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Terra Brasilis (Nova Série)

Revista da Rede Brasileira de História da Geografia e


Geografia Histórica
2 | 2013
Historiografia da história da geografia

A Geografia Histórica e as formas de apreensão do


tempo
La geografía histórica y las formas de aprehensión del tiempo
Géographie historique et les formes d'appréhension du temps
Historical geography and the forms of apprehension of time

Paulo Roberto Teixeira de Godoy

Publisher:
Laboratório de Geografia Política -
Universidade de São Paulo, Rede Brasileira
Electronic version de História da Geografia e Geografia
URL: http://terrabrasilis.revues.org/767 Histórica
DOI: 10.4000/terrabrasilis.767
ISSN: 2316-7793

Electronic reference
Paulo Roberto Teixeira de Godoy, « A Geografia Histórica e as formas de apreensão do tempo », Terra
Brasilis (Nova Série) [Online], 2 | 2013, posto online no dia 21 Junho 2013, consultado o 30 Setembro
2016. URL : http://terrabrasilis.revues.org/767 ; DOI : 10.4000/terrabrasilis.767

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© Rede Brasileira de História da Geografia e Geografia Histórica


A Geografia Histórica e as formas de apreensão do tempo 1

A Geografia Histórica e as formas de


apreensão do tempo
La geografía histórica y las formas de aprehensión del tiempo
Géographie historique et les formes d'appréhension du temps
Historical geography and the forms of apprehension of time

Paulo Roberto Teixeira de Godoy

Introdução
1 A relação entre Geografia e História se intensificou a partir do século XVIII. A
identificação dos topônimos antigos e a descrição do teatro dos acontecimentos humanos
eram as principais contribuições da geografia à história (CAPEL, 1981). A preocupação da
Geografia com a História cresceu à medida que o passado se transformou em chave do
conhecimento para projetar o devir da natureza e do homem. Na Alemanha, sob
influência de Herder e Hegel, K. Ritter atribuiu à História um peso decisivo em suas
análises geográficas e proposições de cunho pedagógico. Na França, a relação entre
Geografia e História chegou ao ponto de, em meados do século XX, criar uma verdadeira
escola de geógrafos e historiadores: a geo-história.
2 Se, por volta dos anos 1970, a concepção de tempo na Geografia Histórica francesa estava
assentada na tradição braudeliana da “longa duração” e, consequentemente, na definição
dos temas e dos períodos de estudo; nas últimas décadas, os recortes temporais, com
menor recuo em relação ao presente, passaram a privilegiar a conjuntura, as instituições
e os eventos – a “curta duração” – do cotidiano. Nesse sentido, o conceito de tempo
histórico adquiriu novas tonalidades, libertou-se das estruturas monótonas da “longa
duração” e estendeu-se aos fragmentos da vida urbana e sua arqueologia urbanística.
Como diria Hartshorne (1978, p. 107), em Propósitos e Natureza da Geografia, “o presente aí
está, vivo e atuante, e nós somos capazes de aprender, com a observação direta dos fatos
essenciais de sua estrutura [...] medindo seu dinamismo”.

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A Geografia Histórica e as formas de apreensão do tempo 2

3 As formas de apreensão do tempo no campo da Geografia Histórica não se limitam às


temáticas específicas no interior desta disciplina, estão ligadas a leitos filosóficos
distintos e que tecem a diferenciação ideológica das dimensões prática e teórica das
categoriais de análise do tempo histórico e do espaço geográfico.

A história e a sobreposição de tempos geográficos


4 À concepção de que o espaço e o tempo são totalidades históricas e geográficas
produzidas no metabolismo sociedade-natureza (SANTOS, 1979) e, ao mesmo tempo,
veículos primários de representação das relações sociais (BOURDIEU, 1989), os conceitos
de espaço geográfico e tempo histórico tornam-se condições práticas e discursivas
essenciais à constituição do horizonte de interesses ideológicos das classes sociais.
Historicamente, o domínio científico e filosófico desses conceitos e das áreas do
conhecimento que os sistematizaram como objeto de estudo constituiu a condição
discursiva ineliminável aos intelectuais burgueses desde o século XIX.
5 Em Ratzel, a construção da temporalidade da relação homem-meio, cujo devir era o
Estado-nação e o domínio do “espaço vital”, fora interpretada em sua estreita conjugação
com a concepção orgânica difusionista, linear e eurocêntrica da história e com o lamento
em relação ao colapso da aristocracia e, ao mesmo tempo, com a consciente participação
política na formação do Estado territorial capitalista alemão. Por outro lado, a Geografia
Histórica francesa, durante as últimas décadas do século XIX, desenvolveu-se, segundo
Capel (1981), em um contexto político e acadêmico favorável às monografias regionais,
sobretudo ao assumir a função ideológica em defesa da ordem econômica e política
estabelecida pelo Estado imperialista francês. Como bem salientou Said (2011, p. 351), “o
imperialismo, afinal, é um gesto de violência geográfica por meio do qual praticamente
todo o espaço do mundo é explorado, mapeado e, por fim, submetido a controle”.
6 Os estudos de Auguste Longnon, Théophile Lavallée (ambos ligados a Escola Militar
francesa), Jules Sion e outros que acompanharam a tradição da geografia histórica dos
Estados, das fronteiras e das circunscrições administrativas versaram, principalmente,
acerca das formas de adaptação das atividades humanas ao meio físico a partir de uma
percpectiva histórica (FLATRÈS, 1974). As tradições e as paisagens do mundo rural francês
ganharam relevância nos estudos de geografia histórica à medida que o desenvolvimento
da economia nacional provocava a dissolução dos antigos laços regionais e os substituia
pela mediação do Estado em uma nova divisão do trabalho imposta pelo capital industrial.
Com efeito, a concepção geográfica do passado, revestida de iconografias e documentos
cartográficos e assentada em registros de fatos históricos, trazia, em sua genealogia
pedagógica, a construção da imagem do território nacional e do ideal identitário.
7 Para Lacoste, a Geografia Histórica, desde sua gênese, está profundamente ligada ao
exercício do poder e às formas de domínio territorial: “le passé des territoires est en effet
une question géopolitique de la plus grande importance, surtout s´il est controversé”
(1996, p. 6).
8 Se no início imperou a tradição de Tucídides, em que a história definia-se como o estudo
dos “fatos dignos de memória” (o que, em certa medida, confirma os estudos em
Geografia Histórica acerca dos Estados soberanos e fronteiras, das guerras militares,
povoamentos etc.), lentamente, na retaguarda das transformações geradas pelo
capitalismo industrial e as novas investidas na expansão colonial, os estudos

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monográficos passaram a se dirigir para o interior do território nacional e para uma


“geografia nacional”.
9 De acordo com Chesneaux (1995, p. 122),
cada povo, no nível do Estado-nação, procura se inserir na história mundial através
de seu perfil nacional original, afirmar sua identidade nacional no tempo longo.
Procura, por exemplo – e essa reivindicação foi invocada a propósito dos abusos do
quadripartismo histórico –, organizar seu próprio passado em função das
articulações essenciais de sua própria história.
10 Por meio dos fragmentos da paisagem rural, a Geografia Histórica francesa recriou o
tempo lento e cíclico da produção agrícola condicionado à natureza e entrelaçado no
ritmo das estações do ano e nas variações do relevo, do solo e do clima; o tempo, assim
visto, desacelera e transforma-se em uma estrutura espessa de “longa-duração”: o meio
geográfico. Caracterizada pela permanência, a história tornou-se passível à observação, e a
paisagem, síntese do tempo histórico e registro da projeção do passado, a revelação da
cultura material das civilizações.
11 Pitte (1996, p. 15) argumenta que tanto
L´histoire a eu longstemps pour fonction de légitimer et de glorifier les regimes
politiques sucessifs, mais aussi de former les princes et le elites en leur donnant à
réflechir sur les événements passés de la vie politique et militaire [...] Elle entre
beaucoup plus tard – au XIX siècle – dans la culture populaire, au moment où l´on
juge nécessaire d´éveiller l´intérêt général pour l´anventure coloniale et, après la
défait de 1870, de rapeller l´unité et indivisibilité de la France en même temps que
les historiens martèlent Le mythe de son éternité (grifo do autor).
12 Aprisionada no lugar, a história revela seu lado empírico, passível à observação e à
descrição, bem como à quantificação, à classificação e, finalmente, à comparação-
diferenciação e à síntese. O tempo, assim concebido, ao ritmo lento das estações do ano e
do calendário agrícola – condição do movimento dos homens e da divisão do trabalho –,
tornou-se o escultor da paisagem e do presente. Portanto, uma representação ideal das
práticas sociais. Trata-se de um recorte da paisagem como forma de apreensão vertical do
tempo, cujos fatos, em sucessão cronológica e circunscritos à escala geográfica dos
eventos em seus contextos regionais, obedeciam a certas condições colocadas ora pelo
temário eleito pela investigação em sua estreita relação com o mundo rural ora pelos
“critérios metodológicos”. Estes últimos, referenciados pela intenção de fidelidade aos
documentos cartográficos, censos e arquivos históricos, e aparentemente blindados pelo
realismo pragmático das técnicas de pesquisa, expõem, de modo mais substantivo, as
formas de apreensão do tempo pela Geografia Histórica e seu quadro de representação
das práticas sociais.
13 Em suma, podemos apresentar um quadro das influências que se manifestaram na
evolução do campo de interesse da Geografia Histórica na França e na Alemanha durante
os séculos XVIII e XIX sob três tipos de influências: a primeira, abordando a reconstrução
da paisagem a partir da descrição detalhada da geografia de uma região em um dado
momento do passado, filia-se metodologicamente ao empirismo e à concepção
memorialista e fatual da história; a segunda, associada à noção de “paisagem histórica” (
landschaftskunde) e fortemente influenciada pelo romantismo alemão, define a paisagem
como uma entidade orgânica em evolução, a paisagem regional apresenta-se como
produto da totalidade – social, política e natural – e é determinada por distintas ordens
(naturais e transcendentais) geradas pelo próprio processo de mudança e
desenvolvimento histórico; a terceira, associada à concepção de uma história “teológica-

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teleológica” e, ao mesmo tempo, a de uma interpretação histórica da paisagem a partir do


evolucionismo darwiniano, filia-se às concepções de K. Ritter e F. Ratzel, respectivamente
(BASSIN; BERDOULAY, 2004, p. 293-295).
14 A complicação de base metodológica da Geografia durante o século XIX, e,
particularmente, na Geografia Histórica, estava em harmonizar as abordagens empíricas,
idiográficas e de síntese com as abordagens racionais, teóricas, universais (nomotéticas) e
analíticas. Somente nas primeiras décadas do século XX, a Geografia Histórica passou a
ganhar contornos mais nítidos e definir sua perspectiva teórica de investigação.
15 Uma das definições de geografia histórica que ganhou relevo na década de 1930 foi
colocada por E. W. Gilbert (1932): “la vraie fonction de la géographie historique est de
reconstruire la géographie régionale du passé” (GILBERT apud BASSIN; BERDOULAY, 2004,
p. 296).

Periodização: breves considerações


16 As formas de divisão do tempo histórico em idades, períodos, épocas etc. sempre fizeram
parte dos esforços de organização dos conhecimentos históricos adquiridos e
transmitidos. Essa divisão, imbutida na historiografia e na concepção de tempo, teve
como consequência a setorização da história, que tornou possível os recortes temporais.
Para Novais (2005, p. 160), “as dificuldades nascem do fato de que, setorizando, é de certo
modo possível (ou pelo menos aparentemente possível) encontrar critérios de
periodização; [...] tentando apanhar o conjunto, parece impossível fixar critérios para os
cortes temporais”.
17 Jean Bodin, por exemplo, elaborou uma divisão tripartite da história da humanidade:
Antiguidade Clássica, Idade Média e Tempos Modernos. Seguindo a tradição desde Jean
Bodin, como argumenta Baliñas (1965, p. 25):
La ordenación histórica no es uma mera sucesión cronológica, en virtud de la cual
se podría hacer corresponder un número ordinal a cada punto de vista y a cada
forma de potencia de lo real correlativamente. En primer lugar, el tiempo es
irreversible. [...] En segundo lugar, cada momento es cualitativamente insustituíble
[...]. En tercer lugar, cada situación histórica viene de las demás anteriore, y éstas
quedan implicadas en ellas.
18 Outro fenômeno francês refere-se ao quadripartismo histórico – Antiga, Média, Moderna
e Contemporânea –, que, para Chesneaux (1995, p. 93), “cumpre certo número de funções
precisas [pedagógica, intelectual, ideológica e política], ao mesmo tempo no nível das
instituições universitárias e no nível da ideologia. Desempenha o papel de um verdadeiro
aparelho de Estado”.
19 De acordo com Rodrigues (1969, p. 114), as periodizações visam a apreender as
“transformações e os nexos efetivos que as ligam como a um todo. São justamente esses
nexos que se prestam à análise histórica e devem ser dispostos em cortes ou períodos que
comportariam as tendências dominantes e que logo caracterizariam uma época” (grifos do
autor).
20 Especializadas em analisar, avaliar e definir o que é o espaço geográfico e o tempo
histórico, a História e a Geografia tornaram-se, em fins do século XIX, as expressões do
crescente domínio científico e filosófico acerca da representação do tempo e do espaço e,

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em certa medida, da função social da ideologia do pensamento geográfico na construção


do ideário progressista do Estado nacional.
21 Com a Escola dos Annales, a representação do tempo histórico conheceu alterações mais
profundas e duradouras, bem como a forma de periodização. Em paralelo com a Geografia
Histórica do século XIX, houve primeiramente uma mudança substancial nos temas de
estudos. Dos antigos temas ligados ao poder político dos Estados imperialistas, com a nova
orientação dos Annales passou-se ao estudo de temas relacionados à economia e à cultura
material. A ênfase na periodização recai sobre a temática definida a priori por um
problema ou uma situação histórico-geográfica e as monografias circulam no interior de
uma mesma estrutura de modo que o tempo possa ser pensado conceitualmente. Segundo
Reis (1994, p. 24), “a periodização não se relaciona mais à história universal [...] não
estuda épocas, mas estruturas particulares. É sempre [...] uma história circunscrita no
tempo e no espaço”.
22 O conceito de tempo histórico subjacente à descrição da paisagem e ligado à tradição
memorialista da Geografia Histórica do século XIX ignorou em certa medida a
periodização tradicional do quadripartismo histórico (Antiga, Média, Moderna e
Contemporânea), aproximando-se das concepções literárias e artísticas e, com efeito,
privilegiando os recortes temporais mais específicos e estritamente ligados ao tema de
estudo e seu contexto. Na literatura, por exemplo, “importa pouco que nas introduções de
cada período se façam maiores ou menores referências à época, à situação histórica”
(NOVAIS, 2005, p. 158). Ela constrói as temporalidades segundo a variação de ritmos de
seu próprio objeto de estudo.
23 A forma de periodização que predominou na Geografia Histórica durante o século XIX,
decorrente da concepção memorialista e fatual da história, privilegiou a descrição
sincrônica dos fatos e lugares que glorificavam a ação do Estado, do exército nacional e,
ao mesmo tempo, das tradições do mundo rural, de suas técnicas e seu habitat. O
território nacional, bem como uma urdidura tecida pelo tempo e cravejada por “fatos
dignos de memória”, refletia, em sobreposição, as imagens idílicas do Estado-nação.
24 Com efeito, as formas de periodização constituem, assim, tanto as representações do
tempo como as metodologias de apreensão das dimensões sociais do tempo. Porém, como
argumenta Novais (2005, p. 160-161),
ao fixar determinada dimensão – a vida econômica, por exemplo – é até certo ponto
possível, sob certas condições, estabelecer determinadas configurações (sistemas
econômicos, tipos de economia e etc.), que abrem caminho para uma periodização
[...] As várias periodizações, entretanto, não coincidem, uma vez que parecem
obedecer a ritmos diferentes.
25 A partir da década de 1920, o debate teórico nas ciências sociais, sobretudo na História e
na Sociologia, passou a direcionar-se para os problemas do presente, colocados,
sobretudo, pelo contexto do pós-Primeira Guerra, provocando, por conseguinte,
mudanças epistemológicas na historiografia francesa e, portanto, na referência de
inspiração dos conceitos de espaço e tempo e seus critérios de periodização. A concepção
de tempo cíclico, herdada da tradição grega iniciada com Tucídides e Cícero, passando por
J. Bodin, Montaigne, Voltaire, Diderot etc., em claudicante resistência ao processo de
transformação social pelo qual atravessava a França e a Europa no século XIX, só foi
questionada e substituída no período entre-guerras, quando Lucien Febvre, Marc Bloch e
Roger Dion construíram uma versão moderna de Heródoto, em os Annales.

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A Geografia Histórica e as formas de apreensão do


tempo
A geografia é o meio por excelência
para diminuir a velocidade da história.
(Braudel, 1984)
26 Em Heródoto, o tempo se faz pelo movimento dos homens. A história ganha uma
temporalidade humana – os homens no tempo –, sua finitude, valores e experiências em
uma historicidade cujo tempo é irreversível. Heródoto realizou, como argumenta Reis
(1994, p. 56), “uma mudança epistemológica substancial: ele quer acompanhar os homens
em suas mudanças e realizar a sua descrição e análise – o homem é um ser basicamente
temporal, finito, instável, histórico”.
27 Nos anos trinta, Lucien Febvre, em plena campanha pela renovação da historiografia
francesa, “convida o historiador a inspirar-se nos problemas colocados pelo tempo
presente, no qual ele vive, pensa e escreve”. E M. Bloch, seguindo os ensinamentos de La
Blache, apontou o caminho: o “historiador parte das paisagens contemporâneas para
remontar até o passado” (DOSSE, 1992, p. 67-68). Nesse sentido, como interpretado por
Lefort, o clima tornou-se o principal artesão da paisagem. Dele, dependem a circulação
dos portos, as colheitas agrícolas e os movimentos das rotas terrestres. O tempo lento das
permanências só sinaliza mudanças quando em cena entram as cidades.
28 Para os historiadores dos Annales o tempo é duração (“longa duração”), estrutura que
contém conjunturas de média duração e eventos de curta duração – a dialética da duração,
como argumentou Bachelard, antes de Braudel. A história como sobreposição de
temporalidades (meio geográfico, instituições, mentalidades etc.) que se organizam
segundo a variação de seus ritmos, articulando o espaço geográfico das permanências aos
movimentos conjunturais e de curta duração.
29 A concepção de tempo histórico, ponto crucial de diferenciação entre os métodos da
historiografia e, portanto, da geo-história (neologismo que define a démarche braudeliana),
não está fechada em si mesma. O tempo espacializado na paisagem, como queria Bloch,
revela o passado em sua forma objetiva, particular, material e irreversível. “A história é
então decomposta em planos sobrepostos, ordenados segundo a variação de seus ritmos”
(DUTRA, 2003, p. 58). Com esta concepção de tempo histórico, os Annales orientaram a
práxis social e a produção do conhecimento como atividades inteiramente distintas. A
construção da pluralidade dos tempos “nos ajudam [como argumenta Wallerstein] a
organizar a realidade social quanto impõem constrangimentos à ação social” (2003, p. 75).
Em síntese, como bem colocou Chesneaux, a “seta do tempo cravada no presente faz do
passado a sua tábula rasa nas ações do cotidiano” (1995, p. 56).

Considerações finais
30 As breves considerações apresentadas acima evidenciam rupturas e continuidades em
relação às formas de apreensão do tempo histórico pela geografia. Podemos, com isso,
destacar dois momentos distintos em sua trajetória: a segunda metade do século XIX e o
início da década de 1970 (ROBIC, 2006). Resumidamente, no primeiro momento,
caracterizada pela concepção memorialista e teleológica da história e,

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metodologicamente, pelo recorte vertical do tempo e pelo variado ritmo de seu objeto, a
Geografia Histórica primou por temas eminentemente de caráter político e cultural. No
segundo momento, contra a abordagem teleológica, privilegiando a natureza estrutural
do tempo histórico e sob o paradigma da geo-história, os temas de estudos, longe da vida
política, centraram-se, sobretudo, na economia e na cultura material.
31 A superação epistemológica da geo-história em relação à geografia histórica tradicional se
consolidou em função de essa última ter produzido uma nova representação do tempo
histórico e do espaço geográfico. Além disso, por ter a estrutura como ponto de partida,
combateu a visão tradicional da geografia descritiva, ilustrada e enciclopédica e ampliou,
a partir da geografia vidaliana, da história serial de Labrousse e da antropologia de Lévi-
Strauss, a dimensão dos temas de investigação que, em certa medida, estreitaram os laços
teóricos entre as ciências sociais e a história. Contudo, como bem salienta Dutra (2003,
69), mesmo com a aparente homogeneidade de alguns momentos parciais da concepção
de espaço e tempo, “é o triunfo da heterogeneidade que prevalece [...] contra uma
ontologia cientificista”.
32 A apreensão do tempo e do espaço e sua representação em temporalidades distintas e
articuladas sob o signo da geo-história consolidaram, em certa medida, a definição de
geografia histórica bem como o leque temático e as metodologias de pesquisa. A “longa
duração” forneceu, portanto, a base sobre a qual a historicidade do “passado do
território” pode, finalmente, ser integrada dialeticamente aos movimentos do presente.

BIBLIOGRAPHY
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In: LOPES, M. A. (Org.). Fernand Braudel: tempo e história. Capítulo 5. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2003, p. 71-80.

ABSTRACTS
As formas de representação do tempo e sua função ideológica constituem aspectos de um único
problema que, durante as décadas de 1950 e 1960, esteve no centro do debate entre historiadores,
geógrafos e sociólogos franceses: o conceito de tempo histórico. As reflexões aqui apresentadas
são aproximações do tema e estão ainda em estágio inicial de estudo. As formas de apreensão e
representação do tempo presentes na geografia clássica francesa no final do século XIX
constituem o ponto de partida da análise sobre as heranças da concepção memorialista de
história e do momento de transição, no período entre-guerras, para a concepção estrutural do
tempo sob influência da escola dos Annales.

Las formas de representación del tiempo y su función ideológica son aspectos de un único
problema que, durante las décadas de 1950 y 1960, fue el eje del debate entre historiadores,
geógrafos y sociólogos franceses: el concepto de tiempo histórico. Los pensamientos presentados
aquí son aproximaciones del tema y aún esté en la etapa inicial del estudio. Las formas de
aprehensión y representación del tiempo presente en geografía clásica francesa a finales del siglo
XIX constituyen el punto de partida del análisis sobre los legados del diseño memorista de
historia y del momento de transición, en el período de entreguerras, para el diseño estructural
del tiempo bajo la influencia de la escuela de los Annales.

Les façons de représentation du temps et de sa fonction idéologique constituent les aspects à un


seule problème que pendant les années 1950 et 1960 a été dans le centre de discussion entre

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historiens, géographes et sociologues français : le concept du temps historique. Les réflexions


présentés dans ce travail sont encore des approximations sur le sujet, parce que cette étude est
encore dans l'étape initial. Les façons d’appréhension et de représentation du temps présent dans
la géographie classique française à la fin du XIXe siècle constituent le point de déclenchement de
notre analyse sur l’héritage de la conception mémorialiste de l'histoire et du moment de
transition, dans la période entre les deux guerres mondiales, pour la conception structurelle du
temps sous l'influence de l'école des Annales.

The forms of representation of time and its ideological function are aspects of a single problem
that was at the center of debate among French historians, geographers and sociologists during
the 1950s and 1960s: the concept of historical time. The reflections presented here are
approximations on the issue, and are still in the early stages of study. The forms of perception
and representation of time, present in the classic French geography from the late nineteenth
century, are the starting point of the analysis on the legacy of the memorialist conception of
history and of the transition moment (in the interwar period) to the structural conception of
time under the influence of the Annales School.

INDEX
Mots-clés: temps historique, périodisation, école des Annales
Keywords: historical time, periodization, Annales School
Palabras claves: tiempo histórico, periodización, escuela de los Annales
Palavras-chave: tempo histórico, periodização, escola dos Annales

AUTHOR
PAULO ROBERTO TEIXEIRA DE GODOY
Unesp/Rio Claro
Depto. de Geografia
prtg@rc.unesp.br

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