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MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Av. Marechal Câmara, nº 370 – Centro – Rio de Janeiro - RJ

REALIZAÇÃO

CENTRO DE APOIO OPERACIONAL DAS PROMOTORIAS DE JUSTIÇA DE


TUTELA COLETIVA DE PROTEÇÃO À EDUCAÇÃO – CAO EDUCAÇÃO
GRUPO DE MEDIAÇÃO E RESOLUÇÃO DE CONFLITOS - GMRC

ELABORAÇÃO

REDAÇÃO ISA-ADRS

Celia Maria Oliveira Passos e Olga Oliveira Passos Ribeiro

PRODUÇÃO

Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro

ILUSTRAÇÕES

Equipe WEB do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro


O professor não transmite o que diz, mas o que é.
José Pacheco

APRESENTAÇÃO

Ter em mãos um material de apoio que pudesse significar uma janela. A


visão de um outro ponto, de novas perspectivas e horizontes. Esta foi a
intenção quando pensamos neste material, dedicado aos educadores.

Estarmos mais próximos, solidários, treinando a escuta ativa, é a pauta dos


minicursos oferecidos pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro
em 2015 e 2016, que culminaram com a elaboração destas preciosas
páginas, esculpidas pela Celia Passos com o talento daqueles que retiram
cuidadosamente o excesso da pedra para fazer emergir a obra de arte.

Viver as experiências da linha de ação Ministério Público pela Paz nas


Escolas, desde 2010, em parceria com o Grupo de Mediação e Resolução de
Conflitos, tem nos proporcionado aprendizado incessante e incalculável e
temos a responsabilidade de difundi-lo.

Esperamos que os ambientes educacionais contemporâneos, em sintonia


com o Plano e as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos
Humanos, sob a égide do princípio da excepcionalidade da intervenção
judicial (art. 35, II da Lei do SINASE) e da chamada Lei do Bullying1, alcancem
e consolidem a cultura da valorização democrática da diversidade, que
permite a cada e a todo o ser a beleza da expressão da sua própria flor,
única e insubstituível na composição da natureza humana: florescer.

1 Resolução nº 01/2012 do Conselho Nacional de Educação e Lei Federal nº 13.185/2015,


que se encontram nesta cartilha respectivamente nos anexos I e II.
Nossos agradecimentos a todos os corações e mentes envolvidos direta
ou indiretamente neste trabalho que, como todo espelho, refletirá as
diferentes imagens interpretativas que se lhes apresentem, devolvendo
beleza e angústia, esperança e desafio, todas molas propulsoras ao nosso
desenvolvimento educativo e social.

Bianca Mota de Moraes


Coordenadora do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de
Justiça de Tutela Coletiva de Proteção à Educação
PREFÁCIO

Sabemos que o conflito é algo inerente à vida em sociedade, impossível


evitá-lo, e que o seu manejo positivo pode ser uma enorme oportunidade
de aprendizado e crescimento moral.

Neste sentido, a Escola é instituição de convivência por excelência,


conflituosa por definição. Mas diante da realidade diária, como atuar
eticamente, favorecendo a reflexão?

Se a pergunta tem sido um norteador de profissionais da Educação,


também tem recebido atenção dos operadores do Direito, que estão
conscientes de que a solução não está na judicialização indiscriminada dos
conflitos escolares.

No cenário de diversidade, a Mediação, bem como as demais metodologias


dialogais, tem sido uma poderosa ferramenta de transformação e
pacificação social, eis que se articula com base nas diferenças e no seu
reconhecimento, e não na sobreposição de um sobre o outro.

Se a partir de uma prática binária, de um modelo excludente e adversarial


se produzem sujeitos beligerantes, estamos autorizados a ter esperanças
de que a partir de práticas sociais mais tolerantes, tendemos a ter sujeitos
mais colaborativos. O outro surge como um limite à onipotência do sujeito,
e não como uma ameaça à sua existência. O diferente alça um outro lugar,
não daquele que deve ser contingenciado, mas daquele que pode somar,
acrescer, enriquecer, e que a partir da intervenção positiva dos conflitos
escolares, há um favorecimento de relações colaborativas e de crescimento
moral. Surge o conceito de “dependência saudável, desprovido da ideia de
supremacia ou submissão”.
Ao privilegiar a atuação que potencializa a interface existente entre
Educação e Justiça, o Ministério Público reafirma a sua genuína vocação de
instituição mediadora que deve trabalhar no sentido de formar cidadãos
mediadores, cumprindo a sua função constitucional de ser instrumento de
acesso à Justiça como Valor.

O Projeto Paz nas Escolas, iniciativa do CAO Educação que conta com a
parceria do Grupo de Mediação e Resolução de Conflitos (GMRC) do MPRJ,
é experiência viva que traduz a atuação de vanguarda do Ministério Público
no cenário de resolução adequada de conflitos, semeando a Cultura de Paz
em inúmeros espaços.

O lançamento da bem elaborada cartilha, graças à inestimável contribuição


da Professora Celia Passos, reconhecida especialista no assunto, é o
coroamento de uma bem-sucedida jornada e nos confere fôlego e
esperança para os próximos passos que certamente virão.

Rio de Janeiro, 11 de março de 2016.

Anna Maria Di Masi e Eliane de Lima Pereira


Grupo de Medição e Resolução de Conflitos (GMRC/MPRJ)
“Não devemos ter medo dos confrontos.
Até os planetas se chocam e desse caos nascem as estrelas.”
Charles Chaplin

APRESENTAÇÃO ISA-ADRS
Desde o final da década de 1990, os profissionais do Instituto de Soluções
Avançadas - ISA-ADRS vêm se ocupando da temática da desconstrução,
transformação e resolução de conflitos, da Justiça e das práticas
restaurativas em diferentes âmbitos, esferas e setores tanto em território
nacional quanto fora do Brasil.

Tratar o tema da convivência em ambiente escolar remonta ao período


entre 2004 e 2008, quando o ISA-ADRS, representado por seus docentes,
esteve presente em eventos e projetos de capacitação, principalmente
para discursar e dialogar sobre temas relacionados à violência escolar,
como bullying e abuso verbal, entre outros. O público era majoritariamente
constituído por profissionais de saúde e educação.

A palestra “Mediação, pedagogias de convivência e práticas restaurativas


em âmbito escolar” foi apresentada em diferentes encontros realizados para
Secretarias de Educação e o Terceiro Setor. De 2004 a 2006, em encontros
formadores para a coordenação das equipes dos Polos de Atendimento
Extraescolar/Instituto Helena Antipoff/SME, pudemos polinizar ideias
e reflexões sobre conflitos e as diferentes formas de abordá-los. Destes
encontros e de outros realizados entre 2010 e 2015 para profissionais e
alunos do Instituto Superior de Educação - FAETEC, acresceram-se ao
tema as aulas e palestras sobre mediação e justiça restaurativa, facilitação
de diálogos, acesso à justiça e práticas restaurativas. Desde então, o ISA-
ADRS vem atuando em capacitação, mediação e facilitação de diálogos em
diferentes contextos, além de apoiar tais iniciativas em diversos estados,
esferas e setores.
A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma 9

Pensar a educação nos dias de hoje é, para nós, pensar em processos


de transformação, em potências e potencialidades desenvolvidas em
conjunto. Ou seja, longe de um modelo de transmissão de conhecimento
engessado por uma relação professor-aluno pautada na hierarquia e no
exercício de poder de um sobre o outro, gostaríamos de lançar o desafio aos
professores e alunos de construírem juntos um novo modelo, focando na
constituição de um método baseado em paradigmas não restritivos e nas
possibilidades de encontros e da criação de um território existencial. Um
território no qual a integração e a forma de articulação entre professores,
alunos, equipes técnica e de apoio, assim como a família e a comunidade
do entorno, tornem o processo de construção mais rico, possibilitando
derrubar as fronteiras e muros virtuais que envolvem a escola.

Quando foram idealizados os quatro pilares da educação, constantes do


então relatório elaborado para a Unesco pela Comissão Internacional sobre
Educação para o Século XXI, coordenada por Jacques Delors2, a proposta
abrangia uma educação direcionada para quatro tipos fundamentais de
aprendizagem: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver
com os outros, aprender a ser. Acreditamos que se ofertado, desde cedo, o
direito a aprender a aprender, realizar e conviver consigo e com o próximo,
o aprendiz se veria em nova condição.

Além disso, outra importante obra, o Manifesto 2000 por uma Cultura de Paz
e Não-Violência, desde seu lançamento, suscita reflexões, inspira modos
de ser e de estar no mundo, reafirmando os compromissos de respeitar a
vida, rejeitar a violência, ser generoso, ouvir para compreender, preservar o
planeta e redescobrir a solidariedade, inspirando um agir alinhado com o
espírito da cultura de paz dentro de todas as famílias, trabalho/escolas, na
comunidade e nas cidades, irradiando atitudes de tolerância, solidariedade
e diálogo.

2 O relatório, transformado no livro Educação: um tesouro a descobrir, em 1999, apresentou


os quatro pilares no quarto capítulo.
10 A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma

O atual convênio para cooperação técnica entre ISA-ADRS e o Ministério


Público do Rio de Janeiro viabilizou o lançamento desta cartilha com o
objetivo de ampliar o diálogo, apoiar os docentes, discentes, equipes
técnicas e de apoio, bem como a comunidade, para que encontrem, juntos,
mecanismos para abordar os conflitos, transcender e transformar esse
contexto, afastando a violência e implementando sistemas de convivência
no âmbito da escola. E, para tanto, são necessários: o desenvolvimento de
habilidades, o domínio de técnicas e o estímulo a atitudes assertivas que
possam proporcionar um ambiente acolhedor, com vínculos fortalecidos
e sensação de pertencimento. Estes são fatores que contribuem para uma
convivência pacífica.

A cartilha foi redigida pelas docentes, pesquisadoras e mediadoras,


doutora Celia Passos e mestra Olga Passos Ribeiro, que também já
estiveram em situações desafiadoras em sala de aula, mas, apoiadas em um
conjunto de princípios e valores compartilhados, alcançaram excelentes
transformações.

Os sistemas de convivência pautados na justiça, nas práticas e nas disciplinas


restaurativas, como alternativas ao sistema punitivo, prenunciam exitosos
projetos, com alto potencial de geração de mudanças. Nestes, o respeito
é valor e princípio norteador da conduta e pode trazer importantes
alterações no sistema escolar.

Esperamos que os resultados transformadores, a partir da leitura desse


material, possam ser experimentados o mais brevemente possível.
A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma 11

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................................................14
1. Justiça restaurativa nas escolas: manejo dos conflitos...............................................................17
1.1 A resolução de conflitos em ambiente escolar: sistemas retributivo e restaurativo...........19
1.2 Das regras impostas aos norteadores de convivência construídos com o outro.................24
1.3 Princípios e valores da justiça restaurativa..........................................................................................25
2. Justiça e práticas restaurativas...............................................................................................................26
2.1. Um conceito em construção: o que é a JR e como é compreendida........................................26
2.2. Um pouco da história: as origens da JR...............................................................................................28
2.3. Justiça e práticas restaurativas: principais metodologias.............................................................31
2.3.1 Mediação.......................................................................................................................................................33
2.3.2 Processos circulares: círculos..................................................................................................................36
2.3.3 Conferências de grupos familiares........................................................................................................41
3. Desafios da implantação de um sistema de convivência em escolas...................................45
3.1 O sistema restaurativo e o processo de implantação......................................................................47
3.2. Um projeto que envolva a todos............................................................................................................48
BIBLIOGRAGIA................................................................................................................................................55
ANEXOS...............................................................................................................................................................57
12 A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma

Era uma vez...

Vera, professora de uma pequena escola, foi convidada a fazer um curso fora
de sua cidade, como fruto de um convênio. Algumas semanas depois, ao voltar,
seus alunos a receberam com contentamento, porém, pouco tempo depois, já
havia novamente as constantes desavenças e brigas que os caracterizavam
àquele ano. Um dia, durante o recreio, enquanto dois adolescentes corriam
um do outro no pátio, alguns alunos de Vera jogavam bola e pulavam corda.
Então, Paulo, um dos adolescentes, esbarrou em Renato, ainda criança, que
terminou caindo e se ferindo.

Diante dos gritos e do sangue, vários colegas correram em defesa de Renato,


atacando os maiores que apenas os empurravam para se desvencilharem.

Em segundos, o pátio transformou-se em verdadeiro caos. Interpelados pela


coordenadora e pelas professoras, os jovens foram devidamente repreendidos
e, a cada tentativa de defesa, eram vaiados pelas outras crianças e jovens,
terminando por serem levados à sala da direção. Lá, muitas versões para o
caso surgiram. Para alguns, os meninos maiores haviam provocado a queda
de Renato propositalmente. Para um funcionário, eles já estavam criando
tumulto no recreio, e era bem possível que a queda fosse consequência da
prática de bullying sobre os menores. Para uma das inspetoras que sequer
foi devidamente ouvida, tinha sido um acidente, pois os alunos costumam
se esbarrar quando estão correndo. Sem defesa, os meninos já aguardavam
resignados alguma punição, ou, o de sempre, a suspensão.

Além disso, Renato quebrara um dente e, ao chegar em casa, sua mãe


inconformada considerou que a escola deveria punir o agressor e que este
deveria arcar com os custos medicamentosos. Pressionadas por diversos
lados, a coordenadora e a diretora não viram alternativa senão suspender os
jovens e chamar suas mães à escola. Um deles, o aluno Paulo, já tinha muitos
antecedentes por brigas entre os pares e sua mãe o ameaçara declarando que
A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma 13

se fosse chamada mais uma vez à escola, ela o tiraria de lá e o obrigaria a


trabalhar, de modo a compensar o déficit financeiro causado pelo desemprego
do pai.

Porém, Vera, que havia feito o curso fora da cidade, disse que gostaria de
conduzir um projeto para auxiliar a todos. Ela aprendera novos conceitos e
poderia ensiná-los. A direção concordou por parecer uma alternativa melhor
do que a suspensão ou a expulsão. Vera disse que planejava se reunir com os
colegas e encontrar os meninos com o objetivo de restaurar os danos, facilitar
os diálogos e mediar os conflitos.

Vera conseguiu lidar com uma situação difícil em sua escola


com os conhecimentos da justiça restaurativa. A partir de agora,
apresentaremos a você alguns de seus princípios e práticas.
Esperamos que se entusiasmem com o conteúdo dessa cartilha que
não substitui uma capacitação no tema.
14 A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma

INTRODUÇÃO

Com muita frequência, escola, família e comunidade, além dos próprios


alunos e professores, experimentam a violência no contexto escolar. E
como o ambiente sofre influências e é influenciador, é natural que se
perceba que o processo é retroalimentado e a situação pode ser agravada
indefinidamente.

Seja qual for a realidade do contexto familiar, escolar ou social, é natural


que, em ambiente pouco acolhedor, no qual há violência física, verbal,
psicológica ou social, haja tensão.

Em geral, conflitos ocorrem onde há diversidade, interações,


movimentações e comunicação entre grupos diversos. Inevitavelmente,
surgem divergências, disputas e mesmo desordens nas interações humanas.
Tais manifestações podem ser construtivas ou destrutivas, dependendo da
forma como são abordadas. Se há diálogo, os conflitos podem se tornar
fontes de aprendizagem e molas propulsoras de mudanças. Porém, na
ausência de diálogo ou quando há má qualidade da comunicação, eles são
fontes de tensões que podem terminar em sérios aborrecimentos ou em
violência.

Não raras vezes, a indisciplina é tema de conversas em reuniões escolares.


É tida como causa do desperdício do tempo regulamentar para o
aprendizado e, portanto, fonte de estresse. Reclamar da indisciplina é
clamar por disciplina. A curto prazo, a disciplina funciona como estratégia
ou meio para refrear comportamentos vistos como inadequados e
compreender os comportamentos adequados. A médio prazo, contribui
para a assunção de responsabilidades, pela criança ou pelo adolescente,
sobre o próprio comportamento. Em decorrência, a longo prazo, quando o
comportamento não é fortemente regulado pelos outros, criam-se espaços
para o desenvolvimento do autocontrole. Assim entendem os autores do
A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma 15

livro Disciplina restaurativa para escolas: teoria e prática (MULLET; AMSTUTZ,


2012). 3

Na escola, a exposição a pressões pode ser causa de estresse e, ao mesmo


tempo, pode ser boa fonte condutora de processos voltados à solução,
sinalizando a chegada do momento de mudança de paradigmas, pondo
em foco quais conceitos precisam ser revisitados para oferta, provocação e
estímulo a novas leituras, novas prioridades, novas escolhas e, igualmente,
novas incertezas.

Geralmente são as situações-limite, aquelas em que o docente, as equipes


técnicas e/ou de apoio se veem sem condições de lidar com um problema
grave, que acarretam uma forte pressão para a busca de novas soluções e
outros modos de ser, estar e conviver.

A insegurança na forma de lidar com os conflitos vem sendo identificada


como a maior motivação para os modos de gerir os conflitos ainda não
explorados, como a justiça e a disciplina restaurativas.

A recorrência do tema da indisciplina entre os docentes e as equipes técnica


e de apoio cria o contexto para que a justiça e as práticas restaurativas
solidifiquem experiências transformadoras. Entender que a indisciplina,
para além de algo inconveniente, pode ser trabalhada como oportunidade
para a conscientização acerca das consequências dos atos praticados,
assunção de responsabilidade sobre o dano causado e motivação para as
ações necessárias ao ressarcimento dos danos. Além disso, pode fortalecer
os laços, desenvolver ações colaborativas e trazer à luz uma ética do
cuidado.

3 MULLET, J.H.; AMSTUTZ, L.S. Disciplina restaurativa para escola: teoria e prática. São Paulo:
Palas Athena, 2012.
16 A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma

A justiça, as práticas e as disciplinas restaurativas têm sido utilizadas para


gerar senso de comunidade (escolar) e criar um espaço seguro, no qual
todos se sintam pertencentes e responsáveis pelo bem-estar dos demais.
São três dispositivos que auxiliam o desenvolvimento de competências e
habilidades sociais, no corpo docente, discente e nas equipes técnica e de
apoio, criando as condições para o fortalecimento de cada um. Eles permitem
a partilha de valores restaurativos, como o respeito, a solidariedade,
a honestidade, a humildade, a participação, a interconectividade e a
percepção da própria potência, fatores fundamentais para a convivência
pacífica. Restauram, em regra, as interações esgarçadas ou rompidas em
decorrência de conflitos, promovendo, tanto quanto possível, a reparação
a quem sofreu o dano e a assunção da responsabilidade sobre eventuais
ofensas e sobre os atos praticados.
A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma 17

I
JUSTIÇA RESTAURATIVA NAS ESCOLAS:
MANEJO DOS CONFLITOS

Os contextos sociais complexos e violentos que influenciam o dia a dia no


âmbito escolar retratam inúmeros fatores, desde situações inerentes ao
próprio ambiente escolar, como de outras circunstâncias relacionadas a
jogos de poder, dificuldades de relacionamento ou mesmo o reflexo de
problemas familiares, financeiros, dependência química, preconceitos,
desrespeito às diversidades, e tantos outros.

Seja em ambientes complexos ou não, os conflitos são parte integrante


das relações interpessoais, pois estão presentes em todos os segmentos
da vida, seja o ambiente familiar, profissional, social ou escolar. Por isso,
é mais do que necessário saber prevenir, gerir e resolvê-los. Para tanto, é
preciso compreender o que faz-fazer, por que as articulações, interações,
relações se estabelecem dessa e não de outra forma? Como lidar com as
condutas dissonantes, situações de violência, sem recair na sensação de
impunidade, sentimento de impotência, frustração, medo e até mesmo
adoecimento?
18 A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma

Não raras vezes, nas escolas, as condutas agressivas por parte das
crianças e jovens ou em face destes acarretam perturbações que
irradiam e afetam a todos e não somente àqueles envolvidos nos
conflitos. Não há como negar que a escola é uma caixa de ressonância
da sociedade. Quando bem geridos, os conflitos podem representar
espaços de aprendizagem e de crescimento. O modo como se busca
resolvê-los é mais importante do que as causas que os ocasionaram.
Por essa razão, é importante que todos, crianças, jovens e adultos
desenvolvam habilidades para gerenciar positivamente os conflitos
que surgem nas relações de convivência. São recursos importantes
para a cultura de paz e para a prevenção da violência.
A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma 19

Existe uma dinâmica de mútua influência entre docente (quem ensina)


e discente (quem aprende), de forma que ambos saem transformados
desta interação. Em um sistema que produz e reproduz a violência, é de
se esperar o seu aumento, mas quando ocorre o contrário, e o ambiente
é respeitoso e acolhedor, os vínculos podem ser mais fortes e a confiança
pode se estabelecer por meio da redução das tensões e da conflitualidade.

1.1 A RESOLUÇÃO DE CONFLITOS EM AMBIENTE


ESCOLAR: SISTEMAS RETRIBUTIVO E RESTAURATIVO

A justiça restaurativa se situa dentre as metodologias utilizadas para a


transformação das relações, encontrando seu fundamento nos direitos
humanos e tomando em consideração o Paradigma da Complexidade de
Edgar Morin. Surge como resposta para o contínuo desmantelamento do
espaço relacional e também como alternativa à dificuldade do homem
contemporâneo de coexistir, de modo pacífico, com as diferenças.

A Resolução 12/2002 de 24 julho de 2002, da Organização das Nações


Unidas (ONU) define a justiça restaurativa como “um processo através do
qual todas as partes envolvidas em um ato que causou ofensa reúnem-se
para decidir coletivamente como lidar com as circunstâncias decorrentes
desse ato e suas implicações para o futuro”. Para Leonardo Sica (2007),
a justiça restaurativa e a mediação de conflitos traduzem conceitos
“quase anárquicos, abertos, flexíveis, polissêmicos e multifuncionais”,
ou seja, conceitos que geram múltiplas possibilidades, dentre as quais
a participação, o comprometimento e o empoderamento de todos os
atores envolvidos em uma circunstância danosa, inclusive os membros da
comunidade. [ Para as autoras, justiça restaurativa é ética enquanto arte da
convivência. ]

A justiça restaurativa é uma dentre as práticas sociais que oferecem os


mínimos de justiça que uma sociedade pode ou deve exigir: liberdade,
20 A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma

igualdade, diálogo e respeito. Estimula o convite para a ética civil, que


na proposta de Adela Cortina, procura articular o justo e o bom. Justo
entendido como algo que deve ser e que não o sendo, coloca-nos em nível
inferior ao da estatura moral que requer a dignidade humana. Bom como
algo que causa a felicidade e proporciona a autorrealização pelo alcance
dos ideais de uma vida digna e boa. A felicidade é um convite que, quando
aceito, propicia a realização subjetiva, pessoal e intransferível resultante
da adoção desse modelo como norteador da conduta pessoal. (ANDRADE,
2010)

Esse modelo de justiça coloca em cheque o paradoxo de se pretender


acabar com a violência por meio de práticas e ações igualmente violentas
que, constantemente, realimentam este indesejado ciclo. Oferece
nova visão sobre o crime/infração e novas formas de lidar com o dano
decorrente. Apresenta o desafio de conquistar a paz social sem perder de
vista a dimensão humana do ser.

O enfoque restaurativo, em contraponto ao punitivo retributivo, considera


o crime/ato infracional como uma violação às pessoas e relacionamentos
e não uma violação da lei/regras. Diferentemente do sistema retributivo,
que não tem por foco a vítima, a abordagem restaurativa traz a vítima para
o centro, colocando também o ofensor e a comunidade em cena na busca
de um consenso quanto à forma de lidar com as situações presentes e
prevenir as futuras.

Howard Zehr, um dos precursores da justiça restaurativa, propõe uma


mudança de lentes no trato dos crimes, infrações e atos danosos e
apresenta as diferentes formas como os modelos de justiça retributivo e
restaurativo veem o crime:
A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma 21

LENTE RETRIBUTIVA LENTE RESTAURATIVA

O crime é definido pelo dano à pessoa e ao


O crime é definido por uma violação à lei.
relacionamento.
Os danos são definidos em abstrato. Os danos são definidos concretamente.
O crime está em uma categoria distinta dos O crime está reconhecidamente ligado a
outros danos. outros danos e conflitos.
As pessoas e os relacionamentos são as
O Estado é a vítima.
vítimas.
O Estado e o ofensor são partes no processo A vítima e o ofensor são partes no processo.
As necessidades e os direitos das vítimas As necessidades e os direitos das vítimas são
são ignorados. a preocupação central.
As dimensões interpessoais são irrelevantes. As dimensões interpessoais são centrais.
A natureza conflituosa do crime é
A natureza conflituosa do crime é velada.
reconhecida.
O dano causado ao ofensor é periférico. O dano causado ao ofensor é importante.
A ofensa é definida em termos técnicos, A ofensa é compreendida em seu contexto
jurídicos. total: ético, social, econômico e político.

Fonte: Howard Zehr: Trocando as lentes -2008

As diferentes formas de ver o crime, o ato infracional ou os atos danosos


levam à formulação de diferentes perguntas.

JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA

Qual foi a lei/regra que foi violada? Quem foi prejudicado (sofreu o dano)?

Quem a violou? Quais são as suas necessidades?

Que punição merece? Quem deverá prover?

Enquanto a lógica retributiva está focada na ruptura da norma/regra/lei, a


restaurativa está focada na ruptura das relações. Por essa razão, diferenciam-
se os objetivos e as perguntas para as quais buscam-se respostas.
22 A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma

Os programas que conectam justiça e educação desenvolvem-se, em geral,


por meio de ações articuladas, tendo como eixos:

• a resolução de conflitos por meio das práticas restaurativas;


• a instauração de programa para toda a escola, envolvendo todos,
inclusive familiares e comunidade;
• articulação da rede de apoio.

Paul McCold e Ted Wachtel, do Instituto Internacional de Práticas


Restaurativas – IIRP, apresentam por meio do quadro intitulado “Janelas de
disciplina social” duas forças vetoriais para um sistema social denominadas
como controle e apoio, as quais correspondem à dicotomia entre cuidados
e limites (McCOLD; WACHTEL, 2002, p. 115).

No vetor horizontal, está o apoio, o suporte que a pessoa deve receber para
que possa assumir a responsabilidade individual pelos atos praticados e por
sua vida, desenvolver ou recuperar a autoestima e a sua percepção quanto
ao seu valor para si, para a sua família e para suas redes de pertencimento.

No vetor vertical, são representados os limites e os deveres a serem


observados - as regras e atitudes respeitosas enquanto comportamento
nas dependências da escola, assim como em outros contextos, de modo
que contribua para a construção de um ambiente favorável à convivência
pacífica, seja nas interações entre pares (aluno-aluno), entre aluno-
professor, ou entre qualquer outro integrante da trama de relações em
contexto escolar, visando a cooperação, a consciência da interconectividade
e do senso de comunidade.
A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma 23

A lógica restaurativa está assentada, segundo os autores, no alto grau


de controle e no alto grau de apoio, visando dar condições para que as
responsabilidades e os compromissos assumidos sejam cumpridos,
enquanto a lógica punitiva está radicada em um grau de controle mais alto
e um baixo apoio e a permissiva no oposto. A disciplina restaurativa toma
em consideração o ato praticado, suas múltiplas causas e efeitos e busca
pelo viés ético (e não pela coerção) resolver as questões.

SÍNTESE O sistema punitivo é pautado em regras e exerce o controle


por meio da punição, enquanto o restaurativo se pauta pela
responsabilidade social e a interação. O termo corrigir, no contexto
da disciplina restaurativa, tem o sentido de tratar os danos, as
necessidades das vítimas, ofensores e comunidade.
24 A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma

1.2 DAS REGRAS IMPOSTAS AOS NORTEADORES DE


CONVIVÊNCIA CONSTRUÍDOS COM O OUTRO

Muito se tem questionado acerca dos objetivos da punição e os resultados


alcançados. A relação linear fundada em prêmio e castigo não considera, na
maioria das vezes, as múltiplas causas da prática de um ato, nem tampouco
os vários efeitos produzidos. Não raras vezes, o aluno castigado tende a
questionar o castigo e a deslocar o foco do ato praticado e seus efeitos
para quem aplicou a punição, desejando vingança. Tende a descontar
as suas frustrações nos colegas, professores, equipes, na própria escola
(depredando-a) e no entorno.

Pensar a disciplina convida a pensar as relações, os campos de tensão e


a constante busca do equilíbrio rompido em razão de diversos fatores.
Refletir sobre a punição, por sua vez, leva a questionar a razão de esta ser
a principal característica da disciplina escolar, quando a punição ataca
apenas o ato e não as causas dos conflitos. Atacar as manifestações das
violências sem considerar as razões e motivações não elimina o problema.
Ainda assim, muitos ainda creem que a punição é um dispositivo mais
rápido e fácil para administrar um problema e parece difícil demovê-los
dessa crença.

Além disso, vem sendo percebido que a construção conjunta de regras que
representem cada um e a todos leva a um maior comprometimento de
cada um com a construção coletiva e os valores coletivamente definidos.
Em geral, a participação na construção leva a maior grau de adesão do que
regras impostas, as quais tendem a gerar resistências e descumprimentos.
O comprometimento de cada um com a decisão tomada no coletivo gera
um sentimento de autoria, aumentando a concordância com os termos
pactuados e também o grau de colaboração.
A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma 25

1.3 PRINCÍPIOS E VALORES DA JUSTIÇA


RESTAURATIVA

A justiça restaurativa é radicada em princípios e valores e se sustenta em


três pilares ou conceitos centrais: dano, obrigações e engajamento.

O primeiro pilar é o dano, que remete às necessidades da vítima e à garantia


da centralidade no processo, logo, em JR, fazer justiça é preocupar-se com
a vítima, identificar suas necessidades e reparar o dano sofrido concreta
e simbolicamente. O segundo é o das obrigações, que define que aquele
que provoca um dano deve ser estimulado a se responsabilizar pela
reparação e, para tanto, deve compreender o dano em sua extensão e
assumir o compromisso de, na medida do possível, repará-lo concreta
ou simbolicamente. O terceiro é o engajamento ou participação, que
sugere que os afetados pelo dano possam participar do processo judicial,
recebendo informações e se envolvendo no processo decisório.

Para que esses princípios ganhem efetividade, há que se considerar


também as questões estruturais e o contexto, de modo a impedir a
vitimização do autor do ato danoso, diante de eventual fúria da vítima e/
ou da comunidade indiretamente afetada.

São valores da justiça restaurativa: percepção da própria potência,


participação, autonomia, respeito, busca de sentido e de pertencimento
na responsabilização pelos danos causados, mas também na satisfação
das necessidades evidenciadas a partir da situação de conflito.
26 A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma

II JUSTIÇA E PRÁTICAS RESTAURATIVAS

2.1. UM CONCEITO EM CONSTRUÇÃO: O QUE É A JR


E COMO É COMPREENDIDA

A denominação justiça restaurativa tem origem em 1975. Albert Eglash


apontava para a existência de três respostas ao crime (ou ato danoso): a
retributiva, radicada na punição, a distributiva, fundada na reeducação, e a
restaurativa, com raízes na reparação.

A justiça restaurativa foi definida como um processo pelo qual todas as


partes envolvidas em um delito [ato danoso] “reúnem-se para resolver
coletivamente como lidar com as consequências da ofensa e suas
implicações para o futuro” (MARSHALL, 1996, apud MCCOLD, 2008).
Entretanto, o tema ganhou maior visibilidade a partir das discussões
suscitadas na década de 1990, quando Howard Zehr apontou para dois
sistemas de justiça: o punitivo-retributivo e o restaurativo.

Há convergência entre os autores centrais do tema que a justiça restaurativa


é um termo amplo que abriga diversas abordagens para o manejo de um
delito ou ato danoso, com vistas a um maior protagonismo de todos os
envolvidos, de modo a possibilitar a reparação dos danos e restabelecer as
relações tanto quanto possível.

Trata-se de um conceito em permanente construção, que suscita


controvérsias em razão dessa grande amplitude. Vem sendo desenvolvido
A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma 27

a partir de três referenciais: o funcional, descritivo do processo restaurativo,


sua dinâmica e os procedimentos; o ético-filosófico, pautado em princípios
e valores para a convivência; e, por fim, o transformativo, focalizado nos
níveis individual, relacional e institucional – o potencial e as potencialidades
para geração de transformações.

Zehr alerta que a JR vem sendo definida a partir de bases conceituais muito
amplas e interpretações equivocadas são suscitadas em torno de sua
definição. Então vemos conceitos que a definem por oposição, apontando
uma justiça boa e outra má, rejeitando a justiça penal vigente. E também
conceitos negativos, pautados no que a JR não é. Além desses, há propostas
que se pretendem amplas o suficiente para tornarem-se substitutivas do
sistema de justiça vigente. Por essa razão, torna-se necessário esclarecer
esse modelo de justiça e o que não corresponde a tal modelo.

Ao descrever a justiça restaurativa, Howard Zehr pôs em foco a reparação


dos danos e as necessidades de todos os envolvidos: vítima, ofensor e
comunidade, entendida como rede de pessoas conectadas com ambos.
Entende que a JR é uma justiça vocacionada para “trata[r] das obrigações
resultantes desses danos” que vão além do ofensor, sendo também
“da comunidade e da sociedade”; pelo “uso de processos inclusivos
e colaborativos”; e com o envolvimento de todos os que direta ou
indiretamente “têm interesse na situação (vítima ofensor, comunidade e
sociedade)”, buscando a correção. Esse “corrigir” passa (ou deveria passar)
por efetivar “um plano para cuidar dos danos e necessidades da vítima” e
outro “para tratar daquilo que está acontecendo na vida” do autor do ato
danoso “e que contribuiu para levá-lo à ofensa” (ZEHR, 2008, p. 257-258).4
Além disso, a justiça restaurativa não é um programa orientado para o
perdão, não é uma mediação de conflitos; não é (não é ou não deveria ser)
uma estratégia para reduzir percentuais de reincidência delitiva, nem uma
alternativa para o encarceramento. Ela não está voltada somente para
os delitos menores e também não é uma panaceia para todos os males
(ZEHR, 2007).

4 ZEHR, H. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. Tradução por Tônia Van
Acker. São Paulo: Palas Athena, 2008.
28 A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma

A justiça restaurativa procura equilibrar o atendimento às necessidades de


quem sofreu um ato danoso, da comunidade que foi impactada pelo ato e a
necessidade de reintegração de quem é o autor do ato. Tem como objetivo
atender as necessidades de todos os envolvidos, especialmente quem
sofreu o dano, permitindo que todos participem do processo de forma
adequada, para o alcance de uma solução justa e produtiva (RESTORATIVE
JUSTICE CONSORTIUM, 1998).

2.2. UM POUCO DA HISTÓRIA: AS ORIGENS DA JR

A justiça restaurativa remonta às práticas ancestrais de povos nativos


do Canadá e dos Estados Unidos, os navajos, e da Nova Zelândia e da
Austrália, os maoris, que encontram suas bases de justiça na coesão e
não na coerção. Os povos ancestrais que inspiram a justiça restaurativa
entendem-se interconectados e interdependentes, formando um todo
vivo. Quando um membro da comunidade sofre um dano, todos são
afetados e responsáveis por restabelecer a ordem. Como responsáveis
pela ofensa e pela reparação, engajam-se no processo de cura.
A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma 29

As práticas restaurativas antecedem a estruturação das bases teóricas


da justiça restaurativa, que fomenta formas de justiça negociadas entre
os envolvidos já presentes no cotidiano dos povos das nações ancestrais
também da África e da América do Sul.

A justiça restaurativa surge na década de 1970 em momento de fortes


questionamentos quanto ao sistema vigente a partir de alguns movimentos
sociais de insurgência contra o sistema instituído, refutando a violência
legitimada pela prática e pelo monopólio estatal do poder de punir. Nesse
sentido, foi influenciada pelo movimento abolicionista (penal), que coloca
em questão o sistema penal retributivo punitivo vigente e a falência da
pretensão reabilitadora. O abolicionismo penal, enquanto movimento
social emergente na década de 1970, questionava o castigo banalizado e
sua correlata acomodação no direito penal.

Outras correntes críticas da justiça penal influenciaram a justiça restaurativa


e fortaleceram a ideia de realização da justiça como resposta justa ao
crime ou ato danoso, sem deixar de valorizar a subjetividade de todos
os envolvidos, pressupondo o reconhecimento de sua dimensão (inter)
pessoal que não se funde com a definição do tipo penal (crime).

Além disso, vários movimentos sociais faziam críticas e avaliações ao


sistema penal vigente, colocando em questão não somente os altos custos
do sistema e os resultados decorrentes, como a ineficácia do sistema penal
e a necessidade de criação de novas vias alternativas.

O Movimento pelos Direitos Sociais da Vítima, iniciado há mais de 30 anos,


ganhou força. Esse movimento defende que, embora as respostas e as
necessidades das vítimas variem de pessoa para pessoa, em geral, todas
necessitam de reconhecimento de seus direitos enquanto vítimas, o que
incluí, dentre outras demandas: maior participação no sistema de justiça,
com a notificação, presença e escuta no decorrer do processo judicial, além
da compensação financeira pelos danos sofridos.
30 A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma

Acchilles e Stutzman-Amsturz (2008) afirmam que a promessa da justiça


restaurativa parece ser a do reconhecimento da existência da vítima, da
sua inclusão no processo como parte ativa e não mera informante sem
relevância.

A Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente


(CIDC), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e, recentemente, a
formulação do Sistema Nacional de Atendimentos Socioeducativo (SINASE)
ampliam as condições para transformações positivas no âmbito da defesa
e da garantia dos direitos das crianças e adolescentes, trazendo a ideia de
justiça como valor, o que colocaria no centro as vítimas e promoveria a
participação da comunidade para a restauração dos conflitos decorrentes
de delitos.

Os artigos 4° e 5° do ECA dispõem acerca do dever de cuidado da família


e do poder público em relação à criança e ao adolescente, evitando todo
tipo de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão, sob pena de punição (seja por ação ou por omissão). Define que
o delito praticado por adolescente é ato infracional, prevê o procedimento
para a apuração, as formas de privação de liberdade, as medidas e a
responsabilização, indicando as instituições responsáveis pelo atendimento
ao adolescente acusado da prática do ato, tornando imprescindível o
desenvolvimento de ações intersetoriais e transdisciplinares, no tocante
à implementação de um modelo garantidor dos direitos das crianças
e adolescentes e, que ao mesmo tempo, promotor da sua autonomia
enquanto sujeitos de direitos.

Coube à JR o papel de articular as redes e criar mecanismos/política de


atendimento integral à criança e ao adolescente e coube a JR fortalecer
o trabalho em rede, promovendo parcerias que viabilizem transcender os
problemas, articulando os atores e instituições que constituem os eixos do
sistema de garantias.
A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma 31

A ideia da JR reverberou no Brasil estimulando algumas práticas


e inspirando o Projeto de Lei 7006/06, da Comissão de Legislação
Participativa, em tramitação, que pretende incluir na justiça criminal
brasileira procedimentos da justiça restaurativa em consonância com
práticas estabelecidas em diversos países do mundo e com o disposto
na supracitada Resolução da ONU. A proposta é alterar o Código Penal
(Decreto-Lei 2848/40) e o Código de Processo Penal (Decreto-Lei 3689/41),
além da Lei sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei 9099/95),
com o objetivo de instituir o processo restaurativo, segundo os princípios
e procedimentos preconizados na RES 12/2002.

Os três primeiros pilotos de justiça restaurativa foram desenvolvidos pela


Vara da Infância e Juventude de São Caetano do Sul (SP); pelo Juizado
Especial Criminal do Núcleo Bandeirantes, em Brasília (DF), e pela 3ª
Vara da Infância de Porto Alegre (RS). Embora pautados nos mesmos
princípios da JR, todos foram desenhados para atender as peculiaridades
e especificidades locais, ganhando, com isso, diferentes matizes e usos,
que não os confundiam. Foram concebidos segundo as inspirações das
principais metodologias: círculos de paz, conferências de grupos familiares
e comunicação não-violenta.

Diversos outros projetos foram desenvolvidos em outros contextos e


apoiados de diferentes formas, contando com recursos provenientes de
outras fontes que não a Secretaria da Reforma do Judiciário e a de Direitos
Humanos. Com isso, a JR foi polinizada por todo o território nacional.

2.3. JUSTIÇA E PRÁTICAS RESTAURATIVAS:


PRINCIPAIS METODOLOGIAS

A definição de justiça restaurativa e práticas restaurativas não guarda


consenso entre os autores. Para alguns, como Walgrave, a justiça e as práticas
32 A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma

restaurativas se distinguem em função do local – sendo a JR aplicável


ao Sistema de Justiça (Criminal) e as práticas a outros contextos sociais,
como escolas e comunidades. Para Ted Wachtel5, a justiça restaurativa é
subconjunto das práticas restaurativas, já que, em sua definição, as práticas
constituem ciência social que estuda a construção de um capital social
voltado para o alcance de uma disciplina social instituída por um processo
participativo de aprendizagem e de tomada de decisão. Nessa concepção,
elas têm maior amplitude que a justiça restaurativa, estando estas contidas
naquela. Porém, nós julgamos que as práticas restaurativas abarcam todas
as metodologias que concretizam ou materializam a justiça restaurativa,
sendo através delas que a JR se coloca em andamento.

No Brasil, a Mediação, os Processos Circulares (Círculos de Paz) e as


Conferências de Grupos Familiares constituíram as bases metodológicas
de alguns projetos de JR implementados. As Conferências ganharam
novos matizes a partir dos aportes da Comunicação Não-violenta,
sendo desenvolvida metodologia específica6 que foi denominada como
Círculos Restaurativos. No caso específico das Conferências de Grupos
Familiares, a inspiração serviu para os Círculos Restaurativos, variaram e
foram renomeadas consoante usos locais. Todas as três metodologias
pressupõem uma etapa preparatória cuidadosa que é comum a elas.
Verificação dos requisitos: voluntariedade, admissão da autoria do ato
danoso e autonomia da vontade (estar e permanecer sem influências
de terceiros). É nessa etapa que o mediador, facilitador ou coordenador
deve avaliar a adequação do uso da metodologia ao caso e aos propósitos
desejados: verificar os objetivos, as motivações e as finalidades. Ele deve
se ocupar das questões relativas à segurança de todos os participantes, da
presença dos requisitos necessários à criação de espaço equilibrado, com
igual oportunidade da fala, atendimento dos interesses e das necessidades
de todos os participantes.

5 Fundador do International Institute for Restorative Justice.


6 Dominic Barter capacitou os primeiros facilitadores em várias regiões do Brasil utilizando
metodologia desenvolvida que conta com aportes da CNV
A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma 33

2.3.1 MEDIAÇÃO
A mediação é um processo estruturado em que as partes envolvidas em
uma situação de conflito ou violência contam com a ajuda de um media-
dor capacitado para auxiliar no diálogo entre aquele que sofreu o dano e
o autor do ato que o causou. O objetivo é esclarecer como o evento (crime
ou ato infracional) os afetou, compreender os fatos e os efeitos gerados,
buscando construir soluções que atendam as necessidades de quem sofreu
o dano e daquele que praticou o ato danoso.

No âmbito escolar, os próprios alunos podem realizar a mediação. Esses


estudantes têm sido denominados de “mediadores jovens”.
Esse dispositivo é adequado tanto para as crises pontuais (enfoque reativo)
quanto para integrar os programas integrais e sistêmicos para prevenção
de conflitos (enfoque proativo). Isso privilegia a dinâmica de diálogo
voluntário, inclusivo, confidencial e estabelecido em bases respeitosas.

Dinâmica da Mediação:

A participação voluntária e a aceitação do convite à Mediação Vítima-


Ofensor ou Restaurativa pressupõem não só a liberdade para estar,
permanecer, mas também a de se expressar, silenciar se assim entender,
acordar ou não, se e quando desejado independentemente de histórico
de violência.

Preparação:

Na pré-seleção dos casos há criterioso cuidado visando a segurança de


todos os envolvidos; o potencial de resolutividade do conflito; os riscos
de (re)vitimizações e frustrações por ambos os lados; a observância
dos princípios da assunção da responsabilidade pela prática do ato
por parte do ofensor, a voluntariedade de todos, a livre vontade de
participar, a informalidade, interdisciplinaridade, princípios essenciais ao
estabelecimento da mediação nesse âmbito.
34 A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma

Primeira Etapa: abertura

Esclarecimento quanto à diferenciação da figura do mediador e do


juiz; quanto à informalidade e a oralidade; a dinâmica da mediação; a
existência de igual oportunidade de fala, de escuta e da formulação
de perguntas; a possibilidade da manifestação de participantes
(acompanhantes), desde que não retire o foco ou restrinja o
contato direto entre vítima e ofensor. Deve haver clareza sobre
a igual oportunidade do diálogo acerca de formas de resolver as
questões e da reparação dos danos. O mesmo em relação à redação
do acordo, quando possível atender a todos os envolvidos e desde
que não haja qualquer tipo de coerção exercida por qualquer um
dos presentes. Esclarecimentos sobre a confidencialidade durante
todo o curso da Mediação e a decorrente impossibilidade do uso
das informações para a construção de prova processual, ainda que
seja em esfera cível, na hipótese de não haver acordo ao final da
mediação. Esclarecimento quanto à possibilidade de realização de
reuniões individuais (caucus). É ressaltada também a possibilidade e
a importância da presença dos advogados com a função de auxiliar
seus clientes no alcance de soluções de ganhos mútuos. Por fim, há
o estímulo a uma escuta atenta, sem interrupções, em linguagem
não adversarial, com vistas a soluções satisfatórias (UMBREIT 2001,
NORDENSTHAL 2005, AZEVEDO 2007, et al).
A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma 35

Na reunião individual define-se, em regra, a ordem das falas, sendo usual


a vítima iniciar o seu relato ou escolher se quer falar primeiro. Este poder
atribuído à vítima é parte do processo de recuperação de sua percepção (e
sensação) de autodeterminação e da sua sensação de recuperação dessa
autodeterminação perdida com o ato violento.

As falas são norteadas por perguntas formuladas pelo mediador, que


versarão sobre o fato e suas consequências. Cada qual terá, portanto, igual
oportunidade de se colocar e de falar sobre os fatos a partir de seu ponto
de vista.

Segunda Etapa

Todos têm a oportunidade de falar acerca do que compreenderam e dos


impactos da escuta. O mediador vai resumindo e redefinindo o problema
conforme o desenvolvimento dos trabalhos e as conclusões alcançadas,
criando uma agenda de trabalho que atenda aos objetivos da vítima e do
ofensor, que versam em regra sobre temas a serem tratados e a ordem de
prioridade, distribuição do tempo para cada tema etc.

Terceira Etapa

A terceira etapa é a da elaboração de propostas para a resolução do


conflito, que deve ser da autoria dos mediandos. Para Nordenstahl (2005,
p.92-94), o mediador pode auxiliar com propostas de solução ao problema
desde que atue com imparcialidade. Para outros autores o mediador não
deve sugerir e nem interferir.

Quarta Etapa

A quarta etapa corresponde à identificação dos pontos fundamentais


para constar do acordo, quando alcançadas soluções que atendem
satisfatoriamente a todos.
36 A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma

Quinta Etapa

Etapa de seguimento e controle segundo Nordenstahl (2005, p. 97-98)


denomina como etapa de “seguimento e controle” e que se dá após
o término da mediação, visando a garantia do cumprimento do que foi
acordado.

Há variações na forma de conduzir ou instalar a mediação, sendo possível a


instalação/realização de painéis nos quais os ofensores escutam vítimas de
crimes ou atos semelhantes aos praticados por eles. Estas vítimas descrevem
a dor e o sofrimento experimentados em razão do crime. Trata-se de uma
proposta que tem o objetivo de oferecer espaço para que a vítima possa
obter informações (respostas as suas questões), dissolver estereótipos,
expressar sentimentos e obter o ressarcimento dos danos. Em relação aos
ofensores, produz o deslocamento do lugar de ofensor à lei e ao Estado,
conferindo um espaço para se colocar, compreender as repercussões
do ato e responsabilizar-se pelos danos a que deu causa (ZEHR, 2008).

2.3.2 PROCESSOS CIRCULARES: CÍRCULOS

Fonte: Celia Passos in Processos Circulares (2015)


A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma 37

O círculo é um dispositivo para que todos os envolvidos compreendam


um fato ou questão ocorridos, de modo a entender quais foram os
impactos causados, em sua dimensão e amplitude, visando identificar
formas de minimizar os danos decorrentes do ato ou conduta. Seus
princípios são liberdade, voluntariedade, horizontalidade, conectividade e
interdependência.

Eles têm uma ampla gama de aplicabilidade. Os estudiosos do tema


apontam para uma gradação entre os diferentes tipos de círculos existentes,
que podem ter diferentes nuances de acordo com a condução do facilitador
e com os conteúdos tratados. Representações gráficas colocam em uma
ponta à esquerda ou à direita os círculos os que não envolvem conflitos
de alta/maior conflitualidade e, portanto, visam encontrar soluções para
problemas complexos. Na outra extremidade, estão situados os que não
envolvem conflitos e sim uma relação de amizade e cooperação entre os
participantes. Nessa gradação, os círculos podem ser divididos entre os
que estão no âmbito da justiça restaurativa e os que estão fora dela. No
âmbito da JR, estão os círculos que envolvem situações de conflitos e, fora,
os que servem de dispositivo para inúmeras outras situações.

Há círculos adequáveis a qualquer situação em sala de aula. Para a abertura


do dia, para o encerramento, para a produção de conhecimento, para
celebrações, para o estudo de determinadas disciplinas como história,
português, ciências etc. Como resultado dos processos circulares, o
conhecimento e as conexões entre todos são ampliados.

O processo é fundado na crença de que cada um tem algo a oferecer e todos


têm “igual valor e dignidade”. No círculo, todos têm igual oportunidade de
colocar suas ideias e opiniões. O pressuposto é o de que “cada participante
tem dons a oferecer na busca para encontrar uma boa solução para o
problema” (PRANIS, 2010, p. 11).
38 A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma

A justiça restaurativa contempla diferentes círculos:

• de apoio ou suporte – voltados tanto para a vítima de ato danoso


quanto para o ofensor;
• restaurativo – para ressarcir danos ou restaurar relações;
• de reintegração – para o acolhimento de jovens após o cumpri-
mento de medida socioeducativa (internação) e para apoio a
adultos quando do retorno ao seu contexto social após o cum-
primento de pena de encarceramento em sistema prisional, entre
outros.

Dinâmica dos Círculos:

A participação voluntária e a aceitação do convite à Mediação Vítima-


Ofensor ou Restaurativa pressupõem não só a liberdade para estar,
permanecer, mas também a de se expressar, silenciar se assim entender,
acordar ou não, se e quando desejado independentemente de histórico
de violência.

Preparação:

Pré-seleção criteriosa com observância do histórico da violência e


segurança no contexto os riscos de (re)vitimizações; presença dos
princípios da assunção da responsabilidade pela prática do ato por
parte do ofensor, a voluntariedade dos participantes, a informalidade,
necessidade de construir uma visão compartilhada sobre alguma questão
ou problema, disponibilidade, clareza quanto à motivação e propósito do
círculo e existência de tempo suficiente para a instauração de um círculo.
Escolha do facilitador (guardião), definição do dia e horário do encontro,
focalizando na preparação minuciosa de cada um dos participantes,
por meio de entrevistas preparatórias individuais e presenciais de
modo a familiarizar as pessoas para o momento do encontro segundo a
metodologia dos processos circulares.
A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma 39

Etapa do encontro: círculo

No dia do encontro, há que se colocar um objeto no centro do círculo,


marcando o ponto de convergência. Pode ser uma planta, algum troféu
recebido pelo time, alguns livros, uma flor ou qualquer objeto que marque
o ponto central. Deve-se escolher algo que possua significado para o
grupo. Essa é uma forma de potencializar a conexão entre todos e evocar e
criar sintonia entre as pessoas.

Acolhimento:

O primeiro momento é o do acolhimento. O facilitador/anfitrião


dá as boas-vindas a todos, agradece pela participação e convida a
tomarem os seus lugares. Inicia a cerimônia de abertura – que visa
diferenciar a qualidade de presença no círculo do cotidiano corrido –
podendo utilizar uma música ou poesia. Apresenta o bastão de fala, o
convite a usar a oportunidade de falar pela circulação unidirecional,
esclarecendo que aqueles que não desejarem falar podem ofertar
o silêncio, passando o bastão adiante. Esclarece o centro do círculo
como um ponto de convergência entre todos. Esse é o momento da
percepção.

ILUSTRAÇÃO 4 (Circundando texto acima)


40 A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma

Construção de valores para a convivência:

Em seguida são formulados os acordos quanto a valores ofertados para o


espaço compartilhado. O grupo estabelece, em consenso, como conduzirão
o círculo, quais serão os norteadores de comportamentos e atitudes que
o coletivo assume para estar em convivência durante o período do círculo.
Funcionam como lembretes dos compromissos assumidos para a criação
de um espaço seguro e protegido especialmente para diálogos abordando
temas sensíveis.

Exploração do tema:

As questões são trazidas à conversa, visando a compreensão dos temas,


sendo esclarecidas as preocupações e interesses, os impactos sofridos,
a amplitude dos efeitos, percepções e sentimentos, bem como as
responsabilidades e formas de sanar o dano.

Construção de consenso quanto a solução:

Clarificar aspectos da questão e definir critérios para a solução em consenso


e as propostas a serem definidas por meio do consenso (aceitação de todos
e comprometimento de apoiar à implementação).

Elaboração do acordo:

Momento de redigir o texto de autoria coletiva, esclarecer sobre as ações


necessárias ao cumprimento do acordo, os próximos passos, compromissos
e responsabilidades assumidos por cada um dos participantes e, por fim,
definir as formas de acompanhamento.
A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma 41

Encerramento:

Uma rodada final, dando a oportunidade de fala a cada um e a todos. Após


essa rodada inicia-se a cerimônia de encerramento – visando diferenciar
o espaço no círculo do cotidiano – preparando, portanto, as pessoas para
retornarem as suas atividades cotidianas.

Acompanhamento ou pós-círculo:

É o momento em que se acompanha o cumprimento do acordo feito no


círculo, de examinar as causas que levaram a um eventual descumprimento
das obrigações assumidas e de readaptar o teor do acordo. Havendo o
cumprimento, é o momento de celebrar o sucesso.

2.3.3 CONFERÊNCIAS DE GRUPOS FAMILIARES


As conferências de grupos familiares (family group conference) têm origem
nas tradições dos povos maoris da Nova Zelândia e tornaram-se o modelo
de justiça juvenil do país desde os finais da década de 1980. Após convocar
uma comissão para se debruçar sobre (e estudar) o problema das condutas
dos jovens na Nova Zelândia, o governo estabeleceu que uma ampla gama
de temas relacionados com o que definiam como delinquência juvenil
seria enfrentada pelas denominadas conferências em vez de tratá-los e
decidi-los no âmbito do Tribunal.

São encontros formais para a tomada de decisão em conjunto sobre


eventos que, mormente, envolvem violência ou ofensas graves. Deles
participam o ofensor e sua família estendida (whãnau), a vítima e seus
suportes, um representante do sistema de justiça juvenil e outras pessoas
significativas.
42 A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma

O diálogo é organizado para prover meios de as pessoas reunidas


encontrarem a forma de reparação do dano causado em razão do
comportamento ofensivo. É possível sofrer variações em relação aos
participantes: pessoa que sofreu o dano ou ofensa, suportes de uma e
de outra parte e outras pessoas significativas. Em geral, inclui as famílias
e aqueles que negociam o resultado e quem os aprova (se o grupo ou a
família).

Dinâmica das Conferências de grupo familiar:

Conforme as demais a preparação e avaliação da adequação é minuciosa e


se assemelha aos procedimentos das demais metodologias.

Primeira Etapa: abertura

Abertura pode ser iniciada com uma oração, canção ou poema,


caso seja considerado adequado aos envolvidos, passando-se as
apresentações pessoais e uma apresentação geral do encontro e o
foco das atividades.

ILUSTRAÇÃO 6 (Circundando texto acima)


A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma 43

Segunda Etapa: compartilhamento de informações

A segunda é a etapa do compartilhamento de informações. Tem foco


no comportamento do ofensor. É lido o resumo dos fatos pelo policial
presente, sendo que neste resumo devem constar todas as acusações que
recaem sobre o ofensor (as quais já devem ter sido previamente assumidas
como verdadeiras por este); em seguida é perguntado ao ofensor se
compreende as acusações que lhes são feitas. O autor do ato danoso pode
expressar suas motivações e após ouvir a experiência vivenciada pela
vítima e os impactos do ato sobre ela, poderá dizer como se sente após
ouvi-la e o que compreendeu de sua fala. Este pode ser o momento em
que se estabelece o diálogo entre vítima e ofensor, objetivo primeiro das
Conferências de Grupo Familiar. Quando a conversa flui, pode ser solicitado
à família do ofensor e a ele um resumo do que ouviram, pode ser aberta
a fala aos defensores leigos e advogados juvenis, que sabem que estão
no contexto não para interferir (função litigiosa), mas para apoiar o jovem
autor do ato danoso, em seguida, pergunta-se se tem alguma informação
ou se gostariam de acrescentar algo. O Coordenador sumariza o que foi
falado e abre espaço para que falem sobre o que ouviram, estendendo aos
suportes a oportunidade de oferecer contribuições.

Terceira etapa: deliberações

Conversa realizada em reunião privada em que o ofensor, juntamente com


a sua família, avalia os recursos e os suportes necessários para identificar
as bases para a elaboração do plano a ser proposto. Após esse momento
pode ser feito um intervalo em que é oferecido um lanche (opcional).
Durante esse intervalo a pessoa que sofreu o dano (vítima) e seus suportes
esclarecem ao coordenador suas expectativas e desejos para que sejam
incluídos no plano de trabalho a ser elaborado. Em seguida, reinicia-se
com a reunião.
44 A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma

Quarta etapa: acordo

Momento em que são feitas as sugestões pela família do autor do ato


ofensivo, sendo este estimulado a apresentar as propostas e em que a
vítima pode propor ajustes. Outras contribuições dos demais presentes
são incorporadas e é avaliada a exequibilidade do plano. Concluindo-se
pela viabilidade do plano, como e por quem será monitorado, feitas as
negociações finais, são redigidos os termos do acordo, incluindo-se no plano
de trabalho as questões, a reparação, a prevenção e o monitoramento. Na
hipótese de a vítima não estar presente (participação por carta) é avisado
que ela será consultada sobre o atendimento de suas necessidades.

Quinta etapa: encerramento

O encerramento poderá incluir uma fala ou uma oração, caso considerem


apropriado.

Observa-se que na Austrália a incorporação das Conferências de Grupo


Familiar, enquanto prática social dialógica, não incluiu a reunião privada,
realizada para as deliberações familiares e processo de tomada de
decisão pelo ofensor e seus suportes sobre o que oferecer à vítima. No
sistema australiano tudo é realizado em plenária, ou seja, todos estão
presentes durante todo o tempo do encontro, diferentemente do sistema
neozelandês quanto à incorporação dessa prática.
A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma 45

III
DESAFIOS DA IMPLANTAÇÃO DE
UM SISTEMA DE CONVIVÊNCIA EM
ESCOLAS

Os programas de convivência escolar podem ser o caminho mais curto


para a solução dos conflitos e da violência na escola. Estimulam práticas
que, quando incorporadas, geram resultados que ultrapassam os limites
do convívio escolar e contribuem para a formação de indivíduos mais
solidários, éticos, tolerantes e plenamente conscientes da interdependência
inerente aos seres humanos. Desse modo, os resultados alcançam as
relações familiares, as interações no seio das comunidades e as relações
sociais em geral.

Em ambiente escolar, a convivência é compreendida como toda a trama


de relações interpessoais estabelecidas entre todos os membros da
comunidade educativa, configurando-se processos de comunicação, de
exposição de sentimentos, manifestação de valores e atitudes e, ainda, o
desempenho de papéis em relações que podem envolver poder e status.
Dessa maneira, é conveniente tratar do tema da violência em contexto
escolar de forma a abranger toda a conduta considerada dissonante. Os
episódios de violência em escolas são praticados: contra bens materiais e
contra pessoas. Na primeira categoria, temos as depredações, pichações,
danos a veículos, roubos e furtos. Na segunda, desacato aos professores,
equipes técnicas e de apoio, brigas entre alunos, porte ou consumo de
bebidas alcoólicas e drogas, invasões, porte de arma de fogo e ameaças,
insultos, indisciplinas em sala de aula e bullying.
46 A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma

O cenário impõe a implantação de um sistema de convivência nas escolas,


o que passa pelo desenvolvimento de habilidades para gerir os conflitos,
minimizando, tanto quanto possível, seus efeitos negativos e maximizando-
se os efeitos positivos. Essa é uma forma de alcançar o objetivo pedagógico
de formar alunos para tornarem-se indivíduos pacificadores.

Há distintos programas e formas de trabalhar a escola e atuar na escola. Há


aqueles com foco centrado no estudante, dirigido à gestão de situações de
conflito deflagrado ou a uma situação de crise específica (enfoque reativo)
e há programas com enfoque dirigido à prevenção dos conflitos danosos e
perturbadores (enfoque proativo ou preventivo).

Independentemente do sistema eleito, todos convidam a abraçar os três


movimentos pedagógicos que vêm ampliando o foco das escolas com
vistas à participação democrática e cidadã:

• a pedagogia da resolução de conflitos, que inseriu nas escolas


os programas de mediação entre pares e desenvolveu currículos
para integrar a resolução de conflitos ao cotidiano escolar, abran-
gendo todos e não somente a um grupo capacitado;
• o movimento de educação do caráter, concebido para ensinar e
estimular valores e comportamentos éticos, pautados na respon-
sabilidade, no respeito, na confiança, no senso de comunidade, no
cuidar de si e do planeta;
• a alfabetização emocional, que instiga as escolas a levar em con-
sideração tanto os componentes emocionais como os cognitivos,
todos cruciais para o aprendizado no contexto.

Cada um desses movimentos contribuiu para a consolidação da disciplina


restaurativa nas escolas.

O grande desafio para a implantação desse sistema de convivência está na


necessidade de fazer circular o poder e dar igual participação a todos para
que possam contribuir com soluções para os temas de interesse desde
meras discordâncias até questões mais amplas.
A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma 47

3.1 O SISTEMA RESTAURATIVO E O PROCESSO DE


IMPLANTAÇÃO

A escola não é a primeira agência educadora. As famílias, que têm a


atribuição de educar, estão em processo de mudanças e vêm apresentando
novas configurações. Há situações em que os preconceitos, abusos e má
compreensão estão entre os problemas envolvendo familiares, discentes,
docentes, e equipes técnica e de apoio, tornando as relações confusas e
conflituosas ao invés de pautadas em apoio e compreensão mútuos.

A convivência escolar implica em (e depende da) qualidade das relações


interpessoais estabelecidas, participação, habilidade para gerir e resolver
conflitos, sistema disciplinar e normativo e gestão do clima da aula. Os
problemas familiares tornam-se conflitos interpessoais, indisciplina, maus-
tratos entre alunos e até vandalismo e delinquência.

Somente com a prática de programas de educação emocional, bem como


de treinamentos para a resolução de conflitos, poder-se-á, como adverte
Alzate7, envolver as habilidades em todos os níveis de interação dentro
da escola, através de seus programas escolares (de prevenção, gestão e
resolução de conflitos).

O modelo que inclui todos, de forma integral e sistêmica, adquire


consistência por não tomar situações específicas de resolução de conflitos,
mas por ter como objetivo provocar real e sustentável mudança no sistema
escolar. Criar algo que perdure no tempo, que seja um modelo construtivo
e pacífico de convivência e que seja um dispositivo para a prevenção,
gestão e resolução de conflitos. É integral por abranger a todos e sistêmico
por considerar a interconectividade e a interdependência entre todos,
sendo necessária a participação não somente dos docentes, discentes e
das demais equipes, mas também da comunidade e da própria sociedade,
7 ALZATE, R. Resolución de conflictos en la escuela. Ensayos e Experiencias.
48 A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma

já que todas as esferas estão interligadas, seja a família, a escola ou a


comunidade.

Ao se organizar a partir de um sistema de convivência, com regras de


convívio claras, priorizando o respeito e o cumprimento dos direitos de
cada um, afastando qualquer prática abusiva, os episódios envolvendo
violência costumam diminuir. A adoção de um sistema de convivência,
da prática da mediação, dos processos circulares, das conferências de
grupo familiar/círculos restaurativos ou de quaisquer outras ferramentas
de desconstrução, transformação e/ou resolução dos conflitos, reduz a
incidência de conflitos por meio da melhoria da qualidade da comunicação.

O processo de implantação deve ser abrangente, ético e deve proporcionar


percepção da potência própria, dos alunos e dos professores para
assumirem a responsabilidade sobre suas ações e sobre suas escolhas. A
partir dele, será posto em prática o binômio inseparável “direito-deveres”.
Para que a escola desempenhe um papel que vai além da transmissão do
conhecimento, é de fundamental importância compreender as dinâmicas
relacionais, os conflitos e a violência dentro deste contexto.

3.2. UM PROJETO QUE ENVOLVA A TODOS

A implantação de sistemas restaurativos precisa da participação de


todos, docentes, discentes, profissionais das equipes técnica e de apoio
e das famílias para gerar resultados sólidos e sustentáveis (toda a trama
de relações). É necessário seguir algumas etapas, conforme descrição
a seguir, relembrando que deve ser reservado espaço para construção
conforme as especificidades da escola, da localidade onde está inserida e
dos integrantes das redes:

1. Passo preliminar de contextualização e desenho de um sistema


piloto contendo uma etapa inicial necessária para a reflexão acerca
de questões como:
A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma 49

• motivação para adotar um projeto de convivência escolar (com


escuta intra e extramuros);
• objetivos gerais e específicos a serem alcançados;
• identificação dos pontos fortes, os obstáculos a serem superados
e as possíveis formas de contorná-los e vencê-los;
• esclarecimentos necessários;
• ações a serem implementadas em relação ao projeto, tais como a
definição dos níveis em que ocorrerá a implementação do projeto
e a forma de financiá-lo;
• avaliação dos demais recursos necessários, tais como tempo, di-
nheiro e recursos humanos a serem alocados no projeto.

As reflexões e verificações desta fase integram o estudo de


viabilidade do projeto.

2. Desenvolvimento:

• difusão e compromisso: fase em que se dá o necessário contato


institucional, com vistas à sensibilização do grupo, criação e apre-
sentação do desenho preliminar definido para o projeto, estabele-
cimento dos passos necessários à sua implementação.
• Pode ser por meio de uma “jornada de sensibilização”, com vistas
ao comprometimento de todos, sejam diretores, docentes ou de-
mais pessoas que atuem na escola
• difusão da síntese do desenho do projeto tanto no âmbito escolar,
quanto junto aos pais dos alunos, para que estes conheçam os
objetivos e as ações necessárias à sua implantação.
• Para maior comprometimento, deve ser criado um grupo de tra-
balho para pensar a convivência, integrada por todos que quei-
ram colaborar para o alcance dos interesses e metas estabelecidos
para o programa, incluindo pessoas da comunidade;
50 A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma

• construção conjunta considerando os aspectos do programa e a


obtenção do apoio de todos com primordial importância para a
efetividade do projeto.
• É uma fase de sistematização, apoios, conquista de comprometi-
mento das pessoas e obtenção de recursos que venham a susten-
tar o projeto.

3. Formação e capacitação:

• capacitação dos professores e dos alunos para atuarem conforme


o programa, pois uma sólida capacitação dos diretores, docentes
e discentes é fundamental para o êxito do projeto;
• definição do modelo de capacitação e do conteúdo programá-
tico: curso introdutório na abordagem construtiva de conflitos;
linguagem não violenta; negociação colaborativa e ferramentas
comunicacionais, tais como escuta ativa, parafraseio, perguntas,
entre outras.
• Esta fase em que se capacita é também a etapa da mudança de
atitude, o que serve para a construção de uma base sólida para o
desenvolvimento do projeto ao longo do tempo.

4. O desenho do plano de convivência escolar, adaptado de ALZATE8,


pressupõe a condução simultânea de:

• programas curriculares, de forma que, progressivamente, os cur-


rículos escolares passem a incorporar conceitos e habilidades de
resolução de conflitos, mediante a realização de curso indepen-
dente ou por unidades incorporadas ao programa;
• sistema disciplinar pautado na ética e não na coerção: programa de
mediação, facilitação de diálogos (círculos) e conferências de grupos

familiares para enfrentar as situações de conflitos entre compa-


nheiros para resolução de conflito, círculos para desconstruir im-

8 ALZATE, R. Resolución de conflictos en la escuola. Ensayos e Experiências, 24, 44-63.


A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma 51

passes em momentos e situações difíceis de serem tratadas e para


conversas entre a coordenação, os familiares e os alunos envolvi-
dos em questões de indisciplina e prática de atos infracionais, de
modo que tudo seja manejado de forma produtiva;
• transformação da relação pedagógica visando o reforço do apren-
dizado das habilidades de resolução de conflitos, passando ao
aprendizado cooperativo (estudantes trabalham em pequenos
grupos com objetivo de produzir aprendizado compartilhado
e construção de conhecimento) e à controvérsia acadêmica (os
professores podem utilizar os conflitos nas relações pessoais para
motivar a turma e provocar reflexão);
• intervenção no clima escolar por meio do comprometimento de
todos os protagonistas, sejam alunos, professores, equipes técni-
ca e de apoio, pais e família dos alunos e comunidade.

Importante: deve se considerar que o aprendizado fundado em


vivências pessoais dos alunos é mais consistente.

5. Implantação:

• instalação do centro de mediação e práticas restaurativas após o


treinamento dos alunos (e também dos pais e demais membros
da vida social das crianças);
• organização do centro de mediação, definição da equipe, divulga-
ção dos horários, dos espaços alocados para atividades de media-
ção, dos turnos e das regras a serem seguidas;
• acompanhamento e avaliação: fase em que são feitas avaliações
periódicas relativas ao acompanhamento e supervisão das ativi-
dades dos mediadores, reuniões periódicas para retroalimenta-
ção dos trabalhos, treinamentos sucessivos, medições quanto ao
alcance do programa e eventuais necessidades de adequações.

Nesta fase é feita a avaliação quanto ao alcance dos objetivos e


metas traçados e é o momento ideal para a implantação das ações
corretivas.
52 A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma

Voltemos à escola da professora Vera e dos alunos Paulo e Renato...

Os professores, as equipes técnica e de apoio, os representantes dos pais e do


conselho tutelar participaram de 4 encontros. Como forma de sensibilizar os
colegas para uma abordagem adequada dos conflitos, Vera propôs que os
encontros estivessem estruturados da forma a seguir.

AGENDA:
1 - Estudo teórico:

• Conceituação de justiça restaurativa, origem de JR, descrições de


contextos onde pode ser aplicada.

2- Metodologias:

• mediação;
• processos circulares;
• conferências de grupos familiares.

3- Aplicabilidade da JR em ambiente escolar:

• diferenciação entre os sistemas retributivo e restaurativo, norteado-


res de convivência e suas regras para a convivência (eu com o outro);
• dinâmicas sobre valores;
• trabalhando o triplo foco (auto estima, empatia e percepção sistê-
mica), conforme sugerido por Golleman e Sande.
A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma 53

4- Implantação de um sistema de convivência em duas etapas:

• reunião dos funcionários para o desenvolvimento de atividades


de elaboração de projetos para uma cultura de paz, em uma edu-
cação integral
• elaboração de um plano de encontro para a resolução do caso dos
alunos Paulo e Renato.

Lições aprendidas e compromissos firmados

Viver e conviver no espaço escolar é uma experiência que vai muito além
do ensino e da aprendizagem de conteúdo, tanto para alunos quanto para
professores. Para estar na companhia de um outro é preciso coexistir. Portanto,
a relação interpessoal na escola tem grande papel, sendo um pilar da Educação.
Considerando que este espaço de convivência propicia o vir a ser, outro pilar,
é preciso que existam relações cordiais, de respeito e solidariedade de uns com
os outros. Como apreender uma cultura de PAZ? Estabelecendo, a princípio, o
aprender a conhecer os laços afetivos entre professores e seus pares e alunos
entre si. Do encontro cotidiano, num fazer constante, por certo amizades e/
ou tensões poderão ser assumidas e suportadas como aprendizado, algumas
requerendo mediação. A convivência em sala ou no recreio leva à exposição
física e emocional e evidencia valores que regem o “estar com o outro”.

Num local onde crianças pequenas e jovens transitam em atividades lúdicas e


jogos, por certo haverá embates. O professor deve estar atento às formas de
intervir, com isenção, em determinada situação. Atentar sobre o tratamento
das situações que mobilizam seus valores éticos e como trata das reflexões
sobre suas intervenções sem julgamento prévio e com capacidade de reflexão
sobre os acontecimentos.

Os presentes redigiram o seguinte compromisso, onde os valores de convivência


a serem adotados de modo consciente se impõem e se complementam:
54 A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma

1. A convivência será regulada por padrões éticos, com o


compromisso de estimular o desenvolvimento de virtudes morais e
intelectuais, bem como a responsabilidade de definir e trabalhar com
princípios que promovam o saudável convívio social, formador de
cidadãos responsáveis e solidários, nos espaços intra e extramurais.

2. A dedicação e a atenção dos professores e das equipes escolares


aos alunos nos intervalos necessita ser constante.

3. O estímulo à interação consciente na convivência com e dos


alunos entre si, levando o professor a refletir sobre a formação do
educando, na sua integralidade, para serem cidadãos e sujeitos
éticos capazes de solidarizar-se e responder por suas atitudes.

Seguindo programação discutida por todos, foram selecionados aspirantes


a mediadores e facilitadores de diálogo (entre docentes, discentes e
demais integrantes da rede), para juntamente com Vera, iniciarem um
“Projeto de Escola Restaurativa”, no qual seriam traçadas estratégias para o
envolvimento de todos.

O caso de Renato e Paulo foi o primeiro a ser tratado pelo grupo em


conjunto, e sob as lentes da justiça restaurativa, tornando-se emblemático:
ponto de mutação para um novo paradigma.

Após sessões de mediação entre os alunos envolvidos no conflito, suas


famílias e a equipe técnica da escola, seguiram-se dois Círculos: o primeiro
de Suporte ao Renato, do qual participaram: os colegas mais próximos, a
professora e um membro da rede de saúde encarregado dos agendamentos
de serviços odontológicos. O segundo de Reintegração para Paulo, que
não deixou a escola e obteve acolhimento dos colegas de turma e dos mais
novos, após esclarecido que não houve intenção de Paulo em machucar o
colega mais novo.
A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma 55

A escola atualmente mantém uma equipe de mediadores e facilitadores de


diálogo e instalações apropriadas visando tratar dos incidentes cotidianos
sob o enfoque da disciplina restaurativa.

BIBLIOGRAGIA

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24, 44-63.

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2010

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York: Routledge. Taylor & Francis Group

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MULLET, J.H.; AMSTUTZ, L.S. Disciplina restaurativa para escola: teoria e


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PANIS, Kay. Processos Circulares, Série Da Reflexão à Ação, Palas Athena,


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PRANIS, Kay; STUART, Barry e WEDGW, Mark, Peacemaking Circles - from


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RIESTENBERG, Nancy. Circle in the Square: building Community and


Reapairing Harm in School, Living Justice Press, St. Paul, MN -USA. 2011

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UMBREIT, Mark S., COATES, Robert B. and VOS, Betty. Victim offender
mediation an evolving based practice. In Restorative Justice Handbook,
edited by Dennis Sullivan and Larry Tifft. Routledge Internacional Books.
2008 (pág. 52 - 62)
A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma 57

ANEXOS

Anexo I
Resolução nº 01/2012 do Conselho Nacional de Educação

O Presidente do Conselho Nacional de Educação, no uso de suas atribuições


legais e tendo em vista o disposto nas Leis nos 9.131, de 24 de novembro
de 1995, e 9.394, de 20 de dezembro de 1996, com fundamento no Parecer
CNE/CP nº 8/2012, homologado por despacho do Senhor Ministro de
Estado da Educação, publicado no DOU de 30 de maio de 2012,

CONSIDERANDO o que dispõe a Declaração Universal dos Direitos Humanos


de 1948; a Declaração das Nações Unidas sobre a Educação e Formação em
Direitos Humanos (Resolução A/66/137/2011); a Constituição Federal de
1988; a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996);
o Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos (PMEDH
2005/2014), o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3/Decreto
nº 7.037/2009); o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos
(PNEDH/2006); e as diretrizes nacionais emanadas pelo Conselho Nacional
de Educação, bem como outros documentos nacionais e internacionais
que visem assegurar o direito à educação a todos(as),

RESOLVE:

Art. 1º A presente Resolução estabelece as Diretrizes Nacionais para a


Educação em Direitos Humanos (EDH) a serem observadas pelos sistemas
de ensino e suas instituições.

Art. 2º A Educação em Direitos Humanos, um dos eixos fundamentais do


direito à educação, refere-se ao uso de concepções e práticas educativas
fundadas nos Direitos
58 A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma

Humanos e em seus processos de promoção, proteção, defesa e aplicação


na vida cotidiana e cidadã de sujeitos de direitos e de responsabilidades
individuais e coletivas.

§ 1º Os Direitos Humanos, internacionalmente reconhecidos como um


conjunto de direitos civis, políticos, sociais, econômicos, culturais e
ambientais, sejam eles individuais, coletivos, transindividuais ou difusos,
referem-se à necessidade de igualdade e de defesa da dignidade humana.
§ 2º Aos sistemas de ensino e suas instituições cabe a efetivação da
Educação em Direitos Humanos, implicando a adoção sistemática dessas
diretrizes por todos(as) os(as) envolvidos(as) nos processos educacionais.
Art. 3º A Educação em Direitos Humanos, com a finalidade de promover
a educação para a mudança e a transformação social, fundamenta-se nos
seguintes princípios:

I - dignidade humana;

II - igualdade de direitos;

III - reconhecimento e valorização das diferenças e das diversidades;

IV - laicidade do Estado;

V - democracia na educação;

(*) Resolução CNE/CP 1/2012. Diário Oficial da União, Brasília, 31 de maio


de 2012 – Seção 1 – p. 48.
A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma 59

Anexo II
Lei nº 13.185/15, de 06/11/2015

A  PRESIDENTA  DA  REPÚBLICA  Faço saber que o Congresso Nacional


decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º  Fica instituído o Programa de Combate à Intimidação Sistemática


(Bullying) em todo o território nacional.

§ 1º    No contexto e para os fins desta Lei, considera-se intimidação


sistemática (bullying) todo ato de violência física ou psicológica,
intencional e repetitivo que ocorre sem motivação evidente, praticado
por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de
intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima, em uma relação
de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas.

§ 2º    O Programa instituído no  caput  poderá fundamentar as ações


do Ministério da Educação e das Secretarias Estaduais e Municipais de
Educação, bem como de outros órgãos, aos quais a matéria diz respeito.
Art. 2º    Caracteriza-se a intimidação sistemática (bullying) quando há
violência física ou psicológica em atos de intimidação, humilhação ou
discriminação e, ainda:

I - ataques físicos;

II - insultos pessoais;

III - comentários sistemáticos e apelidos pejorativos;

IV - ameaças por quaisquer meios;

V - grafites depreciativos;
60 A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma

VI - expressões preconceituosas;

VII - isolamento social consciente e premeditado;

VIII - pilhérias.

Parágrafo único. Há intimidação sistemática na rede mundial de


computadores (cyberbullying), quando se usarem os instrumentos que
lhe são próprios para depreciar, incitar a violência, adulterar fotos e dados
pessoais com o intuito de criar meios de constrangimento psicossocial.
Art. 3º  A intimidação sistemática (bullying) pode ser classificada, conforme
as ações praticadas, como:

I - verbal: insultar, xingar e apelidar pejorativamente;

II - moral: difamar, caluniar, disseminar rumores;

III - sexual: assediar, induzir e/ou abusar;

IV - social: ignorar, isolar e excluir;

V - psicológica: perseguir, amedrontar, aterrorizar, intimidar, dominar,


manipular, chantagear e infernizar;

VI - físico: socar, chutar, bater;

VII - material: furtar, roubar, destruir pertences de outrem;

VIII - virtual: depreciar, enviar mensagens intrusivas da intimidade, enviar


ou adulterar fotos e dados pessoais que resultem em sofrimento ou com o
intuito de criar meios de constrangimento psicológico e social.
A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma 61

Art. 4º  Constituem objetivos do Programa referido no caput do art. 1º:


I - prevenir e combater a prática da intimidação sistemática (bullying) em
toda a sociedade;

II - capacitar docentes e equipes pedagógicas para a implementação das


ações de discussão, prevenção, orientação e solução do problema;

III - implementar e disseminar campanhas de educação, conscientização e


informação;

IV - instituir práticas de conduta e orientação de pais, familiares e


responsáveis diante da identificação de vítimas e agressores;

V - dar assistência psicológica, social e jurídica às vítimas e aos agressores;


VI - integrar os meios de comunicação de massa com as escolas e a
sociedade, como forma de identificação e conscientização do problema e
forma de preveni-lo e combatê-lo;

VII - promover a cidadania, a capacidade empática e o respeito a terceiros,


nos marcos de uma cultura de paz e tolerância mútua;

VIII - evitar, tanto quanto possível, a punição dos agressores, privilegiando


mecanismos e instrumentos alternativos que promovam a efetiva
responsabilização e a mudança de comportamento hostil;

IX - promover medidas de conscientização, prevenção e combate a todos


os tipos de violência, com ênfase nas práticas recorrentes de intimidação
sistemática (bullying), ou constrangimento físico e psicológico, cometidas
por alunos, professores e outros profissionais integrantes de escola e de
comunidade escolar.
Art. 5º  É dever do estabelecimento de ensino, dos clubes e das agremiações
recreativas assegurar medidas de conscientização, prevenção, diagnose e
62 A Justiça Restaurativa no Ambiente Escolar
Instaurando o Novo Paradigma

combate à violência e à intimidação sistemática (bullying).

Art. 6º  Serão produzidos e publicados relatórios bimestrais das ocorrências


de intimidação sistemática (bullying) nos Estados e Municípios para
planejamento das ações.

Art. 7º  Os entes federados poderão firmar convênios e estabelecer parcerias


para a implementação e a correta execução dos objetivos e diretrizes do
Programa instituído por esta Lei.

Art. 8º  Esta Lei entra em vigor após decorridos 90 (noventa) dias da data
de sua publicação oficial.

Brasília,  6  de novembro de 2015; 194º  da Independência e 127º  da


República.

DILMA ROUSSEFF
Luiz Cláudio Costa
Nilma Lino Gomes
Este texto não substitui o publicado no DOU de 9.11.2015 

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