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publico.

pt

A paz, o pão, a habitação


Jorge Mourinha

3-4 minutos

Existe qualquer coisa de esquizofrénico em Sérgio


Tréfaut, espécie de “dr. Jekyll e Sr. Hyde” consoante
esteja do lado do documentário (Lisboetas; Alentejo,
Alentejo) ou da ficção (Viagem a Portugal; o ensaio
Treblinka). É uma curiosa dicotomia que se parece
agudizar com cada nova abordagem à ficção do
realizador, mas em comum a ambas as vertentes existe
uma atenção muito particular aos despossuídos em
busca de uma identidade, aos “outros” que procuram
um lugar onde pertencer.

Com Raiva, a referência evidente é o neo-realismo do


pós-guerra, do cinema ou da literatura – Seara de Vento,
de Manuel da Fonseca, é o ponto de partida desta
adaptação formalista que rechaça a liberdade formal de
um documentário e as limitações humanistas do neo-
realismo para se inscrever na linhagem do grande
cinema clássico. Esse formalismo seco, depurado,
cinzelado que tanto remete para Dreyer como para
Straub, para Oliveira ou Bresson, é exactamente a
“chave” que extirpa de Raiva todas as armadilhas
visíveis do melodrama da desgraça e da humilhação.
No modo hierático, quase mártir, como Tréfaut filma a
queda da família de António Palma, tudo se transforma
numa via sacra de tragédia grega misturada de western
alentejano: os espantosos 15 minutos iniciais são um
cerco que John Ford não desdenharia, para depois
“cortar” para genérico e voltar atrás, ao “princípio” da
história, e fazer ferver a panela até a pressão explodir.

Evitando habilmente quer o lacrimejante pegajoso quer


o didactismo activista, Tréfaut constrói um filme com o
seu quê de mistério medieval actualizado na sua pureza
cristalina de Bem contra Mal; rodado com um mínimo
de efeitos e cenários e valorizado pelo magistral preto e
branco de Acácio de Almeida, parece inscrever-se na
linhagem de arte povera de alguns Rossellini ou Pasolini
mas também do Silvestre de João César Monteiro. É
possível falar da pobreza e da miséria, de ontem como
de hoje, sem cair no miserabilista ou no piedoso; basta
ter um rosto e uma presença como a de Hugo Bentes
(que ninguém diria nunca ter representado) e uma
precisão maníaca quanto ao que se quer fazer. Raiva é
Sérgio Tréfaut a fazer uma ficção onde um
documentário seria impossível, mas com uma mesma
batalha – a da dignidade – a travar.

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