos na tarefa particular a que se encontra melhor equipado para
executar, e desta forma o emancipa, e a seus companheiros, do controle da natureza e
das circunstâncias que dominava completamente o homem primitivo.
Acontece, entretanto, que o processo de aculturação e de assimilação, e o
amalgama que acompanha os estoques raciais, não prosseguem com a mesma facilidade
e a mesma velocidade em todos os casos. Especificamente, onde os indivíduos expostos
a uma vida comum são de culturas divergentes e de conjuntos raciais muito diferentes, a
assimilação e o amalgama não ocorre tão rapidamente quanto ocorrem em outros casos.
Todos os nossos chamados problemas raciais emergem de situações em que a
assimilação e amalgamação não ocorreram, ou ocorrem muito devagar. Como já disse
em outro lugar, o principal obstáculo para a assimilação cultural das raças não é o seu
aspecto mental diferente, mas sim os seus traços físicos divergentes. Não é por causa da
mentalidade dos japoneses que eles não assimilam tão facilmente quanto os europeus. É
por que
o japonês apresenta em seus traços uma distinção distintiva racial, que ele
usa, por assim dizer, como um uniforme racial que o qualifica. Ele não pode
se tornar um mero indivíduo, indistinguível na massa cosmopolita da
população, como é verdade, por exemplo, em relação aos irlandeses e, em
menor grau, de algumas outras raças imigrantes. O japonês, como o negro,
está condenado a permanecer entre nós como uma abstração, um símbolo, - e
um símbolo não apenas de sua própria raça, mas do Oriente e daquela ameaça
vaga e mal-definida a que às vezes nos referimos como "perigo amarelo"
(Park, 1914).
Sob tais circunstâncias, povos de diferentes estoques raciais podem viver lado a
lado em uma relação de simbiose, cada um desempenhando um papel em uma economia
comum, todavia, e em grande medida, não acasalando; cada qual mantendo uma
organização ou sociedade tribal mais ou menos completa e própria, como os ciganos ou
os párias indianos. Esta era a situação dos judeus na Europa até os tempos modernos, e
existe uma relação um tanto semelhante entre as populações nativas brancas e hindus no
Sudeste da África e nas Índias Ocidentais.
No entanto, em um longo prazo, os povos e as raças que vivem juntos,
compartilhando a mesma economia, inevitavelmente se cruzarão, e dessa maneira, se
não houvesse outras, as relações meramente cooperativas e econômicas se tornarão
sociais e culturais. Quando a migração leva à conquista econômica ou política, a

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assimilação se faz inevitável. Os povos conquistadores impõem a sua cultura e os seus


padrões aos conquistados e, a partir de então, segue um período de endosmose cultural.
Às vezes, as relações entre os povos conquistadores e conquistados assumem a
forma de escravidão; às vezes elas assumem a forma, como na Índia, de um sistema de
castas. Mas, em ambos os casos, os povos dominantes e sujeitos se tornam, no tempo,
partes integrantes de uma mesma sociedade. A escravidão e a casta são meramente
formas de acomodação, em que o problema da raça encontra uma solução temporária. O
caso dos judeus é diferente. Os judeus nunca foram sujeitados, pelo menos na Europa.
Nunca foram reduzidos à posição de uma casta inferior. Em seus guetos, - que
escolheram, e depois foram forçados a viver, - eles preservaram suas próprias tradições
tribais e sua independência cultural, se não política. O judeu que deixou o gueto não se
libertou; deserdou e se tornou aquele objeto execrável, um apóstata. A relação do gueto
judeu com a comunidade maior em que ele vivia foi, e até certo ponto ainda é simbólica,
em vez de social.
Quando, no entanto, as paredes do gueto medieval foram derrubadas e o judeu
foi autorizado a participar da vida cultural dos povos entre os quais vivia, apareceu um
novo tipo de personalidade, a saber, um híbrido cultural, um homem que vive e
compartilha intimamente a vida cultural e as tradições de dois povos distintos; nunca
muito disposto a quebrar, mesmo que ele tenha permissão de fazê-lo, o seu passado e
suas tradições, e não muito aceito, por causa do preconceito racial, na nova sociedade
em que agora procurava encontrar um lugar. É um homem à margem de duas culturas e
duas sociedades, que nunca completamente se interpenetram e se fundem. O judeu
emancipado foi, e é historicamente e tipicamente o homem marginal, o primeiro
cosmopolita e cidadão do mundo. Ele é, por excelência, o estranho, que Georg Simmel
(1908) descreveu, ele próprio judeu, com uma visão e compreensão tão profunda em seu
grande livro Zociologie (Sociologia).
A maioria, senão todas as características do judeu, certamente, a sua
preeminência como comerciante e o seu interesse intelectual, a sua sofisticação, o seu
idealismo e a sua falta de sentido histórico, são as características do homem da cidade, o
homem que se expande e se modifica a todo o momento, que vive de preferência em um
hotel - em suma, o cosmopolita. As autobiografias de imigrantes judeus, dos quais um
grande número foi publicado na América, nos últimos anos, são versões diferentes da
mesma história - a história do homem marginal; do homem que, emergindo do gueto em
que morava na Europa, procura encontrar um lugar em uma vida mais livre, mais
complexa e cosmopolita de uma cidade americana.
Pode-se aprender com estas autobiografias como o processo de assimilação
realmente ocorre no imigrante individual. Nas mentes mais sensíveis, os seus efeitos são
tão profundos e tão perturbadores, como algumas das conversões religiosas de que
William James (1902) nos deu um relato tão clássico em suas Variedades de
Experiência Religiosa. Nessas autobiografias de imigrantes, o conflito de culturas, tal
como ocorre na mente do imigrante, é apenas o conflito de um self dividido, o self
antigo e o novo. E, muitas vezes, não há um movimento satisfatório nesse conflito que,
muitas vezes, termina em uma profunda desilusão, como descrito, por exemplo, na
autobiografia de Lewisohn (1922) Up Stream (Rio Acima).
Contudo, a hesitação inquietante de Lewisohn, - entre a segurança calorosa do
gueto, que ele abandonou, e a liberdade fria do mundo exterior, na qual ele ainda não se
sente em casa, - é típica. Um século antes, Heinrich Heine5, dilacerado pelas mesmas

5
Christian Johann Heinrich Heine (1797-1856). Poeta romântico alemão, conhecido como “o último dos
românticos”. [Nota do tradutor].

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lealdades conflitantes, e lutando para ser ao mesmo tempo um alemão e um judeu,


promulgou um papel semelhante. Foi o segredo e a tragédia da vida de Heine, de acordo
com o seu biógrafo mais recente, que as circunstâncias o condenaram a viver em dois
mundos, em nenhum dos quais ele já não sentia como seu, e não mais pertencia. Foi isso
que amargou a sua vida intelectual e deu a seus escritos o caráter de conflito espiritual e
instabilidade. Conflito este que, de acordo com Lewis Browne (1927, p. 355), é a
evidência de uma “angústia espiritual” (spiritual distress). A sua mente já não tinha a
integridade baseada na convicção: "os seus braços eram fracos" - para continuar a
cotação - "porque a sua mente estava dividida; as suas mãos estavam inquietas, porque a
sua alma estava em tumulto".
Algo do mesmo senso de dicotomia e conflito moral é provavelmente
característica de todos os imigrantes durante o período de transição, quando os velhos
hábitos estão sendo descartados e os novos ainda não estão formados. É inevitavelmente
um período de turbulência interior e de autoconsciência intensa.
Não há dúvida de que os períodos de transição e crise nas vidas da maioria das
pessoas podem ser comparáveis com o que o imigrante experimenta quando sai de casa
para buscar a sua fortuna em um país estranho. Mas, no caso do homem marginal, o
período de crise é relativamente permanente. O resultado é que isso tende a se tornar um
tipo de personalidade. Normalmente, o homem marginal é de um sangue misto, como o
mulato nos Estados Unidos ou o Eurasiático na Ásia, mas é apenas aparentemente,
porque o homem de sangue misto é aquele que vive em dois mundos, nos quais ele é
mais ou menos um estranho. O cristão convertido na Ásia ou na África exibe muitas
características, se não a maioria, do homem marginal: a mesma instabilidade espiritual,
a autoconsciência intensificada, a inquietação e o mal-estar.
É na mente do homem marginal que a turbulência moral que os novos contatos
culturais ocasionam, se manifesta nas formas mais óbvias. É na mente do homem
marginal, por fim, - onde as mudanças e fusões da cultura estão acontecendo - que
podemos estudar melhor os processos de civilização e de progresso.
Referências
Browne, Lewis (with the collaboration of Elsa Weihl). That man Heine: a biography.
New York: Macmillan Company, 1927.
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