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Doutrina
INTRODUÇÃO AOS PRINCÍPIOS GERAIS DO
DIREITO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO*
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

Sumário: 1. Introdução; 2. Princípios relativos aos Sistemas Processuais: inquisitivo e dispositivo; 3.Prin
cípios relativos à Jurisdição: 3.1. Princípio da Imparcialidade, 3.2. Princípio do Juiz Natural, 3.3. Princípio da
Indeclinabilidade, 3.4. Princípio da Inércia da Jurisdição; 4.Princípios relativos à Ação: 4.1. Princípio da Ofjci-
alidade, 4.2. Princípio da Obrigatoriedade (Legalidade); 5. Princípios relativos ao Processo: 5.1. Princípio do
Contraditório, 5.2. Princípio daVerdade Material, 5.3. Princípio doLivre Convencimento.

1. Introdução não podeser olvidado mas que, agora, não há como


desvendar, na estreiteza desta singela investigação.
Não obstante, sempre se teve presente que há algo
Como é elementar, o estudo dos princípios que as palavras não expressam; não conseguem di
gerais do Direito Processual Penal é o que fornecerá zer, isto é, há sempre um antes do primeiro momen
a base para uma compreensão sistemática da matéria; to; umlugar queé, masdo qualnadase sabe, a não
e aí transcende a sua importância. ser depois, quando a linguagem começa afazer sen
A par de se poder pensar em princípio (do tido. Nesta parca dimensão, o mito pode ser tomado
latim, principium) como sendo início,origem,causa, como a palavra que é dita, para dar sentido, no
gênese, aqui é conveniente pensá-lo(s) como motivo lugar daquilo que, emsendo, não pode ser dito. Daí
conceituai sobre o(s) qualfais) funda-se a teoria o big-bang2 à física moderna; Deus à teologia; o pai
geral do processo penal; pode/tdo estar positivado primevo a Freud c à psicanálise; a Qrundnorm a
(na lei) ou não. * Kelsen e um mundo de juristas, só para ter-se alguns
Por evidente, falar de motivo conceituai, na exemplos.
aparência, é não dizer nada, dada a ausência de um O importante, sem embargo, é que, seja na
'referencial semântico perceptível aos sentidos. Mas ciência, seja na teoria, no principium está um mito;
quem disse que se necessita, sempre, pelos signifi- sempre! Só isso, por sinal, já seria suficiente para
cantes, dar conta dos significados? Ora, nessa impos retirar, dos impertinentes legalistas3, a muleta com a
sibilidade é que se aninha a nossa humanidade, não qual querem, em geral, sustentar, a qualquer preço, a
raro despedaçada pela arrogância, sempre imaginá segurança jurídica, só possível no imaginário, por
ria, de ser o homem o senhor absoluto do circundan- elementaro lugar do logro, do engano, como disse
te; e sua razão o summum do seu ser. Ledo engano!; Lacan; e aí está o direito4. Para espaços mal-
embora não seja, definitivamente, o caso de desistir- resolvidos nas pessoas - c veja-se que o individual
se de seguir lutando para tentar dar conta, o que, se está aqui e, portanto, todos -, o melhor continua sen
não servisse para nada,serviriapara justificaro moti do a terapia, que se há de preferiràs investidas maro-
vo de seguir vivendo, o que não é pouco, diga-se en tass que, usando por desculpa o jurídico, investem
passant. contra uma, algumas, dezenas, milhares, milhões de
De qualquersorte, não se deve desconhecer pessoas.
que dizer motivo conceituai, aqui, é dizer mito', ou Poroutro lado• e para nós isso é fundamen
seja, no mínimo abrir um campo de discussão que tal-, depois do mito háquese pensar, necessariamen^
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te, no rito. Já se passa para outra dimensão, de vital da prova,na forma pela qual ela é realizada, identifi
importância, mormente quando em jogo estão ques ca o princípio unificador.
tão referentes ao Direito Processual e, em especial, Com efeito, pode-se dizer que o sistema
aquele Processual Penal. inquisitório, regido pelo princípio inquisitivo, tem
O papel dos princípios, portanto, transcende comoprincipal característica a extrema concentração
a mera análise que se acostumou fazer nas Faculda de poder nas mãos do órgãojulgador, o qual detém a
des, pressupondo-sc um conhecimento que se não gestão daprova. Aqui, o acusado é mero objeto de
tem, de regra; e a categoria acabasolta,desgarrada, investigação e tido como o detentor da verdade de
com uma característica assaz interessante: os opera umcrime, daqualdeverá dar contas ao inquisidor.
dores do direito sabem da sua importância mas, não Nestesentido, "Acaracterística fundamental do
raro, não têm preciso o seu sentido, o que dificulta sistema inquisitório, emverdade, está na gestão da pro
sobremaneira o manejo. O problema maior, neste va, confiada essencialmente ao magistrado que, em ge
passo, é seu efeito alienante, altamente perigoso ral, no modeloem análise,recolhe-asecretamente, sendo
quando em jogo estão valores fundamentais como a que 'a vantagem (aparente) de uma tal estruturaresidi
vida, só para ter-se um exemplo. Por conta disso é riaemqueo juizpoderia mais fácil e amplamente infor
que se mostra feliz a assertiva lançada por Jorge de mar-se sobre a verdade dosfactos - de todos osfactos
Figueiredo Dias: "são estes «princípios gerais do penalmente relevantes, mesmo quenãocontidos na acu
processo penal» que dão sentido à multidão das sação -, dado o seu domínio único e omnipotente do
normas, orientação ao legisladore permitem à dog processo em qualquer das suas fases7.' Como refere
mática não apenas «explicar», mas verdadeira Foucault, com razão, 'ele constituía, sozinho, e com
mentecompreender os problemas do direito proces pleno poder, uma verdadecom a qual investia o acusa
sual e caminhar com segurança ao encontro da sua do'.*».
solução6". No sistema acusalório, o processo continua
Assim, para conhecer-seaqueles tidos como sendo um instrumento de descoberta de uma verdade
fundamentais, faz-se necessário começar analisando histórica. Entretanto, considerando que a gestão da
os princípios referentes à organização dos sistemas prova está nas mãos das partes, o juiz dirá, com base
processuais e, em seguida, aqueles tidos como bases exclusivamente nessas provas, o direito a ser aplica
estruturais da trilogia do Direito Processual Penal: do no caso concreto (o que os ingleses chamam de
ação, jurisdição e processo. judge made law). Aliás, "O processo penal inglês,
assim, dentro do common law, nasce como um au
têntico processo de partes, diverso daquele antes
2. Princípios relativos aos Sistemas Pro existente. Na essência, o contraditório é pleno; e o
cessuais:inquisitivo e dispositivo juiz estatal estáemposição passiva, sempre longe da
colheita da prova. O processo, destarte, surgecomo
O estudo dos princípios inquisitivo e dispo uma disputa entre as partes que, em local público
sitivo nos remete de plano à noção de sistema pro (inclusive praças), argumentavam perante o júri, o
cessual. qual, enquanto sociedade, dizia a verdade, vere dic-
Por elementar, os diversos ramos do Direito lum. É elementar que um processo calcado em tal
podem ser organizados a partir de uma idéia básica base estruturasse umacultura processualmais arre-
de sistema: conjunto de temas colocados emrelação dia a manipulações, mormente porque o réu, antes
por um princípio unificador, que formam um todo de ser umacusado, é umcidadão e, portanto, senhor
pretensamente orgânico, destinado a uma determina de direitos inafastáveis e respeitados. Por isto.
da finalidade. 'incentivado pela ideologia liberalque se desprende
Assim, para a devida compreensão do Direi já da Magna Charta Libertatum de João-sem-Terra
to Processual Penal é fundamental o estudo dos siste (1215) e acentuado sobretudo pelo Bill of Rights
mas processuais, quais sejam,inquisitório e acusató- (1689) e pelo Act of Settlement (1701), ele ganha o
rio, regidos, respectivamente, pelos referidos princí seu maior e vivaz florescimento, a ponto de ainda
piosinquisitivo e dispositivo. hoje se manter aí essencialmente imodificado''0. A
Destarte, a diferenciação destes dois siste par da gestão da prova nãoestar nas mãosdos jui
mas processuais faz-se através de tais princípios zes, mas ser confiada às partes - aqui existentes na
unificadores, determinados pelo critério de gestão da sua concepção mais radical -, outras características
prova. Ora. se o processo tem por finalidade, entre dão aosistema acusalório uma visão distinta daque
outras, a reconstituição de um fato pretérito, o crime, le inquisitorial. Deste modo, com Barreiros", é pos
mormente através da instrução probatória, a gestão sível referir que o órgão julgador é uma Assembléia

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ou jurados populares (Júri); que há igualdade das ocorre a preclusãodas vias impugnativas, em face do
partes e o juiz (estatal) é árbitro, sem iniciação de transcurso do prazo recursal, o que é típico da coisa
investigação; que a acusação nos delitos públicos é julgada (res iudicata) e notacaracterística da função
desencadeada por ação popular, ao passo que nos jurisdicional processual.
delitos privados a atribuição é do ofendido, mas Não é demais lembrar, também, em tempos
nunca é pública; que o processo é, por excelência e de neoliberalismo e Estado mínimo (aos quaisé pre
obviamente, oral, público e contraditório; que a ciso resistircom todas as forças e uma racionalidade
prova é avaliada dentro da livre convicção; que a que não se deixe enganar pelo câmbio epistemológi-
sentença passa em julgado e, por fim, que a liberda co fundado por Hayek e calcado no eficientismo das
de do acusado é a regra, antes da condenação, até ações), que a jurisdição, a par de ser um poder - e
parapoderdar conta daprova a serproduzida"". como tal deve ser estudado com proficiência -, é uma
Finalmente, diante da breve análise dos garantia constitucional do cidadão, da qual não se
sistemas processuais e dos princípios que os estrutu pode abrir mão. As críticas, neste raio, por evidente
ram, pode-se concluir que o sistema processualpe que são bem-vindas, porquese há de pensar, sempre,
nal brasileiro é, na essência, inquisitório, porque em um aprimoramento do poder e dos órgãos que o
regido pelo princípio inquisitivo, já que a gestão da exercem. Haverão de ser, portanto, construtivas. Não
prova está, primordialmente, nas mãos do juiz, o que é, porém, o que se tem visto; e com freqüência. In
é imprescindível paraa compreensão do Direito Pro cautos e insipientes lançam-se na aventura eficientis-
cessual Penal vigente no Brasil. No entanto, como é ta e minimalista, de cariz eminentemente economi-
primário, não há mais sistema processual puro, razão cista,donde fazem um ataque desarrazoado àjurisdi
pela qual tem-se, todos, como sistemas mistos. Não ção, em geral buscando suprimi-la, em largos espa
obstante, não é preciso grande esforço para entender ços, quando não os mais importantes para, quem
que não há - e nem pode haver - um princípio misto, sabe, reservar-lhe as questões menores. A hipótese é
o que, por evidente, desfigura o dito sistema. Assim, absurda. Em definitivo, não há democracia, neste
paraentendê-lo, faz-se mister observaro fato de que, país, sem a regra do art. 5o, XXXV, da CF: "a lei
ser misto significa ser, na essência, inquisitório ou não excluirá da apreciação do Poder Judiciário
acusatório, recebendo a referida adjetivação porcon lesão ou ameaça a direito."
ta dos elementos (todos secundários), que de um
sistema são emprestados ao outro. É o caso, por 3.1. Princípio da Imparcialidade
exemplo, do processo comportar a existência de Tal matéria analisamos em "O papel do
partes, o que para muitos, entre nós, faz o sistema novo juiz no processo penal", trabalho originaria-
tornar-se acusatório. No entanto, o argumento não é mente preparado e em parte apresentado no Seminá
feliz, o que se percebe poruma breve avaliação his rio Nacional sobre Uso Alternativo do Direito, even
tórica: quiçáo maiormonumentoinquisitório fora da to comemorativo do sesquicentenário do Instituto
Igreja tenha sido as Ordonnance Criminelle (1670), dos Advogados Brasileiros, Rio de Janeiro, 7 a 9 de
de Luís XIV, em França; mas mantinha um processo junho de 1993,o qual aqui se adota, em vista da sua
que comportava partes. singularidade:
"Problema de essência que se enfrenta no
âmbito do direito é o que se refere à neutralidade e
3. Princípios relativosà Jurisdição imparcialidade do juiz. Para que se possa analisar
convenientemente esta questão, faz-se necessário
Primeiramente, faz-se mister estudar os buscar elementos basilares de crítica no arsenal
princípios que dizem com a jurisdição, tomada no teórico da epistemologia.
sentido chiovendiano, a qual é premissa lógica ao Durante determinado período da históriado
exercício da ação. pensamento, acreditou-se que era possível ao ho
É importante frisar, para não deixar dúvida, mem, enquanto sujeito cognoscente, anular-se com
que diz ela, na essência, com o poder estatal, no pletamente nas relaçõesde conhecimento. Com isto,
caso, de dizer o direito: dicere ius; iuris dictio. Diz- procurava-se obterumtipo de saberquenãoestives
se o direito acertando-se os casos penais de forma se eivado de qualquer imperfeição humana. Daí o
definitiva, isto é, na medida daquilo que lhe é levado método perfeito para a consecução deste desiderato,
pelo auton thema decidendum. Faz-se uma opção, de proposto pelo empirismo. Para este, 'o método con
regra condenando-se ou absolvendo-se, tudo de siste em um conjunto de procedimentos que por si
modo a que a decisão ganhe estabilidade, dada a mesmos garantem a cientificidade das teorias elabo
qualidade de imutabilidade que a alcança quando radas sobre o real. Como o sujeito se limitaria a

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captar o objeto, essa captação seria tanto mais efi trium personarum: iudicis, actoris et rei, mas agora
caz e neutra quanto mais preciso e rigorosofosse o com outra conotação em decorrência das mudanças
método utilizado'11. Assim, a elaboração científica se do discurso no desenvolver histórico.
limitaria ao cumprimento rigoroso de certas técnicas Corolário desta concepção, que chega até
preestabelecidas, que conteriam o poder quasemira os dias atuais, é o de que o juiz constitui-se um ór
culoso de conferir cientificidade aos conhecimentos gão super et interpartes ou, em outra acepção, super
elaborados através delas. omnia, como supracitado.
A busca desta neutralidade do sujeito tinha Sabe-se que, com esta visão, o que se pre
alguns motivos determinantes: Io, a crença em uma tende é a preservação da idéia do juiz como um ór
razão que tivesse validade universal, servindo de gão neutro e imparcial, que por não ter interesse
paradigma para todos (crença esta que, de certa direto no caso, tutelaria a igualdade das partes no
forma, seguiutodo o pensamento da históriamoder processo. Com isto, estar-se-ia buscando a manuten
na no Ocidente, desde o discurso da Igreja - por ção do seu escopo último: a pacificaçãodos confli
influências platônicas -, passando pelo pensamento tosdeinteresses e ajustiça15.
de Descartes, Bacon, Kant, até chegar em Augusto Cabe indagar, entretanto, até que ponto essa
Comte); 2o, a necessidade de legitimar o discurso do neutralidade e imparcialidade são reais?Qualo interes
Estado moderno nascente, que vinhafalar em nome se em mantervivas,como estão, essas categorias?
de toda'a nação, uma vez que os sujeitos da história Há quem afirme que o judiciário só existe
passaram a ser 'iguais' e não era mais possível sus porque é imparcial e sujeito à lei e que a justiça
tentar os privilégios do clero e da nobreza: o Estado consiste em um método de decisões imparciais. Cum
agora é de todos e, finalmente; 3o, a urgência em pre salientar, entretanto, que, não obstante a possi
ocultar que os interesses do Estado, ao contrário do bilidade de se vislumbrar certa importância neste
que se acreditava, eram de classes; e não do povo tipo de afirmação, principalmente no plano de uma
como um todo14. dogmática processual em que a atividade do Estado
Tais necessidades e crenças não apenas é substitutiva,faz-se necessária uma tomada de posi
fazem estrada na instância da história moderna, cionamento crítico emrelação a ela16.
comoacompanham todo o discurso científico e filo A época de aceitar os discursos universalis-
sófico da época e, de conseqüência, o jurídico. tas, com o devido respeito de quem possa pensar o
Assim, por mais que muitos soubessem que contrário, passou. O Estado se desenvolveu. Os
geralmente se tratava de umafarsa - não obstante a sujeitos renovaram suas necessidades e interesses e
importância histórica do seu discurso e até alguns agora, ao contrário do que já se sustentou, sabem
avanços materiais -, passaram os juristas ejusfilóso- que são capazes de construir sua história, social e
fos a pensar em termos de igualdade jurídica: todos pessoal. Em outras palavras: os sujeitos vão toman
são iguais perante a lei. E o Estado, enquanto per do consciência de que podem construir seu mundo,
tencente a todos (mas ao mesmo tempo sem perten traçar certos projetos e mudar o rumo da história
cer a ninguém),deveria assegurar tal igualdade. Isto para o vetor que optarem, de acordo com as esco
se reflete no discurso dos civilistas, penalistas e, até lhas axiológicas que tomarem por referência.
mesmo, no incipiente desenvolvimento do direito Não por outro motivo as epistemologias
processual que começava a ganharforos de autono contemporâneas, principalmente as críticas, vêem o
mia em relação ao direito material. sujeitodo conhecimento como umagente participati
Exemplo que reflete tal pensamento é a vo, construtor da realidade, que não tem mais moti
visão que se começa a ter sobre a ação e o processo. vos para escondersua ideologia e escolhasdiantedo
A ação não é mais um direito material violado que mundo17. Torna-se, então, insustentável a tese da
se põe em movimento, de cunho marcadamente indi neutralidadedo sujeito e vige, para todos os efeitos,
vidualista; e o processo não é mais sinônimo de a idéia dedialética daparticipação'8.
meros ritos. Passa-se a falar em um "interesse pú Assim, constata-se que todo conhecimento é
blico"na resolução dos conflitos. O Estado preocu histórico e dialético. Históricoporque é semprefruto
pa-se com a manutenção da igualdade e o papel do de determinado momento de uma certa sociedade.
juiz passa a ser mais efetivo na relação processual, Dialético porque, além de ser reflexo das condições
reforçando, com isto, aparentemente, a idéia de materiais de seu tempo, alua sobre esta materialida
Búlgaro do ludicium accipitur actus as minus trium de, alterando-a. Em outras palavras: todo saber é
personarum: actoris intendentis, rei intentionem condicionado e condicionante19.
evitantis, iudicis in médio cognoscentis, ou, na fór O saber enquanto elemento condicionado
mula sintética antes referida, ludicium est actus foi muito explorado pelas doutrinas marxianas, que

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viam osdiscursos científicos como meros reflexos da Em outras palavras: democracia - a come
materialidade social. Tal posicionamento não é de çar a processual - exige que ossujeitos se assumam
todo falso. Mas o que se tem que ter em mente é que ideologicamente. Por esta razão é que não se exige
os discursos, de modo geral, também atuam sobre a que o legislador, e de conseqüência o juiz, seja to
realidade, como já reconheceram Gramsci , Pou- mado completamente por neutro25, mas que procure,
lantzas2', entre outros. Oque se retira disto, inicial à vista dos resultados práticos do direito, assumir
mente, transportando tal pensamento para o direito, um compromisso efetivo com as reais aspirações das
é que ojuiz não é mero 'sujeito passivo' nas relações bases sociais26. Exige-se não mais a neutralidade,
de conhecimento. Como todosos outros sereshuma
mas a clara assunção de uma postura ideológica,
nos, também é construtor da realidade em que vive isto é, que sejam retiradas asmáscaras hipócritas
mos, e não mero aplicador de normas, exercendo dos discursos neutrais. o que começa pelo domínio
atividade simplesmente recognitiva. Além do mais, da dogmática, apreendida e construída na base da
como parece sintomático, ele, ao aplicar a lei, atua transdisciplinaridade .".
sobre a realidade, pelo menos, deduas maneiras: 1", Por fim, o princípio da imparcialidade funci
buscando reconstruir a verdadedos fatos no proces ona como umametaa ser atingida pelo juiz no exer
so e, 2". interpretando as regras jurídicas que serão cício da jurisdição, razão por que sebusca criar me
aplicadas a esse fato ou, em outras palavras, acer canismos capazes de garanti-la.
Desta forma, é forçoso reconhecer que a
tando o casoquelheé posto a resolver.
Não bastasse estasafirmações para afastar imparcialidade é uma garantia tanto para aquele que
o primado da neutralidade do juiz, urge reconhecer exerce ajurisdição, como para aquele que demanda
que odireito, de modo inegável, éideológico . Tute perante ela; mas não deixa de ser meta optata. Única
la nas suas regras interesses que podem facilmente coisa que se não pode aceitar, na espécie, é uma
ser identificados dentro de cada sociedade e que, visão ingênua, permissiva dos espíritos àmoda Pila-
muitas vezes, tomam caráter deocultação dos confli tos, que a tomam como algo dado por natureza
tos existentes no seu interior, ou seja, toma uma
(como evidente mecanismo de defesa) quando^em
dimensão alienante. Categorias lingüísticas genéri verdade, oque se passa é exatamente ocontrário .
cas como 'bem comum', 'interesse coletivo',
'democracia' e 'igualdade', por exemplo, mostram 3.2. Princípio doJuiz Natural
bem esta situação. Quantos denós não acredita que O princípio do juiz natural é expressão do
há uma efetiva igualdade de todos perante da lei; ou princípio da isonomia e também um pressuposto de
então que o Estado está sempre buscando o 'bem imparcialidade.
Komum'? Ora, isto é inescurecível discurso ideológi Vale salientar queeste princípio está vincu
lado ao pensamento iluminista e, conseqüentemente,
co.
De acordo com exaustiva produção teórica àRevolução Francesa. Como se sabe, com ela foram
de Norberto Bobbio", a democracia exige, sob um suprimidas as justiças senhoriais e todos passaram a
enfoque estritamente formal, uma prévia delimitação sersubmetidos aosmesmos tribunais.
Desta forma, vem à lumeo princípio dojuiz
das regras do jogo - e aqui não se pode negar a natural (oajuiz legal, como querem osalemães) com
contribuição do positivismo jurídico para uma noção o escopo de extinguir os privilégios das justiças se
de democracia que teve seu momento e importância
histórica -,ciente todos, salvo os ingênuos, daneces nhoriais (foro privilegiado), assim como afastar a
sidade da 'lei' à própria sobrevivência (melhor seria criação de tribunais de exceção, ditos ad hoc ou post
Lei, com maiúscula), como demonstra apsicanálise. factum.
Mas isto, a delimitação das regras, não Destarte, todos passam a ser julgados pelo
basta! Épreciso que sesaiba, para além dela, contra "seu" juiz, o qual encontra-se com sua competência
quem se está jogando equal oconteúdo ético eaxio- previamente estabelecida pela lei. ou seja, em uma
lógico do próprio jogo. Como referido no início, lei vigente antes da prática docrime.
alcançar tal patamar só é possível quando osagen Por outro lado, é preciso questionar arespei
tesem cena, nopalco social, assumem sua face ideo to da sua extensão, desde que sempre foi descurado
lógica. Não é possível jogar uma partida honesta ou noBrasil e, mais ainda, depois daConstituição Fede
justa contra quem se esconde sob máscaras tais ral de 1988, na qual seprocurou - e se fez!- estabele
como asde 'objetividade' ou 'neutralidade'. Até mes- cer regra (art. 5", LIII) que escapasse de qualquer
rno porque se sabe que tais referenciais têm como manipulação política/jurídica sobre acompetência, a
função principal a ocultação dos conflitos socioeco- qual sempre foi abordada/questionada pela doutrina e
Ttômico-políticos
vetada pela jurisprudência européia quando discute-
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se a matéria a partir de suas bases legais, mormente por exemplo), o que pode indicarna direçãoda sus
na Itália (Costituzione delia Repubblica), fonte prin peitada sua imparcialidade (em juízo a priori, natu
cipal do nosso modo de pensar29. ralmente), algo sempre abominado pela reta Justiça e
Assim, nosso legislador constituinte de que, como se sabe, serviu de base estrutural ao pen
1988, como se sabe, não tratou expressamente do samento da Revolução Francesa, a qual, vitoriosa,
juiz natural, como haviam feito os europeus conti editou, como a primeira de suas leis processuais, em
nentais após a Revolução Francesa, de um modo 11.08.1789, regramento tendente a vetar qualquer
geral, exatamente paraque não se alegasse não estar manipulação neste sentido (termina a justiça senhori-
inserido nele a questão referente à competência. Ao al), consolidando-se o princípio do juiz natural na
contrário, por exemplo, do art. 25, da Constituição Constituição de 1791 e na legislação subsequente.
Italiana atual, em vigor desde 01.01.48 ("Nessuno É preciso ressaltar, ainda, queo princípio da
può essere disolto dal giudice naturale precostituito identidade física do juiz não se confunde com o prin
per legge"), preferiu nosso legislador constituinte, cípio do Juiz Natural. Como se sabe, por este, nin
seguindo o alerta da nossa melhor doutrina, em face guém poderá ser processado ou sentenciado por juiz
dos acontecimentos ocorridos no país e profunda incompetente, ou seja, o juiz natural é o juiz compe
mente conhecidos (veja-se a atuação do Ato Institu tente, aquele que tem sua competência legalmente
cional n° 2. de 27.10.65, e a discussão no STF a res preestabelecida para julgar determinado caso con
peito da matéria, com seus respectivos resultados creto. Já por aquele (o princípio da identidade física)
práticos), tratá-la de modo a não deixar margem ãs assegura-se aos jurisdicionados a vinculação da pes
dúvidas, como garantia constitucionaldo cidadão,no soa do juiz ao processo. Assim, por exemplo, pelo
art. 5o, LÜI: "ninguém será processado nem senten disposto no Código de Processo Civil, o juiz compe
ciado senãopela autoridade competente", (-gn-). tente responsável pela conclusão da audiência de
Parte considerável de nossa doutrina, no instrução e julgamento vincular-se-á ao processo e
entanto, quiçá por não se dar conta da situação, mor deverá, então, julgar a lide. Resta claro, destarte, que
mente após a definição constitucional, continua insis os princípios supracitados não se confundem e que o
tindo que a matéria referente à competência não tem art. 132, do CPC, refere-se tão-só ao princípio da
aplicação no princípio em discussão. Em verdade, o identidade física do juiz. No nosso processo penal,
que se está a negar, aqui, é a própriaCF, empeçando- todavia, jamais teve ele aplicação, pela própria natu
se a sua efetivação. reza do sistema adotado, embora seja tema de gran
A questão, então, há de ser discutida a partir des discussões.
do que vem a ser juízo competente. Ao que parece,
não há no mundo quem melhor trate desta matéria 3.3. Princípioda Indeclinabilidade
que o professor Jorge de Figueiredo Dias, sempre Como é básico, quando se retirou do parti
fundado nos pressupostosconstitucionaisde seu país, cular a possibilidade de realização da autojustiça, o
de todo aplicados ao nosso entendimento. Esclarece Estado assumiu o monopólio na resolução dos casos.
ele "que o princípio do juiz natural visa, entre ou Desde então, passaram eles a ser resolvidos a partir
tras finalidades estabelecer a organização fixa dos do exercício da jurisdição.
tribunais"30, mas ela "não é ainda condição bas Não por outro motivo, tal atividade estatal
tantepara dar à administração da justiça - hoc sen- passou a ser indeclinável. Desta forma, desde que
su, à jurisdição - a ordenação indispensável que provocado, o Estado, através do Poder Judiciário,
permite determinar, relativamente a um caso concre não pode furtar-seà resolução de uma lide ou, no que
to qual o tribunal a que, segundoa sua espécie, deve diz com o Processo Penal, ao acertamento de um
ser entregue e qual, dentre os tribunais da mesma caso penal.
espécie, deve concretamente ser chamado a decidi- Assim, tendo em vista o que já se expôs
lo3' ". Assim, seguindo o pensamento do professor de acerca do princípio do juiz natural, tem-se que o juiz
Coimbra, faz-se necessário regulamentar o âmbitode competente para julgar determinada causa, ou seja,
atuação de cada tribunal, de modo a que cada caso para exercer a jurisdição em relação a determinado
concreto seja da competência de apenas um tribunal: caso concreto, não poderá declinar de tal exercício.
ojuiznatural32. Ora, por sua face operacionalizada (competência),
Aliás, pensamento diverso poderia abrir um tem-se a jurisdição como exclusiva de quem a detém
precedente capazde possibilitar a escolha de um juiz e excludente dos demais; daí por que não se admite,
"mais interessante" para o julgamento de determina ademais, a prorrogação e a delegação da competên
dos casos, depois desses terem acontecido, segundo cia (outros dois princípios decorrentes da indeclina
critérios pessoais (mais liberal ou mais conservador, bilidade), sob pena de usurpação de função pública.
Separata

Aparentemente, porém, poder-se-ia pensar, com daquilo que Cordero chamou de "quadro mental
Carnelutti, quehá,noâmbito do processo penal, uma paranóico33", ou seja, abre-se ao juiz a
espécie de válvula de escape no que diz com o prin "possibilidade de decidir antes e, depois, sair em
cípio ora analisado. busca domaterial probatório suficiente para confir
Como frisou Camellutti, "A chamadaabsol mar a 'sua' versão, isto é,o sistema legitima a possi
vição por insuficiência de provas, de fato, não é bilidade da crença no imaginário, ao qual toma
senão uma recusa de escolha; e, por isso, denuncia, como verdadeiro. ".
como já disse mais de uma vez, o insucesso da admi Diante disto, parece sintomático que o prin
nistração da justiça. Entre o sim e o não, o juiz, cípio dainércia, oraestudado, é um dos pressupostos
quando absolve porinsuficiência deprovas, confessa para que se tenha um processo penal democrático.
a sua incapacidade de superar a dúvida e deixa o Ademais, de talprincípio decorre a impossibi
imputado na condição em que se encontrava antes lidade dojuiz julgar além, fora ou aquém do que foi
da discussão: imputado por toda a vida. Recordo, a imputado ao acusado na peça inicial: ultra, extra et
esse propósito, quando presidia a Comissão para a citra petitum. Assim, quando ojuizproferir suadecisão,
formação de um projeto de reforma do código de não poderá modificar a imputação fática realizada na
processo penal, de ter observado que essa é uma peça acusatóna (thema decidendum), devendo haver
solução cômoda para ojuiz, porque o libera dopeso sempre uma correlação exata entre a imputação e a
dasua tarefa, mas nociva para ajustiça, a qual deve sentença. Porelementar, temelea livre dicção dodirei
dirigir-se com um sim ou com um não.33". to (iura novit cúria), justo porque se não subordina
A posição, todavia, não é correta, se obser quanto aodireito, mas tão-só àimputação (atribuição do
vada no nosso processopenal. Com efeito, na absol fato penalmente relevante ao acusado, com todas as
vição por falta deprovas (in dúbio pro reo), a opção suas circunstâncias), que circunscreve o espaço e a
é dada pela própria lei, emface denão terojuiz- e a extensão da decisão. Assim, ao juiz leva-se o fato - ou
acusação - produzido provas capazes de fundar um os fatos -, respondendo ele o direito aplicável: narra
juízo condenatório. E tanto é vero o acertamento que mihifactum, dabo tibi ius. Não é por outro motivo que
a sentença absolutória, nahipótese, passa em julgado as qualificações jurídicas exigidas pela lei antes da
materialmente. sentença, todas, sãoprovisórias. Isto permite que o juiz
Destarte, a regra é quea atividade jurisdicio- corrija a inicial (quetem imputação precisa e errônea
nalde acertamento doscasospenais é indeclinável. qualificação jurídica), aplicando a regra do art. 383, do
Então, pode-se concluir que "A opção, aqui, CPP, a qual trata da chamada emendatio libelli, ainda
é política, como oéna coisa julgada e tantas outras; que como resultado da emenda sobrevenha uma conde
mas absolutamente necessária para, da melhor ma nação. Por outro lado, o mesmo não sucede se o erro
neira possível, nas questões limítrofes, tentar fixar estiverna imputação: não se trata mais de mera corri-
alguns parâmetros e, a partir deles, exigir respeito, genda, masde verdadeira mudança no thema deciden
não fosse, antes, um comprometimento ético. Nada dum. Nesta hipótese, antesda decisão (tenha ela a natu
disto, contudo, adianta, se os homens não tiverem a reza que tiver), deve ojuizlançar mão dasprovidências
grandeza defazer valer a palavra do pactuado, da indicadas no art. 384, do CPP: trata-se da chamada
quiloexpressamente fixado no contrato34". mutatio libelli. Vale lembrar, porelementar, queo acu
sado defende-se dos fatos c não daqualificação jurídica,
3.4. Principio da Inércia daJurisdição razão porqueé preciso muita atenção quando do trata
Este princípio, que é uma das características mento da matéria.
importadas do sistema acusatório, determina que a Porderradeiro, não seria impertinente lem
jurisdição é inerte e não pode serexercida (no senti brar, para tentar-se evitar os arroubos persecutórios
do do desencadeamento do processo) de ofício pelo de alguns, que "a imparcialidade e objectividade
juiz. Isto implica em dizer que para que se mova, que, conjuntamente com a independência, são condi
precisa ser provocada: nemo iudex sine actore; ne ções indispensáveis deuma autêntica decisão judici
procedatiudexex qfficio. al sóestarão asseguradas quando a entidade julga
Como sesabe, o princípio do devido proces dora não tenha também funções de investigação
so legal exige que o órgão julgador seja submetido preliminar e acusação das infracções, mas antes
ao princípio da inércia, buscando garantir, ao máxi possa apenas investigar e julgar dentro dos limites
mo, asua imparcialidade e equidistância das partes. que lhe sãopostos poruma acusação, fundamentada
Com efeito, quando se autoriza ao juiz a e deduzida por um órgão diferenciado (em regra o
instauração ex-officio do processo, como era típico MP ou um juiz de inslruçâof7." Mesmo assim, o
no sistema inquisitório puro, permite-se a formação futuro democrático do nosso processo penal aponta
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na direção de um sistema de essência acusatória e, 4.1. Princípio da Oficialidade


nele, é altamente discutível não só acometer aos Tal princípio dizcom o sujeito que dáinício
juizes ainvestigação preliminar e aacusação, mas o à investigação criminal e procede à acusação, ou
próprio impulso processual quando em jogo estiver a seja. cabe aqui definir aquem compete impulsionar o
produção da prova38. Trata-se, por elementar, de exercício da atividade jurisdicional, assim como,
uma opção política, mas opreço que sepaga é muito antesdele e se necessário for, a investigação de de
alto, seja o próprio juiz, asociedade e ojurisdiciona- terminada práticadelituosa.
do. Ademais, a história mostrou - e continua mos Assim, segundo Figueiredo Dias, "Trata-se
trando - não ser em nada melhor para o processo aqui a questão de saber a quem compete a iniciativa
penal uma tal liberdade, justo porque mantém intacta (o impulso) de investigar a prática deuma infração e
apossibilidade -natural -de se decidir antes e, tão-só a decisãode a submeter ou não a julgamento. (...)no
depois, sair-se àcata da prova suficiente para justifi sentido de estabelecer se uma tal iniciativa (de pro
car a decisão previamente tomada. Enfim, faz-se vocar a jurisdição] deve pertencer a um entidade
misterdeixaràs parteso ônus probandi, comoamea pública ou estadual - que interprete o interesse da
ça fazer o CPP, cmseu art. 156, primeira parte, para comunidade, constituída em Estado, na perseguição
desmentir-se já na segunda parte, quando sustenta a oficiosa das infracções -, ou antes a quaisquer enti
tradição inquisitória: "A prova da alegação incumbi dades particulares, designadamente ao ofendido
rá a quem afizer; mas o juiz poderá, no curso da pela infração39".
instrução ou antes de proferir sentença, determinar, Com efeito, é possível afirmar que o conteú
deofício, diligências para dirimir dúvida sobre pon do do princípio da oficialidade, quanto à ação, é
determinado pela natureza dointeresse que impulsio
to relevante".
Algocompletamente distinto, por seu turno, na o exercício jurisdicional. Entende-se. assim, de
é o impulso processual, por parte do julgador, ten regra, que se tal interesse épúblico epertence àcole
dente aevitar procrastinações indevidas. Por eviden tividade, aação deve ser promovida por órgãos ofici
te, a par daquestão referente à preclusão, hádese ais: trata-se dos chamados crimes públicos e semi-
ver que cabe ao juiz do processo o cumprimento fiel públicos, dos quais decorreriam aação penal pública
do rito, sem qualquer vilipendio aos princípios e incondicionada e a ação penal pública condiciona
regras que garantem a democracia processual. Para da, respectivamente; do contrário, se o interesse
tanto, há instrumental suficiente na nossa estrutura, pertence exclusivamente ao particular, cabe a ele a
mas é preciso dela ter um domínio pelo menos razoá iniciativa de provocar o órgão jurisdicional: o crime
vel pois, do contrário, ter-se-á, somado aoutros fato seria particular ou privado e dele decorreria a cha
res, um resultado conjunturalmente procrastinador, mada ação penal de iniciativa privada. Nesta medi
quase sem solução.
da, é possível identificar a raiz da oficialidade no
Direito Processual Romano, no qual a ação, a acusa
ção, era eminentemente popular, mas quem agia o
4. Princípiosrelativosà Ação fazia em nome dacoletividade.
De acordo com Jorge de Figueiredo Dias,
Como se viu, num país que pretende ser "no antigo direito romano vigorava o princípio da
democrático, ajurisdição somente poderá ser exerci acção popular, segundo o qual qualquer pessoa
da a partir de quando é provocada. Tal provocação (quivis ex populo) poderia deduzir aacusação penal:
dá-se através da ação, a qual é tida, basicamente, o que, parecendo traduzir uma privatização extrema
como um direito (para o Ministério Público, além do processo penal, seria antes, no entanto, sinal de
disto, um dever) de se buscar e, se for o caso uma aguda consciência da co-responsabilidade de
(preenchendo ascondições exigidas pela lei), obter a qualquer membro da comunidade na administração
tutela jurisdicional, demodo a que se possa vira ter da justiça penal. (...) No antigo direito germânico
uma decisão de mérito, tudo no melhor estilo da vigorava, diferentemente, o princípio da acusação
nossa tradição liebmaniana. Trata-se, por evidente, privada, que deixava a promoção processual penal
de um direito (para o MP umdever) público, porque na vontade do ofendido, ou da família ou grupo
sempre dirigido aoEstado-Jurisdição. (sippe) a que pertencia ".
Assim, pode-se vernítida a diferença entreo Entretanto, não se pode negar queo princí
agir daquele que exerce a jurisdição e o agir daquele pio da oficialidade foi consagrado, nos moldes mo
que a provoca, o qual se estrutura a partir dealguns dernos, pelo sistema inquisitório.
princípiosbásicos. Como se viu, neste sistema, o processo é
instaurado de ofício pelojuiz, uma vez que não há
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partes c oacusador é dispensável. Destarte, percebe- tação, como, por exemplo, no art. 147, Parágrafo
se que o impulso do qual se origina a persecução único e no art. 182. Trata-se do análogo nacional à
penal é promovido por um órgão estatal; mas não há querela, do direito italiano (art. 336 c ss., do CPPI),
ação propriamente dita, nos termos que a concebe oque exige um pouco de atenção quando de análises
comparativas. Por outro lado e da mesma maneira,
mos hoje.
Aliás, é forçoso reconhecer que, de certa quando for caso de ação penal de iniciativa privada,
forma, tal princípio legitimou o sistema inquisitório, dirá o CP que "somente se procede mediante quei
na medida que seentendia que ojuiz-inquisidor era o xa". Por elementar, ao referir-se ao verbo proceder,
único ente estatal capaz de, em nome da coletivida quis o legislador apontar à ação, mesmo porque, na
de, dar início à persecução penal. Assim, pensava-se espécie, a peça formal que estampa o seu exercício
que, caso fosse deixado ao particular o impulso de recebe o nomem iuris de queixa e, portanto, coloca-
investigação e do processo, seria colocado em risco o se, na estrutura, como correspondente à denúncia,
interesse coletivo.
quando o caso for de ação penal pública. São exem
Contudo, deve-se observar que, mesmo com plos, no CP, de hipóteses de ação penal de iniciativa
a superação do sistema inquisitório puro c com a privada o art. 345. Parágrafo único e art. 145
diferenciação dos órgãos acusador e julgador, tem-se "caput". Assim, por exclusão, sempre que não hou
que o princípio da oficialidade, juntamente com o ver previsão desta ou daquela, o caso será de ação
princípio da legalidade, permite um maior controle penal pública incondicionada.
da atuação daquele que inicia apersecução penal. 4.2. Princípio da Obrigatoriedade
Sem embargo, cabe ressaltar que o legisla
dor brasileiro previu expressamente que a investiga (Legalidade)
ção será feita por órgãos oficiais (Polícia Judiciária), Este princípio diz com aobrigatoriedade do
nos termos do art. 144. § Io. IV. da CF. e art. 4o, do exercício da ação penal pública, para evitar-se qual
CPP, quando tratar-se de inquérito policial, a forma quer manipulação por parte do órgão acusador e. por
usual de seu desenvolvimento, não obstante o siste outra parte, eventuais pressões que possa sofrer.
ma suportar outras41. De regra, também a acusação, Assim, entende-se que, presentes as condições da
lançada pelo exercício do direito da ação. será feita ação. deve exercitá-la, ainda que não exista previsão
por órgãos oficiais (Ministério Público), conforme expressa na lei (como fez o legislador constituinte
art. 24. do CPP. salvo nos casos deação deiniciativa italiano, ao inserir o art. 112, na CR, que expressa:
"II pubblico ministero ha 1'obbligo di csercitare 1'azi-
privada. one penale"). embora seja certo ser uma decorrência
Cabe. então, uma distinção: em geral, a ação
penal épública (incondicionada ou condicionada), no do princípio constitucional da isonomia. Sem embar
sentido de estar o seu exercício (iniciativa) a cargo go, é praxe ser tratado por princípio da legalidade,
do órgão oficial de acusação (Ministério Público), em face de fundar um dever do órgão oficial de acu
mas alei pode excepcionar asituação, assim o fazen sação.
Como ressalta Tourinho Filho.
do pela expressa previsão do exercício da ação penal
estar a cargo do particular, quando estar-se-ia diante "pertencendo a ação penal ao Estado (salvo exce
da chamada ação penal de iniciativa privada (art. 30, ções), segue-se que aquele a quem se atribui o seu
do CPP). É uma classificação, por elementar, que exercício, o Ministério Público, não pode dela dis
não leva em consideração a estrutura ontológica da por. Acertada a lição de Donnedieu de Vabres: (...)
ação (sempre pública), mas o seu autor. Por sinal, Os órgãos do Ministério público não agem senão em
isto resta claro com maior rigor quando percebe-se nome dasociedade que eles representam. Eles têm o
que a estrutura oferecida pelo legislador, inclusive exercício, mas não a disposição daação penal; esta
constitucional, previu a possibilidade de uma ação não lhes pertence (cf. Traité, cit., p. 606). (...) Ca
penal de iniciativa privada subsidiária da pública, bendo ao Ministério Público o exercício da ação
nos termos do art. 29, do CPP42, e art. 5o. UX , da penal pública (princípio da oficialidade), oprincípio
da legalidade impõe-lhe outro dever, qual o de pro
CF43. mover aação penal sem inspirar-se em motivos polí
Por fim, a distinção entre elas é dada pelo
Código Penal: sendo regra a ação penal pública in ticos ou de utilidadesocial. (...) ".
condicionada. sabe-se que se está diante de caso de É preciso salientar, ainda, que um dos funda
ação penal pública condicionada quando, no CP, em mentos do princípio da obrigatoriedade, "está vinculado
parágrafos dos artigos da Parte Especial ou mesmo à independência do Ministério Público. Antes de funcio
em artigos que se dirigem a regular os capítulos, nar como grilhão para a instituição, escuda-a de inge
restar expresso que sóse procede mediante represen rências externas impertinentes, descabidas, dos mais
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S
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variados segmentos da sociedade. Assim, mesmo sem


jurisdicional. quando do exercício da ação. se presen
tes as chamadas questões prévias, incluídas aí as
previsão legal otemos como plenamente vigente ecre condições da ação e os pressupostos processuais
mos nele. nos conformes, pela necessidade epelos mais analisáveis nojuízo deadmissibilidade.
variados argumentos, alguns coerentes e aceitáveis, Ademais, é preciso considerar que tal princí
outros sem qualquer cabida, como anotou Frederico pio da obrigatoriedade, ainda que fosse possível
Marques.
O princípio, de linha mais vmculadora, pensar estar atrelado ao princípio da legalidade, deve
opõe-se ao da oportunidade ou discricionariedade e ser relativizado. já que um processo penal democráti
ambos projetam-se no mundo informando os siste co tem, antes de mais nada, o objetivo de atender ao
mas processuais. De regra, os países do Common interessepúblico.
Neste sentido, Jorge de Figueiredo Dias asse
Law e os influenciados diretamente por ele tendem vera que "bem se compreende que, relativamente a
para aoportunidade, ao passo que os países de tra certos casos concretos, a promoção e a prossecução
ços germano-romanísticos, via de regra adotam o obrigatórias do processo penal causem àcomunidade
princípio da obrigatoriedade. Isto não implica, é jurídica maior dano que vantagem - máxime, atento o
claro, em regras estanques. Os países mesclam a pequeno significado da questão para ointeresse públi
utilização dos princípios conforme suas necessida co, ou conexionado este com dificuldades de prova,
des. Aanálise, neste sentido, serve bem para questio inflação do número de processos, pequena probalidade
nar-se até que ponto o argumento das influências de executar a condenação, etc. (v.g. relativamente a
externas seria válido. Por esse caminho, sabe-se que factos cometidos no estrangeiro ou por pessoa que se
não se tem podido desacreditar -muito pelo contrá não encontre no país) -e que, em tais casos, se deixe ao
rio - na seriedade do MP nos países onde prevalece MP uma certa margem de discricionariedade no proce
a discricionariedade no exercício do direito de ação. dimento. Ponto é que senão esqueça que poder discri
De uma forma ou de outra, os sistemas caminham. cionário não ésinônimo de arbítrio, mas concessão de
Vale a seriedade do MP. independentemente de obri uma faculdade que deve ser utilizada em direcção ao
gação legal ou não. Isso éoque menos importa. A fim que aprópria lei teve em vista concedê-la •no caso
discussão, desta forma, deve ficar para ocontrole de apreservação, em último termo, dos verdadeiros inte
exercitar o direito de ação ou não. Assim, um con resses da comunidade jurídica edos valores prevalen-
trole sério, exclusivamente hierárquico, é o suficien . 46»
tesnela...
te para resguardar o órgão - como homens e, como Relativização, assim, a fim de se atender o
tal, passíveis de erro - eainstituição, fiel defensora interesse público, não implica em se admitir a sua
da Constituição do Estado, e portanto, do todo. sem manipulação. Por óbvio, pode-se nela chegar por
espaço para interferências estranhas, máxime do mera constatação: sendo as condições da ação requi
Executivo. Basta, depronto, seriedade. sitos exigidos pela lei (art. 43 c.c. art. 18, ambos do
O CPP de 41 delimita o controle em um
sistema misto. Sem vontade alguma de decretar a
CPP), abre-se. as escancaras, um largo espaço àexe
existência da obrigatoriedade, o art. 28, do Código
gese/à adequação objeto/regra, àrelação semântica.
de Processo, fecha na figura ào juiz o controle do
0 interprete, então, passa ater papel fundamental,
exercício do direito de ação e, somente em caso de
porque éimenso oespaço aser preenchido pela sub
discordância deste, remete a questão aoProcurador- jetividade. Neste passo, como parece sintomático, o
Geral. As inconveniências do sistema são patentes: a direito depende dos homens; enão das leis. Eéjusta
última palavra, se for ocaso, está sob a responsabi mente deles que se espera osentimento de Justiça, da
lidade do Procurador-Ceral, que ocupa cargo de qual, porsinal, são Promotores.
A estrutura da ação, no nosso processo pe
confiança do Governador; exclui-se o órgão máxi nal, conhece também oprincípio da oportunidade ou
mo da instituição, ou seja, o Conselho Superior e,
semdiscussão, como pior de tudo, permite, semcon da conveniência. É elequerege o seu exercício nos
trole algum, manipulações conjuntas do Magistrado casos de ação penal de iniciativa privada, razão por
e do órgão do Ministério Público. Embora, na atual que se deixa ao ofendido (ou, se for o caso, o seu
fase das instituições, isso não seja lugar comum, êde representante legal), adecisão de exercitá-la ou não.
possível acontecimento e, portanto, uma falha imper Age, portanto, se quiser, na medida da sua conveni
ência.
doável.43"
Além disto, é preciso ressaltar que a obriga
toriedade do Ministério Público promover a acusa
ção, nos casos de ação pública, não está colocada de 5. Princípios relativosao Processo
forma absoluta, uma vez que só se obtém a tutela

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"// mezzo attraverso cui si attua Ia giurisdi-
zione èilprocessoM11 processo (processus da proce- Z,^P™65503 P™** «*** estruturados -ou sem
dere) e ,1 complesso degli atti giuridici direttialVe- fe*'** em geral, qualquer possibilidade de con-
sercizio delia giurisdizione."" Dai poder-se dizer ''Stoçaoda acusação contra ele formulada Excepçâo
que no processo busca-se areconstituição histórica feita, porém acasos de estrutura mais asperaSe
tulgZofi.a dC * f0m,ar °co~i™nto do ZT™-
soa °/rínCÍpÍ°
do arguido, mereceu***«*>
sempre geraltobreZJZps.
aceitação nos
Em que pese ainfinita discussão arespeito direitos antigos (tanto no grego como n^So}
da sua natureza jurídica eaadoção, pela CF/88 da como nos medievais (apôs arecepção do direito roma
posição de Elio Fazzalari (art.?, LV), ou seja de no, logo em seguida obscurecida, como se sabe pelo
processo inquisitório) e, deforma inquestionável,^
^tS^ qUand° h°UVCr
contraditório», continua firme nal**«Kiwwo
dogmática, com
por
enquanto, anoção bülowiana de que é ele uma rela RZ^^es:^0^^ "—' «
ção jundica processual. Assim, no processo penal brasileiro, da mes
Com tais premissas, há de se notar que são ma maneira que nos supracitados processos de essên-
básicos três dos princípios relativos ao processo SIS"!?"*?' éaSSC8Urad0 ° princfPio d0 con»-a-
pelos quais poder-se-ia partir àanálise de outros- (i) ditóno Nao obstante, na prática, não há efetividade
princípio do contraditório; (ii) princípio da verdade formal (a lei trata de manter adesigualdade, entre
material e(111) princípio do livre convencimento. outros e por exemplo, nos ans. 222, 370 § Io 501
todos do CPP) emuito menos material34'dependen-
5.1. Princípio doContraditório do-se, sobremaneira, era primeiro lugar, do conheci
Oprincípio do contraditório é típico de um mento do órgão julgador e, depois, do rigor que im
\ processo de partes, no qual o julgador mantém-se põe a si mesmo quanto ao respeito pela garantia
equidistante delas no exercício da atividade jurisdici constitucional, até porque os princípios relativos às
onal (conforme determina oprincípio da imparciali invalidades abre um campo tão amplo de ação apon-
dade), embora, presentando*0 o Estado na relação í° :.?eJbem operados, quase tornar possível asua
processual, é odetentor do Poder e, por conta disto inviabilidade. Àguisa de exemplo, veja-se opas de
tunciona como órgão mediador, através do qual pas nullite sons grief (não há nulidade sem prejuízo):
sam os pleitos. inserto no art. 563, do CPP, onde prejuízo, em sendo
Traduz-se, então, na necessidade de se dar um conceito indeterminado (como tantos outros dos
às partes a possibilidade de exporem suas razões e quais está prenhe a nossa legislação processual pe
requerem aprodução das provas que julgarem impor nal), vai encontrar seu referencial semântico naquilo
tantes para asolução do caso penal. Assim, "é pois que entender ojulgador, e aí não é difícil perceber
em resumo, ciência bilateral dos atos e termos pro manuseando as compilações de julgados, que nãô
cessuais cpossibilidade de contrariá-los.51" Exprime- raro expressam decisões teratológicas.
se. assim, na parêmia auditur et altera pars Por Veja-se, todavia, que aConstituição Federal
sinal, aaudiência das partes de modo paritário évital em seu art. 5», LV, prevê expressamente que "aos
à propna existência do processo, mormente porque litigantes, em processo judicial ou administrativo, e
expressão, quiçá máxima, do princípio da igualdade aos acusados em geral são assegurados o contradi
(isonomia). Afinal, como anotado em BelJavista- tório eaampla defesa, com os meios e recursos a
Tranchma, "dove non c'è contestazione, non c'è ra- elainerentes" -gn-.
pporto giuridico processuale; dove non c'è contradi- Em sendo ele. ocontraditório, uma garantia
ttono, non c'è processo.52" constitucional, para se ter um processo penal demo-
Diante disto, é forçoso reconhecer que, por cranco não se pode pensar em restringi-lo, salvo
tal princípio, reflete-se um dever ser que reclama quando esbarrar em outro princípio também previsto
(exige) adialética de um processo de partes, ou seja, na Constituição, como ocorre, por exemplo, nas hi
o diálogo entre aacusação e adefesa, perante um póteses em que são protegidos os direitos àintimida
juiz imparcial. dee àprivacidade. Tal confronto há de ser resolvido
Ademais, épreciso ressaltar que. "o princípio pela aplicação do princípio da proporcionalidade
do contraditóno opõe-se, decerto, a uma estrutura (como querem os alemães) ou princípio da razoabili-
puramente inquisUória do processo penal, em que o dade, na visãodos americanos.
juiz pudesse proferir a decisão sem previamente ter Por derradeiro, há de ressaltar que ocontra
confrontado o arguido com as provas que contra ele ditório em sendo um princípio lógico, está inserido
houvesse recolhido -enão faltaram exemplos históri- em âmbito mais amplo55, ou seja, aquele do princípio
do devido processo legal, hoje constitucionalmente

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