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Revista História Hoje

Ensino da História da África


e da Cultura Afro-brasileira

ANPUH - Brasil


Diretoria Nacional • ANPUH - Brasil • GESTÃO 2011-2013


Presidente: Benito Bisso Schmidt – UFRGS
Vice-Presidente: Margarida Maria Dias de Oliveira – UFRN
Secretário Geral: Angelo Aparecido Priori – UEM
1o Secretário: Antonio Celso Ferreira – UNESP
2o Secretário: Carlos Augusto Lima Ferreira – UEFS
1o Tesoureiro: Francisco Carlos Palomanes Martinho – USP
2o Tesoureiro: Eudes Fernando Leite – UFGD
Editoria da Revista Brasileira de História: Marieta Moraes Ferreira – UFRJ/FGV
Editoria da Revista História Hoje: Patrícia Melo Sampaio – UFAM

Conselho Consultivo • ANPUH - Brasil


Almir Félix Batista de Oliveira – ANPUH-RN
Altemar da Costa Muniz – ANPUH-CE
Áurea da Paz Pinheiro – ANPUH-PI
Braz Batista Vas – ANPUH-TO
Célia Costa Cardoso – ANPUH-SE
Célia Tavares – ANPUH-RJ
Élio Chaves Flores – ANPUH-PB
Eurelino Coelho – ANPUH-BA
Hélio Sochodolak – ANPUH-PR
Hideraldo Lima da Costa – ANPUH-AM
Jaime de Almeida – ANPUH-DF
João Batista Bitencourt – ANPUH-MA
Julio Bentivoglio – ANPUH-ES
Luís Augusto Ebling Farinatti – ANPUH-RS
Luzia Margareth Rago – ANPUH-SP
Marcília Gama – ANPUH-PE
Maria da Conceição Silva – ANPUH-GO
Maria de Nazaré dos Santos Sarges – ANPUH-PA
Maria Teresa Santos Cunha – ANPUH-SC
Neimar Machado de Sousa – ANPUH-MS
Ronaldo Pereira de Jesus – ANPUH-MG
Sérgio Onofre Seixas de Araújo – ANPUH-AL
Thereza Martha Borge Presotti Guimarães – ANPUH-MT

Representante da ANPUH/Brasil no
Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ)
Ismênia de Lima Martins - UFF (Titular)
Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira - UERJ (Suplente)
Revisão: Armando Olivetti
Diagramação: Flavio Peralta (Estúdio O.L.M.)


Revista História Hoje

Ensino da História da África


e da Cultura Afro-brasileira


Revista História Hoje nº 1 • Biênio: Agosto de 2011 a Julho de 2013


Editora Responsável
Patrícia Melo Sampaio – UFAM
Conselho Editorial da RHHJ
Andréa Ferreira Delgado – UFSC
Ângela Maria de Castro Gomes – UFF
Circe Maria Fernandes Bittencourt – USP
Dilton Cândido Santos Maynard – UFSE
Eduardo França Paiva – UFMG
Flávia Eloisa Caimi – UFPF
José Miguel Arias Neto – UEL
Josenildo de Jesus Pereira – UFMA
Keila Grinberg – UNIRIO
Luiz Carlos Villalta – UFMG
Marcelo de Souza Magalhães – UNIRIO
Mauro Cézar Coelho – UFPA
Mônica Lima e Souza – UFRJ
Nilton Mullet Pereira – UFRGS
Susane Rodrigues de Oliveira – UnB
Conselho consultivo da RHHJ
Ana Livia Bomfim Vieira – ANPUH-MA
Antonio Jacó Brand – ANPUH-MS
Carla Mary da Silva Oliveira – ANPUH-PB
Chrislene Carvalho dos Santos – ANPUH-CE
Claudira do Socorro Cirino Cardoso – ANPUH-RS
Cristiano Pereira Alencar Arrais – ANPUH-GO
Franciane Gama Lacerda – ANPUH-PA
James Roberto Silva – ANPUH-AM
Janete Ruiz de Macedo – ANPUH-BA
José Antonio Vasconcelos – ANPUH-SP
Laurindo Mékie Pereira – ANPUH-MG
Marcelo Balaban – ANPUH-DF
Marcos Silva – ANPUH-SE
Osvaldo Batista Acioly Maciel – ANPUH-AL
Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes – ANPUH-SC
Yonissa Marmitt Wadi – ANPUH-PR
Secretária da RHHJ
Paula Dantas – UFAM
Endereço na Web: http://rhhj.anpuh.org/ojs/index.php/RHHJ/index
Email: rhhjsecretaria@anpuh.org e rhhjeditor@anpuh.org
A Revista História Hoje publica artigos relacionados à temática de História e Ensino com a
finalidade de promover a divulgação de reflexões, projetos e experiências nesta área e também criar
um espaço institucional de debate relativo aos campos de trabalho dos profissionais de História.


Sumário

Apresentação 7

Dossiê: Ensino da História da África e da Cultura Afro-brasileira


Apresentação • Dossiê 13
Algumas impressões e sugestões sobre o ensino de história da África 17
Marina de Mello e Souza

Entre máscaras e espelhos: reflexões sobre a Identidade


e o ensino de História da África nas escolas brasileiras 29
Anderson Ribeiro Oliva

Os dilemas de dois autores frente a Uma história do negro no Brasil 45


Wlamyra Albuquerque e Walter Fraga Filho

Proposta de material didático para a história das relações étnico-raciais 61


Verena Alberti

O ensino de história entre o dever de memória e o direito à história 89


Júnia Sales Pereira e Luciano Magela Roza

“Por uma autêntica democracia racial!”:


os movimentos negros nas escolas e nos currículos de história 111
Amilcar Araujo Pereira

Entrevista
Mônica Lima e Souza 131
Martha Abreu e Silvio de Almeida Carvalho Filho

Artigos
Reflexões sobre o ensino colonial em África: trajetórias
da instituição escolar no antigo Sudão (1889-1952) 139
Patricia Teixeira Santos

As bandas de congo mirins: ensino popular e


vivência de cultura afro-brasileira na Serra (ES) 157
Michel Dal Col Costa


Contribuições do Movimento Negro e das teorias críticas do


currículo para a construção da educação das relações étnico-raciais 179
Richard Christian Pinto dos Santos e Grace Kelly Silva Sobral Souza

Diásporas e comunidades quilombolas: perspectivas metodológicas


para o ensino de história da África e da cultura afro-brasileira 193
Maria Walburga dos Santos e Ana Cristina Juvenal da Cruz

Para construir outro olhar: notas sobre o ensino


de história e cultura africanas e afro-brasileiras 217
Hilton Costa

Um olhar sobre a historiografia africana e afro-brasileira 239


Luciano Everton Costa Teles

Espaço cibernético, cibercultura e pesquisa acadêmica 253


Marcos Silva

Falando de História Hoje


Currículos de História e expectativas de aprendizagem
para os anos finais do ensino fundamental no Brasil (2007-2012) 269
Margarida Oliveira e Itamar Freitas

E-storia
E-storia 307
Dilton C. S. Maynard e Marcos Silva

História Hoje na sala de aula


Detetives do passado no mundo do futuro:
divulgação científica, ensino de História e internet 315
Keila Grinberg e Anita Almeida

Resenhas
Historiografia e Nação no Brasil – um clássico e suas possibilidades,
da gênese da historiografia ao lugar da História Ensinada nos dias de hoje 329
Mauro Cezar Coelho

Oficina da história no ciberespaço 335


Anita Lucchesi


Apresentação

A revista História Hoje inicia uma nova fase com a publicação do núme-
ro 1 desta série. Em julho de 2011, retomando discussões e anseios que mar-
caram sua criação em 2003, o Conselho Editorial assumiu a tarefa de revitali-
zar o periódico, adotando a temática “História e Ensino” como estrutura de
sua linha editorial. Para isso, investiu na publicação de Dossiês Temáticos,
reviu a periodicidade da revista, agora semestral, e criou novas seções para a
RHHJ – “História Hoje na Sala de Aula”, “E-Storia” e “Falando de História
Hoje”, com a finalidade de manter canais de diálogo permanentes com pro-
fessores e pesquisadores, discutindo e compartilhando experiências. Por fim,
a migração para a base OJS/SEER, ao garantir acesso amplo e maior qualidade
editorial, completa este momento significativo na institucionalização da RHHJ
na Anpuh/Brasil, no momento em que completamos 50 anos.
Neste número, abrimos com o Dossiê “Ensino da História da África e
da Cultura Afro-brasileira”, organizado por Martha Campos Abreu e Silvio
de Almeida Carvalho Filho. Ele reúne autores com experiências ricas e subs-
tantivas para refletir sobre as conquistas e desafios decorrentes da implantação
das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008. O resultado, como se verá, é extraordiná-
rio! Participam dele Marina de Mello e Souza (“Algumas impressões e suges-
tões sobre o ensino de história da África”), Anderson Ribeiro Oliva (“Entre
máscaras e espelhos: reflexões sobre a Identidade e o ensino de História da
África nas escolas brasileiras”), Wlamyra Albuquerque e Walter Fraga Filho
(“Os dilemas de dois autores frente a Uma história do negro no Brasil”), Vere-
na Alberti (“Proposta de material didático para a história das relações étnico-
-raciais”), Júnia Sales Pereira e Luciano Magela Roza (“O ensino de história
entre o dever de memória e o direito à história”) e Amilcar Araujo Pereira
(“‘Por uma autêntica democracia racial!’: os movimentos negros nas escolas e

Junho de 2012 7
Apresentação

nos currículos de história”). Lidos em conjunto, os artigos apresentam um


retrato vívido da diversidade do campo, de seu notável vigor e dos inúmeros
enfrentamentos que ainda se colocam diante de nós, profissionais de História.
Todas essas dimensões ganham perspectiva renovada na emocionante entre-
vista de Mônica Lima e Souza, também conduzida pelos organizadores do
Dossiê.
Entre os Artigos, o de Patricia Teixeira Santos nos permite acompanhar
as experiências do cotidiano escolar no Sudão contemporâneo, enquanto o de
Michel Dal Col Costa ilumina a sonoridade e o colorido das vivências das
crianças capixabas envolvidas nas bandas de congo mirins. A preocupação com
a articulação entre produção historiográfica, construção curricular, cultura
histórica e saberes escolares dão o tom dos textos de Richard Christian Pinto
dos Santos e Grace Kelly Silva Sobral Souza, de Maria Walburga dos Santos e
Ana Cristina Juvenal da Cruz, de Hilton Costa e de Luciano Everton Costa
Teles. As reflexões produzidas nos convidam ao debate e também à análise das
diferentes possibilidades que as experiências de ensino e de pesquisa têm re-
velado. Por fim, Marcos Silva nos coloca diante de questões contemporâneas
quando se debruça sobre o impacto e as possibilidades de uso da cibercultura
nas práticas pedagógicas.
Falando de História Hoje é um espaço dedicado a reflexões e debates de
temas do nosso tempo. O artigo de Margarida Oliveira e Itamar Freitas traz
uma leitura de peso para um problema candente: a questão dos currículos de
História. Os autores apresentam os resultados de uma pesquisa que examinou
currículos de História em 18 estados brasileiros entre 2007 e 2012 com a fina-
lidade de conhecer o que se tem pretendido ensinar, como podemos intervir
e o que ainda não sabemos sobre essa questão.
E-Storia é uma seção que nasceu com espírito inovador. Dilton Cândido
Santos Maynard e Marcos Silva, seus organizadores, partiram da imensa gama
de possibilidades abertas pelas novas tecnologias da informação para oferecer
aos leitores da RHHJ, a cada edição, em lugar de uma listagem de endereços
eletrônicos, a indicação de novos ambientes no mundo virtual que sirvam de
inspiração e de estímulo. Na mesma direção, Keila Grinberg e Anita Almeida
inauguram a seção História Hoje na Sala de Aula com os “Detetives do Pas-
sado”, uma estimulante iniciativa, detalhada no texto que reuniu temas como

8 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Apresentação

divulgação científica, ensino de História e o impacto da internet no nosso


trabalho.
Na seção Resenhas, Mauro Cezar Coelho faz uma incursão instigante na
obra de Manoel Luiz Salgado Guimarães, Historiografia e Nação no Brasil
(1838-1857), enquanto Anita Lucchesi analisa o livro Escritos sobre história e
internet, de Dilton C. S. Maynard.
Deixo registrado o entusiasmo, o comprometimento e o espírito de tra-
balho coletivo dos membros do Conselho Editorial para que pudéssemos che-
gar até aqui. Todo nosso empenho é fazer que a revista História Hoje se trans-
forme em uma referência nas discussões da área, abrangendo dimensões do
Ensino da História nos níveis Fundamental, Médio e Superior e consolidando-
-se como espaço efetivo de circulação e compartilhamento de ideias e expe-
riências acerca de um dos nossos mais importantes compromissos: a formação
de gerações empenhadas em um ideal de cidadania, pautadas pelo respeito à
diferença, pela valorização da diversidade e por uma compreensão crítica sobre
o tempo que passa.
A revista História Hoje convoca os historiadores a interagirem com a
sociedade em que vivem, a atuarem positivamente sobre o presente, a eviden-
ciarem a relevância da reflexão sobre o passado em um dos mais nobres cam-
pos de atuação, a Educação e seus desdobramentos. Pois, ao fim e ao cabo, ela
é a nossa mais importante trincheira.

Patrícia Melo Sampaio


Editora (2011/2013)

Junho de 2012 9

11

Apresentação

Com enorme orgulho, apresentamos ao público o dossiê “Ensino da


História da África e da Cultura Afro-brasileira”, elaborado por especialistas,
professores e pesquisadores da área. Nosso objetivo foi reunir trabalhos que
discutissem as conquistas resultantes da implantação da obrigatoriedade le-
gal do estudo da História da África e do Negro no Brasil, assim como os li-
mites, problemas e desafios com que se defrontam os profissionais de edu-
cação que assumem tão importante tarefa. Mas, em meio a muitas
dificuldades enfrentadas pelos professores – dentre elas a insuficiência de
formação teórica e prática, a oposição de familiares e setores sociais, a carên-
cia de recursos pedagógicos para aprofundamento da temática –, é evidente
que a Lei 10.639/2003, modificada pela Lei 11.645/2008, vem sendo implan-
tada e, hoje, podemos acompanhar diversas experiências positivas em várias
unidades escolares espalhadas pelo Brasil. Sem dúvida, os visíveis esforços
nesse sentido contribuem significativamente para a construção de uma so-
ciedade brasileira mais justa e mais livre dos preconceitos e discriminações
que sempre acompanharam as visões sobre o africano e seus descendentes
na Diáspora. Nosso dossiê visa também oferecer aos leitores, especialmente
aos educadores e aos interessados em geral, caminhos de trabalhos pedagó-
gicos e reflexões teóricas no que diz respeito ao “Ensino da História da Áfri-
ca e da Cultura Afro-brasileira”.
Marina de Mello e Souza escreve “Algumas impressões e sugestões sobre
o ensino de história da África” com base em sua experiência na formação de
professores e como autora de livro de referência sobre o assunto. Oferece um
balanço sobre as possibilidades de acesso a conhecimentos a respeito da Áfri-
ca, inclusive no que se refere às fontes orais, e, ao mesmo tempo, discute as
inúmeras dificuldades e os preconceitos enfrentados pelos docentes que se

Junho de 2012 13
Apresentação • Dossiê

envolvem com o ensino de temas afro-brasileiros. A autora, fundamentalmen-


te, procura compreender as razões históricas e ideológicas desses empecilhos,
base fundamental para sua superação.
Discutir a importância de se refletir sobre a identidade brasileira para se
assegurar um currículo que contemple a História da África no Brasil consti-
tui um questionamento central no artigo de Anderson Ribeiro Oliva, “Entre
máscaras e espelhos: reflexões sobre a Identidade e o ensino de História da
África nas escolas brasileiras”. O autor, a partir das contribuições trazidas
pelas reflexões sobre multiculturalismo, culturas híbridas, identidades plurais
e parciais, afirma a necessidade de se reconhecer, no ambiente escolar e em
seus currículos, as múltiplas identidades obscurecidas por uma nacional, pre-
tensamente homogênea e exclusiva. Em sua opinião, nossas escolas ainda
desconhecem os traços culturais específicos de determinadas comunidades
de alunos, impondo-se um discurso oficial da Identidade Nacional. Não ha-
verá, para Oliva, um espaço criativo e transformador para uma História da
África nos currículos se não tivermos, como suporte, uma prática de respei-
to e valorização da diversidade identitária dos nossos discentes, componente
curricular importante não só para os afrodescendentes, como para aqueles
que não o são, pois a maneira como se enfrenta a alteridade também trans-
forma os sujeitos.
Wlamyra Albuquerque e Walter Fraga Filho oferecem um sincero e ins-
tigante retrospecto de suas motivações e opções ao escreverem Uma História
do Negro no Brasil. Ao ler o artigo, refletimos sobre as conquistas e desafios
colocados aos profissionais de História com as Diretrizes Curriculares para a
Educação das Relações Étnico-raciais da Lei 10.639/2003. Dentre os caminhos
oferecidos pelos autores, destaca-se a valorização do protagonismo dos africa-
nos e seus descendentes no contexto cultural, para além do mundo do trabalho
e da escravidão. Essa perspectiva torna-se uma importante estratégia para o
combate ao racismo e para a superação de antigas representações sobre a pre-
sença negra na sociedade brasileira.
Brindando-nos com diretrizes e sugestões para a elaboração de materiais
didáticos sobre a história das relações raciais no Brasil, Verena Alberti em
“Proposta de material didático para a história das relações étnico-raciais”
considera especialmente sua disponibilização na rede virtual. Sua prioridade

14 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Apresentação • Dossiê

é apontar caminhos para que o aluno possa refletir historicamente, ou, em


sua própria expressão, para que aprenda a conhecer o passado como forma
de se ‘alfabetizar’ na ‘leitura do mundo’. Entre as questões tratadas, destacam-
-se a implantação do trabalho escravo indígena e africano, a generalização
dos termos ‘índio’ e ‘negro’, o uso das biografias de africanos e seus descen-
dentes, as lutas pelo fim da escravidão, a importância das noções de ‘raça
social’ e etnia ou da dimensão ‘cor’ no Brasil e a atuação dos movimentos
negros e indígenas.
Júnia Sales Pereira e Luciano Magela Roza, com o artigo “O ensino de
história entre o dever de memória e o direito à história”, apresentam o impac-
to da Lei 10.639/2003 no sistema de ensino brasileiro. Principalmente a partir
das possibilidades de trabalho em sala de aula com as manifestações culturais
de congadas e reisados, procuram oferecer subsídios para as discussões sobre
a cultura afro-brasileira e identidades no ensino de História. Uma ótima su-
gestão dos autores é o uso de práticas iniciais de história oral, propondo rodas
de conversa e entrevistas com diferentes sujeitos envolvidos em práticas e ma-
nifestações culturais afro-brasileiras.
Completando o conjunto, o texto “‘Por uma autêntica democracia racial!’:
os movimentos negros nas escolas e nos currículos de história”, de Amilcar
Araujo Pereira, oferece subsídios para que se possam compreender historica-
mente os movimentos negros no Brasil e os motivos para que essa problemá-
tica não tenha sido ainda contada nos bancos escolares. Tema fundamental
para ser tratado no ensino de História, permite que o professor se afaste de
imagens preconceituosas, amplamente difundidas nos livros didáticos, sobre
escravos passivos e vitimizados. Dentre as principais e mais antigas reivindi-
cações dos movimentos negros, destaca-se exatamente a luta pela reavaliação
do papel do afrodescendente na história do Brasil.
Acreditamos que o presente dossiê será de grande valia para dar continui-
dade à efetiva implantação das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, pois sabemos
que uma legislação educacional é vivida no cotidiano escolar de formas dife-
renciadas, de acordo com os docentes que a aplicam, mas que destes se exige
reflexão para que tenham condições objetivas e subjetivas de praticá-la. Acom-
panhando este Dossiê, a seção Entrevista da Revista História Hoje traz neste
número um empolgante depoimento da historiadora Mônica Lima, reconhe-
cida referência na área de pesquisa e ensino de História da África.

Junho de 2012 15
Apresentação • Dossiê

Enfim, não podemos deixar de louvar a preocupação da revista História


Hoje em nos oferecer a oportunidade de organizar este dossiê, permitindo aos
pesquisadores a divulgação de suas reflexões críticas e, a seus leitores e ao
público em geral, possibilidades de transformação de nossa identidade brasi-
leira. Nossos agradecimentos.
E, agora, mãos à obra!

Martha Campos Abreu


Silvio de Almeida Carvalho Filho

16 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Algumas impressões e sugestões
sobre o ensino de história da África
Some impressions and suggestions
on teaching African history
Marina de Mello e Souza*

Resumo Abstract
Com base na experiência como professo- From my experience as a teacher of Af-
ra de história da África e no contato com rican history and the contact with
professores de níveis diversos, indico al- teachers working in different levels, I
guns problemas referentes ao ensino de point out some problems concerning
teaching African history and, second-
história da África e, secundariamente,
arily, afro-Brazilian culture, and I sug-
cultura afro-brasileira, e proponho for-
gest ways that can help teachers to ap-
mas de o professor abordar o tema e proach the subject and to enhance their
aprimorar seu domínio sobre a área. knowledge about this area.
Palavras-chave: ensino de história da Keywords: teaching of African history;
África; pesquisa de história da África; researching African history; struggling
vencendo preconceitos. against prejudices.

Quase dez anos após a promulgação da Lei 10.639, que regulamentou a


obrigatoriedade do ensino de história da África e cultura afro-brasileira nas
escolas de nível fundamental e médio, o tema ainda é polêmico e a lei não é
plenamente aplicada. Como o assunto é dos mais delicados, envolvendo ques-
tões centrais na construção da nacionalidade e identidade brasileiras no que
diz respeito às formas como as heranças africanas e escravistas deixaram suas
marcas, essas dificuldades são compreensíveis. Inserirmos as formas de abor-
dar as contribuições africanas nos processos históricos e nos contextos que as
conformaram da maneira como se apresentam hoje é condição para que en-
tendamos melhor como lidamos com elas. E é assim que têm agido os interes-
sados no assunto que o abordam com mais seriedade, considerando as noções

* Departamento de História, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade


de São Paulo (FFLCH/USP). Av. Prof. Lineu Prestes, 338. 05508-000 – São Paulo – SP – Brasil.
marinamsouza@usp.br

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 17-28 - 2012


Marina de Mello e Souza

evolucionistas e da ideologia do branqueamento em vigor no final do século


XIX e início do XX, os conflitos e contradições presentes na consolidação de
uma jovem nação que buscava se integrar no mundo ocidental de acordo com
os valores dele emanados, as soluções encontradas por intelectuais e políticos
para afirmar uma identidade própria, mestiça, agregadora e inimiga de confli-
tos abertos, e as várias maneiras, em diferentes momentos, pelas quais mili-
tantes negros propuseram que a segregação racial fosse tratada, em termos não
só teóricos mas também práticos.
O meu ingresso no terreno do ensino de história da África e cultura afro-
-brasileira deu-se a partir do momento em que me tornei professora de histó-
ria da África, em 2001, e principalmente depois de ter escrito um livro paradi-
dático, África e Brasil africano, cuja primeira edição é de 2006, portanto
derivado da minha prática e não de um projeto prévio. Desde então criamos
um novo curso no Departamento de História da Universidade de São Paulo
(USP), voltado para ajudar futuros professores a cumprirem as demandas da
Lei 10.639, e passei a dar palestras e visitar escolas em vários lugares do Brasil
para apresentar o livro e conversar com professores sobre o ensino dos temas
ali contidos. Essas experiências, ligadas à academia e ao ensino fundamental e
médio, permitiram-me conhecer ações e situações diversas.
É nítido que nos últimos anos, a despeito das dificuldades e, em muitos
casos, da falta de empenho daqueles que deveriam estar à frente dos processos
de implantação da lei, os temas ligados à cultura afro-brasileira e à África ga-
nharam espaço nas reflexões e ações dos educadores. Isso pode ser constatado
pela proliferação dos cursos de formação de professores voltados para o assun-
to, por meio da produção de material didático, elaboração de sites e publicação
de literatura infanto-juvenil e adulta. O que não quer dizer que estejamos em
céu de brigadeiro, pois parte do material didático apresenta problemas signi-
ficativos quanto à forma como os temas são apresentados, muitas vezes refor-
çando estereótipos e frequentemente demonstrando um conhecimento muito
precário no que diz respeito à história da África. Com relação aos cursos de
formação tenho menos conhecimento. Esse quadro é resultado de anos de
desatenção aliada à súbita valorização do assunto e às demandas não só edu-
cacionais como também de mercado, mas pode ser alterado de forma positiva
com o tempo e atitudes adequadas.

18 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Algumas impressões e sugestões sobre o ensino de história da África

Olhando para minha própria experiência, entendo que o mais importan-


te para avançarmos de forma adequada no sentido de produzir e transmitir
um conhecimento de qualidade é trazermos para primeiro plano a necessida-
de de estudo e pesquisa. Sem eles, não há como alcançar e transmitir conheci-
mentos de qualidade. Se esses requisitos são mais fáceis de alcançar quando
estamos inseridos no meio universitário (e mesmo nele, nem sempre), eles
devem ser estendidos para todos os níveis da educação, pois sem formação
adequada e tempo para estudo permanente fica difícil ser um professor dinâ-
mico, atualizado, com capacidade não só de transmitir informações corretas
como de captar a atenção dos alunos, num mundo cada vez mais cheio de
estímulos interessantes e absorventes. E se já é difícil manter-se atualizado com
relação a temas há muito explorados, a dificuldade aumenta quanto tratamos
de assuntos estigmatizados, permeados de preconceitos e, por isso mesmo,
postos à margem.
No que diz respeito ao ensino de história, as universidades são a principal
instância formadora de professores e há nelas um aumento da atenção dada à
África que pode ser medido pelo número de concursos que são abertos nessa
área. Entretanto, mesmo nesse âmbito, que podemos considerar pioneiro, per-
cebemos a dificuldade no estabelecimento de estudos africanos, seja por esta-
rem frequentemente diluídos nos estudos sobre tráfico e escravidão, seja pela
dificuldade em preencher os postos abertos, na medida em que muitos con-
cursos não aprovam nenhum candidato. Passando para o ensino fundamental
e médio, ao lado das exceções representadas por experiências bem-sucedidas,
multiplicam-se os depoimentos de professores que, para atender à lei ou por
interesse particular, propõem medidas às coordenações das escolas nas quais
dão aulas, sem serem ouvidos. As ações tomadas nesse sentido ficam, então,
geralmente restritas às iniciativas pontuais e individuais, que além de não te-
rem apoio institucional muitas vezes são mal vistas pelos colegas e superiores.
Em tese defendida no Departamento de Antropologia da USP, Raquel Bakke
chamou de “pedagogia do evento” uma situação também recorrente, na qual
são desenvolvidas atividades relacionadas a datas específicas como o Dia da
Consciência Negra ou celebrações em torno do dia 13 de maio, sem nenhum
desdobramento posterior.1
Há ainda a situação na qual são tomadas iniciativas no sentido de promo-
ver estudos sobre a África e a cultura afro-brasileira, mas o despreparo ou os

Junho de 2012 19
Marina de Mello e Souza

interesses políticos dos agentes levam a que o enfoque adotado e os conteúdos


transmitidos careçam de consistência ou mesmo veiculem informações erra-
das. Nesse sentido, não é raro encontrarmos material didático, tanto para su-
porte de cursos de formação quanto para ser usado em aula, cheio de erros
grosseiros, principalmente quanto se trata de história da África, ou de parti-
darismos ideológicos resultantes de uma dada militância, principalmente
quando aborda temas relativos à cultura afro-brasileira. A despeito desses pro-
blemas, característicos de uma área em processo de constituição e permeada
de questões ideológicas, não se pode jogar a criança fora com a água do banho.
O importante é que os problemas sejam detectados com acuidade cada vez
maior e os desvios sejam corrigidos: e pelo que percebo isso vem sendo feito
com o aprimoramento e a disseminação do conhecimento sobre assuntos afri-
canos e o desnudamento dos preconceitos que envolvem o tratamento de te-
mas afro-brasileiros.
O aprimoramento do conhecimento acerca da história da África pode ser
medido pelo aumento de traduções para o português de textos importantes
para a área e da publicação de trabalhos produzidos por estudiosos brasileiros,
na maior parte das vezes vinculados a programas de pós-graduação.2 A disse-
minação desse conhecimento produzido na esfera acadêmica deve ser alcan-
çada com a sua articulação com outros níveis de ensino, revistas de divulgação,
programas ligados a mídias audiovisuais, cursos de curta duração e outras
formas de levar para fora dos limites da universidade o conhecimento ali pro-
duzido. Na medida em que essa articulação ganhe força, será possível garantir
um ensino de qualidade com menos margem de erro, tanto no que diz respei-
to à produção de material didático quanto no que se refere às aulas nos diver-
sos níveis e cursos de formação de professores. E pelo que vemos, esse proces-
so está em curso, mesmo que com menor velocidade e abrangência do que
seria ideal.
Quando nos voltamos para os segmentos menos favorecidos, que frequen-
tam as escolas públicas, nas quais as condições de trabalho são na maior parte
das vezes bastante precárias, há uma variável importante que, conforme vários
relatos, tem prejudicado a implantação do estudo de temas africanos e afro-
-brasileiros. Ela diz respeito à resistência, e mesmo oposição aberta, dos adep-
tos de religiões evangélicas quanto ao ensino de cultura afro-brasileira. São
vários os depoimentos relativos à dificuldade de abordar assuntos relativos à

20 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Algumas impressões e sugestões sobre o ensino de história da África

religiosidade africana ou afro-brasileira na presença desses grupos, os quais se


recusam a tratar do assunto, quando não partem para a ofensiva diante do que
entendem serem seitas diabólicas.
Esse tema foi abordado com vagar na já mencionada tese de Raquel Bakke.
Por meio de uma pesquisa de campo a autora constatou que a esfera religiosa
é a preferencialmente eleita pelos professores e programas de cursos para abor-
dar a cultura afro-brasileira. De acordo com sua análise há um processo de
transformação da religião em cultura, com aquela assumindo a totalidade da
expressão desta. Isso estaria ligado à elevação do candomblé como símbolo
máximo da identidade afro-brasileira e à sua associação com a ideia de resis-
tência negra na construção de identidades. Como o ensino de temas afro-
-brasileiros estaria intimamente vinculado a uma posição política, a religião,
como espaço maior de resistência, seria privilegiada como tema. Dessa forma,
aumentaria a dificuldade da implantação real da Lei 10.639, pois são justamen-
te os temas ligados às religiosidades afro-brasileiras os que encontram maior
resistência junto a professores e alunos, principalmente se a presença de evan-
gélicos for significativa. Esse mecanismo recorrente seria, no seu entender, um
fator, entre outros, da dificuldade de execução das recomendações da lei. Dian-
te do quadro descrito pela autora, me parece que um caminho para contornar
essa dificuldade seria mudar o foco de interesse principal para outra esfera,
que não a religiosa, e dessa forma introduzir conhecimentos que permitissem
a construção de uma relação respeitosa com a alteridade representada pela
cultura afro-brasileira.
Vale notar que a pesquisadora estava preocupada com o ensino de cultu-
ra afro-brasileira e não de história da África, sugerindo ser exagerada a preo-
cupação com o esta última ao dizer que,

Se é possível fazer a crítica ao conteúdo de história, que insiste em dar mais ênfa-
se à história da África, e continua não abrindo muito espaço para se analisar o
papel do negro como sujeito político após a abolição da escravidão, as demais
disciplinas, como geografia, sociologia e filosofia, possibilitam essa abordagem.3

É fato que ao fazer essa observação a autora está apontando para a defi-
ciência no tratamento do negro como agente histórico, mas atribui isso à aten-
ção excessiva dada à história da África. No meu entender, o que acontece é
justamente o contrário. Uma vez que os professores pouco sabem acerca das

Junho de 2012 21
Marina de Mello e Souza

sociedades africanas, seus sistemas de pensamento e os processos históricos


por elas vividos, têm dificuldade em abordar temas carregados de preconceitos
de forma a derrubá-los, ao tratar os fenômenos das culturas afro-brasileiras
com base nas lógicas de suas matrizes africanas e dos processos que lhes deram
origem. Minha posição é de que somente conhecendo bem as sociedades afri-
canas, suas histórias e os processos que nos ligam a elas, assim como desven-
dando as noções por trás da construção histórica e ideológica dos preconceitos
contra o africano e o negro, teremos condições de analisar com consistência
as manifestações afro-brasileiras e o lugar que os africanos e seus descendentes
ocuparam no passado e ocupam no presente, no contexto da sociedade brasi-
leira como um todo.
Dessa forma, minha perspectiva também é bastante diferente da que me
parece ser a do movimento negro em geral, que vê a lei como possibilidade de
afirmação política e inclusão social de um segmento marginalizado da popu-
lação. Não que eu discorde disso, mas penso que não são as razões políticas
que devem indicar o caminho, sendo o alcance de suas bandeiras o ponto de
chegada, e não o de partida. As boas intenções daqueles que se guiam princi-
palmente pelas razões políticas acabam sendo fragilizadas pelo descaso quan-
to à necessidade de abordar os temas de forma consistente, resultante de estu-
do e conhecimento aprofundado acerca deles. Informações equivocadas, e
mesmo perniciosas, podem acabar por comprometer as boas intenções, dando
munição aos que não concordam com a existência da lei e argumentam que
ela reflete uma postura autoritária ou mesmo que acirra antagonismos funda-
dos em distinções de base racial. Postura com a qual não concordo de forma
alguma e que desconsidera a longa luta encabeçada pelo movimento social
genericamente chamado de movimento negro, que conquistou, vencendo re-
sistências profundamente arraigadas na sociedade brasileira, um importante
espaço no caminho da construção de uma sociedade mais igualitária, na qual
as diferenças de aparência e ancestralidade não possam ser acionadas como
instrumentos para inferiorizar e marginalizar alguns segmentos sociais.
Como Raquel constatou em sua pesquisa, os temas ligados às culturas
afro-brasileiras são assuntos que incomodam, o que resulta na dificuldade em
colocar em prática a lei. Para que os temas deixem de incomodar é necessário,
no meu entender, explicitar os processos históricos e ideológicos presentes nas
bases das percepções contemporâneas acerca da África e da cultura afro-bra-

22 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Algumas impressões e sugestões sobre o ensino de história da África

sileira, como aliás, conforme dito no início deste texto, é indicado por várias
pessoas que se detiveram sobre o assunto. Dessa perspectiva, é fundamental o
ensino de temas africanos, considerados não apenas pelos seus aspectos nega-
tivos, largamente divulgados pela imprensa e pelas mídias oficiais, mas sim
pelo que podemos chamar de aspectos positivos, ou seja, as características
culturais e formas de organização social e política próprias, os processos his-
tóricos tanto internos quanto pertinentes à sua relação com outros continentes,
seja com as sociedades ocidentais, seja com as orientais.
No meu entender, ao tratarmos de assuntos africanos em geral e história
da África em particular, devemos partir do princípio de que temos pouca, ou
mesmo nenhuma familiaridade com os temas relativos ao continente africano.
Dessa forma, como já dito, o estudo e a pesquisa são requisitos fundamentais
para adquirirmos essa familiaridade e aprofundar o conhecimento sobre a
África. Se olharmos para a trajetória da construção desse conhecimento no
âmbito do chamado mundo ocidental, do qual fazemos parte, veremos que os
europeus só passaram a conhecer melhor o continente africano na segunda
metade do século XIX, quando se multiplicaram as expedições de exploração.
Naquele momento, além de o combate às doenças ali existentes ter se tornado
mais eficiente, permitindo a maior sobrevivência dos estrangeiros, as técnicas
de medição e de transporte estavam aprimoradas, o que contribuiu para a
elaboração de um conhecimento mais preciso sobre o interior da África. Nes-
se processo são importantes as sociedades de geografia e as companhias de
comércio interessadas em atuar nos espaços africanos, principalmente com-
prando matérias-primas e explorando suas riquezas naturais.
Outro princípio fundamental do qual devemos partir diz respeito aos pre-
conceitos associados aos povos africanos e suas sociedades. Quando o conhe-
cimento sobre o continente começou a se aprofundar, predominavam as ideias
de hierarquia entre as raças, baseada em diferenças biológicas, e de hierarquia
entre as sociedades, fundada em níveis de evolução. Nesse contexto a África
era vista como um continente atrasado, primitivo, habitado por populações
em estágios inferiores da evolução humana. Havia variações nessa classificação,
e no Brasil, no final do século XIX e ao longo do XX, os iorubás eram vistos
como superiores aos bantos, percebidos como detentores de culturas menos
complexas, portanto mais primitivas. Essa postura deve ser entendida como
resultado de uma maneira de pensar historicamente constituída, ligada a de-

Junho de 2012 23
Marina de Mello e Souza

terminadas teorias que se tornaram ultrapassadas por maneiras de pensar que


vieram depois e negaram a ideia de hierarquia entre as raças e mesmo entre as
culturas, noção que substituiu a de raças. Hoje pensamos em termos de dife-
renças culturais, de sistemas simbólicos, sem inserir as diferenças em uma
escala evolutiva, associada às ciências biológicas. Na era da valorização do
multiculturalismo e das diferenças os preconceitos podem ser superados ao
mostrarmos as bases sobre as quais eles foram construídos, e que não se sus-
tentam mais.
No caso específico da história, outro ponto de partida para abordar o
continente africano é descartar a ideia de que documentos escritos são impres-
cindíveis para o conhecimento histórico. Essa também é uma visão ultrapas-
sada na medida em que a história contemporânea incluiu em sua esfera de
interesse as camadas populares e mesmo iletradas, sendo suas preocupações
antes centradas nos feitos dos dirigentes e dos heróis. Paralelamente a isso, a
história passou a utilizar instrumentos de outras disciplinas como a antropo-
logia, a análise literária, a geografia, a arqueologia e a linguística, assim como
passou a considerar a oralidade uma fonte produtora de informações impor-
tantes para a reconstrução dos acontecimentos e processos históricos. Essa
postura permite que seja aceita a possibilidade de fazer a história de populações
que não deixaram registros escritos e cuja importância não é medida pelo
impacto de suas ações na história da humanidade como um todo.
Considero central no ensino de história da África a identificação destes
três pontos de ordem mais geral: o desconhecimento sobre o continente afri-
cano, a desconstrução dos preconceitos a ele relacionados e a multiplicidade
de possibilidades metodológicas na construção do conhecimento histórico.
Quanto a o que ensinar, à guisa de auxiliar o professor nesse campo ainda
pouco percorrido, proponho alguns conjuntos de fontes para buscar informa-
ções sobre a África, considerando a divisão cronológica tradicional no campo
da história, assim como o recurso aos documentos escritos, sem me deter nas
diferentes escolas de interpretação, pois há uma variedade delas a orientar as
análises dos processos ali ocorridos nos diversos tempos.4
Com relação ao período chamado de Antiguidade pela historiografia, as
regiões com maior quantidade de informações são as próximas ao rio Nilo, ao
mar Vermelho e ao Mediterrâneo, que estavam inseridas nos circuitos comer-
ciais e políticos em curso naquela região, considerada em sua totalidade. Fon-

24 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Algumas impressões e sugestões sobre o ensino de história da África

tes gregas, romanas e árabes trazem indícios sobre acontecimentos e processos


ocorridos no Egito, na Núbia, na Etiópia, nos portos do mar Vermelho e do
Mediterrâneo.
Com relação ao período chamado de Idade Média pela historiografia,
além de relatos sobre as regiões acima mencionadas existem ainda fontes sobre
as sociedades existentes às bordas leste e sul do deserto do Saara, como Gana,
Mali e Songai, principalmente de comerciantes e viajantes árabes. Para o final
desse período e já entrando na Idade Moderna, existem relatos feitos por afri-
canos islamizados, que incorporaram a escrita a partir do contato com os ára-
bes na região do Sael, sendo os exemplos mais conhecidos as crônicas escritas
no século XVII: Ta’rikh al-Sudan e Ta’rikh el-Fattash, traduzidas para o fran-
cês no início do século XX.
Com relação ao período chamado de Idade Moderna pela historiografia,
além da existência de documentos sobre todas as regiões já mencionadas, a
presença de europeus nas costas atlântica e índica do continente produziu um
aumento considerável de relatos escritos por estrangeiros, como comerciantes,
administradores, missionários católicos e viajantes. O contato com os europeus
em alguns lugares também levou à incorporação da escrita, havendo documen-
tos escritos produzidos por africanos principalmente em regiões da África
centro-ocidental.5
Com relação ao período chamado de Contemporâneo, os documentos
escritos são ainda mais abundantes, acompanhando os processos de incorpo-
ração dos padrões ocidentais por parte das sociedades africanas, intensificados
a partir do final do século XIX e da ocupação colonial por grande parte do
continente, e mais ainda a partir das independências nacionais. Além dos tex-
tos produzidos pelas viagens de exploração e pelas relações comerciais e diplo-
máticas, foram escritos muitos trabalhos sobre as sociedades africanas, abor-
dadas principalmente a partir de suas organizações políticas e sociais, mas
também de seus processos históricos, mesmo que em menor quantidade. Se
num primeiro momento predominaram os trabalhos feitos pelos agentes co-
loniais e as perspectivas próprias dos lugares que eles ocupavam, a partir dos
anos 1960, das independências nacionais e da consolidação de centros de es-
tudo e pesquisa acadêmica, africanos passaram a escrever sua história combi-
nando perspectivas ocidentais com as tradicionais, ganhando destaque o re-
curso à história oral.

Junho de 2012 25
Marina de Mello e Souza

Quanto às fontes não escritas, além da oralidade, considerada como forma


de acesso ao passado desde os gregos, disciplinas como a arqueologia, a lin-
guística, a geografia, a antropologia e a análise literária contribuem para um
maior conhecimento acerca do continente africano e de sua história. Aqui
vale chamar a atenção para a especificidade do que estamos chamando de
história, ou seja, uma disciplina formada no âmbito das formas de conheci-
mento ocidentais, que lida com a ação dos homens ao longo do tempo. Esta é
uma maneira específica de apreensão do passado, que segue procedimentos e
regras próprias, existindo outras possibilidades de lidar com o passado das
sociedades, como as eminentemente africanas. Nestas a transmissão oral das
informações, que podem ser de diferentes naturezas (genealogias, lendas, mi-
tos, história das migrações, saberes técnicos), caracteriza maneiras específicas
de lidar com o conhecimento sobre o passado e a sua transmissão.6
Para fazer história da África hoje no Brasil, não dispomos de muitos ma-
teriais, mas, com a proliferação de textos digitalizados e a publicação de fontes,
é possível fazer alguma coisa. O aprofundamento do conhecimento exige o
domínio de pelo menos uma língua estrangeira (inglês ou francês), na medida
em que ainda há muito poucas traduções de trabalhos de história, publicados
na forma de livros ou de artigos em revistas especializadas. A ampliação do
número de títulos disponíveis em bibliotecas, as assinaturas de revistas e o
enriquecimento de acervos, de obras escritas ou da chamada cultura material,
são tarefas que devem ser priorizadas pelas instituições de ensino e pesquisa
para que os estudos africanistas se consolidem entre nós. E isso vem aconte-
cendo não apenas no âmbito do ensino superior, em várias universidades do
país, como também em museus e instituições de pesquisa que, como dito,
devem estreitar cada vez mais seus laços com o ensino básico e fundamental,
de forma a consolidar o ensino e a pesquisa sobre assuntos africanos em terras
brasileiras.7
Como tudo que diz respeito ao conhecimento e ao ensino, o estudo é fator
indispensável para o professor atingir plenamente seus propósitos de educa-
dor, e, além da motivação individual, é preciso haver apoio institucional para
isso, tanto na forma de tempo disponível como na de remuneração adequada
que considere o trabalho feito fora da sala de aula. Sendo a interferência nestes
últimos fatores tarefa de segmentos organizados em termos políticos e traba-

26 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Algumas impressões e sugestões sobre o ensino de história da África

lhistas, fica aqui a minha modesta contribuição no que diz respeito às possibi-
lidades de aprimoramento individual.

NOTAS
1
BAKKE, Raquel Rua Baptista. Na escola com os orixás: o ensino das religiões afro-brasi-
leiras na aplicação da Lei 10.639. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social, Departamento de Antropologia, FFLCH, USP. São Paulo, 2011. p.88.
2
Dentre as traduções mais recentes destaco os oito volumes da História Geral da África
disponíveis em www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single-view/news/gene-
ral_history_of_africa_collection_in_portuguese-1/; M’BOKOLO, Elikia. África negra. His-
tória e civilizações. Trad. Alfredo Margarido. Salvador: Ed. UFBA; São Paulo: Casa das
Áfricas, 2009; THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico,
1400-1800. Trad. Marisa Rocha Motta. Rio de Janeiro: Campus; Elsevier, 2004; LOVEJOY,
Paul E. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Trad. Regina A. R. F.
Bhering e Luiz Guilherme B. Chaves. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. Dentre os
autores nacionais, destaca-se SILVA, Alberto da Costa e, autor de, entre outros, A enxada
e a lança: a África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Edusp,
1992; A manilha e o libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira; Fundação Biblioteca Nacional, 2002; Um rio chamado atlântico: a África no Bra-
sil e o Brasil na África. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Ed. UFRJ, 2003; Francisco Félix de
Souza, mercador de escravos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Ed. Uerj, 2004. Quanto a
trabalhos produzidos no âmbito dos programas de pós-graduação, foram publicados al-
guns produzidos no Departamento de História da USP, como: GEBARA, Alexsander. A
África de Richard Francis Burton: antropologia, política e livre-comércio, 1861, 1865. São
Paulo: Alameda, 2010; SANTOS, Gabriela Aparecida dos. Reino de Gaza: o desafio portu-
guês na ocupação do sul de Moçambique (1821-1897). São Paulo: Alameda, 2010; SILVA,
Juliana Ribeiro da. Homens de ferro: os ferreiros da África central no século XIX. São Pau-
lo: Alameda, 2011.
3
BAKKE, Raquel Ruas Batista, op. cit., p.74-75.
4
Para referências de narrativas de diversos momentos e procedências, ver FAGE, J. D. A
evolução da historiografia da África. História Geral da África I, p.1-22. Disponível em:
www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ue000318.pdf.
5
SANTOS, Catarina Madeira; TAVARES, Ana Paula. Africae Monumenta, v.I. Arquivo
Caculo Cacahenda. Lisboa: Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga/ Instituto
de Investigação Científica Tropical, 2002, apresenta um conjunto de textos que exemplifi-
cam a apropriação da escrita por sociedades centro-africanas antes do século XIX.
6
Um texto clássico sobre a questão da oralidade e da memória nas sociedades africanas é
HAMPATÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph (Org.) História Geral da
África I. Metodologia e pré-história da África. São Paulo: Ática; Unesco, 1980. Também

Junho de 2012 27
Marina de Mello e Souza

disponível em: unesdoc.unesco.org/images/0019/001902/190249por.pdf. Quanto a uma


perspectiva acadêmica o livro que primeiro se debruçou sobre o tema é VANSINA, Jan.
Oral tradition as History. Madison: The University of Wisconsin Press, 1985.
7
Em São Paulo vale destacar a atuação educativa do Museu Afro-Brasil, que recebe grande
quantidade de escolas, tem uma bem treinada equipe de educadores e uma importante bi-
blioteca.

Artigo recebido em 20 de janeiro de 2012. Aprovado em 26 de março de 2012.

28 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Entre máscaras e espelhos: reflexões
sobre a Identidade e o ensino de
História da África nas escolas brasileiras1
Among masks and mirrors: reflections about Identity
and the teaching of African history in Brazilian schools
Anderson Ribeiro Oliva*

Resumo Abstract
O presente artigo tem como objetivo This article aims at analyze the reflexes,
analisar os reflexos, na construção das in the construction of individual and
identidades individuais e coletivas de es- collective identities of students, of the
tudantes, das abordagens de conteúdos approaches of contents about African
sobre a história africana no ensino brasi- history in Brazilian education. Based on
leiro. Partindo dos referenciais teóricos the theoretical references connected to
ligados aos Estudos Culturais, o trabalho Cultural Studies, the study analyzes how
analisa a forma como o tratamento con- the treatment accorded to the subject
cedido ao assunto pode fomentar, inter- can foster, interdict and justify the exis-
ditar e justificar a existência de reflexos tence of plural reflections of identity –
identitários plurais – com a presença das with the presence of the African ‘masks’
‘máscaras’ africanas de reconhecimento of recognition of others and of self-rec-
do outro e de autorreconhecimento – em ognition – in our school spaces. The text
nossos espaços escolares. Ao mesmo also proposes to discuss the meaning of
tempo o texto se propõe a discutir o sen- national identity in a society composed
tido da identidade nacional em uma so- by hybrid sets of population, complex
ciedade composta por conjuntos popula- and marked by intercultural and multi-
cionais híbridos, complexos e marcados cultural relations formulated along its
pelas relações interculturais e multicultu- recent historical composition.
rais geradas ao longo de sua composição Keywords: identities; teaching of Afri-
histórica mais recente. can history; Cultural Studies.
Palavras-chave: identidades; ensino de
história africana; Estudos Culturais.

*Departamento de História, Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília (UnB).


Campus Universitário Darcy Ribeiro, ICC Ala Norte, 1º andar, s645/62 Asa Norte. 70190-900
Brasília – DF – Brasil. oliva@unb.br

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 29-44 - 2012


Anderson Ribeiro Oliva

No Brasil, um dos debates mais frutíferos sobre a questão da Identidade


Nacional foi vivenciado nos últimos dez anos. Motivado, entre outros ingre-
dientes, pela implementação das cotas raciais em algumas universidades pú-
blicas brasileiras, é certo afirmar que um dos seus efeitos positivos foi forçar
uma parte significativa da sociedade brasileira, até então desinteressada em
relação ao tema, a se posicionar ou a refletir sobre os mitos fundadores da
identidade nacional, sobre as nossas múltiplas identidades e as distorções ex-
perimentadas nas relações interidentitárias.
Observamos, na realidade, o continuar das experiências de fabricação da
Identidade Nacional, talvez tão impactantes quanto aquelas iniciadas na se-
gunda metade do século XIX (caracterizadas pela negação da pluralidade ét-
nica, pela valorização de nossa suposta eurodescendência e pelos referenciais
teóricos do Determinismo Racial) e na década de 1930 (com a defesa de uma
suposta cultura nacional homogeneizadora e embebida na ideia da miscigena-
ção e da ‘democracia racial’).
O atual momento, iniciado há pelo menos quarenta anos, refunda algu-
mas de nossas velhas crenças redefinindo a Identidade Nacional a partir da
combinação ou coexistência de outras identidades. Esse ‘novo’ diálogo, envol-
vendo máscaras e reflexos identitários, que é muito mais revelador para os
teóricos/educadores, e muito mais significativo para aqueles que se veem for-
çados a assumir ou a negar o pertencimento a alguma dessas ‘outras identida-
des’, parece ser mais funcional e crível do que o suposto manto de uma iden-
tidade comum que recobriria a todos.
A cultura e a identidade nacionais (ditas no singular) foram substituídas,
neste caso, por um conjunto multifacetado e plural de práticas, ideias, padrões
de comportamento, características psicológicas, estéticas, definições sobre
identidade e alteridade que criam um mosaico de percepções de pertencimen-
to e de estranhamento que abalaram fundações que pareciam indestrutíveis.
Não somos apenas ‘brasileiros’. Somos afro-brasileiros, nipo-brasileiros, luso-
-brasileiros, teuto-brasileiros, ítalo-brasileiros. Mais do que isso, somos tam-
bém homens e mulheres; nordestinos ou nortistas; brancos e negros; morado-
res de bairros diferentes; exercemos profissões distintas (inclusive no status);
somos portadores de crenças e estilos distintos. É claro que essas múltiplas
identidades sempre nos pertenceram, mas elas ficavam esquecidas quando as

30 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Entre máscaras e espelhos

relações interidentitárias nos forçavam a uma definição homogênea ou exclu-


siva: ser brasileiro.
Não me parece absurdo lembrar que o debate acerca das identidades mul-
ticulturais e das relações interculturais não é uma exclusividade do cenário
brasileiro. Outros espaços globais têm sido tocados cotidianamente pela ques-
tão. Nas Américas, na África e na Europa (para limitarmos nossos olhares aos
efeitos das diásporas africanas mais recentes), a situação dos imigrantes afri-
canos e das crescentes parcelas das populações de alguns países formadas por
seus descendentes intensifica o debate sobre as identidades a cada caso de ra-
cismo, xenofobia, ou de explosões sociais vindas das periferias. Motivados por
esses contextos complexos, há alguns anos, vários teóricos têm se dedicado ao
estudo dessas realidades. Dentre esses, um grupo tem chamado a atenção pelo
seu formato híbrido: são teóricos/cientistas, mas são também integrantes de
experiências diaspóricas ou pós-coloniais, que procuram explicar, entender e
vivenciar. Acredito que nenhum outro conjunto de especialistas avançou tan-
to sobre esse debate como aqueles vinculados aos “Estudos Culturais” (Cultu-
ral Studies) ou aos Estudos Pós-Coloniais.2
Entre os debates intentados por esses teóricos, a fundação e o emprego de
algumas categorias/conceitos, como multiculturalismo, culturas híbridas e iden-
tidades plurais, resultaram como potenciais ferramentas de análise e compreen-
são de várias experiências histórico-culturais ocorridas em sociedades cunhadas
pelas diásporas e pelas migrações, recentes ou não. Neste caso, me parece certo
que, para refletirmos com nossos estudantes sobre a relevância de conteúdos
vinculados à história africana em seus cotidianos escolares existe um obrigatório
eixo ou elemento de articulação: o debate reflexivo sobre as identidades.
Fundamentalmente, é sobre isso que estamos a falar. Como nos identifica-
mos? Como identificamos aos Outros? Sejam eles, ou sejamos nós, o que formos,
falamos sobre os critérios de descrição, atribuição, reconhecimento ou negação
de uma ou várias identidades. As relações identitárias, o multiculturalismo e os
mecanismos relacionais devem tencionar a Escola a assumir uma nova postura
perante a pluralidade cultural e as identidades plurais brasileiras.
Partindo do cenário descrito, o presente artigo tem como objetivo maior
refletir acerca dos possíveis reflexos, na construção das identidades individuais
e coletivas de estudantes, das abordagens de conteúdos da história africana no
ensino brasileiro. A intenção principal do trabalho é analisar a forma como o

Junho de 2012 31
Anderson Ribeiro Oliva

tratamento concedido ao assunto pode fomentar, interditar e justificar a exis-


tência de reflexos identitários multiculturais – com a presença das ‘máscaras’
africanas de reconhecimento do outro e de autorreconhecimento – em nossos
espaços escolares. Ao mesmo tempo o texto se propõe a discutir o sentido da
identidade nacional em uma sociedade composta por conjuntos populacionais
híbridos e complexos em meio às relações interculturais e multiculturais ge-
radas ao longo de sua composição histórica mais recente.

Entre máscaras identitárias e espelhos. O debate sobre


as identidades e o ensino de história africana

Um dos objetivos principais da Educação Básica brasileira sinaliza para a


necessidade de que estudantes e professores devam reconhecer e valorizar a
“pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro”, e, ao mesmo tempo, co-
nhecer também os “aspectos socioculturais de outros povos ... posicionando-se
contra qualquer discriminação”.3 Neste caso, a própria Lei de Diretrizes e Ba-
ses da Educação Nacional (9.394/1996), já determinava, em 1996, que a abor-
dagem da história do Brasil nas escolas deveria “levar em conta as contribui-
ções das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro”,
entendidas nos termos empregados pela lei como as “matrizes indígena, afri-
cana e europeia”.4 Esses elementos foram sintetizados em um dos pressupostos
centrais para o ensino brasileiro pelos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCNs), com base em um de seus temas transversais: a Pluralidade Cultural.
Dessa forma os textos dos PCNs já incorporavam, no final da década de
1990, as mudanças teóricas de definição das identidades que circulavam nos
meios acadêmicos e movimentos sociais há algumas décadas, criticando aber-
tamente a percepção de que a Identidade Nacional seria entendida com base
na adesão a um conjunto comum de valores culturais por um grupo homogê-
neo de pessoas. Pluralidade cultural, diversidade étnica, identidades plurais e
trajetórias históricas distintas passaram a ser tratadas como formadores da-
quilo que se entendia por ‘povo brasileiro’. Ou seja, dissolvia-se a ideia de que
existia ‘um povo brasileiro’, revelando-se que uma única Identidade Nacional
só existia quando construíamos e compartilhávamos uma falsa imagem. No
lugar dessa imagem deveria entrar outra: a do mosaico identitário, ou melhor,
das Identidades Plurais e das Identidades Parciais.

32 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Entre máscaras e espelhos

Nenhuma sociedade pode se pensar como homogênea ou como possui-


dora de uma única inscrição cultural/identitária. As diferenças das mais diver-
sas ordens – de origem, social, gênero, profissão, cor, idioma, idade, região,
escolaridade, território, religião – criam sulcos de formatos distintos dentro
das sociedades e entre diferentes sociedades. Nossa ‘brasilidade’ apenas reflete-
-se no jogo de espelhos identitários quando provocada; quando, em determi-
nadas épocas ou situações, somos forçados a revelar algumas de nossas más-
caras de reconhecimento, defender ou negar o pertencimento a essa ou
aquela inscrição. De outra forma, poderíamos voltar a perguntar o que forma
ou o que define o pertencimento a esta identidade. O que é ser brasileiro?
Para alguns, tal resposta seria dada com base na descrição/inscrição de
um elemento essencial ou na combinação de certos ingredientes: ‘nasceu no
Brasil’ (território); ‘fala português’ (língua); ‘é filho de brasileiros’ (descendên-
cia sanguínea); ‘é filho de pai ou mãe brasileiros’ (descendência sanguínea
parcial); ‘sabe sambar, jogar futebol e gosta de carnaval’ (ingredientes cultu-
rais); ‘é cordial, simpático e tem o jeitinho brasileiro’ (valores comportamen-
tais). Se, em algumas situações, parece claro que somos ‘brasileiros’, em outras,
parece ser fruto de um grande improviso nos classificarmos como iguais.
Estar diante do outro – estrangeiro (espanhol, estadunidense, japonês,
mexicano, nigeriano) –, ser identificado pelo outro – quando na condição de
imigrante ou em viagem ao exterior –, participar de certos momentos ‘comuns’
– eleições, competições esportivas –, talvez sinalizem para um pertencimento
identitário também comum, mas obviamente pouco operacional e funcional
apenas em poucas situações. Cotidianamente nos observamos e nos identifi-
camos com base em outras inscrições, mais usuais e proximais do que a ‘bra-
silidade’. Ou seja, nossa ‘brasilidade’ está carregada de sentidos, reflexos e
máscaras distintas a partir do lugar identitário do qual falamos.
Não estamos afirmando com isso que não temos ‘uma identidade nacio-
nal’. ‘Ela’ ou ‘elas’ existem. Inscrevemo-nos na ‘brasilidade’ ou a refletimos em
algumas situações, como já afirmamos. Porém, mesmo nesses momentos, ‘ela’
ou ‘elas’ não nos igualam. Enfim, somos brasileiros (para aqueles que se consi-
deram ou se inscrevem nesta identidade), mas possuímos outras inscrições
identitárias, mais reveladoras, marcantes e coparticipantes em relação à primei-
ra quando operamos as categorias de definição e identificação. Perceba-se, por-
tanto, que não defendemos um revirar de faces ou identidades, apenas reforça-

Junho de 2012 33
Anderson Ribeiro Oliva

mos o argumento de que a definição ‘brasileiro(a)’ só pode ser entendida


quando vista como um mosaico, composto por outras múltiplas faces, por di-
versas culturas, com a presença de maiorias e minorias. Identidades Plurais que
se articulam, se atraem ou se rejeitam sob um ‘guarda-chuva’ identitário maior,
a Identidade Nacional. Cada vez mais, para mais pessoas, faz mais sentido se
pensar como nipo-brasileiro ou afro-brasileiro, do que como apenas ‘brasileiro’.
Para descrever sociedades como a nossa, teóricos da cultura têm formu-
lado definições ou categorias que procuram revelar e explicar os resultados dos
encontros e desencontros de agentes, culturas e identidades plurais: culturas
híbridas; sociedades Pluriculturais; sociedades Multiculturais e sociedades In-
terculturais, entre outras. No caso brasileiro, uma das definições mais frequen-
tadas tem sido a do Multiculturalismo.
Neusa Maria Mendes de Gusmão esclarece que esse conceito pode ser
entendido com base em duas componentes. A primeira refere-se a um ‘fenô-
meno’ vivenciado em muitas sociedades nas quais o pluralismo cultural se
manifestou pelo encontro de vários agentes formadores, oriundos de espaços
distintos e que se deslocaram em correntes migratórias pelos mais diversos
motivos e tempos. A segunda confunde-se com uma série de políticas públicas
contemporâneas – como na educação ou na formação profissional – com o
objetivo de atender demandas de sociedades plurais.5 Seja como for, o empre-
go do termo é/foi marcado por algumas polêmicas e limitações. No entanto,
entre outras ‘equações teóricas’ possíveis, ele representa uma forma de inter-
pretar e, ao mesmo tempo, solucionar questões inerentes às sociedades mar-
cadas profundamente pela diversidade de seus entes componentes.

O termo ‘multiculturalismo’ ganhou, no entanto, muitos críticos, entre outras


razões, porque se limitaria “a constatar o estado das entidades sociais onde coa-
bitam os grupos ou os indivíduos de culturas diferentes”. Na mesma direção al-
guns autores afirmam que “multicultural é entendido como uma constatação da
presença de diferentes culturas num determinado meio e da procura de com-
preensão das suas especificidades”. O multiculturalismo coloca, sem sombra de
dúvida, a heterogeneidade de formação de diferentes sociedades e torna evidente
a questão das diferenças. As críticas decorrem do fato de que, na prática, todas as
sociedades são multiculturais. (adaptado de Gusmão, 2004, p.61)

34 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Entre máscaras e espelhos

Mesmo com suas limitações, ao ser manipulado por diversos sujeitos, o


‘multiculturalismo’ apresentou-se nas últimas décadas como uma forma de
invenção social e de inscrição identitária. Ao mesmo tempo, revelou-se tam-
bém como instrumento de intervenção pública, no esforço de certos agentes
em (re)significar e modificar práticas que levaram/levam à construção de so-
ciedades marcadas por profundas desigualdades e práticas discriminatórias.
Gusmão, ao analisar a situação vivenciada por jovens estudantes africanos
ou luso-africanos (descendentes de imigrantes africanos) em escolas portugue-
sas nas décadas de 1980 e 1990, nos informa uma importante maneira de pen-
sar as relações societárias, raciais e culturais em uma sociedade que se julgava
monocultural, mas que na prática não o era.

A escola marcada pela multiplicidade étnico-cultural faz da educação um desafio


como prática e como teoria, posto que envolve diferentes sujeitos, agentes, agên-
cias e instituições ... A chamada educação multicultural passa então a ser conce-
bida na Europa e também em Portugal como condição de dar nota de uma reali-
dade social formada por imigrantes e seus descendentes e, junto dela e em seu
nome, reorientar as reivindicações que tais grupos elaboram perante os desman-
dos de uma ordem social injusta e excludente, perante os processos xenofóbicos
e racistas do mundo europeu. O objetivo central é o de buscar uma sociedade
baseada na igualdade e na tolerância. (Gusmão, 2004, p.63)

Portanto, ao partirmos do princípio de que somos membros de uma socie-


dade multicultural avançamos no esforço de identificar nossas várias ancestra-
lidades e agentes formadores. Implodimos com mitos de origem que insistiam a
nos tratar como membros de uma única cultura – primeiro a europeia e depois
a nacional (única e fruto da miscigenação). De forma parecida, assumimos a
necessária urgência de elaborarmos políticas e estratégias que combatam as de-
sigualdades geradas por essências discriminatórias e que permitam aos diversos
grupos ou componentes desse mosaico que é a Identidade Nacional (plural e
diversa) se autoafirmarem, sendo valorizados e reconhecidos por todos.
Dessa forma, mesmo assumindo as limitações do uso dessa categoria, de-
fendemos seu emprego em nossas análises e nos estudos escolares. Isso se deve
ao fato de que ela permite não só refundar percepções identitárias, mas, prin-
cipalmente, revelar que qualquer diálogo sobre o que devemos ensinar nas es-
colas deva passar pelas trajetórias históricas plurais e pelas diversas contribui-

Junho de 2012 35
Anderson Ribeiro Oliva

ções ao patrimônio cultural ‘brasileiro’ oriundas das mais diferentes sociedades,


populações e agentes que participaram (ou participam) de sua formação.

Os ‘entre-lugares’ da Identidade e da Educação

Ao analisar parte da obra6 do afro-martinicano Frantz Fanon, o teórico


indo-britânico Homi Bhabha elaborou uma das mais reveladoras tentativas de
explicar, interpretar e vivenciar o fenômeno da construção das identidades
formadas pelas diásporas. As trajetórias desses dois indivíduos, forjadas elas
mesmas pelas diásporas e pelos espaços criados em meio às relações coloniais
e pós-coloniais, permitem que em suas expressões e apreensões de mundo
encontremos claras aproximações com as realidades vividas por milhares de
homens e mulheres que compartilharam histórias de vida correlatas. A sensa-
ção de pertencimento e estranhamento nas relações de identificação; a fabri-
cação de culturas híbridas e as novas formas de inscrição cultural resultam do
esforço de imaginar como tão complexas e diversas situações de contatos in-
terculturais/multiculturais criaram o que Bhabha chamou de ‘entre-lugares’,
ou seja, os processos de elaboração das novas identidades culturais.

O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar


além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles
momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças cultu-
rais. Esses ‘entre-lugares’ fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de
subjetivação que dão início a novos signos de identidade...7

Homens ‘hifenados’ (afro-americano e indo-britânico), ambos os teóricos


citados interpretam ou representam situações que podem espelhar os encon-
tros e desencontros que acontecem nos espaços escolares dentro de sociedades
multiculturais. Não podemos negligenciar o fato de que a Escola é um espaço
marcado por discursos e práticas, tensões e debates. Os movimentos formati-
vos e discursivos, a disciplinarização em conflito com a contestação e a educa-
ção formal esbarrando nas práticas pessoais são dinâmicas comuns nessas
instituições. Representantes de uma percepção de mundo, de interesses dos
agentes que operam o sistema educacional e de seus integrantes (docentes,
estudantes, técnicos, família e sociedade), as Escolas devem ser pensadas como

36 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Entre máscaras e espelhos

fronteiras, entendidas como Bhabha nos lembra: “lugar onde algo começa a se
fazer presente” (2003, p.26-27).
Ou seja, apesar de apresentar conteúdos formais e preestabelecidos aos
estudantes – prescritos por leis, normas e currículos –, a apropriação das ‘li-
ções’, a construção de novas leituras de mundo e de entendimentos sobre as
realidades coletivas e individuais apresentam-se justamente como parte de um
movimento de elaboração de novas identidades. Identidades que não são aque-
las apresentadas pelas abordagens do conteúdo preestabelecido ou as informa-
das pelos estudantes. Formas distintas de inscrição cultural se articulam nessa
fronteira, tornando a Escola um espaço de grande relevância na formação de
algumas de nossas múltiplas identidades.
O mais interessante é que na Escola ensina-se um tipo específico de me-
mória, de História e de pertencimento. As experiências relativas à trajetória de
vida pessoal de cada um de seus integrantes são inicialmente ignoradas. Seus
sujeitos são vistos como subalternos a uma cultura e valores a serem apreen-
didos. Como em uma microesfera das experiências coloniais, a sala de aula
torna-se um lugar de dominação cultural, de colonização imaginária. Nela uma
suposta identidade comum ou pré-concebida (brasileiro, homem, mulher, ne-
gro, branco) desloca-se e conflita com uma alteridade complexa.
A imagem esperada do que definiria uma determinada entidade (‘brasi-
leiro’) fragmenta-se e se torna insólita diante de tantos outros. Se, durante
grande parte dos séculos XIX e XX, a escola reproduziu uma imagem homo-
gênea de brasilidade – de franca ascendência europeia, branca, cristã, ociden-
tal, masculina e elitista –, ao confrontar-se com outras expressões e inscrições
culturais e identitárias – como a africanidade, a latinidade, as leituras feminis-
tas, as múltiplas filiações religiosas e não-elitistas – criou-se um espaço de
conflito e recriação do que somos e de como nos percebemos e aceitamos.
Gusmão lembra que “a escola não consegue captar as expressões culturais
presentes na modernidade e nas relações de identidade” servindo a determi-
nados objetivos nas sociedades modernas: formar o cidadão e o profissional.
Neste caso os debates sobre a memória cultural ou as diferentes formas de
reconhecimento cultural estariam fora de suas intenções ou ações prioritárias,
marcadas por claras distorções de origem. A única memória que deveria ser
apreendida nas salas de aulas deveria ter base científica e se confundir com as
ideias de nação e memória nacional, produzidas ou aceitas pelos agentes que

Junho de 2012 37
Anderson Ribeiro Oliva

defendem os discursos oficiais e homogeneizadores da Identidade Nacional


(Gusmão, 2004, p.51-52).
Neste espaço, os saberes individuais, locais e das minorias seriam con-
frontados com o ‘saber do professor’ entendido como uma prática ‘pedagógi-
ca que universaliza’, como representante de um ‘modelo único e uniforme de
sociedade’ que deveria ser ensinado e aprendido. Dessa forma a Escola se trans-
forma em um espaço de rupturas com a realidade e com as experiências ante-
riores, no qual o diferente/heterogêneo deve ser igualado/homogeneizado. As
múltiplas experiências pregressas acabam ignoradas e o entendimento de que
a identidade só pode ser construída em um fluxo constante na relação com a
alteridade parece não ser reconhecido (Gusmão, 2004, p.51-54).
Um dos caminhos teóricos possíveis para o entendimento e para a resolu-
ção dos problemas gerados por essa percepção de identidade pela Escola pode-
ria ser exemplificado pelas novas realidades geracionais e perfis identitários de
alguns países europeus no período pós-colonial. Tocados por um processo
intenso de imigração originária dos países africanos e asiáticos (percebidos
como ex-colônias), as sociedades europeias – como em Portugal, Inglaterra e
França – se viram forçadas a redefinir suas fronteiras identitárias, já que o Ou-
tro, agora, não se encontrava mais no espaço do ‘além-mar’. O Outro, agora,
ocupava espaços próximos demais, como as ruas, os centros comerciais, as
escolas, as áreas de lazer e os locais de trabalho das próprias cidades europeias.
Mais do que isso, esse Outro – ‘africano’, ‘negro’, ‘muçulmano’, ‘colonizado’ – se
identificava como igual, pelo menos na atribuição de uma Identidade Nacional
em comum, ou na reivindicação de igualdades jurídica, econômica e social,
quando se tratava das gerações descendentes dos primeiros imigrantes, que
chegaram em larga escala à Europa nas décadas de 1950, 1960 e 1970.
Guardadas as devidas proporções e reconhecidas as diferenças entre os
contextos, o quadro vivenciado em alguns desses países no período colonial e
pós-colonial nos incentiva a construir referências sobre como empregar o con-
ceito de ‘identidade’. No caso daqueles países pelo encontro desconcertante do
Eu (europeu, branco, ex-colonizador) e do Outro (africano, negro, ex-coloni-
zado) no tempo presente. Identidade e Alteridade se apresentam em pleno
potencial de conflitos e tensões. No caso brasileiro, a situação ganha um novo
fator: a ‘aliedade’, que alguns teóricos definem como a alteridade experimen-
tada no tempo, o encontro do Eu (no presente) com o Outro (deslocado no

38 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Entre máscaras e espelhos

tempo, para o passado), que ocorre em uma combinação imaginária (Gusmão,


2004, p.55-57).
Em uma das faces de nosso mosaico identitário, as relações ocorrem entre
o ‘brasileiro’ de hoje e o ‘africano’ de ontem, que se encontram no presente. É
certo que, de alguma forma, essa relação diacrônica dialoga com outras faces
de nossas identidades, como aquelas estabelecidas pelas dinâmicas relacionais
que se encontram submersas no passado e deitam raízes no presente, quando
o antigo Eu (branco, senhor) se relaciona com o antigo Outro (negro, escravo).
Obviamente, por fim, não podemos esquecer as relações que ocorrem no hoje,
entre brancos (eurodescendentes) e negros (afrodescendentes), ‘brasileiros’
que compartilham um processo de identificação complexo. Portanto, essas
relações aparecem tingidas pelas questões raciais do hoje e do ontem.
Para entendermos melhor como empregar as referências teóricas sobre a
Identidade em nosso cotidiano escolar sintetizei a seguir as reflexões de Bhabha
e Fanon acerca do tema, dividindo-as em três modelos. Eles serviriam para que
professores e estudantes compreendessem de forma mais panorâmica a im-
portância dos debates acerca das relações étnico-raciais em nossas salas de
aulas e no estudo da História da África.
No modelo 1, que denominamos de ‘binário’, há uma relação marcada
pelo franco antagonismo. É na verdade uma relação de absoluta negação e de
não reconhecimento. Como forças da ‘física’ que se repelem, que não se co-
municam, o Eu e o Outro são definidos de forma essencialista, autônoma.
Como se, em uma inexplicável inversão, a identidade e a alteridade se rejeitas-
sem plenamente para existir. Esse modelo, mais matemático do que antropo-
lógico, cria um obstáculo e não uma ponte entre essas duas entidades. Um tipo
de vidro que permite que ambos se vejam, mas não se aproximem, que se es-
tranhem, mas não se misturem, como em um falso jogo de espelhos.
No modelo 2, que denominamos de ‘as identidades colonizadas’, existiriam
algumas condições subjacentes para a compreensão do ‘processo de identifica-
ção’. Lembramos que esse processo seria vivido nas relações estabelecidas entre
os indivíduos que se encontravam na condição de ‘colonizado’ e de ‘coloniza-
dor’, de ‘africano’ e de ‘europeu’, de ‘negro’ e de ‘branco’. Segundo Fanon, tal
situação relacional, marcada por um fluxo invertido de ‘demandas’ e ‘desejos’,
estaria condicionada ou seria cunhada em uma moeda única de dupla face, com
duas imagens que projetariam duas identidades antagônicas, mas dependentes.

Junho de 2012 39
Anderson Ribeiro Oliva

O Eu (branco, europeu, colonizador) desejando preservar sua condição de do-


minador, cuja demanda só existia pela presença e pela situação do Outro (negro,
africano, colonizado). E o Outro desejando ocupar o lugar do Eu, condição
demandada pela sua situação de subjugado. Fanon afirmava que tal condi­
ção poderia ser sintetizada da seguinte forma: “O preto escravizado por sua
inferioridade, o branco escravizado por sua superioridade, ambos de acordo
com uma orientação neurótica ... o que é frequentemente chamado de alma
negra é um artefato do homem branco” (Fanon, apud Bhabha, 2003, p.74-75).
Por fim, há o esquema que acreditamos ser o mais explicativo para o nosso
caso. No modelo 3, que chamaremos de ‘identidades híbridas’, nos apoiamos nas
interpretações de Homi Bhabha sobre as relações de identidade. Nesta operação
“o lugar do outro não deve ser representado ... como um ponto fenomenológico
fixo oposto ao eu”. Sua definição seria mais complexa e norteadora da realidade
de uma sociedade multicultural, já que o “outro deve ser visto como a negação
necessária de uma identidade primordial – cultural ou psíquica” –, como é, por
exemplo, a falsa ideia de UMA identidade nacional, definida por UMA cultura
nacional, ou por UMA única ideia de pertencimento. Dessa forma o Outro “in-
troduz o sistema de diferenciação que permite ao cultural ser significado como
realidade linguística, simbólica, histórica”. Mais do que isso, “como princípio
de identificação, o outro outorga uma medida de objetividade, mas sua repre-
sentação é sempre ambivalente”, ou seja, ele é composto por princípios confli-
tantes, retirados das substâncias formativas do Eu e do Outro. “A identificação
é sempre uma questão de interpretação, pois ela é um encontro furtivo entre
mim e um si-próprio, a elisão da pessoa e do lugar” (Bhabha, 2003, p.86-87).
O que parece ser diferenciado nesse modelo é que ele introduz uma nova
dimensão de representação na relação entre o Eu e o Outro. Se antes a obser-
vação fixava-se nas imagens que refletiam nos espelhos vítreos que serviam
como fronteira nessa relação, agora, seria preciso acrescentar uma perspectiva
de profundidade e substituir o espelho ou janela por uma fronteira articular,
que funde, ao invés de separar. Essa representação permite construir um es-
quema no qual uma forma híbrida, em movimento, substitui a forma binária
(da soma ou da subtração) no esforço de decifrar as dinâmicas da construção
da identidade e da alteridade. Sendo assim, as inscrições de pertencimento dos
indivíduos são forjadas não mais no duelo de imagens, da rejeição ou na ade-
são a certas características. Tanto o eu como o outro não passam de projeções

40 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Entre máscaras e espelhos

que se articulam no fenômeno da identificação quando suas sombras se en-


contram no espaço relacional, ou no intervalo (o entre-lugar) criado pelas
fronteiras, ou seja, no espaço onde se fabrica uma identidade da alteridade ou
uma alteridade da identidade.

À medida que uma série de grupos cultural e racialmente marginalizados assume


prontamente a máscara do negro, ou a posição da minoria, não para negar sua
diversidade, mas para, com audácia, anunciar o importante artifício da identida-
de cultural e de sua diferença, a obra de Fanon torna-se imprescindível. À medi-
da que grupos políticos de origens diversas se recusam a homogeneizar sua
opressão, mas fazem dela causa comum, uma imagem pública da identidade da
alteridade, a obra de Fanon torna-se imprescindível – imprescindível para nos
lembrar daquele embate crucial entre máscara e identidade, imagem e identifica-
ção, do qual vem a tensão duradoura de nossa liberdade e a impressão duradoura
de nós mesmos como outros. (Bhabha, 2003, p.102)

Para além da conhecida tese das zonas ou áreas de contato interétnico e


intercultural – espaços nos quais semelhanças e diferenças são postas à prova –,
a perspectiva de se pensar as fronteiras identitárias e culturais como os ‘entre-
-lugares’ que informam os “momentos ou processos que são produzidos na
articulação de diferenças culturais” torna o modelo 3 mais adequado ao nosso
debate. De forma clara ele revela que não existem identidades essenciais, puras
ou absolutas. As identidades não passam de representações ou projeções do que
acreditamos ser, do que acreditamos ser o Outro, e do que esse Outro acredita
que sejamos. Nesse jogo de projeções, o processo de identificação só pode ocor-
rer justamente na fronteira (entendida como espaço relacional ou como o ‘lugar
onde algo começa a se fazer presente’) entre essas projeções. Imagens, represen-
tações e projeções de identidades se encontram nesse espaço relacional, e é nele
que as identidades serão construídas.
No caso brasileiro torna-se evidente que a elipse poderia ser pensada co-
mo a representação dos ‘processos de identificação’ que envolvem obviamen-
te a própria Identidade Nacional. No entanto, isoladamente, ela – a Identida-
de Nacional – não representa nada, não se sustenta. São seus componentes, os
Mesmos e os Outros, que em seus movimentos projetam suas sombras identi-
tárias para o centro da fronteira relacional, permitindo tanto o reconhecimen-
to dessas múltiplas identidades, a revelação das pluralidades culturais como

Junho de 2012 41
Anderson Ribeiro Oliva

também um entendimento mais adequado do significado da Identidade Na-


cional. Portanto, essas múltiplas identidades não são excludentes e não estão
isoladas. Elas são relacionais e, na relação com o todo, complementares.
Neste caso devemos frisar que não existe, ou não deveria existir uma hie-
rarquia entre essas identidades. Afro-brasileiros, luso-brasileiros, ítalo-brasi-
leiros, nipo-brasileiros, teuto-brasileiros, sociedades indígenas e aqueles que
não se identificam pelas representações ‘hifenadas’, portanto, apenas ‘brasilei-
ros’, além de todos os seus descendentes, compõem o mosaico identitário que
poderíamos chamar de Identidade Nacional. Complexa, diversa, heterogênea,
plural. Justamente quando uma condição de desigualdade é criada entre esses
grupos ou categorias de identificação – e este parece ser o caso de várias socie-
dades contemporâneas –, torna-se necessária a intervenção da sociedade civil,
das instituições, dos movimentos sociais e do Estado para equacionar as ten-
sões e distorções criadas.
Como articular ou aproximar essa discussão toda de nossas experiências
ou cotidianos nas salas de aula? Essa é uma das demandas da Educação das
Relações Étnico-raciais. Ao partirmos da constatação de que as escolas, no
sistema educacional contemporâneo, desempenham papel relevante na cons-
trução de percepções de mundo e na divulgação de informações e conteúdos,
que deveriam compor aquilo que chamamos de ‘memórias compartilhadas’,
parece inquestionável a necessidade de ampliarmos nossos recortes temáticos,
conteúdos programáticos e abordagens reflexivas nas salas de aulas.
Herdeiros de uma escola que privilegiou, em grande parte de sua trajetó-
ria, conteúdos eurocêntricos, vivemos hoje a urgência de rever conteúdos e
temas formativos em nossos bancos escolares. Se adotarmos o paradigma iden-
titário anteriormente apresentado – o das Identidades e Culturas Plurais que
compõem a Identidade Nacional –, torna-se óbvio o fato de que no trabalho
com História, Geografia, Artes, Literatura, Filosofia e Música não podemos
valorizar, ensinar e aprender padrões de conhecimento relativos a apenas uma
matriz formativa, no caso a europeia. Precisamos conhecer, reconhecer, valo-
rizar e respeitar as outras matrizes que participaram dessa formação – por
exemplo, as africanas, as asiáticas e as indígenas.
A questão é, de fato, relacional. É preciso estarmos convencidos da relevân-
cia de debater a questão das identidades nas escolas para que possamos conven-
cer nossos alunos sobre seu papel formativo e funcional em nosso cotidiano. Mais

42 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Entre máscaras e espelhos

do que isso, ao redefinirmos nossos princípios de identidade, torna-se insusten-


tável a manutenção da matriz curricular que grande parte das escolas reproduzia
até o início deste século. É certo que importantes mudanças começaram a ocor-
rer no campo legal ou prescritivo vinculados à educação a partir da última déca-
da do século XX, resultados de demandas de movimentos sociais e do convenci-
mento por parte dos intelectuais e políticos de que o debate sobre as nossas
múltiplas identidades e a Identidade Nacional deveria ser reinaugurado.
Naqueles anos, tornou-se consensual que não mais poderíamos pensar a
sociedade brasileira como portadora de um único signo identitário, como por-
tadora de um único padrão cultural. O multiculturalismo entrava em cena
oficialmente na LDB de 1996, nos PCNs, produzidos nos anos seguintes, e na
promulgação das Leis federais 10.639/03 e 11.645/08, além das Diretrizes Cur-
riculares Nacionais relacionadas ao ensino de História da África e à Educação
Étnico-Racial. Desde então, para além das matrizes europeias, as outras ma-
trizes de formação de nossa sociedade – entre elas as africanas – deveriam
obrigatoriamente aparecer nos currículos, livros didáticos, cursos de formação
de professores e, por fim, nas salas de aula.

Reflexões finais

Chegamos ao ponto. Ensinar, aprender, refletir e debater sobre as ‘iden-


tidades’ é um exercício fundamental para o combate à intolerância, à discri-
minação, à xenofobia, ao racismo e ao sexismo. É uma ferramenta obrigatória
no esforço de construir uma sociedade mais justa e, efetivamente, plural. O
respeito ao Outro, seja ele quem for, tornar-se-ia ato rotineiro. Essa é uma das
obrigatórias articulações que devemos fazer.
Em complemento a esse primeiro ponto, outro se torna correlato. Prin-
cípios como do autorreconhecimento, da alta autoestima identitária, do reco-
nhecimento pelo Outro, do respeito e da valorização das diferentes sociedades
e culturas só se tornam possíveis com os aprendizados/conhecimentos que
temos sobre essas sociedades e culturas. Competindo com a comunicação so-
cial, a televisão, a internet e o cinema, a Escola transforma-se em um espaço
também de fabricação de imaginários e de conhecimentos sobre o Eu e os
Outros. Portanto, o estudo da história e das culturas africanas não é importan-
te apenas para aqueles que se identificam como membros dessa identidade,

Junho de 2012 43
Anderson Ribeiro Oliva

mas para TODOS. Valorizar e respeitar são importantes práticas que devemos
trabalhar em nossas salas de aulas. Conhecer as contribuições para a constru-
ção do patrimônio histórico-cultural da humanidade e do Brasil dessas socie-
dades permite que tenhamos uma visão mais panorâmica da nossa condição
humana, de nossas múltiplas identidades e de nossa pluralidade cultural.

NOTAS
1
Uma versão anterior e modificada deste texto foi apresentada como parte introdutória de
material instrucional a ser utilizado no curso de Aperfeiçoamento de Docentes promovido
pelo Centro Integrado de Aprendizagem em Rede (Ciar), da Faculdade de História da Uni-
versidade Federal de Goiás.
2
Entre algumas das principais referências podemos citar os seguintes trabalhos: APPIAH,
Kwame Anthony. Na casa de meu pai. Trad. Vera Ribeiro. 1.ed. Rio de Janeiro: Contra-
ponto, 1997; APPIAH, Kwane Anthony. La ética de la identidad. Trad. Lilia Mosconi. 1.ed.
Buenos Aires: Katz, 2007; BHABHA, Homi. Race time and the revision of modernity. In:
BACK, Les; SOLOMOS, John (Org.) Theories of race and racism. London: Routledge, 2000.
p.354-368; GILROY, Paul. Entre campos: nações, culturas e o Fascínio da Raça. São Paulo:
Annablume, 2007; GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência.
Rio de Janeiro: Ucam; Ed. 34, 2001; HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações
culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009; HALL, Stuart. Old and new identities, old and
new ethnicities. In: BACK; SOLOMOS (Org.), 2000, p.144-153;
MBEMBE, Achille. As formas africanas de autoinscrição. Revista Estudos Afro-Asiáticos,
Rio de Janeiro, ano 23, n.1, p.171-209, 2001.
3
Ver BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros
Curriculares Nacionais. Terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: introdução aos pa-
râmetros curriculares nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1998 (a), p.55.
4
Como é de conhecimento geral, a LDB, no que diz respeito ao ensino de história africana,
foi alterada pelas Leis nº 10.639, de 9 jan. 2003, e 11.645, de 10 mar. 2008. O trecho citado
encontra-se no 4º parágrafo do artigo 25.
5
GUSMÃO, Neusa Maria Mendes de. Os filhos da África em Portugal: antropologia, mul-
ticulturalidade e educação. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2004. p.61.
6
Principalmente as seguintes referências: FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas.
Rio de Janeiro: Fator, 1983; FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Rio de Janeiro: Ci-
vilização Brasileira, 1979.
7
BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. p.20.

Artigo recebido em 20 de janeiro de 2012. Aprovado em 26 de março de 2012.

44 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Os dilemas de dois autores frente a
Uma história do negro no Brasil1
The dilemmas facing the two authors of
Uma história do negro no Brasil

Wlamyra Albuquerque*
Walter Fraga Filho**

Resumo Abstract
O objetivo deste ensaio é compartilhar The objective of this essay is to share
com profissionais da área de história as with historians reflections and dilem-
reflexões e dilemas que a nós se apre- mas concerning the elaboration of Uma
sentaram no processo de elaboração de história do negro no Brasil, a book pub-
Uma história do negro no Brasil, livro lished by the Fundação Palmares/MinC
publicado em parceria pela Fundação and the Centro de Estudos Afro-Orien-
Palmares/MinC e pelo Centro de Estu- tais (Ceao)/UFBA in 2006. We consider
dos Afro-Orientais (Ceao)/ UFBA, em that issues such as the relationship be-
2006. Consideramos que questões como tween historiography and the demands
a relação entre historiografia e deman- of the contemporary black movement,
das do movimento negro contempo­ as well as the offshoots of research con-
râneo, assim como os desdobramentos cerning the history of Africa, the Afri-
das pesquisas sobre a história da África, can diaspora and the trajectories of Af-
da diáspora africana e das trajetórias das ro-Brazilian populations in terms of
populações afro-brasileiras para a edu- basic education persist in the debate
cação básica persistem como relevantes around the National Directives for Edu-
no debate sobre a efetivação das Diretri- cation on Ethnic-Racial Relationship
zes Curriculares Nacionais para a Edu- and for the teaching of African and Af-
cação das Relações Étnico-Raciais e para ro-Brazilian Culture and History.
o Ensino de História e Cultura Afro- Keywords: history; culture; history of
-brasileira e Africana. the blacks; Law 10.639/2003.
Palavras-chave: história; cultura; histó-
ria do negro; Lei 10.639/2003.

*Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia (UFBA). Estrada de


São Lázaro, 197, Federação. 40210-730 Salvador – BA – Brasil. wlamyra@gmail.com
** Centro de Artes, Humanidades e Letras, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
Praça Ariston Mascarenhas, s/n. 44300-000 Cachoeira – BA – Brasil. walterfragaf@ig.com.br

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 45-60 - 2012


Wlamyra Albuquerque e Walter Fraga Filho

Há situações que a um só tempo se apresentam como imprevistas, desa-


fiadoras e inescapáveis. Foi o que sentimos quando, em 2005, correu a notícia
do edital da Fundação Cultural Palmares, instituição vinculada ao Ministério
da Cultura (MinC), convocando projetos para a produção de material paradi-
dático que subsidiasse o ensino da história e da cultura afro-brasileira e afri-
cana, em decorrência da sua obrigatoriedade nas redes de ensino fundamental
e médio de todo o país. Tratava-se, portanto, de uma ação inscrita no âmbito
da Lei 10.639/2003. Imprevisto e desafio são palavras bem adequadas para
definir aquela tarefa.
O imprevisto estava em nos lançarmos na difícil empreitada de produzir
material paradidático, algo que até então não fazia parte dos nossos planos.
Pouco antes havíamos concluído nossos doutorados e, como costuma aconte-
cer com doutores recentes, o que vislumbrávamos era cada qual retomar sua
pesquisa, revisar a tese ou efetuar qualquer leitura despretensiosa, sem se im-
portar com prazos e relatórios substantivos.2 Estava fora de cogitação a pro-
dução de textos subordinados a calendário rígido e ao olhar implacável de uma
banca de especialistas.
Porém, fazemos parte de uma geração que desde os primeiros momentos
da graduação, como espécie de marca de pertencimento ao ambiente acadê-
mico, aprendeu a desconfiar de livros didáticos e afins. Já nos primeiros se-
mestres do curso, cultivávamos um olhar de suspeição para aqueles textos que
nos pareciam, além de defasados frente às incessantes novidades universitárias,
altamente comprometidos com o que chamávamos de ‘história oficial’. Havia,
no final da década de 1980 e nos anos 1990, vasto campo de debates sobre
manipulações e distorções que a história, como disciplina escolar, sofreu sob
a égide da censura do regime militar.
Como tão bem definiu Kazumi Munakata, no rastro do fim da ditadura
ganharam ampla divulgação no Brasil pesquisas que denunciavam as ‘belas
mentiras’ patrocinadas pelo Estado autoritário, impressas nos livros didáticos
e paradidáticos utilizados nas escolas. Nesse sentido, constitui-se toda uma
historiografia que se “nutriu de uma conjuntura política em que, para muitos
setores da sociedade brasileira, era fundamental a crítica ao regime militar e a
seus entulhos autoritários”.3
A constatação indignada de que a produção literária da área de história
voltada a crianças e adolescentes estava subordinada ao controle do Estado

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Os dilemas de dois autores frente a Uma história do negro no Brasil

funcionava como espécie de ‘choque de realidade’ a projetar o graduando pa-


ra o campo de preocupações com o que passava a lhe parecer seriamente te-
mível: a vida extramuros da universidade, o ensino na educação básica. Não
fugíamos à regra.
Estamos falando de um tempo em que ainda fazia sentido repetir o chavão
de que não interessava aos governos oferecer educação de qualidade, pois isso
despertaria espíritos críticos, sujeitos questionadores da ordem estabelecida.
Daí concluía-se que os saberes escolares eram reféns de conhecimento histó-
rico comprometido com o status quo. Enquanto isso, nas pós-graduações em
história as críticas às versões do passado veiculadas no espaço escolar eram
encobertas pela obstinação da pesquisa empírica, à primeira vista – e só à
primeira vista – caminho oposto ao repensar sobre a produção didática e pa-
radidática na nossa área.
Felizmente, o amadurecimento do debate e o fortalecimento dos progra-
mas de pós-graduação em história e em educação provocaram reflexões mais
consequentes acerca da literatura em circulação na Educação Básica.4 No co-
meço da década de 1990, o mercado editorial passou a encher as estantes com
didáticos e paradidáticos produzidos por pesquisadores engajados em desen-
tulhar a história dos ‘ranços do autoritarismo’, só para lembrar a linguagem
da época.5 Como bem analisaram outros autores, essa renovação editorial foi
impulsionada por reformulações curriculares, alimentada pelo engajamento
acadêmico e por demandas dos movimentos sociais.
Ernesta Zamboni, em “O conservadorismo e os paradidáticos de história”,
artigo publicado em 1993, avaliava que nos títulos então publicados “nota-se
uma acentuada ênfase sobre a questão do poder”, assim como o empenho em
construir heróis que pudessem encarnar a imagem da nação livre.6 Trazer à luz
os artifícios do poder e destacar a luta heroica em prol da liberdade nacional
eram dois vetores a guiar os autores que reescreviam a história a ser divulgada
no ambiente escolar. Para Zamboni essa tendência revelava conservadorismo
herdado da memória oficial.7
Bem, não nos interessam aqui as heranças do período da ditadura e sim
o debate, já instaurado na década de 1990, sobre a relação entre historiografia,
memória nacional e literatura escolar.8 Várias inquietações daí decorrentes nos
acompanham desde que publicamos, em 2006, Uma história do negro no Bra-
sil, livro que venceu o edital da Fundação Palmares/MinC em parceria com o

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Centro de Estudos Afro-Orientais/UFBA. Nosso propósito neste ensaio é o de


compartilhar algumas das nossas inquietações e mesmo impasses ante o desa-
fio de escrever um livro que desse conta das múltiplas experiências do povo
negro no Brasil.
Logo de início, surgiu a aflição quando nos percebemos como autores de
um livro que passaria a constar, ao lado de tantos outros, do rol da historio-
grafia oficial. Mas bastou refletir um pouco para percebermos a esterilidade da
designação ‘história oficial’. Esse termo, com forte tom depreciativo, ainda é
utilizado para indicar uma historiografia útil a propósitos específicos do Esta-
do e/ou de grupos políticos no poder. Grosso modo, convencionou-se chamar
de ‘oficial’ a uma narrativa histórica à mercê, subordinada, disposta a legitimar
posições de poder, condições de classe e hierarquias sociais. A produção didá-
tica e paradidática seria o seu principal ninho. Mas a esterilidade do termo se
revela ao considerarmos as imbricações entre a historiografia e narrativas his-
tóricas às quais diferentes grupos sociais e o Estado lançam mão em contextos
políticos específicos.
Como vários pesquisadores já nos informaram, ainda no século XIX o
Estado brasileiro, ao institucionalizar currículos e programas de História, ex-
plicitou perspectivas e autores sintonizados com propósitos políticos exclu-
dentes e mesmo moralizantes.9 Inscrita na perspectiva de afirmação do Estado
Nacional, a história do Brasil que então se elaborava e se divulgava nas escolas
visava legitimar a nação e reiterar os nossos vínculos com a civilização euro-
peia. Mas foi só na década de 1950, segundo Kazumi Munakata, que se conso-
lidou no país uma “política de produção, por instâncias governamentais, de
livros didáticos”, assim como as “discussões didático-pedagógicas que a acom-
panharam”. A atenção da autora a esse período é justificada, dentre outras
razões, pela ação do educador Anísio Teixeira (1900-1971), conhecido pela
idealização da chamada Escola Nova. Munakata nos lembra que Teixeira, ain-
da em 1952, ao assumir a direção do Instituto Nacional de Estudos Pedagógi-
cos (Inep), enfatizou a urgência de o governo produzir “guias e manuais de
ensino para os professores e diretores de escolas” e também “livro didático,
compreendendo o livro de texto e o livro de fontes”.10 Já a política de aquisição
e distribuição do livro didático regulamentada em 1985 concebeu o Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD), cujo principal objetivo foi o de disponi-

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Os dilemas de dois autores frente a Uma história do negro no Brasil

bilizar para alunos das redes públicas os títulos selecionados pelos professores
e gestores.11
Assim sendo, quando se tornou público o interesse do Ministério da Cul-
tura, por meio da Fundação Palmares, de viabilizar a publicação de um con-
junto de livros e vídeos voltados à temática étnico-racial, já havia acúmulo de
debate entre os historiadores acerca dessa literatura e uma antiga preocupação
do Estado com a literatura acessada por professores e alunos. A grande novi-
dade foi o papel decisivo dos movimentos sociais no repensar sobre a memó-
ria nacional.

Demandas sociais, dispositivos legais


e a historiografia engajada

Na década de 1980, os debates que antecederam a Constituinte desagua-


ram na Constituição de 1988 e puseram na pauta do Congresso Nacional im-
portantes e antigas demandas da sociedade civil. A grande pressão dos movi-
mentos sociais para que o Estado brasileiro assumisse políticas que
assegurassem direitos – como mecanismos de proteção às mulheres contra a
violência doméstica, a delimitação das terras indígenas e ações que promoves-
sem a cidadania plena à população afro-brasileira – movimentaram a agenda
política nacional.
A articulação e a organização do movimento negro fizeram com que suas
bandeiras de lutas repercutissem no parlamento brasileiro. Em Histórias do
movimento negro no Brasil, Verena Alberti e Amílcar Pereira trazem depoi-
mentos que rememoram a efervescência da militância do movimento negro
na década de 1980. Neles pode-se dimensionar o peso dos eventos pré-Cons-
tituinte promovidos em Brasília, e não só lá, pelo Movimento Negro Unifica-
do, dentre outras entidades representativas.12 Algumas vitórias foram então
contabilizadas. A Constituição de 1988 transformou o racismo em crime ina-
fiançável e imprescritível; tornou passíveis de reconhecimento jurídico as co-
munidades remanescentes de quilombos e legitimou ações reparatórias aos
afro-brasileiros. Tinha-se, assim, o reconhecimento pelo Estado da necessida-
de de políticas públicas destinadas ao combate ao racismo e à superação das
desigualdades raciais no Brasil.

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Em consonância com essa articulação política, associações de classe do


âmbito acadêmico como a Anpuh e grupos de intelectuais engajados em di-
versas universidades do país argumentavam sobre a importância da História,
como disciplina escolar, na constituição das identidades sociorraciais e no
reconhecimento e garantia da cidadania da população negra. Somou-se a isso
o consenso entre os pesquisadores da área quanto à importância da divulgação,
para o grande público e no ambiente escolar, de estudos dedicados à África,
não só pela sua relevância na História do Brasil, mas também para o conheci-
mento das trajetórias dos povos envolvidos na diáspora africana. Afinal, a
despeito das necessárias disposições legais, a invisibilidade dos africanos e dos
seus descendentes na produção didática já incomodava gerações de professo-
res e pesquisadores.
Tal preocupação, nutrida pela pressão do movimento negro, reverberou
em 1996 na Lei de Diretrizes e Bases (LDB). Esta atribuiu à União o papel de
nortear a educação básica, em conjunto com os estados e os municípios. Ao
flexibilizar os currículos escolares e objetivar a valorização da diversidade no
ambiente escolar, a lei colocou em questão o discurso da harmonia racial bra-
sileira, espelhada na miscigenação que predomina entre nós.
Segundo Marcelo Magalhães, o texto da LDB de 1996 ousou ao traduzir
em dispositivos legais certos pressupostos do Estado a serem impressos na
disciplina História. Para ele, “em forma de lei, o documento oficial expressa o
que da cultura e da História o Estado brasileiro considerava necessário trans-
mitir aos alunos por meio da disciplina obrigatória História”. O autor ressalta
especificamente o que está dito no Parágrafo 4º do Artigo 26, que estabelece o
estudo da História do Brasil, considerando “as matrizes indígena, africana e
europeia na formação do povo brasileiro”.13 Dentre as várias deliberações pre-
vistas na LDB, cabe destacar a que reiterou a institucionalização, estabelecida
desde 1994, da avaliação periódica dos livros didáticos utilizados nos quatro
anos iniciais do ensino fundamental. Essa determinação indicava que o Estado
continuava disposto, embora com propósitos diversos daqueles do período da
ditadura, a manter sob suas vistas a literatura a ser consumida pelas crianças
nas escolas.
Nos últimos anos, a alteração mais significativa na LDB foi a que lhe
acrescentou dois artigos referentes às Diretrizes Curriculares para a Educação
das Relações Étnico-Raciais da Lei 10.639/2003.14 São eles:

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Os dilemas de dois autores frente a Uma história do negro no Brasil

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e par-


ticulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
Parágrafo 1º – O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo
incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil,
a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando
a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política, pertinentes
à História do Brasil.
Parágrafo 2º – Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira
serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de
Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.

Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como “Dia Na-
cional da Consciência Negra”.

Vale aqui sublinhar que o artigo 26-A não só estabelece o que, a História
e Cultura da África e Afro-Brasileira, mas qual perspectiva adotar no ensino:
lutas políticas e o protagonismo negro na sociedade brasileira. Ficou eviden-
ciado, assim, que a finalidade não era a mera inclusão de conteúdos, mas a
eleição das áreas de história, literatura e educação artística como campos para
redefinição no discurso oficial, a ser acionado no espaço escolar, do lugar dos
africanos e dos afro-brasileiros na cena nacional.15
Por sua vez, a compreensão de que História e Cultura veiculadas nos
currículos oficiais exercem peso importante na contínua (re)construção da
memória nacional, faz que as Diretrizes sejam, a um só tempo, conquista po-
lítica e desafio profissional. Inscritas nas ações afirmativas, elas trouxeram
para o discurso do Estado o reconhecimento de que predomina no país “um
imaginário étnico-racial que privilegia a brancura e valoriza principalmente as
raízes europeias da sua cultura, ignorando ou pouco valorizando as outras, que
são a indígena, a africana, a asiática” (ibidem, p.13).
Antes disso, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para o Ensino
Médio, coerentes com a LDB, já enfatizavam a centralidade nos programas de
história de conteúdos relativos à história da África e dos afro-brasileiros.16 Na
análise de Hebe Mattos, “os PCNs, aprovados pelo MEC em 1996, sem dúvida,
precederam e prepararam as Diretrizes Curriculares para a Educação das Re-
lações Étnico-Raciais (2004). As conexões entre os dois textos, produzidos por
governos de orientações políticas distintas, revelam como esse tipo de inter-

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venção resultou principalmente do crescimento da força política dos movi-


mentos negros na sociedade brasileira” (ibidem, p.6).
Nesse sentido, os PCNs, ao privilegiarem certos princípios como a plura-
lidade cultural, expuseram à crítica, já fortalecida entre os historiadores e cons-
truída pelo movimento negro, a neutralização das diferenças em nome da
chamada cultura nacional, singular, mestiça, embora inscrita num passado
europeu. Afinal, como já foi dito por Mattos, estamos nos referindo ao con-
texto “pós-redemocratização, e da formação de um novo consenso no campo
pedagógico em relação ao chamado ‘mito da democracia racial’ no Brasil”
(ibidem, p.7).
A Lei 10.639/2003 e as Diretrizes a efetivá-la se inscreveram num intenso,
e por vezes raivoso, debate acerca da pertinência e das formas de efetivação das
políticas de ação afirmativa no Brasil. É verdade que o estabelecimento de cotas
para afrodescendentes nas universidades públicas foi o ponto de maior atrito e
controvérsia, mas não se podem perder de vista os impactos do ineditismo do
reconhecimento por parte do Estado brasileiro da urgência de se reconfigurar
a memória nacional, interferindo tão diretivamente nos programas curriculares.
O debate se fez oportuno, por ter sido um dos raros momentos em que a ques-
tão dos privilégios seculares fundados em distinções raciais que ainda vigoram
na sociedade brasileira escapou da zona de silêncio e aquiescência que lhe era
assegurada na memória nacional. Nesse sentido, é preciso frisar que para além
de sustentar a interpretação do Brasil como detentor de cultura singular e ori-
ginal, colorida por ‘influências’ africanas e indígenas, mas gestada no ventre do
passado europeu, o mito da democracia racial resguardou a ordem social do
confronto aberto entre os discursos racistas mais extremados e a militância
engajada. Uma vez superado, porque esgotado, o debate em torno da harmonia
racial da democracia brasileira, veio à tona a discussão acerca das formas de
superação das desigualdades raciais.17 Daí o nascedouro das políticas de ação
afirmativa. O debate prossegue, contudo, em outros termos.
Assim sendo, a oportunidade de colaborar numa coleção com livros e
vídeos que atendessem às demandas de projetos educacionais específicos, co-
mo os cursos pré-vestibulares voltados a alunos pobres, e a professores da
rede pública de ensino encarregada de fazer valer a Lei 10.639/03, foi irrecu-
sável e repleta e aprendizados. Assim, propósitos profissionais e de militância
revestiam a elaboração do que viria a ser Uma história do negro no Brasil.

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Os dilemas de dois autores frente a Uma história do negro no Brasil

O repertório da história social da escravidão e


Uma história do negro no Brasil

Em meio ao contexto até aqui traçado, tornou-se imperativo o repensar


de alguns dos nossos pressupostos para a elaboração de texto voltado para a
educação das relações étnico-raciais. O primeiro desafio foi o de traduzir nos-
sas leituras historiográficas numa linguagem apropriada ao público, já que as
Diretrizes estabeleceram como um dos seus principais objetivos

A divulgação e produção de conhecimentos, a formação de atitudes, posturas e


valores que eduquem cidadãos orgulhosos do seu pertencimento étnico-racial –
descendentes de africanos, povos indígenas, descendentes de europeus, de asiáti-
cos – para interagirem na construção de uma nação democrática, em que todos,
igualmente, tenham seus direitos garantidos e sua identidade valorizada.18

Assim, cabia-nos refletir sobre uma abordagem que pudesse afirmar o


protagonismo dos afrodescendentes no curso da História do Brasil. A saída
mais plausível e segura foi a de conceber um roteiro que, mesclando cronolo-
gia e temas, alguns já consagrados e outros ainda recentes na historiografia
brasileira, permitisse dar conta da trajetória dos africanos e afro-brasileiros.
Assim, concebemos os seguintes capítulos: “História da África e escravidão
africana”; “África e africanos no tráfico Atlântico”; “Escravos e escravidão no
Brasil”; “Família, terreiros e irmandades”; “Fugas, quilombos e revoltas escra-
vas”; “Negros escravos, libertos e livres”; “O fim da escravidão e o pós-aboli-
ção”; “Lutas sociais nas primeiras décadas do século XX”; “Cultura negra, cul-
tura nacional: samba, carnaval, capoeira e candomblé”; “Desigualdades raciais
e luta antirracista”; “O movimento negro no Brasil contemporâneo”.
Esta sequência de temas, postos numa ordem cronológica, se apresentou
segura, mas também nos levou a considerar determinadas questões que envol-
vem a construção de narrativas históricas a serem divulgadas no ambiente
escolar.
Uma delas é a posição central reservada ao trabalho escravo no largo
campo de experiências dos africanos e seus descendentes no Brasil. É sabido
que uma das faces mais perversas do racismo construído no país é a da negação
da descendência africana porque escrava. Para gerações de crianças e jovens
negros, negar o pertencimento ao passado escravo foi estratégia de fuga das

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marcas da subalternidade. Isso porque a equação que equiparava sem discussão


africano = escravo = negro foi vigorosa no Brasil e terminou repercutindo
negativamente na produção didática distanciando os afrodescendentes da
identificação com uma abordagem que se centrava na sujeição e submissão do
chamado ‘elemento africano’. Foi o que Hebe Mattos denominou de ‘o lugar
encapsulado’ de mera mão de obra, ao só lhe atribuir visibilidade como força
de trabalho, seja fazendo funcionar a economia ou desregrando a ordem social
pela rebeldia supostamente cega, sem projeto político.19
Mesmo as Diretrizes para a Educação das Relações Étnico-Raciais pare-
cem se amparar nessa lógica ao atar num nexo explicativo o passado escravo
à desigualdade racial no Brasil contemporâneo ao dizer que

A demanda por reparação visa que o Estado e a sociedade tomem medidas para
ressarcir os descendentes de africanos negros, dos danos psicológicos, materiais,
políticos e educacionais sofridos sob o regime escravista, bem como em virtude
das políticas explícitas ou tácitas de branqueamento da população, de manuten-
ção de privilégios exclusivos para grupos com poder de governar e de influir na
formulação de políticas, no pós-abolição. (ibidem, p.11)

Portanto, se é na exploração da mão de obra escrava e nas políticas de


branqueamento que residem as raízes da marginalidade dos negros na socie-
dade brasileira, qual a abordagem possível desta história que permita (como
rezam as Diretrizes) valorizar o pertencimento étnico-racial dos descendentes
dos escravizados?
A história social da escravidão no Brasil, desde a década de 1980, vem
respondendo a esta questão, à medida que esquadrinha ações, estratégias po-
líticas, econômicas e culturais dos africanos e afro-brasileiros em meio aos
embates gerados durante e após a abolição da escravidão. Assim, a história dos
africanos e de seus descendentes não pode permanecer presa à imagem de
‘peças produtivas’ que o imaginário do escravismo projetou sobre o ‘lugar’ do
negro na História do Brasil. Para superar essas projeções do preconceito no
livro didático sobre o negro foi preciso dar ênfase à ideia de que práticas e
tradições culturais expressam conflitos, geram interpretações sobre si mesmos
e sobre os outros, criam alianças e laços de solidariedade no interior das co-
munidades, redefinem noções de pertencimento e diferenças e põem desigual-
dades à prova. Ainda assim o desafio continua posto, na medida em que foi

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Os dilemas de dois autores frente a Uma história do negro no Brasil

preciso traduzir essas concepções numa narrativa acessível ao público escolar,


sem divagações teóricas.
O desafio era o de expor com clareza especificidades que, para serem
compreendidas, exigem o entendimento da dinâmica histórica da cultura. Tal
perspectiva só pôde ser almejada, ainda que nem sempre alcançada ao longo
do livro, porque buscamos nos alicerçar na solidez da história social largamen-
te difundida em várias universidades brasileiras.20 Tateávamos a escrita de uma
história, acessível ao público escolar, recheada por conflitos, tensões e, princi-
palmente, conquistas daqueles que eram os principais personagens do texto:
homens, mulheres e crianças negros.
Tentando resolver essa equação, pretendeu-se nos dois primeiros capítu-
los tratar, ainda que de modo breve, da história da África, centrando-se nas
circunstâncias e modalidades da escravidão africana e da historicidade do trá-
fico atlântico. Mais que fornecer informações sobre as grandes áreas envolvidas
na empresa atlântica, a ideia foi, por um lado, oferecer um panorama da Áfri-
ca pré-colonial, e por outro, enfrentar uma questão ainda espinhosa na época:
a escravidão entre os povos africanos. Assim sendo, subdividimos o texto em
escravidão doméstica, escravidão islâmica e escravidão cristã, apesar do risco
de o leitor confundir essa sequência com uma linha evolutiva.
A nossa preocupação era a de evitar tanto o olhar romantizado que invi-
sibiliza a escravidão e até mesmo qualquer tipo de exploração entre os povos
africanos, quanto a leitura da escravidão entre os africanos como uma excen-
tricidade cultural, rudimentar, que foi se ‘sofisticando’ até alcançar a sua feição
capitalista. Os propósitos e o público do livro nos exigiram o esforço de deixar
explícito o nosso compromisso de não reforçar a ideia da África mítica como
o paraíso negro violado pela tirania europeia, tampouco o de embarcar na
história da inescapável força do capital a consumir braços escravos, por não
poder prescindir da mão de obra africana para mover a economia. Ainda as-
sim, foi preciso retomar a dramaticidade que envolveu as populações africanas
vitimadas pelo tráfico por mais de três séculos.
Àquela altura, afastar-se do discurso da África mítica era uma maneira de
dizer que os africanos e seus descendentes haviam sido muito mais que ‘os pés
e as mãos’ dos seus senhores, visto que reinventaram, com base em um rico
repertório cultural, na experiência da diáspora, a si mesmos e às populações
com as quais se relacionaram. Nesse sentido, tentamos também imprimir ao

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texto a ideia de que o mundo do trabalho também se constitui como lugar de


cultura, na medida em que pressupõe o manejo de saberes, formas de com-
preender o trabalho coletivo, de estabelecer vínculos e solidariedades e de de-
senvolver tecnologias. O objetivo foi convencer os leitores de que estudando
o trabalho escravo é possível notar o quanto os africanos também colonizaram
o Brasil, como defendia o pesquisador Manoel Querino, desde o início do sé-
culo XX.21
Mas protagonismo não pode ser confundido com exclusivismo. É esprei-
tando as relações conflituosas, interações e transformações que a história social
se faz. Assim, tem pouca serventia ‘uma história do negro’ que, seguindo o
script dos textos didáticos que tanto criticávamos, subestime ou negue o papel
dos outros sujeitos no processo histórico. Por isso, estava fora de cogitação
retratar um monólogo no qual a presença de africanos e afro-brasileiros fizes-
se desaparecer navegadores europeus, populações brancas e indígenas e, ao
mesmo tempo, passasse ao largo das zonas de negociação e interação que per-
mitiram trocas e invenções culturais.
É preciso confessar o aparecimento de alguma inquietação quando per-
cebemos que o texto ainda deveria dar conta, obviamente admitindo lacunas,
de um quadro nacional. Fomos levados então a uma revisão bibliográfica que,
à medida que avançava, deixava evidente o que já suspeitávamos: o grande
desequilíbrio quantitativo, na época, entre a oferta de títulos a respeito das
populações negras no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Salvador, e a exigui-
dade de estudos publicados sobre essas mesmas populações em outros cantos
do país. Felizmente, esse quadro em muito se alterou nos últimos anos. Basta
consultar a programação da última reunião da Anpuh, para verificar que tal
desproporção tem diminuído significativamente.
Mas em 2005 a constatação desse desequilíbrio não nos fez ter dúvidas
sobre a viabilidade de uma abordagem da história do negro que pudesse abar-
car as experiências negras nas diversas regiões do Brasil. Explicando melhor:
é óbvio que a concentração da investigação histórica sobre experiências negras
diz respeito a políticas acadêmicas, aos interesses de pesquisadores e de pro-
gramas de pós-graduação pela temática. Entretanto, não é só isso que explica
tal descompasso. O exercício político e cultural que se fez no Brasil de circuns-
crever a presença negra a ‘pequenas áfricas’ diz algo sobre a abundância de
estudos centrados nas antigas regiões açucareiras e cafeeiras e em algumas

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Os dilemas de dois autores frente a Uma história do negro no Brasil

cidades como Rio de Janeiro, Salvador e Recife, que concentram numerosa


população negra. Nós, baianos, por exemplo, desde a mais tenra idade apren-
demos que Salvador é ‘a cidade mais negra do Brasil’. E tal assertiva, indepen-
dentemente de espelhar dados demográficos (não são os dados do Censo que
nos interessam aqui!), qualifica a atenção que existe no ambiente acadêmico
pela questão negra no estado da Bahia. A situação evidentemente é bastante
diversa em outros cenários fora do mapa das ‘pequenas áfricas’, mas onde, a
despeito dos números do Censo, as experiências negras também moldaram a
história.
Esta reflexão nos exigiu autovigilância para que não uniformizássemos, a
partir das ‘áfricas’ já reconhecidas cultural e historiograficamente, uma histó-
ria do negro no Brasil. Mas descobrimos, no percurso, que o exercício decor-
rente dessa reflexão sempre se faria imperfeito. O exemplo a seguir é ilustrati-
vo desse dilema. O capítulo “Fugas, quilombos e revoltas escravas” era, por
razões óbvias, indispensável. A rebeldia escrava é tema clássico e estratégico
politicamente, pois exalta a condição de sujeito, de autores, de aspirações e
atitudes em nome da liberdade. Daí a Lei 10.639 ter reconhecido o dia 20 de
novembro como Dia da Consciência Negra, no calendário escolar. Pois bem.
Depois de garimpar na bibliografia disponível as formas de subversão da or-
dem protagonizadas por escravos e libertos em diversos contextos, nos demos
conta de que, mesmo quando não estávamos falando de Pernambuco, do Rio
de Janeiro ou da Bahia, predominava uma narrativa histórica que homogenei-
zava as formas de enfrentamento ao escravismo no Brasil.22
Mesmo que os cenários e agentes políticos, culturais e econômicos não
fossem os mesmos, as histórias de rebeldia apresentavam uma incômoda re-
gularidade; como se tivesse havido um modus operandi rebelde, replicado mui-
tas vezes em diferentes lugares e circunstâncias. É preciso dizer que não esta-
mos negando que houve, em toda diáspora africana, dada a própria lógica
escravista, modos recorrentes de contestação como a sabotagem da produção,
as insurreições e as fugas. Mas será que todas as maneiras de rebeldia no mun-
do escravista cabem na sentença ‘fugas, quilombos e revoltas’? É evidente que
a resposta é não. Esperando escapar aos perigos dessa uniformidade, reserva-
mos um número considerável de páginas para tratar de outros campos de luta
também constituídos pela insubordinação negra, a exemplo da arena jurídica,
da imprensa, dos espaços religiosos e do mundo das artes.

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Os diálogos e tensões numa sociedade plural nos levam a uma última ques-
tão neste breve ensaio: é a que se refere ao capítulo intitulado “Cultura negra,
cultura nacional: samba, carnaval, capoeira e candomblé”. A decisão de dedicar
um capítulo às práticas culturais fez parte do nosso esforço de atender ao pro-
pósito de colaborar para a valorização do pertencimento racial na contempora-
neidade. Daí candomblé, samba e capoeira serem apresentados mais do que
como provas da força de culturas de origem africana no novo continente, e sim
como estratégias políticas e simbólicas de construção de identidades e, portanto,
de enfrentamento ao racismo. Centrar-se nesse repertório cultural foi também
uma oportunidade para abordar o modo como em determinado contexto as
invenções negras foram subsumidas, diluídas e por vezes silenciadas no caldo de
uma cultura nacional autêntica e harmoniosa. Se o discurso da democracia racial
está superado entre nós, era e continua ser fundamental analisar como são cons-
truídas e representadas as marcas da presença negra na sociedade brasileira. Pôr
em evidência, deixar à mostra o protagonismo dos africanos e afro-brasileiros
no contexto cultural do país, foi o principal propósito do livro.
Diante de tantos riscos e colecionando aprendizados que nem sempre se
materializaram no texto, tivemos a expectativa de colaborar com a reescrita de
uma história engajada em enfrentar e pôr fim às desigualdades raciais. Mas
não temos dúvidas de que Uma história do negro no Brasil é apenas um ponto
de partida. Como está inscrito no seu título, outras histórias dos negros podem
e devem ser concebidas, pondo em diálogo pesquisa acadêmica e demandas
sociais. Nós mesmos nos animamos com essa tarefa, por isso voltamos a en-
frentar essas e outras questões ao publicarmos, em 2009, outro paradidático:
Uma história da cultura afro-brasileira.23 Ainda assim estamos convencidos de
que esta história precisa ser recontada por profissionais em sintonia com as
demandas de uma sociedade que busca redesenhar a memória nacional, na
expectativa de valorizar as trajetórias africanas e afro-brasileiras.

NOTAS

1
ALBUQUERQUE, Wlamyra; FRAGA FILHO, Walter. Uma história do negro no Brasil.
Salvador: Centro de Estudos Afro-orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006.
2
As teses foram publicadas com os seguintes títulos: ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O
jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Le-

58 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Os dilemas de dois autores frente a Uma história do negro no Brasil

tras, 2009; e FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e


libertos na Bahia (1870-1910). Campinas (SP): Ed. Unicamp, 2006.
3
MUNAKATA, Kazumi. História que os livros didáticos contam depois que acabou a di-
tadura no Brasil. In: FREITAS, Marcos Cesar (Org.) Historiografia brasileira em perspecti-
va. São Paulo: Contexto, 1998. p.271-296. p.272.
4
Para um balanço da história como disciplina escolar da década de 1980 ver: NUNES, Sil-
ma do Carmo. Concepções de mundo no ensino de história. Campinas (SP): Papirus, 1996.
5
Para uma análise a esse respeito ver: FONSECA, Selva Guimarães. Caminhos da história
ensinada. Campinas (SP): Papirus, 1993; e CAIMI, Flávia Eloisa; MACHADO, Ironita A. P.;
DIEHL, Astor Antônio (Org.) O livro didático e o currículo de história em transição. Passo
Fundo (RS): Ediupf, 1999; FREITAG, Barbara et al. O livro didático em questão. São Paulo:
Cortez, 1989; e CHOPPIN, Alain. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado
da arte. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p.549-566, set.-dez. 2004; ABREU, Martha;
SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca (Org.) Cultura política e leituras do passado: historio-
grafia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p.215-227.
6
ZAMBONI, Ernesta. O conservadorismo e os paradidáticos de história. Revista Brasileira
de História, São Paulo: Anpuh; Marco Zero, v.13, n.25-26, p.175-192, set. 1992-ago. 1993.
A autora analisou as coleções “O cotidiano da história” (São Paulo: Ática) e “História em
documentos” (São Paulo: Atual) e a obra SCHWARCZ, Lilia; PAIVA, Miguel. Da colônia
ao império. São Paulo: Brasiliense, 1987.
7
Para uma contribuição recente ao debate sobre heróis no ensino de história ver:
MATTOS, Hebe. O herói negro no ensino de história do Brasil – representações e usos das
figuras de Zumbi e Henrique Dias nos compêndios didáticos de história. In: ABREU,
Martha; SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca (Org.) Cultura política e leituras do passado:
historiografia e ensino e história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p.213-227.
8
Dois importantes textos neste debate, dentre outros, são: FONSECA, Selva Guimarães.
Didática e prática de ensino em história. Campinas (SP): Papirus, 2003; e CABRINI, Con-
ceição et al. Ensino de história: revisão urgente. São Paulo: Educ, 2000.
9
Há vários títulos importantes que abordam essa temática; ver, por exemplo:
BITTENCOURT, Circe. Os confrontos de uma disciplina escolar: da história sagrada à
história profana. Revista Brasileira de História, São Paulo: Anpuh, v.13, n.25/26.
10
MUNAKATA, Kazumi. Dois manuais de história para professores: histórias de sua pro-
dução. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p.513-529, dez. 2004. Disponível em:
www.scielo.br/; Acesso em: 7 jan. 2012.
11
Ver o capítulo 4 de FONSECA, 2003.
12
ALBERTI, Verena; PEREIRA, Amilcar (Org.) Histórias do movimento negro no Brasil.
Rio de Janeiro: Pallas; CPDOC-FGV, 2007. p.243-270.
13
MAGALHÃES, Marcelo de Souza. Apontamentos para pensar o ensino de História hoje:

Junho de 2012 59
Wlamyra Albuquerque e Walter Fraga Filho

reformas curriculares, Ensino Médio e formação do professor. Revista Tempo, Revista do


Departamento de História da UFF, Niterói (RJ), v.11, p.59-74, 2006.
14
BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE
RACIAL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e
para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Brasília: MEC/Secad, 2004.
15
Em 10 de março de 2008 a Lei Federal 11.645 estabeleceu as diretrizes e bases da educa-
ção nacional, para incluir, no currículo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade da te-
mática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. SECRETARIA ESPECIAL DE
­POLÍTICAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL. Brasília: MEC/Secad, 2006.
16
PCN+ Ensino Médio: orientações educacionais complementares aos Parâmetros Curri-
culares Nacionais: ciências humanas e suas tecnologias, Brasília, MEC/Semtec, 2002. Os
PCNs propunham reorganizar o Ensino Médio em três áreas: “Linguagens, códigos e suas
tecnologias”, “Ciências da Natureza, Matemática e suas tecnologias” e “Ciências Humanas
e suas tecnologias”. Para uma análise das propostas dos PCNs e o ensino de história ver:
ABREU, Martha; MATTOS, Hebe. Em torno das Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira
e Africanas: uma conversa com historiadores. Estudos Históricos, Rio de Janeiro: FGV,
v.21, n.41, p.5-20, jan.-jun. 2008.
17
Ver, por exemplo: GUIMARÃES, Antonio Sergio. Tirando a máscara: ensaios sobre o
racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
18
BRASIL, Diretrizes Curriculares Nacionais..., 2004, p.10.
19
MATTOS, Hebe. O ensino de história e a luta contra a discriminação racial no Brasil. In:
ABREU, Martha; SOIHET, Rachel (Org.) Ensino de história: conceitos, temáticas e meto-
dologias. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. p.134.
20
A elaboração do livro foi coordenada pelo professor João José Reis, um dos maiores es-
pecialistas em história social da escravidão. Reis é professor do Departamento de História
na Universidade Federal da Bahia (UFBA).
21
QUERINO, Manoel. A Bahia de outrora. Salvador: Livraria Progresso, s.d.
22
Aproveitamos a oportunidade para nos desculparmos pela ausência das referências bi-
bliográficas no livro. Uma série de contratempos, próprios ao ineditismo da tarefa, impos-
sibilitou a inclusão das referências na publicação.
23
FRAGA, Walter; ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. Uma história da cultura afro-brasi-
leira. São Paulo: Moderna, 2009. O livro recebeu o prêmio Jabuti em 2010, na categoria
“Didático e Paradidático”.

Artigo recebido em 20 de janeiro de 2012. Aprovado em 26 de março de 2012.

60 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Proposta de material didático para
a história das relações étnico-raciais1
Proposal for the compiling of teaching material
on the history of race relations in Brazil
Verena Alberti*

Resumo Abstract
O artigo discute diretrizes e sugestões para The paper discusses guidelines and sug-
a elaboração de materiais didáticos sobre a gestions for the compiling of teaching
história das relações raciais no Brasil, con- material on the history of race relations
siderando especialmente sua disponibili- in Brazil, considering its placement on
zação na internet. A proposta parte de the internet. The proposal is based on
pressupostos que concernem, de um lado, some assumptions from the field of his-
ao ensino de história e, de outro, ao uso de tory education and of the uses of ICT in
tecnologias de informação e comunicação pedagogical material. It presents nine
na elaboração de conteúdo pedagógico. sets of enquiry questions, each of them
São apresentados nove conjuntos de ques- related to a range of historical sources to
tões, com sugestões de fontes e tarefas a be worked out by pupils through spe-
serem executadas pelos alunos, abarcando cific tasks. It embraces topics from slave
desde a opção pelo trabalho escravo na labour, in the 16th century, to the polar-
América Portuguesa até a polarização que ization observed nowadays between
se verifica atualmente entre os que defen- those who defend affirmative actions
dem políticas de promoção da igualdade and those opposing them.
racial e os que são contrários a elas. Keywords: history education; ICT and
Palavras-chave: ensino de história; uso history teaching; teaching of African-
de tecnologias da informação e comuni- Brazilian culture and history.
cação no ensino de história; ensino de
história e cultura afro-brasileira.

*Coordenadora de Documentação – Centro de Pesquisa e Documentação de História


Contemporânea do Brasil (CPDOC) – Fundação Getulio Vargas – Praia de Botafogo, 190, 14º
andar. 22250-900 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. verena.alberti@fgv.br

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 61-88 - 2012


Verena Alberti

A Lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino de história da África e


de história e cultura afro-brasileira, posteriormente modificada pela Lei
11.645/2008, que acrescentou à obrigatoriedade o ensino da história e cultura
indígenas, trouxe desafios interessantes para historiadores e professores de
história, militantes de movimentos negros e indígenas, pesquisadores e edu-
cadores de modo geral. Um dos desafios, sentido especialmente nos primeiros
anos após a promulgação da lei e que vai sendo vencido pouco a pouco, é a
escassez de material didático sobre as relações étnico-raciais. Este texto pre-
tende discutir diretrizes e sugestões para a elaboração de materiais sobre o
assunto, considerando especialmente sua disponibilização em formato eletrô-
nico, preferencialmente na internet.
A proposta parte de alguns pressupostos que concernem, de um lado, ao
ensino de história e, de outro, ao uso de tecnologias de informação e comuni-
cação (TIC) na elaboração de conteúdo pedagógico. Em seguida, apresenta
algumas possibilidades de aplicação, com fontes e tarefas a serem executadas
pelos alunos.

Princípios norteadores I: sobre ensino de história

No que diz respeito ao campo do ensino de história, um princípio funda-


mental a ser observado no dossiê aqui proposto é o comprometimento com o
rigor histórico. Isso pode parecer óbvio, e devia sê-lo, mas nem sempre é ob-
servado por professores e produtores de material didático em história. Seguir
esse princípio significa não estar de acordo com a ideia de que qualquer afir-
mação possa ser feita a respeito do passado. Acuidade e clareza de reflexão são,
pois, cruciais aqui.
A proposta também considera importante compreender as pessoas no pas-
sado. Como já tive oportunidade de desenvolver alhures, a ideia central, nesse
caso, é ensinar aos alunos que as formas como as pessoas agiam e pensavam no
passado faziam sentido de acordo com suas ideias sobre o mundo, as quais nem
sempre (ou quase nunca) são as mesmas de hoje.2 Isso é fundamental porque
nos ajuda a perceber similaridades e diferenças em relação ao presente e a ve-
rificar, no caso deste dossiê, que as relações raciais em diferentes momentos do
passado não foram sempre iguais, nem são iguais às que se verificam hoje em
dia – o que implica dizer que a situação atual também pode mudar.

62 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Proposta de material didático para a história das relações étnico-raciais

Para que a compreensão sobre as pessoas no passado ocorra, é indispen-


sável ter acesso a fontes, isto é, restos do passado que permitem que façamos
inferências sobre ele. Fontes precisam ser corretamente analisadas, o que sig-
nifica dizer que precisamos conhecer o contexto de sua produção, bem como
quem as produziu, por que, quando e para quem. Elas podem documentar
coisas que não tencionavam documentar originalmente e permitem que faça-
mos afirmativas sobre o passado que as pessoas que então viviam não teriam
feito.3 Um tratamento correto das fontes embasa o rigor histórico que busca-
mos nessa proposta.
Mas documentos precisam ser interrogados para se tornarem evidência
de algo – é nesse esforço, justamente, que se realiza a atividade intelectual do
historiador, levando à descoberta e ao conhecimento. O dossiê aqui proposto
está estruturado em questões de pesquisa que possam fascinar, intrigar e pro-
vocar os alunos. Como também já tive oportunidade de escrever,

orientar o estudo por questões de pesquisa é fundamental na prática do ensino


de história e deriva da convicção de que o aprendizado efetivo só ocorre se os
alunos tiverem diante de si uma questão que precisam resolver, em vez de o pro-
fessor lhes ‘ensinar’ a ‘receita do bolo’ fornecendo junto todos os ingredientes.
(2010, p.94)

Trabalhar com problemas leva os alunos a selecionar, organizar e estru-


turar seu conhecimento a respeito do passado, como faz o historiador.
A questão de pesquisa vem acompanhada de outro processo chave que
torna possível o aprendizado em história: a produção de resultados a partir do
que foi investigado. Esses resultados derivam de tarefas propostas aos alunos.
Por exemplo: a) julgar em que medida um conjunto de fontes responde ou não
à pergunta de pesquisa (digamos, dar notas de 1 a 5), escolher as que mais se
aproximam da resposta e escrever uma conclusão; b) preparar argumentos de
ataque e de defesa sobre determinado assunto (por exemplo: “a política x foi
bem-sucedida / foi malograda porque...”); c) identificar fontes que expressam
diferentes pontos de vista sobre determinado assunto, explicar como e por que
diferem. Ou seja, a pergunta problema deve levar a possíveis respostas, e é
dessa forma, aprendendo a sistematizar seu conhecimento e a comunicar sobre
o passado, que o aluno aprende a pensar historicamente.

Junho de 2012 63
Verena Alberti

A questão de pesquisa, o uso de fontes (ou evidências) e a produção de


resultados que permitam comunicar sobre o passado são três processos chave
pelos quais podemos dizer que se dá o aprendizado em história. Esses requisi-
tos são defendidos por um extenso grupo de pesquisadores da Inglaterra e dos
Estados Unidos, com ramificações em outros países da Europa e também do
Brasil, que, desde o final dos anos 1960, vem se perguntando sobre como en-
sinar a pensar historicamente.4 Ao lado dos três processos, destacam-se, de
acordo com esses pesquisadores, seis conceitos chave, que não estão ligados a
nenhum conteúdo histórico específico, mas são identificados como o cerne da
disciplina: cronologia; diversidade; mudança e continuidade; causa e conse-
quência; relevância; interpretação. A proposta deste dossiê também está assen-
tada sobre as reflexões em torno desses conceitos, que serão enfatizados nas
diferentes questões de pesquisa.

Princípios norteadores II: sobre o uso de TICs

Passemos agora aos pressupostos relativos ao uso de tecnologias de infor-


mação e comunicação (TICs) no ensino de história, para, em seguida, tratar-
mos do dossiê propriamente dito. Sabemos todos que, apesar de a aplicação
dessas tecnologias no ensino trazer vantagens inquestionáveis, elas não garan-
tem, por si sós, um melhor aprendizado. Em coletânea publicada em 2003 e
intitulada História, TIC e aprendizado, o coordenador do curso de formação
de professores de história da Universidade de East Anglia Terry Haydn afirma
que alguns formuladores de políticas públicas consideram que a simples ins-
talação de computadores nas escolas fará a educação melhorar. Essa ilusão
decorre principalmente da formidável capacidade de transmissão pela internet
de um volume enorme de informações. A metáfora que mais se ajusta a essa
ideia, segundo Haydn, é a de delivery, como se houvesse uma bomba enviando
coisas para dentro das escolas e dos alunos. Mas, diz o autor, transmissão de
informação não é, evidentemente, o mesmo que aprendizado. E disso os bons
professores estão conscientes. Uma pesquisa realizada em 1999, por exemplo,
mostrou que a decisão de usar novas tecnologias depende não só da facilidade
de uso dos equipamentos e de acesso a eles, mas também de os professores
acharem que elas podem efetivamente ajudar a ensinar sua matéria de manei-
ra mais eficaz.5

64 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Proposta de material didático para a história das relações étnico-raciais

Convém explorar o potencial positivo das novas tecnologias, aproximan-


do-nos daquilo que os professores holandeses Siep Stuurman e Maria Grever,
num livro sobre as possibilidades de uma história ‘pós-canônica’, chamaram
de ‘arquivo digital’, isto é, um conjunto de fontes primárias e secundárias a
respeito de determinado assunto histórico, com seleção da literatura secundá-
ria que discuta as narrativas concorrentes e permita a interpretação das fontes
primárias. Segundo os autores, esses ‘arquivos digitais’ constituem uma opor-
tunidade ímpar de ir ‘além do cânone’, num momento em que o antigo livro
didático, com sua apresentação monológica, não nos ajuda muito. Eles possi-
bilitam que estudantes desenvolvam suas habilidades em situar acontecimen-
tos em contextos mais amplos e testem interpretações, no contato direto com
as fontes. Além disso, como a existência de perspectivas históricas divergentes
está se tornando muito mais uma regra do que exceção (não há uma história
única verdadeira sobre o passado, mas uma multiplicidade de histórias com-
plementares ou concorrentes), o ensino de história deve se voltar para esse
desafio; caso contrário, corre o risco de se tornar irrelevante.6
Esse potencial do trabalho direto com documentos tem sido enfatizado
por muitos autores, em contraste com o conteúdo muitas vezes ‘pronto e aca-
bado’ e ‘homogeneizador’ do livro didático.7 O historiador Paulo Knauss tam-
bém sublinha a importância do trabalho com documentos, que pode até dis-
pensar, segundo ele, a utilização do livro didático. Para ele,

O trabalho com os documentos históricos desde cedo pode ser justamente uma
fórmula para não adiarmos as tarefas que o mundo contemporâneo exige da es-
cola – que o aluno compreenda a lógica dos meios de comunicação, especialmen-
te os de massa, para não ser agente passivo da manobra de informações, reconhe-
cendo outras visões de mundo, desabsolutizando-as e demarcando a sua
identidade de sujeito da própria existência.8

Ou seja, o que se defende aqui é que não se utilize uma página da internet
como se fosse um livro didático tradicional, com textos prontos, no estilo de
apostilas, e alguns documentos servindo de ilustração. A ideia é aproveitar o
potencial e o alcance das TICs para fomentar o exercício da pesquisa e o tra-
balho com as fontes. Nesse sentido, os pressupostos de que trata esse item
coincidem com os pressupostos do próprio ensino de história, como já discu-
tido no item anterior. O trabalho com documentos permite que os alunos não

Junho de 2012 65
Verena Alberti

apenas ampliem seu conhecimento e estabeleçam sínteses e hierarquias, mas


que reflitam sobre o próprio processo de conhecimento em história, que vem
das perguntas que fazemos às fontes. Para que isso se viabilize, é fundamental
fornecer informações que contextualizem os documentos: “O que é a fonte e
onde se encontra?”, “Como chegou até nós?”, “Em que contexto foi produzi-
da?”, “Que outras fontes nos ajudam a entendê-la?”. Os alunos também podem
participar dessa contextualização, ao refletirem sobre o que elas documentam
e sobre as intenções de sua produção e de sua preservação. Muitas vezes as
fontes documentam aquilo que, em princípio, não tencionavam documentar
– como os filmes de propaganda oficiais, por exemplo –, o que, longe de inva-
lidar seu uso, pode trazer reflexões bem interessantes.
A vantagem das TICs está, justamente, no fato de tornarem possível dis-
ponibilizar um grande volume de documentos, em diferentes formatos, como
textos, filmes, arquivos de áudio e imagens – possibilidade que um livro im-
presso não comporta. Mas precisamos tomar cuidado para não nos deixarmos
ofuscar por essa profusão e acabar funcionando como um delivery nos termos
sugeridos por Terry Haydn. Não há dúvida de que a oferta na rede é enorme
hoje em dia, e só tende a aumentar. Para garantir que determinada página na
internet seja usada, é aconselhável que o material oferecido seja efetivamente
necessário para professores e alunos. A ideia não é disponibilizar mais uma
página que o professor provavelmente salvará entre seus ‘Favoritos’ sem retor-
nar a ela depois. Por isso, é preciso que o conteúdo e as atividades oferecidas
sejam relevantes do ponto de vista do currículo escolar e ofereçam oportuni-
dades de aplicação em sala e de trabalho de casa, entre outras. É importante
também que professores e alunos possam imprimir os documentos ou, se qui-
serem, levá-los para outros aplicativos, a fim de inseri-los num exercício ou
numa apresentação, por exemplo.
O aluno também deve se sentir engajado e atraído pela página. Convém
selecionar documentos que surpreendam, que sejam eficazes como fontes de
pesquisa e que deem um sentido de autenticidade ao que está sendo investiga-
do. Além disso, é aconselhável facilitar a interação com o material. Por exem-
plo, ao lado de um documento em fac-símile, apresentação que torna concreta
e palpável a relação com a fonte, pode ser indicado fornecer sua transcrição
completa, para facilitar a leitura, uma transcrição simplificada, ou ainda uma

66 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Proposta de material didático para a história das relações étnico-raciais

versão em áudio do mesmo documento, lida por um locutor enquanto o texto


aparece na tela.9
Finalmente, é muito importante dar autonomia aos alunos para que de-
cidam que fontes vão usar e que caminhos vão seguir para dar conta da ques-
tão de pesquisa e produzir os resultados sugeridos.10 Eles não precisam nem
mesmo utilizar todas as fontes disponibilizadas para dar conta de uma questão.
Trata-se, pois, de fortalecê-los (ou, como tem sido comum dizer, ‘empoderá-
-los’), oferecendo-lhes possibilidades de escolhas – de pontos de vista e de
atividades – e estimular que dominem autonomamente os assuntos. Com isso,
estaremos mais próximos de um efetivo aprendizado.

O dossiê

O dossiê aqui proposto teria como alvo alunos do segundo ciclo do ensi-
no fundamental e do ensino médio, mas poderia ser útil a outros públicos
também. Além de orientações para professores e de um tutorial sobre o traba-
lho com fontes, seu conteúdo viria dividido em unidades, que poderiam ser
trabalhadas independentemente e sem necessidade de seguir a ordem de apre-
sentação.

• Unidade I – Por que se instituiu o trabalho escravo na América Por-


tuguesa?
Conceito chave: causalidade

Já tive oportunidade de observar que precisamos ter cuidado ao abordar


o assunto ‘escravidão e tráfico transatlântico’ no ensino da história das relações
raciais, um tema sem dúvida indispensável, mas que, isolado, pode reforçar
preconceitos e não suscitar reflexão.11 Como afirma Robert Phillips, professor
da Universidade de Wales Swansea, no Reino Unido:

A história da escravidão coloca inúmeros desafios para o professor de história.


De um lado, a escravidão deve ser estudada para que se perceba seu papel vital na
criação do racismo, mas, de outro lado, imagens constantes da subjugação dos
escravos têm um potencial de simplesmente reforçar o estereótipo superior/infe-
rior mencionado acima [entre brancos e negros].12

Junho de 2012 67
Verena Alberti

Por essa razão, convém introduzir esta unidade com atividades que per-
mitam colocar em xeque algumas pré-noções, como, por exemplo, a ideia de
que todo negro era escravo e vice-versa e a de que, entre os séculos XVI e XIX,
a alternativa à escravidão era o trabalho livre assalariado.
Algumas tarefas podem ser cogitadas aqui. Por exemplo, apresentar aos
alunos imagens (pinturas, tapeçarias, esculturas etc.) de escravos negros e não
negros de diferentes regiões (incluindo a Europa Ocidental e o Oriente) ao
longo da história e pedir que descrevam o que veem e se perguntem o que
haveria de comum nos documentos. Em seguida, seriam apresentadas as refe-
rências completas das fontes para que os alunos as ordenassem cronologica-
mente e refletissem sobre similaridades e diferenças entre elas. Além das ima-
gens propriamente ditas, o material pode ser complementado com outras
fontes primárias e secundárias que deem conta de diferentes exemplos e con-
cepções de escravidão através da história. Dependendo das possibilidades ofe-
recidas pelo material e das circunstâncias de sua aplicação, pode-se também
perguntar aos alunos por que acham que lhes foi solicitado ordenar as fontes
cronologicamente. Isso permite que controlem o processo de aprendizagem e
reflitam, no caso específico, sobre possíveis mudanças e continuidades. Por
fim, pode-se pedir que os alunos elaborem uma definição geral da escravidão
e, numa etapa posterior, reflitam sobre quais perguntas ainda precisariam ser
feitas para dar conta do tráfico transatlântico e da escravidão africana nas
Américas – isto é, que também decidam que passos precisam ser dados para
ampliarem seu conhecimento.13
Outra tarefa que pode ser útil nessa introdução gira em torno de fontes
primárias e secundárias que mostrem condições de trabalho em diferentes
partes do mundo entre os séculos XVI e XIX, para que os alunos possam iden-
tificar outras formas de trabalho compulsório ou em condições degradantes
(por exemplo, a servidão por contrato na América inglesa, ou o trabalho in-
fantil nas minas de carvão da Inglaterra oitocentista). Muitas vezes tendemos
a transferir para o passado conhecimentos que adquirimos de nossas experiên-
cias atuais, e pode acontecer de os alunos reduzirem as relações de trabalho de
outrora a apenas duas opções: a escravidão, de um lado, e o trabalho livre as-
salariado, de outro. Conhecer outras relações de trabalho do passado é impor-
tante para colocar em xeque a noção bastante comum de que o escravo negro
é a vítima por excelência, e seu corpo, o lugar exclusivo de sofrimento e pro-

68 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Proposta de material didático para a história das relações étnico-raciais

priedade alheia. A tarefa a ser executada poderia consistir em ordenar as dife-


rentes formas de trabalho trazidas pelas fontes num gráfico com duas coorde-
nadas – uma que vai do trabalho ‘mais livre’ para o ‘menos livre’, e outra que
vai das condições ‘mais degradantes’ para as ‘menos degradantes’. Evidente-
mente, não há uma resposta inequívoca para a localização de cada um dos tipos
de trabalho no gráfico, mas a atividade é interessante como exercício de com-
paração. Ainda que o trabalho escravo possa ser situado como o ‘menos livre’
e o ‘mais degradante’, sua situação em relação ao trabalho servil, na Rússia
czarista, ou em relação àquele de serviçais de uma residência inglesa do século
XIX, por exemplo, pode diminuir o risco da simplificação mencionada.
Uma vez introduzido o tema da escravidão nas Américas, cabe fornecer
ao aluno possibilidades de trabalhar a questão de pesquisa proposta nesta uni-
dade: por que se instituiu o trabalho escravo nas Américas? O importante é ter
em mente que se trata da escravidão indígena e africana. Mais uma vez, a ideia
é disponibilizar uma série de fontes primárias e secundárias com base nas quais
se poderia começar a trabalhar. Como tarefa, pode-se sugerir aos alunos que:
1) ordenem as fontes numa espécie de gradação – fonte boa para responder à
pergunta problema, fonte não tão boa para responder à pergunta; 2) escrevam,
ao lado das fontes consideradas ‘boas’, por que elas explicam a opção pela es-
cravidão; 3) montar um diagrama, no formato de uma pirâmide ou de um
diamante, que permita ordenar as causas (as fontes, ou enunciados elaborados
a partir das fontes) das menos decisivas para as mais decisivas.
Como já observado no item 2, a ideia é fornecer aos alunos uma série de
opções e dar-lhes autonomia para que decidam que fontes melhor se adequam
ao que foi perguntado. Se a atividade for desenvolvida com uma classe, é pos-
sível que os alunos comparem suas respostas e verifiquem se os colegas encon-
traram outras causas mais decisivas do que as que eles próprios puderam iden-
tificar. Não se pretende sugerir, com esse tipo de atividade, que apenas uma
resposta é possível. O importante é fazer os alunos refletirem a respeito dos
diferentes fatores que levaram à opção pela escravidão (africana e indígena),
ao mesmo tempo em que refletem sobre a própria causalidade em história.
Como sabemos, identificar causas ou fatores que levaram a certos resultados
está longe de ser uma atividade simples. Muitas vezes considera-se equivoca-
damente que ‘causas’ são como peças de um dominó, que se alinham num

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Verena Alberti

único e necessário movimento para produzir determinado resultado. O exer-


cício aqui proposto tem a intenção de despertar para outras possibilidades.
Entre as fontes primárias e secundárias a serem disponibilizadas nesta
unidade estariam:
• Diferentes documentos mostrando que africanos eram valorizados co-
mo trabalhadores especializados na manufatura do açúcar, na pecuária
extensiva, na mineração etc.
• Documentos que versam sobre as relações entre europeus e indígenas,
nas Américas, incluindo escravidão indígena, missões jesuítas, escambo,
defesa do território da colônia, determinações legais, extermínio.
• Fontes primárias e secundárias em torno dos lucros auferidos com o
tráfico transatlântico e com atividades a ele vinculadas, como constru-
ção naval, produção de bens como tabaco, cachaça e tecidos; impostos
sobre exportação e importação de escravos africanos; comparação com
outras atividades lucrativas.
• Trechos extraídos de documentos de época que reproduzam diferentes
concepções sobre a escravidão e o tráfico transatlântico, entre os sécu-
los XVI e XIX, de autoria de filósofos, políticos, religiosos e comercian-
tes, entre outros.
Esta unidade poderia ainda incluir uma seção reunindo trechos de livros
didáticos antigos e contemporâneos com diferentes explicações para a opção
pela escravidão africana (por exemplo, a ideia de que o indígena não era ‘adap-
tado’ ao trabalho escravo, tão comum em livros didáticos do passado). Essa
seria uma boa oportunidade para os alunos refletirem sobre a história do en-
sino de história e entrarem em contato, por exemplo, com um material didá-
tico que poderia ter sido usado por seus pais ou avós. O ideal seria reproduzir
as páginas com as explicações e ilustrações em fac-símile e solicitar, então, aos
alunos que rebatam as explicações com base nas fontes disponibilizadas no
dossiê. O recurso às TICs permitiria que, ao lado de cada explicação do livro,
se abrisse um campo para onde fosse possível arrastar uma citação ou fonte
escolhida pelo aluno, ou ainda escrever comentários. O fato de os próprios
alunos trabalharem esse material e selecionarem os argumentos contrários às
explicações dos livros didáticos talvez possa instrumentalizá-los para, em ou-
tras ocasiões – em conversas com familiares ou conhecidos – rebaterem alguns

70 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Proposta de material didático para a história das relações étnico-raciais

dos preconceitos que ainda persistem em relação a esse assunto (como o do


índio indolente, por exemplo).

• Unidade II – Por que não faz sentido falar de ‘o índio’ ou ‘o negro’?


Conceito chave: diversidade

O principal objetivo aqui é fazer frente à homogeneização simplificadora


que geralmente está por trás de preconceitos e estereótipos. Bem sabemos que
falar do ‘índio’ e do ‘negro’, ou do ‘africano”, é redutor e muitas vezes impede
o reconhecimento de indígenas, negros e africanos como sujeitos e agentes da
história. Processo semelhante ocorre com a ideia do ‘judeu como vítima’, re-
produzida indiscriminadamente em livros didáticos e outros recursos, quando
o assunto é o holocausto. Uma das estratégias adotadas por professores e ins-
tituições voltados para o ensino do holocausto, para fazer frente a essa gene-
ralização muito próxima do estereótipo, é viabilizar o acesso à diversidade de
experiências do ser judeu anterior à Segunda Guerra Mundial.14
O material nesta unidade poderia ser apresentado em dois mapas intera-
tivos – um da África e outro da América do Sul – em que estariam represen-
tados reinos, nações, grupos linguísticos etc., do século XIV ao XIX, aproxi-
madamente. Clicando sobre um desses reinos ou grupos, o aluno teria acesso
a fontes diversas, incluindo registros de tradição oral, se possível, a respeito
das práticas comerciais e religiosas, da organização social e política, das formas
de trabalho, da língua etc.15 A tarefa do aluno seria reunir informações de
cinco grupos de cada um dos mapas e inserir as fontes a respeito em duas ta-
belas – uma para a África e outra para a América do Sul –, obedecendo ao
cabeçalho sugerido a seguir.

Identificação Fontes sobre Fontes Fontes sobre O que mais eu


do reino/ organização sobre língua relações com sei sobre o
grupo: nome, social e – identificar outros grupos reino/grupo –
localização política – as fontes e (comércio, guerra identificar
geográfica e identificar as sintetizar o etc.) – identificar outras fontes
temporal fontes e que elas as fontes e e sintetizar o
(onde e sintetizar o dizem sintetizar o que que dizem
quando que elas elas dizem
existiu) dizem

Junho de 2012 71
Verena Alberti

Dependendo dos recursos de TIC, poder-se-ia pensar em arrastar os links


das fontes para as células correspondentes desse quadro.

Note-se que esta unidade teria como objetivo ampliar o conhecimento


dos alunos a respeito da diversidade de experiências e de organizações encon-
tradas no continente africano e na América do Sul entre os séculos XIV e XIX.
Nesse sentido, a ênfase deve recair sobre fontes que efetivamente ampliem
esse conhecimento e menos sobre documentos que reforcem preconceitos e
estereótipos. O que fazer, por exemplo, com o livro de Francis de Castelnau
publicado em meados do século XIX relatando a existência de uma nação de
homens com cauda na África central?16 Pode ser que se julgue interessante
acrescentar documentos desse gênero. De todo modo, cabe ao professor cer-
tificar-se de que os alunos incorporaram bem os ensinamentos do tutorial
sobre o trabalho com fontes, aprendendo a discernir o que exatamente um
relato desse tipo documenta. Além disso, é bom lembrar que a fonte deve vir
sempre acompanhada de informações sobre o contexto de sua produção.

• Unidade III – Quão diferente era a vida no ‘Brasil’ de 1500 a 1888?


Conceitos chave: diversidade; cronologia

Esta unidade tem como objeto a economia e a sociedade na América Por-


tuguesa e no Brasil Imperial. Pode ser iniciada com um mapa animado da
ocupação do território, incluindo grupos indígenas, pau-brasil, açúcar, qui-
lombos, pecuária, drogas do sertão, tabaco, mineração, algodão, missões na
Amazônia e no Prata, bandeirantes, vilas e cidades, rotas comerciais (incluin-
do monções e tropeiros), café e estradas de ferro.17 Observe-se que os quilom-
bos são vistos aqui como formas de organização social e política, de ocupação
do território e de desenvolvimento de atividade econômica equivalentes ao
engenho de açúcar ou à sociedade das minas. Além de estudarmos os quilom-
bos como exemplos de resistência à escravidão, convém percebê-los como uma
entre as muitas modalidades de colonização do ‘Brasil’ – colonização no sen-
tido de ocupação do território e implementação de determinadas práticas po-
líticas, sociais, econômicas e culturais.
Como na unidade anterior, seriam disponibilizadas, no mapa, fontes pri-
márias e secundárias a respeito de diferentes situações e práticas, abarcando
relações de trabalho, comércio, atividades produtivas, organizações religiosas,

72 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Proposta de material didático para a história das relações étnico-raciais

formas de comunicação, revoltas e assim por diante. O aluno pode clicar sobre
uma região, atividade, organização política etc., e obter um conjunto de fontes
a seu respeito.
Uma das vantagens do uso de TICs em material didático, especialmente
no caso de conteúdo disponibilizado na internet, é o fato de, uma vez estabe-
lecido um padrão ou molde, sempre ser possível acrescentar novos itens àque-
le recurso. Assim, é evidente que um mapa que pretenda representar a diver-
sidade de práticas sociais, políticas, econômicas e culturais de 1500 a 1888 no
território que hoje é o Brasil jamais esgotará todas as possibilidades. O dossiê
pode, inicialmente, apresentar algumas dessas práticas, para, conforme forem
sendo encontradas e selecionadas mais informações e fontes, estas sejam acres-
centadas ao mapa.
A atividade sugerida para esta unidade é uma espécie de jogo da genera-
lização, no qual alunos formulam afirmativas convincentes, mas incorretas,
sobre assuntos abarcados no mapa (por exemplo: “Todos os quilombos fica-
vam distantes das vilas”) e desafiam os colegas a descobrirem onde está a ge-
neralização, com base nas fontes disponibilizadas no mapa. O colega que des-
cobrir, pode denunciar: “Não é tão simples!”, e apontar onde está a
generalização. Em seguida, os alunos podem refletir sobre uma redação mais
apropriada (por exemplo: “Nem todos os quilombos ficavam distantes das
vilas, como mostra o exemplo x, que...”).18

• Unidade IV – O que as biografias de africanos escravizados e seus


descendentes podem dizer sobre seus personagens e o mundo em que
viveram?
Conceitos chave: cronologia; relevância; diversidade

O uso de biografias no estudo da história permite tornar concretas expe-


riências vividas no passado, bem como colocar em xeque visões generalizadas
a respeito de trajetórias e modos de vida que desconhecemos.19 Aqui podem
ser usadas as biografias de Rosa Egipcíaca (1719-1778), Olaudah Equiano
(c.1745-1797), Ottobah Cugoano (c.1757-após 1791), Maria Jesuína de Zoma-
donu (antes de 1797-após 1840), Mahommah Baquaqua (c.1824-após 1854),
Luiz Gama (1830-1882) e outros. Como um dos conceitos chave sugeridos
para esta unidade é ‘relevância’, cabe introduzir também a discussão de por
que determinados personagens históricos são lembrados, e outros não, ou se-

Junho de 2012 73
Verena Alberti

ja, o que, em história, é considerado ‘relevante’ (o que implica perguntar: “Re-


levante para quem e por quê?”).
Mais uma vez, trata-se de fornecer aos alunos um conjunto de fontes com
base nas quais deverão executar as tarefas propostas. Nesta unidade, as fontes
se referem a cada um dos personagens estudados – seleção de textos escritos
sobre e pelos personagens, entre os quais biografias e autobiografias, descrições
de locais por onde passaram, imagens de época, retratos etc.
Os alunos serão convidados a realizar três tarefas. A primeira, uma linha
do tempo desenhada num mapa-múndi, acompanhando a trajetória de vida e
os deslocamentos de cada personagem. Caberá aos alunos traçar a trajetória
no mapa e, sempre que necessário, abrir um registro para inserir um dado ou
acontecimento novo. Cada registro deve compreender uma explicação e um
link para a fonte da informação. Por exemplo, um registro aberto pelo aluno
na altura de Salvador informaria: “Nascimento de Luiz Gama em 21 de junho
de 1830, em Salvador”.
Reconstituídas as trajetórias de vida, a tarefa seguinte consiste em avaliar
o alcance e os limites das principais fontes utilizadas na elaboração da linha do
tempo, perseguindo a resposta da questão de pesquisa inicial. Solicita-se que
os alunos preencham este quadro:

O que sei sobre a O que a fonte O que a fonte O que O que a fonte
fonte: o que é, me diz sobre o permite inferir mais a não me diz e
quem é o autor, personagem sobre o mundo fonte me como posso
quando produziu da biografia à época em que diz saber mais
a fonte e, se for o personagem sobre isso
possível, por quê viveu
(suas intenções)

A última tarefa seria uma composição das duas primeiras: escrever uma
apresentação do personagem, discutindo sua relevância para o estudo da his-
tória e comentando aquilo que sua biografia permite e aquilo que não permi-
te afirmar. Com esse exercício ficaria bastante claro para os alunos que os
conhecimentos que temos do passado são condicionados pelas fontes de que
dispomos e dependem das perguntas que a elas fazemos. É importante notar
– e desejável que os alunos também percebam isso – que esse constrangimen-
to não significa necessariamente uma limitação do nosso conhecimento, mas

74 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Proposta de material didático para a história das relações étnico-raciais

constitui um elemento fundamental para avaliar o que passamos a conhecer


(e que não conheceríamos sem as fontes).

• Unidade V – Por que é tão difícil afirmar quando acabou a escravidão


indígena no Brasil?
Conceitos chave: mudança e continuidade; interpretação

A escravidão indígena é um assunto pouco tratado e bastante nebuloso,


no ensino da história do Brasil. Durante muito tempo, como observa o histo-
riador e indigenista André Raimundo Ferreira Ramos, costumava-se dizer que
o indígena não foi escravizado, ou, se muito, que a escravidão indígena ocor-
rera apenas no início da colonização. Era comum os livros didáticos pularem
do escambo diretamente para as missões jesuíticas, como se o trabalho escravo
indígena tivesse sido totalmente substituído pelo africano, esquecendo-se as-
sim que diferentes modalidades regionais de escravidão indígena perduraram,
seguramente, até o final do século XIX.20 O conceito chave ‘mudança e conti-
nuidade’ aplica-se bem à pergunta desta unidade, pois nela está embutida a
questão dos limites da mudança: o ‘fim’ da escravidão indígena significou um
‘fim’ para quem, exatamente? Até que ponto a regra da ‘guerra justa’ ou a le-
gislação pombalina de meados do século XVIII, para citar apenas duas deter-
minações portuguesas, constituíram rupturas efetivas?
As fontes no caso desta unidade incluem diferentes atos da legislação indíge-
na desde o início da colonização, determinações administrativas, relatos de viajan-
tes e relatórios, que deem conta de relações de trabalho praticadas pelo menos até
finais do século XIX.21 Para que os alunos possam visualizar as mudanças e conti-
nuidades, e refletir sobre elas, poderiam começar ordenando as fontes cronologi-
camente e resumindo seu conteúdo, como proposto neste quadro:

Especificar a fonte: o que é, quando, por quem e por que foi


O que diz a fonte
escrita

Em seguida, os alunos poderiam fazer um exercício de redação, compa-


rando os resultados de sua pesquisa com trechos de livros didáticos antigos e
atuais. Para tanto, poderia ser disponibilizada uma espécie de molde para a
redação de um ensaio, com espaços que seriam completados pelo aluno com

Junho de 2012 75
Verena Alberti

base em suas pesquisas, semelhante ao que pode ser encontrado na página do


Arquivo Nacional Britânico.22 O molde começaria com uma introdução gené-
rica, a ser completada pelo aluno e, na sequência, apresentaria espaços para
incluir trechos encontrados em livros didáticos e objeções a eles, baseadas nas
fontes estudadas. Cada trecho e fonte citados no ensaio do aluno já viriam
acompanhados de sua respectiva referência bibliográfica, na forma de notas
de pé de página. A estrutura acompanharia este roteiro:

1. Introdução genérica: Há muita incorreção em manuais escolares e em outras


publicações, e até nas noções do senso comum, sobre a escravidão indígena
no Brasil. [deixar espaço para o aluno continuar o parágrafo introdutório]
2. O [trecho de manual escolar] de [data], por exemplo, afirma que...
3. Mostrar o que pode estar correto, nessa afirmação

4. Mostrar o que não está correto, nessa afirmação, e basear a argumentação em


fontes examinadas na tarefa anterior
5. Mostrar o que está faltando na afirmação e basear a argumentação em fontes
examinadas na tarefa anterior
6. Acrescentar outro trecho de manual escolar e proceder da mesma forma
7. No final, redigir parágrafo conclusivo

Esta seria uma ótima oportunidade para os alunos comunicarem sobre o


passado utilizando uma ferramenta que permite contrapor afirmativas talvez
pouco criteriosas a informações extraídas de fontes de pesquisa. O principal
conceito chave em jogo na execução dessa tarefa é o de ‘interpretação’; os
alunos teriam oportunidade de avaliar um conjunto de interpretações sobre o
passado para verificar sua validade.

• Unidade VI – O Brasil foi o último país das Américas a abolir a es-


cravidão. Por que levou tanto tempo?
Conceitos chave: cronologia; mudança e continuidade

Há diferentes possibilidades de abordar a questão de pesquisa desta uni-


dade. O conceito chave parece ser, mais uma vez, o de mudança e continuida-
de, chamando talvez mais atenção para as permanências do que para as rup-

76 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Proposta de material didático para a história das relações étnico-raciais

turas. Para que o aluno domine o assunto, podemos começar com um


exercício de fixação das diferentes medidas administrativas e legais tomadas
desde 1807, quando o tráfico transatlântico foi extinto na Inglaterra, até 1888
– ou então desde 1791, quando se iniciou o processo de independência do
Haiti, passando pela abolição da escravidão nas colônias da França revolucio-
nária, em 1794. Além de abarcar os documentos legais geralmente evocados
– como a Lei de 1831, a Lei Euzébio de Queiroz, a Lei do Ventre Livre e a dos
Sexagenários –, essa seção poderia conter informações sobre medidas legais de
países da América Latina, ou de outras regiões julgadas relevantes.
Um exercício de fixação possível seria o de apresentar aos alunos três
conjuntos de dados: 1) informações completas sobre as resoluções administra-
tivas e legais relativas à extinção do tráfico transatlântico e à abolição da escra-
vidão em diferentes regiões do mundo e do Brasil, acompanhadas da reprodu-
ção na íntegra dos documentos; 2) um resumo das resoluções sem data; 3)
apenas as datas das resoluções. A tarefa seria combinar os resumos e as datas
e alinhá-los numa linha do tempo. Para executá-la, seria necessário ler os do-
cumentos na íntegra, ou as informações completas. Fornecer informações re-
lativas ao Brasil ao lado das que dizem respeito a outras regiões do mundo
permite que o aluno compreenda a articulação entre ambas, o que é especial-
mente importante em relação ao assunto desta unidade.
Costumamos conceber a abolição do tráfico transatlântico e da escrava-
tura como um processo que culmina com o fim da escravidão – tanto que
muitas vezes chamamos esse ‘processo’ de ‘transição do trabalho escravo para
o trabalho livre’. Podemos nos perguntar se, pensando dessa forma, não esta-
mos transportando para o passado valores e práticas do presente, quase como
se fosse óbvio que a escravidão acabaria. Para dar conta justamente das difi-
culdades desse ‘processo’, é importante sublinhar as resistências ao fim da
escravidão e as opiniões favoráveis à sua continuidade, vindas de fazendeiros,
comerciantes e homens públicos, por exemplo. Assim, seria interessante via-
bilizar a elaboração de uma segunda linha do tempo, que revelasse não a mu-
dança, mas a continuidade de atitudes em relação à escravidão no século XIX
– extratos de cartas, panfletos, debates parlamentares etc., a serem inseridos
na ordem cronológica, mantendo-se como contraponto as informações já
compiladas para a primeira linha do tempo desta unidade.

Junho de 2012 77
Verena Alberti

Outra possibilidade é debruçar-se sobre a pergunta “Quem era a favor da


Abolição e quem era contra, e por quê?”. As fontes aqui seriam reportagens de
jornal, textos e propagandas a favor e contra, debates parlamentares, biografias
de personagens que se destacaram nas campanhas etc. Como resultado, poder-
-se-ia propor aos alunos que preparassem uma apresentação de PowerPoint,
seguindo ou não um modelo previamente elaborado.23 Os slides do PowerPoint
podem ser montados a partir de perguntas como estas: “Quais eram os prin-
cipais argumentos a favor da abolição?”, “Quem eram os abolicionistas e como
agiam?”, “Quem era contra a abolição e por quê?”.
Uma questão recorrente nesse debate é a que envolve a pressão da Ingla-
terra para que o Brasil abolisse o tráfico transatlântico. A pergunta pode ser
explorada numa seção especial da unidade, fornecendo-se, para isso, fontes
primárias (correspondência oficial, legislação, tratados, documentos de fazen-
deiros de colônias inglesas no Caribe) e secundárias que revelem diferentes
momentos e formas de atuação do governo britânico em relação a esse ponto.
Ainda hoje é comum ouvirmos dizer que o interesse inglês estaria na formação
de um mercado consumidor, mas isso não explica por que a pressão do gover-
no britânico teve como foco principalmente o fim do tráfico transatlântico, e
menos da escravidão em si. A tarefa aqui poderia ser, mais uma vez, comparar
as informações trazidas pelas fontes com afirmações encontradas em livros
didáticos. O resultado pode ser o preenchimento de um quadro como este:

Trecho do livro didático O que pode O que está O que está


sobre o assunto estar correto incorreto faltando

Outro elemento importante para dar conta desta unidade é o fato de ape-
nas 5% da população brasileira ser escrava em 1888, o que mostra, de forma
bastante incisiva, que havia muito mais negros livres e libertos do que escravos,
antes do 13 de Maio. As fontes aqui podem apresentar estimativas da popula-
ção escrava no século XIX, as abolições em províncias como Amazonas, Ceará
e Rio Grande do Sul (uma pergunta de pesquisa bem interessante pode ser por
que a abolição ocorreu nesses estados quatro anos antes de no restante do país),
processos de libertação como os que eram defendidos por Luiz Gama, diferen-
tes modalidades de alforria, inclusive as obtidas por pecúlio dos próprios es-

78 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Proposta de material didático para a história das relações étnico-raciais

cravos, exemplos de famílias negras com recursos, como as dos irmãos Rebou-
ças e outras fotografadas pelo fotógrafo Militão, cotidiano e subsistência em
comunidades negras rurais etc. A ideia é apresentar africanos e seus descen-
dentes como senhores de seu destino muito antes de 1888.
Pode-se acrescentar a esse conjunto de fontes documentos que indiquem
que, mesmo livre ou liberto, o negro estava sujeito a restrições importantes e
não raro corria o risco de ser escravizado. O Código Criminal de 1831 e o
exemplo de Luiz Gama podem ser fontes eloquentes, entre outras.
A atividade a ser desenvolvida em relação a esta seção da unidade poderia
ser, mais uma vez, uma redação seguindo um molde pré-elaborado, como já
sugerido para a Unidade V. O molde começaria novamente com uma intro-
dução genérica, a ser completada pelo aluno, e teria espaço para a inserção de
exemplos aprendidos com o material oferecido.

1. Introdução genérica: Ao contrário do que muitos pensam, a abolição da


escravidão em 1888 não foi o momento em que a maioria dos africanos
escravizados e seus descendentes se tornou livre no Brasil. Antes de 1888,
grande parte dos que haviam vindo como escravos ou nascido como escravos
era livre. As formas de conquistar a liberdade até 1888 variaram bastante
[deixar espaço para o aluno continuar o parágrafo introdutório]
2. O documento ... mostra que era possível tornar-se livre... [descrever o caso]

3. Outra forma de alcançar a liberdade era..., como mostra o documento..., que se


refere ao caso de ... [descrever o caso]

4. Os negros livres e libertos exerciam diferentes atividades, na sociedade


imperial. [identificar uma pessoa ou um grupo], por exemplo, que vivia[m] em
[identificar o lugar] durante [informar quando], [descrever o que fazia(m)]
5. Outro exemplo interessante é o de [descrever o exemplo]
6. Apesar desses exemplos, a pessoa negra ou mulata que tinha nascido livre ou
tinha alcançado a liberdade corria o risco de ser considerada escrava, como
mostra o documento... [descrever o caso] Esse risco deixou de existir em 1888,
quando a escravidão foi abolida por lei.

7. No final, parágrafo conclusivo.

A tarefa conclusiva desta unidade poderia ser a elaboração de um texto


para responder à questão de pesquisa lançada no início, sobre por que demo-

Junho de 2012 79
Verena Alberti

rou tanto tempo para a escravidão ser abolida no Brasil. Uma forma de ajudar
os alunos a esquematizar seu texto seria fornecer cartões com dados e/ou afir-
mativas extraídos das fontes utilizadas na unidade, e sugerir que, discutindo
com alguns colegas, arranjem os cartões na forma de um mapa mental. Seria
interessante fornecer também alguns cartões em branco, para que os próprios
alunos os completem com dados e afirmativas que considerem igualmente
relevantes. Uma vez selecionados os cartões que integrarão o mapa mental e
definido o arranjo – isto é, a natureza das relações entre as informações con-
sideradas relevantes –, os alunos podem se voltar para a redação do ensaio
sobre a questão proposta.

• Unidade VII – A raça ou cor teve/tem importância no Brasil?


Conceitos chave: interpretação, mudança e continuidade

De uns anos para cá estabeleceu-se, no meio intelectual brasileiro, uma


espécie de polarização no que diz respeito à reflexão sobre a questão racial.
Antropólogos, historiadores e cientistas sociais, entre outros, têm defendido
seja a implementação de ações afirmativas e mecanismos de correção das de-
sigualdades raciais, seja a completa impropriedade dessas iniciativas, que tra-
riam consigo o risco de divisão racial da sociedade. Esta unidade objetiva qua-
lificar os alunos a participarem dessa discussão, familiarizando-os com os
argumentos e trazendo algumas informações sobre a história do conceito de
raça no Brasil e no mundo, inclusive sua invenção e posterior ‘desinvenção’
pela biologia.
O material seria composto por uma seleção de textos de diferentes auto-
res, desde Nina Rodrigues, passando por defensores do ‘branqueamento’, por
Manuel Bonfim, Lima Barreto, Gilberto Freyre, Oracy Nogueira, Florestan
Fernandes e outros, editoriais da imprensa negra e documentos de organiza-
ções do movimento negro, letras de música e pinturas relativas ao tema, ma-
nifestos contra e a favor das ações afirmativas e do Estatuto da Igualdade Racial
publicados desde 2006, entre outros.
Numa primeira etapa, pode-se solicitar aos alunos que completem ‘eti-
quetas’ dos documentos, conforme os fossem consultando. As etiquetas esta-
riam ligadas às fontes e teriam um campo já preenchido (o título do documen-
to) e espaço para o preenchimento de quatro outros campos.

80 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Proposta de material didático para a história das relações étnico-raciais

Título do Informação sobre o Data Autor e Resumo de três


documento [essa tipo de documento: local de linhas, aproxima-
seria a única do que se trata (artigo publicação damente, infor-
informação que de jornal, letra de mando o que diz
já viria na música, trecho de o documento
‘etiqueta’]. livro, entrevista etc.)

Num segundo momento, as etiquetas e seus documentos poderiam ser


arrastados para uma linha do tempo, com o objetivo de suscitar reflexões sobre
possíveis mudanças nas concepções em torno da questão racial no Brasil. De-
pendendo do material reunido, pode ser possível acompanhar diferentes opi-
niões sobre raça e cor no Brasil, desde a ênfase na degenerescência da popula-
ção brasileira em razão da presença maciça dos negros, passando pelo ideal do
branqueamento e, em seguida, da mestiçagem, até a denúncia do racismo e das
desigualdades raciais e a polarização em torno das medidas a serem adotadas.
Outra possibilidade seria acrescentar uma coordenada vertical à linha do
tempo (que permaneceria na horizontal), que indicasse ‘mais’ ou ‘menos’ pre-
conceito. Os documentos e suas etiquetas seriam então dispostos nesse gráfico,
conforme se pudesse inferir que defendem ou pressupõem uma hierarquia
(superior-inferior) entre brancos e não brancos, ficando claro que nem todos
os documentos poderiam ser classificados dessa forma.
Em seguida, pode-se solicitar que os alunos separem do material forneci-
do os documentos que tratam especificamente da discussão sobre ações afir-
mativas e os dividam entre os que são a favor e os que são contra. O passo
seguinte seria examinar os argumentos, seus pontos fracos e fortes, e propor
um debate entre os alunos, virtual ou presencialmente. Alguns autores apon-
tam, aliás, que debates virtuais muitas vezes rendem mais do que os que são
conduzidos em sala de aula, quando os alunos às vezes não expressam suas
opiniões com liberdade, seja porque receiam não terem um bom desempenho,
seja porque não querem ferir os colegas.24

• Unidade VIII – Movimentos negros e indígenas são ‘separatistas’?


Conceito chave: interpretação

Esta unidade é complementar à anterior. A ideia é apresentar, num mapa


interativo do Brasil, diferentes organizações negras e indígenas existentes des-

Junho de 2012 81
Verena Alberti

de o final do século XIX. Quando o aluno clica sobre uma organização, tem
acesso a uma breve informação sobre ela e a diferentes fontes – artigos, mani-
festos, pôsteres, fotografias, filmes, gravações sonoras, entrevistas etc. A tarefa
consiste em escolher alguns desses movimentos para preencher este quadro:

Movimento/ Estratégias O que os participantes ‘Índice de


organização: título, de ação que pensavam (reproduzir separatismo’
data, local, podem ser o que está nas fontes, (de 0 a 10),
participantes inferidas das se possível arrastando com base nos
fontes e colando trechos documentos
escolhidos) escolhidos

O preenchimento da última coluna pode ser aprimorado com um debate


em sala. O professor distribui cartões com os nomes dos movimentos ou or-
ganizações, nos quais cada aluno escreve seu ‘índice de separatismo’, o qual
discutirá em três etapas com seus colegas: com alguém que escolheu um ‘índi-
ce’ parecido, com alguém que tem um índice pouco diferente e, finalmente,
com alguém que escolheu um índice bem diferente. Após cada discussão, o
aluno reflete se desejaria mudar seu índice e, no final, uma discussão do ple-
nário tenta fixar os pontos principais.
Essa atividade e a questão de pesquisa que lhe serve de pano de fundo
objetivam lidar com a polarização decorrente da atuação dos movimentos so-
ciais e da reação a eles. Muitos professores já devem ter ouvido críticas em
formas de perguntas, como “Por que não existe um Dia da Consciência Bran-
ca?”, ou “Por que é obrigatório estudar África, mas não é obrigatório estudar
o Japão, por exemplo?”. Trata-se de questões delicadas, mas isso não deve ser
razão para que não sejam tratadas nas aulas de história. Aliás, como já disse-
mos, é preciso justamente enfrentar essas e outras questões sensíveis e contro-
versas nas nossas aulas, pois do contrário nossa disciplina corre o risco de se
tornar irrelevante.25

• Unidade IX – A raça ou cor teve/tem importância fora do domínio


europeu?
Conceitos chave: diversidade, cronologia

Esta unidade tem o objetivo de chamar a atenção para o olhar não euro-
peu sobre outros povos. Interessa aqui pesquisar se e como pessoas de diferen-

82 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Proposta de material didático para a história das relações étnico-raciais

tes lugares do mundo explicaram e explicam diferenças que, no mundo oci-


dental, foram chamadas de ‘raciais’, e se essas explicações implicaram
julgamentos do tipo superior/inferior. Como os habitantes do continente in-
diano viam os chineses, ou os africanos da costa oriental? Como os portugue-
ses eram representados em placas que decoravam os pilares do palácio do
reino de Benin, no século XVI?26 O interessante seria reunir um conjunto de
documentos de diferentes regiões e épocas que possam dar conta desses en-
contros ou desencontros entre povos. É claro que o material terá de ser muito
bem contextualizado, pois muitas vezes só temos acesso à visão do não europeu
desde o relato de um europeu, e esse viés da informação precisa estar bem
esmiuçado. As fontes podem estar dispostas num mapa-múndi e, como nos
exemplos anteriores, ser acessadas por um clique.
Como atividade, poderíamos propor duas tarefas. Uma primeira decor-
reria da análise das fontes selecionadas pelo aluno, e seguiria, por exemplo,
esta orientação:

Sobre a fonte: título (o Que cuidados preciso tomar para interpretar O que a
aluno pode atribuir essa fonte? (Por exemplo, que cuidados fonte me
um título), local, data, precisamos tomar com a reprodução do diz?
por quem e por que foi diálogo com um tupinambá por Jean de
produzida? Léry, na década de 1550?)

A segunda tarefa seria a preparação de um PowerPoint, com a apresenta-


ção de alguns achados por parte do aluno, seguindo talvez um molde previa-
mente preparado. Os alunos podem apresentar os PowerPoints em sala, para
socializar suas descobertas. Para isso, talvez fosse interessante dividir a turma
em grupos e estabelecer uma região do mapa para cada grupo. Assim, as apre-
sentações trariam novidades para a turma.

• Jogo – Brasileiros notáveis

O dossiê poderia conter atividades lúdicas. Uma possibilidade seria uma


espécie de jogo da memória em que se apresentassem imagens, dados biográ-
ficos e algumas obras (quadros, músicas, trechos de filmes, de livros etc.) de
cientistas, músicos, engenheiros, políticos, médicos, artistas plásticos e escri-
tores, entre outros, mulheres e homens de diversas origens e aparências, com

Junho de 2012 83
Verena Alberti

o intuito de acostumar os alunos à existência, entre os notáveis, de negros e


indígenas. O objetivo do jogo seria juntar corretamente os três elementos re-
ferentes a uma pessoa (sua imagem, seus dados biográficos e suas obras), e
quem conseguisse acumular o maior número de associações corretas seria o
vencedor. Uma ideia interessante é fornecer ferramentas para que o aluno
acrescente mais ‘notáveis’ ao jogo, inclusive ele mesmo, amigos e parentes, com
as respectivas imagens, os dados biográficos e as obras.

Observações finais

A maioria das sugestões descritas nesta proposta não precisa, evidente-


mente, de TICs para ser colocada em prática. Um barbante com pregadores
pode servir de linha do tempo, e cartolinas podem dar origem a tabelas nas
quais se colam imagens ou trechos de documentos. Talvez o maior trabalho,
para o professor, seja a pesquisa e a seleção de fontes adequadas, que sirvam
ao seu propósito de forma honesta em relação ao passado, isto é, como subli-
nhei no início, priorizando o rigor histórico. Não há dúvida de que a atividade
docente é uma atividade de pesquisa por excelência, pois necessita de objetivos
a serem definidos (“O que exatamente eu gostaria que meus alunos aprendes-
sem?”), etapas e métodos a serem trilhados (“Como fazer com que eles apren-
dam?”) e resultados a serem alcançados (“Como saberei que eles sabem?”).
Todo professor saberá escolher, das ideias aqui apresentadas, aquelas que
mais se adaptam a sua sala de aula e a sua instituição de ensino. Dependendo
da disponibilidade de tempo, poderá encontrar fontes interessantes nos arqui-
vos de sua cidade ou em repositórios de documentos na internet. O importan-
te é refletirmos bem sobre o que exatamente pretendemos com a aplicação das
Leis 10.639 e 11.645, e como alcançar nossos objetivos. As possibilidades são
infinitas, o que é ótimo, mas precisamos também de muita cautela para não
desperdiçar oportunidades. O trabalho é difícil, lento, e a toda hora somos
lembrados de sua premência.
Como outro dia, em que vivi uma situação simples que, com certeza,
poderia ter ocorrido em qualquer sala de aula do país. Era minha primeira
aula numa turma do 2º ano do Ensino Médio e, como costumo fazer, tentei
transmitir aos alunos minha convicção de que precisamos conhecer o passado
como forma de nos ‘alfabetizar’ na ‘leitura do mundo’. Um exemplo que gos-
to de dar, tomando cuidado para não generalizar, pois o assunto é muito sério,

84 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Proposta de material didático para a história das relações étnico-raciais

é dos judeus que perceberam que precisavam sair da Alemanha antes do ho-
locausto – digo aos alunos que é importante estar ‘alfabetizado no mundo’
para talvez compreender alguns sinais e tomar decisões. É um exemplo radical,
mas eu me permito ser um pouco radical quando se trata de defender a impor-
tância da matéria! Uma aluna então perguntou se havia sido a primeira gran-
de perseguição aos judeus no mundo, e acabamos caindo no assunto dos
cristãos-novos, que, para não serem perseguidos pelos impérios português e
espanhol, mudaram de religião e de nome – ‘Oliveira’, ‘Pereira’ etc. Esse é um
exemplo clássico, que os alunos em geral já conhecem. Outra aluna sugeriu
que o sobrenome ‘Costa’ também deveria ser de cristão-novo. Expliquei que
já ouvira falar que ‘Costa’ era um sobrenome comum a descendentes de escra-
vos africanos, os negros ‘da Costa’, e até desenhei no quadro a costa ocidental
da África para ajudar a visualizar a informação. Nesse ínterim, um celular
tocou (todos também já experimentamos essa situação), e os alunos começa-
ram a rir. Perguntei: “Por que estão rindo? Por causa do celular?”. “Não”, foi
a resposta, “é porque ele” – apontaram um colega – “é Costa”. E eu disse:
“Interessante, vocês estão rindo porque ele é ‘Costa’? E se ele fosse ‘Oliveira’,
ou ‘Pereira’? Também ririam? E ‘Smith’?”.
Como disse, foi um episódio simples, que poderia ter acontecido em qual-
quer sala de aula do país, independentemente da cor dos alunos. Não era uma
aula sobre África ou sobre história e cultura afro-brasileira. Era uma aula sobre
história, simplesmente. E me forneceu material para refletir – a ponto de eu
ter decidido relatá-lo aqui. Ele mostra como é fundamental tratarmos das
ideias sobre raça e cor no Brasil e da história das relações étnico-raciais. Sem-
pre respeitando os alunos e seus preconceitos – quase podemos dizer que eles
não têm culpa do que sentem e pensam. Cabe a nós, professores, tentar mudá-
-los a esse respeito. Uma das formas de fazê-lo é a que defendo neste texto:
disponibilizar cada vez mais material útil e de qualidade, que talvez possa, com
repetições, insistência e vontade, derrubar preconceitos, a ponto de se tornar
quase impossível rir de um colega com sobrenome ‘Costa’.

NOTAS

1
Este texto é parte dos resultados de minha pesquisa de pós-doutorado na área de ensino
de história, realizada na Inglaterra, na University of East Anglia e no Institute of Education
da University of London, durante o ano de 2009. Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoa-

Junho de 2012 85
Verena Alberti

mento de Pessoal de Ensino Superior (Capes) a concessão de uma bolsa de pós-doutora-


mento, bem como ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do
Brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, a licença concedida.
2
Ver, a respeito, ALBERTI, Verena. O ensino de história na Inglaterra: conceitos e práti-
cas. In: FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.) Memória e identidade nacional. Rio de Ja-
neiro: Ed. FGV, 2010. p.81-100.
3
Ver também ALBERTI, cit.
4
Os três processos e os seis conceitos fazem parte, por exemplo, do currículo oficial de
história no Reino Unido. Disponível em: www.education.gov.uk/schools/teachingandlear-
ning/curriculum/secondary/b00199545/history/programme; Acesso em: 30 jan. 2012. Para
esse debate, ver meu texto já citado na nota 2 e as referências nele contidas. No Brasil,
participam do debate, entre outros, Maria Auxiliadora Schmidt, da Universidade Federal
do Paraná, e Margarida Maria Dias de Oliveira, da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte.
5
HAYDN, Terry. Computers and History: rhetoric, reality and the lessons of the past. In:
HAYDN, T.; COUNSELL, C. (Ed.) History, ICT and Learning in the Secondary School.
London: Routledge Falmer, 2003. p.13-16.
6
STUURMAN, S.; GREVER, M. Introduction: Old canons and new histories. In: Beyond
the Canon: history for the 21st century. New York: Palgrave Macmillan, 2007. p.1-16. Ver
também: LEE, Peter. Understanding history. In: Canadian Historical Consciousness in an
International Context: theoretical frameworks. Vancouver: Centre for the Study of Histo-
rical Consciousness, University of British Columbia, Aug. 2001. Disponível em:
dc122.4shared.com/doc/v1wIo1io/preview.html; Acesso em: 6 mar. 2012.
7
Críticas ao caráter homogeneizador do livro didático podem ser encontradas em
BITTENCOURT, Circe. Livros didáticos entre textos e imagens. In: BITTENCOURT, C.
(Org.) O saber histórico na sala de aula. 11.ed. São Paulo: Contexto, [1997] 2006. p.69-90;
MUNAKATA, Kazumi. O livro didático e o professor: entre a ortodoxia e a apropriação.
In: MONTEIRO, Ana Maria; GASPARELLO, Arlette Medeiros; MAGALHÃES, Marcelo
de Souza (Org.) Ensino de história: sujeitos, saberes e práticas. Rio de Janeiro: Mauad;
Faperj, 2007. p.137-147; e ABUD, Katia Maria. A história nossa de cada dia: saber escolar
e saber acadêmico na sala de aula. In: MONTEIRO; GASPARELLO & MAGALHÃES
(Org.), 2007, p.107-117.
8
KNAUSS, P. Sobre a norma e o óbvio: a sala de aula como lugar de pesquisa. In:
NIKITIUK, Sonia Maria Leite (Org.) Repensando o ensino de história. 6.ed. São Paulo:
Cortez, [1996] 2007. p.29-50. (Coleção Questões da nossa época, 52). p.48.
9
Exemplos interessantes podem ser encontrados em www.nationalarchives.gov.uk/educa-
tion/focuson/domesday/default.htm; www.nationalarchives.gov.uk/education/
lessons/2358-popup.htm; www.nationalarchives.gov.uk/education/worldwar2/theatres-
-of-war/western-europe/investigation/resistance/sources/docs/4c/ (ver “listen to this do-
cument”, na parte inferior do documento); Acessos em 31 jan. 2012.

86 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Proposta de material didático para a história das relações étnico-raciais

10
Ver a caixa de fontes (“source box”) deste exemplo: www.nationalarchives.gov.uk/edu-
cation/worldwar2/theatres-of-war/western-europe/investigation/d-day/sources/; Acesso
em: 31 jan. 2012.
11
ALBERTI, Verena. “Algumas estratégias para o ensino de história e cultura afro-brasilei-
ra”. Artigo no prelo, a ser publicado no livro Ensino de história e diversidade, organizado
por Amilcar Araujo Pereira e Ana Maria Monteiro, como parte das atividades do Labora-
tório de Estudos e Pesquisas em Ensino de História (Lepeh/UFRJ).
12
PHILLIPS, Robert. Historical significance – the forgotten ‘Key Element’. Teaching His-
tory 106: Citizens & Communities. Historical Association, Mar. 2002, p.14-19, p.18. Dis-
ponível para membros da Historical Association em www.history.org.uk/resources/secon-
dary_resource_869_12.html; Acesso em: 3 jul. 2011. (Tradução nossa).
13
Essa proposta de introdução ao tema foi sugerida por um grupo de três alunos do curso
de formação de professores de história do Institute of Education (IoE) da University of
London de que tive oportunidade de participar durante meu estágio de pós-doutorado. A
sugestão foi apresentada na aula de 26/10/2009, que tinha como foco a avaliação do pro-
cesso de aprendizagem pelos próprios alunos.
14
Já tive oportunidade de explorar essa questão em: 1) ALBERTI, Verena. “História e me-
mória na sala de aula e o ensino de temas controversos”, artigo no prelo a ser publicado na
trilogia História, memória e o ensino das ditaduras do século XX, coletânea organizada por
Samantha Viz Quadrat, Denise Rollemberg e Alessandra Carvalho, da Universidade Fede-
ral Fluminense; 2) ALBERTI, Verena. “Algumas estratégias para o ensino de história e
cultura afro-brasileira”, artigo no prelo a ser publicado no livro Ensino de História e Diver-
sidade, cit.; e 3) ALBERTI, Verena. Oral history interviews as historical sources in the clas-
sroom. Words & Silences. The Journal of the International Oral History Association. The
Workings of Oral History, v.6, n.1, p.29-36, Dec. 2011. ISSN 1405-6410 Online ISSN 2222-
4181. Disponível em: wordsandsilences.org/index.php/ws/issue/view/4/showToc.
15
Fontes interessantes podem ser encontradas em www.wdl.org/pt/; Acesso em: 31 jan.
2012.
16
Publicado no Brasil como CASTELNAU, Francis de. Entrevistas com escravos africanos
na Bahia oitocentista. Rio de Janeiro: J. Olympio Ed., 2006.
17
Um bom exemplo de mapa animado encontra-se em www.nationalarchives.gov.uk/edu-
cation/worldwar2/theatres-of-war/western-europe/1939/index.htm; Acesso em: 31 jan.
2012.
18
O jogo da generalização, também chamado “Too simple game”, foi proposto por Chris-
tine Counsell, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Cambridge (UK),
e sua explicação está disponível para associados da Historical Association em www.history.
org.uk/resources/secondary_resource_2444.html; Acesso em: 31 jan. 2012.
19
Sobre o uso de biografias no ensino de história, ver também: ALBERTI, Verena. Biogra-
fias dos avós: uma experiência de pesquisa no ensino médio. Trabalho apresentado no
Simpósio “Ensino de história: saberes e práticas curriculares”, coordenado por Ana Maria

Junho de 2012 87
Verena Alberti

Monteiro (UFRJ), Arlette Gasparello (UFF) e Carmen Gabriel (UFRJ), no XII Encontro
Regional de História “Usos do passado”, organizado pela Associação Nacional de História
(Anpuh) – Rio de Janeiro. Niterói, UFF, 14-18 ago. 2006. Disponível em: cpdoc.fgv.br/
producao_intelectual/arq/1564.pdf.
20
Ver, entre outros: RAMOS, André Raimundo Ferreira. Escravidão indígena: entre o mi-
to e novas perspectivas de debates. Revista de Estudos e Pesquisas, Brasília: Ministério da
Justiça, Fundação Nacional do Índio, Coordenação Geral de Estudos e Pesquisas, v.I, n.1,
2004. Disponível em: www.funai.gov.br/projetos/Plano_editorial/Pdf/REP1-1/8-A%20
escravid%E3o%20do%20ind%EDgena%20-%20entre%20o%20mito%20e%20novas%20
perspectivas%20de%20debate%20-%20Andr%E9%20Ramos.pdf; Acesso em: 2 jul. 2011.
21
Na seleção do material desta unidade, será de grande valia, ao lado de outros estudos, a
compilação de CUNHA, Manuela Carneiro da. Os direitos do índio: ensaios e documentos.
São Paulo: Brasiliense, 1987.
22
Ferramenta semelhante pode ser encontrada em: www.nationalarchives.gov.uk/cabine-
tpapers/alevelstudies/what-is-writing-frame.htm; Acesso em: 31 jan. 2012.
23
Ver exemplo interessante para o caso da campanha pelo voto feminino na Inglaterra em:
www.nationalarchives.gov.uk/education/britain1906to1918/g3/gallery3.htm; Acesso em:
31 jan. 2012.
24
A esse respeito, ver MARTIN, Dave. What do you think? Using online forums to impro-
ve students’ historical knowledge and understanding. Simulating History, Historical Asso-
ciation, Dec. 2008, p.31-38; e SNAPE, Dominic; ALLEN, Katy. Challenging not balancing:
developing Year 7’s grasp of historical argument through online discussion and a virtual
book. Teaching History, v.133, cit., p.45-51. Disponível para membros da Historical Asso-
ciation em: www.history.org.uk/resources/secondary_resource_1976_12.html; Acesso em:
31 jan. 2012.
25
Discuto questões sensíveis e controversas também nos textos citados na nota 14.
26
Ver, a respeito: www.asia.si.edu/EncompassingtheGlobe/Africa.htm; Acesso em 31 jan.
2012.

Artigo recebido em 20 de janeiro de 2012. Aprovado em 26 de março de 2012.

88 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


O ensino de história entre o dever
de memória e o direito à história
The teaching of history between the duty
of memory and the right to the history
Júnia Sales Pereira*
Luciano Magela Roza**

Resumo Abstract
Análise das possibilidades do estudo de Analysis of the possibilities of studying
manifestações culturais afro-brasileiras African-Brazilian cultural events in the
no ensino de história. Problematização teaching of history. Reflections on the
dos dilemas enfrentados na efetivação dilemmas faced in the realization of the
da Lei 11.645/2008 com foco nas poten-
Law 11.645/2008 with a focus on reflec-
cialidades reflexivas disponíveis aos do-
tive capabilities available to the teach-
centes nesse contexto de positivação de
memórias e de tensões em torno da his- ers in this context of positive memories
tória. and tensions around the history.
Palavras-chave: ensino de história; his- Keywords: teaching history; history and
tória e cultura afro-brasileiras; Folias de African-Brazilian culture; Folias de Reis
Reis e Congados em aulas de história. and Congados in history classes.

Transformações educacionais em contexto de positivação

É antigo o debate a respeito do tom eurocêntrico conferido pela educação


escolar brasileira para abordagem dos mais variados temas, problemas e ques-
tões presentes na prática educativa. Podemos dizer que a instauração da Re-
pública, no Brasil, e, por conseguinte, de uma escola orientada também por
pressupostos republicanos, não foi acompanhada de necessária e ampla expan-
são de concepções de cidadania e inclusão, lutas com as quais, ainda no sécu-
lo XXI, os educadores brasileiros se envolvem, não sem conflitos e tensões.

* Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Av. Antônio Carlos,
6627, Pampulha. 31270-901 Belo Horizonte – MG – Brasil. juniasales@fae.ufmg.br
** Doutorando em Educação, professor bolsista REUNI. Faculdade de Educação, Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Av. Antônio Carlos, 6627, Pampulha. 31270-901 Belo Horizonte
– MG – Brasil. lucianoroza@gmail.com

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 89-110 - 2012


Júnia Sales Pereira e Luciano Magela Roza

Em nossas escolas, na Educação Básica, é ainda incipiente a abordagem


marcada pela alteridade cultural nos currículos escolares, sobretudo, neste mo-
mento, para compreensão e reflexão dos processos que no passado e ainda no
presente realizam as histórias e culturas afro-brasileiras e indígenas marcadas
por singularidades não explicáveis ou redutíveis aos modelos explicativos e aos
processos vivenciados pela Europa.
Da mesma maneira, a chamada Educação das relações étnico-raciais na
escola se realiza em grande medida por força de docentes que atuam isolada-
mente. Podemos dizer que essas abordagens estiveram ausentes dos processos
formativos ao longo do século XX, sobretudo nas licenciaturas (campo forma-
tivo em que fariam toda diferença, com repercussões sensíveis na Educação
Básica) e caminham também a passos lentos no Ensino Superior.
Esse cenário começa a sofrer alterações no Brasil, sobretudo a partir da
Lei 10.639/2003, que institui a obrigatoriedade do ensino de história e cultura
africanas e afro-brasileiras e uma educação das relações étnico-raciais na es-
cola, modificada pela Lei 11.645/2008 (que incluiu a obrigatoriedade do ensi-
no de história indígena). Em 2004, as Diretrizes curriculares corretadas à Lei
10.639/2003 orientaram a prática docente, sinalizando, também, para a neces-
sidade de revisão dos currículos de formação docente. Como se pode ver, esse
é um desafio não exclusivo de determinadas áreas do conhecimento, embora
sinalizado com maior evidência no Ensino de História, na Literatura e nas
Artes, embora dele também participem outras áreas do conhecimento (como,
por exemplo, a Geografia e a Educação Física, dentre outras).
Entendemos que essa nova legislação institui uma obrigatoriedade que,
embora com temática antiga, apresenta novidades aos currículos escolares.1
Formados durante décadas sob concepções eurocêntricas, professores em atua-
ção na Educação Básica retornam às Universidades em diferentes situações
formativas, movidos pela necessidade de aprendizagem e debate de temas que
não orientaram sua formação inicial e também não estiveram presentes em sua
atuação profissional nos últimos anos.
O ensino de história experimenta o impacto dessa nova orientação curri-
cular que, embora não esteja situada exclusivamente nesse campo formativo
amplo (o do ensino de história e das humanidades), sobre ela recai forçosa-
mente um imperativo formativo que não é nem momentâneo nem tampouco
desprezível. Esse impacto se faz sentir das mais variadas maneiras, forçando o

90 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


O ensino de história entre o dever de memória e o direito à história

ensino, a pesquisa e a extensão a tornar evidentes projetos formativos e inves-


tigativos vinculados a essa agenda.
Podemos, além disso, sinalizar que como uma das centralidades dessa
nova legislação recai sobre o ensino de história (tanto na Universidade como
na Educação Básica), os docentes vêm desdobrando-se para criação de fóruns
e momentos de formação que ofereçam elementos reflexivos para práticas edu-
cacionais renovadas.
Sinalizamos, contudo, que o atendimento a toda essa legislação exige ne-
cessária reconfiguração de pressupostos, princípios e procedimentos que en-
volvem a docência. Destacamos o ensino de história por seu protagonismo no
processo de formação de professores, em especial porque não se orienta a uma
revisão de concepções, para superação do racismo à brasileira, sem a necessá-
ria visita crítica do passado histórico que o gerou e que o faz, em grande me-
dida, perpetuar-se nas práticas do tempo presente nas salas de aula.
Essa reconfiguração exige, por um lado, mudança conceitual. Fruto não
somente dessas transformações geradas pela nova legislação, em especial de
deslocamentos teórico-práticos vividos em ampla escala, a alteração das noções
de cultura afeta significativamente as seleções curriculares, as maneiras de
abordagem dos conteúdos e a relação com o conhecimento e os saberes social-
mente produzidos. De uma noção de cultura estática e tributária da homoge-
neização de matrizes culturais brasileiras passa-se a noções dinâmicas, híbridas
e processuais de cultura. De concepções de cultura orientadas pelo eurocen-
trismo passa-se à expansão conceitual, abrindo-se às margens. A ampliação da
noção de patrimônio2 é fruto de longo debate histórico e foi efetivada a partir
de 2000 com o Decreto 3.551/2000, que instituiu o Registro de Bens culturais
de natureza imaterial que compõem o patrimônio brasileiro, um dos sinais
evidentes desse processo mais amplo de compreensão das dinâmicas culturais
e da incorporação de dimensões intangíveis na vivência e apropriação da cul-
tura, com repercussões no campo educativo.
Essas transformações exigem, por outro lado, alterações das práticas pe-
dagógicas. A incorporação das dinâmicas culturais do tempo presente ao uni-
verso escolar, em especial aquelas marcadas pela pauta da diversidade e da
inclusão cultural – também uma agenda política – vem causando fortes im-
pactos nas realidades escolares. Há repercussões sensíveis advindas dessa in-
corporação, como a criação de cenários inclusivos de pertencimento, com

Junho de 2012 91
Júnia Sales Pereira e Luciano Magela Roza

positivações do passado e do real-histórico, que possibilitam tornar evidente


o direito à história (negado a populações afro-descendentes em narrativas his-
tóricas canônicas) mediado pela capacidade de lembrança (nesse contexto em
que há legítimo e complexo uso político e pedagógico da memória).
Há reações diversas no contexto escolar contemporâneo a essa introdução
nos currículos das dimensões da história e da cultura afro-brasileiras (na rela-
ção com a memória), também com evidenciação de conflitos históricos que,
sabemos, estão na agenda. Uma das mais fortes tensões deste período pode ser
visualizada por meio da negativa de comunidades de pais e responsáveis, que
se posicionam contrárias à introdução de conteúdos da história e da cultura
africanas e afro-brasileiras nos currículos escolares. Motivadas por pressupos-
tos morais e religiosos, essas comunidades expressam receio de que crianças e
jovens estejam expostos a proselitismo religioso ao estudarem ou entrarem em
contato com manifestações tradicionais africanas e afro-brasileiras. Haveria,
junto a essa postura, resquícios de uma noção de história como narrativa pre-
sa aos cânones?
Outra dimensão diz respeito ao fato de que a obrigatoriedade do ensino
de história e cultura africanas e afro-brasileiras é resultante de lutas sociais
históricas que culminaram, no presente, na legítima agenda afirmativa.3 Há
reconfigurações no ensino de história resultantes dessa agenda que, certamen-
te, vêm positivar a silenciada e/ou sub-representada história africana e afro-
-brasileira. Pressões postas no tempo presente, sobretudo aquelas advindas do
combate ao racismo, forçam a uma reconfiguração das narrativas históricas
com repercussões nas formas de abordagem da história do Brasil. Estamos
diante, certamente, de uma reescrita da história e dos usos e leituras do passa-
do possibilitadas pela produção dessa área, em especial por meio do ensino de
história, forçada pela agenda antirracismo.
Há contraface dessa dimensão: os temores e medos resultantes de um
processo que envolve dores, ressentimentos e movimentos de positivação da
memória e da história africanas e afro-brasileiras, com sensível secundarização
de aspectos históricos que envolveram essas histórias.4
Apresentamos proposta de abordagem de aspectos e dinâmicas da histó-
ria afro-brasileira que podem ser de interesse para o ensino de história. Para
isso, consideramos aqueles que podem ser abordados significativamente para
desenvolvimento de visões positivadas e críticas da história afro-brasileira,

92 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


O ensino de história entre o dever de memória e o direito à história

avaliando aspectos significativos e elementos de tensão presentes na seleção e


abordagem dos temas dessa história.

Transformação das práticas docentes:


movimentos, tensões e perspectivas

A reconfiguração curricular, por meio da flexibilização, favorece a intro-


dução de práticas culturais afro-brasileiras como componentes curriculares, o
que vem ocorrendo, com maior evidência, com a introdução da capoeira como
componente formativo nas escolas. Reconhecida como patrimônio imaterial
do Brasil, a capoeira tem sido o elemento cultural presente em muitos projetos
que incluem a abordagem da Lei 10.639/2003.
Uma das tendências deste período tem sido a visibilização. Invisibilizadas
por longos anos, as práticas culturais afro-brasileiras estão cada dia mais fre-
quentes nas escolas. Em Minas Gerais,5 especialmente os Congados e as Folias
de Reis6 são convidados à realização de apresentações culturais e à exposição
de sua história nas salas de aula e em eventos (sobretudo aqueles realizados
por ocasião do 20 de Novembro). A visibilização é uma das maneiras de evi-
denciar uma ruptura com o silenciamento social e com a marginalização cul-
tural por meio do currículo escolar. Esse comparecimento tem se realizado,
muitas vezes, em associação com a atuação dos centros culturais e grupos
culturais locais e por meio da ação e do protagonismo de professores (muitas
vezes, vozes isoladas).
Vale notar que as manifestações afro-brasileiras como Congados, Reisa-
dos e outras como Candomblé e Umbanda estão também entre aquelas que
vêm provocando rejeições em setores das comunidades escolares que expres-
sam o pressuposto do caráter laico da educação e a rejeição a todo e qualquer
indício de manifestação de cunho religioso nas escolas. Um dos dilemas en-
frentados por professores, nesse contexto, vem sendo, neste caso, o de abor-
dagem dessas manifestações – e a enunciação de seu direito à história e à me-
mória como expressões legítimas das culturas africanas e afro-brasileiras – sem
ferir o direito à liberdade religiosa e à proteção contra o proselitismo.
Como pronunciar as faces culturais do Congado, enunciando-o como
manifestação afro-brasileira significativa para compreensão da história e da
memória afro-brasileiras e, portanto, do Brasil, garantindo-se às crianças e aos

Junho de 2012 93
Júnia Sales Pereira e Luciano Magela Roza

jovens a liberdade religiosa? Como, ao mesmo tempo, educar famílias e socie-


dade para essa renovada abordagem da história, por meio da educação pauta-
da pelo pluralismo cultural e pelo direito à memória? Como abordar práticas
culturais afro-brasileiras sem considerar seus aspectos históricos, sua consti-
tuição como prática social e cultural resistente às dominações e exclusões, e
considerando as afirmações culturais feitas no processo da história? Como
pautar propositivamente a agenda antirracista na abordagem da Lei
10.639/2003 de forma a educar para as relações étnico-raciais na escola, sem
incorrer no risco da imposição identitária?
Outro dilema acerca das estratégias de visibilização das manifestações
culturais de grupos historicamente silenciados, negados e/ou sub-representa-
dos no currículo escolar relaciona-se aos riscos da seleção de abordagens de
tais práticas sociais. Conforme alerta Sacristan (1995)7 ao analisar as vozes
ausentes na seleção da cultura escolar na Espanha, há um relativo risco da
seleção de perspectivas limitadoras ao tentar-se incorporar referenciais cultu-
rais a priori excluídos do contexto escolar. Tais riscos explicitam-se em pers-
pectivas focalizadas na folclorização, superficialidade, banalidade, exotismo,
alegorização e estereotipagem, tornando-se assim problemática a visibilização,
assim como seu oposto. A essa opção Sacristan denomina de “currículo turís-
tico”, para dizer da manutenção de abordagens convencionais no currículo
oficial seguidas da introdução folclorizada, secundarizada e banalizada de “as-
pectos, itens, elementos isolados ou pinceladas” de conteúdos culturais silen-
ciados, movimento não seguido por uma revisão ampla e sistêmica de concep-
ções que, a nosso ver, perpetuam o colonialismo e o eurocentrismo,
estigmatizando grupos, práticas culturais e histórias antes silenciadas, agora
evidenciadas por meio da estereotipia.
Pretendemos apresentar, aqui, discussão situada no contexto de emersão
da Lei 10.639/20038 e de sua prática nas escolas, propondo análise de aspectos
que envolvem, sobretudo, a abordagem de manifestações culturais como o
Congado e a Folia de Reis, considerando perspectivas de abordagem, cuidados
observados por docentes e alternativas significativas para uma história e uma
cultura afro-brasileiras na escola.
A seguir, apresentamos estratégias e movimentos necessários à aborda-
gem das práticas culturais afro-brasileiras nas realidades educacionais, mais
especificamente através do ensino de história e dos diálogos interdisciplinares.

94 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


O ensino de história entre o dever de memória e o direito à história

Consideramos apenas inicial esta análise que pretende problematizar os


mecanismos pelos quais se realizam a abordagem e a experiência da história e
da cultura afro-brasileiras e também favorecê-las propositivamente. Estamos
em diálogo com a legislação proponente da introdução e obrigatoriedade do
ensino de história e cultura africanas e afro-brasileiras (e também indígena,
embora esta última não tenha sido eminentemente privilegiada nas análises
aqui realizadas). Estamos em diálogo, sobretudo, com as práticas docentes,
evidenciando em que horizontes de perspectiva se realizam essas práticas, com
positividades e problemáticas enfrentadas no cotidiano por professores.

Rodas de Conversa, atuações, experiências sociais


e dos estudantes e abordagem de objetos culturais

A conversa está na centralidade do estudo e da experiência da história e


da cultura afro-brasileiras. A palavra dos mestres vem chegando às escolas.
Porta-vozes de uma tradição viva, os mestres de Congado, de Folias e outras
manifestações vêm a cada dia oferecendo sua palavra à curiosidade de crianças
e jovens que, desde a escola, entram em contato com as práticas culturais afro-
-brasileiras. As rodas de conversas que reúnem mestres de Congado e Reisado
e estudantes favorecem a troca intergeracional, o uso da palavra como elemen-
to mediador e a manutenção de uma tradição pelo som, graças à força e à ca-
pacidade de fala. O ato de fala põe em movimento, nessas rodas, as biografias
dos envolvidos, as curiosidades e disposições para a escuta, a capacidade de
enunciar as histórias silenciadas e a capacidade de lembrança. Há envolvimen-
tos, trocas, dúvidas. A roda é um desenho ritual que possibilita que, em posição
de escuta e de fala, diferentes sujeitos possam pensar, sentir e se emocionar
com as práticas culturais afro-brasileiras, e com as lutas e afirmações que elas
convocam.
O estudo das biografias de sujeitos envolvidos em práticas e manifestações
culturais afro-brasileiras – mestres de Congado, por exemplo, estudantes e
professores – pode ser um recurso valioso para abordagem de aspectos cultu-
rais, subjetivos e sociais. A criação de lugares de fala, e de vozerio, para além
de focar em sujeitos anteriormente ‘à margem da história’ na tentativa de cria-
ção de um contradiscurso, coloca-se como um recurso substantivo para o con-
fronto entre discursos acerca do que vem sendo produzido sobre estes, que

Junho de 2012 95
Júnia Sales Pereira e Luciano Magela Roza

circula no contexto escolar e fora dele, e seus próprios discursos, problemati-


zando as representações sobre suas práticas geralmente silenciadas e obscure-
cidas pelo desconhecimento e pelo preconceito construído historicamente.
Nas rodas de conversa podem ser discutidos aspectos que envolvem a
oralidade e a gestualidade, em sua dupla dimensão, como prática social cons-
titutiva da própria atuação através da movimentação corpórea (dança e gestos)
e da execução de sons (cantos, sonoridades e músicas tocadas). A gestualidade
e a oralidade são meios de transmissão dos saberes aos iniciados presentes
nesses referenciais culturais afro-brasileiros, ponto especial para aprendizagem
da cultura pelos alunos. Há, nesse cenário, a palavra dos mais velhos junto à
palavra dos mais novos. Há movimentos de escuta e de palavra que convocam
as ancestralidades e as razões do tempo presente.
O convite a dois mestres de Congado para uma conversa na escola pode
ser um dos recursos mais valiosos para essa experiência envolvendo palavra e
memória, já que os relatos entre contemporâneos e pares podem ser mais
potentes do que entre gerações diferenciadas.
As rodas de conversa podem valorizar a consciência grupal por meio da
enunciação de vestígios das memórias dos foliões e dos congadeiros. Esse exer-
cício é possível pela valorização dos discursos dos mestres, em que indícios
mostram como memórias, artes de fazer e tocar instrumentos, construir os
artefatos acionados nas atuações, os valores introduzidos pelos antepassados,
bem como toda a ritualística em torno da atuação, são passados oralmente
entre o grupo, como troca intergeracional. Folias e Congados recortam cidades
e lugarejos, colorindo paisagens e criando novas paisagens sonoras. As con-
versas podem tornar-se momentos de relato dos lugares de caminhada, can-
toria, reverência, silêncio, coroação etc. Os alunos podem criar mapas de ci-
dade com os trajetos de um Congado, identificando toda sonoridade e
gestualidade nele presentes. Não faltará então um inventário dos instrumentos
de percussão e melodia, bem como das letras de música e da musicalidade, seu
ritmo e harmonia, postos em movimento nos momentos de festejo e rito. No
diálogo com os mestres, esses componentes de história, rito e beleza poderão
ser conhecidos e apreciados.
As conversas podem possibilitar que os alunos conheçam o figurino e
paramentos dos Congados e Reisados e todos os cuidados envolvidos na con-
fecção de estandartes, coroas, chapéus, adornos, apliques, e toda sorte de rigor

96 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


O ensino de história entre o dever de memória e o direito à história

performático que marca as guardas de Congo e as Folias de Reis. No caso das


Folias, é muito interessante descobrir e estudar vinculações que triangulam
África, Brasil e Portugal, com influências em que estão componentes afro-
-brasileiros e indígenas. Para os alunos congadeiros pode ser ótima experiên-
cia de apresentação de suas percepções, aprendizagens e registros.
As conversas podem – e devem – valorizar sujeitos e sua sabedoria, sua
consciência de estar no mundo e sua importância para um grupo, uma comu-
nidade, a importância do festejar e das louvações para quem deles participa e
com eles colabora. O recurso à palavra falada põe em cena o agente histórico,
todo ele considerado sujeito de ação e de capacidade de fala e de elaboração de
narrativas. Esta questão traz à baila o tema da agência histórica, muito rele-
vante quando o assunto diz respeito a sujeitos e grupos sociais silenciados,
invisibilizados ou estereotipados historicamente. Esta é uma oportunidade
muito valiosa para fortalecimento da empatia entre estudantes e mestres, com
repercussões muito significativas para compreensão das expansões necessárias
à noção de ‘sujeito da história’ e à compreensão de suas práticas culturais.
Ao fazer recair a centralidade do ato educativo sobre a palavra falada e
ouvida, os professores também afirmam alterações na compreensão do que são
as culturas afro-brasileiras. Abordadas por sua permanência no presente, como
tradições vivas, e disponíveis nos arcabouços culturais vigentes, sujeitos às
interpretações, aos pontos de vista e ao crivo das biografias. Há uma dimensão
experiencial nas circunstâncias de fala e escuta, sendo ambos os movimentos
educativos para todos os envolvidos numa roda.
A troca de experiências entre estudantes e mestres pode proporcionar o
exercício do deslocamento, movimento que exige ir de um ponto a outro, al-
terando concepções anteriores e possibilitando que todos os envolvidos com-
preendam essas práticas culturais sob outras óticas.
O estudo das práticas culturais exige, do docente, uma compreensão dos
rituais de encenação, performance, as atuações públicas, as intervenções e os
ritos em processo de que se constitui a cultura – no plural. “As práticas cultu-
rais são, mais que ações, atuações” (Canclini, 2011, p.283). Representam, si-
mulam as ações sociais, mas só às vezes operam como uma ação – nunca iso-
lada. Isso acontece não apenas nas atividades culturais expressamente
organizadas e reconhecidas como tais; também os comportamentos ordinários,

Junho de 2012 97
Júnia Sales Pereira e Luciano Magela Roza

agrupados ou não em instituições, empregam a ação simulada, integrada, e a


atuação simbólica.
O estudo das similaridades rituais entre Congados no Brasil (inclusive
suas variantes regionais e locais) e outros ritos africanos e portugueses pode
ser bastante significativo. O estudo das peculiaridades de Congados e Folias
nas localidades também pode trazer elementos significativos para apreciação
do quanto há de modificação e protagonismo na criação cultural vinculada ao
local.
Esse estudo pode ser compreendido pelo docente como uma possibilida-
de significativa de discussão a respeito de como esses grupos apropriam-se da
memória e criam leituras do passado da existência de uma suposta ancestrali-
dade. Como ressignificam a África ancestral e de que maneira colocam-na, no
presente, em atuação? O rito público é, desta perspectiva, forma de encenação,
no presente, de dilemas, problemas e verdades que, no tempo, um grupo pre-
tende perpetuar de forma performática. O rito público é, então, recortado por
interesses e intencionalidades do presente e leva em consideração os elementos
históricos constitutivos de sua memória e identidade, fazendo-os operar no
presente como atuação simbólica.
Neste caso, o estudo das performances emancipatórias, das positivações e
das atuações pode ser elucidativo de agendas postas no presente (em diálogo
com o passado histórico), como ocorre com a associação, na atuação de grupos
congadeiros, da luta antirracismo, e, nos grupos de Folias de Reis, de laços
identitários e sociais comunitários.
Ao priorizar as atuações o docente poderá compreender o Congado e a
Folia como ritos complexos que envolvem ações, doações e convocações e se
configuram por meio de atuações públicas em que há coesão social, afirmação
cultural e elementos históricos – do presente e do passado – em movimento. Há
marcas de ancestralidade e há, sempre, recriações permanentes no presente, há
respostas a pulsações da vida em curso. Assim, as atuações são ritos dinâmicos,
mutáveis e que incorporam, não sem tensões, os registros do cotidiano.
Esse tipo de abordagem supera orientações comumente vistas em abor-
dagens escolares nas quais o Congado e o Reisado surgem como manifestações
culturais presas ao passado escravista, ou festas religiosas congeladas no tem-
po, registros de uma ancestralidade mítica ou atemporal desvinculada do real-
-presente. Diferentemente, o que prevemos é uma abordagem marcada pela

98 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


O ensino de história entre o dever de memória e o direito à história

compreensão dos diálogos temporais e pela circularidade cultural, em que os


ritos e celebrações, como os Congados e as Folias de Reis, não podem ser es-
tudados como bens estáveis ou mantidos na história por uma relação linear
com a África. Orientamo-nos pelo pressuposto de que não se trata de “uma
cultura negra fundadora ou originária que aqui tenha se instalado”.9 De acor-
do com Sodré (2005, p.99), a ordem original (africana) foi reposta, sofrendo
alterações em função das relações entre negros e brancos, entre mito e religião,
mas também entre negros e mulatos, e entre negros de etnias distintas.
Comparando-se às produções musicais direcionadas para contextos di-
versos, a música voltada à experiência de ritos sagrados, como a música con-
gadeira, mostra-se mais estável em relação às transformações.10 Há estabilida-
des, evidentemente. Apesar das estabilidades, a mutabilidade e a
processualidade são a marca significativa das atuações culturais, sobretudo
quando não há rigidez nos processos de transmissão intergeracional.
O estudo dos artefatos culturais do Congado, como tambores, cetros,
coroas, vestimentas e instrumentos melódicos, pode ser muito significativo em
aulas de história, conquanto estejam também inseridos numa abordagem que
prevê a inventividade musical desses grupos, a incorporação de novas sonori-
dades a cada experiência vivida e a gestualidade sempre criativa que envolve o
Congado. Há diálogo entre tradições e inventividade no Congado, e esta pode
ser uma das maneiras de abordar os mestres do Congado em Rodas de Con-
versa com os alunos. O que se altera no tempo? O que permanece? O que se
repete? Como se transmite?
O estudo dos objetos de Congados e Folias suscita, portanto, rica aborda-
gem da dinâmica cultural envolvida nas práticas – práticas que envolvem usos
culturais, gestualidade, ritos de memória, ritos de louvação, encenações que
remontam a tradições africanas, musicalidades recortadas por hibridismos,
falares, fazeres e, também, uma culinária que está presente nos eventos e pe-
regrinações. No caso das Folias, a peregrinação seguida da oferenda de alimen-
to é também uma constante, o que envolve entender as generosidades e os
anúncios dos festejos.
No caso dos Congados, vale o estudo das transformações pelas quais pas-
sou o ritual de coroação dos Reis como prática que liga o Brasil afro-brasileiro
tanto às tradições portuguesas quanto às africanas, aliás, com diferentes abor-
dagens. No caso das Folias, é significativo o estudo das tradições de desafio de

Junho de 2012 99
Júnia Sales Pereira e Luciano Magela Roza

palhaços, com variações regionais e também no tempo, com variantes latino-


-americanas muito interessantes envolvendo fulgurações de palhaços brincan-
tes e também daqueles marcados pelo horror, pela astúcia e pelo deboche.
É, portanto, muito significativo estudar as transformações pelas quais
passaram os Congados e as Folias de Reis no tempo e nas mais diferentes rea-
lidades. O que muda com a chegada de novas gerações? O que dizem os mais
novos? O que dizem os mais velhos? Quais registros foram extintos? E há di-
ferenças de gênero na participação nos Congados e Folias? Há diferenças etá-
rias? E há encenações sociais diferenciadas? E o que permanece, repete? Inte-
ressa, no caso do Ensino de História, estudar sobretudo essas movimentações
no tempo/espaço pelas quais passam as práticas culturais, entendendo-as em
sua dinâmica e mutabilidade, e também em suas permanências.
Os objetos, dessa forma, não são elementos isolados. Eles são vistos não
como sinais ou vestígios fragmentados ou soltos, mas articulados a práticas
culturais arraigadas (ou novas), sempre relacionadas. Os objetos ocupam, nas
encenações e festejos, lugares relacionais – eles estão postos em relação e na
dinâmica do festejar e/ou do louvar.
Conhecemos boas experiências nas quais o estudo das manifestações afro-
-brasileiras, de sua história e permanência no presente, ocorre de maneira
integrada a outras abordagens no currículo e não em eventos à parte (como
frequentemente ocorre com o isolamento da temática no 20 de Novembro).
Mesmo que significativa, a abordagem, se restrita a esse dia, pode sugerir uma
nova forma de estigmatização de conteúdos afro-brasileiros, abordados por
força de lei, mas não incluídos no estudo do processo histórico que constituiu
e constitui o Brasil.
O pluralismo na abordagem da história e o seu estudo por meio das con-
trovérsias presentes às temáticas em análise parece ser o melhor caminho para,
por um lado, romper com invisibilizações e, por outro, sugerir concepções de
cultura marcadas pelo respeito à diversidade.
A reserva do tema a datas comemorativas ou a eventos concretiza um
currículo orientado pela estereotipia, em que os temas clássicos, universais e
canônicos se realizam no cotidiano, e os temas exóticos, reservados às minorias
ou aos diferentes, são cumpridos por meio de eventos que, muitas vezes, não
têm relação com a experiência educativa corrente.

100 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


O ensino de história entre o dever de memória e o direito à história

Evidentemente, a abordagem em eventos pode ser uma das boas estraté-


gias por meio das quais se vence o silenciamento, e pode também gerar ressig-
nificações valiosas a respeito da trajetória, história e cultura afro-brasileiras.
Mas o que se supõe, em última análise, é uma alteração e revisão das ten-
dências colonialistas que marcam os contextos educacionais e os currículos
escolares. Trata-se de algo mais subterrâneo, que tem relação com a superação
do eurocentrismo e dos fundamentos da hierarquização que durante séculos
informou os currículos. Essa superação é um dos emblemas mais caros às lutas
pela renovação necessária ao Ensino de História há décadas.
Experiências pedagógicas nas quais a centralidade recaia sobre a vivência
dos alunos em práticas culturais apresentam-se como um procedimento sig-
nificativo para a compreensão de aspectos da cultura afro-brasileira, pelo fato
de que as possibilidades de percepção de uma cultura podem, também, se dar
pela fruição estética, pela experiência corporal, pelo desenvolvimento de ha-
bilidades musicais, pela experiência da conversa e pela vivência das manifes-
tações culturais.
O usufruto das sonoridades, da gestualidade e dos ritmos, bem como o
direito à memória dos sons e às visões dos coloridos culturais, entre outros
aspectos, podem ser explorados como indícios para aprendizagem de saberes
sociais que circulam nas atuações culturais, e ainda podem ser mote para in-
trodução de diálogos que ampliem a reflexão entre estética e política. Consi-
deramos relevantes as experiências de aprendizagem da cultura como no caso
das oficinas e aulas de capoeira (por exemplo) em que há exploração dessa
dimensão corporal da aprendizagem e dos significados históricos e políticos
de tais gestos, ritos e trocas.
Exatamente porque a configuração de atuações culturais afro-brasileiras
requer o mecanismo da participação, da convivência e da ritualização, os pro-
fessores não podem ignorar que os alunos sintam-se convocados à experiência
e que, com as negociações possíveis, venham a usufruir dessas atuações como
sujeitos copartícipes.
O estudo das potencialidades educativas do Congado e do Reisado pode
ser fecundo para a problematização das noções de identidade e cultura afro-
-brasileiras na medida em que a abordagem dispensada tente considerar os
aspectos de similaridades e diferenças entre elas. Tal movimento pode ser in-
teressante ao apresentar as diferentes formas de sentir-se e identificar-se como

Junho de 2012 101


Júnia Sales Pereira e Luciano Magela Roza

negro participante de um grupo de manifestação popular e negra no Brasil do


século XXI. Essa dimensão identitária possibilita discussão sobre a noção de
identidade, que é relacional, instável, social e historicamente construída, su-
gerindo a oposição com noções estáticas e essencializadas de identidade e cul-
tura.11
No âmbito da cultura, essa perspectiva também pode ser significativa ao
focar as manifestações culturais consideradas afro-brasileiras, seja por supos-
ta raiz identitária africana transposta para os territórios da diáspora, seja pelo
poder criativo dos africanos e seus descendentes, em diálogo com culturas
indígenas, em retrabalhar e criar marcos identitários em tais territórios.
O relato de crianças congadeiras na escola sobre sua experiência cultural
é extremamente valioso e positivador, e pode auxiliar a romper preconceitos
para com essa prática cultural. Pesquisas apontam que crianças e jovens con-
gadeiros têm receio de compartilhar sua experiência na escola,12 em função do
preconceito para com essas manifestações, o que revela que a escola é um dos
ambientes de manutenção de estereotipias e preconceitos culturais no que
toca à história e à cultura afro-brasileiras. É digno de nota que as mesmas
crianças que manifestam esse receio têm orgulho em compartilhar socialmen-
te suas experiências envolvendo o Congado (Oliveira, 2011).
Outras manifestações da produção cultural negra no Brasil e os seus trân-
sitos e diálogos com outros territórios podem contribuir para a compreensão
das múltiplas formas de uso, apropriação e criação das culturas afro-brasileiras
e as possibilidades de configuração e reconfigurações identitárias a partir daí.
Assim, a identidade negra poderia ser compreendida no plural com base na
multiplicidade de aspectos trazidos pelos africanos de diversas partes da Áfri-
ca e nos múltiplos encontros desses com outros africanos, europeus, indígenas
etc. em diversos locais no Brasil. Dessa forma, parte da relevância da identida-
de afro-brasileira se encontraria nas recriações e recomposições das africani-
dades na diáspora.
Essa perspectiva proporcionaria o deslocamento do foco das noções de
cultura e identidade de origem, indiferentes à mudança, e recairia sobre o
poder criativo dos africanos e descendentes em suas experiências diaspóricas,
dando relevo à fluidez e heterogeneidade das identidades negras e afro-brasi-
leiras,13 reagindo ao caráter homogeneizador muitas vezes atribuído à identi-
dade afro-brasileira e colocando os afro-brasileiros, merecidamente, na con-

102 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


O ensino de história entre o dever de memória e o direito à história

dição de criativos inventores, apesar do contexto de pressão, privação e


constrangimento cultural sofridos, e não como meros reprodutores de uma
cultura ancestral supostamente ‘pura’ e ‘autêntica’.
Porém, há que se compreender que a afirmação de uma identidade negra,
como entidade que congrega todas as diferenças identitárias e culturais de que
se compõe a identidade negra, é também recurso político e pedagógico utili-
zado na luta afirmativa contemporânea. Mesmo afirmando-se uma identidade
negra, não se supõe serem os mecanismos identitários tão rígidos, unívocos
ou pouco afeitos à transformação. Mas supõe-se uma base comum a partir da
qual memórias e histórias são convocadas e entram em jogo nos processos
políticos e pedagógicos. Supõe-se uma identidade negra não exatamente afi-
nada a uma identidade africana original, mas a uma identidade negra com as
tradições vivas que no Brasil contemporâneo se realizam e se deslocam. Na
prática pedagógica o risco apontado pela unificação identitária é o de essen-
cialização da cultura. Mas a potencialidade disso é que se apresenta a identi-
dade negra num cenário relacional, possibilitando investigar o Brasil e sua
história com base no compromisso com a superação do racismo ainda vigen-
te. Esta agenda, que envolve uma razão histórica, uma dinâmica socialmente
viva e um compromisso com as gerações de crianças e jovens em formação,
enuncia a face axiomática do Ensino de História, com todos os seus emblemas.

O estudo de manifestações culturais afro-brasileiras


convoca razões de memória e de história

Todos sabemos que boa parte das manifestações culturais afro-brasileiras


são constituídas sob a égide do catolicismo popular e/ou de forma híbrida.
Vigiadas pela Igreja e pelo Estado, desautorizadas e desqualificadas por parte
da sociedade, tuteladas e, muitas vezes, reconfiguradas, essas manifestações
são, contemporaneamente, resultantes de processos de negociação cultural e
religiosa.14
O estudo dessas imbricações, e das negociações feitas, na história, pode
ser um primeiro passo para que estudantes e professores venham a compreen-
der a trajetória histórica das práticas culturais, suplantando preconceitos co-
mumente manifestos em relação a elas.

Junho de 2012 103


Júnia Sales Pereira e Luciano Magela Roza

Não é fácil suplantar esses preconceitos e também os receios, manifestos


muitas vezes por pais e responsáveis, de que esteja ocorrendo proselitismo
religioso e cultural na abordagem da história e da cultura africanas e afro-
-brasileiras em práticas educativas.
Compreendemos que a relação escola-família pode ser orientada pelo
pressuposto do diálogo em via de mão dupla. Ela pode esclarecer aspectos da
experiência escolar e ainda ser uma forma através da qual a família passa a se
compreender como educadora. O pressuposto do respeito à diferença e à alte-
ridade é reafirmado, fazendo-se da escola ambiente plural, livre de estereotipia
e de exclusividades, também de negociações com visões que a elas trazem as
famílias. Mas é também importante apresentar às famílias a necessária aber-
tura à pluralidade de histórias e memórias de que se faz o Brasil.
Compreende-se que há proselitismo religioso e cultural quando, no estu-
do de uma manifestação, temática ou assunto, o professor supõe estarem os
alunos postos diante de um modo de vida, de uma verdade ou de um conjun-
to de crenças a serem assimilados como normativos ou mais recomendáveis.
Ao invés de uma postura investigativa, o que essa abordagem favorece – e, em
alguma medida exige – é uma adesão. Comumente associa-se ao proselitismo
o solipsismo, que é uma postura que supõe ser a verdade de uma pessoa ou
grupo, ou de um professor, a única verdade passível de aceitação e confirmação
– a verdade de uma pessoa é compreendida como a única forma de verdade
vigente, e somente são consideradas as experiências orientadas por essa ver-
dade.
Uma das maneiras, assim nos parece, de suplantar preconceitos em rela-
ção à abordagem da história e da cultura afro-brasileiras consiste em orientá-
-la pelo pressuposto pluralista, e fazê-la com finalidades educacionais, reali-
zando-as no universo de abordagem da história em que estão contrastadas,
confrontadas e em diálogo outras formas de abordagem da história e da cul-
tura, sem marcas doutrinatórias, sem proselitismo ou imposições identitárias,
morais ou políticas.
O estudo da cultura e da história afro-brasileiras está orientado pelo in-
teresse e por sua relevância histórica, pela investigação da cultura, valorização
e positivação cultural, pelo direito à história e pelo dever de memória, como
ocorre com outros conteúdos no currículo. Mas não é possível ignorar que o
estudo da cultura e da história afro-brasileiras mobiliza o real-presente, con-

104 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


O ensino de história entre o dever de memória e o direito à história

vocando reflexões que vão da história à memória em regime de tensão e inte-


resse postos no presente. Dentre as mobilizações na perspectiva do real-pre-
sente, destaca-se a presença das leituras e usos do passado e da construção de
memórias acerca das lutas históricas expressas nas manifestações contempo-
râneas.
Como já dissemos, as lutas históricas, como o racismo, estão traduzidas
nas atuações contemporâneas afro-brasileiras. Compreendemos que essas lu-
tas se realizam no bojo de uma “redefinição e alargamento dos princípios da
cidadania e do republicanismo” em processo na contemporaneidade. A agen-
da afirmativa provoca e pressiona a reconfiguração do direito à memória como
um dos pressupostos republicanos, ao pressupor e exigir uma compreensão
pluralista de República não relacionada às memórias canonizadas, mas àquelas
comprometidas com a ampliação da participação política nos mecanismos de
exercício da cidadania e com a diversidade radical com que se realiza a expe-
riência brasileira contemporânea.
Consideramos que está em curso uma reconsideração da história do Bra-
sil, por meio do Ensino de História, com pêndulo em duas direções. Por um
lado, em direção à positivação, operação necessária, o que vem forçando à
superação de abordagens da história e da cultura afro-brasileiras, na escola,
especialmente aquelas marcadas por tons vitimizantes ou pautadas pela vio-
lência e sub-representação. A positivação envolve, nesse contexto, tanto a afir-
mação do dever de memória convocado por populações e culturas sub-repre-
sentadas ou silenciadas, quanto o direito à história por meio de um ensino de
história renovado. Trata-se de uma reconfiguração do passado histórico for-
çada pela agenda contemporânea, com efeitos de memória e de história no
tempo presente. Esse movimento de positivação pode gerar, na ação pedagó-
gica, efeitos significativos para elevação da autoestima de estudantes negros,
como evidenciam pesquisas recentes. Esse movimento de positivação, por
outro lado, também pode resultar em abordagens idealizadas e mitificadas da
história afro-brasileira e africana. A reconfiguração do passado por uma agen-
da do tempo presente resulta até mesmo em silenciamentos, como no caso da
face dolorosa que envolve a história da escravidão, algumas vezes não aborda-
da em aulas de história em função de um compromisso com a formação da
autoestima de jovens e crianças negras que, no tempo presente, aprendem,
sentem e pensam a história a partir também de sua inserção social contempo-

Junho de 2012 105


Júnia Sales Pereira e Luciano Magela Roza

rânea. Sendo assim, o dever de memória revela a dubiedade do ensino de his-


tória para a abordagem das culturas afro-brasileiras e africanas: a positivação
(e seus efeitos de sentido) e a idealização (também ressonante nas experiências
de estudantes e professores). De que memórias tratamos? E que histórias con-
vocamos quando o direito ao passado é reclamado? De que maneira se resol-
verá, no Ensino de História, a tensão desse pêndulo entre o passado e o pre-
sente, entre lembrar e esquecer, entre a existência e a história? Não sabemos.
O que consideramos é que certamente a agenda afirmativa está forçando
a uma reconfiguração das memórias e histórias afro-brasileiras, com repercus-
sões na ação de professores de história. Há revisões em curso. Positivações e
visibilizações, como já abordamos. E silenciamentos. Há receio manifesto, por
parte de alguns professores, da repetição de abordagem da história brasileira
em seus aspectos violentos e cruéis, como foi o processo escravista. Mas, ao
recear a violência histórica constitutiva do Brasil, suprime-se o estudo da his-
tória da escravidão no Ensino de História. Pratica-se o falseamento histórico?
Não sabemos ao certo qual será o ponto de equilíbrio que os professores,
necessariamente, terão de alcançar. O dever de memória não poderá impedir
o direito à história. O direito à história, com todas as faces dessa história que
envolveu lutas, resistências, submissões e violências. Algumas lutas que ainda
vigem, sob novas roupagens.
Como bem alertaram Kênia Rios e Francisco Ramos,

os particularismos das lutas de reivindicação da memória impedem visões com-


parativas e avaliações mais amplas e profundas no tempo e no espaço – recurso
básico em qualquer procedimento investigativo da escrita de história.15

Considerações finais

Há ainda muito a discutir, planejar e propor com relação à formação


docente para abordagem de aspectos históricos e contemporâneos das atuações
afro-brasileiras em aulas de história.
Destacamos a relevância das ações voltadas à positivação de memórias e
histórias, compreendendo o valor assumido pelos mestres, sua sabedoria e
generosidade, sua voz e o vozerio que eles podem produzir em aulas de histó-
ria. Essa é uma tarefa fundamental, a de convocar sujeitos e narrativas nunca

106 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


O ensino de história entre o dever de memória e o direito à história

antes registrados ou valorizados em agendas educativas que são mais que uma
exigência normativa, são atos que correlacionam o direito à palavra à capaci-
dade de lembrar por meio da troca intergeracional.
Além disso, o fato de existirem crianças ou jovens congadeiros, ou inte-
grantes de guardas e folias na escola pode ser um dos recursos mais fortes
para processamento de positivações e visibilizações, pois a escola pode orga-
nizar apresentações e entrevistas com seus grupos, incluindo-os como copar-
tícipes da cultura. Essa é uma das mais poderosas formas através das quais a
escola poderá alterar posturas em face das práticas culturais.
Destacamos o desafio de equilíbrio entre a visibilização de histórias e a
sua necessária abordagem investigativa e problemática, sem subterfúgios ou
silenciamentos. E com o direito ao encantamento, à expressão de memórias e
às inquietações e curiosidades que novas gerações trazem.
À abordagem da história estão presentes os emblemas de sua confecção,
narrativas arbitradas pela pesquisa, ancoradas em investigação documental e
arbítrios. O ensino de história não pode prescindir de uma análise da invenção
histórica, do processo de escrita da história com suas eleições. Em função dis-
so, não é possível admitir o impedimento de estudo da história nem tampou-
co a sua mitificação. Mas é necessário convocar a palavra dita, ressonante, a
palavra dos mestres, e a sua gestualidade e também os movimentos narrativos
dos rituais celebrativos, que passam a compor o universo de fontes de estudo
da história. Há, certamente, alargamento das margens que delimitavam o con-
ceito de fontes para o estudo da história nessa nova dinâmica educativa.
Há correlação entre paisagens sonoras e fulgurações gestuais, encenações
e performances que reúnem história, agenda política contemporânea e expres-
sividades que atravessam tempos e se alteram dinamicamente nas atuações
públicas de Congados e Reisados. O ensino de história pode se realizar reunin-
do essas dimensões estéticas, sensíveis, culturais e políticas, fazendo dos diá-
logos temporais e espaciais os motes para reflexão marcada pela compreensão
da mutabilidade da cultura e pela seleção histórica. Um jogo de temporalidades
que se expressa na dinâmica de experiência da cultura da qual os alunos tam-
bém participam. Trata-se de uma dinâmica em que gesto, palavra, ritualidade,
ancestralidade, sonoridades e silêncio são profundamente educativos.

Junho de 2012 107


Júnia Sales Pereira e Luciano Magela Roza

O que apresentamos, portanto, são potencialidades e reflexões para o es-


tudo e experiência de um Brasil afro-brasileiro no qual memória e história
atuam nem sempre em consonância.
Estamos diante de desafios da formação e atuação docente num cenário
que supõe alargamento do que se considera fonte para o estudo da história,
convocando dimensões experienciais do processo educativo e que é problemá-
tico e instigante, sem receitas prévias num horizonte amplo de possibilidades
(per)formativas.

NOTAS

1
ABREU, Martha. Cultura política, música popular e cultura afro-brasileira: algumas
questões para a pesquisa e o ensino de história. In: SOIHET, Rachel; BICALHO, Maria
Fernanda B.; GOUVÊA, Maria de Fátima S. (Org.) Culturas políticas: ensaios de história
cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005; MATTOS,
Hebe, O ensino de história e a luta contra a discriminação racial no Brasil. In: ABREU,
Martha; SOIHET, Rachel (Org.) Ensino de história: conceitos, temáticas e metodologias.
Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003; MATTOS, Hebe; ABREU, Martha. Em torno das
“Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africanas”: uma conversa com historiado-
res. Estudos Históricos, Rio de Janeiro: Ed. FGV, n.41, p.5-20, 2008.
2
Há reconfigurações no campo do patrimônio, sobretudo com o advento da noção de pa-
trimônio imaterial. Está colocado um novo desafio, não exatamente relacionado à tarefa de
salvaguarda de bens (os artefatos, objetos, edificações), mas de afirmação de um compro-
misso social para que os sistemas e práticas que sustentam os patrimônios imateriais per-
maneçam vivos. Sendo assim, as medidas de salvaguarda e proteção voltam-se à valoriza-
ção dos saberes e do papel social dos detentores e dos transmissores, enfim, dos mestres de
tradições culturais, acompanhada do debate a respeito dos problemas gerados pela musei-
ficação e pela espetacularização do patrimônio, com repercussões nos processos educati-
vos. CHOAY, Françoise. As questões do patrimônio: antologia para um combate. Lisboa:
Ed. 70, 2011. GONÇALVES, J. R. O patrimônio como categoria de pensamento. In:
ABREU, Regina; CHAGAS, Mario (Org.) Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos.
Rio de Janeiro: DP&A, 2003; ORIÁ, Riçado; PEREIRA, Júnia Sales. Desafios teórico-meto-
dológicos da relação educação e patrimônio. Anais eletrônicos do VII Seminário Nacional
Memória, cidades e educação das sensibilidades. Centro de Memória da Unicamp, Campi-
nas (SP), 2012.
3
SANTOS, Sales Augusto dos. A Lei 10.639/2003 como fruto da luta antirracista do Movi-
mento Negro. In: BRASIL. MEC. SECAD. Educação antirracista: caminhos abertos pela
Lei Federal 10.639/2003. Brasília: Secad, 2005. p.21-37.

108 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


O ensino de história entre o dever de memória e o direito à história

4
PEREIRA, Júnia Sales. Reconhecendo ou construindo uma polaridade étnico-identitária?
Desafios do ensino de história no imediato contexto pós-lei 10.639. Estudos Históricos, Rio
de Janeiro: Ed. FGV, n.41, p.21-43, 2008.
5
O Congado e a Folia de Reis, apesar da relativa duração temporal dessas práticas cultu-
rais, são manifestações presentes na contemporaneidade em alguns estados brasileiros,
sobretudo em algumas regiões no interior dos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e
São Paulo. Ver: RIOS, Sebastião. Os cantos da Festa do Reinado de Nossa Senhora do Ro-
sário e da Folia de Reis. Sociedade e Cultura, v.9, n.1, p.65-76, 2006.
6
O Congado e a Folia de Reis são manifestações da cultura popular caracterizadas pelo
hibridismo entre tradições de práticas religiosas e profanas ibéricas, africanas e indígenas.
Em síntese, a Folia de Reis é compreendida no bojo do catolicismo popular como marcada
por danças, procissões e cortejos que representam a viagem dos três Reis Magos em busca
do Menino Jesus. No Brasil foi utilizada pelos jesuítas na catequese, e os rituais usados fo-
ram posteriormente apropriados também pelos negros escravizados e libertos e mestiços
em festas de devoção católica. A Folia de Reis no Brasil assumiu conotações regionais, ex-
pressas por meio da presença de elementos comuns e por aqueles diferentes em cada re-
gião (como palhaços desviantes, brincantes, instrumentos variados). Atualmente, são estu-
dadas como manifestações culturais nas quais se manifestam elementos de culturas negras
e como formas de manifestação de uma memória negra (SOUZA, 2010). O Congado é
entendido como uma manifestação do catolicismo negro desenvolvida a partir do período
colonial, a qual remete suas origens ao cristianismo africano que se segue à conversão do
Reino do Congo. Durante a América Colonial Portuguesa, nas irmandades negras, os afri-
canos e descendentes reconstruíam e criavam novos laços de solidariedade e de identidade
fraturados pela experiência do tráfico e da escravidão. Nesse contexto, os negros no culto
aos santos católicos estabeleciam diálogos e trocas culturais entre elementos e padrões eu-
ropeus de devoção e os de suas próprias concepções religiosas, fazendo que práticas cultu-
rais africanas fossem ressignificadas, mantendo-se vivas e concomitantemente sendo alte-
radas pelo fato de representarem uma manifestação de devoção católica. Ver: AGUIAR,
Marcos M. de. Festas e rituais de inversão hierárquica nas irmandades negras de Minas
colonial. In: JANCSÓ, István; KANTOR, Iris (Org.) Festa: cultura e sociabilidade na Amé-
rica portuguesa. São Paulo: Imprensa Oficial; Edusp; Hucitec; Fapesp, 2001, v.1, p.361-393;
SOUZA, Marina de Mello e. Reis negros no Brasil escravista: história da festa de coroação
de rei congo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002; SOUZA, Luiz Gustavo Mendel. No cami-
nho dos mestres: um estudo de Folias de Reis. Anais eletrônicos da Anpuh-PI, 2010. Dis-
ponível em: www.anpuhpi.org.br/congresso/anais2010/arquivos/s1_Luiz%20Gustavo%20
Mendel%20Souza.pdf; Acesso em: 1 dez. 2011.
7
SANTOMÉ, Jurjo Torres. As culturas negadas e silenciadas no currículo. In: SILVA, To-
maz Tadeu da (Org.) Alienígenas na sala de aula. 6.ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 1995. p.159-
177.
8
Mesmo considerando que a Lei 10.639/2003 foi modificada pela Lei 11.645/2008, estamos

Junho de 2012 109


Júnia Sales Pereira e Luciano Magela Roza

mantendo a primeira, dada a centralidade que ocupa na discussão proposta, e também por
referência às Diretrizes correlatas à lei que orientam as análises.
9
SODRÉ, Moniz. A verdade seduzida: por um conceito de cultura no Brasil. Rio de Janeiro:
DP&A, 2005.
10
LUCAS, Glaura. Diferentes perspectivas sobre o contexto e o significado do congado
mineiro. In: TUGNY, Rosângela Pereira de; QUEIROZ, Ruben Caixeta de (Org.) Músicas
africanas e indígenas no Brasil. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006. p.75-82.
11
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da moderni-
dade. São Paulo: Edusp, 2000; GILROY, Paul. O Atlântico negro. Rio de Janeiro: Ed. 34,
2001; HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2003.
12
OLIVEIRA, Claudia Marques. Cultura afro-brasileira e educação: significados de ser
criança negra e congadeira em Pedro Leopoldo, Minas Gerais. Dissertação (Mestrado) –
Faculdade de Educação, UFMG, 2011. Disponível em: www.bibliotecadigital.ufmg.br/ds-
pace/handle/1843/FAEC-8NPLAL; Acesso em: 10 fev. 2012.
13
SANSONE, Lívio. Negritude sem etnicidade: o local e o global nas relações raciais e na
produção cultural negra no Brasil. Salvador: Ed. UFBA; Pallas, 2003.
14
LUCAS, Glaura. Os sons do rosário: o congado mineiro dos Arturos e Jatobá. Belo Hori-
zonte: Ed. UFMG, 2002; FRANÇA, Cecília Cavalieri. Festa mestiça: o congado na sala de
aula. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011; TINHORÃO, José R. Os sons dos negros no Brasil:
cantos, danças, folguedos, origens. São Paulo: Art Ed., 1988; TUGNY, Rosângela Pereira
de; QUEIROZ, Ruben Caixeta de (Org.) Músicas africanas e indígenas no Brasil. Belo Ho-
rizonte: Ed. UFMG, 2006.
15
RIOS, Kênia Souza; RAMOS, Francisco Régis Lopes. O cultivo da lembrança no multi-
culturalismo: além da memória, mas aquém da história. In: FUNES, Eurípedes; RAMOS,
Francisco Regis Lopes; RIBARD, Franck; RIOS, Kênia Souza (Org.) África, Brasil, Portu-
gal: história e ensino de história. Fortaleza: Ed. UFC, 2010. p.216-228.

Artigo recebido em 20 de janeiro de 2012. Aprovado em 26 de março de 2012.

110 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


“Por uma autêntica democracia racial!”:
os movimentos negros nas escolas
e nos currículos de história
“For an authentic racial democracy!”: the black
movements in schools and in History curricula
Amilcar Araujo Pereira*

Resumo Abstract
O objetivo deste artigo é apresentar al- The aim of this paper is to present some
guns aspectos das histórias dos movi- aspects of the black movement’s histo-
mentos negros no Brasil, assim como ries in Brazil, as well as lead the reader
levar o leitor a refletir sobre a importân- to reflect on the importance of estab-
cia de se estabelecer uma prática de en-
lishing a history teaching practice that
sino de história que contemple as dife-
addresses the different matrices forming
rentes matrizes formadoras de nossa
sociedade. Brazilian society.
Palavras-chave: Brasil; movimento ne- Keywords: Brazil; black movement; his-
gro; ensino de história. tory teaching.

A frase que dá título a este artigo, “por uma autêntica democracia racial!”,
encerra o documento intitulado “Carta Aberta à População”,1 divulgado pelo
então recém-criado Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial
(MUCDR) durante ato público realizado no dia 7 de julho de 1978 nas esca-
darias do Teatro Municipal de São Paulo, em protesto contra a morte de um
operário negro em uma delegacia de São Paulo e contra a expulsão de quatro
atletas negros de um clube paulista. Esse ato público, que contou com a parti-
cipação de lideranças negras de outros estados brasileiros, além de ser um ato
de protesto, tinha o objetivo de criar as bases para a construção de uma orga-
nização que unificasse toda a luta contra o racismo no Brasil. Essa luta vinha
sendo levada a cabo até então por diversas organizações negras espalhadas por
diferentes estados e criadas principalmente a partir de 1974, em meio ao pro-

* Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Av. Pasteur, 250, sala
233, Campus Praia Vermelha. 22290-240 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. amilcarpereira@fe.ufrj.br.

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 111-128 - 2012


Amilcar Araujo Pereira

cesso de abertura política do regime militar, que havia sido instaurado no


Brasil em 1964.
Ainda em julho de 1978, o Movimento teve a palavra ‘negro’ introduzida,
transformando-se no Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação
Racial (MNUCDR). Em 1979, essa organização, que não alcançou seu objetivo
de unificar a luta contra o racismo, passou a ser denominada somente como
Movimento Negro Unificado (MNU), e existe até hoje, com representações em
vários estados do país. Sua formação parece ter sido responsável pela difusão
da noção de ‘movimento negro’ como designação genérica para diversas orga-
nizações e ações construídas a partir daquele momento.2 As organizações negras
criadas a partir da década de 1970 em todo o país, e que formaram o chamado
‘movimento negro contemporâneo’, não foram as primeiras organizações des-
se tipo, como se verá a seguir. Mas é importante ressaltar que elas contribuíram
para a luta por democracia no Brasil, contra a ditadura então vigente, e repre-
sentaram uma mudança significativa na luta específica contra o racismo e por
melhores condições de vida para a população negra em nosso país.
Com pequenas variações, a frase citada está presente em muitos docu-
mentos elaborados por diversas organizações do movimento negro contem-
porâneo. A denúncia do ‘mito da democracia racial’, como um importante
elemento na luta contra o racismo, é uma das características marcantes pre-
sentes nas organizações do movimento negro criadas a partir da década de
1970. Mesmo com a publicação de vários trabalhos de pesquisa demonstrando
a existência de racismo e de grandes desigualdades raciais no Brasil, principal-
mente a partir da década de 1950 com os resultados do Projeto Unesco,3 com
Florestan Fernandes à frente,4 e na década de 1970 com os novos estudos sobre
as desigualdades raciais, ainda hoje a ideia de democracia racial, baseada na
dupla mestiçagem, biológica e cultural, entre as três raças originárias, dificul-
ta a percepção das desigualdades raciais existentes na sociedade, em função
das próprias ideias que ostenta de ‘democracia’ e ‘igualdade’.
A democracia racial, muito associada ao clássico livro de Gilberto Freyre
publicado em 1933, Casa-grande & senzala, tornou-se o centro de construção
da própria identidade nacional na primeira metade do século XX. Durante o
regime militar, quando se constituíram as primeiras organizações do movi-
mento negro contemporâneo, por exemplo, o quesito ‘cor/raça’ foi retirado do
Censo demográfico do IBGE, e o Brasil se apresentava em todos os fóruns

112 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


“Por uma autêntica democracia racial!”

internacionais como uma verdadeira ‘democracia racial’. Vale ressaltar ainda


que eram proibidos quaisquer eventos ou publicações relacionados à questão
racial – que poderiam ser vistos pelo regime como algo que pudesse “incitar
ao ódio ou à discriminação racial” e, segundo o Decreto-Lei 510, de 20 de
março de 1969 em seu artigo 33º, poderia levar à pena de detenção de 1 a 3
anos –, e havia também o acompanhamento de perto, realizado pelos órgãos
de informação do regime militar, das ações do movimento negro que se cons-
tituía em meio a esse contexto político e social.5
A “Carta de Princípios” do MNU, também redigida em 1978, além de
trazer escrita a mesma frase que dá título a este artigo, apresentava outra im-
portante reivindicação que também se tornou característica desse movimento
social na contemporaneidade: a luta “pela reavaliação do papel do negro na
história do Brasil”. Um importante exemplo dessa luta específica foi a cons-
trução, realizada a partir de 1971, em torno do 20 de novembro (data da mor-
te de Zumbi, principal liderança do quilombo dos Palmares, em 1695) como
data a ser comemorada pela população negra no Brasil, em substituição ao 13
de maio (data da abolição da escravatura, em 1888).6 Essa mudança engloba
uma ampla discussão sobre a valorização da cultura, política e identidade ne-
gras, e pode provocar objetivamente uma reavaliação sobre o papel das popu-
lações negras na formação da sociedade brasileira, na medida em que propõe
deslocar propositalmente o protagonismo em relação ao processo da abolição
para a esfera dos negros (tendo Zumbi como referência), recusando a tradi-
cional imagem da princesa branca benevolente que teria redimido os escravos.
De fato, como afirma Carlos Hasenbalg, no momento da abolição a grande
maioria da população negra já era livre ou liberta, uma vez que “em 1872,
data do primeiro censo demográfico nacional, 74% da população de cor era
livre; esta proporção eleva-se aproximadamente a 90% em 1887”.7 Desde a
década de 1970, o 13 de maio passou então a ser considerado pelo movimento
negro como um dia nacional de denúncia da existência de racismo e discrimi-
nação em nossa sociedade.
A relação com a questão da educação e, mais especificamente, com a his-
tória ensinada nas escolas como parte da luta do movimento negro “pela rea-
valiação do papel do negro na história do Brasil” é evidente em muitos momen-
tos e em diferentes lugares. E a luta nas escolas, como estratégia privilegiada
para atingir esse objetivo, foi frequente em grande parte do território nacional,

Junho de 2012 113


Amilcar Araujo Pereira

principalmente a partir da década de 1980. Bem antes, a Frente Negra Brasilei-


ra (FNB), criada em São Paulo em 1931, e o Teatro Experimental do Negro
(TEN), criado na mesma cidade em 1944, duas das mais importantes organi-
zações do movimento negro na primeira metade do século XX, já contavam
com escolas em suas dependências para alfabetizar e instruir pessoas negras.
Entre as estratégias bem-sucedidas na luta pela tão necessária “reavaliação do
papel do negro na História do Brasil”, podemos observar a adotada desde o
início da década de 1980 por Maria Raimunda (Mundinha) Araújo, então pre-
sidenta do Centro de Cultura Negra (CCN) do Maranhão,8 ao atuar diretamen-
te nas escolas, não somente dando palestras e informando professores e alunos
sobre as histórias dos negros no Brasil, mas também produzindo material di-
dático para esse fim. Mundinha Araújo e outros militantes produziram cartilhas
no Maranhão, as quais foram publicadas, por exemplo, no início da década de
1980 em Belo Horizonte, Minas Gerais. Sobre a atuação direta do movimento
negro nas escolas, Mundinha Araújo afirmou em entrevista:

Nós achávamos que a luta era dentro das escolas, era fazendo parcerias. Em 1982
nós fizemos um convênio com a Secretaria de Educação porque nós queríamos a
participação dos professores. Eles colocaram os professores à disposição para
participarem da Semana do Negro. A gente fazia assim: “Vamos para o bairro do
João Paulo”. Todos os professores das escolas que ficavam no bairro do João Pau-
lo e adjacências iam para o mesmo local. E nós distribuíamos o material que a
Secretaria de Educação também ajudou a rodar, deu o papel e tudo. E os de nós
que seguravam mais eram os professores ... Foi algo que depois nós fizemos um
documento e apresentamos lá no encontro da Candido Mendes, no Rio de Janei-
ro, em 1982. Me convidaram para participar de uma mesa redonda chamada
“Movimento negro nos anos 1980” ... Quando fiz o relato, depois eles disseram:
“Incrível, você esteve em 1979 conversando conosco [no IPCN, Instituto de Pes-
quisa das Culturas Negras, fundado em 1975 no Rio de Janeiro] e nós lhe demos
orientação. Hoje você chega aqui e mostra um movimento que ninguém está fa-
zendo. E lá no Maranhão!”. Todo mundo ficou encantado que a gente estivesse
principalmente trabalhando o aspecto da educação, que a gente considerava
prioridade.9

Essa intervenção nas escolas se ampliou muito nas últimas décadas, não
só através da entrada de militantes negros nas escolas, seja por meio de parce-
rias ou da criação e distribuição de materiais didáticos, como faziam Mundinha

114 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


“Por uma autêntica democracia racial!”

Araújo e o pessoal do CCN no Maranhão. Com o crescimento do movimento


durante o processo de redemocratização na década de 1980 – principalmente
a partir de 1988, ano do centenário da abolição da escravidão, quando centenas
de manifestações foram realizadas por organizações do movimento negro em
todo o país –, muitas lideranças foram formadas, e as mobilizações e articula-
ções políticas construídas pelo movimento negro em diferentes âmbitos (com
sindicatos, partidos políticos, instituições públicas e organismos do Estado nos
níveis municipal, estadual e até federal, com representantes no Poder Legisla-
tivo etc.) tornaram possível a conquista de um novo ‘lugar político e social’
para o movimento negro, especialmente no campo educacional, como dizem
Martha Abreu e Hebe Mattos:

Desde o final da década de 1990, as noções de cultura e diversidade cultural, as-


sim como de identidades e relações étnico-raciais, começaram a se fazer presen-
tes nas normatizações estabelecidas pelo MEC com o objetivo de regular o exer-
cício do ensino fundamental e médio, especialmente na área de história. Isso não
aconteceu por acaso. É na verdade um dos sinais mais significativos de um novo
lugar político e social conquistado pelos chamados movimentos negros e antirra-
cistas no processo político brasileiro, e no campo educacional em especial.10

O próprio texto da chamada “Constituição cidadã” de 1988 já refletia al-


gumas das reivindicações de diferentes grupos sociais que até então não eram
contemplados na construção dos currículos escolares de história, como se po-
de observar no parágrafo 1º do Art. 242 da Constituição, o qual já determina-
va que “O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das
diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro”. Para muitas
lideranças do movimento social negro, a luta pela “reavaliação do papel do
negro na História do Brasil” passava naquele momento diretamente pela in-
tervenção no processo de construção das políticas curriculares, especialmente
na construção dos currículos de história. Afinal, como dizem Antônio Flávio
Moreira e Tomaz Tadeu da Silva:

O currículo não é um elemento inocente e neutro de transmissão desinteressada


do conhecimento social. O currículo está implicado em relações de poder, o cur-
rículo transmite visões sociais particulares e interessadas, o currículo produz
identidades individuais e sociais particulares. O currículo não é um elemento

Junho de 2012 115


Amilcar Araujo Pereira

transcendente e atemporal – ele tem uma história, vinculada a formas específicas


e contingentes de organização da sociedade e da educação.11

Sendo assim, a construção de um currículo que apresente as histórias e


culturas de todas as matrizes formadoras de nossa sociedade, considerando-as
todas importantes e complementares, sem o ‘tradicional’ viés eurocêntrico
historicamente adotado, é algo fundamental para a formação de cidadãos com
‘identidades individuais e sociais’ diversas e que aprendam a respeitar as dife-
renças e possam lidar de maneira positiva com a pluralidade cultural, para que
seja possível a construção de uma ‘autêntica democracia racial’. Esse novo
‘lugar político e social’, conquistado pelo movimento, tornou possível até mes-
mo a participação direta de intelectuais e ativistas negros no processo de cons-
trução de novas políticas curriculares no Brasil do final do século XX. Encon-
tramos, por exemplo, lideranças negras atuando como consultores na
elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de História, que
foram divulgados pelo Ministério da Educação em 1998.
Em seu belo artigo, intitulado “O ensino de História e a luta contra a
discriminação racial no Brasil”, quando analisa as possibilidades trazidas pelos
PCNs, especialmente pelo tema transversal “Pluralidade Cultural”, Hebe Mat-
tos propõe a separação, do ponto de vista teórico, entre as noções de ‘cultura’
e ‘identidade’. Segundo a autora, as identidades individuais e coletivas devem
ser vistas como construções culturais, por isso históricas e relacionais, e que
“dependem, em cada caso, das formas históricas em que as fronteiras entre nós
e os outros se constroem, se reproduzem ou se modificam”.12 Nesse sentido,
devemos pensar a cultura como processo, no qual tradições e práticas culturais
circulam, transformam-se e modificam-se. O tema “Pluralidade Cultural” foi
definido pelos autores dos PCNs como um dos seis temas transversais (Ética;
Pluralidade Cultural; Saúde; Orientação Sexual; Meio Ambiente; Trabalho e
Consumo). Segundo os próprios autores, no texto de apresentação dos PCNs,
os temas transversais “correspondem a questões importantes, urgentes e pre-
sentes sob várias formas na vida cotidiana”.13
O tema da pluralidade cultural é de fato urgente e importante. E concor-
do com Hebe Mattos, quando ela afirma que “a história se apresenta como
disciplina-chave” para se desenvolver um trabalho em que, ao invés de “refor-
çar culturas e identidades de origem, resistentes à mudança, mais ou menos

116 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


“Por uma autêntica democracia racial!”

‘puras’ ou ‘autênticas’”, se busque “educar para a compreensão e o respeito à


dinâmica histórica das identidades socioculturais efetivamente constituídas”
(Mattos, 2003, p.129). E, para que isso seja possível, é preciso que as histórias
da África e dos africanos e as histórias da população negra no Brasil, em toda
a sua complexidade, sejam pesquisadas e trabalhadas nas salas de aula de his-
tória. Foi nesse sentido, e em função da mobilização e das articulações políticas
estabelecidas pelo movimento social negro, que em 9 de janeiro de 2003 foi
sancionada a Lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino de história e
cultura afro-brasileiras em todas as escolas do país.14

Movimentos negros na formação do Brasil

Mas por que estudar as histórias dos movimentos negros no Brasil? Talvez
a melhor pergunta aqui seja esta: por que não estudamos as histórias dos mo-
vimentos negros no Brasil durante a nossa formação escolar?
Em cada período da história do Brasil houve movimentos negros com
características distintas, que ainda precisam ser bastante pesquisadas e mais
bem conhecidas. Tenho adotado o termo ‘movimento negro contemporâneo’
para designar, como já afirmei, as organizações e indivíduos que atuaram a
partir da década de 1970 em torno da questão racial, lutando contra o racismo
e por melhores condições de vida para a população negra, seja através de prá-
ticas culturais, de estratégias políticas, de iniciativas educacionais etc. – o que
faz da diversidade e da pluralidade características desse movimento social. Ao
longo de minhas pesquisas pude perceber nesse conjunto, complexo e diverso,
características específicas que diferem das apresentadas por movimentos ne-
gros em períodos anteriores. A própria atuação em torno da questão racial,
por exemplo, é algo que só se tornou possível a partir da consolidação da ideia
de raça, em meados do século XIX.15 O que não significa que não tenha exis-
tido a luta dos negros no Brasil em períodos anteriores.
Joel Rufino dos Santos, partindo da afirmação de que “movimento negro
é, antes de tudo, aquilo que seus protagonistas dizem que é movimento negro”,
verificava nos discursos das lideranças do movimento, na década de 1980, duas
definições existentes para o termo ‘movimento negro’. A primeira, que ele
chama de movimento negro ‘no sentido estrito’ e diz ser ‘excludente’, consi-
derava “movimento negro exclusivamente o conjunto de entidades e ações dos

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Amilcar Araujo Pereira

últimos cinquenta anos, consagrados explicitamente à luta contra o racismo”.


A segunda definição, a de movimento negro no ‘sentido amplo’, que ele afirma
ser “a melhor definição de movimento negro”, é esta:

Todas as entidades, de qualquer natureza, e todas as ações, de qualquer tempo (aí


compreendidas mesmo aquelas que visam à autodefesa física e cultural do ne-
gro), fundadas e promovidas por pretos e negros. (Utilizo preto, neste contexto,
como aquele que é percebido pelo outro; e negro como aquele que se percebe a
si.) Entidades religiosas, assistenciais, recreativas, artísticas, culturais e políticas;
e ações de mobilização política, de protesto antidiscriminatório, de aquilomba-
mento, de rebeldia armada, de movimentos artísticos, literários e ‘folclóricos’ –
toda esta complexa dinâmica, ostensiva ou invisível, extemporânea ou cotidiana,
constitui movimento negro.16

Seguindo essa perspectiva, podemos afirmar que existiu ‘movimento ne-


gro’ no Brasil desde que os primeiros seres humanos escravizados na África
chegaram à costa brasileira, como diz Abdias do Nascimento:

Não existe o Brasil sem o africano, nem existe o africano no Brasil sem o seu pro-
tagonismo de luta antiescravista e antirracista. Fundada por um lado na tradição
de luta quilombola que atravessa todo o período colonial e do Império e sacode
até fazer ruir as estruturas da economia escravocrata e, por outro, na militância
abolicionista protagonizada por figuras como Luiz Gama e outros, a atividade
afro-brasileira se exprimia nas primeiras décadas deste século sobretudo na forma
de organização de clubes, irmandades religiosas e associações recreativas.17

Os movimentos negros na luta contra a escravidão, por exemplo, precisam


ser estudados nas aulas de história. É importante levarmos para a escola bási-
ca as contribuições mais recentes da rica historiografia sobre a história da es-
cravidão no Brasil, como afirma Hebe Mattos, “considerando o tema e suas
implicações não apenas em seus aspectos econômicos, mas também em suas
dimensões políticas e culturais”, pois para a autora “é impossível falar de qual-
quer aspecto da história do Brasil colonial ou oitocentista sem levar em conta
o fato escravista e seu papel estruturante do ponto de vista econômico, políti-
co, social e cultural” (Mattos, 2003, p.135). Nesse sentido, concordando com
a autora, creio que tão importante quanto levar para a escola básica a história
da escravidão seja, nesse processo, inserir e enfatizar nas aulas as histórias das

118 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


“Por uma autêntica democracia racial!”

lutas contra a escravidão em nosso país, as histórias das lutas dos movimentos
negros e suas diferentes implicações para a formação de nossa sociedade.
Assim como o sistema escravista abrangeu todo o território nacional, as
lutas contra a escravidão também se espalharam por todo o país, na medida em
que, como dizem João José Reis e Flávio Gomes, “onde houve escravidão hou-
ve resistência. E de vários tipos”.18 Se o sistema escravista teve alguma impor-
tância para a estruturação do que conhecemos como o Brasil no século XIX, e
se onde houve escravidão também houve a luta contra a escravidão, então a
luta contra a escravidão também foi um elemento estruturante, que contribuiu,
portanto, para a formação de nossa sociedade. Essa resistência, de que falam
João Reis e Flávio Gomes, as lutas travadas de diferentes formas, desde as re-
voltas e a criação dos quilombos, tão bem estudados por esses e outros autores,
até formas menos estudadas como as ações na Justiça para libertar pessoas es-
cravizadas através do uso das leis, levadas a cabo pelo rábula negro Luiz Gama19
e por outros atores sociais, ou a ação no campo da educação, como a criação de
escolas ainda no século XIX, como fez a escritora e professora negra Maria
Firmina dos Reis no Maranhão em 1880,20 todas essas formas de resistência e
luta foram importantes para a formação de nossa sociedade.
As lutas da população negra no Brasil ganharam nova dimensão no pe-
ríodo pós-abolição. Importantes organizações surgiram e se espalharam pelo
país. Homens e mulheres negros, intelectuais, políticos, artistas, trabalhadores
etc., se organizaram para lutar de diferentes formas contra a discriminação
racial e por melhores condições de vida para a população negra. A publicação
dos jornais da chamada ‘imprensa negra’ foi uma estratégia importante, desde
o final do século XIX, para expressar os anseios e reivindicações desses setores
da população negra que se organizavam nas grandes cidades, especialmente
em São Paulo. Entre os jornais criados por negros no início do século XX, um
dos mais conhecidos e estudados é O Clarim d’Alvorada, criado em 1924 na
cidade de São Paulo por José Correia Leite e Jayme de Aguiar. Principalmente
a partir de 1928, O Clarim d’Alvorada passou a se destacar como representan-
te da luta contra a discriminação racial no Brasil, publicando diversas matérias
fazendo críticas e denúncias de situações de discriminação.
A Frente Negra Brasileira (FNB), fundada em São Paulo em 1931 e com
ramificações em vários estados brasileiros (Rio de Janeiro, Minas Gerais, Es-
pírito Santo, Pernambuco, Rio Grande do Sul e Bahia), foi a maior organização

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Amilcar Araujo Pereira

do movimento negro na primeira metade do século XX no Brasil, e chegou a


servir de referência para a luta contra o racismo e por melhores condições de
vida para os negros em outros países, com se verá adiante. Em 1933 a FNB
criou seu próprio jornal, A voz da raça, e em 1936 tornou-se um partido polí-
tico, que acabou fechado com todos os outros partidos durante o golpe do
Estado Novo, em 1937. Com evidente caráter nacionalista, a FNB tinha como
principal objetivo integrar a população negra ao conjunto da sociedade brasi-
leira no que diz respeito aos direitos civis e sociais, como podemos observar
no Artigo 1º de seu Estatuto, registrado em cartório no dia 4 de novembro de
1931:

Art. 1o – Fica fundada nesta cidade de São Paulo, para se irradiar por todo o Bra-
sil, a Frente Negra Brasileira, união política e social da Gente Negra Nacional,
para a afirmação dos direitos históricos da mesma, em virtude da sua atividade
material e moral no passado e para reivindicação de seus direitos sociais e políti-
cos, atuais, na Comunhão Brasileira.21

Em muitos casos, os jornais da ‘imprensa negra’ eram veículos de infor-


mação constituídos por organizações como os grêmios, clubes ou associações,
que surgiram em algumas partes do país desde o final do século XIX, tendo
objetivos semelhantes aos da FNB. Petrônio Domingues listou algumas dessas
organizações:

Em São Paulo, apareceram o Club 13 de Maio dos Homens Pretos (1902), o Cen-
tro Literário dos Homens de Cor (1903), a Sociedade Propugnadora 13 de Maio
(1906), o Centro Cultural Henrique Dias (1908), a Sociedade União Cívica dos
Homens de Cor (1915), a Associação Protetora dos Brasileiros Pretos (1917); no
Rio de Janeiro, o Centro da Federação dos Homens de Cor; em Pelotas/RS, a
Sociedade Progresso da Raça Africana (1891); em Lages/SC, o Centro Cívico
Cruz e Souza (1918). Em São Paulo, a agremiação negra mais antiga desse pe-
ríodo foi o Clube 28 de Setembro, constituído em 1897. As maiores delas foram o
Grupo Dramático e Recreativo Kosmos e o Centro Cívico Palmares, fundados
em 1908 e 1926, respectivamente.22

Entre essas organizações, o Centro Cívico Palmares, criado em 1926, me-


rece destaque, pois, segundo George Andrews, essa organização teria sido um
marco importante para a mobilização política dos negros em São Paulo, jus-

120 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


“Por uma autêntica democracia racial!”

tamente durante o período que antecede a Revolução de 1930. Nesse sentido,


o Centro Cívico Palmares viria a contribuir significativamente para a criação
mais tarde da FNB, também em São Paulo. Havia muitos participantes em
comum nas duas organizações, até mesmo em sua liderança, já que Arlindo
Veiga dos Santos havia sido presidente do Centro Cívico Palmares e fora tam-
bém o primeiro presidente da FNB, e alguns de seus militantes propunham
uma ligação direta entre a criação de ambas as organizações, como neste tre-
cho, publicado na primeira página do jornal A Voz da Raça de 3 de fevereiro
de 1937: “A F.N.B. surgiu no Estado de São Paulo, graças à perspicácia da alma
Paulista, que, desde 1926, já havia fundado o CENTRO CÍVICO PALMARES,
com o mesmo objetivo da aludida organização” (grifos do autor). George An-
drews diz o seguinte sobre as origens do Centro Cívico Palmares:

Em 1925, O Clarim d’Alvorada clamava pela criação do Congresso da Mocidade


dos Homens de Cor, “um grande partido político composto exclusivamente de
homens de cor”. Esses apelos não produziram resultados imediatos, mas sem dú-
vida foram parte do impulso subjacente à fundação, em 1926, do Centro Cívico
Palmares. Assim chamado em homenagem ao quilombo de Palmares do século
XVII, o centro originalmente destinava-se a proporcionar uma biblioteca coope-
rativa para a comunidade negra. A organização logo progrediu e passou a patro-
cinar encontros e conferências sobre questões de interesse público, e em 1928
lançou uma campanha para derrubar um decreto que proibia aos negros ingres-
sar na milícia do Estado, a Guarda Civil. O centro foi bem sucedido ao requerer
do governador Júlio Prestes que suspendesse o decreto, e depois o convenceu a
derrubar uma proibição similar que impedia as crianças negras de participar de
uma competição patrocinada pelo Serviço Sanitário de São Paulo para encontrar
o bebê mais ‘robusto’ e eugenicamente desejável do Estado.23

Embora os militantes do Centro Cívico Palmares tenham conseguido em


1928 a suspensão do decreto que proibia negros de entrarem na Guarda Civil
do estado de São Paulo, somente em 1932 os militantes da FNB conseguiram,
após reunião com o próprio presidente Getúlio Vargas no Distrito Federal, que
duzentos negros paulistas fossem contratados para a Guarda Civil. Esse episó-
dio demonstra a capacidade de negociação e o poder político alcançado na-
quele momento pela FNB. Vale ressaltar que a FNB apoiava o presidente Ge-

Junho de 2012 121


Amilcar Araujo Pereira

túlio Vargas durante o governo provisório e o chamava, nas páginas do A voz


da raça, de “esperança fagueira do nosso Brasil”.
Graças à constante circulação de ideias e referenciais por toda a diáspora
negra, na década de 1930 a Frente Negra Brasileira chegou a ser vista por ne-
gros norte-americanos e porto-riquenhos como um verdadeiro exemplo de
luta por direitos civis e sociais. A imprensa negra, em diferentes países, con-
tribuiu muito para essa circulação de ideias e referenciais sobre a luta dos
negros em geral. Ainda no início do século XX é possível encontrar um inte-
ressante exemplo de intercâmbio entre dois jornais criados por negros, no
Brasil e nos Estados Unidos: foi o estabelecido entre os jornais O Clarim
d’Alvorada e Chicago Defender, este um dos mais importantes jornais da im-
prensa negra norte-americana, fundado na cidade de Chicago em 1905. Alguns
anos depois de uma viagem de três meses realizada em 1923 por Robert Abbot,
fundador e editor do Chicago Defender, pela América do Sul e especialmente
pelo Brasil, Abbot passou a receber O Clarim d’Alvorada e a enviar o Chicago
Defender para José Correia Leite, fundador e editor d’O Clarim.24
Como demonstrei no capítulo intitulado “Circulação de referenciais: Bra-
sil, Estados Unidos e África” de minha tese de doutorado (Pereira, 2010), ao
realizar pesquisas no arquivo do jornal Chicago Defender, encontrei muitas
reportagens falando sobre a questão racial no Brasil em meados das décadas
de 1930 e 1940, justamente durante o período que vários historiadores consi-
deram ser o ápice de importância da imprensa negra nos Estados Unidos.
Encontrei reportagens como a publicada em 26 de outubro de 1935, sobre uma
manifestação realizada pela Frente Negra Brasileira (FNB) no Rio de Janeiro
e que, segundo o jornal, teria mobilizado 10 mil pessoas:

Esta organização, composta exclusivamente por brasileiros negros, tem direcio-


nado suas energias contra a invasão dos direitos civis e constitucionais. Batendo
na tecla da solidariedade nacional, ela tem conseguido eminentemente derrotar
as forças do preconceito que, por pouco, ameaçaram minar o tradicional espírito
de jogo limpo e igualdade pelo qual o Brasil foi conhecido antes do advento da
insidiosa propaganda norte-americana.25

É interessante perceber a referência à luta por ‘direitos civis’ (civil rights)


levada a cabo pela FNB no Brasil. Segundo o jornal, a luta era pela manutenção
de direitos civis e constitucionais, enquanto nos Estados Unidos esses direitos

122 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


“Por uma autêntica democracia racial!”

ainda eram negados à população negra. O texto da reportagem seguia apre-


sentando a FNB para o leitor norte-americano desta forma: “A Frente Negra
é hoje a organização mais poderosa em todo o Brasil, exercendo uma influên-
cia política que mantém afastados todos aqueles que poderiam negar as garan-
tias específicas da Constituição nacional”. Somente entre os anos de 1935 e
1937 a Frente Negra Brasileira esteve presente em nada menos do que vinte
reportagens do Chicago Defender, em matérias como, por exemplo, “Brazilian
politics seeking support of the Black Front” (20 mar. 1937), que, ao referir-se
às eleições que se aproximavam, afirmava que “os associados à Frente Negra,
de acordo com fontes autênticas, vão muito além dos 40 mil, com novos mem-
bros se associando diariamente”, e que “com sua solidez, essa organização
representa hoje uma das forças mais poderosas a serem consideradas no Bra-
sil”. Essa e outras reportagens foram publicadas sempre em sua edição semanal
com circulação nacional.
Embora a FNB não tenha sido de fato a ‘organização mais poderosa em
todo o Brasil’ da década de 1930, sua participação política em São Paulo e em
outros estados era evidente. O seu número de associados e sua atuação políti-
ca e social chamavam a atenção de brasileiros e de estrangeiros, como os edi-
tores do Chicago Defender, os quais olhavam para o Brasil naquele momento
e viam muitos exemplos a serem seguidos, além de também demonstrarem
abertamente, nas páginas do Chicago Defender, a sua admiração pela Frente
Negra Brasileira. Um bom exemplo, nesse sentido, é a edição do dia 11 de ja-
neiro de 1936, que trazia no topo da primeira página, em letras garrafais, esta
manchete: “American Race Group takes cue from Brazil; Maps drive to shake
off shackles in 1936”,26 que apresentava para seus leitores os planos da “North
American Fronte Negra” para o ano de 1936! Ainda na mesma edição, na
página 24, havia outra matéria interessante: “Puerto Ricans organize Black
Militant Front”, na qual o jornal afirmava que a criação da nova organização
em Porto Rico também “foi inspirada no sucesso alcançado pela Frente Negra
no Brasil”.
As histórias da FNB e de muitas outras organizações e indivíduos negros,
pelo Brasil afora e em diferentes momentos ao longo do processo de formação
de nossa sociedade, são ainda pouquíssimo estudadas nas aulas de história nas
escolas de nosso país, embora seja evidente o fato de que essas histórias são
partes importantes da história do Brasil. Conhecer essas histórias e levá-las

Junho de 2012 123


Amilcar Araujo Pereira

para as escolas, com embasamento teórico e seriedade no trato com os conteú-


dos, só pode beneficiar a formação de todos os alunos, sejam eles pretos, bran-
cos, pardos, indígenas ou amarelos.

À guisa de conclusão...

Infelizmente, ainda podemos encontrar em livros didáticos de história, e


até mesmo no ‘senso comum’, visões estereotipadas sobre a população negra.
População esta que, até poucos anos atrás, quando foi apresentada nos livros
utilizados em nossas escolas, o foi de maneira discriminatória: como escravos
passivos, seres inferiorizados, vítimas sofredoras ou pessoas estigmatizadas em
funções subalternas, por exemplo. Podemos encontrar muitos trabalhos de
pesquisa, principalmente na área da educação, produzidos desde a década de
1980, que já analisaram a discriminação dos negros nos livros didáticos.27 A
população negra, em geral, não foi historicamente apresentada nas escolas
como sujeito de sua história, como homens e mulheres ativos nas lutas por
liberdade ou por melhores condições de vida para si e para seus familiares.
Embora tenha havido mudanças recentemente nesse sentido, principal-
mente após a criação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) em
1985 e com a publicação dos PCNs em 1998, ainda percebemos que há muito
por fazer para conseguirmos mudar a forma como a população negra e suas
histórias e culturas são apresentadas nas salas de aula. Atualmente podemos
encontrar muitos avanços na historiografia brasileira em relação ao conheci-
mento sobre as diferentes formas de participação da população negra na for-
mação da nossa sociedade. Avanços que têm contribuído significativamente
para a tão reivindicada ‘reavaliação do papel do negro na História do Brasil’.
Hoje podemos contar até mesmo com uma legislação, em âmbito nacional,
nos convocando à realização de um trabalho com o ensino de história que
seja democrático e que contemple as histórias das diferentes matrizes forma-
doras de nossa sociedade, inclusive as histórias das “lutas dos negros no Brasil,
a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resga-
tando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política
pertinentes à História do Brasil”, como determina o texto da Lei 10.639/2003,
que alterou a LDB em seu § 1º do Artigo 26-A.

124 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


“Por uma autêntica democracia racial!”

Homens e mulheres negros e brancos, diferentes atores sociais, participa-


ram das histórias de lutas por liberdade e por direitos civis e sociais, antes e
depois da assinatura da Lei Áurea, que aboliu legalmente a escravidão no Bra-
sil em 1888. A memória dessas lutas precisa estar nas escolas, e não somente a
memória da escravidão. Aliás, a memória da escravidão atlântica, como se
fosse a única forma de escravidão já existente no mundo, e a associação direta
entre negritude e escravidão, inferiorizando africanos e seus descendentes, é
algo absolutamente presente nas escolas brasileiras ainda hoje. E, além de ser
um erro ‘histórico’, isso é algo danoso para as construções identitárias de jo-
vens estudantes negros e brancos.
Como afirma Jacques Le Goff: “A memória é um elemento essencial do
que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma
das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre
e na angústia”.28 O protagonismo negro na luta contra a escravidão e na luta
por melhores condições de vida no período pós-abolição deve ser pesquisado,
conhecido e trabalhado nas escolas de nosso país. Protagonismo que vai de
Zumbi dos Palmares, passando pelas instituições como as irmandades negras
no século XIX, por personagens já citados aqui como Maria Firmina dos Reis
e Luiz Gama, entre muitos outros, e chegando aos movimentos negros orga-
nizados na história da República brasileira. Essas histórias são partes da histó-
ria do Brasil! E essas memórias precisam estar disponíveis para a população
brasileira como um todo. Um país culturalmente diverso que se quer demo-
crático, talvez deva lutar arduamente ‘por uma autêntica democracia racial’
nas escolas e nos currículos.

NOTAS
1
Disponível em GONZALEZ, Lélia. O Movimento Negro na última década. In: GONZALEZ,
Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982. p.48-50.
2
Sobre a história do movimento negro contemporâneo, ver: PEREIRA, Amilcar A. “O
Mundo Negro”: a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil (1970-1995).
Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense. Niterói (RJ), 2010.
3
A Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) patroci-
nou uma série de pesquisas sobre as relações raciais no Brasil entre os anos de 1951 e 1952,
pesquisas essas que, em seu conjunto, ficaram conhecidas como “Projeto Unesco”. As pes-
quisas, desenvolvidas no Nordeste e no Sudeste do Brasil, tinham o objetivo de apresentar

Junho de 2012 125


Amilcar Araujo Pereira

ao mundo a experiência brasileira no campo das relações raciais, julgada, na época, como
bem-sucedida e ‘harmoniosa’. Entretanto, como afirmou Oracy Nogueira, um dos respon-
sáveis pelo projeto Unesco no interior do estado de São Paulo, “a principal tendência que
chama a atenção, nos estudos patrocinados pela Unesco, é a de reconhecerem seus autores
a existência de preconceito racial no Brasil. Assim, pela primeira vez, o depoimento de
cientistas sociais vem, francamente, de encontro [sic, o correto seria “ao encontro de”] e
em reforço ao que, com base em sua própria experiência, já proclamavam, de um modo
geral, os brasileiros de cor”. NOGUEIRA, Oracy. Tanto preto quanto branco: estudos de
relações raciais. São Paulo: T. A. Queiroz, 1985. p.77.
4
Florestan Fernandes foi, com Roger Bastide, responsável pelas pesquisas do Projeto
Unesco na cidade de São Paulo, e se tornou pioneiro entre os intelectuais brasileiros que
primeiro denunciaram a existência de racismo e o chamado ‘mito da democracia racial’ no
Brasil. Ver, entre outros: FERNANDES, Florestan. A integração do negro à sociedade de
classes. São Paulo: Ed. Nacional, 1965; e FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos
brancos. 2.ed. rev. São Paulo: Global, 2007.
5
Ver, por exemplo: ALBERTO, Paulina Laura. Black Activism and the cultural conditions
for citizenship in a multi-racial Brazil, 1920-1982. Tese (Doutorado em História) – Univer-
sity of Pennsylvania. Philadelphia, 2005; e KÖSSLING, Karin Sant’Anna. As lutas anti-ra-
cistas de afrodescendentes sob vigilância do Deops/SP (1964-1983). Dissertação (Mestrado
em História Social) – Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007.
6
A construção do 20 de Novembro como data a ser celebrada pela população negra foi a
própria razão do surgimento de uma das primeiras organizações do movimento negro
contemporâneo brasileiro, o Grupo Palmares. Esse Grupo foi fundado por Oliveira Silvei-
ra, com outros militantes, em 1971, em Porto Alegre (RS). O Grupo Palmares elegeu o
Quilombo dos Palmares como passagem mais importante da história do negro no Brasil e
realizou, ainda em 1971, o primeiro ato evocativo de celebração do 20 de Novembro. Se-
guindo a proposição do Grupo Palmares, durante a segunda Assembleia Nacional do
MNU, realizada no dia 4 de novembro de 1978, em Salvador (BA), foi estabelecido o 20 de
Novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra” – que hoje é feriado em mais de
400 municípios brasileiros e também faz parte do calendário escolar, por determinação do
Artigo 79-B da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) alterada pela Lei
10.639/2003.
7
HASENBALG, Carlos. Desigualdades raciais no Brasil. In: HASENBALG, Carlos; SILVA,
Nelson V. Estrutura social, mobilidade e raça. São Paulo: Vértice, 1988. p.121-122.
8
Maria Raimunda Araújo nasceu em São Luís em 8 de janeiro de 1943. Formada em co-
municação social pela Federação das Escolas Superiores do Maranhão em 1975, Mundinha
Araújo, como é conhecida, foi fundadora do Centro de Cultura Negra do Maranhão
(CCN), em 1979, primeira vice-presidente da entidade, de 1980 a 1982, e ocupou a presi-
dência no mandato seguinte, de 1982 a 1984. Foi diretora do Arquivo Público do Estado do
Maranhão entre 1991 e 2003. A entrevista citada foi gravada em 10 set. 2004, em São Luís
do Maranhão, durante a realização da pesquisa “História do movimento negro no Brasil:

126 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


“Por uma autêntica democracia racial!”

constituição de acervo de entrevistas de história oral”, implementada por Verena Alberti e


Amilcar Araujo Pereira no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporâ-
nea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV) entre 2003 e 2007.
9
ALBERTI, Verena; PEREIRA, Amilcar A. (Org.) Histórias do movimento negro no Brasil:
depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: Pallas; CPDOC/FGV, 2007. p.209.
10
ABREU, Martha; MATTOS, Hebe. Em torno das Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasilei-
ra e Africana: uma conversa com historiadores. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.21,
n.41, jan.-jun. 2008. p.6.
11
MOREIRA, Antônio Flávio B.; SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org.) Currículo, cultura e so-
ciedade. São Paulo: Cortez, 2002. p.8.
MATTOS, Hebe. O ensino de História e a luta contra a discriminação racial no Brasil. In:
12

ABREU, Martha; SOIHET, Raquel (Org.) Ensino de História: conceitos, temáticas e meto-
dologias. Rio de Janeiro: Casa da palavra, 2003. p.128.
BRASIL. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros Curriculares
13

Nacionais: terceiro e quarto ciclos: apresentação dos temas transversais. Brasília, 1998. p.17.
14
Vale lembrar que, em função da mobilização dos movimentos indígenas, a Lei 11.645, de
10 mar. 2008, tornou ainda mais complexa a discussão sobre os currículos de História no
Brasil ao alterar a Lei 9.394, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional
(LDB), de 20 dez. 1996, já modificada pela Lei 10.639, de 9 jan. 2003, para incluir no currí-
culo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Bra-
sileira e Indígena”.
Sobre a construção da ideia de raça, ver o primeiro capítulo de minha tese de doutorado:
15

PEREIRA, 2010.
16
SANTOS, Joel Rufino dos. O Movimento Negro e a crise brasileira. Política e Adminis-
tração, v.2, p.287-303, jul.-set. 1985.
17
NASCIMENTO, Abdias do; NASCIMENTO, Elisa Larkin. Reflexões sobre o movimento
negro no Brasil, 1938-1997. In: GUIMARÃES, Antônio Sérgio A.; HUNTLEY, Lynn. Ti-
rando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p.204.
18
REIS, João J.; GOMES, Flávio. Liberdade por um fio: histórias dos quilombos no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p.9.
19
Luiz Gama (1830-1882) nasceu em Salvador, Bahia, e é considerado por muitos historia-
dores como um dos maiores abolicionistas brasileiros. Embora tenha nascido livre, por ser
filho de uma escrava forra, foi vendido como escravo pelo pai aos 10 anos de idade. Na
juventude aprendeu a ler e tomou ciência de sua condição de homem livre. Autodidata,
tornou-se rábula, um advogado sem formação universitária, e atuou nos tribunais em São
Paulo, onde conseguiu libertar mais de 500 pessoas escravizadas. Foi também jornalista e
fundador do Partido Republicano Paulista. Ver: SANTOS, Luiz Carlos. Luiz Gama. São
Paulo: Selo Negro, 2010.

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Amilcar Araujo Pereira

20
Maria Firmina dos Reis (1825-1917) nasceu em São Luís do Maranhão. Autodidata, foi
professora, musicista, compôs o Hino à libertação dos escravos, colaborou em vários jor-
nais com poesias e em 1859 publicou o livro Úrsula, que pode ser considerado o primeiro
romance abolicionista brasileiro e um dos primeiros de autoria feminina no Brasil. Em
1880 fundou a primeira escola mista do Maranhão. Ver: MENDES, Algemira Macedo.
Amélia Beviláqua e Maria Firmina dos Reis na história da literatura: representação, ima-
gens e memórias nos séculos XIX e XX. Tese (Doutorado em Letras) – PUC/RS. Porto
Alegre, 2006.
21
Apud LEITE, José Correia; CUTI (Luiz Silva). ...E disse o velho militante José Correia
Leite: depoimentos e artigos. Org. e textos: CUTI (Luiz Silva). São Paulo: Secretaria Muni-
cipal de Cultura, 1992. p.95.
DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos.
22

Tempo (UFF), Niterói (RJ), v.23, 2007. p.103.


23
ANDREWS, George R. Negros e brancos em São Paulo. Bauru: Edusc, 1998. p.227.
24
José Correia Leite (1900-1989) foi também um dos fundadores da FNB, em 1931. Contu-
do, desligou-se da Frente ainda no momento da aprovação do estatuto da entidade, por
divergir de sua inclinação ideológica, e fundou então o Clube Negro de Cultura Social, em
1932. Participou da Associação do Negro Brasileiro, fundada em 1945. Em 1954 fundou
em São Paulo, com outros militantes, a Associação Cultural do Negro (ACN), e em 1960
participou da fundação da revista Niger.
25
As traduções dos trechos das reportagens foram feitas pelo autor deste artigo. A versão
em inglês pode ser encontrada no terceiro capítulo de PEREIRA (2010).
26
“Grupo Racial Americano segue exemplo do Brasil; Mapeia campanha para livrar-se dos
grilhões em 1936”. Até meados do século XX ainda era comum na imprensa negra norte-
-americana a utilização dos termos race people ou colored people para se referir à população
negra. Somente a partir de meados dos anos 1960 o termo black passou a ser o mais usado
para falar da população negra nos Estados Unidos.
27
Ver, entre outros: ROSENBERG, Fúlvia. Literatura infantil e ideologia. São Paulo: Glo-
bal, 1985; e SILVA, Ana Célia da. A discriminação do negro no livro didático. Salvador:
Ceao/UFBA, 1995.
28
LE GOFF, Jacques. Memória. In: Enciclopédia Einaudi, v.I. Memória-História. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984. p.46.

Artigo recebido em 20 de janeiro de 2012. Aprovado em 26 de março de 2012.

128 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


129
Entrevista – Mônica Lima
Martha Abreu*
Silvio de Almeida Carvalho Filho**

Mônica Lima possui uma longa experiência de ensino em História da


África nos níveis fundamental, médio e universitário. Entre 1984 e 2010, atuou
na rede pública estadual do Rio de Janeiro e no Colégio de Aplicação da UFRJ,
onde também se dedicou à formação de professores de História. Atualmente
é professora do Instituto de História da UFRJ e coordenadora do LEÁFRICA
(Laboratório de Estudos Africanos). Além de atuar na formação de professores
de História, Mônica Lima é referência na área de pesquisa e ensino de História
da África, ministrando cursos e consultorias sobre a temática.

Como e quando você começou a se interessar pelo estudo de história da


África? Foi antes ou depois da Lei 10.639/2003?

Meu interesse por História da África começou na faculdade, ainda que


eu não tivesse na época a menor ideia dos conteúdos e discussões relativos
ao assunto. Cursei História na UFRJ e, quando fiz a graduação, entre 1980 e
1983, não havia nenhuma disciplina sobre África, tampouco se falava sobre
o tema em disciplinas cujos conteúdos necessariamente teriam que inserir a
história do continente. Mas essa realidade não era exclusiva da UFRJ, era
geral nos cursos de História em todo o Brasil. Se havia exceções, eram muito
pontuais.
Ainda na graduação, como estagiária, fiz parte de um grupo de pesquisa
que foi participar da identificação e organização da documentação cartorial do
século XIX no município de Vassouras (RJ). Nesse trabalho eu lidava o tempo
todo com processos envolvendo africanos, em sua maior parte cativos, mas
alguns libertos. A leitura dos documentos me aproximou desse mundo, da

* Universidade Federal Fluminense (UFF). Campus do Gragoatá, bloco “O”, sala 421, São
Domingos. 24210-350 Niterói – RJ – Brasil. martha.abreu@pq.cnpq.br
** Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Largo de São Francisco de Paula, n.1, sala 201,
Centro. 20051-070 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. silvioacf@gmail.com

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 131-136 - 2012


Martha Abreu e Silvio de Almeida Carvalho Filho

presença africana na história do Brasil. Como disse antes, ainda não enxerga-
va a África, apenas entrevia. E foi a partir dessa experiência, sobre a qual eu
contava nas aulas em que participava como monitora em História do Brasil,
que a professora da disciplina (Maria Conceição Pinto de Góes, hoje aposen-
tada pela UFRJ) percebeu meu interesse sobre aspectos da vida dos africanos
escravizados, principalmente as ações rebeldes – perceptíveis na documentação
do Judiciário, com a qual eu trabalhava. Assim, quando ela soube do processo
seletivo para um mestrado em Estudos de África no Colegio de México, me
avisou e se dispôs a escrever uma carta de recomendação. Nesse momento eu
já terminara minha graduação.
Para mim, México e África pareciam quase que igualmente distantes, em
termos de conhecimento. Mas igualmente fascinantes. Parti para o processo
seletivo, animada com a possibilidade de ser paga para estudar (raríssimo nes-
sa época), e ainda mais aprender sobre um assunto desconhecido, e num lugar
tão diferente. Fiz a entrevista, enviei cartas e um trabalho para avaliarem. Tu-
do por correio, não havia internet. Era o ano de 1985, primeiro semestre. E
veio o resultado, a aprovação, a bolsa, a viagem, os medos e as descobertas.
Conheci o Colegio de México, com seu excelente curso, e sua biblioteca exta-
siante (era mesmo), seu ambiente de estudo, professores com 100% de dedi-
cação a um pequeno grupo de estudantes (éramos 14) também com dedicação
integral aos “estudos de África”. E foi no México que meu interesse – e mais
do que isso, minha paixão por História da África – se consolidou. Durante o
mestrado dei as minhas primeiras palestras sobre História da África a estudan-
tes de História em universidades mexicanas.
Trabalhar com ensino de História da África na formação de futuros pro-
fessores e pesquisadores no Brasil foi algo que comecei mesmo em 1992, já de
volta, depois do mestrado. Foi na UFMA, em São Luís, onde criei a ementa e
ministrei pela primeira vez essa disciplina – e aonde voltei, em 1994, também
para o mesmo fim. Como fui parar lá? Por indicação de José Maria Nunes
Pereira, do Centro de Estudos Afro-Asiáticos, um dos pioneiros nos estudos
de África no Brasil, e que deu a aula inaugural o primeiro curso, em 1992. E
depois vieram outras experiências semelhantes, em outras universidades. Sim,
tudo isso foi bem antes da Lei 10.639/2003...

132 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Entrevista – Mônica Lima

Como você avalia a implementação da Lei e das Diretrizes? Quais os im-


pactos na situação atual do ensino de História no Brasil?

Podem dizer o que quiserem, que sou otimista demais, ou esperançosa


demais, mas a Lei 10.639/2003, na minha avaliação, é uma lei que pegou.
Falta fazer muita coisa, é certo, temos um país enorme, e o orçamento para
a Educação deveria ser maior para que algumas iniciativas encontrassem um
campo consistente de trabalho. Falta muita coisa, sim: professores sendo mais
bem pagos, estimulados a estudar sempre e mais, escolas equipadas, com boas
bibliotecas, acesso à internet... Mas, ainda assim, com toda a precariedade,
com todas as ausências, percebo que há mudanças acontecendo em várias
partes do Brasil, muitas por iniciativa dos próprios professores que criam
projetos para suas salas de aulas e escolas, outras por ações das secretarias
municipais e estaduais, além de organizações não-governamentais que atuam
no campo da Educação. Em nível nacional temos o exemplo do que foi feito
pelo projeto A Cor da Cultura, financiado pela Petrobras e implementado
pela Fundação Roberto Marinho. O que muita gente não sabe é que esse
projeto nasceu de uma organização ligada ao movimento negro, o Cidan
(Centro de Informação e Documentação do Artista Negro). Antonio Pom-
peu, Luis Antonio Pilar e Wania Santana estiveram lá no início dessa história.
E o A Cor da Cultura chegou a muitas escolas públicas brasileiras, foram dois
mil professores na primeira fase (2006), e, na segunda fase (2011), mais do
que o dobro disso. Foram produzidos materiais pedagógicos de boa qualida-
de, e está tudo disponível na rede. Por iniciativa oficial também está na rede
a coleção da Unesco, a fundamental História Geral da África, com seus oito
volumes. Tudo isso veio da Lei 10.639/2003. No Rio de Janeiro temos o Ceap
(Centro de Articulação das Populações Marginalizadas), que anualmente dá
um prêmio às redações feitas por estudantes de escolas públicas com temas
referidos na Lei 10.639/2003. Isso sem falar de atividades promovidas por
escolas e professores por seu próprio interesse e iniciativa, utilizando a lei
como suporte para afirmar a importância de seus trabalhos. Eu mesma, nes-
tes últimos 9 anos, já compareci a dezenas de eventos dessa natureza e tive
notícia de outros tantos. E felizmente, não é só a escola básica que se mobi-
liza. Em setembro de 2010 participei de uma mesa na reunião da Anpuh
regional de Santa Catarina, em Chapecó, sobre o tema. A Universidade Fe-

Junho de 2012 133


Martha Abreu e Silvio de Almeida Carvalho Filho

deral de Alfenas, em Minas Gerais, que já tem uma professora concursada de


História da África, promoveu um encontro sobre o tema em 2011. Isso para
citar duas iniciativas fora dos chamados ‘grandes centros’, e houve muitas
outras. No Rio de Janeiro, universidades públicas e privadas promoveram
seminários específicos sobre ensino de História da África. Não tenho dúvida
que a Lei 10.639/2003, ampliada pela Lei 11.645/2008, que trouxe junto a
história indígena, tem a ver com esses eventos acadêmicos. E as diretrizes,
com todas as críticas que se possa fazer a determinadas abordagens sugeridas,
têm toda uma importância ao reforçar o papel das universidades, em seus
diferentes cursos, em assumirem sua responsabilidade na preparação dos
profissionais promovendo os estudos nesse campo. Até vir o parecer do Con-
selho Nacional de Educação em julho de 2004, muita gente pensava que a
obrigação era só dos professores de História da Educação Básica. As diretri-
zes vieram problematizar isso. Com direta relação com essas mudanças no
ensino, as pesquisas no campo se ampliam, o CNPq tem a linha PróAfrica,
que já vem sendo utilizada para projetos conjuntos com instituições africa-
nas, inclusive o Arquivo Nacional de Angola. O estímulo à pesquisa alimen-
ta as salas de aula. Nos últimos anos, diversos concursos para professores de
História da África têm sido feitos nas universidades brasileiras. É um campo
em construção, e a legislação contribuiu muito para que se abrisse. E nós,
professores de História da África, estamos também contribuindo para uma
melhor formação de professores e pesquisadores de História. Afinal, estudar
a humanidade sem conhecer as sociedades africanas era uma lacuna enorme
nos cursos de História, fruto do viés eurocêntrico a partir do qual foram
pensados. E evidentemente todos concordam que estudar a história da Áfri-
ca é essencial para compreender o Brasil. E ainda há outros ganhos. Citando
Alberto da Costa e Silva, historiador de oficio e grande africanista, no prefá-
cio ao seu livro A enxada e a lança, “Conhecer a história da África nos faz
melhores. Enriquece a consciência do nosso passado. Soma-se aos enredos
europeus, que sempre estiveram nos currículos de nossas escolas, e aos ame-
ríndios, que neles deveriam estar, e abre nossa alma a outras memórias. Se
aprendemos na escola com pormenores o que se passou em Atenas ou Roma
antigas, por que descurarmos de Axum, de Songai e de Ifé?”.

134 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Entrevista – Mônica Lima

O que você recomendaria aos professores de história que começam a tentar


implementar a Lei e as diretrizes?

Recomendo aos professores, meus colegas, que sempre procurem ver a


história da África além da escravidão atlântica e das relações com o Brasil es-
cravista. E estimular que seus alunos passem a fazer o mesmo. Sabemos que é
um campo muito marcado por essa herança. Isso não é necessariamente ruim,
claro que não. Mas, é importante ampliar o olhar, no tempo e nos espaços. A
história da África do Sul deve integrar nosso campo de estudo e nossas aulas,
assim como a África do Norte, e o Sudão, a Etiópia... Tudo ao seu tempo e em
seu lugar, dentro dos temas escolhidos para o trabalho pedagógico com histó-
ria. Mas mostrar a riqueza e a diversidade da África e dos africanos é essencial.
Como disse Joseph Ki-Zerbo, no primeiro volume da História Geral da África,
listando os grandes princípios da obra: “essa história é a história dos povos
africanos em seu conjunto”.
Recomendo também que utilizem as referências às heranças africanas no
Brasil nos estudos de história do Brasil e, sempre que estiverem presentes, nos
estudos de história da África. Sim, essa ponte sobre “o rio chamado Atlântico”
(novamente cito Alberto da Costa e Silva) deve ser construída, e reconstruída.
Aliás, isso tornará os estudos de história da África mais próximos aos estudan-
tes. E a cultura e a história dos descendentes de africanos no Brasil ficarão mais
fáceis para se compreender. E por consequência, a história do Brasil será
mais completa, mais inteira, mais autêntica.
Recomendo todos os cuidados com os grandes perigos: a idealização, a
simplificação, a excessiva generalização. A história da África é uma história de
sociedades humanas, que desenvolveram organizações políticas e econômicas
nem sempre pautadas na igualdade e na fraternidade. Não existe um africano
essencializado, nem na África, aquele imenso continente, nem no Brasil, com
toda a diversidade de origens e povos entre os que foram para aqui trazidos.
Portanto, sempre no plural. Parece óbvio, mas é uma questão fundamental, e
ainda a ser trabalhada melhor. Há aspectos em comum, entretanto, que podem
e devem ser ressaltados na compreensão das africanidades – e para tanto,
leiam, entre outros, a Kabengele Munanga, que, no Brasil, trouxe importante
contribuição do campo da Antropologia. E, para saborear a rica e encantado-
ra diversidade das muitas áfricas, leiam, além dos historiadores, obras de au-

Junho de 2012 135


Martha Abreu e Silvio de Almeida Carvalho Filho

tores africanos nas suas diversas expressões no campo da Literatura. Leiam e


levem para seus estudantes lerem: poesia, contos, romances. Tudo isso ilumi-
nará suas aulas de História da África.
Para mais e melhor ainda: levem músicas, e sempre que possível, imagens
em movimento (filmes, documentários) às suas salas de aula. Ver as muitas
caras da África, suas questões, suas paisagens. Nada tão produtivo como assis-
tir, comentar e trabalhar sobre esse tipo de material. Para se aproximar e en-
tender as muitas heranças vivas da África no Brasil, igualmente: nada como
ver e (re)conhecê-las em documentários produzidos para esse fim, com todas
suas cores e sonoridades. Há muitos recentemente produzidos, alguns deles
na internet – é só baixar! A África e as heranças africanas – a presença africa-
na – no Brasil devem ser apresentadas em toda sua riqueza e beleza, para en-
cantar, e fazer com que seja motivo de orgulho, para fomentar atitude positiva.
Ensinar história da África e história dos africanos e negros no Brasil é,
sim, um instrumento na luta contra o racismo. E isso não faz as nossas aulas,
as nossas pesquisas, os nossos trabalhos, algo menos acadêmico. Ao contrário.
Nosso campo de estudo tem a profundidade e a consistência do trabalho de
profissionais de História, junto ao compromisso na formação de pessoas e na
construção de um conhecimento que contribua para a afirmação de valores
mais humanos e mais solidários.

136 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


137
Reflexões sobre o ensino colonial
em África: trajetórias da instituição
escolar no antigo Sudão (1889-1952)1
Reflections on the colonial education in Africa:
trajectories of the school in the old Sudan (1889-1952)
Patricia Teixeira Santos*

Resumo Abstract
O artigo consiste no estudo da trajetória The paper focuses on the trajectory of
da constituição das escolas coloniais no the constitution of colonial schools, in
território que corresponde, atualmente, the territory which currently corre-
aos países do Sudão e Sudão do Sul (de- sponds to the countries of Sudan and
cretado autônomo no ano de 2011). O Southern Sudan (enacted autonomous
ensino colonial desenvolvido pelas mis- in 2011). The colonial education devel-
sões católicas foi fundamental para hie- oped by the catholic missions was es-
rarquização de populações e para a con- sential for the hierarchization of popu-
sagração da divisão política e territorial lations and for the consecration of
dos povos sudaneses. O processo escolar political and territorial division of the
também desenvolveu a formação de Sudanese people. The school process
quadros da elite e produziu conteúdos has also developed the formation of pic-
históricos escolares que circularam para tures of the elite and produced histori-
além das fronteiras coloniais, e que fo- cal school content that circulated be-
ram ensinados também para a infância e yond the colonial borders, and which
a juventude na Europa. Assim, jovens was also taught to children and youth in
africanos e europeus aprenderam os Europe. Thus, young Africans and Eu-
mesmos conteúdos sobre a África, po- ropeans have both learned the same
rém os vivenciaram de forma hierarqui- content about Africa, but they have ex-
camente diferenciada. perienced them in a hierarchically dif-
Palavras-chave: ensino colonial; hie- ferentiated way.
rarquia de populações; saber histórico- Keywords: colonial education; hierarchy of
-escolar. populations; historical-school knowledge.

Instituição fundamental para o enquadramento das populações africanas


na hierarquia das relações coloniais, a escola em África e sua história têm

*Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Estrada do Caminho Velho, 333. 07252-312 Guarulhos
– SP – Brasil. patricia.teixeira.santos@pq.cnpq.br

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 139-155 - 2012


Patricia Teixeira Santos

suscitado relevantes reflexões que permitem perceber o enquadramento dos


corpos da criança e da juventude ao corpo e ao papel social que se esperava dos
educandos, como súditos dos impérios e áreas de influência coloniais.
Em conjunto com as escolas coloniais, surgiam também as primeiras ins-
tituições escolares públicas na Europa Ocidental e na América Latina. O ensi-
no se colocava como meio de conduzir povos e espaços periféricos do mundo
para o rumo da civilização.
A proposta deste artigo é convidar para reflexão sobre a instituição esco-
lar, levando em consideração no seu processo o desenvolvimento das primei-
ras escolas de artes e ofícios, de alfabetização, dos liceus de ensino médio em
África, pontuando que através dessa ampliação de horizontes pode-se perceber
a circulação transnacional de princípios de subalternização de populações e
estruturação de hierarquias sociais, através da constatação de conteúdos co-
muns que estavam presentes nas duas grandes experiências de educação que
são contemporâneas e que, em alguns espaços, envolvem os mesmos agentes
educadores e autores dos livros ‘para o ensino’.
Um conteúdo fundamental desse cruzamento do surgimento das escolas
públicas e das escolas coloniais será o da educação para o trabalho, de modo
especial, do que se denominava ‘educação artesanal’.
Para o exercício dessa análise que, em muitos momentos, para nós, po-
derá parecer o de olhar-se no espelho, foi escolhida a análise da trajetória da
estruturação da instituição escolar no antigo Sudão, que no ano de 2010 foi
dividido e tornou-se dois países: o Sudão do Norte e o Sudão do Sul.
Também nessa história do Sudão o ensino teve papel fundamental para
legitimar as reivindicações de especificidades de povos e espaços no sul do país,
que embasaram as reivindicações de separação e foram consideradas legítimas
por parte da ONU e da opinião pública internacional.
Por esse motivo, o objetivo deste artigo é analisar, no caso sudanês, a
estreita relação entre educação, hierarquia de populações e designação de es-
paços geográficos, religiosos e sociais. Para tanto, ele será dividido em duas
partes, as quais tratarão, respectivamente, da educação artesanal e do ordena-
mento do mundo colonial, e da criação do Comboni College e da administra-
ção colonial no fim do colonialismo.

140 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Reflexões sobre o ensino colonial em África

Educação artesanal e ordenamento do mundo colonial

No antigo Sudão, a educação escolar ocidental foi introduzida pelos pa-


dres e pelas religiosas do antigo Instituto das Missões pela Nigrizia (atuais
Missionários e Missionárias Combonianos do Coração de Jesus). Quando os
primeiros missionários chegaram com aquele que veio a ser Vigário apostóli-
co da África central, d. Daniel Comboni, o espaço que compreendia o antigo
Sudão era marcado pela presença das zaiwas, os locais onde ficavam as con-
frarias sufis, rotas de peregrinação islâmicas, de deslocamento de populações
por conta de escravos para as áreas otomanas e de oásis e pequenas mesquitas,
onde as crianças eram alfabetizadas em árabe.
Nesse local de intensa circulação de pessoas, ideias, práticas e também de
escravos, o aprendizado ocorria no desenvolvimento das relações comerciais,
e as crianças, de modo particular, viviam situações de ensino na rotina do
trabalho familiar, do aprendizado da leitura e da escrita nas mesquitas ou por
preceptores (no caso das que eram muçulmanas). Além disso, a tradição oral
ensinava as hierarquias sociais, de trabalho e da cosmogonia das diferentes
sociedades, islamizadas ou não, que estavam nesse grande espaço territorial,
cultural e político que foi o Sudão anglo-egípcio até o ano de 1954, quando
ocorreu a independência e o fim do mandato britânico.
Os missionários católicos eram vistos como mais uns atores internacio-
nais presentes naquele espaço, desconhecidos por conta da origem e da língua
que falavam, mas que eram submetidos às formas locais de acordo, interação
e negociação para a manutenção de sua presença no Sudão.
Essa fragilidade da presença da Igreja afligia os padres que tinham a preo-
cupação de construir sinais concretos da ação missionária, como o aldeamen-
to missionário, a Igreja, a escola e as unidades agrícolas. Para o missionarismo
católico, a forma de o cristianismo estar presente significava o que Riolando
Azzi definiu como cristandade,2 ou seja, que o estabelecimento do cristianismo
deveria significar a alteração das condições da civilização material, tornando-
-se concretamente presente e alterando os rumos das relações da sociedade,
convertendo-a para Cristo e tornando-a o sinal terrestre da Igreja celeste.
No entanto, esses missionários não alcançaram êxito, e o ambiente local,
antes visto como sedutor e motivador da ação, passou a ser negado e hostili-
zado, sendo necessário então construir-se uma alternativa às demais socieda-

Junho de 2012 141


Patricia Teixeira Santos

des existentes, construindo uma própria, que se fortaleceria por ser a negação
das demais e por superá-las pelo contraste da sua eficiência catequética, esco-
lar e econômica.
No ano de 1876 d. Comboni comprou terras e criou a colônia antiescra-
vista de Malbes. Essa seria uma alternativa para a insegurança do próprio tra-
balho missionário, na medida em que as aldeias missionárias eram, por vezes,
atacadas por mercadores de escravos, e era também um espaço que deveria
claramente se contrapor às zawyas e às sociedades tradicionais que impunham,
a cada instante, limites e negociações para a manutenção da presença missio-
nária.3
Contudo, o fato de estarem tão interdependentes dessas estruturas locais
colocou esses missionários num papel privilegiado de mediação entre as so-
ciedades islâmicas e tradicionais e as autoridades egípcias e otomanas que
controlavam o Sudão e, posteriormente, as autoridades inglesas.
Em 1885, Comboni já havia morrido e suas missões foram convulsiona-
das pela revolta islâmica, liderada por Muhammad Ahmad Ibn Allah, consi-
derado Mahdi (O bem guiado), que construiu uma série de políticas de alian-
ças com os povos do Sul e do norte do Sudão e que impôs pesados limites às
presenças otomana, egípcia e inglesa. Um grupo de missionários e seus cate-
cúmenos foram feitos prisioneiros, e os missionários que escaparam com seus
bens, com as populações dos aldeamentos e os catequistas, se transferiram do
centro do Sudão para o sul do Egito, para as cidades de Wadi Halfa e depois
Gezira.
O custo financeiro e moral dessa transferência foi altíssimo para os mis-
sionários, mas justificado para as autoridades eclesiásticas sob o princípio de
que era necessário salvar o trabalho missionário católico e isso significava,
concretamente, o deslocamento material, financeiro, de infraestrutura e po-
pulacional para uma região ‘menos ameaçadora’ e já sob influência colonial
britânica.4
Nesse processo de deslocamento percebeu-se que o trabalho missionário
não tinha a oportunidade de crescer pela via do proselitismo. O fundamental
era conservar a cristandade já conquistada, e, para isso, a construção de uma
escola de artes e ofícios se fazia de fundamental importância.
Na ausência da possibilidade de proselitismo e batismo, criavam-se esco-
las, construía-se um prédio-fortaleza, abrigo do mundo externo, e controla-

142 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Reflexões sobre o ensino colonial em África

vam-se os corpos dos jovens refugiados e das crianças com o ensino do traba-
lho manual, ‘adequado para os indígenas’, na medida em que direcionava a
energia dos ‘instintos’ para a construção da civilização.
A escola de Gezira funcionou de 1889 a 1905 e foi dirigida nos seus pri-
mórdios pelo padre Casemiro Giacomelli. Apostando na educação dos sentidos
e da sensibilidade, a escola, sob a orientação de Giacomelli, enfatizava o traba-
lho manual, a educação musical e o teatro para a elevação e o desenvolvimen-
to de instintos superiores nos catecúmenos.5
A escola recebia crianças da sociedade circundante, que tinha, em muitos
casos, laços de parentesco e religiosos muito próximos com os moradores da
escola de Gezira. Os padres, já sob legislação britânica, recebiam em suas es-
colas crianças não católicas, as quais aprendiam nos ofícios o seu papel dentro
da hierarquia de populações do Império.
Os materiais escolares e o mobiliário eram construídos, segundo os mis-
sionários, de acordo com as especificidades de tamanho e idade dos seus alu-
nos. Essa preocupação também podia ser percebida nas missões dos Padres de
Nossa Senhora da África (conhecidos como Padres Brancos) que construíram
escolas na Argélia para crianças muçulmanas.
Nas escolas dos Padres Brancos ensinava-se a geografia colonial, alfabe-
tizava-se no francês e se ensinava, investindo-se para isso modernos recursos
educativos, a biologia do corpo humano.6 Para estas aulas, em particular, as
crianças tinham acesso a encartes do corpo humano, aprendendo, de forma
lúdica, a fisiologia e a anatomia.
Nas escolas francesas do início do século, bem como nas italianas, as fotos
e os relatos dos missionários eram muitas vezes censurados. A revista missio-
nária dos Padres Combonianos, Nigrizia, chegou a ser censurada em algumas
dioceses porque colocavam na sua capa homens e mulheres nus, que, mais do
que ilustrar, demonstravam outra forma social de lidar com o corpo. Além
disso, em muitas escolas religiosas e públicas do ensino elementar os encartes
para estudo do corpo humano, semelhantes aos que eram usados nas escolas
argelinas pelos missionários de Nossa Senhora da África, não eram permitidos.
Assim como na censura das revistas, mostrar o corpo numa dimensão tão
profunda e detalhada poderia despertar uma percepção de corpo que talvez
extrapolasse as possibilidades do seu controle social e o impediria de ser ‘cor-
retamente educado’ e ‘controlado’.

Junho de 2012 143


Patricia Teixeira Santos

No entanto, nas escolas africanas sob responsabilidade dos padres bran-


cos ocorria a forma inversa de ensinar. Trabalhando com a documentação
produzida por esses missionários, como acontece com a dos padres da Nigrizia,
percebe-se em muitos casos, especialmente nos que se dedicaram ao ensino, a
percepção do que poderia ser chamado de um ‘darwinismo às avessas’. Ou
seja, como as crianças não brancas tinham, do ponto de vista do olhar racia-
lista da ciência e do entendimento católico sobre o mundo não europeu, maior
propensão para o desenvolvimento corpóreo e sensual, ele poderia ser ampla-
mente usado na educação, apelando-se para uma aprendizagem emotiva, sen-
sorial, que estimularia o uso do corpo para o trabalho e as expressões artísticas.7
Assim, a educação para o trabalho deveria utilizar também as expressões
musicais, a dança, a pintura e a escultura, de modo que os ateliês missionários
tornaram-se instituições importantes que incorporaram as concepções artís-
ticas e estéticas locais para os seus ideais de educação, hierarquização de po-
pulações e construção das condições materiais do estabelecimento do em-
preendimento evangelizador católico.
Na escola de Gezira, a rotina era marcada pelo controle do relógio e pela
administração do tempo que poderia ser considerado ‘ocioso’. Com base tam-
bém na experiência jesuíta do controle do trabalho e da produção, a educação
artesanal oferecida em Gezira destinava-se ao abastecimento das necessidades
da escola e também à formação de súditos ordeiros e colaboradores da empre-
sa civilizatória do trabalho, empreendida pelos ingleses.
Com base na experiência da escola de Gezira, que durou até 1905, foram
estruturadas diversas escolas artesanais, as quais funcionavam muito interli-
gadas às necessidades de autossustento e manutenção de infraestrutura do
trabalho missionário.
Em 1910, os Missionários Combonianos, na época conhecidos como “Ve-
rona Fathers”, criaram no sul do Sudão a escola de artes e ofícios de Wau, que
se destacaria pelo uso de moderna tecnologia e iria expandir a dimensão da
formação técnica qualificada, dentro do processo de hierarquização de popu-
lações do sul, em referência a Khartum, onde se situava a administração do
condomínio anglo-egípcio e o inglês era a língua da gestão, e o árabe, de co-
municação.
Em torno da escola artesanal de Wau consolidou-se o ensino ‘para os
povos do sul’, das línguas locais e da clara negação da expansão do ensino do

144 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Reflexões sobre o ensino colonial em África

árabe, uma vez que esta poderia trazer, no seu bojo, a ameaça do proselitismo
islâmico.
Tal visão, corroborada pelos ingleses, alimentava mutuamente a divisão
política e missionária do Sudão, onde as fronteiras estabelecidas por ambos se
reforçavam e consolidavam o princípio de que o sul deveria ter uma adminis-
tração distinta e subalterna ao norte. Para os missionários, tal divisão era in-
teressante, porque de fato poderia permitir o desenvolvimento de um estabe-
lecimento das bases materiais da cristandade e do êxito da presença católica
nessa região de África.
Assim, consolidou-se primeiro na discursividade colonial e missionária
o princípio da distinção do sul em relação ao norte, separação que deveria ser
consolidada por um sistema de ensino que garantisse a subalternidade do sul,
para não se chocar com os interesses ingleses, mas que ao mesmo tempo con-
ferisse à Igreja missionária na região uma série de proteções e direitos de tute-
la, o que conferiria a possibilidade de êxito à ação missionária católica.
As escolas artesanais e os ateliês missionários traziam para o seu interior
os artistas tradicionais dos diferentes povos do sul do antigo Sudão e conferiam
a esses e aos catequistas locais o importante papel de construção da infraestru-
tura material e eclesial para a consolidação da tutela católica sobre ‘os povos
indígenas’.
A educação passa a ser vista como meio para fazer esses povos retornarem
à sua ‘essência primeira’, porém conduzida de forma moderna para o serviço
ao trabalho e para a consolidação da ordem colonial/civilizacional.
As expressões afetivas das crianças e dos jovens, como o sorriso e a ter-
nura dos gestos, são sinais publicados nas capas da revista Nigrizia, que refor-
çava no campo da narrativa o princípio de que a educação dos nativos deveria
basear-se no aprimoramento dos “instintos primevos” e buscaria elevá-los,
através de uma educação afetiva e coercitiva do corpo, para o “grau da civili-
zação”, já “intrínseco, porém ainda não revelado”.
As escolas artesanais eram hierarquizadas por idade e destinavam-se so-
mente aos meninos. As mulheres e meninas eram alvo da catequese nos aldea­
mentos missionários e dos trabalhos domésticos dentro deles. O mobiliário
era adequado à faixa etária dos alunos, e a sofisticação e modernidade dos
instrumentos do trabalho e da técnica eram exaltados como forma de inserção
da África no cenário internacional da produção feita com fins civilizatórios, e

Junho de 2012 145


Patricia Teixeira Santos

com trabalhadores “fiéis, dedicados e dóceis”, segundo os princípios do que a


encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII (1891), esperava da relação entre
patrões e empregados.

O primeiro princípio a pôr em evidência é que o homem deve aceitar com pa-
ciência a sua condição: é impossível que na sociedade civil todos sejam elevados
ao mesmo nível. É, sem dúvida, isto o que desejam os Socialistas; mas contra a
natureza todos os esforços são vãos. Foi ela, realmente, que estabeleceu entre os
homens diferenças tão multíplices como profundas; diferenças de inteligência, de
talento, de habilidade, de saúde, de força; diferenças necessárias, de onde nasce
espontaneamente a desigualdade das condições. Esta desigualdade, por outro la-
do, reverte em proveito de todos, tanto da sociedade como dos indivíduos; por-
que a vida social requer um organismo muito variado e funções muito diversas,
e o que leva precisamente os homens a partilharem estas funções é, principal-
mente, a diferença das suas respectivas condições.
Pelo que diz respeito ao trabalho em particular, o homem, mesmo no estado
de inocência, não era destinado a viver na ociosidade, mas, ao que a vontade teria
abraçado livremente como exercício agradável, a necessidade lhe acrescentou,
depois do pecado, o sentimento da dor e o impôs como uma expiação...8

O trabalho e a consideração hierárquica das obrigações dos superiores


para com os subalternos deveriam suscitar em todo o mundo moderno o sen-
timento de obrigação recíproca. De acordo com a Rerum Novarum, tal obri-
gação recíproca deveria ser assentada nos valores cristãos do respeito à pro-
priedade e à hierarquia social. No caso das colônias, no fomento à educação
ao trabalho como forma de “castigo benemérito” para o “selvagem corpo” do
homem africano.
O que uniria os trabalhadores da Europa e da África nos laços hierárqui-
cos da subalternidade da relação com os detentores dos meios produtivos seria
o princípio da caridade, apresentado no contexto do século XIX como o ver-
dadeiro sentimento e elo de ligação que tornaria o trabalho o caminho divino
para a ordenação do mundo e a hierarquização de populações.
Essa caridade deveria ser embasada em saberes produzidos sobre as so-
ciedades não europeias, os quais deveriam circular e ser conhecidos nas esco-
las. Essas informações deveriam apontar que o reverso do desperdício e da

146 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Reflexões sobre o ensino colonial em África

revolta social era a perdição do mundo colonial, no caos e nas trevas, de uma
existência sem a intervenção europeia.
Nesse contexto, saberes, imagens e experiências de África dos missioná-
rios começaram a ser ensinados em livros religiosos, textos de história e nos
primeiros quadrinhos infantis católicos, os quais celebravam personagens em-
blemáticos que representavam o ‘mundo selvagem’. O interlocutor e narrador
dessas histórias era, em grande parte, o padre missionário branco.
As crianças que dependiam da educação católica artesanal na Europa,
filhas de operários em difíceis condições de vida e crianças africanas nas esco-
las de artes e ofícios, aprendiam com o trabalho manual a forma de inserção
hierárquica e subalterna, em que as crianças não brancas eram ainda mais
subalternas, porque hierarquicamente consideradas mais ‘necessitadas’ que as
crianças pobres das periferias do mundo industrial italiano, francês e alemão.
Além disso, a preocupação didática com a infância nas escolas públicas e
nas escolas coloniais começou na década de 1930 a ganhar um importante
destaque. Autores e autoridades civis e religiosas ligadas ao processo de educa-
ção das massas circularam no universo didático das escolas coloniais e da edu-
cação dos filhos de operários, e, assim, crianças europeias e africanas aprende-
ram os mesmos conteúdos sobre quem eram os seus ancestrais. É celebre o
relato de Leopold Sedar Senghor, que veio a ser o primeiro presidente do Sene-
gal: ele dizia ter aprendido na escola que “seus antepassados eram os gauleses”.
No universo das colônias britânicas em África havia preocupação com a
forte evasão escolar. Uma das razões apontadas era que elas não conseguiam
se ver retratadas nos livros de história, que contavam o passado da nação co-
lonizadora. A solução adotada foi a de acrescentar, ao final de cada capítulo,
uma parte de mitos e fábulas africanos, onde as crianças aprenderiam sobre o
seu passado.9 Acreditava-se que com o advento da escola e da administração
colonial o ‘genuíno passado africano’ havia sido destruído, e que caberia à
escola criar um novo passado para poder envolver e criar condições de con-
trole sobre os insubordinados alunos das escolas artesanais e de educação ele-
mentar.
Se no sul do Sudão as escolas de artes e ofícios tiveram um papel impor-
tante de ordenamento e hierarquização de populações para o êxito do projeto
colonial e do trabalho missionário, em Khartum foi criado em 1929 o Combo-
ni College, fundamental para formação de quadros administrativos de alto

Junho de 2012 147


Patricia Teixeira Santos

nível e da elite local, que teve postos chaves na administração do Sudão no


pós-independência, em 1954. No próximo item será analisado o papel dessa
escola, bem como suas relações com a criação de quadros políticos que, já no
outono do colonialismo na região, foram fundamentais para o processo de
transição da independência e para a relação neocolonial com a Inglaterra em
meados da década de 1950.

O Comboni College e a administração


colonial no fim do colonialismo

Em 1898, o coronel Kitchner derrotou na batalha de Karari as últimas


forças do Estado islâmico mahdista no Sudão, que durante 17 anos impusera
fortes limites à expansão inglesa no coração da África centro-oriental, além de
reveses militares e financeiros.
Coube aos missionários o legado da experiência mahdista de ordenamen-
to e hierarquização das populações. Sobre essa herança os ingleses construíram
a legislação colonial, e os missionários católicos e suas escolas e missões tive-
ram um papel importante na consagração e no aprofundamento de hierarquias
de subalternização de populações dentro da administração anglo-egípcia.
Os missionários de d. Comboni herdaram esse legado, sobretudo porque
alguns deles e algumas religiosas foram prisioneiros do Estado mahdista e,
durante o tempo em que estiveram com o Mahdi, desempenharam o impor-
tante papel de mediadores com os demais prisioneiros. Além disso, na intera-
ção com o líder Muhammad Ahmad construiriam narrativa e experiências
sobre a diversidade das populações que apoiaram o Estado mahdista. Essa
participação foi valiosa para a construção das políticas territoriais e de contro-
le de população do Sudão, no alvorecer do século XX.
O Comboni College foi criado como uma forma de consagrar a presença
missionária, a despeito da não possibilidade expressa de proselitismo. A alter-
nativa de abertura de escolas se colocava quando havia impedimento para o
desenvolvimento da ação missionária proselitista. No entanto, a presença ca-
tólica se adensou e se aprofundou com a escola no meio das elites sudanesas
do norte do antigo Sudão.
Esse fato é tão eloquente que coube aos missionários professores do Com-
boni College a tutela dos filhos de Muhammad Ahmad até a fase adulta. Além

148 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Reflexões sobre o ensino colonial em África

disso, os principais quadros da administração colonial e pós-colonial foram


formados na escola.
Sobre a experiência de ser aluno de uma importante escola colonial que
tinha esse papel de formadora de quadros administrativos e sobre o ensino
recebido, gostaria de destacar aqui o belo relato do escritor Chinua Achebe, da
Nigéria, que é bem ilustrativo:

Talvez seja mera coincidência, mas os ex-alunos do Government College de


Umuahia tiveram um papel destacado no desenvolvimento da moderna literatu-
ra africana. O fato de que tantos colegas meus – Christopher Okigbo, Gabriel
Okara, Elechi Amadi, Chukwuwmeka Ike, I. N. C. Aniebo, Ken Saro-Wiwa e
outros – frequentaram a mesma escola deve chamar a atenção de qualquer um
que tenha familiaridade com essa literatura. O que líamos na biblioteca da escola
de Umuahia eram os mesmos livros que os garotos ingleses liam na Inglaterra –
A Ilha do Tesouro, Os anos de escola de Tom Brown, O Prisioneiro de Zenda, David
Copperfield. Eles não falavam sobre nós ou sobre pessoas como nós, mas eram
histórias emocionantes. Mesmo histórias como as de John Buchan, em que os
homens brancos lutavam heroicamente e derrotavam os repulsivos habitantes
nativos, não nos perturbavam no início. Mas tudo isso acabava sendo uma exce-
lente preparação para o dia em que teríamos idade para ler nas entrelinhas e fa-
zer indagações...10

Os jovens cristãos, que eram poucos, conviviam com jovens muçulmanos


do norte e coptas, o que configurava à instituição um ambiente de grande di-
versidade étnica e religiosa. O papel dos padres educadores era o de colaborar
e formar uma juventude capaz de administrar as condições de coexistência da
Igreja com a administração colonial britânica.
O Comboni College tornou-se modelo de ensino e formação de quadros
administrativos e da convivência hierarquizante dos diferentes súditos colo-
niais. Acreditava-se que a força do exemplo e do convívio de alunos cristãos e
não cristãos levaria estes últimos a serem progressivamente “trazidos para o
seio da fé correta”, uma vez que esta, além de garantir a salvação da alma,
dominava os códigos intelectuais e morais necessários para a inserção na or-
dem civilizatória do Império Britânico.
Sobre o papel da escola e a tutela missionária sobre ela, destaca-se o se-
guinte depoimento de um antigo professor da Escola, padre Francesco Cazza-

Junho de 2012 149


Patricia Teixeira Santos

niga, à Revista Missionária Além-Mar, no ano de 1957, já no contexto da in-


dependência do Sudão:

Há quem atribua a salvação das missões no sul do Sudão, durante esse período
crítico que estão a atravessar, ao nosso Colégio. O povo e o governo estimam-nos
e conhecem-nos só por meio desta obra.
Atualmente estudam na nossa Escola dois filhos do Mahdi; os filhos do ministro
das Finanças, do ministro da Saúde, do ministro do Local Government; muitos
filhos de deputados, dos chefes da política etc. Muitos dirigentes do país saíram
do nosso Colégio. Consequências: benefícios, facilidades, auxílio aos missionários,
apreciados e até amados.
Há trinta anos, o povo insultava o missionário, agora já não. Apesar do regula-
mento rígido, o povo prefere enviar os filhos ao Comboni College, devido à serie-
dade da formação cultural e humana que recebeu nele. Basta ver o horário escolar,
para termos uma ideia disso: aulas das 7:10 horas até às 1:30, e das 16:10 h até às
18:30, estudo. Praticamente os rapazes passam o dia inteiro com os missionários.11

No entanto, no alvorecer da década de 1950, marcado por grandes pro-


testos e lutas nacionalistas que apoiavam os ideais nasseranistas de fim da
presença colonial no Sudão e de união política com o Egito para o fortaleci-
mento do pan-arabismo e da luta de independência da Argélia, muitos inte-
lectuais muçulmanos oriundos do Comboni College, bem como os que estu-
daram na Inglaterra e em outros países do mundo árabe, defenderam a
nacionalização de todas as escolas.
A divisão do país, consagrada pela divisão do caráter do ensino – escolas
artesanais no sul e o Comboni College no norte –, era identificada como pro-
dutora da grande desigualdade e fonte de sustento das ações coloniais. Tal
constatação levou os primeiros governantes do Sudão a nacionalizarem as es-
colas católicas no país, ação que já vinha ocorrendo em outros países africanos,
atingindo também outras congregações missionárias. Diante disso, os Padres
Combonianos publicaram no editorial da revista portuguesa Além-Mar, tam-
bém de propriedade deles, o editorial intitulado “A Escola na África”, no qual
expressaram os seus anseios e preocupações:

Através dos missionários, a Igreja foi a primeira em África a ocupar-se da educa-


ção da juventude. A fundação de uma escola era sempre (e ainda é hoje) um meio
para introduzir o Evangelho entre as massas pagãs e primitivas. “As escolas ofere-

150 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Reflexões sobre o ensino colonial em África

cem aos missionários a grande vantagem de estabelecer contatos com o mundo


pagão e sobretudo de levar mais facilmente a juventude, maleável como a cera, a
compreender, estimar e abraçar a doutrina católica. Estes jovens, assim educados,
serão os futuros dirigentes da sociedade, e a massa do povo seguirá as suas orien-
tações... E mesmo que desta forma as conversões não sejam frequentes, todavia
muitos poderão receber um benéfico impulso considerando a celestial beleza des-
ta religião e a caridade dos seus adeptos” (Pio XII – Evangelii Praecones).
Muitas vezes, a Igreja arcou sozinha com todo peso da escola. Encontrando-se
com uma vasta rede escolar, “teve um monopólio no campo do ensino, mas não
considera como um direito este monopólio que, aliás, nunca pediu (Memorandum
dos bispos congoleses para a educação nacional, 1961). Foram as circunstâncias
históricas que determinaram esse monopólio.
Hoje a escola católica em África é objeto de crítica por parte dos governos e vê
muitas vezes postos em discussão os seus direitos. Em certos casos (Sudão e
Congo Brazzaville) viu-se violentamente nacionalizada e os seus edifícios confis-
cados sem alguma indenização.12

No entanto, a solução tomada pelo general Nimeri, que governou o Sudão


logo após a independência, em 1954, foi a de nacionalizar as escolas, mas de
manter a separação educacional no país, através da imposição da arabização
da língua e dos costumes, como a única via de participação política, de direito
de ingresso nos serviços públicos e de participação nos pleitos políticos.
Diante disso, as escolas católicas existentes no sul do Sudão tiveram o papel
de continuar formando a mão de obra braçal que se dedicou ao processo de
modernização do país, de construção de estradas e do oleoduto para a exploração
do petróleo. Além disso, muitas populações dessa região migraram para os ar-
redores de Khartum, em busca de melhores condições de vida e de trabalho, e
permaneceram em situação de desabrigo e miséria, por conta da fortíssima con-
centração de renda em torno das cidades mais importantes do norte.
Tal forma desigual de construção da nação fomentou os movimentos de
separação, o mais conhecido dos quais foi o SPLM, comandado por John Ga-
rang. Os Missionários Combonianos tiveram aí grande importância, em razão
do apoio e, em diversas situações, do engajamento mais político e mais efetivo
no encorajamento a esse movimento, por conta da política de arabização do
norte, que resultou também em diversos conflitos com os missionários, expul-
sões temporárias e confisco de bens.

Junho de 2012 151


Patricia Teixeira Santos

A educação constituída nos moldes coloniais do desenvolvimento sepa-


rado foi ressignificada como base para a sustentação da diversidade étnica do
sul, que era vista como ameaçada pelo norte.
No processo contemporâneo, cujo ápice foi a separação formal do país
em 2010, as missões combonianas no sul e suas escolas foram chaves para a
organização, reivindicação política e apoio de infraestrutura para o movimen-
to de separação do sul.
As escolas, já na década de 1960, ampliaram-se para o ensino médio, e
nos anos 1980 foi criada a Universidade de Juba, com forte apoio dos missio-
nários católicos.
O modelo da Igreja foi importante para o desenvolvimento do ensino
secundário no sul do Sudão a partir da década de 1960, uma vez que era ne-
cessário formar quadros administrativos em níveis mais elevados para susten-
tar a presença da Igreja local, do ponto de vista político, e liderar os movimen-
tos de contestação da arabização da cultura e da administração geral do país,
empreendida pelo governo Nimeri.

Considerações finais

O percurso das escolas artesanais e dos liceus no Sudão foi profundamen-


te marcado pelos projetos missionários e coloniais para os diferentes povos
desse importante espaço no coração da África centro-oriental.
O ensino das línguas locais e as visões sobre a infância africana eram
condicionados ao papel que esperavam para a África dentro da ordem política
internacional da primeira metade do século XX. A formação dos artesãos foi
bastante enfatizada como forma de se criar uma sociedade alternativa às exis-
tentes no local. Contudo, no pós-independência essa orientação é ressignifi-
cada, tornando-a um elemento de singularidade de uma “autêntica cultura
tradicional não islâmica do sul”.
A produção didática e os prédios das escolas eram a possibilidade de
materialização de um projeto de cristandade que não se efetivou pelo contro-
le efetivo das sociedades ‘nativas’, mas pelo papel de mediação que os religio-
sos estabeleceram com as diferentes populações do Sudão e a ordem colonial
britânica, que no Sudão funcionava em regime de condominium com o Egito.

152 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Reflexões sobre o ensino colonial em África

Como o sentido cristão do trabalho foi o principal conteúdo que marcou as


escolas artesanais que surgiram no contexto de estabelecimento de educação para
as massas, envolvendo, em muitos casos, os mesmos educadores e autores didáti-
cos, constituiu-se ao mesmo tempo, para crianças europeias e africanas, a hierar-
quia de trabalhadores brancos e não brancos, e o binômio raça-trabalho tornou-se
a chave para a maior ou menor aproximação entre esses dois universos.
A criança proletária e a não branca são aproximadas pela escola e pela
educação para o trabalho, na leitura pela qual elas estariam nas periferias das
sociedades modernas, no caso das primeiras, e da civilização, no caso de todas
as crianças não brancas. Se o trabalho era a ideologia para o combate à “vadia-
gem e delinquência” na Europa, no mundo colonial, em especial na África, era
a forma de controlar “os instintos e a barbárie”, etapas anteriores à visão capi-
talista e racialista de progresso do alvorecer do século XX.

Figura 1 – Prédio da escola de Gezira com o corpo docente, alunos e habilitações re-
presentadas – carpintaria, alfaiataria e sapataria. Gezira, 1896. Archivio Fotografico
Comboniano – Roma

Junho de 2012 153


Patricia Teixeira Santos

Figura 2 – Aula de carpintaria na escola artesanal Saint Joseph. Wau, 1910.


Archivio Fotografico Comboniano – Roma

Figura 3 – Sala de aula da escola elementar – Missionários Combonianos,


sul do Sudão, 1987. Fundo Nigrizia, localidades Nyala-Kalma-Bielil.

154 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Reflexões sobre o ensino colonial em África

NOTAS
1
Este artigo resulta de pesquisa sobre o ensino técnico em África, intitulada “Combonia-
nos em Carapira: ensino e missão, Moçambique, 1964-1997”, desenvolvida com o apoio da
FCT, através do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto.
2
AZZI, Riolando. Cristandade colonial: um projeto autoritário. São Paulo: Paulinas, 1987.
p.28-33.
3
Sobre a história de Malbes, ver: SANTOS, Patricia Teixeira. Regenerar a África com a
África: o projeto de evangelização da África central de D. Daniele Comboni, vigário apos-
tólico (1864-1881). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em
História, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2000. p.149-160.
4
Ver: SCHERMANN, Patricia Santos. Fé, guerra e escravidão: cristãos e muçulmanos face
à Mahdiyya no Sudão. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em
História, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2005. p.340-381.
5
Ver documento do Archivio Comboniano – Roma – ACR A/145/8 – GIORNALE ­PADRE
CASEMIRO GIACOMELLI. (1882-1902).
6
LEBLOND, Marius-Ary. Lavigerie et les Pères Blancs. Tours: Maison Mame, 1938. p.47-
50.
7
Ver documento do Archivio Comboniano – Roma – ACR A/24/2 – DIARIO COLONIA
ANTI SCHIAVISTA – GEZIRA (1894-1905).
8
RERUM NOVARUM. Carta encíclica de sua Santidade o Papa Leão XIII sobre as condi-
ções dos operários. Trad. Manuel Alves da Silva, SJ. São Paulo: Paulinas, 2002. p.20-21.
9
SCHERMANN, Patricia Santos. Educação dos súditos versus a formação do cidadão: em-
bates sobre a educação no Sudão. Cadernos Penesb, Niterói, n.8, p.13-35, 2008.
10
ACHEBE, Chinua. A educação de uma criança sob o protetorado britânico: ensaios. Trad.
Isa Mara Lando. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p.29-30.
11
Comboni College. Revista Além-Mar, n.12, p.17-19, jun. 1957.
12
A Voz da Igreja – a escola católica em África. Revista Além-Mar, n.6, p.5, jun. 1966.

Artigo recebido em 20 de janeiro de 2012. Aprovado em 26 de março de 2012.

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As bandas de congo mirins: ensino popular e
vivência de cultura afro-brasileira na Serra (ES)
The Congo children groups: popular education
and experience of Afro-Brazilian culture in Serra (ES)
Michel Dal Col Costa*

Resumo Abstract
O artigo busca apresentar um pouco da The article seeks to present a little of the
tradição das bandas de congo da cidade tradition of Serra Congo groups, in the
da Serra, na Região Metropolitana de Metropolitan Region of Vitória (ES), fo-
Vitória (ES), focalizando especialmente cusing mainly on the history of the par-
a história da participação das crianças ticipation of children in these cultural
nessas manifestações culturais. Com ba- events. The intention is, from a portrait
se em um retrato dessa participação ao of this participation over the course of
longo dos tempos, constituído por ob- time, made up from the ethnographic
servação etnográfica, entrevistas e ou- observation, interviews and other sour-
tras fontes, pretende-se entender me- ces, understand better the work structu-
lhor o trabalho estruturado feito com as red done with children in the so-called
crianças nas chamadas “bandas de con- “children Congo groups” of the region.
go mirins” da região. Apontam-se al- I will point out some elements of the
guns elementos do processo de trans- process of cultural transmission of kno-
missão cultural de conhecimentos wledge related to this culture, and show
referentes a essa cultura e mostra-se co- how they are still worth of old forms
mo tais elementos ainda se valem de and traditional teaching of culture in
formas antigas e tradicionais de ensino these communities. With this, I seek to
da cultura presentes nessas comunida- present a popular face of an education
des. Com isso, apresenta-se a face popu- non-school and experience of the Afro-
lar de um ensino não escolar e a vivên- -Brazilian culture in a Brazilian city.
cia da cultura afro-brasileira em um Keywords: cultural transmission; Con-
município brasileiro. go groups; children.
Palavras-chave: transmissão cultural;
banda de congo; crianças.

* Mestrando em História Social das Relações Políticas. Universidade Federal do Espírito Santo
(Ufes), Programa de Pós-Graduação em História. Av. Fernando Ferrari, 514 – Campus de
Goiabeiras. 29075-910 Vitória – ES – Brasil. micheldalcolcosta2@gmail.com

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 157-178 - 2012


Michel Dal Col Costa

Nos últimos anos, na cidade da Serra, no estado do Espírito Santo, tem


ocorrido uma experiência bem-sucedida de ensino de elementos culturais afro-
-capixabas-brasileiros. Não se trata de uma atuação de técnicos educacionais
ou professores formados nas universidades, mas de uma ação realizada, em
geral, por indivíduos de outra formação: os chamados ‘mestres do folclore’.
Trata-se dos líderes das bandas de congo locais que, depois de um período de
atuação autônoma, recebem apoio da administração municipal para desenvol-
ver o projeto das bandas de congo mirins, as quais envolvem as crianças de
várias comunidades nessa que é uma das mais importantes manifestações do
universo da identidade cultural capixaba.
É um projeto que se aproxima das diretrizes indicadas na Carta do Fol-
clore Brasileiro, aprovada em 1951, no I Congresso Brasileiro de Folclore, que
preconizava a utilização de elementos do folclore na educação, não apenas
como conteúdos, mas como elementos para serem vivenciados.1 Um recurso
que tem sido utilizado por muitos professores que buscam realizar aulas sig-
nificativas do ponto de vista da dinâmica do aprendizado e também por grupos
chamados parafolclóricos, que buscam reproduzir as culturas tradicionais.
Este artigo, portanto, tratará de um processo de transmissão cultural em
execução nas comunidades congueiras do Espírito Santo, tendo como foco a
cidade da Serra, que é um dos municípios da Região Metropolitana de Vitória.
Os processos de transmissão cultural estão imbricados na essência do concei-
to de cultura como será utilizado aqui, segundo a definição de Darcy Ribeiro
em seus Estudos de Antropologia da Civilização:

Cultura é a herança social de uma comunidade humana, representada pelo acervo


coparticipado de modos padronizados de adaptação à natureza para o provimen-
to de subsistência, de normas e instituições reguladoras das relações sociais e de
corpos de saber, de valores e de crenças com que seus membros explicam sua
experiência, exprimem sua criatividade artística e a motivam para a ação ... é uma
ordem particular de fenômenos que tem de característico sua natureza de réplica
conceitual da realidade, transmissível simbolicamente de geração a geração, na for-
ma de uma tradição que provê modos de existência, formas de organização e
meios de expressão a uma comunidade humana.2

O conceito de transmissão cultural, implicitamente mencionado por


Darcy Ribeiro nessa passagem, tem sido utilizado por João Francisco Souza.

158 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


As bandas de congo mirins: ensino popular e vivência de cultura afro-brasileira na Serra (ES)

Em artigo publicado na internet intitulado “A Transmissão Cultural”, esse


autor o definiu como “processos socioculturais no interior de processos edu-
cativos não escolares ou de uma escola pública”.3 Para João F. Souza, tendo
como base Otávio Ianni, esses processos teriam dimensões que o configuram
como socialização ou como espaços educativos, geradores de uma identidade
cultural, pessoal e comunitária, para além da identidade nacional. Seria um
movimento educativo que trabalha com a tradição humana ou, com base em
Henri Giroux, uma política cultural (Souza, 2009).
Inés Dussel, também trabalhando com a realidade das transmissões cul-
turais, apontou que vivemos na atualidade uma crise da transmissão cultural
na sociedade. A autora afirma que essa crise se manifesta nas escolas, lócus
clássico da transmissão cultural, e pode ser expressa a partir da noção de ‘li-
quidez’ de Zygmunt Bauman. Nessa perspectiva, as formas duradouras e está-
veis perderam prestígio em um mundo pautado pelo individualismo capitalis-
ta. A liquidez cultural existente traz dificuldades para “estabelecer laços
coletivos, formas de autoridade tradicionais e pautas de transmissão cultural
mais estáveis e duradouras”.4
Fundamentada em Laura Malosetti Costa, Inés Dussel frisa que, para a
vivência de uma transmissão cultural efetiva com base em uma cultura comum
e que dê sustentação para sair do individualismo e liquidez atual, é importan-
te se ter uma relação mais livre com uma tradição. Nessa liberdade, por exem-
plo, deve haver um lugar para que a tradição possa ser reescrita. Isto é, a trans-
missão cultural, ou ‘reprodução cultural’ (como denominou Pierre Bourdieu),
deve ser algo que se aproximaria da definição dada por Peter Burke, “um pro-
cesso de criação contínua”.5
Penso que a problemática da transmissão cultural da herança material e
imaterial das sociedades na atualidade serve como referencial teórico oportu-
no para pensarmos a experiência da formação das bandas de congo mirins do
Espírito Santo, uma prática educacional popular não escolar. Neste texto será
apresentada uma experiência de transmissão cultural que é um esforço afir-
mativo de preservação e reprodução de elementos culturais tradicionais no
contexto atual. Em um primeiro momento, resumiremos aspectos fundamen-
tais da cultura das bandas de congo capixabas e seus universos de vida. Depois,
acompanharemos a evolução da participação e aprendizado das crianças nes-
sas comunidades tradicionais. E por fim, serão apresentados elementos do

Junho de 2012 159


Michel Dal Col Costa

processo de transmissão cultural presentes na experiência das bandas de con-


go mirins. O foco espacial principal será sempre a cidade da Serra, contudo,
serão feitas algumas poucas referências a outras cidades do Espírito Santo, uma
vez que a cultura do congo pertence a vários municípios do Estado.
Mas, para visualizarmos melhor essa história, imagino que será de grande
valia conhecer um pouco sobre as bandas de congo capixabas e seus universos
de vida e também acompanharmos a evolução da participação e do aprendi-
zado das crianças nessas comunidades tradicionais.

As bandas de congo e seu ciclo folclórico e religioso

As bandas de congo são grupos musicais de percussão, coro de vozes e


dança. Elas existem na Região Metropolitana de Vitória (ES), chegando até seu
interior, nas cidades de Anchieta, Ibiraçu e Colatina, dentre outras.6 Podemos
dizer que há uma ‘área cultural’ 7 das bandas de congo no Espírito Santo. A sua
origem remete aos africanos e indígenas e à influência dos colonizadores por-
tugueses, mas a origem temporal é difícil de determinar com exatidão.8
A parte da percussão é muito rica e variada. Os grupos são formados por
vários homens tocando tambores com as mãos, sendo utilizadas baquetas so-
mente pelos tocadores de bumbo e de caixa. Esses tambores são diversificados,
pois existem os de marcação ou de base e os de repique. Há ainda um instru-
mento denominado ‘cuíca’, que, ao que parece, é uma forma rústica e primi-
tiva das modernas cuícas utilizadas no samba. O chocalho e o triângulo tam-
bém são usados. No conjunto, todos esses instrumentos geram um efeito
muito interessante.
Um instrumento que merece destaque especial é a chamada ‘casaca’ ou
‘reco-reco’,9 sua denominação mais usual em todo o mundo. Toca-se a casaca
raspando os seus dentes feitos de bambu com uma varinha. A casaca possui
uma cabeça humana esculpida na extremidade superior. São vários os tocado-
res de casaca, que, com os outros instrumentos, produzem uma sonoridade
muito interessante e rica.10
As canções trazem expressões de inúmeros temas referentes à realidade e
à natureza locais: canções de amor à mulher e sobre a vida cotidiana da comu-
nidade e da família; assuntos referentes às próprias bandas de congo e sua
função; temas do passado das comunidades onde estão os grupos; e, acima de

160 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


As bandas de congo mirins: ensino popular e vivência de cultura afro-brasileira na Serra (ES)

tudo, temas de louvor, agradecimento e honra aos santos da Igreja aos quais
rendem homenagens. A homenagem aparece também nos estandartes de cada
grupo, podendo haver estandartes de dois santos, ou mais, na mesma banda.11
Na cidade da Serra essa cultura é muito forte, e é essa a área cultural que
possui o maior número de grupos em todo o Espírito Santo. Em sua grande
maioria, esses grupos são organizados e administrados pelas suas comunidades
e pela Associação das Bandas de Congo da Serra (ABC-Serra). Fundada em
1986, é uma entidade criada para organizar, proteger e fortalecer os grupos e
lutar por seus direitos dentro da municipalidade, junto à sociedade e ao Poder
Público.12
Citemos algumas das inúmeras denominações de bandas de congo do
município da Serra: Banda de Congo de Nossa Senhora da Conceição, de Ja-
caraípe; Banda de Congo de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, do
bairro Pitanga; Banda de Congo de São Sebastião e São Benedito, de Nova
Almeida; Banda de Congo de São Benedito, de Santiago; Banda de Congo
Folclórico de São Benedito, do Bairro São Domingos, na região da Serra Sede;
Banda de Congo de Santo Expedito, também do Bairro São Domingos; Banda
de Congo Konshaça, de Serra Sede; e Banda de Congo São Benedito, do bairro
Campinho da Serra.
Uma das festas da Serra Sede, a de São Benedito, é tida como a mais im-
portante, e ocorre no mínimo desde meados do século XVIII,13 sendo consi-
derada uma das maiores festas dedicadas a São Benedito no Espírito Santo. Em
seu ritual há, em resumo, um cortejo festivo que percorre as ruas do Centro
da Serra, nas proximidades da Igreja Matriz, com a finalidade de celebrar São
Benedito, culminando com a fincada de um mastro com a bandeira do santo
em frente ao templo.
Ocorre um ritual em torno desse mastro. No início da preparação dos
festejos, o mastro é cortado pelo povo, capitaneado por Mestre Expedito,14 da
Banda de Congo de Santo Expedito, de São Domingos. Depois, essa madeira,
ainda verde,15 é puxada simbolicamente por uma junta de bois, que são enfei-
tados e acompanhados por um cortejo do povo e de cavaleiros.16 Trata-se de
um cortejo preparatório para o que ocorre nos dias 25 e 26 de dezembro,
quando o mastro, já preparado, é posto dentro de um navio com rodas e pu-
xado pelas ruas da cidade, até ser fincado no dia dedicado a São Benedito, 26
de dezembro. Esse ciclo anual do ritual, portanto, se inicia com o corte da

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Michel Dal Col Costa

madeira na mata e é fechado com a Celebração da Retirada do Mastro, meses


depois de ter ficado exposto em frente à Igreja Matriz, no domingo da Páscoa.
Este pequeno resumo da Festa de São Benedito da Serra Sede mostra um
pouco do principal palco no qual se apresentam as bandas de congo. O povo
realiza esse ritual há mais de um século, como devoção e cumprimento de
promessas pessoais a São Benedito e em agradecimento por um milagre que o
santo negro teria operado no litoral de Nova Almeida, ao salvar um grupo de
escravos de um naufrágio, como conta a explicação tradicional e popular da
origem dessa festa folclórica.17
Há festas semelhantes em inúmeras outras localidades do município da
Serra em que as bandas de congo são presença marcante, como Santiago, Pi-
tanga, Manguinhos, Jacaraípe e Nova Almeida, e também em outras cidades
da Grande Vitória e do interior. Todas são dedicadas aos santos da Igreja
Católica, como Nossa Senhora do Rosário, que em Pitanga é celebrada em
outubro, junto a São Benedito; São Pedro, em Jacaraípe, e Santana e São Se-
bastião, em Manguinhos. São Sebastião também é celebrado em Nova Almei-
da e Santiago, junto a São Benedito (Costa, 2008-2011).
Todo esse conjunto de festas parte de um mesmo conceito ritualístico,
compondo o “Ciclo Folclórico e Religioso da Serra”, como se costuma deno-
minar o complexo dos rituais das bandas de congo do município (Costa, 2010).
Basicamente, esse relato é a herança cultural vivida no processo sociocul-
tural de transmissão cultural operado na formação das bandas de congo mirins
do município da Serra e também em outros espaços educacionais. Mas esse
processo de ensino não escolar de uma cultura afro-capixaba-brasileira que
tem sido estruturado no projeto das bandas mirins na atualidade já existia
anteriormente, mediante formas tradicionais de transmissão de conhecimen-
to e de participação das crianças nessas práticas. Assuntos de que trataremos
nas seções seguintes.

Processo histórico de participação


das crianças nas bandas de congo da Serra

É antigo o caminho de trabalho ou de envolvimento das crianças cantan-


do, dançando e tendo contato com os instrumentos nos grupos de congo no
município da Serra. E isso certamente remonta aos primórdios desses grupos,

162 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


As bandas de congo mirins: ensino popular e vivência de cultura afro-brasileira na Serra (ES)

na época colonial. A forma cultural das bandas de congo, no caso, é mais an-
tiga que os rituais da fincada do mastro, descrito resumidamente linhas atrás,
que surgiu já no século XIX, depois da independência do Brasil. Podemos
periodizar a participação das crianças em várias fases da trajetória histórica
desses grupos na cidade.
A primeira fase da história desses grupos pode ser chamada de ‘espontâ-
nea’. Acredito ser talvez a mais longa de todas as etapas, já que algumas de suas
características perduram até a realidade atual, quando vivemos outro momento
histórico. Recebe a denominação de ‘tempo de participação espontânea’ por-
que remonta a um momento em que ainda não havia estruturas organizadas
de ensino, entendidas como papéis específicos dentro das comunidades para
esse trabalho. Hoje, o trabalho com as crianças nas bandas de congo está es-
truturado com base na Associação de Bandas de Congo (ABC-Serra), graças a
uma lei municipal que a regulamenta, e envolve os coordenadores dos grupos,
instrumentos e indumentárias próprias para as crianças, grupos mirins oficiais
etc. Enfim, há toda uma estrutura de aprendizado e de vida direcionada para
as crianças, que não existia no período histórico que se denomina primeira
fase, ‘espontânea’.
Podemos dizer que, na fase espontânea, aos pais, mães, parentes e mem-
bros sábios da comunidade cabiam as relações de ensino com as crianças, e
isso certamente acontecia muito mais por meio do processo de imitação e
participação livre nos momentos em que os adultos estavam vivenciando a
prática cultural.18
O trabalho com as crianças nessa fase primeira estaria relacionado com
ligações familiares e apegos a determinado aspecto cultural. Para entender o
processo de relação das crianças com a cultura da música das bandas de congo
é preciso ter como pano de fundo as formas antigas de transmissão cultural
adotadas pelas tribos indígenas e pelas próprias tribos africanas, que foram as
construtoras dessa arte. Esta é uma hipótese inferida da história desses grupos.
Na atualidade, as coisas andam de forma diferente, mas evidentemente com
permanências dessa primeira fase.
Temos notícias, graças à história oral, de que na década de 1940 ocorreu
na Serra um momento histórico importante: a experiência da Banda de Congo
de Antônio Rosa, formada por garotos e amigos, o chamado “Conguinho”.
Desse grupo participou Mestre Victor Sacramento, muito antes de se tornar

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Michel Dal Col Costa

mestre e entrar na Banda de Congo Folclórico São Benedito, importante gru-


po da Serra.19 Podemos denominá-la de fase ‘espontânea organizada’, pois,
segundo consta, foi uma iniciativa dos próprios jovens, e de uma forma mini-
mamente organizada, como ficou na memória dos entrevistados.
Nessa época, as crianças participaram como agentes específicos, mas de
forma localizada, sem um projeto mais amplo como temos na atualidade. Ho-
je, há um projeto integrado entre a Associação das Bandas de Congo da Serra,
a Prefeitura Municipal e as comunidades das bandas de congo, envolvendo
toda a cidade. O período histórico que unia a espontaneidade da primeira fase
e princípios iniciais de organização marcou um novo momento histórico,
quando o grupo de meninos do pequeno meio urbano da Serra se reuniu e
formou uma banda de congo para sair tocando pelo povoado, como um tipo
de imitação das bandas adultas.
Eles só podiam fazê-lo porque foram capazes de organizar o conhecimen-
to proveniente de suas percepções e experiências dentro dessa cultura da Ser-
ra e o aplicaram. Arrumaram meios de construir os instrumentos e fizeram
esses grupos, ao que parece, sem acompanhamento adulto. Uma informante
disse que esse grupo foi formado pelo antigo festeiro da cidade, o senhor João
Rosa Machado, pai de Antônio Rosa, na época um dos jovens congueiros, mas
isso não foi mencionado pelos demais entrevistados.
A terceira fase histórica da participação das crianças na cultura das bandas
de congo pode ser denominada de fase ‘organizada de projetos-piloto’. Nela,
ocorrem iniciativas que buscaram viver o ensino da cultura das bandas de
congo de modo fragmentado, ao sabor das vontades e iniciativas culturais de
alguns mestres de congo locais, preocupados com o futuro dessas manifesta-
ções folclóricas. Dentre esses professores de congo, podemos citar o Mestre
Vacinto Rosário Bento, o Zé Bento de Nova Almeida, e o professor José Carlos
de Miranda Filho, o Zé Carlos da Banda Konshaça, de Serra Sede. Este último
foi o que podemos chamar de precursor, com a banda que formou para parti-
cipar da parada militar anual na Serra, no início da década de 1980. Segundo
Zé Carlos, essa banda foi formada por um conjunto de instrumentos que ele
construiu para o evento, que emocionou a todos com a encenação da Festa de
São Benedito da Serra em plena “Parada das Escolas”. Zé Carlos ainda chegou
a montar, na década de 1980, a banda mirim do Bairro Santo Antônio, que não
foi adiante, mas recentemente foi reativada.20

164 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


As bandas de congo mirins: ensino popular e vivência de cultura afro-brasileira na Serra (ES)

O trabalho do professor Zé Carlos continua na atualidade. Ele está coor-


denando o Projeto Congo na Escola, com grupos formados na Escola Serrana
e na Escola Municipal de Educação Infantil “Mônica”, ambas na Serra Sede
(Figura 1). Os grupos se apresentam nas escolas, possuem indumentária espe-
cial e instrumentos próprios.

Figura 1 – Projeto Congo na Escola. No alto, à esquerda, o professor


Zé Carlos. Fonte: CD das Bandas de Congo da Serra: “Congo. O
Canto da Alma. Volume 2”. Foto: Edson Reis.

Já o Mestre Zé Bento montou um projeto inovador por volta de 1984, que


até hoje dá seus frutos. Ele o executou com o aval de Mestre Antônio Rosa,21
que, na época, o havia sondado para a formação de mais uma banda em Nova
Almeida. Zé Bento prontamente aceitou, mas com a condição de que realizaria
um trabalho com as crianças da comunidade. Disse que seria interessante rea-
lizar tal trabalho, pois estariam pensando no futuro da tradição, formando
congueiros para conduzir a cultura no futuro. Mestre Antônio Rosa entendeu
que seria interessante e bom. Com isso, Zé Bento formou a “Banda de Congo
União Jovens dos Reis Magos”. Esse projeto está operante até hoje e já formou
vários congueiros adultos e grupos juvenis.

Junho de 2012 165


Michel Dal Col Costa

Zé Bento ainda trabalhou nessa área com crianças no Projeto Gaivotas de


Nova Almeida –Serra (Figura 2) e com crianças carentes no Bairro São Pedro,
em Vitória.22

Figura 2 – Projeto Gaivota. Ao fundo, Mestre Zé Bento. Fonte: CD


das Bandas de Congo da Serra: “Congo. O Canto da Alma. Volume
2”. Foto: Edson Reis.

A partir do final da década de 1990 surgiu uma nova fase histórica, que
chamarei aqui de ‘estruturada’. Foram constituídos papéis estruturais especí-
ficos, como por exemplo a figura dos coordenadores das bandas mirins, que
deram impulso aos novos trabalhos dos mestres das bandas de congo adultas.
Constituíram, assim, relações novas no interior das comunidades, inserindo-as
em situações e possibilidades nos campos da tradição, da arte de seus ancestrais
e em sua história. Podemos dizer que a reprodução da cultura das bandas de
congo, através da passagem do conhecimento entre as gerações, ganhou um
impulso fenomenal.
A grande responsável pela realização do projeto das bandas mirins da
atualidade junto às crianças da Serra é a Associação das Bandas de Congo
(ABC-Serra). A entidade firmou parceria histórica com a Prefeitura Municipal
no alvorecer do novo milênio, quando se estabeleceu que as bandas de congo

166 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


As bandas de congo mirins: ensino popular e vivência de cultura afro-brasileira na Serra (ES)

da Serra receberiam um benefício financeiro, com a contrapartida de realiza-


rem um trabalho estruturado junto às crianças da comunidade e formarem
grupos de crianças aprendizes como parte de suas bandas. Outra contraparti-
da seria o fato de os meninos e as meninas serem devidamente matriculados
no ensino regular.23
Temos, portanto, segundo nosso modo de interpretar, quatro fases da
história das crianças nas bandas de congo da Serra: fase espontânea (dos pri-
mórdios no período colonial até a década de 1940); fase espontânea organiza-
da (década de 1940 até o início da década de 1980); fase dos projetos estrutu-
rados pilotos (décadas de 1980 e 1990), e a fase estruturada (final da década de
1990 até a atualidade). Todas as fases são importantes e foram se organizando
ao longo da história até chegar à atual, mantendo muitos elementos das fases
antigas.
O ensino que se observa na fase estruturada da atualidade vale-se, na
prática, das experiências acumuladas ao longo dos anos, da força dos ambien-
tes familiares dos congueiros, das relações de amizade e das comunitárias pró-
ximas, entre outros fatores. E quem em geral organiza, ensina e realiza o
­projeto das bandas mirins são os mestres das diversas bandas de congo. E esses
mestres, na sua história de vida, participaram de formas de ensino antigas e
tradicionais de suas comunidades. Com isso, eles utilizam na sua atuação,
práticas de ensino que foram importantes em suas próprias trajetórias.
É interessante mencionar que a cidade da Serra, bem como a Região Me-
tropolitana da Grande Vitória como um todo, a partir da década de 1970 pas-
sou por transformações tremendas em sua realidade. O município que até
essa década tinha menos de 20 mil habitantes passou rapidamente ao montan-
te de mais de 400 mil, como se contabilizou no censo de 2010 do IBGE. Isso se
deve ao processo de industrialização iniciado na década de 1970, que mudou
a realidade de uma cidade basicamente ligada às atividades rurais, tornando-a
um dos maiores centros migratórios do Espírito Santo. Vieram famílias de
Minas Gerais, da Bahia e de outras regiões do Brasil, ou seja, pessoas que não
tinha ligações com a cultura tradicional da cidade. Foi nesse contexto que, na
década de 1980, quando começaram muitos loteamentos regulares e irregula-
res e apareceu o fenômeno da favelização, os problemas sociais se tornaram
marcantes e surgiram as primeiras iniciativas de trabalho com as crianças no
sentido de preservação da cultura tradicional das bandas de congo. Essas ini-

Junho de 2012 167


Michel Dal Col Costa

ciativas piloto foram sendo aperfeiçoadas até chegarem à fase estruturada que
está sendo vivenciada efetivamente desde o ano 2000.

Bandas mirins

As crianças são inscritas nos projetos das diversas bandas de congo tradi-
cionais adultas da cidade da Serra. Geralmente são coordenadas pelos mestres
dos grupos adultos, com a coparticipação de coordenadores específicos esco-
lhidos nas comunidades para cuidar do aprendizado, dos encontros de ensaio
e das apresentações.
Nos encontros previamente marcados se ensinam elementos básicos das
bandas de congo, de acordo com os costumes de cada comunidade. As crian-
ças aprendem as letras das canções tradicionais e as melodias, apesar de, pela
própria experiência, poderem já ter tido algum contato com as toadas tocadas
pelos grupos adultos. Aprendem a história do congo e suas tradições e adqui-
rem conhecimentos sobre o instrumental.
Cada congueirinho, com idade entre 3 e 14 anos, passa por uma avaliação,
para saber qual instrumento vai tocar. Os mais desenvoltos, que aprendem a
tocar vários instrumentos, aprendem também a função de mestre ou capitão
do grupo e ficam incumbidos de governar o conjunto, organizando os instru-
mentistas para que todos toquem dentro do ritmo, cadência e entonação cor-
reta. Em geral, esses pequenos mestres utilizam um apito (como os grupos
adultos) para auxiliar na organização da orquestra de percussão e das vozes
em coro, que são a marca da música das bandas de congo.
Passam o ano se encontrando para conversar, aprender e ensaiar, prepa-
rando as diversas apresentações que fazem em eventos e escolas, apresentações
estas para as quais são encaminhados pelos seus coordenadores e pela própria
ABC-Serra. Os pontos altos de suas apresentações são os Encontros de Bandas
de Congo Mirins da Serra e o de Nova Almeida, bairro da cidade. O primeiro
ocorre todo dezembro nas ruas da Serra Sede; o segundo é realizado em janei-
ro, nas imediações da Igreja Jesuítica dos Reis Magos.24 Esses encontros não
possuem data fixa e já se deram em vários dias desses meses. O importante é
que ocorram em dezembro e janeiro, como uma das partes dos festejos de São
Benedito da Serra Sede (dezembro) e de São Sebastião e São Benedito de Nova

168 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


As bandas de congo mirins: ensino popular e vivência de cultura afro-brasileira na Serra (ES)

Almeida (janeiro). O Encontro de Bandas Mirins da Serra Sede, o mais antigo,


em 2012, vai para a sua 12ª edição, e o de Nova Almeida é mais novo.
Nesses encontros tudo começa por volta das 18 horas, com a chegada dos
grupos em ônibus particulares. Com suas indumentárias, as crianças chegam
de diversas partes da Serra e de outros municípios. Vêm de São Domingos, de
Campinho da Serra, de Pitanga, de Santiago, de Manguinhos, de Jacaraípe, de
Nova Almeida, de Bicanga e, em geral, do município de Fundão, que prestigia
o encontro serrano com a Banda de Congo Mirim do Distrito de Timbuí e com
outros grupos.
Em geral, na Serra Sede a concentração da criançada ocorre na Escola
Estadual de Educação Fundamental e Média Professor João Loyola, onde sa-
las de aula são separada para os grupos. Os momentos iniciais desse evento
são muito interessantes, pois enquanto esperam o início das atividades, os
membros dos grupos de congo mirim ficam se divertindo com os instrumen-
tos no pátio da escola. É uma ‘festa’ em todos os corredores, nas salas e na
quadra de esportes do colégio, que serve de local para brincadeiras, correrias
e convivência da criançada. Todos chegam muito alegres, com batuques e
cantigas, e essa alegria permanece nos momentos que antecedem as atividades
do evento (ver Figura 3).
Dentre os grupos mirins da Serra, os que mais têm participado dos en-
contros são: Banda de Congo Mirim União Jovens dos Reis Magos, de Nova
Almeida; Banda de Congo Mirim de Sant’Ana, de Manguinhos; Banda de Con-
go Mirim São Pedro, de Jacaraípe; Banda de Congo Mirim Santo Antônio de
Pádua, de Bicanga; Banda de Congo Mirim Nossa Senhora do Rosário, de
Pitanga; Banda de Congo Mirim de São Benedito e Nossa Senhora da Concei-
ção, de Campinho da Serra II; Banda de Congo Mirim São Benedito e Santo
Antônio de Pádua, do Bairro São Domingos (Figura 3); Banda de Congo
Konshacinha de Santo Antônio; e Banda de Congo Mirim São Benedito, de
Santiago – Serra.25 Esses grupos (como as bandas adultas mencionadas no
início do artigo) e seus respectivos povoados expressam a mancha demográfi-
ca da Serra antiga, aquela que tinha menos de 20 mil habitantes até a década
de 1970. Em torno dessas comunidades foram surgindo novos bairros e lotea-
mentos, fazendo a mancha demográfica do município crescer enormemente.
Os projetos das bandas mirins têm, contudo, envolvido de diversas formas

Junho de 2012 169


Michel Dal Col Costa

Figura 3 – A Igreja-Matriz de Nossa Senhora da Conceição da Serra,


em frente da qual ocorre a Fincada do Mastro com a Bandeira de
São Benedito todo dia 26 de dezembro, ao som da música das ban-
das de congo e da Banda Estrela dos Artistas. Em primeiro plano,
como dançarina, a sra. Lolinha, viúva do festeiro Mestre Antônio
Rosa, grande liderança do folclore no Espírito Santo. Fonte: CD das
Bandas de Congo da Serra: “Congo. O Canto da Alma. Volume 2”.
Foto: Edson Reis.

pessoas ligadas ao processo migratório, e não só as pessoas vinculadas aos po-


voados antigos do município.
É muito interessante ver o amor, o carinho e o cuidado com que os mes-
tres como o sr. Antônio Freitas e coordenadores como Valdirene, ambos do
Bairro Santiago (Figura 4), tratam o grupo de meninos e meninas e os rituais
e costumes da cultura que representam. E a criançada, até mesmo durante o
lanche, fica o tempo todo tocando os instrumentos, formando pequenos gru-
pos, com a alegria de estar realizando um trabalho coletivo, musical, orquestral,
enfim, cultural.

170 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


As bandas de congo mirins: ensino popular e vivência de cultura afro-brasileira na Serra (ES)

Figura 4 – Região Rural de Santiago, no limite da Serra com Fun-


dão. À direita, ao fundo, a coordenadora e rainha da Banda de
Congo São Benedito de Santiago. Atualmente ela é a presidente da
ABC-Serra. Fonte: CD das Bandas de Congo da Serra: “Congo. O
Canto da Alma. Volume 2”. Foto: Edson Reis.

Na Serra, as apresentações dos grupos começam em um momento que


precede o desfile pelas ruas principais do povoado que vai até a Igreja Matriz
de Nossa Senhora da Conceição. No VIII Encontro de Bandas Mirins de 2008,
todas as crianças tocaram no centro da quadra de esportes do colégio, enquan-
to foram apresentadas por Ramiro Pelissari, locutor do evento (coordenador
da Banda Mirim São Benedito e Santo Antônio de Pádua e seu mestre do
tempo da fundação). Depois disso, saem pelas ruas em fila, como no cortejo
da Festa de São Benedito, porém de forma diferenciada do ritual tradicional.
Em termos indiretos, há muita ligação das bandas de congo da Serra com
a vida do ritual sagrado, pois esses meninos e meninas certamente poderão,
com o tempo, ser os futuros músicos das bandas de congo. É interessante
mencionar que, em termos de repertório, as canções das bandas mirins, em
geral, também são tocadas pelos grupos oficiais na Festa de São Benedito da
Serra e nas outras festas. O que observamos é o embrião de um repertório

Junho de 2012 171


Michel Dal Col Costa

próprio da festa nas bandas mirins, que aprendem nos ensaios e encontros,
diferente do repertório da festa tradicional.
O repertório das cantigas é um elemento estrutural para as bandas adultas
e também para o método de ensino dos mirins. Ao ensinar o ritmo e o reper-
tório tradicional, os coordenadores e mestres dos mirins passam um conceito
do que é a banda de congo e, com isso, inserem os pequenos na própria tradi-
ção das comunidades.

Uma experiência de transmissão cultural

No desfile das bandas mirins, as crianças são, de certa forma, iniciadas em


um tipo de experiência de apresentação que se faz geralmente pelos adultos: o
cortejo andando e tocando pelas ruas da cidade. Certamente muitos dos me-
ninos já haviam passado pelo contato com essa atividade ao observarem as
bandas adultas.
A experiência dos desfiles é interessante para os participantes em termos
de aprendizado geral da cultura das bandas de congo, pois é um momento no
qual os pequenos vivenciam a cultura, pois tocam com pessoas observando a
apresentação, dançando e cantando enquanto acompanham o cortejo. E isso
dá aos meninos e meninas um pouco da essência do espírito de uma apresen-
tação pública como em geral é realizada tradicional e costumeiramente pelas
bandas de congo adultas. Uma experiência como essa é primordial para dar o
entendimento para os pequenos sobre a prática dessa cultura e sobre suas
formas de apresentação.
Daí surge esta questão: o que é preciso para a formação de um músico de
banda de congo ou de um participante geral dessa prática? Uma resposta a
comunidade certamente já tem: é viver desde a infância junto aos familiares e
membros da comunidade dessa cultura, treinar, aprender as músicas, viver a
religiosidade, conhecê-la e se apresentar em encontros como esses, onde se
reproduz o ritual dos adultos. É interessante também frisar que essa prática já
revelou bons frutos em várias comunidades, pois vários mirins já foram com-
por as apresentações com os adultos, e muitos jovens já estão se apresentando
com reconhecida competência. É o caso do próprio neto de Antônio Rosa,
Ramiro, coordenador da sua antiga banda mirim e membro da Banda de Con-
go Folclórico São Benedito, ou dos muitos componentes da Banda Jovens em

172 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


As bandas de congo mirins: ensino popular e vivência de cultura afro-brasileira na Serra (ES)

Prol da Cultura, que foram músicos na União Jovens dos Reis Magos de Nova
Almeida. É, também, o caso da Banda Jovens de Manguinhos e da Cultura
Congo de Bicanga, composta em parte por jovens músicos que cresceram
acompanhando os projetos das bandas de congo mirins do Convênio ABC/
PMS, instituído em 1999.26
Um dos aspectos que pude observar nos cortejos e apresentações é que as
bandas de crianças ainda não possuem a potência completa verificada na adul-
ta ou mesmo nas de jovens, sem deixarem, no entanto, de ser animadas e
alegres. Em especial no cortejo da Banda de Congo Mirim São Benedito de
Santiago, algumas das crianças foram acompanhadas de perto pelos pais, por
coordenadores, ou mesmo por alguns músicos mais velhos, para ajudar no
acompanhamento dos instrumentos e no cantar. E esses adultos iam dando
aos pequenos um apoio, pois estes se tornavam o centro das atenções. A ideia
era fazê-los alcançar, naquela situação nova, da caminhada cantando, um bom
nível de musicalidade. Mestre Antônio Freitas ordenava, com sua casaca, dan-
do ritmo e firmeza aos mirins. Os mais velhos animavam os pequenos nesse
sentido, com evidente respeito aos tamanhos, idades e experiências.
Houve um momento em que Valdirene, pacientemente, parou de cantar
em sequência, como vinha ocorrendo, e fez os tocadores de casaca ficarem só
marcando suavemente o ritmo, numa espécie de exercício de aprendizado que
eles devem sempre fazer. E os tocadores dos outros instrumentos também fi-
caram levemente acompanhando, sem cantar nenhuma canção. E andaram
assim, como se estivessem fazendo uma espécie de aquecimento e de trabalho
de harmonia, para que houvesse a evolução que eles queriam desde o início.
No grupo de crianças, observa-se um núcleo mais desenvolvido em torno
do mestre mirim do apito. Em torno desse grupo há outro mais jovem, que
está ainda se inteirando da musicalidade do congo. Isso é dito sem o intuito de
minorar o resultado coletivo da banda mirim, uma vez que o seu conjunto,
sem exceção, é importante para o todo das canções em execução. Mas, ao que
parece, o tocador de bumbo (que é um instrumento importantíssimo para a
banda de congo, pois dá a sustentação e a base para o todo do conjunto, como
vários congueiros reconhecem) tem peso preponderante no núcleo forte do
grupo, para a música ecoar de forma mais solta. O tocador de bumbo, ao que
parece, é fundamental no trabalho de montagem de uma banda mirim, e mes-
mo de uma banda adulta ou de qualquer idade. Por isso, ele deve ser escolhido

Junho de 2012 173


Michel Dal Col Costa

de forma diferenciada entre os garotos. Ele é um elemento central da banda,


uma espécie de animador forte do grupo.

Considerações finais

A experiência da parceria entre a Associação de Bandas de Congo (ABC-


-Serra) e o Poder Público, especialmente a Prefeitura Municipal da Serra, tem
sido considerada pelos analistas como um exemplo a ser seguido pelos diversos
municípios onde os mestres populares e outros agentes culturais têm buscado
o mesmo sucesso. Dentre os inúmeros resultados positivos verificados ultima-
mente na Serra, como a aquisição dos recursos para fazer manutenção nos
vestuários e nos instrumentos, ou mesmo a construção da Sede da ABC-Serra,
que está sendo finalizada, é no trabalho com as crianças que está o maior or-
gulho da cidade.27 Nesse trabalho revela-se um esforço por manter a tradição
viva entre as gerações em uma época na qual as mudanças sociais e econômi-
cas decorrentes dos processos de globalização e metropolização têm trazido
desafios para essas comunidades tradicionais.
Em geral, as autoridades estabeleceram no convênio que, ao receber os
recursos financeiros, a ABC-Serra daria como contrapartida um trabalho jun-
to às crianças no sentido de formarem bandas de congo de crianças e jovens
em suas comunidades tradicionais. O resultado entre esses jovens, muitas ve-
zes ligados a uma cultura urbana, é de fazer frente ao enfraquecimento das
tradições culturais, promovendo a proteção e a difusão do patrimônio material
e imaterial das bandas de congo e de suas festas, no interior das comunidades
tradicionais e da cidade em geral.
Os líderes do folclore se valeram de uma cultura já existente no local e de
garotos que tinham alguma inserção espontânea na cultura das bandas de con-
go. Recorreram, ainda, a um cabedal de organização também já existente em
algumas iniciativas que deram sentido à formação desse processo estruturado
de transmissão cultural dos conhecimentos necessários para introduzir os jo-
vens nessa cultura afro-capixaba-brasileira.
Há alguns avanços nessa estruturação, tais como: a fabricação de instru-
mentos de proporções menores, próprios para as crianças, que, com a fundação
da Oficina de Instrumentos da ABC-Serra, foi dinamizada e facilitada; a estru-
tura organizativa dos coordenadores, que sempre fazem reuniões avaliativas;

174 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


As bandas de congo mirins: ensino popular e vivência de cultura afro-brasileira na Serra (ES)

a organização dos encontros; a providência sobre transporte e alimentação, e


ainda os belos vestuários dos meninos e meninas que tocam os instrumentos
e das dançarinas, que utilizam vestidos longos para rodopiarem enquanto dan-
çam carregando seus estandartes.
No entanto, pelo que temos observado até o momento, não foi regula-
mentado coletivamente um conjunto de estratégias e técnicas específicas para
o desenvolvimento do projeto. A formação das bandas de congo mirins ficou
sob a responsabilidade e sabedoria dos mestres e das comunidades. Cada uma
criou estratégias próprias, o que fez gerar uma diversidade de resultados entre
as comunidades.
Na parte técnica do aprendizado, há grande autonomia para os diversos
coordenadores no sentido de trabalharem da forma que acharem melhor. Es-
se ponto final pode ser considerado positivo, mas certamente a troca de expe-
riência entre os diversos coordenadores também pode trazer bons frutos.

NOTAS

1
CARTA do Folclore Brasileiro. Folclore. Órgão Informativo da Comissão Espírito-Santen-
se de Folclore, jul.-dez. 1951, p.25. Para uma discussão sobre os congressos e estratégias do
movimento folclórico brasileiro ver VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e missão: o movi-
mento folclórico brasileiro, 1947-1964. Rio de Janeiro: Funarte; Fundação Getúlio Vargas,
1997, especialmente cap. 4.
2
RIBEIRO, Darcy. Estudos de Antropologia da Civilização. Teoria do Brasil. Livro I. 2.ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. p.139, grifos meus.
3
SOUZA, João Francisco. A transmissão cultural. Sociopoética, ISSN 1980 7856, v.1, n.3,
jan.-jul. 2009. Disponível em: eduep.uepb.edu.br/sociopoetica/publicacoes/v1n3pdf/02_
joaofrancisco.pdf; Acesso em: 21 dez. 2011.
4
DUSSEL, Inés. A transmissão cultural assediada: metamorfoses da cultura comum na
escola. Trad. Neide Luzia de Rezende. Cadernos de Pesquisa, v.39, n.137, p.351-365, maio-
-ago. 2009. p.358. Disponível em: www.scielo.br/pdf/cp/v39n137/v39n137a02.pdf; Acesso
em: 21 dez. 2011.
5
BURKE, Peter. O que é história cultural? Trad. Sergio Goes de Paula. 2.ed. rev. e ampliada.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p.130. Peter Burke cita ainda que seria um processo de
reconstrução, aquilo que Lévi-Strauss chamou de bricolage, e de Certeau, de reutilização.
6
BANDA DE CONGO Amores da Lua. 50 anos. CD de áudio. Vitória (ES), 1999;
­ ASCIMENTO, Adriano Roberto Afonso; MENANDRO, Paulo Rogério Meira. Canto de
N
tambor e sereia: identidade e participação nas Bandas de Congo da Barra do Jucu. Vitória

Junho de 2012 175


Michel Dal Col Costa

(ES): Edufes, 2002; BARROS, Paula Guedes. Banda de Congo da Barra do Jucu/ Estado do
Espírito Santo. Folheto 4. Sub-Reitoria Comunitária/ Coordenação de Folclore. Vitória,
1983; MAZOCO, Eliomar Carlos. O congo de máscaras. Vitória: Edufes, 1990.
7
A noção de ‘área cultural’ vem de Franz Boas, que a utiliza em seu método comparativo
em Antropologia Cultural. Ela se refere a um território geográfico onde se manifestam
traços culturais de uma determinada forma cultural específica. BOAS, Franz. Antropologia
Cultural. Org., Apresentação e Trad. Celso Castro. 3.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
8
Alguns estudos se debruçaram sobre a história das bandas de congo. Sobre isso ver
­ EVES, Guilherme Santos. Bandas de Congos. Cadernos de Folclore. Rio de Janeiro: MEC/
N
Secretaria de Assuntos Culturais/Funarte, 1980, n.30; e COSTA, Michel Dal Col. As Ban-
das de Congo da Serra e seu ciclo folclórico e religioso: princípios de sua etnografia e histó-
ria. Relatório de Pesquisa em poder do autor. Associação de Bandas de Congo da Serra
(ABC-Serra), 2010.
9
Há alguns anos, a Serra recebeu a visita de pesquisa de Carlos Stasi, estudioso na área
musical, especialista em instrumentos de raspar, os chamados reco-recos, do Centro de
Raspadores, sediado em Campinas (SP). Ele atestou em suas pesquisas pelo mundo a espe-
cificidade dos reco-recos capixabas, considerando-os únicos em sua forma. O folclorista
capixaba Guilherme Santos Neves defendia a tese de esse instrumento ser uma contribui-
ção indígena, e sobre isso ver NEVES, Guilherme Santos. Coletânea de estudos e registros
do folclore capixaba. 1944-1982. 2v. Vitória: Centro Cultural de Estudos e Pesquisas do
Espírito Santo, 2008, especialmente v.2, p.219-228.
10
Para uma descrição detalhada dos instrumentos das bandas de congo do Espírito Santo,
ver especialmente a Segunda Parte de LINS, Jaceguay. O Congo do Espírito Santo: uma
panorâmica musicológica das bandas de congo. Vitória: s.n., 2009.
11
Para se ter um contato direto com as toadas das bandas de congo ver os CDs das bandas
de congo da Serra: BANDAS de Congo da Serra. O Canto da Alma – v.1 e 2. CD de áudio.
Associação das Bandas de Congo da Serra – ABC-Serra. Serra, s.d.; BANDAS de Congo da
Serra. O Canto da Alma – Homenagem ao Mestre Antônio Rosa. CD de áudio. Associação
das Bandas de Congo da Serra – ABC-Serra. Serra, s.d. Para adquirir esses CDs e instru-
mentos próprios das bandas de congo entrar em contato com a ABC-Serra pelo telefone
(27) 9961-5246. Ver ainda NEVES, 1980, e LINS, 2009, especialmente a terceira parte, on-
de o autor trata da melodia das músicas desses grupos.
12
Recentemente, a ABC-Serra recebeu, das mãos do então presidente Luis Inácio Lula da
Silva e do ministro da Cultura Gilberto Gil, a Comenda do Mérito Cultural, por grandes
serviços prestados à cultura brasileira.
13
Época em que foi fundada a Matriz e Paróquia de Nossa Senhora da Conceição da Serra,
no Centro da Sede, onde até hoje se celebram missas e ocorre toda a vida da comunidade
católica da região. É em frente a essa igreja que o Mastro de São Benedito é fincado todo ano.
14
ANDRADE, Expedito. Entrevista concedida a Michel Dal Col Costa no Jardim Guana-
bara, Serra (ES), 2003.

176 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


As bandas de congo mirins: ensino popular e vivência de cultura afro-brasileira na Serra (ES)

15
Geralmente, em matas próximas à comunidade é colhida uma árvore chamada na região
de ‘guanandi’, que é previamente trabalhada pelos festeiros até o ponto em que, como
mastro simbólico, vai ser puxada em cortejo pelo itinerário tradicional do festejo. COSTA,
Michel Dal Col. Cadernos de registro de observação de campo. Serra (ES), 2008-2011. (Mi-
meogr.).
16
Tradição similar aos cavaleiros da Festa de São Benedito da Serra ocorre na cidade de
Aparecida (São Paulo), em sua Festa de São Benedito. Lá eles também fincam um mastro
em frente à Igreja de São Benedito, e o cortejo é acompanhado pelos ‘Cavaleiros de São
Benedito’. Na Serra, existe uma explicação para esse elemento: os cavaleiros representam
os capatazes e senhores de escravos, que, no início, acompanhavam a festa dos escravos,
para não terem surpresas. SILVA, Cristina Schmidt. Viva São Benedito! Festa popular e
turismo religioso em tempo de globalização. Aparecida (SP): Ed. Santuário, 2000. Ver tam-
bém COSTA, 2008-2011.
17
HISTÓRICO da criação dos festejos de São Benedito da Serra e o primeiro congo criado
pelos escravos. Documento da Associação das Bandas de Congo da Serra, atribuído a An-
tônio de Pádua Machado (Mestre Antônio Rosa). Arquivo da ABC-Serra. Serra, s.d. Ver
ainda COSTA, Michel Dal Col. A explicação tradicional da Festa de São Benedito da Serra-
-ES e a proteção divina nos dramas no mar ao longo da história. Trabalho apresentado no
XV Congresso Brasileiro de Folclore. São José dos Campos (SP), 2011.
18
RODRIGUES, José (Mestre Chuchu) e BRANDES, Vladenira Corrêa de (Dona Neri-
nha). Entrevista. Entrevistador: Michel Dal Col Costa. Realizada na casa dos entrevistados,
em Campinho da Serra, em 31 maio 2003.
19
SACRAMENTO, Victor. Entrevista concedida a Michel Dal Col Costa, em 2 abr. 2008,
na casa do entrevistado, na Serra Sede. O sr. Victor, nascido em 1932, faleceu há algum
tempo, e de suas palavras é possível inferir que a sua participação na banda de congo infan-
to-juvenil precursora ocorreu quando ele tinha entre 11 e 26 anos, aproximadamente. Ou-
tro participante desse grupo foi o sr. Alberico Pereira da Penha, o Seu “Liliu”. Esse antigo
mestre me concedeu também uma entrevista e disse que participou desse grupo quando
tinha 13 ou 14 anos. Nessa época, seu Victor, mais jovem, ainda não participava. PENHA,
Alberico Pereira da (Liliu). Entrevista realizada em 23 abr. 2008 por Michel Dal Col Costa
na casa do entrevistado, em Barcelona – Serra (ES).
20
COSTA (2008-2011); e MIRANDA, José Carlos. Entrevista concedida ao autor, Serra
(ES), 2011.
21
Mestre Antônio Rosa, como é conhecido o falecido Antônio de Pádua Machado, foi um
dos grandes líderes das bandas de congo e dos festejos folclóricos e religiosos da Serra e do
Espírito Santo. Hoje recebe muitas homenagens, e uma delas está no museu e espaço de
exposições Casa do Congo de Serra Sede, que recebeu seu nome. Para conhecer um pouco
da história do Mestre Antônio Rosa, ver COSTA, Michel Dal Col. Mestre Antônio Rosa.
Festeiro Serrano de Autoridade. Série Protagonistas da Serra. Jornal Tempo Novo, Serra
(ES), 23-30 dez. 2011, ano 27, p.8.

Junho de 2012 177


Michel Dal Col Costa

22
CARVALHO, Fábio; DIAS, Alcione (Coord.) O congo na escola: elemento ressignifica-
dor de conhecimentos. Texto do projeto “Congo na Escola”. Vitória (ES), depois de 1999
(ano de início do projeto). Arquivo pessoal; e BENTO, Vacinto do Rosário (Mestre Zé
Bento). Entrevista concedida a Michel Dal Col Costa, realizada na casa do entrevistado, em
Nova Almeida, em 27 jul. 2002.
23
LEI nº 2.288 da Prefeitura Municipal da Serra, Estado do Espírito Santo. Secretaria de
Administração e Recursos Humanos. Publicada no Diário Oficial em 16 maio 2000. Vitó-
ria (ES); PIMENTEL, Teresinha Ozória Machado. Entrevista concedida a Michel Dal Col
Costa, realizada na Sede da Associação das Bandas de Congo da Serra. Serra, 2000;
­“VERBA dá novo ânimo às Bandas de Congo da Serra”. Jornal Tempo Novo, 13 maio 2003,
p.4; CONVÊNIO nº 014/2003-Setur; Processo nº 087.1058/2002. Prefeitura Municipal da
Serra, Estado do Espírito Santo. Publicado no Diário Oficial em 25 fev. 2003. Vitória, 2003.
24
BANDA MIRIM de congo desfila neste domingo. Jornal Tempo Novo, 21 dez. 2001, Ge-
ral, p.27.
25
VALDIRENE. (Rainha da Banda de Congo de Santiago). Banda de congo mirim de São
Benedito de Santiago. Documento produzido na Casa do Congo Mestre Antônio Rosa.
Serra, s.d.; HISTÓRICO da Banda de Congo Mirim União Jovens dos Reis Magos. Docu-
mento produzido na Casa do Congo Mestre Antônio Rosa. Documento avulso, s.n., s.d.;
CONGO MIRIM Sant’Anna estreia hoje em Manguinhos. Jornal Tempo Novo, Serra (ES),
30 jun. 2001; BANDA DE CONGO Mirim São Benedito e Santo Antônio de Pádua. Docu-
mento produzido na Casa do Congo Mestre Antônio Rosa. Texto avulso, s.n., s.d.
26
A HORA e a vez das crianças do congo. A Gazeta, Vitória, 17 maio 2002. Em Foco, p.4;
TOCAR e cantar é mais que uma brincadeira. Notícia Agora, 26 ago. 2001, Cidade, p.7.
27
É um cumprimento de uma das metas da ABC-Serra, como mostra o PROJETO SOCIAL
Cultural de Revitalização das Bandas de Congo do Município da Serra (ES). Acervo ABC-
-Serra. Serra, s.d.

Artigo recebido em 8 de janeiro de 2012. Aprovado em 27 de março de 2012.

178 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Contribuições do Movimento Negro e das
teorias críticas do currículo para a construção
da educação das relações étnico-raciais
Contributions of the ‘Black Movement’ and
critical theories about curricula for the construction
of education for the ethno-racial relationship
Richard Christian Pinto dos Santos*
Grace Kelly Silva Sobral Souza**

Resumo Abstract
O artigo busca relacionar as trajetórias The article seeks to relate the trajecto-
da mobilização política das organiza- ries of political mobilization of social
ções sociais do Movimento Negro na organizations in the Black Movement in
luta contra o racismo, sobretudo no que the fight against racism, especially in re-
concerne à educação escolar, com as da gard to school education, with the sci-
produção científica publicada pelos se- entific production published by the fol-
guidores da corrente teórica das teorias lowers of the current theory of critical
críticas do currículo. A proposta é traçar theories of the Curriculum. The pro-
um paralelo entre conceitos das corren- posal is to draw a parallel between cur-
tes políticas e científicas de modo a re- rent policies and concepts of science to
forçar o arcabouço teórico das práticas enhance the theoretical framework of
pedagógicas que visem à implementa- teaching practices aimed at the imple-
ção da educação das relações étnico-ra- mentation of the Education of Racial
ciais no Brasil como proposto pela Lei Relations in Brazil as proposed by Law
10.639/2003. 10.639/2003.
Palavras-chave: teorias críticas do currí- Keywords: critical theories of curricu-
culo; Movimento Negro; Lei 10.639/2003. lum; Black Movement; Law 10.639/2003.

No dia 9 de janeiro de 2003 foi promulgada a Lei 10.639, que alterou a Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional instituindo a obrigatoriedade do

* Mestrando, Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Maranhão


(UFMA). Av. dos Portugueses, s/n. 65085-550 São Luís – MA – Brasil. richardchristian1984@
yahoo.com.br
** Graduanda em Pedagogia, Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Cidade Universitária
Paulo VI. 65058-250 São Luís – MA – Brasil. grace.kellysouza@yahoo.com.br

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 179-192 - 2012


Richard Christian Pinto dos Santos e Grace Kelly Silva Sobral Souza

ensino da História e Cultura Africana e Afro-brasileira em estabelecimentos


oficiais de Educação Básica. Não deixa de chamar atenção o fato de ser neces-
sária uma lei para que sejam incluídos conteúdos específicos no currículo es-
colar, sobretudo quando se trata de mencionar um grupo extremamente re-
presentativo na formação étnico-cultural da sociedade brasileira.
Uma reflexão embasada nos estudos sobre currículo pode contribuir pa-
ra a compreensão desse fato largamente denunciado inicialmente pelo Movi-
mento Negro e posteriormente pelos intelectuais voltados ao estudo das desi-
gualdades raciais na sociedade em geral e na escola em particular. Em várias
ocasiões já se apontou que o currículo (assim como a própria escola) é um
espaço de conflito e representa os interesses políticos de determinados grupos.
Desta forma, para compreender como implementar a educação das relações
étnico-raciais faz-se necessário conhecer as teorias curriculares e suas rela­
ções com a política, a cultura e a identidade dos atores sociais envolvidos no
processo educativo.

Currículo, poder e identidade

A produção científica que tem como objeto as relações raciais aponta o


relevante papel exercido pela ideologia em meio aos conflitos entre grupos de
origens étnicas distintas que por variados motivos convivam de maneira não
totalmente intencional no interior de uma mesma sociedade. Carlos Moore
em seu trabalho intitulado O racismo através da História 1 traça um panorama
da evolução dos mecanismos de discriminação baseados nesse tipo de critério,
analisando o refinamento das estruturas de poder voltadas para estabelecer a
dominação de um povo sobre outro. Seu texto mostra como nos mais diversos
períodos eram (e permanecem sendo) estabelecidos pressupostos religiosos,
filosóficos e científicos tencionando defender a superioridade dos grupos ét-
nicos detentores (ou pretensamente detentores) da supremacia política sobre
os demais grupos étnicos nas relações sociais e produtivas. Segundo ele,

para efeito da dominação do grupo-alvo subalternizado, surgem as políticas e


mecanismos de contenção (segregação racial), de dissuasão (atomização racial) e
de repressão. Estes geralmente se alicerçam em um ‘mito-ideologia’ destinado a
manter a unidade monolítica do grupo vencedor, tido como superior ao tempo

180 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Contribuições do Movimento Negro e das teorias críticas do currículo

em que atomiza e pulveriza a coerência grupal do grupo-alvo vencido, tido como


inferior. (Moore, 2007, p.191)

Ao longo da história diferentes instituições de caráter religioso, político


ou cultural detiveram o poder de transmitir os saberes socialmente legitima-
dos, e atualmente cabe à escola tal função. Nas últimas décadas do século pas-
sado desenvolveu-se uma gama de pesquisas educacionais que contribuíram
para a observação das disputas que os atores sociais travam no momento de
compor o currículo escolar. As teorias críticas do currículo criticavam as rela-
ções tradicionais entre o conhecimento e as formas de transmiti-lo, bem como
seu papel na manutenção das tradicionais estruturas políticas existentes. O
ponto chave é a denúncia dos mecanismos que transformam um espaço for-
mativo num espaço de reprodução de estruturas de dominação e controle so-
ciais.
Esse novo paradigma teórico-metodológico dará início a uma dicotomia
que ampliará o debate acadêmico, tendo repercussões visíveis até os dias de
hoje. Em oposição às já estabelecidas teorias tradicionais sobre o currículo,
voltadas à prescrição de fórmulas e modelos para a criação de grades discipli-
nares e à catalogação de procedimentos que garantissem a eficácia na sua apli-
cação, surgem estudos preocupados com a contestação do status quo e com
sua responsabilização pela persistência das iniquidades sociais apesar (ou em
virtude) de todo o desenvolvimento científico e material alcançado pela hu-
manidade.2
Althusser3 explicita de forma brilhante a maneira através da qual a classe
dominante exerce sua hegemonia utilizando-se de uma diversidade de insti-
tuições públicas e privadas para transmitir às variadas camadas sociais justa-
mente os valores que legitimam sua posição de poder. As Igrejas, as redes es-
colares, a família, o sistema jurídico, as organizações e partidos políticos, os
sindicatos, a mídia, a indústria cultural e todas as instituições possíveis tornam-
-se Aparelhos Ideológicos do Estado que assegurem as relações de poder esta-
belecidas (Althusser, 1970, p.41-52). É uma visão que, apesar de não discutir
especificamente as relações raciais em educação, apoia os teóricos que se atêm
de maneira mais aprofundada nesse objeto de estudo, pois reforça a ideia de
que a escola não é um espaço neutro como se supunha (ou se é levado a supor),
mas representa os interesses políticos de determinados grupos.

Junho de 2012 181


Richard Christian Pinto dos Santos e Grace Kelly Silva Sobral Souza

Os indivíduos que passam por um processo formativo que justifica sua


opressão acabam eles mesmos se tornando cúmplices e reprodutores dessa
opressão, pois introjetam os valores discriminatórios que permeiam a cultura
legitimada da região que habitam. A naturalização da opressão pelo próprio
oprimido e a aceitação do direito do opressor em exercê-la é condição sine qua
non dos regimes políticos que se amparam nas desigualdades sociais, sejam
elas de caráter étnico, racial, de gênero, de origem regional ou nacional, reli-
gioso, etário ou ideológico, por exemplo. Se o poder estabelecido consegue
prescrever satisfatoriamente sua ideologia de maneira que os grupos margina-
lizados reconheçam seus algozes como o ideal a ser seguido, conseguirá mais
facilmente preservar sua posição, pois as tensões, se não podem ser completa-
mente erradicadas, são mitigadas a ocorrências esparsas ou pouco representa-
tivas. É daí que surge a relevância de paradigmas curriculares emancipatórios
que balizem práticas pedagógicas que primem pela reflexão e pela luta que
conduza rumo à equidade, à liberdade e à justiça social. Que em vez de desu-
manizar levem à transformação social apesar das resistências e tentativas de
desmoralização dessas iniciativas por aqueles que historicamente obtêm pri-
vilégios oriundos das relações de violência física e simbólica. Esses grupos
necessitam atingir a compreensão de que não serão as camadas hegemônicas
que irão promover a mudança, pois as elites dirigentes não têm esse interesse:

A pedagogia do oprimido, que no fundo, é a pedagogia dos homens empenhan-


do-se na luta por sua libertação ... tem que ter, nos próprios oprimidos que se
saibam ou comecem criticamente a saber-se oprimidos, um dos seus sujeitos ...
No primeiro momento, por meio da mudança da percepção do mundo opressor
por parte dos oprimidos; no segundo, pela expulsão dos mitos criados e desen-
volvidos na estrutura opressora e que se preservam como espectros míticos, na
estrutura nova que surge da transformação revolucionária.4

Fundamentos para a educação das relações étnico-raciais

Lançar um olhar sobre parte da extensa produção intelectual que vem


sendo relacionada ao longo do tempo por estudiosos e profissionais para fun-
damentar a educação é de vital importância caso se queira realizar uma práti-
ca pedagógica transformadora, sobretudo quando estamos visando o fim das

182 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Contribuições do Movimento Negro e das teorias críticas do currículo

profundas desigualdades sociais e raciais na sociedade brasileira. Apenas um


sólido arcabouço ideológico e um fazer reflexivo poderão servir como contra-
ponto aos argumentos falaciosos embasados pelas ideias preconceituosas do
senso comum, que ainda hoje encontram amplo espaço de reprodução em
determinados meios por parte de educadores, gestores e/ou redes. Essa des-
vinculação entre teoria e prática já foi apontada por Giroux como um dos
principais entraves para a inserção das culturas das classes populares e subor-
dinadas no currículo escolar.5
A própria Constituição Federal pode ser apontada como justificativa pa-
ra dinamizar verdadeiramente a implementação de uma educação que instru-
mentalize para o pleno exercício da cidadania, requisito principal para uma
real democracia. Além do artigo 5º da Constituição Federal, que prevê a igual-
dade de direitos perante a lei, podemos destacar alguns outros. Isso mostra um
reflexo das tentativas de penetração das demandas populares no aparato legal
e as contradições que o Estado assume, pois ignora suas próprias convenções
quando não for conveniente aos grupos dirigentes, mesmo nos regimes supos-
tamente democráticos, teoricamente baseados em instituições sólidas voltadas
para buscar o bem comum. Se no jargão popular brasileiro diz-se que existem
‘leis que pegam’ e ‘leis que não pegam’, é interessante refletir a respeito do que
leva artigos de tão grande relevância a permanecerem como ‘letra morta’:

Art. 3º – Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Bra-


sil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; ... III – erradicar a pobreza
e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover
o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação.
...
Art. 170 – A ordem econômica ... tem por fim assegurar a todos existência
digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
... VII – redução das desigualdades regionais e sociais ...6

Partindo dessa exigência constitucional é preciso levantar esta questão: o


acesso e a permanência ao ambiente escolar conservam-se imunes às especifi-
cidades dos diversos grupos sociais? Ou seja, é possível dizer que as desigual-
dades sociais (inclusive raciais) não interferem na formação dos indivíduos?
Se os estudos críticos em geral já apontaram para uma reposta negativa, as

Junho de 2012 183


Richard Christian Pinto dos Santos e Grace Kelly Silva Sobral Souza

pesquisas específicas sobre as relações étnico-raciais na educação reforçam


essa direção. O Brasil conta com uma extensa bibliografia, na qual se destacam
os trabalhos acadêmicos como os de Cavalleiro7 e Paixão,8 demonstrando que
as desigualdades raciais, sobretudo no que concerne à discriminação no am-
biente escolar e no mercado de trabalho, têm severo impacto negativo para a
população negra. Se já se percebe essa transposição da exclusão social do gru-
po étnico afro-brasileiro da sociedade em geral para a escola em particular,
faz-se necessário buscar mecanismos ideológicos e pragmáticos que insiram
esse debate na sala de aula. É sobre essa ocorrência que este artigo tenciona dar
uma parcela de contribuição ao longo de suas páginas.
A Lei 10.639/2003 torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-
-Brasileira na educação básica e foi regulamentada por meio da Resolução nº
1, de 17 de junho de 2004, do Conselho Nacional de Educação, que instituiu
as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.9
No mesmo período de transição entre as décadas de 1980 e 1990 em que
a Constituição Brasileira é formulada, a comunidade acadêmica nacional vai
intensificar suas leituras e produções em torno das correntes críticas de análi-
se do currículo. O enfoque sociológico ganha espaço, democratizando a noção
de que o currículo compõe um campo intelectual em que diversos atores so-
ciais utilizam-se de seus capitais social e cultural para legitimar os pontos de
vista dos grupos a que pertencem. O objetivo primordial nesses casos é alcan-
çar a posição necessária para influenciar as propostas curriculares de âmbito
oficial, vencendo as lutas concorrenciais entre os discursos que contextualizam
as práticas pedagógicas no ambiente escolar.10

O Movimento Negro e a luta pelo antirracismo na educação

O processo histórico de invisibilização da cultura de matriz africana pro-


vocou como reação uma intensa luta travada pelas organizações do Movimen-
to Negro, sobretudo a partir dos últimos anos do século XX, quando o contex-
to de reabertura política permitiu a rearticulação dos movimentos sociais.
Essas mobilizações teriam como resultado anos mais tarde a promulgação da
Lei 10.639/2003, que modificou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na-
cional (Lei 9.394/1996), instituindo o ensino de História e Cultura Afro-Bra-

184 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Contribuições do Movimento Negro e das teorias críticas do currículo

sileira e Africana no currículo da Educação Básica em todo o território nacio-


nal e a implementação dos programas de Ações Afirmativas para acesso e
permanência da população negra no Ensino Superior. Tais conquistas só foram
possíveis em razão de uma intensa atuação política travada por diversas orga-
nizações em diferentes espaços de militância.
Longe de permanecer apenas no campo ideológico, o racismo atua efeti-
vamente na vida cotidiana das populações dos diferentes grupos étnicos bra-
sileiros. As práticas discriminatórias sofridas pela população negra exercem
papel determinante como obstáculos à plena vivência de sua cidadania, sobre-
tudo no que concerne ao acesso aos bens sociais como educação e saúde, bem
como à sua integração no processo produtivo na busca por postos de trabalho.
Dessa forma, o racismo tende a buscar sua autofundamentação, pois usa o
insucesso dos povos socialmente minoritários, causado por suas próprias prá-
ticas excludentes, como comprovação da inferioridade desses povos.

De fato, o racismo opera mecanismos de desqualificação dos não-brancos na


competição pelas posições mais almejadas. Ao mesmo tempo, os processos de
recrutamento para posições mais valorizadas no mercado de trabalho e nos espa-
ços sociais operam com características dos candidatos que reforçam e legitimam
a divisão hierárquica do trabalho, a imagem da empresa e do próprio posto de
trabalho.11

Como uma das formas de lutar contra esse processo de discriminação, o


Movimento Negro, fundamentado “na compreensão de que a educação é a
base sobre a qual estrutura-se a forma de pensar e agir de um povo”,12 nunca
deixou de ter no seu corpo de reivindicações a plena inserção da população
afro-brasileira no ambiente escolar. Entretanto, é importante ressaltar que,
mesmo com a quase universalização da oferta de vagas às crianças e aos jovens
atingida nos últimos anos, permanecem as lutas nesse sentido, pois simbolica-
mente a escola perpetua a discriminação verificada no resto da sociedade. Ain-
da é de vital importância

Discutir o processo de colonização intelectual a que estudantes negros estavam


submetidos, as consequências danosas dos conteúdos racistas dos currículos es-
colares, livros didáticos, bem como as discriminações raciais sofridas pelos alu-
nos negros no ambiente escolar, entre outras manifestações.13

Junho de 2012 185


Richard Christian Pinto dos Santos e Grace Kelly Silva Sobral Souza

A forma escolhida para reivindicar os direitos foi a organização de fóruns


e seminários, como o III Encontro de Negros das Regiões Sul e Sudeste, em
Vitória (ES) no ano de 1990, o III Encontro de Negros da Região Centro-
-Oeste, em Cuiabá (MT) no ano de 1991, e o Seminário Nacional “O Papel da
CUT (Central Única dos Trabalhadores) no combate ao Racismo” (cf. Santos,
2007, p.165), eventos em que a militância e a intelectualidade negras formula-
ram suas demandas e articularam-se junto a outros setores dos Movimentos
Sociais para encampar a pressão ao Estado brasileiro por políticas públicas de
combate ao racismo e à discriminação racial no interior de nossa sociedade.
Apesar da importância desses e de outros eventos, é inegável que o mo-
mento mais significativo da década de 1990 foi a Marcha Zumbi dos Palmares
contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, realizada no dia 20 de novembro
de 1995 em Brasília. Realizada na data do assassinato do líder quilombola
Zumbi dos Palmares, a marcha foi um movimento de amplitude nacional que
contou com a presença de mais de 30 mil pessoas unidas para combater os
efeitos nefastos da discriminação racial e reivindicar políticas emergenciais
para atender a população negra.14
Das discussões encaminhadas formularam-se as grandes bandeiras de
luta do Movimento Negro dali em diante, levando às duas reivindicações prin-
cipais já citadas. A repercussão do evento tomou tal dimensão que chamou a
atenção do então presidente da República. Esse encontro foi de vital impor-
tância para a sociedade afro-brasileira, pois teve um caráter efetivamente pro-
positivo. Mais que a revolta por conta de uma realidade de desigualdades, a
Marcha foi um momento de deliberações no sentido de viabilizar a transfor-
mação dessa realidade.

Mais uma vez as lideranças dos Movimentos Sociais Negros denunciaram ao go-
verno brasileiro a discriminação racial, bem como condenaram o racismo contra
os negros no Brasil. Mais do que isto, as lideranças negras dos Movimentos So-
ciais Negros não ficaram só nas e com as denúncias, elas entregaram ao chefe de
Estado brasileiro o Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade Ra-
cial... (Santos, 2007, p.166)

Esse documento se articula com políticas nos eixos de Democratização da


Informação, Mercado de Trabalho, Educação, Cultura e Comunicação, Saúde,
Violência, Religião e Terra (cf. ENMZ, 1996). A luta pela inclusão da popula-

186 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Contribuições do Movimento Negro e das teorias críticas do currículo

ção negra na rede de educação formal corresponde, sem sombra de dúvida, à


principal bandeira a partir desta década, seja no campo da melhoria da quali-
dade da educação como um todo, seja na inclusão da temática racial e da
cultura negra nos currículos escolares ou nas ações afirmativas para a popula-
ção negra nas universidades. O contexto que se seguiu terminou por servir
como preparação do Brasil para participar da Conferência de Durban contra
o Racismo, a Xenofobia e Discriminações Correlatas, realizada no ano de 2001
na África do Sul, em que o Estado brasileiro reconheceu a persistência do ra-
cismo no país e se comprometeu a tomar medidas no sentido de erradicá-lo.

A Lei 10.639/2003: o combate ao racismo


como política de Estado

Após um período tão longo de difusão de um ideário racista por parte do


grupo étnico socialmente hegemônico, a suposta inferioridade da população
negra passou a figurar como conceito universalizado e fortemente impregna-
do na cultura brasileira, sendo até mesmo reproduzida por essa população.
Conceitos criados para estabelecer uma sociedade racialmente hierarquizada
permanecem no imaginário nacional, sendo naturalizadas as práticas discri-
minatórias aos indivíduos afrodescendentes. Dessa forma, não chega a sur-
preender que o racismo esteja presente também no ambiente escolar.

As informações disponíveis sobre a implementação das diretrizes curriculares


nacionais para a educação das relações étnico-raciais revelam que ... restringem-
-se à ação isolada de profissionais comprometidos(as) com os princípios da
igualdade racial que desenvolvem a experiência a despeito da falta de apoio dos
sistemas educacionais ... projetos descontínuos com pouca articulação com as
políticas curriculares de formação de professores e de produção de materiais e
livros didáticos sofrendo da falta de condições institucionais e de financiamento.
(MEC/MJ/Seppir, 2008, p.13)

Sucessivos governos mantiveram-se omissos frente ao processo de exclusão


da população negra, apesar da constante mobilização de inúmeros grupos orga-
nizados do Movimento Negro. Além das mobilizações das décadas de 1980 e
1990 citadas anteriormente, a participação brasileira na III Conferência Mundial
contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de

Junho de 2012 187


Richard Christian Pinto dos Santos e Grace Kelly Silva Sobral Souza

Intolerância em Durban, na África do Sul, realizada em 2001, fez que se alteras-


se o panorama da luta antirracista no Brasil. A conferência teve como conse-
quência uma série de mudanças na postura do Governo Federal, com importan-
tes conquistas no princípio do século XXI. O tema da discriminação racial,
sobretudo no ambiente escolar, foi incluído na agenda nacional, com o próprio
presidente da República assumindo a necessidade de implementar políticas pú-
blicas para a erradicação das desigualdades raciais na sociedade brasileira.15
Uma abordagem no sentido de inserir no currículo escolar temas referen-
tes às bandeiras históricas da população negra busca romper com a “invisibi-
lidade e o recalque dos valores históricos e culturais de um povo”.16 As análises
acerca da prática da educação das relações étnico-raciais por parte de diversos
autores têm comprovado que os materiais didáticos apresentam referências
negativas, que reproduzem os estereótipos pejorativos costumeiramente atri-
buídos à população negra. Verifica-se que um grande número de livros didá-
ticos reproduz como verdades científicas estereótipos preconceituosos, crista-
lizando a autorrejeição e a baixa autoestima na subjetividade do grupo
estigmatizado. O resultado é a aceitação de sua subalternização e o desinteres-
se por organizar-se politicamente contra as injustiças sociais sofridas, legiti-
mando as estruturas políticas vigentes.
Finalmente, no dia 9 de janeiro de 2003, após mais de um século de rei-
vindicações da população negra organizada politicamente, a qual exigia polí-
ticas públicas de caráter compensatório do legado da escravidão superada e da
discriminação persistente, promulgou-se a Lei nº 10.639, “que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da
Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasi-
leira”.17 Ainda que essa diretriz não possa ser considerada plenamente cum-
prida, apenas o fato de sua existência já oportuniza uma grande perspectiva de
mudança, pois implica o estabelecimento de um canal de diálogo afrocentrado
em um ambiente historicamente eurocêntrico. Apenas recentemente tornou-
-se consenso na Academia a relevância do caráter social do processo ensino-
-aprendizagem, mas o Movimento Negro já há séculos anseia para seu povo o
direito a uma escolarização ampla e de qualidade, por entender que

A educação, mesmo que não seja a única via de mitigar tais desigualdades, de-
monstra relevante papel na busca de uma verdadeira democracia onde todos os

188 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Contribuições do Movimento Negro e das teorias críticas do currículo

grupos étnicos, religiosos, de gênero, ou de quaisquer outras naturezas possam


ter seus direitos reconhecidos e respeitados.18

Gatti Júnior19 chama a atenção para o fato de que, por conta de uma série
de fatores que implicam uma formação insuficiente de grande parte dos do-
centes da Educação Básica no Brasil, o paradigma educacional tradicional ain-
da é, se não majoritário, pelo menos significativo, apesar dos diversos estudos
críticos amplamente divulgados na comunidade científica. Somente uma mu-
dança de postura da prática pedagógica pode transformar esse panorama em
que o senso comum (como já reiteramos, muitas vezes lotado de preconceitos)
concorre com a fundamentação teórica na formação epistemológica dos pro-
jetos e práticas educativos. A literatura disponível para instrumentalizar os
professores como intelectuais reflexivos externa conceitos que contribuem
para um entendimento de que

O conhecimento é como uma teia de ideias interconectadas que atravessa vários


domínios, ao passo que a escola tradicional mantém sua visão paroquial, locali-
zada ... Essa multiplicidade de pontos de vista, essa riqueza de leituras, precisa ser
digerida e incorporada pela escola se ela tiver a pretensão de sobreviver como
instituição geradora, mantenedora e delegadora do saber humano.20

Dessa forma, a educação das relações étnico-raciais não se tornou um


problema resolvido simplesmente pela assinatura de uma lei, mas permanece
em constante processo de debate e observação dos atores envolvidos (o poder
público nas três esferas de poder, redes privadas de ensino, universidades,
pesquisadores, autores e produtores de materiais didáticos, professores, ges-
tores, organizações do Movimento Negro, pais, alunos e sociedade), levando
à produção de novas práticas e bens culturais que vislumbrem essas ‘novas’
exigências e atendam a essas ‘novas’ demandas, que apesar de terem início nos
primeiros anos da história do Brasil, apenas recentemente vêm conseguindo
alcançar visibilidade, mesmo que aquém das expectativas de determinados
grupos, mesmo enfrentando grandes resistências de outros.

Junho de 2012 189


Richard Christian Pinto dos Santos e Grace Kelly Silva Sobral Souza

Considerações finais

A população negra ainda não conseguiu libertar-se totalmente de deter-


minadas estruturas de poder e dominação construídas durante o período es-
cravista. Conquistas importantes para aquisição da cidadania não podem ocul-
tar o fato de que muitas barreiras ainda se mantêm na sociedade com o
propósito de interferir nas trajetórias dos indivíduos, positiva ou negativamen-
te, de acordo com seu pertencimento étnico. Considerando que essas barreiras
são fundamentadas em critérios arbitrários ideologicamente postos, verifica-se
que esforços políticos e acadêmicos devem ser feitos para fortalecer a luta por
equidade, ou seja, pela igualdade de direitos e de condições entre os membros
de uma mesma sociedade.
Tanto as organizações do Movimento Social Negro quanto os estudiosos
das teorias críticas sobre o currículo partilham da ideia de que a educação es-
colar apresenta papel importante na transmissão e no fortalecimento dos ar-
cabouços ideológicos, sejam eles progressistas ou conservadores. Sendo assim,
o currículo pode transmitir tanto estereótipos preconceituosos quanto valores
de tolerância para sua clientela. É daí que surgem as disputas entre os grupos
que se beneficiam com a manutenção e aqueles que exigem a transformação
do sistema político vigente. Não há cidadania sem direitos, e não há direitos
onde há diferenciações, logo a luta pela erradicação de ideologias e práticas
discriminatórias é a luta por justiça e liberdade. A Lei 10.639/2003 se coloca
como uma possibilidade de rompimento desse ciclo de exclusão.

NOTAS
1
MOORE, Carlos. O racismo através da História: da Antiguidade à Modernidade. 2007.
Disponível em: scholar.google.com.br/scholar?hl=pt-BR&q=O+RACISMO+ATRAV%C3
%89S+DA+HIST%C3%93RIA%3A+++DA+ANTIGUIDADE+%C3%80+MODERNIDA
DE&btnG=Pesquisar&lr=; Acesso em: 13 set. 2009
2
Cf. SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do
currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. 156p.
3
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Trad. Joaquim José de
Moura Ramos. Lisboa: Ed. Presença, 1970. 123p.
4
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 107p.
p.22-23.

190 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Contribuições do Movimento Negro e das teorias críticas do currículo

5
GIROUX, Henry A. Os professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da
aprendizagem. Trad. Daniel Bueno. Porto Alegre: Artmed, 1997. 270p.
6
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: www.planalto.
gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm; Acesso em: 18 ago. 2011.
7
CAVALLEIRO, Eliane. Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e dis-
criminação na educação infantil. 2.ed. São Paulo: Contexto, 2003.
8
PAIXÃO, Marcelo. Relatório anual das desigualdades raciais no Brasil: 2007-2008. Rio de
Janeiro: Ed. UFRJ, 2008. 213p.
9
MEC/MJ/SEPPIR. Contribuições para a implantação da Lei 10.639/2003. Proposta de Pla-
no Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais da educação das re-
lações étnico-raciais e para o ensino de História e cultura Afro-Brasileira e Africana – Lei
10.639/2003. Brasília, 2008. p.6.
10
LOPES, Alice Casemiro; MACEDO, Elizabeth (Org.) Currículo: debates contemporâ-
neos. São Paulo: Cortez, 2002. 240p. p.13-18.
11
IPEA. Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas: 120 anos após a Abolição. Bra-
sília: Diretoria de Estudos Sociais (Disoc), 2008. p.6.
MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO/PE. O Negro e a Educação – VIII Encontro de
12

Negros do Norte e Nordeste. Recife: Cia. Ed. de Pernambuco, 1988. p.5.


13
SANTOS, Sales Augusto dos. Movimentos negros, educação e ações afirmativas. Disserta-
ção (Mestrado) – Departamento de Sociologia, Universidade de Brasília. Brasília, 2007.
p.163.
14
Cf. SANTOS, Jocélio Teles dos; QUEIROZ, Delcele Mascarenhas. Vestibular com cotas:
análise em uma instituição pública federal. Revista da USP, São Paulo, n.68, dez. 2005/jan.-
-fev. 2006; EXECUTIVA NACIONAL DA MARCHA ZUMBI (ENMZ). Por uma política
nacional de combate ao racismo e à desigualdade racial: marcha Zumbi contra o racismo,
pela cidadania e vida. Brasília: Cultura Gráf. Ed., 1996.
15
MUNANGA, Kabengele (Org.) Superando o racismo na escola. 2.ed. revisada. Brasília:
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade,
2005. 204 p. p.9-10.
16
SILVA, Ana Célia da. A desconstrução da discriminação no livro didático. In: M
­ UNANGA,
2005. p.21-39. p.22.
17
BRASIL. Lei 10.639, de 9 jan. 2003. Altera a Lei 9.394, de 20 dez. 1996, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino
a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providên-
cias. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, 9 jan. 2003. Disponível em:
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.html; Acesso em: 20 out. 2010. p.1.
18
PINTO DOS SANTOS, R. Letras negras: as contribuições da literatura para a aplicação
da Lei 10.639/2003 no Ensino Médio. Revista da ABPN, América do Norte, v.2, out. 2011.

Junho de 2012 191


Richard Christian Pinto dos Santos e Grace Kelly Silva Sobral Souza

Disponível em: www.abpn.org.br/Revista/index.php/edicoes/article/view/196/132; Acesso


em: 22 jan. 2012. p.165.
19
GATTI JÚNIOR, Décio. A escrita escolar da história: livro didático e ensino no Brasil
(1970-1990). Bauru (SP): Edusc; Uberlândia: Edufu, 2004. 252p.
20
PASSARELI, Brasilina. Hipermídia na aprendizagem: construção de um protótipo inte-
rativo: a escravidão no Brasil. 1993. Disponível em: revista.ibict.br/index.php/ciinf/article/
download/1127/776; Acesso em: 7 set. 2009. p.1.

Artigo recebido em 15 de fevereiro de 2012. Aprovado em 11 de abril de 2012.

192 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Diásporas e comunidades quilombolas:
perspectivas metodológicas para o ensino de
história da África e da cultura afro-brasileira
Diaspora and maroon communities: methodological perspectives
for the teaching of African history and African-Brazilian culture
Maria Walburga dos Santos*
Ana Cristina Juvenal da Cruz**

Resumo Abstract
A institucionalização do ensino de histó- The institutionalization of the teaching
ria da África e de cultura afro-brasileira of African history and African-Brazilian
nas escolas abriu caminho para o debate culture in the schools gave way to the de-
acerca da inserção desses conteúdos nos bate about the inclusion of such content
currículos de história. O precedente levou in the curriculums of history. This prece-
os historiadores a se perguntarem sobre o dent has led historians to wonder about
conteúdo e o ensino dessa história e da the content and teaching of that history
cultura produzida pelos povos africanos e and of the culture produced by African
por seus descendentes. Este texto é estru- peoples and their descendants. This text
turado com base em duas possibilidades is structured upon two methodological
metodológicas para esse ensino: a diáspo- possibilities for the teaching of those the-
ra e as comunidades quilombolas. Apre- mes: the Diaspora and maroon commu-
sentamos elementos para uma metodolo- nities. We present some elements for a
gia e uma didática do ensino de história methodology and a didactic of teaching
que considerem as experiências diaspóri- history that consider the experiences of
cas das populações negras e o espaço do black diasporic space and maroon com-
quilombo como local de recriação cultural munities as a place of recreation of cultu-
de elementos africanos. Analisamos o per- ral elements of Africa. We analyze the
curso histórico que culminou na institu- historical background that led to the ins-
cionalização desse ensino e alguns ele- titutionalization of the teaching of Afri-
mentos relacionados a esses conteúdos. can history and African-Brazilian culture
Palavras-chave: ensino de história da Áfri- and show some aspects of these subjects.
ca; diáspora; comunidades quilombolas. Keywords: teaching of African history;
diaspora; maroon communities.

* Departamento de Teorias e Práticas Pedagógicas, Universidade Federal de São Carlos (DTPP/


UFSCar). Via Washington Luís, km 235, Caixa Postal 676. 13545-905 São Carlos – SP – Brasil.
walburga@ufscar.br
** Doutoranda em Educação, Bolsista Capes. Universidade Federal de São Carlos. Via Washington
Luis, km 235. 13545-905 São Carlos – SP – Brasil. a_amhara@yahoo.com.br

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 193-215 - 2012


Maria Walburga dos Santos e Ana Cristina Juvenal da Cruz

Uma das problemáticas mais acentuadas acerca do ensino de história se


deve à construção metodológica desse ensino e do conteúdo a ser ofertado.
Esse debate há muito tempo é objeto de estudos no campo do currículo e da
didática, e sofreu uma inflexão com a obrigatoriedade do ensino de história da
África e das culturas afro-brasileira e africana nas instituições de ensino bra-
sileiras por meio da Lei 10.639/2003 e do Parecer CNE/CP 003/2004, referen-
te às Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-
-raciais e para o Ensino de História Afro-Brasileira e Africana.
As questões acerca dos elementos constitutivos de como e o que ensinar
emergiram das políticas curriculares voltadas para a inserção desses conteúdos.
As pesquisas sobre ensino e ‘prática escolar’ 1 impulsionadas pela ascensão da
pós-graduação brasileira nos anos 1970 redimensionaram os debates sobre o
ensino de conteúdos específicos. A incorporação de outras metodologias, como
a etnografia, também possibilitou novas leituras do espaço escolar. No que diz
respeito ao ensino de história, a questão central se refere à utilização das fontes
no ensino.
Esses desafios têm questionado a maneira pela qual o campo historiográ-
fico descreveu as experiências dos povos africanos e de seus descendentes. As
pesquisas acerca da institucionalização do ensino de história da África e das
culturas africana e afro-brasileira têm apontado que as maiores dificuldades
se referem ao uso de materiais didáticos e à formação de historiadores para seu
ensino. Muitos cursos têm sido oferecidos para as diversas modalidades de
ensino, e, embora os resultados tenham sido satisfatórios, os dados mostram
que essas dificuldades impedem a construção de metodologias que atendam
as necessidades curriculares da história africana e afro-brasileira. Tais medidas
somente alcançarão os objetivos propostos se houver a incorporação de um
novo paradigma de educação das relações étnico-raciais brasileiras. Isso abre
a necessidade de debates sobre questões epistemológicas e métodos de ensino.
Muitas atribuições já foram relacionadas à finalidade do estudo e do en-
sino de história: ‘fortalecer a nação’, ‘fortalecer uma identidade nacional’,
‘construir uma comunidade’ mesmo que ‘imaginada’.2 Hoje, a compreensão
do caráter imaginado das nações é algo menos conflituoso, atrelado a termos
como nacionalidade, pertencimento e identidade, entre outros, e à maneira
como esse caráter imaginário é um ‘produto cultural’ (Anderson, 2008, p.30).
Uma das questões a serem resolvidas se refere às fontes utilizadas na produção

194 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Diásporas e comunidades quilombolas

da história e, consequentemente, à análise feita sobre elas. ‘Povos sem história’,


‘sem escrita’ e ‘sem cultura’, entre outras representações, foram expressões
atribuídas aos povos que se encontravam fora do círculo restrito da história.3
Isso tem sido reavaliado de forma crítica em relação ao modo pelo qual se
construiu a história que valeria a pena ser contada, no qual a produção euro-
peia – e mais recentemente a dos Estados Unidos – se localiza em um centro
difusor e orientador dos saberes.
Esse conjunto de representações e de estereótipos sobre tais grupos orien-
tou a produção historiográfica e um modo de olhar e de construir de forma
binária um ‘nós’ e um ‘eles’, ou seja, um discurso sobre um ‘Outro’. Os estudos
pós-coloniais que ascenderam ao discurso teórico a partir dos anos 1980 se
configuraram como um espaço de crítica das maneiras pelas quais os conhe-
cimentos são construídos. Como escapar a esse conjunto de discursos presen-
tes na construção historiográfica sobre os africanos e seus descendentes?
Um desdobramento está diretamente ligado à linguagem. Fanon4 aponta
a maneira pela qual a construção da linguagem sobre a colonização e o lugar
dos negros nesse processo se constituíram historicamente. Essa linguagem é
marcada pelas dimensões de gênero e de experiência e por uma esfera racial,
o que permitiu a construção de um conjunto de discursos construídos racial-
mente sobre aqueles que foram colocados no lugar do ‘Outro’. Esse ‘Outro’ é
localizado em um território, passa a ter determinadas características físicas que
o definem moral e psicologicamente.
Ao constituírem determinada linguagem, essas representações apropriam-
-se de nossos cotidianos, informando-nos e oferecendo um determinado con-
junto de saberes sobre esses ‘Outros’. Práticas e representações em torno do
que se refere à África ou aos descendentes de africanos podem ser compreen-
didas pela noção de racialização à qual esses povos foram relegados. A raciali-
zação é relacionada a um processo de categorização pelo qual um grupo (seja
étnico, racial ou de gênero) é identificado como pertencente a um dos agrupa-
mentos que são definidos por critérios arbitrários como o fenótipo, uma tra-
dição cultural ou ainda religiosa.5
Isso significa afirmar que a linguagem é racialmente determinada e o su-
jeito, ao entrar na linguagem, está inserido em um universo racializado. O
termo ‘Continente negro’ em referência ao Continente africano é um exemplo
dessa natureza racial na qual a linguagem está inserida, visto que outros con-

Junho de 2012 195


Maria Walburga dos Santos e Ana Cristina Juvenal da Cruz

tinentes não têm um epíteto racial como esse. ‘Negro’ tornou-se sinônimo de
uma essência racializante na qual toda uma linguagem adjetivada de inferio-
ridade fixava os africanos e seus descendentes em tais estereótipos.6
Essa narrativa em torno do vocábulo negro é, no entanto, ressignificada.
Hall argumenta como esse termo tem articulado a noção de negritude,8 como
7

um movimento identitário. Munanga aponta duas dimensões para que se com-


preenda a ressignificação do termo ‘negro’ e da negritude: o sentido e a expe-
riência.9 Essas duas dimensões operam de forma simultânea, o sentido se re-
fere ao contexto no qual ‘ser Negro’ pode ser experienciado, a linguagem,
portanto é construída em um campo histórico e dinâmico, produzindo senti-
dos e subjetividades.
Durante muito tempo os povos e as nações africanos entraram na história
provindo de uma demarcação no interior da linguagem racializada. O lugar
conferido à história de mulheres e homens africanos e seus descendentes es-
teve relegado à semântica da escravidão e, posteriormente, do colonialismo.
Alguns historiadores inspirados por uma determinada lógica desconsideraram
as resistências e as maneiras pelas quais esses povos ressignificaram suas exis-
tências sob a experiência violenta da escravidão, do colonialismo e de suas
consequências. Tais noções combinadas estabeleceram as hierarquizações de
inferioridade e superioridade entre os grupos étnicos, as quais, sob os auspícios
da ciência da época, justificaram a escravização dos povos africanos e de seus
descendentes e a ‘missão civilizatória’ que marcou a modernidade. No Brasil,
o que tem sido denominado de ‘nova historiografia da escravidão’ ou ‘história
social da escravidão’ passou a atribuir um caráter protagonista aos negros e à
sua experiência e ação em relação ao escravismo.
A possibilidade aberta pela legislação para o ensino de história da África
e da cultura afro-brasileira colocou na pauta do debate historiográfico as dis-
ponibilidades e os usos das fontes para a pesquisa. As fontes orais se colocam
como um dado apropriado na pesquisa histórica, sem se opor às fontes docu-
mentais que secularizaram exclusivamente a forma escrita como válida, mas
como uma fonte equivalente de saber histórico. No mesmo patamar estão
outras tipologias de fontes, como os registros imagéticos, por exemplo. Esse
universo deve ser debatido com novas atribuições no que toca aos estudos
históricos. O que ainda tem sido feito de forma tímida no campo é a análise de

196 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Diásporas e comunidades quilombolas

como essas noções racializadas informam as concepções históricas sobre o


Continente africano.
Propomos aqui uma discussão sobre métodos de ensino da história da
África e de seus descendentes de modo a considerar as representações cons-
truídas sobre esse espaço e sobre as pessoas vindas desse lugar. É importante
destacar que não se trata de afirmar as problemáticas apontadas como uma
repetição daquilo que já se sabe em relação a tais questões, mas de identificar
que tais noções ainda permeiam o campo do ensino quando nos referimos à
história dos povos africanos e de seus descendentes. Desse modo, este texto
está localizado no debate do ensino de história desses conteúdos, em duas vias:
a do ensino e a da história. A questão central é: quais possibilidades metodo-
lógicas nós temos e quais podem ser construídas para o ensino de história da
África e da cultura afro-brasileira e africana?
A instituição do ensino da história africana e afro-brasileira faz repensar
duas dimensões articuladoras essenciais à teoria da história: o tempo e a nar-
rativa histórica.
Wedderburn10 aponta para a necessidade de se utilizar um tempo de lon-
ga duração e uma abordagem diacrônica no que se refere ao ensino de história
da África. O autor indica que o ensino deve ser estruturado pelas relações no
interior do Continente (diacronicidade intracontinental) e nas suas relações
exteriores (diacronicidade extracontinental).
Ki-Zerbo e Anta Diop atuaram para legitimar uma história africana es-
crita e falada pelos africanos e oferecer outra leitura da história da África, uma
“descolonização da história”.11 Algumas leituras atribuíram a isso um caráter
afrocêntrico,12 ao inferir um etnocentrismo histórico.
Gilroy sugere como perspectiva metodológica a etno-história, tendo como
princípio uma relação entre as produções estéticas e culturais dos negros no
espaço que ele denomina ‘Atlântico Negro’, resumida como uma “estrutura
rizomórfica e fractal da formação transcultural e internacional” (2001, p.38).
A etno-história pode ser compreendida como uma alternativa teórico-meto-
dológica para estudar histórias de um grupo, averiguar as maneiras pelas quais
surgem e emergem os discursos sobre esse grupo e suas fundamentações esté-
ticas e filosóficas. Especificamente no que se refere à história dos africanos e
de seus descendentes, sua proposta nos auxilia a compreender as maneiras
pelas quais alguns grupos foram lidos e teorizados.

Junho de 2012 197


Maria Walburga dos Santos e Ana Cristina Juvenal da Cruz

Com o termo ‘Atlântico Negro’ Gilroy se aproxima de uma noção de di-


áspora cuja ação inscreve outras possibilidades sobre as quais a história pode
ser concebida ou ‘imaginada’ e, assim, ensinada. O autor define ‘Atlântico
Negro’ como uma “formação política e cultural moderna” (Gilroy, 2001, p.65)
e se insere na perspectiva dos estudos culturais e pós-coloniais para os quais
colonialismo, racismo e modernidade são produtos de uma lógica comum de
sustentação e criação conjunta. O Atlântico como metáfora de uma localização
específica da produção do movimento desenvolvido de forma diaspórica.13
Nessa proposta, as roupagens culturais e políticas nas quais se constituíram a
escravização e a colonização podem ser analisadas em profundidade.
Ndiaye14 analisa a construção de uma condição negra na França e se vol-
ta para a ‘invisibilidade’ dos negros acordada no discurso político da Repúbli-
ca francesa, mas encontra as maneiras pelas quais sua ‘visível’ presença ascen-
de historicamente na linguagem social francesa marcada pelos estereótipos em
relação aos negros como grupo. O autor centraliza as contranarrativas dos
negros na França como formas de uma construção identitária que permita que
suas problemáticas sejam consideradas em suas especificidades, propondo uma
história dos negros na França no modo como essa população é intrinsecamen-
te forjada no interior da sociedade francesa.
Como desdobramento sobre a utilização de outras fontes para ensino de
história da África e da cultura afro-brasileira e africana, há que se considerar,
por exemplo, a noção de ressignificação que os descendentes de africanos cria-
ram. Essa ressignificação somente foi reconhecida nas lutas contemporâneas
dos africanos e seus descendentes por direitos civis equânimes e por justiça
social. Nesse contexto é que a institucionalização da Lei 10.639/2003 deve ser
compreendida como uma medida para uma educação das relações étnico-ra-
ciais. Tal noção pode ser articulada às noções sincréticas de crioulização e de
mestiçagem nas quais se reproduz uma cultura estética diferenciada, como a
música e o cinema, elementos cada vez mais focalizados nos campos dos estu-
dos culturais que podem ser fontes interessantes para o ensino da história
(Gilroy, 2001).
Para responder à questão aqui formulada acerca de uma metodologia
para o ensino de história da África e da cultura afro-brasileira e africana, par-
timos de duas possibilidades: a categoria diáspora e a experiência dos quilom-
bos. Em linhas gerais, este texto se preocupa com os aspectos conceituais na

198 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Diásporas e comunidades quilombolas

construção de uma metodologia que considere as experiências dos fenômenos


que marcam as populações africanas e afrodescendentes. Busca articular essas
experiências a partir da diáspora como uma categoria analítica, e dos espaços
quilombolas como possibilidade de construção para o ensino desses conteúdos.
Além das questões de método indicadas até aqui, o texto está estruturado
em partes interdependentes: inicialmente traça, de forma breve, a maneira
pela qual os movimentos sociais negros brasileiros se apropriaram da educa-
ção, propondo mudanças na educação das relações raciais brasileiras em um
processo que culminou na Lei 10.639/2003. Em seguida, desenvolve a noção
de diáspora como recurso metodológico no ensino de história africana e da
cultura afro-brasileira e africana. Por fim, pretende observar, recorrendo ao
exemplo das comunidades quilombolas, que a educação em história e sua me-
todologia passam invariavelmente pelas afirmações da diversidade, pelo olhar
de contextos específicos e pela clareza com que os conteúdos são inscritos e se
inscrevem no cotidiano em diálogo com o passado, perpassando pelas vozes e
ações de vários sujeitos.

O ensino de história africana e afro-brasileira


na educação das relações étnico-raciais

O campo da educação, e em especial da história da educação, deixou ao


largo as medidas normativas15 que hoje, retomadas nos estudos das relações
étnico-raciais com a educação, são analisadas na pesquisa acadêmica. As ações
dos movimentos sociais negros se voltaram para o incentivo à educação formal,
entretanto muitos perceberam a reprodução do racismo no ensino e no seu
caráter etnocêntrico, ou seja, a concepção de uma superioridade de uma cul-
tura em relação a outras. Munidos dessa compreensão, os movimentos sociais
negros passam a reivindicar junto ao Estado brasileiro o estudo da história e
da cultura da África e dos afrodescendentes.
Educação e raça no Brasil foram estabelecidas em conjunto. As primeiras
medidas que constituíram o sistema educacional brasileiro tinham como prin-
cipal preocupação a organização da nação brasileira, e, das inúmeras medidas
tomadas com esse intuito, centralizaram-se entre as décadas de 1930 e 196016
as práticas na produção de um povo brasileiro que fosse destituído de seus
caracteres étnicos, africanos e indígenas.17 As primeiras iniciativas para inser-

Junho de 2012 199


Maria Walburga dos Santos e Ana Cristina Juvenal da Cruz

ção nos currículos escolares oficiais se voltaram para o ensino da história afri-
cana e afro-brasileira, cujas ações datam das décadas de 1970 e 1980 nos de-
nominados ‘estudos africanos’.18
A Convenção Nacional do Negro pela Constituinte, de 1986, recomendou
à Assembleia Constituinte de 1987: “o processo educacional respeitará todos
os aspectos da cultura brasileira. É obrigatória a inclusão nos currículos esco-
lares de I, II, e III graus do ensino da história da África e da história do Negro
no Brasil”.19 As legislações em nível local mostraram um processo gradativo
de incorporação do ensino da temática étnico-racial como proposta de uma
educação voltada para novas relações raciais.
A partir da década de 1990, as ações focaram denúncias de estereotipia
em livros didáticos e de práticas preconceituosas nas escolas. Alguns municí-
pios passaram a atender parcialmente às reivindicações legais20 dos movimen-
tos sociais negros, os quais se organizaram e exigiram do Estado brasileiro que
as ações de combate ao racismo se tornassem política de Estado. Ainda na
década de 1990 a influência de organismos multilaterais e de uma concepção
de educação focada na produtividade e no investimento promoveu as medidas
para universalização da educação. Paulatinamente, as ações políticas dos mo-
vimentos sociais negros se reverteram em políticas educacionais para o com-
bate ao racismo. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997) corroboram a
ideia de existir um currículo mínimo para o ensino básico e médio, o eixo
‘Pluralidade Cultural’, no qual se encaixam as questões étnico-raciais, e refle-
tem um reconhecimento pelo Estado brasileiro da característica multicultural
e racial da sociedade brasileira. No que se refere ao ensino de história, o lugar
da escravização ainda era predominante nessa época, com a forte influência
das leituras marxistas sobre a escravidão, por meio das quais as populações
africanas e negras entraram na história a ser ensinada.
No âmbito estatal, a criação do Grupo de Trabalho Interministerial Po-
pulação Negra (1998), resultante da Marcha Zumbi dos Palmares Contra o
Racismo pela Cidadania e a Vida (1995), se insere nas medidas de incorporação
dos conteúdos relativos à história africana e afro-brasileira e nas Políticas de
Ação Afirmativa. A promulgação da Lei 10.639/2003 se consolida como o re-
sultado de uma luta histórica dos movimentos sociais negros por uma educa-
ção que contemple a diversidade e a diferença.

200 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Diásporas e comunidades quilombolas

O Parecer CNE/CP 003/2004 sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais


para a Educação das Relações Étnico-Raciais para o Ensino de História e Cul-
tura Afro-Brasileira e Africana, aprovado pelo Conselho Nacional de Educação
(CNE) em 2004, permitiu nortear a formulação de novas metodologias para o
ensino de história, como a indicação da memória diaspórica e o estudo da
história dos quilombos. A promulgação da Lei e a aprovação das Diretrizes
mostram que tais medidas se voltam para a realização de uma (re)educação
das relações étnico-raciais brasileiras, visto que elas operam historicamente
marcadas por relações desiguais e discriminatórias.
A educação das relações étnico-raciais é uma relação de ensino e apren-
dizagem que perpassa as relações entre brancos e negros, sendo, por isso, plu-
ral ao considerar outras etnias e grupos de pertencimento. Destaca-se a dimen-
são da multiplicidade das relações étnico-raciais, a importância de posturas e
identidades positivas, um pertencimento racial ressignificado. Essa concepção
de educar para as relações étnico-raciais traz questionamentos e propostas de
reformulação no interior das escolas e dos currículos e nas práticas de educa-
dores.

A diáspora como recurso metodológico

Embora surjam algumas diferenças conceituais conforme a referência teó-


rica utilizada, a noção de diáspora acorda alguns elementos, como a noção de
saída ou dispersão de um grupo para outro território.21 Uma das questões que
modificam a utilização do termo é o papel da experiência da saída desses povos
e a produção que constituem no lugar de chegada ou durante o trajeto de dis-
persão. Aqui a referência de desterritorialização, inspirada na filosofia da dife-
rença, cunhada por Gilles Deleuze e Félix Guattari,22 articula-se de forma seme-
lhante, já que esse sentido de movimento e mudança é central na perspectiva
desses autores. Com a mesma finalidade, a noção de espaço e de suas múltiplas
ocupações é fundamental. A noção de diáspora fratura o tempo e o espaço, co-
loca como problemática metodológica a centralidade da experiência dos povos
em seus diferentes contextos, ou seja, diferentes processos diaspóricos.
As diferentes noções que a diáspora nos oferece permitem olhar de forma
plural a história dos negros dispersos, reapropriada mediante inúmeros mo-
vimentos. Os movimentos pan-africanista e rastafári, por exemplo, congrega-

Junho de 2012 201


Maria Walburga dos Santos e Ana Cristina Juvenal da Cruz

ram um projeto de união identitária e de uma experiência comum das relações


entre tradição e memória e uma reconstrução histórica, podendo ser articula-
dos a outros movimentos identitários e imprimindo uma estética ao positivar
os dreadlocks (cf. Cashmore, 2000).
A diáspora permite uma relação mais criativa com o tempo histórico. Já
é consenso que uma historicidade baseada em trajetória linear fornece poucas
possibilidades metodológicas para o ensino de história africana e de cultura
afro-brasileira e africana. Quando nos voltamos para a pluralidade do univer-
so cultural africano e de suas reminiscências na cultura brasileira, essas dimen-
sões exigem sua revisão. Isso significa questionar a periodização do tempo na
formação dos historiadores. As temporalidades da pré-história, história antiga,
moderna e contemporânea partem de um tempo e um espaço a partir dos quais
se define o que é antigo, moderno ou contemporâneo. Essa medição temporal
é informada por uma espécie de norma e prática epistemológica que tem como
centralidade o espaço e o tempo ocidentais, mais especificamente europeus.
Ainda como recurso temporal, a diáspora distorce as temáticas de origem
e volta, relacionando-as a uma concepção de espaço como dispersão e perten-
cimento a uma comunidade configurada fora das noções arraigadas de um
Estado-nação, forjando termos como ‘africanos da diáspora’. O pensamento
judaico no qual a ideia de diáspora se desenvolveu articulou essas noções de
pertencimento, permitindo uma identificação judaica dispersa, unida por pres-
supostos religiosos e culturais.
A diáspora permite um conjunto ampliado de sentidos cujo alargamento
pode ser visualizado no modo como a história desses povos tem sido conside-
rada de forma interna aos seus processos de dispersão. Isso pode ser visto nas
maneiras pelas quais as experiências de colonização têm articulado colonizados
e colonizadores de forma diferenciada e interna à estrutura colonial e pós-
-colonial (Hall, 2009).
Ao colocarmos analiticamente a diáspora na construção metodológica
inventamos uma cisão na relação espaço/tempo. Diante de tais caminhos a
diáspora se constitui como uma alternativa com a qual é possível ensinar a
história dos africanos e de seus descendentes. Na história da África, o Conti-
nente não aparece como um lugar predefinido, mas como um constructo plu-
ral, e, para que seu ensino compreenda essa pluralidade dinâmica, requer-se o
uso de alternativas e ferramentas metodológicas.

202 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Diásporas e comunidades quilombolas

Para responder a essa outra relação com o tempo e o espaço é necessário


construir outra metodologia histórica, e a diáspora nos possibilita essa nova
construção, na medida em que ela rompe com um tempo histórico teleológico,
linear, e nos permite analisar fenômenos como a colonização pela resistência
dos povos colonizados e pela relação estabelecida entre eles nos espaços colo-
nizados. Como afirma Gilroy (2001), a diáspora ativa noções de temporalida-
de e memória desde a perspectiva dos subordinados. É possível articular a la-
dainha dos escravizados durante o trabalho, as músicas de resistência das
descolonizações africanas cantadas por Bob Marley e as letras de rap contem-
porâneas para compreender como os africanos e seus descendentes têm utili-
zado culturalmente a música como produção e resistência às suas condições.
É possível construir aulas que utilizem as poesias da négritude produzidas na
França, os movimentos de libertação colonial dos países africanos e as produ-
ções cinematográficas sobre as lutas pós-coloniais.
A história africana pode ser ensinada desde a noção de oralidade dos
Griôs até a produção literária africana contemporânea, das lutas de mulheres
e homens pela liberdade até a resistência pela escolha do suicídio à escravidão
(Gilroy, 2001). É, portanto, necessária outra temporalidade para o ensino des-
ses conteúdos, e a noção de diáspora é particularmente rica, pois ela rompe
com a periodicidade comum ao campo historiográfico do qual a maioria dos
cursos de formação de historiadores no Brasil é adepto.
Os estudos pós-coloniais têm buscado problematizar os cânones históri-
cos e rever a história desses povos. A colonização, por exemplo, desponta da
escravização em uma relação hierárquica e coloca em cena a resistência, a
negociação e a subversão como elementos centrais das relações na colonização.
Um fator essencial nesse processo é a identificação dos trabalhos que constru-
íram suas análises nessa dimensão e pouco avançaram em uma mudança na
concepção dessa temática.
O termo “pós” opera uma quebra no tempo, visto que o termo pós-colo-
nial como teoria se alia aos outros “pós” feminismo, colonialismo, modernis-
mo –, mas não do ponto de vista de uma produção teórica diferenciada, ‘após’
(no sentido de continuidade) tais períodos, e sim como um novo olhar sobre
a maneira pela qual conceitos e noções são construídos. O ‘pós’ reúne espaços
distintos e reorganiza suas temporalidades, rompe com categorizações binárias
e nos obriga a considerar os conceitos em suas relações contingentes, relacio-

Junho de 2012 203


Maria Walburga dos Santos e Ana Cristina Juvenal da Cruz

nais e históricas. Permite compreender de que maneira discursos racializados


são contados, narrados de forma repetida, cotidianamente,23 formando tropos
estereotipados com os quais se criam as ideias que temos sobre os africanos e
os afrodescendentes.
A diáspora nos auxilia também a operar o caráter contingente da história,
possibilitando uma historicidade aos eventos – estudar e compreender como
eles se tornam históricos e qual lugar ocupam na história. Para o ensino de
história que pode utilizar a dimensão diaspórica como recurso sugere-se a
apresentação dos eventos históricos de forma não linear, articulando temáticas
que comumente aparecem separadas nos cursos de história e em boa parte dos
materiais didáticos disponíveis. Aqui entra o quilombo.

O espaço das comunidades quilombolas

Para aludir às comunidades quilombolas, marcaremos, em princípio, o lu-


gar onde as consideramos para este texto. Pensamos o quilombo de forma dias-
pórica. Consideramos a historiografia que busca compreender o movimento das
comunidades quilombolas voltando-se para o seu surgimento e para as relações
que elas estabeleceram com outros grupos. No entanto, colocamos o quilombo
diasporicamente ao lado desse campo consolidado da pesquisa sobre quilombos.
Pensá-lo de forma diaspórica centraliza o espaço e seu movimento.
Entre as principais referências históricas e sociológicas das comunidades
quilombolas está a visão de que elas atuaram por um lado como uma insurrei-
ção ao escravismo e, por outro, como uma experiência de sociedades marcadas
por elementos pluriculturais.24 Em alguns momentos elas se opuseram ao go-
vernamento estabelecido no Brasil, mantendo-se de forma constante na his-
tória brasileira (Moura, 1988). Isso exige retomarmos o fato de que os quilom-
bolas, majoritariamente africanos e descendentes, ressignificaram seu papel
como comunidades resistentes ao escravismo brasileiro, o que não impediu a
presença no interior do espaço quilombola de pessoas como desertores e per-
seguidos.25 Ou ainda, “índios, perseguidos, mulatos, curibocas, pessoas perse-
guidas pela polícia, bandoleiros, devedores do fisco, fugitivos do serviço mili-
tar, mulheres sem profissão, brancos e prostitutas” (Munanga, 2004, p.34),
cujos registros de participação em muitas comunidades quilombolas apontam
formas de socialibilidade entre esses grupos que escapavam à hierarquia social

204 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Diásporas e comunidades quilombolas

da época. Munanga destaca que “imitando o modelo africano, eles transfor-


maram esses territórios em espécie de campos de iniciação à resistência, cam-
pos esses abertos a todos os oprimidos da sociedade ... prefigurando um mo-
delo de democracia plurirracial” (2004, p.63) ou pluricultural.
Há inúmeros processos históricos de ressemantização para designar as
experiências de resistência à opressão dos negros no Brasil e em outros países.
Entre eles há pluralidade de termos: quilombos, quilombolas, mocambos e
comunidades remanescentes de quilombo são exemplos desse processo. A pa-
lavra, de acordo com o contexto histórico, tem apresentado significados dife-
rentes, apontando transformações de ordem semântica e prática em sua utili-
zação. Assim, estudar quilombos no século XVII remete a características
diferentes do que encontraremos nos séculos XVIII e XIX. Distancia-se de nós
a denominação atribuída aos quilombos como “refúgios de escravos fugidos”,26
mas, ao serem ressignificados, despontam noções sobre as formas de lutas
contra as investidas de destruição dos quilombos e resistências solidárias.27 A
prática da quilombagem à época era também marcada pelo assalto, pelo se-
questro de outros escravizados, pela formação de famílias e pela recriação de
aspectos culturais africanos (Reis, 1996).
O histórico da existência de quilombos não se restringe ao Brasil. Grupos
de diferentes denominações (palanques na Colômbia, México, Equador e
Cuba; cumbes na Venezuela; marrons no Haiti, nas ilhas do Caribe Francês,
Suriname, Estados Unidos, Guiana e Jamaica; cimarrons na América Espanho-
la, marrons e bush negroes na Guiana Francesa)28 expressaram e expressam em
diferentes localizações a inconformidade com um sistema de exclusão social e
opressão, principalmente aos negros e seus descendentes, mas que também se
estende aos camponeses, pobres e marginalizados. Firmaram-se como espaço
político e social de domínio dos excluídos, espaços de resistência.
Atualmente, uma característica comum às comunidades quilombolas dos
séculos XX e XXI é o traço da luta, prioritariamente luta pela terra. Tal ação
vem sendo acompanhada por vários setores da sociedade organizados em
grupos de reivindicação social, com destaque para os movimentos sociais ne-
gros. No âmbito legislativo, a mais significativa conquista é voltada ao con-
teúdo do Art.º 68 das Disposições Transitórias da Constituição Brasileira de
1988, que prevê:

Junho de 2012 205


Maria Walburga dos Santos e Ana Cristina Juvenal da Cruz

§ 68º Aos remanescentes das Comunidades de Quilombos que estejam ocu-


pando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emi-
tir-lhes os respectivos títulos.29

Além do direito à permanência na terra, o processo de reconhecimento


assegura a posse da terra a esses grupos, coletivizando-a, obedecendo a prin-
cípios que propõem “utilização do solo e recursos naturais em geral, de forma
ecologicamente equilibrada, por interesse histórico, cultural, científico, públi-
co, econômico e por justiça social”.30
Segundo Clóvis Moura o quilombo foi uma forma de resistência ao escra-
vismo, representativa na medida em que conheceu registros durante todo o
período escravista e mantém uma noção de ‘recriação’ aos modos de vida de
alguns reinos africanos, como especialmente em Palmares.31 O enfoque de
Moura é importante, pois constrói a análise por meio da ação do escravizado,
fornecendo uma análise da unicidade atribuída ao escravizado negro – sua
passividade. O autor se junta a outros, como Décio Freitas, que empreenderam
uma crítica historiográfica e sociológica ao estudo das revoltas escravas e da
noção de democracia racial presente à época de suas publicações. Contempo-
raneamente, sua característica de resistência persiste para ser preservada como
um espaço do campo,32 sendo denominados como ‘comunidades remanescen-
tes de quilombo’.
Com base nessa proposição, comunidades de todo o Brasil vêm buscando
o reconhecimento como quilombolas. Com ressalvas ao termo ‘remanescen-
tes’, alvo de discussões e embates, cabe ao grupo considerar-se ‘quilombola’ e
se autodefinir como tal, traçando seu percurso histórico, cultural e étnico. De
acordo com a legislação,33 ser remanescente de quilombo está diretamente
associado ao uso que se faz das ‘terras de preto’ e ao processo histórico-cultu-
ral que alicerça o grupo. Como várias comunidades ainda se encontram em
processo de reconhecimento, salientamos que o que se observa – além do re-
conhecimento ou titulação de cunho legal – é o interior desses espaços, deno-
minando-os indistintamente como comunidades quilombolas, e seus habitan-
tes, como quilombolas. Embora conscientes de seu processo dinâmico de
formação e das várias interferências culturais a que estão atreladas, dedicamos
maior atenção à relação que essas comunidades constroem com uma ances-
tralidade africana, sua cultura, história e diálogo com o presente. Como pro-

206 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Diásporas e comunidades quilombolas

dução de resistência, a ação dos quilombos passa a ser denominada de quilom-


bagem, articulando-se com a ação dos movimentos sociais negros
contemporâneos, o que permite ao historiador em sala de aula construir ana-
logias entre as formas de resistência atuais.

Educação quilombola

Na consideração das diretrizes que propõem o ensino de história da Áfri-


ca e cultura africana e afro-brasileira algumas possibilidades são abertas. A
primeira retoma a linguagem, ao observarmos que os livros, artigos e materiais
didáticos que fazem referência ao quilombo trazem em sua maioria uma ima-
gem de Zumbi ou uma imagem de um espaço quilombola do período colonial,
produzindo uma determinada linguagem que é retomada quando se atêm a
esse tema. É possível recriar uma revisão do ‘quilombo histórico’, trazendo
para nosso cotidiano as comunidades quilombolas hoje, observando sua pro-
dução histórica, cultural e modo de viver e fazer educação. Pode-se atentar a
essa construção com aulas a respeito da constituição dos quilombos, sua atual
luta pela terra e os diversos conflitos agrários presentes na sociedade brasileira.
Em ambas as possibilidades, podemos tratá-las diasporicamente, repen-
sando uma estrutura metodológica do ensino de história, o que pode ir além
das estratégias convencionais de leitura e compreensão de textos didáticos. Tal
ideia segue o princípio de que é necessário considerar o próprio dado consti-
tutivo do ensino de história e da própria história, ou seja, reconhecer que a
história como disciplina científica ou forma de pensamento infere o “olhar
retrospectivo sobre os objetos, a certeza de que cada uma das realidades que
observamos no presente pode e deve ser mais bem compreendida através do
conhecimento de sua inserção no tempo”.34
A título de exemplo, podemos considerar as práticas desenvolvidas no
âmbito de pesquisa etnográfica junto à Comunidade Remanescente de Qui-
lombo de Bombas, no interior do estado de São Paulo.35 O trabalho teve enfo-
que na experiência da ludicidade infantil e nos saberes produzidos com e entre
as crianças na comunidade, observando também a relação entre o lúdico e a
construção de conhecimentos genuínos da comunidade entre os demais habi-
tantes. Há uma dimensão pedagógica inserida na comunidade, que figura no
lugar do que se denomina educação não formal. A ideia é que se pode aprender

Junho de 2012 207


Maria Walburga dos Santos e Ana Cristina Juvenal da Cruz

história além do que está no livro didático ou apostila, mas que é possível
compreendê-la, ensiná-la e aprendê-la na dinâmica em que estamos inseridos,
transformando a lógica do “currículo uniforme”,36 pois o considerado ‘não
saber’ também é conhecimento.
Em linhas gerais, a comunidade apresenta aspectos peculiares quanto à
sua formação e organização. Localizada no centro da floresta, prescinde de
saneamento básico, energia elétrica ou estrada, tendo seus moradores de se
deslocar por trilhas. A organização social é marcada por papéis definidos, for-
temente marcados pelo gênero, prefigurando uma dimensão ‘invisível’ 37 das
normas sociais válidas no interior da comunidade.
O plural se apresenta como uma diversidade de jogos, brincadeiras e si-
tuações lúdicas. Dentre os mais conhecidos estão a mancala e pernas de pau,
que permitem ver como as crianças em diversos espaços inspiram suas brin-
cadeiras a partir de referências culturais – no caso citado, matrizes africanas
–, embora elas também estejam conectadas com a sua contemporaneidade,
como nos momentos em que brincam com o celular. Hoje, o lúdico assume
forma variada, transitando entre o saber local e os saberes advindos do conví-
vio com outros espaços e pessoas. Por exemplo, os mais jovens ouvem músicas
como o rap, como os jovens que vivem nas cidades, mas não deixam de ouvir
canções sertanejas e conhecem danças tradicionais como o fandango.
Na comunidade existem escolas iniciadas com as pessoas do local: os que
mais sabiam ensinavam aos outros, até o reconhecimento pelo poder público
municipal. Quando essas iniciativas foram reconhecidas como escolas públi-
cas, os professores que passaram a atuar deixaram de ser necessariamente do
entorno e trouxeram outras referências, normalmente de experiência urbana.
Os materiais didáticos utilizados partem de outra realidade e pouco ressoam
no fazer cotidiano dos habitantes de Bombas. Uma vez que essas escolas fazem
parte da rede municipal, os materiais didáticos, sobretudo apostilas indicadas
pela Secretaria de Educação, uniformizam o conhecimento, sem atentar para
a diversidade do conhecimento ou para as especificidades do contexto. Deslo-
cam, quando não renegam, os saberes produzidos pela comunidade.
Tornando mais claro: as narrativas do grupo recuperam tradições que
dialogam com o passado e o presente, com a história, trazendo elementos
(categorias do saber histórico) como trabalho, terra, tempo, espaço, ocupação
territorial, exploração capital, classe social, divisão de trabalho, gênero, rela-

208 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Diásporas e comunidades quilombolas

ções raciais, cultura e sociedade. Exemplo: um dos moradores mais antigos


conta que seu pai nunca teve documento, e que ele, o filho, no dia em que o
pai faleceu, tirou “os dois documentos: o de nascimento e o de morte”.
Com base nesse relato, e em vários outros, é possível a um professor de
história do ensino fundamental e mesmo do ensino médio abordar algumas
questões históricas. Brincadeiras como o canjém, um tipo de balanço, e tilim-
buque, espécie de gangorra, apontam para saberes em que a notoriedade cen-
tra-se no corpo, como espaço de experimentação, e na linguagem, que revela
o processo de significação próprio da comunidade, pois essas brincadeiras, da
maneira como acontecem, só podem ocorrer na floresta: para se balançar no
canjém é preciso um cipó forte para cruzar determinado espaço, de um ponto
a outro; quanto ao tilimbuque, construção com restos de toras de madeira,
carece do conhecimento dos mais velhos tanto para fazer a armação desse tipo
de gangorra, quanto para a escolha das madeiras resistentes o suficiente para
servirem de base.
O diálogo com sujeitos até então silenciados, ou classificados na categoria
coadjuvante ou figurativa, inverte a proposição do ensino denominado tradi-
cional em história. A oralidade, muito presente em histórias, causos, lendas e
cantos, traça a identidade dos habitantes em meio à diversidade e marca outra
relação com o conhecimento, levando em consideração aquilo que ainda não
foi padronizado ou estereotipado nos livros didáticos.

Considerações finais

Autores do campo de ensino de história38 têm demonstrado que a área


não pode se constituir por meio de uma história única, seja ela calcada nos
livros didáticos, manuais de ensino ou apostilas, seja em uma única referência
– a eurocêntrica, por exemplo –, consolidando um ensino “com pouca crítica
e pouca criatividade” (Fonseca, 2010). Apontam também lacunas no processo
de formação do professor de História, principalmente o desgaste do campo
com a proposição, na década de 1970, da formação em curso único para His-
tória e Geografia, na extinta grade dos Estudos Sociais. A perda da especifici-
dade e da reflexão em torno do ensinar e aprender história ainda é observada
em instituições escolares onde primam o livro, o resumo e o questionário co-
mo tripé do ensino. Porém, o licenciado em história não é o único a trabalhar

Junho de 2012 209


Maria Walburga dos Santos e Ana Cristina Juvenal da Cruz

com seu ensino: nos primeiros anos de escolarização os pedagogos são respon-
sáveis por articular o campo, e nem sempre a formação desses profissionais
atenta para as demandas do ensino de história, fato que pode gerar equívocos
e consequências nos anos posteriores. É nesse cenário que se insere o desafio
de ensinar e aprender história no século XXI.
No decorrer do debate proposto neste texto foram trabalhadas algumas
questões epistemológicas e metodológicas sobre o ensino de história e cultura
afro-brasileira e africana. A questão do método é um dos pontos chaves na
perspectiva do ensino, especialmente no que toca ao ensino de história. Des-
taca-se assim a categoria diáspora e a dimensão dos quilombos como alterna-
tivas metodológicas criativas para ensinar a história das populações africanas
e de seus descendentes.
Tais noções rompem com os elos nodais na construção do conhecimento
histórico. Rompimento, aqui, não significa uma ruptura vazia na qual a pro-
posta seria trocar uma perspectiva pela outra, romantizando a história e seu
ensino, mas potencializar diversas formas de construir metodologias conforme
o conteúdo a ser ofertado. Implica considerar as especificidades locais e regio-
nais de escolas, perfis de estudantes e professores, o que permite ampliar as
formas de ensinar história. Em relação ao estudo de história da África e cultu-
ra afro-brasileira e africana as características específicas sobre o lugar dessas
temáticas no ensino da história é fundamental. Aqui consideramos que o en-
sino desses conteúdos específicos deve ser construído de forma orgânica na
preparação da didática dos conteúdos.
Os cursos de formação de profissionais da educação sobre a temática da
educação das relações étnico-raciais apontam que esses profissionais mantêm
uma ideia estereotipada sobre o Continente africano e sobre as pessoas que
habitam esse espaço. Muitos tiveram pouca ou nenhuma incursão nesses con-
teúdos, durante sua trajetória escolar. Com os historiadores em formação isso
se repete, sendo flagrantes nas salas de aulas as opiniões ainda enviesadas sobre
os africanos e seus descendentes. A publicação em português da Coleção His-
tória Geral da África,39 sob indicação da Unesco, vem agir no sentido de dis-
ponibilizar um material denso sobre a história do Continente africano. A des-
crição dos capítulos por historiadores dedicados ao tema da história africana
revela postura que aponta para uma construção histórica sobre os africanos e
suas produções culturais, de forma a considerar suas especificidades, e permi-

210 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Diásporas e comunidades quilombolas

te aos profissionais do ensino de história buscar fontes diversas como mapas,


relatos e imagens para compor uma didática para o ensino da história africana
e de seus descendentes.
O grande desafio para estudantes e professores está na busca de tais fontes
e documentos. Deve-se considerar que uma das possibilidades de ‘releitura’
concentra-se nas próprias fontes oriundas da história considerada tradicional.
O trabalho com todo tipo de iconografia,40 mitos,41 diários de viagem,42 contos
tradicionais, provérbios,43 filmografia44 e literatura45 pode ser ressignificado a
partir da apresentação e discussão do conceito de quilombo para além do ‘re-
fúgio de escravos fugidos’, aproximando os alunos de outra referência para os
quilombolas. Tais possibilidades podem auxiliar o professor a trazer as expe-
riências dos estudantes para a sala de aula. Embora esse discurso tenha se
tornado lugar-comum na educação, só é possível pensar uma inter-relação
com a dimensão quilombola ouvindo de fato o que essas pessoas têm a dizer
sobre si mesmas e suas histórias, observando e registrando seu cotidiano e
fazeres. É preciso considerar as experiências desses espaços e o que podem nos
ensinar sobre formas de sociabilidade, saberes tradicionais e relações interge-
racionais, entre outras experiências.
Contemporaneamente o fenômeno do racismo e a percepção das diferen-
ças são condicionados a uma confluência de elementos, língua, nacionalidade
e religião. Operam em uma processualidade que configura nossa apreensão
das diferenças, e esse movimento é instável e contingente. Todo esse universo
abrange características específicas no ensino de história da África e das cultu-
ras de seus povos e descendentes.
Esses conteúdos nos colocam também o desafio de repensar a função do
ensino de história e a importância de seu estudo. Não se pode ensinar sobre a
história dos povos africanos e o movimento da diáspora negra sem compreen-
der as experiências diaspóricas vividas por esses grupos. Não se pode também
ignorar a estrutura e a funcionalidade do racismo brasileiro e sua perpetuação
mesmo no ambiente escolar. Tal postura exige que tenhamos uma compreen-
são da presença das várias faces em que o fenômeno do racismo se perpetua,
e nesse sentido o ensino de história e da cultura dos africanos e de seus des-
cendentes nos oferece um caminho para uma história plural.

Junho de 2012 211


Maria Walburga dos Santos e Ana Cristina Juvenal da Cruz

NOTAS

1
CASTRO, Amélia D. O ensino: objeto da didática. In: CARVALHO, Anna Maria P. de.
Ensinar a ensinar: didática para a escola fundamental e média. São Paulo: Cengage Lear-
ning, 2001. p.13-29.
2
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão
do nacionalismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p.330.
3
Não esqueçamos o contexto e o impacto da análise de Hegel sobre a ausência da história
dos povos negros africanos à época, “A África não é uma parte histórica do mundo”
(­HEGEL, G. W. F. Filosofia da História. Brasília: Ed. UnB, 1995, apud OLIVA, Anderson
Ribeiro. A história da África nos bancos escolares: representações e imprecisões na litera-
tura didática. Est. Afro-Asiáticos, v.25, n.3 p.421-461, 2003; p.438) e o fato de que textos
como esses continuam ainda hoje a ser lidos nos cursos de formação de historiadores.
4
FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: Ed. UFBA,
2008.
5
GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: Ed.
34, 2001. p.432; MIGNOLO, W. D. La idea de América Latina: la herida colonial y la opci-
ón descolonial. Barcelona: Gedisa Ed., 2007. p.240.
6
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Myriam Avila, Eliana Lourenço L. Reis,
Glaucia R. Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. p.238.
7
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik. Belo Hori-
zonte: UFMG, 2009. p.410.
8
Movimento artístico e político criado por intelectuais negros de maioria da língua france-
sa, na década de 1930, que produziu uma crítica literária ao colonialismo e ao racismo.
9
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus
identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. p.150. (Col. Cultura e Identidade Bra-
sileira).
10
WEDDERBURN, Carlos Moore. Novas bases para o Ensino da História da África no
Brasil. In: Educação Anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal 10.639/2003. Brasília:
Secad/MEC, 2005. p.134-142.
11
CURTIN, P. D. Tendências recentes das pesquisas históricas africanas e contribuição a
história em geral. In: KI-ZERBO, Joseph (Org.) História Geral da África. 2.ed. rev. Brasília:
Unesco, 2010. p.44.
12
O termo afrocêntrico se refere a uma perspectiva aplicada ao modo de estudar as temáti-
cas relativas ao continente africano por uma perspectiva orgânica, pensada desde o início
a partir de uma forma específica de operar o tempo e a narrativa acerca das experiências
africanas (ASANTI, in: CASHMORE, Ellis. Dicionário de relações étnicas e raciais. Trad.
Dinah Kleve. São Paulo: Selo Negro, 2000. 598p. p.62-64).

212 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Diásporas e comunidades quilombolas

13
Cf. THORTON, J. A África e os africanos na formação do mundo atlântico 1400-1800.
Rio de Janeiro: Elsevier; Campus, 2004.
14
NDIAYE, Pap. La condition noire: essai sur une minorité française. Paris: Gallimard,
2008. p.501.
15
Referimo-nos ao decreto imperial de 1870, que impedia o acesso de negros escravizados
às escolas, entre outras leis que impediam o acesso a africanos livres ou libertos.
16
Estamos nos referindo às medidas legislativas de caráter estatal, no entanto não descon-
sideramos as propostas pedagógicas das associações negras como, por exemplo, o Teatro
Experimental do Negro (TEN) e da Frente Negra Brasileira.
17
DAVILA, Jerry. Diploma de brancura. Política social e racial no Brasil – 1917-1945. São
Paulo: Ed. Unesp, 2006. p.399.
18
PINTO, R. P. Movimento negro e a educação do negro: a ênfase na identidade. Cadernos
de pesquisa, São Paulo, n.86, p.25-38, 1993.
19
SANTOS, S. A. A lei 10.639/03 como fruto da luta anti-racista do Movimento Negro.
SECAD. Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. Brasília,
2005. p.21-38.
20
Nas leis de Porto Alegre em 1991, de Belém em 1994, na disciplina de História. Para a
efetivação dos conteúdos na disciplina, as leis propõem, de maneira geral, levantamento de
bibliografia específica, reuniões e organização de seminários. Em 1994, o município de
Aracaju institui curso preparatório para a inclusão de conteúdos relativos à História e Cul-
tura do negro e do índio na rede de ensino. Em 1994 o município institui o ensino da ‘Raça
Negra’. Em São Paulo, no ano de 1996, o município institui os ‘estudos contra a discrimi-
nação racial’; em Brasília, também em 1996, os conteúdos relativos à ‘Raça Negra’ são in-
cluídos no sistema de ensino do Distrito Federal.
21
WIEVIORKA, M. O racismo: uma introdução. Trad. Fany Kon. 1.ed. São Paulo: Perspec-
tiva, 2007. p.164.
22
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v.5. Trad. Peter
Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Ed. 34, 1997. p.235.
23
Valentin Mudimbe chama de discours subreptices um determinado modo pelo qual os
discursos são construídos e repetidos. Ver em NDIAYE, 2008.
24
Cf. em Quilombismo (2.ed. Brasília: Fundação Cultural Palmares; OR Ed., 2002) a análise
de Abdias do Nascimento da proposta de ‘Estado quilombista’.
25
REIS, João J. Quilombos e revoltas no Brasil. O povo negro no Brasil. Revista da USP,
São Paulo, v.28, p.14-39, 1996. p.16.
26
No século XVI, o Conselho Ultramarino denominava quilombo como “toda habitação
de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ran-
chos levantados nem se achem pilões neles” (MOURA apud MUNANGA; GOMES, 2006,
p.70). Já no século XIX, a lei Provincial 157 (9 ago. 1848, Rio Grande do Sul) define: “por

Junho de 2012 213


Maria Walburga dos Santos e Ana Cristina Juvenal da Cruz

quilombo entende-se a reunião no mato ou em lugar oculto de mais de três escravos” ou


“habitação clandestina nas matas e desertos que serviam de refúgio a escravos fugidos”.
PINHO, José Ricardo Moreno. Escravos, quilombolas ou meeiros: escravidão e cultura po-
lítica no meio São Francisco (1830-1888). Dissertação (Mestrado) – UFBA. Salvador, 2001.
p.84.
27
MUNANGA, Kabengele; GOMES, Nilma Lino. O negro no Brasil de hoje. São Paulo:
Global, 2006. p.9-140.
28
Cf. ANJOS, Rafael; CIPRYANO, André. Quilombolas: tradições e cultura da resistência.
São Paulo: Aori Comunicação, 2006.
29
ITESP. Negros do Ribeira: reconhecimento étnico e conquista de território. São Paulo,
2000 (Cadernos ITESP, 3). p.3.
30
ITESP, 2000, v.3, p.8. A questão da ressemantização do termo ‘quilombo’, passando por
quilombolas e comunidades remanescentes de quilombos, tem sido pauta de vários estu-
dos, dentre os quais se destaca ARRUTI, José Maurício. Mocambo: antropologia e história
do processo de formação quilombola (Bauru: Edusc, 2006), que traça não apenas o históri-
co desse processo como também as relações implicadas no âmbito das políticas públicas.
31
MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. 4.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. p.24-
25.
32
Todavia, é importante destacar que entre os quilombos contemporâneos, comunidades
urbanas também têm direito à nomeação e titulação como quilombolas, como é o caso da
Comunidade de Brotas, em São Paulo.
33
Decreto 4.888 de 10 nov. 2003: “a caracterização dos remanescentes das comunidades
dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade ... com pre-
sunção de ancestralidade negra relacionada com a opressão historicamente sofrida” (cf.
MATTOS, H. Remanescentes das comunidades dos quilombos: memória do cativeiro e
políticas de reparação no Brasil. Revista USP, São Paulo, n.68, p.104-111, 2005-2006).
34
CERRI, L. F. Uma proposta de mapa do tempo para artesãos de mapas do tempo: histó-
ria do ensino de História e didática da História. In: MONTEIRO, A. M.; GASPARELLO,
A. M.; MAGALHÃES, M. S. (Org.) Ensino de História: sujeitos, saberes e práticas. 1.ed. Rio
de Janeiro: Mauad X; Faperj, 2007. v.1, p.59-72. p.60.
35
SANTOS, Maria Walburga dos. Saberes da Terra: o lúdico em Bombas, uma comunida-
de quilombola (estudo de caso etnográfico). Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade
de Educação, USP. São Paulo, 2010.
36
FORMOSINHO, João. O currículo uniforme, pronto a vestir, de tamanho único. Man-
gualde (Portugal): Ed. Pedago, 2007.
37
Cf. MOURA, G. o aprendizado nas comunidades quilombolas: o currículo invisível. In:
BRAGA, Maria Lúcia de S.; SOUZA, Edileuza P. de; MAGALHÃES PINTO, Ana Flávia
(Org.) Dimensões da inclusão no Ensino Médio. Brasília: MEC; BID; Unesco, 2006. p.259-

214 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Diásporas e comunidades quilombolas

270. Disponível em: unesdoc.unesco.org/images/0014/001463/146328por.pdf; Acesso em:


21 abr. 2012.
38
CIAMPI, Helenice. A História pensada e ensinada: da geração das certezas à geração das
incertezas. São Paulo: Educ; Fapesp, 2000; BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensi-
no de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2009; FONSECA, Selva Gui-
marães. Caminhos da História ensinada. Campinas (SP): Papirus, 2010.
39
A coleção composta por oito volumes foi publicada em 1981, em inglês, e em 2010 foi
publicada em português por uma parceria entre a Unesco, o Ministério da Educação e a
Universidade Federal de São Carlos. Disponível em: www.unesco.org/new/pt/brasilia/
about-this-office/single-view/news/general_history_of_africa_collection_in_portugue-
se-1/; Acesso em: 21 abr. 2012.
40
As ‘pranchas’ tradicionais de Debret, por exemplo, para serem problematizadas e discu-
tidas à luz dos conceitos de diáspora e quilombos.
41
Observar os trabalhos de Roger Bastide e Reginaldo Prandi.
Trabalhos de Vanhargen, orientando leituras e promovendo reflexões. Cf. LAPA, José R.
42

A. História e Historiografia do Brasil pós 64. São Paulo: Paz e Terra, 1985.
43
Obras de Luís da Câmara Cascudo, no caso de contos tradicionais, folclóricos e provér-
bios.
44
Além de filmes do circuito comercial, observar a produção de documentários como Qui-
lombos da Bahia (dir. Antônio Olavo. Salvador: Portfolium, 2005).
45
Cf. AMÂNCIO, I. M. C.; GOMES, N. L.; JORGE, M. L. S. Literaturas africanas e afro-
-brasileira na prática pedagógica. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p.168.

Artigo recebido em 10 de janeiro de 2012. Aprovado em 23 de abril de 2012.

Junho de 2012 215


Para construir outro olhar:
notas sobre o ensino de história
e cultura africanas e afro-brasileiras
To build another look: notes on the teaching
of African and Afro-Brazilian history and culture
Hilton Costa*

Resumo Abstract
O presente texto busca destacar a im- This paper seeks to emphasize the im-
portância da construção de um novo portance of constructing a new perspec-
olhar no que diz respeito ao ensino de tive regarding the teaching of African
história e cultura africanas e afro-brasi- and Afro-Brazilian history and culture.
leiras. O texto se divide em dois mo- The text is divided in two sections: the
mentos: o primeiro versa sobre a impor- first relates to the importance of the
tância da alteração da Lei de Diretrizes e changing of the Law of Guidelines and
Bases da Educação brasileira, por meio Bases of Brazilian Education, by means
da Lei 10.639/2003, e sua relação com a of the Law 10.639/2003 and its relation-
formação de docentes. O segundo apon- ship with the process of training teach-
ta para uma sugestão de trabalho em ers. The second suggests a way to work
sala de aula: parte-se do contexto inte- with the issue in classrooms: as a part of
lectual pós-abolição no Brasil, indican- the intellectual context in post-abolition
do sua relação com o senso comum e a in Brazil, indicating the liaison with
maneira como este articula a manuten- common sense and the ways in which it
ção de estereótipos e estigmas acerca da reinforces the maintenance of stigmas
população negra no Brasil. and stereotypes about black population
Palavras-chave: educação; cultura e his- in Brazil.
tória afro-brasileiras; relações raciais. Keywords: education; afro-brazilian
history and culture; racial relationship.

* Doutorando em História. Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do


Paraná (UFPR). Rua General Carneiro, 460, sala 716, 7º andar, Ed. Dom Pedro I, Centro. 80060-
150 Curitiba – PR – Brasil. angolapr@yahoo.com

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 217-238 - 2012


Hilton Costa

Para ser mais claro: excluindo um seleto grupo de intelectuais e


pesquisadores, uma parcela dos afrodescendentes e pessoas ilu-
minadas pelas noções do relativismo cultural, nós, brasileiros,
tratamos a África de forma preconceituosa. Reproduzimos em
nossas ideias as notícias que circulam pela mídia, e que revelam
um Continente marcado pelas misérias, guerras étnicas, instabi-
lidade política, aids, fome e falência econômica. Às imagens e
informações que dominam os meios de comunicação, os livros
didáticos incorporam a tradição racista e preconceituosa de estu-
dos sobre o Continente e a discriminação à qual são submetidos
os afrodescendentes aqui dentro.1

O espaço escolar, desde pelo menos a Reforma Protestante, no século XVI,


ganhou centralidade na vida das pessoas no mundo ocidental. A escola se
tornou, em teoria, algo obrigatório às pessoas, seja pela necessidade de se ajus-
tar à sociedade envolvente, seja pela imposição do Estado, ou ainda pela com-
binação das duas situações. No Brasil, uma pessoa que consiga cumprir o per-
curso educacional formal deverá passar de 12 a 13 anos na escola. E nisso se
excluem os períodos anteriores à inserção no ensino fundamental, o momento
outrora denominado pré-escolar, e o ensino superior. Desta feita, durante um
período de 12 ou 13 anos uma pessoa pode vir a passar de quatro a cinco horas
diárias no espaço escolar. Logo, não é difícil admitir a relevância da escola
enquanto ambiente essencial de socialização admitida em sentido amplo.2
A socialização é assim entendida porque não diz respeito somente à relação
da/do discente com os conteúdos das diferentes disciplinas, mas também à
convivência com as/os colegas, professoras/es, funcionários/as. É nesse uni-
verso que inúmeras pessoas estabelecem suas primeiras relações de amizade/
inimizade, de trabalho em equipe, reconhecem as primeiras sensações de su-
cesso/insucesso. Ou seja, a escola é o primeiro local onde as pessoas são apre-
sentadas a inúmeras situações da vida social, circunstâncias mais amplas e
complexas, na maioria dos casos, do que aquelas vividas no ambiente familiar,
primeiro ambiente de vida social para muitos. A escola, mesmo sendo confes-
sional ou militar, as expõe às diferenças, diferenças estas que dão uma dimen-
são mais próxima do que é a vida social nas sociedades modernas. É no am-
biente escolar, também, que se dá a necessidade de lidar com a diferença.
De um modo geral e generalizante, a tendência é trabalhar com a diferen-
ça, com as diferenças, fazendo uso de algumas ferramentas interpretativas. Tais

218 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Para construir outro olhar

ferramentas compõem a forma ou as formas como as pessoas lidam com o


mundo à sua volta. Elas são aqui agregadas na expressão conceitual: visão de
mundo. Esta é elemento essencial, básico para a interação dos indivíduos com
a sociedade. É construída em vários espaços sociais e, evidentemente, a escola
é um deles, talvez um dos mais importantes. A escola fornece elementos es-
senciais à forma como elas vão ler e interagir com o mundo à sua volta. Assim
sendo, a atuação docente e dos programas escolares é decisiva à composição
da forma como muita gente vai perceber o mundo. Desta feita, mostra-se ne-
cessário a quase toda e qualquer tentativa de rever posições e ideias socialmen-
te arraigadas que passe por um diálogo sério com professores/as, educadores/
as e pelos programas escolares. As mencionadas posições arraigadas não o são
desde sempre, elas foram se tornando sócio-historicamente o que são. De mo-
do a poderem ser desarraigadas.
Assim, voltando diretamente ao tema que propomos tratar aqui, pergun-
tamos: o que sabemos sobre a África, suas populações, civilizações? Ou sobre
a população negra do Brasil? Anderson Ribeiro Oliva, em artigo publicado em
2003, mesmo ano da Lei 10.639, faz observações importantes acerca da imagem
da África no Brasil. Apesar das mudanças em curso nos últimos anos, suas
colocações são pertinentes. Além daquelas presentes no excerto que serve de
epígrafe para o presente texto, Oliva ainda destaca que:

Para além da educação escolar falha, é certo afirmar que as interpretações racis-
tas e discriminatórias elaboradas sobre a África e incorporadas pelos brasileiros
são resultado do casamento de ações e pensamentos do passado e do presente ...
As distorções, simplificações e generalizações de sua história e de suas popu-
lações são comuns a várias partes e tempos do mundo ocidental. Dessa forma, se
continuarmos a reproduzir leituras e falas ... é muito provável que o imaginário
de nossas futuras gerações sobre a África não sofra modificações significativas.
(Oliva, 2003, p.431)

Oliva informa acerca da existência de posições, imagens bastante arraiga-


das acerca da África, suas populações e civilizações, bem como sobre história
e cultura afro-brasileiras no cotidiano escolar. Posições e imagens, em geral,
postas a apresentar visões, se não negativas, pelo menos estereotipadas. E isso
se dá em um local importante para a formação da visão de mundo das pessoas.
De fato, como se buscará apresentar adiante, essa situação vem se alterando,

Junho de 2012 219


Hilton Costa

mas ainda há no senso comum, no senso comum escolar, no senso comum


acadêmico, imagens distorcidas da África e de suas civilizações, há muito ar-
raigadas. Tais imagens foram, em grande medida, construídas pelo colonialis-
mo, pelo neocolonialismo e também pela nova onda de hegemonia euro-esta-
dunidense nomeada de globalização. A produção cultural e intelectual
vinculada de alguma maneira à visão de mundo desses movimentos difundiu
e fixou a imagem da região como o local de guerras endêmicas, ou ainda a do
lugar sem humanidade, espaço do natural por excelência, lar dos grandes ma-
míferos das savanas e do Saara. E seus povos foram vistos como atrasados.
Esse rol de estigmas e estereótipos, infelizmente, ainda persiste quando a Áfri-
ca é discutida em sala de aula. De fato, existem inúmeros conflitos armados no
continente africano, há a epidemia de aids, há a fome, e lá estão os grandes
mamíferos e o Saara; a questão é que a África não se resume a isso. Com efei-
to, devemos chamar a atenção para o fato de que em se olhando para essas
situações com outro olhar pode-se buscar compreender o processo que as for-
mou – os motivos dos conflitos armados, por exemplo – e analisar vários as-
pectos, como o fato de que o Saara aumenta a cada ano.
Um tratamento estigmatizado e estereotipado também foi dado – e infe-
lizmente ainda o é – à história e à cultura dos descendentes de africanas e
africanos do Brasil. Essa população tem sua imagem associada recorrentemen-
te à violência, à pobreza, à indolência e a uma sexualidade animalesca, ou seja,
a um rol de características negativas. E quando se almeja valorizá-la, isso se dá
por meio de outro estereótipo, o da ‘festividade’, ou seja, pela alegoria de pes-
soas aptas a fazerem ‘festas’, mas inaptas a responsabilidades de outra ordem.
Nesse caso, como no anterior, outro olhar pode revelar, em vez de estereótipos,
os processos sócio-históricos que produziram a situação que leva parte consi-
derável da população negra brasileira a viver se não na pobreza, muito perto
dela. Mas para tudo isso ser viável é necessário preparar o olhar para ver outras
coisas, para além dos estereótipos, e, evidentemente, ter a vontade de ver outra
coisa. A construção desse outro olhar é possivelmente um dos principais ob-
jetivos da Lei 10.639/2003. Pois a constituição de outro olhar é fundamental
para o rompimento da situação mencionada.
Desta feita, o presente texto se divide em dois momentos: o primeiro
versa sobre a importância da alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
brasileira e sua relação com a formação de docentes. E nesse sentido é impos-

220 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Para construir outro olhar

sível ignorar a democracia racial, elemento dos mais importantes à formação


da visão de mundo dos/as brasileiros/as, bem como à sua contestação. O se-
gundo momento aponta para uma sugestão de trabalho em sala de aula: parte-
-se do contexto intelectual pós-abolição no Brasil, indicando sua relação com
o senso comum e analisando como este articula a manutenção de estereótipos
e estigmas acerca da população negra no Brasil. Essa sugestão é uma tentativa
de exemplificar a constituição desta outra forma de olhar.

A importância da alteração da Lei de Diretrizes e Bases

O ano de 2003 constitui um momento importante na reestruturação da


forma como deveriam ser abordados no ensino escolar brasileiro os conteúdos
referentes à África, às suas populações e à população afro-brasileira. É nesse
ano que se dá a aprovação e sanção da Lei federal de número 10.639, a lei que
estabeleceu alterações na Lei de Diretrizes de Bases da Educação (LDB), esta
datada de 1996:

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA faço saber que o Congresso Nacional decreta


e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º. A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida
dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e
particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1º. O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o
estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura
negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a
contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à
História do Brasil.
§ 2º. Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão
ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de
Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.
§ 3º. (VETADO)
Art. 79-A. (VETADO)
Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia
Nacional da Consciência Negra’.
Art. 2º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.3

Junho de 2012 221


Hilton Costa

Desde sua sanção até o presente momento esta lei foi objeto de inúmeros
debates que proporcionaram uma fortuna crítica bastante extensa, ainda mais
porque no mesmo período ganham espaço no Brasil as políticas de ações afir-
mativas para a população negra. A Lei 10.639/2003, como se pode observar,
altera o artigo 26 da LDB, colocando de maneira enfática a obrigatoriedade do
ensino de História da África e das populações africanas e afro-brasileiras. O
texto da lei permite a formulação de algumas inferências: a primeira, bastante
evidente, é que essa temática vinha sendo negligenciada, ou seja, ela admite a
negação/invisibilização desses conteúdos por parte da educação brasileira. As-
sim, a partir da promulgação da lei intensificou-se o debate em torno da obli-
teração dessa temática no meio educacional. Tal debate indicou, entre outras
questões, a ausência de um número mais expressivo de profissionais especia-
lizados em história africana no Brasil, bem como localizou a falta de conteúdos
referentes a esse tema na formação dos/das docentes. A situação no que diz
respeito aos temas referentes à história e cultura afro-brasileira é um tanto
diferente, pois nesse caso existia um número bem mais expressivo de profis-
sionais aptos a lidar com o conteúdo. O problema consistia em esses assuntos
se fazerem presentes na formação dos/das docentes (Costa, 2011).
Esse cenário de início dos anos 2000 vem dando sinais de reversão, mui-
to em função da legislação aprovada e sancionada em 2003, fruto de uma luta
de anos dos movimentos sociais da população negra. Os cursos superiores de
História vêm buscando transformar as disciplinas sobre África, até então op-
tativas raramente ofertadas, em disciplinas obrigatórias. Os concursos para
docentes efetivos nessa área são evidências dessas mudanças. Por exemplo, em
2010 a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e a Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) fizeram concursos para docentes nessa área.
Em 2011 a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) abriu vaga, e no
mesmo ano a Universidade Federal da Bahia (UFBA) realizou concurso para
suprir a demanda. São estas algumas evidências da nova situação.
Mas, se por um lado esse reflexo da Lei 10.639/2003 pode ser entendido
como positivo, por outro se torna relevante observar que entre as Universida-
des formarem profissionais e estes estarem em sala de aula existe um lapso de
tempo considerável, os professores e professoras que já estão em sala podem
não ter tido essa formação e, em teoria, têm a obrigação de trabalhar história
e cultura africanas e afro-brasileiras. Nesse ponto pode surgir uma situação

222 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Para construir outro olhar

perigosa, mais perigosa, talvez, que a própria obliteração dessa temática, que
é a abordagem por meio de visões estereotipadas, estigmatizantes, exotizantes,
enfim, visões que venham a sacramentar posições oriundas do colonialismo,
do racismo científico, da democracia racial.
As posições referentes à visão colonialista receberam críticas bastante
apropriadas dos estudos pós-coloniais, bem como dos estudos culturais. As
teorias feministas também colaboraram e colaboram na crítica à abordagem
colonialista.4 Não são poucas as abordagens que explicitam o caráter racista da
cultura ocidental, tais como o trabalho, já clássico, de Frantz Fanon.5 Sobre a
história e a crítica ao racismo científico são muitas as obras disponíveis: pode-
mos citar, entre outras, as de Tzvetan Todorov para a gênese do racialismo,
sobre a ideia de raça o texto de Michael Banton e, para inserção dessas questões
no cenário brasileiro, obras como as de Mariza Corrêa e de Lilia Moritz
Schwarcz.6
Com efeito, a fortuna crítica da ‘democracia racial’, acerca da sua cons-
trução e desconstrução, é abundante. A ideia de que no Brasil não haveria
preconceito de cor e raça não é nova, porém seu uso, mais sistematizado, pode
ser localizado, especialmente, na década de 1880, ou seja, às vésperas da Abo-
lição (1888). Por exemplo, Joaquim Nabuco (1849-1910) via a situação racial
no Brasil assim:

A escravidão, por felicidade nossa, nunca azedou a alma do escravo contra o se-
nhor – falando coletivamente – nem criou entre as duas raças ódio recíproco que
existe naturalmente entre opressores e oprimidos. Por esse motivo, o contato en-
tre elas foi sempre isento de asperezas, fora da escravidão, e o homem de cor
achou todas as avenidas abertas diante de si.7

A expressão ‘democracia racial’ não é, evidentemente, utilizada por Na-


buco, porém é flagrante em seu discurso a construção de uma imagem de
harmonia racial. Ele deixa nítido que uma vez encerrada a escravidão, todas as
portas estariam abertas à população negra. Formalmente elas de fato estavam,
mas apenas formalmente. Sílvio Romero (1851-1914) também não fez uso
dessa expressão, todavia, seus escritos, em especial os da década de 1880, po-
dem ser compreendidos como genitores da ideia do Brasil como ‘democracia
racial’. No primeiro tomo de sua História da Literatura Brasileira (1888) Ro-
mero positiva o mestiço como o elemento genuinamente brasileiro, fator de

Junho de 2012 223


Hilton Costa

distinção da nacionalidade brasileira e de coesão do país. O mestiço romeria-


no é um mestiço de fenótipo branco, mas ainda assim um mestiço.8 Desse tipo
de argumentação e já nesse período, fim do século XIX, surgia a ideia de que
se o Brasil é mestiço, logo não haver no país espaço para o preconceito de cor
nem para o preconceito racial.
Os antecedentes são vários, mas é atribuída a Gilberto Freyre (1900-1987)
a formulação da ideia do Brasil como uma ‘democracia racial’. Ele mesmo não
utilizou a expressão em seus primeiros trabalhos de destaque, porém a ele foi
dada a paternidade da ideia. Freyre abraçará a causa com vigor; talvez por isso
a criação da ideia, bem como da expressão, seja vinculada a ele. Esse autor, em
um estudo que pode ser entendido como comparativo das relações raciais
entre brancos e negros nos Estados Unidos e no Brasil, afirmou não haver no
segundo país as barreiras formais nem a perseguição explícita aos negros ve-
rificadas no primeiro. Também destacava a ausência de uma legislação segre-
gacionista no Brasil como prova da inexistência de discriminação, já que o
inverso acontecia nos Estados Unidos. Além disso, a larga miscigenação era
tomada como a evidência máxima da ausência de preconceitos no Brasil.9 En-
tretanto, estudiosos posteriores começaram a se indagar acerca das conclusões
propostas por Freyre. Mesmo durante a década de 1930, quando a revolucio-
nária obra Casa-grande & senzala foi publicada pela primeira vez, algumas
vozes contestavam a sua visão das relações raciais no Brasil, em especial vozes
vinculadas às organizações negras. Todavia, a crítica ao modelo freyriano só
se sistematizará, por assim dizer, na década de 1950. Assim, o início da des-
construção da suposta democracia racial brasileira pode ser verificado, no que
diz respeito à produção acadêmica, com os textos da equipe de Florestan Fer-
nandes (1920-1995) e Roger Bastide (1898-1974), nas décadas de 1950 e 1960.10
A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) promoveu vários genocídios,
muitos deles com algum tipo de motivação racial. Ao término do conflito tais
práticas se tornaram objeto de reflexão. Estas, mais os dilemas e conflitos ra-
ciais espalhados por várias regiões do mundo, se tornaram um problema a ser
investigado e, mais importante, solucionado. Assim, a recém-criada Organi-
zação das Nações Unidas (ONU) resolveu financiar um estudo sobre o Brasil,
pois o país era considerado tanto externa quanto internamente (ao menos
pela maioria) como o lugar da ‘democracia racial’, portanto livre de precon-
ceitos raciais e dos conflitos decorrentes.11 Entretanto, as pesquisas empíricas

224 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Para construir outro olhar

patrocinadas pela ONU e desenvolvidas pela equipe de Florestan Fernandes e


Roger Bastide revelaram outra realidade. As conclusões da equipe de Fernan-
des indicaram, ao invés da ausência de preconceito racial no Brasil, a sua pre-
sença em formas bem mais refinadas do que uma legislação segregacionista
pura e simples. A discriminação racial no caso brasileiro se construía não pela
sua afirmação, mas por sua negação. As atitudes e práticas discriminatórias se
articulam em ações sutis, porém com efeitos nada sutis. Um deles é tão forte
que promove a autoexclusão da população negra de inúmeros espaços, levan-
do-a a entender de modo bem nítido o sentido da famosa frase: “no Brasil não
tem essas coisas de racismo, porque preto sabe o seu lugar”.
O processo de autoexclusão sugerido pela sociedade conduz parte signi-
ficativa da população negra a nem tentar ocupar alguns espaços, uma vez que
os relatos das ‘barreiras’ invisíveis são comentados no seio dessa população.12
E nesse ponto outro aspecto do ‘racismo à brasileira’ aparece com toda a força:
o peso do racismo brasileiro só recai sobre os discriminados, pois os discrimi-
nadores não necessitam exercer o seu racismo, uma vez que este é construído
como um não-problema. Logo, os discriminados reclamariam de algo que não
existe.
Essa situação toda é bem expressa na assertiva de Fernandes (1971): “o
preconceito de ter preconceito”, de modo que o preconceito no Brasil não é
demonstrado pela manifestação pública explícita – por exemplo, por meio de
legislações segregacionistas. A discriminação e o preconceito racial se efetivam
por meio de ações, em grande medida, implícitas. Obviamente elas são implí-
citas apenas para quem está na posição de discriminador, pois para quem está
na condição de discriminado tais ações são bem explícitas (Costa, 2011).
Nesse contexto, por vezes a forma como se problematiza em sala de aula
a história da África, de seus povos e civilizações, por mais que a intenção seja
diversa, pode vir a reificar estereótipos e estigmas. A situação da história afro-
-brasileira não é diferente. Esta argumentação não quer de modo algum inferir
que todo o conhecimento acerca da história e da cultura africanas e afro-bra-
sileiras que se trabalhavam ou que se vêm trabalhando nas escolas detém estas
características, mas sim que a formação em alguns casos inadequada de do-
centes pode levar à situação destacada anos atrás pela equipe de Florestan
Fernandes e Roger Bastide. Ou seja, pode se configurar em mais uma forma
sutil de discriminação, de estigmatização. Atentos a essa possibilidade, os Nú-

Junho de 2012 225


Hilton Costa

cleos de Estudos Afro-brasileiros (NEABs) formados em várias universidades


brasileiras também no contexto da Lei 10.639/2003 e das políticas de ação
afirmativa vêm buscando levar a cabo cursos de formação de docentes na te-
mática, no intuito de construir um novo olhar dos profissionais de educação
sobre a África e suas populações, bem como acerca da população negra do
Brasil, um olhar que escape às determinações racistas e discriminatórias. Em
sendo a escola um espaço vital à conformação da visão de mundo das pessoas,
a figura do professor torna-se igualmente fundamental. Assim, a formação de
professoras e professores com uma visão de mundo mais aberta à diversidade
cultural é essencial para a constituição de pessoas detentoras de condição se-
melhante. Em suma, a formação docente é passo mais do que fundamental
para a construção de um novo olhar sobre a história e a cultura africanas e
afro-brasileiras.

Buscando um novo olhar

A segunda seção desta argumentação, como mencionado anteriormente,


aponta para uma sugestão de trabalho em sala de aula. Toma-se o contexto
intelectual pós-abolição no Brasil, indicando como essa situação se articula ao
senso comum e como este, por sua vez, se relaciona com a manutenção de
estereótipos e estigmas acerca da população negra no Brasil, como indicado
na seção anterior. A ideia subjacente a esta proposta é a tentativa de exempli-
ficar a constituição dessa outra forma de olhar.
De maneira geral, até o ano de 1888 a sociedade brasileira tinha uma or-
ganização muito próxima àquela definida como estamental. Pois, mesmo exis-
tindo todo um setor de homens e mulheres livres vivendo e trabalhando du-
rante a vigência do regime escravocrata, a sociedade dividia-se
essencialmente entre pessoas livres e cativas, como bem indica Maria Sylvia de
Carvalho Franco.13 Essa divisão básica pode ser entendida como marco essen-
cial à composição do modo como ambos os grupos liam o mundo e com ele
interagiam. E com isso não se descartam, evidentemente, as inúmeras divisões
internas presentes tanto entre os livres (do senhor de escravos latifundiário até
o trabalhador por jornadas) quanto entre a população cativa (do escravo com
ofício ao trabalhador da lavoura), mas se destaca o marco básico à construção
do modo de se lidar com o mundo. Desta feita, estamos a falar de uma socie-

226 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Para construir outro olhar

dade hierarquizada e organizada segundo uma diferença essencial entre as


pessoas, a diferença entre livres e escravos. Após o decreto de 1888, que pôs
fim à escravidão e formalizou que todos seriam iguais perante a lei, impôs-se
uma alteração substancial no ordenamento básico da sociedade.14
A sociedade, até então pensada em termos de uma diferença clara e aber-
ta, agora deveria se orientar pela igualdade. Contudo, é interessante lembrar
que cerca de uma década antes da assinatura do decreto imperial já iam se
constituindo, ao menos entre as elites intelectuais, novas maneiras de perceber
o mundo. Nos anos 1870, como destacou João Cruz Costa (1904-1978), fazen-
do uso da expressão cunhada por Silvio Romero, chegou ao Brasil “um bando
de ideias novas”.15 Entre essas ideias está presente todo um jargão cientificista,
positivista, como também as proposições referentes ao racismo científico.16
Tais proposições estavam em voga na Europa desde princípios do século XIX.
Entretanto, o denominado racismo científico só adentrou o Brasil com alguma
força quando a escravidão no país já apresentava nítidos sinais de esgotamen-
to. As leis abolicionistas são sinal disso. Assim, uma das formas de pensar tal
coincidência entre a proximidade da abolição, da equiparação jurídica das
pessoas, e a entrada do racismo científico no Brasil pode estar na necessidade
de demarcar posições na sociedade, ou seja, manter uma dada hierarquia (Cos-
ta, 2007a).
A indicação de Mariza Corrêa é extremamente pertinente, pois, para essa
autora,

não parece ter sido apenas pela persuasão ideológica, apoiada em relações de fa-
vor entre as raças, que os negros e seus descendentes foram socialmente excluí-
dos da participação de vários setores da vida pública brasileira, mas também pela
manutenção de uma política autoritária em cuja definição a presença da discri-
minação não pode ser esquecida. Essa exclusão parece ter sido também o resul-
tado de uma atuação coerente, apoiada por um racismo ‘científico’, que legitimou
iniciativas políticas seja no nível nacional – como no caso dos privilégios conce-
didos à imigração que tiveram como consequência uma entrada maciça de bran-
cos no país – seja em nível regional, como políticas específicas de repressão das
atividades religiosas ou culturais dos negros ... Se não foi explicitado em leis civis
discriminatórias, como a segregação racial norte-americana, o racismo, enquan-
to crença na superioridade de determinada raça e na inferioridade de outras, teve
larga vigência entre os nossos intelectuais no período do final do século passado

Junho de 2012 227


Hilton Costa

[século XIX] e início deste [século XX], sendo o ponto central de suas análises a
respeito de nossa definição como povo e nação. (Corrêa, 2001, p.63)

Evidencia-se, assim, que não existe a necessidade de uma legislação espe-


cífica para a efetivação de práticas discriminatórias. A divulgação e a assimi-
lação de ‘verdades científicas’ que versam sobre a superioridade de uns e a
inferioridade de outros acabam por ser incorporadas pelos atores sociais, e
esses passam a atuar conforme esse papel. Por isso a relevância dos intelectuais
empenhados em divulgar essas ‘verdades científicas’, pois no caso brasileiro
eles são também deputados, senadores e ministros de Estado, ou seja, suas
ideias são, em grande medida, transformadas em práticas de modo muito rá-
pido. Basta lembrar que um proeminente divulgador – tardio, é bem verdade
– do racismo científico, Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951), foi
peça importante na elaboração teórica do Regime Vargas.17 As posições desses
intelectuais atingiam muito rapidamente as gazetas e os manuais escolares.
Aliás, é importante enfatizar a relevância da sala de aula para a divulgação
desses ideais.
De pronto a pergunta a se estabelecer é como transportar este universo
de discussão para a sala de aula, como discutir de modo menos áspero História
das Ideias, História Intelectual, intelectuais, como demonstrar que essas figu-
ras fazem, sim, parte do nosso dia a dia.18 O meio mais recorrente, e nem por
isso menos eficiente, consiste em citar trechos, num primeiro momento sem
referenciá-los, e solicitar aos alunos seu debate, para posteriormente demons-
trar quando e por que foram escritos, indicando a que demandas tais textos
procuravam responder. Conforme a argumentação que se faz aqui, a utilização
do racismo científico se dava com o intuito de manter determinada hierarquia
social. Inúmeras premissas presentes nesses textos de fins do século XIX e do
início do século XX tornaram-se parte indissolúvel do senso comum contem-
porâneo. Por exemplo, quase todo/a brasileiro/a detém consigo uma versão
sua das palavras do intelectual sergipano Sílvio Romero.19 Escritas em 1888,
dizem elas acerca da formação do povo local:

A história do Brasil, como se deve hoje ser compreendida, não é, conforme se


julgava antigamente e era repetido pelos entusiastas lusos, a história exclusiva
dos portugueses na América. Não também, como quis supor de passagem o ro-
manticismo, a história dos tupis, ou, segundo o sonho de alguns representantes

228 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Para construir outro olhar

do africanismo entre nós, a dos negros no Novo Mundo. É antes de tudo a histó-
ria da formação de um tipo novo pela ação de cinco fatores, formação sextiária
em que predomina a mestiçagem. Todo o brasileiro é mestiço, quando não no san-
gue, nas ideias. Os operários deste fato inicial têm sido: o português, o negro, o
índio, o meio físico e a imitação estrangeira. (Romero, 2001, p.57, grifo nosso)

Existe outra abordagem bastante interessante para demonstrar a presen-


ça dos intelectuais da virada do século XIX para o XX na nossa vida cotidiana:
citar e problematizar algumas expressões, máximas e ditos populares vulgar-
mente utilizados mesmo na mídia. Vejamos:

– Não tinha cara de bandido!


– Olha só, com essa cara, só podia ser bandido mesmo!
– Carioca é tudo vagabundo!
– Baiano é tudo preguiçoso! Só sabem fazer festa!
– Hoje é dia de preto!
– Preto quando não faz na entrada faz na saída!

O que se sugere é o seguinte: com os alunos divididos em grupos, cada


qual recebendo uma dessas frases ou outras do gênero, pedir a eles que discu-
tam, segundo suas próprias opiniões, quais seriam as origens e as motivações
por trás dessas assertivas. Com base nas considerações dos alunos, correlacio-
nar as posições intelectuais que sustentaram e sustentam essas frases. Assim,
as duas primeiras remetem à escola de criminalística italiana de Cesare Lom-
broso, ao movimento que levou à fundação do Instituto de Identificação na
França, protótipo de todos os demais que hoje estão mundo afora.20 A escola
de criminalística italiana propunha ser possível reconhecer um criminoso, ou,
ainda melhor, um criminoso em potencial mediante sua composição física,
notadamente do crânio, do formato deste, surgindo dessa argumentação uma
especialidade que foi considerada ciência durante certo período: a craniome-
tria. Atualmente essa perspectiva vigora com toda força nas duas primeiras
assertivas listadas, bem como nas abordagens policiais e nos jornais sensacio-
nalistas. Esse tema da previsibilidade do crime é tão recorrente que o cinema
hollywoodiano, por exemplo, o visita constantemente. Logo, poder-se-ia tra-
balhar também com mais um mecanismo de problematização dessa questão:
o filme Minority Report. Nele, a justiça e a ciência procuram deter o crimino-

Junho de 2012 229


Hilton Costa

so antes do crime, embora sem recorrer à busca por ‘caras de bandido’. Nesse
sentido faz-se o monitoramento dos pensamentos, pois, por meio deles se lo-
calizaria o/a criminoso/a em potencial.21 Ou seja, vigiando-se o pensamento,
é possível monitorar o crime. Troca-se a aparência física pela aparência dos
pensamentos para indicar o tipo criminoso.22
O nascimento dos institutos de identificação está intimamente ligado à
perspectiva há pouco exposta. O instituto de identificação francês, pioneiro na
área, tinha como grande objetivo localizar possíveis criminosos – identificar o
tipo criminoso. Fazendo uso de métodos à época considerados científicos,
como os da craniometria, o instituto procurou identificar e classificar a popu-
lação parisiense na busca dos desviantes. Coincidentemente ou não, a cons-
trução ‘científica’ do protótipo do criminoso era exatamente igual à da popu-
lação pobre da capital francesa, ou seja, o procedimento era em realidade mais
um meio de estigmatizar, perseguir e oprimir a já sofrida população pobre de
Paris.23 No Brasil tais teorias tiveram ampla aceitação; um dos seus mais proe-
minentes divulgadores foi o médico maranhense, radicado na Bahia, Raymun-
do Nina Rodrigues (1862-1906); todavia, esse intelectual nada mais fez do que
dar ‘cores de cientificidade’ a algo já usual.24 Desde fins do século XIX, ou
mesmo antes, a assertiva “cara de bandido” significa pobre, preferencialmente
negro e/ou afrodescendente, e a sua oposta, “não tinha cara de bandido”, re-
fere-se a brancos, bem trajados, não pobres. Enfim, por trás de duas assertivas
corriqueiras podemos discutir intelectuais e ciência do século XIX e princípio
do século XX, a constituição de processos de discriminação e estigmatização
que não dependem, necessariamente, de nenhuma legislação específica.25 Na
contemporaneidade a situação se alterou, contudo, a lógica das abordagens
policiais não foge muito a esse princípio: tal questão pode ser trabalhada em
sala de aula, por exemplo, com base na música Todo camburão tem um pouco
de navio negreiro, do grupo O Rappa, donde se avalia a comunicação entre as
premissas de fins de século XIX com as do início do século XXI no que diz
respeito à estigmatização das populações negras e pobres.26
As assertivas que dizem “Carioca é tudo vagabundo!” e “Baiano é tudo
preguiçoso!”, ademais complementadas com outra máxima recorrente, “Só
sabem fazer festa!”, também é uma vertente importante desse processo de es-
tigmatização oriundo do racismo científico do século XIX. Pois qual é o perfil
da maioria da população, tanto da cidade do Rio de Janeiro quanto do próprio

230 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Para construir outro olhar

estado do Rio de Janeiro? E de Salvador, ou do estado da Bahia? A resposta é


a mesma: a maioria da população é negra e afrodescendente. Com efeito, essas
assertivas retomam aquilo que já era voga no período escravista: se não fosse
a escravidão, negros e mulatos não trabalhariam: em razão de sua indolência
nata, eles desatariam a ficar fazendo festas e batuques. Com o fim da escravidão
o discurso muda um pouco e fica mais ou menos assim: negros e afrodescen-
dentes não se mostram como sujeitos aptos ao trabalho livre, assalariado, em
função da sua tendência natural à indolência e a ficar fazendo festas e batuques.
Essa inaptidão de negros e afrodescendentes para o trabalho livre, assalariado,
foi tema de intensos debates parlamentares no Brasil de fins do século XIX. A
despeito da oposição de alguns parlamentares, o remédio apontado era o de
trazer mão de obra da Europa, sobremaneira da Europa do Norte. Até mesmo
o abolicionista Joaquim Nabuco entendia a imigração europeia como funda-
mental ao Brasil.
E quando se admite que negros e mulatos sejam de fato capazes de exercer
funções no mercado de trabalho livre, a eles se reservam atividades braçais, de
baixa remuneração e status, normalmente aquelas que são extremamente ex-
tenuantes, ou seja, atividades que mantêm viva a lembrança da escravidão – o
animal de carga, o que executa tarefas de menor prestígio social, de subalter-
nidade. O racismo científico configurou-se em propositor e divulgador, com
outras vestes, de uma antiga vulgata – “O que é bom nasce feito!”. Ou seja, da
ideia das aptidões natas: alguns grupos são naturalmente aptos para isso ou
aquilo, e não para outra coisa. Esse tipo de pensamento afirma que as popula-
ções negras não seriam biologicamente aptas a funções profissionais mais com-
plexas, que exigissem maior capacidade intelectual. Logo, as ocupações pro-
fissionais histórica e socialmente construídas para os grupos negros e
afrodescendentes brasileiros, por essa lógica, seriam aquelas passíveis de serem
expressas na assertiva “Hoje é dia de preto!”, que pode muito bem ser enten-
dida como referência a um dia de trabalho pesado, difícil e mal remunerado.
A manutenção de tais expressões no senso comum, especialmente do centro-
-sul do país, revela a intensa comunicação ainda existente entre a atualidade e
a virada do século XIX para o XX no intuito de se manter certa visão de mun-
do. O trabalho escolar com história e cultura afro-brasileiras deve procurar
desconstruir esse tipo de perspectiva, e nesse sentido deve-se entender sua
construção e formas de manutenção.

Junho de 2012 231


Hilton Costa

E aqui surge a necessidade de se abrir parênteses importantes, uma vez


que atualmente discussões acerca das supostas aptidões natas das pessoas se
revestem de outra vestimenta – a genética. Tal grupo de pessoas possui genes
apropriados para isso e aquilo, e não para aquilo outro. Dado o alto desenvol-
vimento científico e tecnológico envolvido com as questões da genética, pou-
cos se atrevem a problematizar algumas das afirmações originárias de suas
proposições.27 Um ponto de partida interessante para fomentar essa discussão
em sala de aula vem de outra produção hollywoodiana: Gattaca.28 A trama se
passa num futuro indeterminado, no qual a reprodução humana é toda assis-
tida: escolhem-se os ‘melhores’ espermatozoides do pai e os ‘melhores’ óvulos
da mãe para a realização de uma concepção in vitro, para posteriormente se
introduzir o embrião no útero materno. Evidentemente, existem aqueles que
discordam da prática e os que não podem pagar por ela: a esses resta o ‘méto-
do antigo’. Não há nenhuma proibição a ele, contudo as pessoas que nascem
dessa forma são consideradas geneticamente inferiores, pois não possuem os
‘melhores’ genes, logo só podem ocupar cargos subalternos. Isso não é de fato
novo, é a nova roupa de uma doutrina antiga (Costa, 2007b).
O debate sobre profissões e ocupações é deveras interessante, pois ele
pode servir tanto para destacar que no Brasil não há exclusão por critérios
raciais quanto para o inverso, dependendo de ‘quem fala’ e ‘de onde se fala’.
As pessoas que compartilham da primeira posição indicam que o Brasil possui
advogados/as, médicos/as, dentistas negros/as, mas não problematizam seu
número em relação à população negra. Nos seus 123 anos de República, o
Brasil já teve dois ou três governadores de estado negros, um ministro do
Supremo Tribunal Federal, uns três ou quatro ministros de Estado igualmen-
te negros, e atualmente algumas ministras. Essas situações são mobilizadas
para corroborar a tese de que não há exclusão, muito pelo contrário. Entretan-
to, as pessoas que concordam com a segunda posição apontam: quantos mé-
dicos, dentistas e advogados negros conhecemos? Poucos. Se o sistema não
fosse excludente, a proporção não deveria ser próxima à desse grupo na socie-
dade como um todo? Da seguinte forma: os dados indicam cerca de 40% da
população brasileira composta por negros e afrodescendentes; dentre os mé-
dicos que conhecemos, por exemplo, 40% são negros/as? O caráter de excep-
cionalidade é marcante. E em muitos casos utiliza-se da exceção que confirma
a regra para se bradar que o sistema não é excludente, aliás, é exatamente o

232 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Para construir outro olhar

contrário disso. Porém, é mais provável que, ao surgir uma exceção, a pessoa
seja percebida na condição de intruso/a e, praticamente ao primeiro deslize,
surja a assertiva que indica seu caráter de estrangeiro, de indesejado, de im-
pertinente, num meio que não seria o seu: “Preto, quando não faz na entrada,
faz na saída!”. Tal situação também pode ser apreendida como a materialização
de outra expressão clássica da situação racial brasileira: “Não existe racismo
no Brasil, pois aqui o preto sabe o seu lugar!”. Não é esse um exemplo fantás-
tico de internalização de papéis sociais? O da superioridade de uns e da infe-
rioridade de outros, com manutenção do individualismo? Todos esses elemen-
tos remetem, então, para a permanência de um tipo de reflexão intelectual.
Esta ocupa o lugar de uma legislação específica, pois sua ampla divulgação
constrói barreiras invisíveis dentro dos indivíduos (Costa, 2007b).
A perpetuação dessas barreiras se dá por inúmeros instrumentos, alguns
já apresentados aqui, mas um deles nos interessa sobremaneira: a atuação dos
intelectuais de fins do século XIX e início do século XX. Raymundo Nina Ro-
drigues, Sílvio Romero e Euclides da Cunha, entre outros, estão vivos na re-
presentação que se faz de suas obras. A atuação desses e de outros intelectuais
do período compreendido entre 1880 e 1930 é essencial para a construção e
manutenção das barreiras invisíveis mencionadas. Suas considerações são
peças-chave no processo de internalização e naturalização dos papéis sociais
de superioridade e inferioridade presentes na sociedade brasileira. Nina Ro-
drigues indicava a respeito do povo brasileiro a necessidade premente de

determinar [o] quanto de inferioridade lhe advém da dificuldade de civilizar-se


por parte da população negra que possui e se de todo fica essa inferioridade com-
pensada pelo mestiçamento, processo natural por que os negros se estão inte-
grando no povo brasileiro, para a grande massa de sua população de cor.29 [Pois]
... no Brasil, onde sobre eles [os negros], puros ou mestiçados, se levantou a nos-
sa nacionalidade, cumpre julgá-los separadamente, discriminando as suas capa-
cidades relativas de civilização e progresso. (p.13)

Essa discussão foi incorporada pela população negra em expressões que


tratam da necessidade de ‘clarear um pouquinho a raça’, ou seja, a internali-
zação da política do branqueamento mediante miscigenação, pela pessoa des-
cendente de africanos. Romero, como já indicado, afirmava que todo brasilei-
ro é mestiço – mas qual mestiço era esse? O intelectual sergipano idealizou um

Junho de 2012 233


Hilton Costa

mestiço que não seria um qualquer, aleatório, mas um tipo específico e bem
definido: seria o mais branco possível.30 Em suas próprias palavras: “o mestiço,
que é a genuína formação histórica brasileira, ficará só diante do branco qua-
se puro, com o qual se há de, mais cedo ou mais tarde, confundir” (Romero,
2001, p.101). Ele concorda aqui com outra posição interessante de Nina Ro-
drigues, o mestiço de retorno a uma suposta origem, neste caso “o mulato
claro de retorno à raça branca”.31 E tudo isso acaba por se resumir em outra
expressão bastante usual do dia a dia, “O brasileiro é isso, um pouquinho de
tudo!”. Assertiva ambígua e complexa que, por um lado, refuta a pureza racial
como um critério relevante e, por outro, impossibilita a discussão em torno
dos mecanismos de discriminação no interior da sociedade brasileira. Tal as-
sertiva foi desta forma inserida por Euclides da Cunha em Os sertões: “Não
temos unidade de raça. Não a teremos, talvez, nunca”.32 Para ele isso era mo-
tivo de lamentação. A falta de uma unidade racial era entendida como empe-
cilho sério ao desenvolvimento do país. A ausência em questão seria a marca
peremptória da suposta dificuldade do Brasil em desenvolver-se. Contempo-
raneamente, em conversas casuais, essa marca de origem, considerada ruim, é
trazida à tona para sustentar argumentações acerca dos problemas brasileiros
e da dificuldade em resolvê-los.
As assertivas citadas aqui são exemplos significativos da transposição de
uma discussão intelectual para o cotidiano, sem que se perceba a complexida-
de do conteúdo presente. Estimular essa discussão é algo rico por alguns mo-
tivos.
1. Demonstrar o quanto os intelectuais estão presentes em nossa vida co-
tidiana, em vez de serem aquelas criaturas distantes, encurvadas, com
óculos de lentes grossas e palavras esquisitas. Muito pelo contrário: eles
estão no cotidiano, por meio da apropriação que fazemos de suas ideias,
nos terminais de ônibus, nos botequins, nos estádios de futebol, na
sala de jantar, no momento em que se assiste à telenovela.
2. Indicar como discussões intelectuais de fins do século XIX e do início
do século XX, construídas para responder a determinadas demandas,
se mantêm em forte comunicação com o contexto sócio-histórico con-
temporâneo e, em grande medida, ainda pelo mesmo motivo – justificar
e ou manter uma dada hierarquia social. E, como indica Marisa Corrêa,

234 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Para construir outro olhar

essa apropriação, esse diálogo pode implicar a construção de um refi-


nado sistema de discriminação que dispensou e dispensa a presença de
um código legislativo formal. Ele se utiliza dos mecanismos de coerção
estabelecidos. E pode contar com uma forma de coerção mais efetiva
do qualquer equipamento externo poderia fornecer: aquela que o indi-
víduo exerce sobre si mesmo.
Com efeito, o presente artigo visou destacar a formação de docentes como
extremamente relevante para a constituição de outro olhar sobre a História da
África e de suas populações, bem como sobre a História afro-brasileira. Apon-
tou as demandas resultantes da Lei 10.639/2003, a importância da promoção
de atividade de capacitação para os/as docentes que não tiveram em suas gra-
duações ou pós-graduações acesso à temática africana e afro-brasileira, para
tentar desfazer visões estereotipadas. O artigo buscou, também, indicar a vin-
culação entre a discussão acadêmica e a vida cotidiana, bem como a comuni-
cação entre fins do século XIX e o princípio do século XXI no que diz respeito
à estruturação de certas hierarquias sociais, notadamente as raciais. Por fim,
buscou exemplificar uma possibilidade de trabalhar conteúdos relacionados à
história afro-brasileira sob outro olhar, almejando indicar a escola como local
privilegiado para debater e criticar constructos intelectuais. Essa proposta se
insere num processo mais amplo de transformação das/nas salas de aula bra-
sileiras, que se espera venha desconstruir estereótipos arraigados e desenvolver
uma visão de mundo antirracista.

NOTAS

1
OLIVA, Anderson Ribeiro. A História da África nos bancos escolares: representações e
imprecisões na literatura didática. Estudos Afro-Asiáticos, ano 25, n.3, p.431, 2003.
2
COSTA, Hilton. Formação de professores: por um novo olhar da história e cultura afro-
-brasileira. In: PINHEL, André; COSTA, Hilton; SILVEIRA, Marco Silva da. (Org.) Uma
década de políticas afirmativas: panorama, argumentos e resultados. Ponta Grossa (PR):
Ed. UEPG, 2011.
3
Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm.
4
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2003.
5
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Ed. UFBA, 2008.

Junho de 2012 235


Hilton Costa

6
TODOROV, Tzvetan. Nós e os Outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana.
v.1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993; BANTON, Michael. A ideia de raça. Lisboa: Ed. 70,
1979; CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: a escola Nina Rodrigues e a antropologia
no Brasil. 2.ed. Bragança Paulista (SP): Ed. USF, 2001; SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espe-
táculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo:
Companhia das Letras, 1993.
7
NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003.
p.40.
8
ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Tomo I. Org. Luiz Antonio Barreto.
Rio de Janeiro: Imago; Aracaju: UFS, 2001.
9
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. 21.ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1981.
10
Sobre o projeto Unesco, ação que contemplava a equipe de F. Fernandes, ver MAIO,
1997; ver, também: COSTA, 2011.
11
MAIO, Marcos Chor. A história do projeto Unesco: estudos raciais e ciências sociais no
Brasil. Tese (Doutorado) – Instituto Universitário de Pesquisas. Rio de Janeiro, 1997.
12
Entre outros, podemos citar: FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos.
São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1971; PEREIRA, João Baptista Borges. Cor, profis-
são e mobilidade: o negro e o rádio de São Paulo. São Paulo: Pioneira; Ed. USP, 1967;
­TELLES, Edward. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2003; GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e anti-racismo no
Brasil. São Paulo: Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo; Ed. 34, 1999; ______.
Classes, raças e democracia. São Paulo: Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo;
Ed. 34, 2002; ______. Preconceito e discriminação. São Paulo: Fundação de Apoio à Univer-
sidade de São Paulo; Ed. 34, 2004.
13
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 4.ed. São
Paulo: Ed. Unesp, 1997.
14
COSTA, Hilton. Hierarquias brasileiras: a abolição da escravatura e as teorias do racismo
científico. Comunicação apresentada no III Encontro ESCRAVIDÃO E LIBERDADE NO
BRASIL MERIDIONAL. Florianópolis, 2007a.
15
COSTA, João Cruz. Contribuição à História das ideias no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1967.
16
Cientificismo é uma crença desenvolvida em fins do século XVIII e amplamente divulga-
da no transcorrer do século XIX, que defende a ideia de humanidade genérica desenvol-
vendo-se de modo linear do menos ao mais avançado, definição clássica de progresso, e tal
desenvolvimento só seria possível, bem como sua compreensão e aprimoramento, através
da ciência; Positivismo pode ser lido como uma sistematização das crenças cientificistas,
realizada por Auguste Comte: ele apregoa que toda explicação e todo conhecimento advêm
da ciência e pela ciência; Racismo Científico, doutrina que defendia a existência de raças

236 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Para construir outro olhar

humanas distintas entre si; apesar de poderem se combinar, o resultado dessa ação geral-
mente era considerado ruim, e tais diferenças eram cientificamente passíveis de compro-
vação, definindo de modo definitivo a superioridade de uns e a inferioridade de outros.
17
Francisco José de Oliveira Vianna nasceu em Saquarema, estado do Rio de Janeiro, em
1883, e faleceu na cidade do Rio de Janeiro em 1951. Bacharel em Direito, historiador e
sociólogo, foi consultor jurídico do Ministério do Trabalho e ministro do Tribunal de
Contas; também foi membro da Academia Brasileira de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Entre suas principais obras figuram: Populações meridionais do Bra-
sil (1920), O idealismo na evolução política do Império e da República (1922), A evolução do
povo brasileiro (1923), Problemas de política objetiva (1930), Raça e assimilação (1932),
Formação étnica do Brasil colonial (1932) e Instituições políticas brasileiras (2v., 1949), to-
das elas marcadas por forte conservadorismo. Os conservadores sempre constituíram um
grupo determinante na História das Ideias, e essas obras são consideradas como um mo-
mento importante dos estudos brasileiros.
18
Definições bastante acessíveis acerca do que pode ser compreendido por História das
Ideias e História Intelectual são encontradas em CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS,
Ronaldo (Org.) Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro:
Campus, 1997.
19
Sílvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero nasceu em Lagarto, Sergipe, em 21 de abril
de 1851, e faleceu em 18 de julho de 1914, no Rio de Janeiro. Bacharel em Direito, foi pro-
fessor do Colégio Dom Pedro II e da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de
Janeiro, membro da Academia Brasileira de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e sócio correspondente da Academia de Ciências de Lisboa.
20
Cesare Lombroso nasceu em Verona no dia 6 de novembro de 1835 e faleceu em Turim
em 19 de outubro de 1909. Formou-se em medicina na Universidade de Pavia em 1858, e
no ano seguinte na Universidade de Gênova. Depois de formado, segue para Viena para
aperfeiçoar seus conhecimentos e lá se alinha ao pensamento positivista. Desde cedo de-
monstra interesse em estudos sobre a loucura, mas logo se volta para uma vertente mais
antropológica. Essas observações têm início em Pavia, num curso de psiquiatria. Daí lança
hipóteses acerca da influência do meio sobre a mente. Dirige o manicômio de Pádua de
1871 a 1876, ano em que assume a cadeira de Higiene e Medicina Legal da Universidade de
Turim. Nesse mesmo ano publica sua primeira obra sobre criminologia, onde já aparece a
influência da ‘frenologia’: O homem delinquente.
21
MINORITY REPORT. Dir. Steven Spielberg, com Tom Cruise, Estados Unidos, 2002.
22
COSTA, Hilton. A vida do senso comum: do racismo científico do pós-abolição ao dia a
dia contemporâneo. In: COSTA, Hilton; SILVA, Paulo Vinicius Baptista da. Notas de his-
tória e cultura afro-brasileiras. Ponta Grossa (PR): Ed. UEPG, 2007b.
23
Sobre o instituto de identificação parisiense há reflexão breve, mas interessante em
SCHWARCZ, 1993.
24
Raymundo Nina Rodrigues nasceu em 4 de dezembro de 1862 na cidade de Vargem

Junho de 2012 237


Hilton Costa

Grande, Maranhão, e faleceu em 17 de julho de 1906 em Paris. Médico e antropólogo, foi


o fundador da medicina legal no Brasil e um dos precursores da antropologia.
25
GOFFMAN, Erwing. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4.
ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988.
26
Todo camburão tem um pouco de navio negreiro. Letra: Marcelo Yuka; Música: O Rappa;
Álbum O Rappa, 1994.
27
LE BRETON, David. O corpo rascunho das ciências da vida. In: ______. Adeus ao corpo:
antropologia e sociedade. Campinas (SP): Papirus, 2003. p.101-140.
28
GATTACA. Dir. Andrew Niccol, com Ethan Hawke e Uma Thurman, Estados Unidos,
1997.
29
RODRIGUES, Raymundo Nina. Os africanos no Brasil. 7.ed. São Paulo: Cia. Ed. Nacio-
nal; Brasília: Ed. UnB, 1988. p.264.
30
COSTA, Hilton. Horizontes raciais: a ideia de raça no pensamento social brasileiro.
1880-1930. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História, UFRGS.
Porto Alegre, 2004. p.94.
ROMERO, Sílvio. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. 3.ed. São Paulo:
31

Cia. Ed. Nacional, 1938. p.119-121.


32
CUNHA, Euclides da. Os sertões. 39.ed. Rio de Janeiro: Livr. Francisco Alves, 1997. p.94.

Artigo recebido em 20 de dezembro de 2011. Aprovado em 11 de abril de 2012.

238 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Um olhar sobre a historiografia
africana e afro-brasileira
A look at African and African-Brazilian historiography
Luciano Everton Costa Teles*

Resumo Abstract
O artigo tem como objetivo lançar um The article aims to cast a glance at the
olhar sobre a construção de uma nova construction of a new historiography
historiografia sobre a África, destacan- about Africa, highlighting the historical
do o movimento histórico que promo-
movement which promoted this process
veu o processo de construção desta his-
and the characteristics of this new histo-
toriografia e suas características. Visa
riography. It also seeks to recover and
também resgatar e caracterizar a produ-
ção histórica brasileira sobre o afro-bra- characterize the historical production of
sileiro. the African-Brazilian population.
Palavras-chave: história; historiografia Keywords: history; African historiogra-
africana; historiografia afro-brasileira. phy; African-Brazilian historiography.

No primeiro semestre de 2011, quando eu atuava como professor substi-


tuto da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), surgiu uma oportunida-
de de trabalho no programa federal de formação de professores (Parfor) em
Manacapuru. A disciplina era História da África e dos Africanos no Brasil.
No decorrer das aulas algumas questões emergiram e geraram inquieta-
ções, sobretudo após discussões estabelecidas com os professores da Educação
Básica. Apesar dos esforços realizados nos últimos 30 anos para produzir e
difundir estudos relacionados à África e aos afrodescendentes – fruto da ins-
titucionalização desses campos e das pesquisas daí resultantes, nacional e in-
ternacionalmente – e apesar das obras já publicadas, esses professores recla-
maram da ausência de uma sistematização dos pontos centrais da nova
perspectiva historiográfica que emergiu num contexto histórico específico, o
mundo pós-guerra, em que dois elementos convergiram e proporcionaram

* Centro de Estudos Superiores de Tefé, Universidade do Estado do Amazonas (Cest/UEA).


Estrada do Bexiga, 1085, Jerusalém. 69470-000 Tefé – AM – Brasil. lcteles@uea.edu.br

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 239-252 - 2012


Luciano Everton Costa Teles

essa renovação nos estudos africanistas, quais sejam: o processo de libertação


nacional de regiões da África e as renovações conceituais e metodológicas no
campo da História.
Entre as questões propostas, destacam-se estas: “Que elementos históricos
concorreram para a emergência de uma nova historiografia africana?”; “Quais
são as bases e os elementos que compõem esta nova historiografia?”; “E no
Brasil, como se caracterizou a historiografia que tomava o elemento afrodes-
cendente como objeto de estudo?”.
Buscando responder a essas questões, buscou-se sistematizar e apresentar
uma breve discussão sobre a (des)construção da história da África pelos afri-
canos, destacando o movimento que promoveu esse processo, bem como as
características dessa produção. Em seguida, procurou-se resgatar e caracterizar
a produção brasileira sobre os afrodescendentes.

A (des)construção da historiografia
da África pelos africanos

Os primeiros trabalhos sobre a história da África são tão antigos quanto o início
da história escrita. Os historiadores do velho mundo mediterrânico e os da civi-
lização islâmica medieval tomaram como quadro de referência o conjunto do
mundo conhecido, que compreendia uma considerável porção da África.1

No campo da História, os estudos sobre a África remontam a tempos


antigos. Tais estudos incorporavam sobretudo o norte da África, e se estende-
ram até a expansão do Império Otomano (século XVI). Ao longo do tempo,
notadamente no decorrer do século XIX, o norte da África continuou sendo
um campo de estudos (Fage, 2010, p.2).
Percebe-se que nos momentos de expansionismo militar e econômico,
porções do continente africano tornaram-se áreas de influências de determi-
nadas potências europeias – principalmente Inglaterra e França. Essas potên-
cias realizaram uma série de estudos nos mais variados campos do conheci-
mento – História, Geografia, Literatura etc.
Com efeito, uma construção discursiva sobre a África constituiu-se, per-
meada por interesses políticos e econômicos. Edward Said realizou reflexões
acerca desse processo para o Oriente, colocando em relevo os interesses acima

240 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Um olhar sobre a historiografia africana e afro-brasileira

mencionados bem como as relações de poder que permeavam os discursos


sobre o Oriente. Consoante Said, no decorrer do século XIX “o conhecimento
político sobre o Oriente era político”.2
Cabe destacar que foi com a obra de Said intitulada Orientalismo: o Orien-
te como invenção do Ocidente que a discussão acerca das perspectivas eurocên-
tricas no campo das ciências sociais, em especial a História, implantou-se no
cenário acadêmico internacional.
Nesse sentido, desde tempos antigos é por meio das frentes de expansão
econômica e militar europeia que a África foi observada pelos olhos3 europeus.
Em determinados contextos, como por exemplo, o da expansão marítima e
comercial realizada pelos europeus a partir do século XV e, em momento pos-
terior, como no século XIX sob a égide do Imperialismo, os contatos e, conse-
quentemente os discursos e intervenções sobre o continente africano torna-
ram-se mais intensos.
Considerando o século XIX, não se deve esquecer que ele foi marcado
pelo avanço do capitalismo na Ásia e na África.4 Nesse sentido, a presença e a
exploração dessas áreas necessitavam de justificativas. Essas justificativas fo-
ram construídas tendo como base os discursos estabelecidos sobre porções da
Ásia e da África. Existia no bojo de alguns discursos uma ideia de ‘missão ci-
vilizatória’:

No século XIX, as crenças científicas, oriundas das concepções do Darwinismo


Social e do Determinismo Racial, alocaram os africanos nos últimos degraus da
evolução das ‘raças’ humanas. Infantis, primitivos, tribais, incapazes de aprender
ou evoluir, os africanos deveriam receber a benfazeja ajuda europeia, por meio
das intervenções imperialistas no continente.5

As construções discursivas sobre a África entre os séculos XV-XVII e


XIX-XX foram criadas em função dos interesses políticos e econômicos das
potências que a tornaram área de influência. À medida que os contatos com
esse continente foram acontecendo, produções de obras literárias, jornalísticas
e similares foram se constituindo e sendo utilizadas pelos historiadores.
Denominados de ‘historiadores modernos’, esses estudiosos se ampara-
ram justamente nos documentos construídos graças aos viajantes e comercian-
tes que se fizeram presentes em regiões da África, incorporando nos seus es-

Junho de 2012 241


Luciano Everton Costa Teles

tudos muito dos preconceitos que esses grupos acabaram registrando,


principalmente a ideia de que a sociedade europeia prevalecia sobre a africana.

Pode ser que, no futuro, haja uma história da África para ser ensinada. No pre-
sente, porém, ela não existe; o que existe é a história dos europeus na África. O
resto são trevas... e as trevas não constituem tema de história. Compreendam-me
bem. Eu não nego que tenham existido homens mesmo em países obscuros e
séculos obscuros, nem que eles tenham tido uma vida política e uma cultura in-
teressantes para os sociólogos e os antropólogos; mas creio que a história é essen-
cialmente uma forma de movimento e mesmo de movimento intencional. Não se
trata simplesmente de uma fantasmagoria de formas e de costumes em transfor-
mação, de batalhas e de conquistas, de dinastias e de usurpações, de estruturas
sociais e de desintegração social.6

De qualquer maneira, a África era vista como algo menor. Os movimen-


tos e as dinâmicas das etnias que ali estavam presentes eram literalmente en-
carados como se não tivessem nenhuma influência sobre as regiões da própria
África e do mundo.
A escrita da história sobre a África era externa (de fora) e assentada no
eurocentrismo. Interessante entender o eurocentrismo como “ideologia e pa-
radigma, cujo cerne é uma estrutura mental de caráter provinciano, fundada
na crença da superioridade do modo de vida e do desenvolvimento europeu-
-ocidental”.7 Estrutura mental de caráter provinciano pelo fato de o modelo de
desenvolvimento econômico e social ser estritamente singular, europeu, o que
foi exportado ideologicamente. Segundo o conjunto de ideias exportadas, ine-
vitavelmente todas as sociedades caminhariam para o modelo de desenvolvi-
mento europeu, o que tornou esse modelo um paradigma.

Assim entendido, é hoje perceptível o quanto este eurocentrismo esteve presente


nos textos clássicos que fundaram a historiografia moderna no Iluminismo, de-
turpando a visão dos europeus acerca dos demais povos do mundo. Estes eram
vistos, então, na melhor das hipóteses, como crianças a serem educadas pelas
luzes da razão.
...
O mesmo olhar pode ser identificado no pensamento social europeu do Nove-
centos, de forma mais diversificada. Existe uma tendência eurocêntrica recor-
rente, por exemplo, nas Filosofias da História dos séculos XVIII e XIX, a partir

242 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Um olhar sobre a historiografia africana e afro-brasileira

de autores clássicos como Voltaire, Vico, Condorcet, Hegel, Marx e Engels. É


certo que existe uma heterogeneidade evidente no pensamento de tais autores.
Todavia, o que os une – enquanto principais fundadores da Teoria da História
– são suas tentativas de, a partir da Filosofia, construir interpretações evolutivas
da sociedades humanas, baseadas no progresso da história europeia-ocidental.
(Barbosa, 2008, p.47)

Por força disso, aspectos das sociedades e culturas africanas como práticas
agrárias, receitas de cozinha, medicamentos da farmacopeia, direitos consue-
tudinários, organizações políticas, produções artísticas, celebrações religiosas
e refinados códigos de etiqueta eram temáticas não cogitadas8 ou marginais,
vistas pelo contraponto de uma “compreensão econômico-social europeia (o
capitalismo); culturalista (modernidade, cultura greco-romana); religiosa
(judaico-cristã); racial (‘branca’), etc.” (Barbosa, 2008, p.48).
Numa espécie de movimento contrário, um grupo de intelectuais africa-
nos mobilizou esforços no sentido de reescrever a história africana:

A partir de 1947, a Societé Africaine de Culture e sua revista Présence Africaine


empenharam-se na promoção de uma história – da África descolonizada. Ao
mesmo tempo, uma geração de intelectuais africanos que havia dominado as téc-
nicas europeias de investigação histórica começou a definir seu próprio enfoque
em relação ao passado africano e a buscar nele as fontes de uma identidade cul-
tural negada pelo colonialismo. Esses intelectuais refinaram e ampliaram as téc-
nicas da metodologia histórica desembaraçando-a, ao mesmo tempo, de uma
série de mitos e preconceitos subjetivos. (Fage, 2010, p.20)

Nessa esteira, a reconstrução da história da África passou a ser almejada.


Três elementos se colocaram como pilares para essa reconstrução. O primeiro
elemento se materializou num esforço no sentido de corrigir as interpretações
anteriores, modificando os julgamentos de valor: “De heróis da civilização em
marcha, os desbravadores, governadores das colônias, oficiais do exército,
tornam-se cruéis exploradores”.9 O segundo elemento esteve ligado a um pro-
cesso de descolonização da história do período colonial que se deu simulta-
neamente aos movimentos nacionalistas pela independência:

Sobretudo nos anos 60, os estudiosos começaram a retroceder o tempo, buscan-


do as raízes da resistência e dos movimentos de protesto no início da época colo-

Junho de 2012 243


Luciano Everton Costa Teles

nial e, mais longe ainda, nas primeiras tentativas de resistência ao jugo europeu.
Estes trabalhos sobre os movimentos de resistência e de protesto constituem uma
importante contribuição para corrigir os desvios da história colonial... (Curtin,
2010, p.44)

O terceiro e último elemento caracterizou-se numa abordagem diferen-


ciada que emergiu contra a história eurocêntrica e elitista. Ou seja, era funda-
mental resgatar os movimentos e as dinâmicas próprios das sociedades africa-
nas, considerando os grupos sociais presentes no continente.
Esses três elementos tinham como finalidade a construção de uma nova
escrita da história para o continente africano, tarefa levada a cabo por histo-
riadores africanos. Para estes, era essencial resgatar temas e questões antes
negligenciados por uma historiografia exógena que não percebia a África como
histórica ou que a percebia por meio das ações dos europeus nesse continente
ao longo do tempo.

No âmbito deste esforço geral, o papel dos historiadores da África na própria


África e fora dela assumia particular importância, provavelmente pelo fato de a
história africana ter sido mais negligenciada que a das regiões não europeias
equivalentes e porque os mitos racistas a desfiguram ainda mais que a estas últi-
mas. (ibidem, p.40)

Esse processo, como é possível notar na citação, envolveu historiadores


‘externos’ também. Quando os estudos africanistas começaram a ser introdu-
zidos no mundo acadêmico em países ocidentais entre 1950 e 1960, sobretudo
na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos, as pesquisas ainda estavam
ancoradas em bases eurocêntricas. Porém, aspectos relacionados ao continen-
te africano e as relações estabelecidas historicamente com esse continente fo-
ram alvos de reflexão.
Cabe destacar que o continente africano e também aqueles que começa-
ram um processo de formação na área de História dependiam das instituições
acadêmicas dos países citados anteriormente. Assim, professores ocidentais
atuaram como professores de História nas instituições africanas, assim como
as universidades europeias recepcionaram estudantes africanos.
Porém, esse contexto promoveu uma ampliação dos estudos africanos
que, junto ao movimento de renovação na oficina de Clio, cuja proposta para

244 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Um olhar sobre a historiografia africana e afro-brasileira

nortear uma nova escrita da história teve como eixo três pontos básicos – in-
terdisciplinaridade, perspectiva totalizante e história-problema e os movimen-
tos de libertação nacional na África –, passaram a impulsionar os estudos his-
tóricos, com a formulação de métodos de investigação e interpretação
histórica.
Dessa forma, a História da África passou a ser (re)escrita considerando o
africano como sujeito da sua própria história, agindo de forma decisiva nos
acontecimentos históricos. Além disso, a História Oral passou a ser utilizada
como suporte para construir uma nova interpretação da África, e a interdisci-
plinaridade tornou-se instrumento para estabelecer um diálogo com outras
áreas do conhecimento visando uma compreensão maior de determinados
aspectos, sobretudo materiais e culturais. Enfim, estabeleceu-se, entre 1950 e
1980, um processo de (des)construção da história da África pelos profissionais
africanos. O maior exemplo desse processo foi a participação de intelectuais
estrangeiros, principalmente africanos, num projeto com apoio e financiamen-
to da Unesco que visava produzir uma nova história da África.

A evolução dessa articulação intelectual e política alcançou, então, os organismos


permanentes internacionais ainda na década de 60. Amadou-Mahtar M’Bow,
eminente intelectual senegalês, assume o cargo de diretor geral da Unesco – Ór-
gão das Nações Unidas para a Ciência e a Cultura. Entre 1965 e 1969 foi gestado
sob seu patrocínio um ambicioso projeto: tratava-se de organizar o mais extensa e
completamente a historiografia sobre África até o momento, ao mesmo tempo
que propiciar aos especialistas as condições de intensificar e aprimorar pesquisas
com diversas abordagens, além de estudarem mais ampla e detidamente as rela-
ções inter-regionais em África e dessa com outros continentes. O resultado foram
oito volumes com cerca de 800 páginas cada. A redação e a publicação das obras
ficaram a cargo de um comitê internacional de 39 membros (dois terços de africa-
nos) sob a coordenação geral de Joseph Ki-Zerbo – um professor senegalês.10

No Brasil esses volumes foram publicados mediante convênio entre a


Unesco e a Editora Ática, nos primeiros anos da década de 1980. Recentemen-
te o governo brasileiro disponibilizou o conjunto na internet,11 o que denota
um esforço em tornar públicos os estudos sobre a África.
Mais recentemente, a escrita da história sobre a África incorporou estudos
ligados “às epidemias, ao cotidiano, às novas tendências da economia e da

Junho de 2012 245


Luciano Everton Costa Teles

ciência política, da importância do regional, do gênero, da escravidão, da cul-


tura política e das influências da literatura” (Curtin, 2010, p.43). Para além
disso,

Estudos sobre o passado remoto ou recente das regiões, do processo de formação


da África atual, do entendimento da diversidade de suas culturas e povos, das
releituras sobre os contatos com os europeus e sobre os complexos problemas a
que submerge hoje o continente foram alvo de uma quantidade avassaladora de
investigações. (ibidem, p.41)

As investigações caminharam, portanto, no sentido de “focar a África em


sua própria trajetória. As histórias dos reinos e civilizações africanas...” (Oliva,
2003, p.440). Assim, uma nova história da África acabou emergindo, incorpo-
rando novas temáticas com base em novas visões e interesses.
Um dos principais debates atuais dessa historiografia refere-se à questão
do tráfico de escravos. Numa perspectiva tradicional, eurocêntrica, o tráfico
de escravos intensificou-se e consolidou-se a partir da montagem do império
marítimo e comercial europeu. Foi estabelecido pela hegemonia do capital
mercantil europeu com o objetivo de assegurar e suprir de mão de obra os
setores produtivos incentivados pelas metrópoles europeias nas colônias. Nes-
se ínterim, o tráfico de escravos acabou sendo percebido como um fenômeno
externo à África, produzido pelos europeus.
Nesse esquema explicativo, a África só era mencionada à medida das ope-
rações ligadas ao tráfico de escravos, identificando, quando muito, as regiões
de onde os escravos provinham. A participação e os interesses que levaram o
continente africano a estabelecer contato e fornecer escravos para os europeus,
por exemplo, não eram questionados. Nem a lógica interna que porventura
tenha contribuído para a estruturação da oferta de escravos aos europeus.
Atualmente, os estudos relacionados ao tráfico negreiro não negligenciam
a história da África. Nesse sentido, as regiões e os segmentos africanos que
estabeleceram contato e produziram escravos para serem oferecidos aos euro-
peus foram questionados, a exemplo da obra de Manolo Florentino intitulada
Em Costas Negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de
Janeiro, publicada pela Companhia das Letras em 1997.
Outro ponto de debates no campo da atual historiografia da África refere-
-se à inclusão dos territórios da diáspora como parte das áreas cobertas pela

246 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Um olhar sobre a historiografia africana e afro-brasileira

história da África. Na perspectiva eurocêntrica, as relações entre o continente


africano e o mundo atlântico, por exemplo, eram consideradas como um aci-
dente geográfico entre o Oriente e o Ocidente. Desse modo, consoante Amail-
ton Magno Azevedo

Os processos de desterramento, desterritorialização e escravidão que provoca-


ram as ondas migratórias da Diáspora foram vistos como um projeto balizado
pelo expansionismo do Estado-nação, da economia capitalista e dos desdobra-
mentos da modernidade europeia. Sendo assim, as Áfricas e as Diásporas não
são associadas a espaços e vivências portadores de memórias, saberes e fazeres.12

Com efeito, construiu-se uma crítica sobre essa ideia acerca dos territórios
da Diáspora. Estes passaram a ter papel decisivo “na formação de novas me-
mórias, saberes e fazeres no Mundo Atlântico” (ibidem, p.365). A obra de Luiz
Felipe de Alencastro, O trato dos viventes: a formação do Brasil no Atlântico
Sul, publicado também pela Companhia das Letras em 2001, constitui exemplo
interessante dessa nova perspectiva.
Os dois debates atuais no campo da historiografia africana destacados
neste artigo (Tráfico negreiro e Territórios da Diáspora) apenas mencionam
o enriquecimento e as possibilidades presentes nesse campo de estudos.

História e cultura afro-brasileiras

No Brasil, os temas e discussões ligados às questões afro-brasileiras são


alvo de reflexões há mais de um século. Nina Rodrigues se destacou nesses
temas, mas o negro foi considerado por ele como degenerado, sem capacidades
de aperfeiçoamento moral e social, visto portanto como obstáculo ao desen-
volvimento do país. Em sua obra, Os africanos no Brasil,13 procurou explicitar
esse quadro.

Resultado de pesquisa conduzida por Nina Rodrigues entre africanos remanes-


centes na Bahia do fim do século XIX, mas só publicada, postumamente, em
1932, o livro tinha objetivos claros: identificar os traços físicos e culturais africa-
nos que haviam se infiltrado na ‘raça’ brasileira durante os séculos anteriores,
resultante da maciça importação de africanos pelo tráfico atlântico e de intensa
miscigenação. A reflexão do médico era inspirada pela ideologia racista que atri-

Junho de 2012 247


Luciano Everton Costa Teles

buía à miscigenação os males e entraves ao desenvolvimento do país, porque a


‘civilização’ estava associada a uma população de cor branca e hábitos europeus.14

Somente na Semana de Arte Moderna, em 1922, surgiu um repensar da


nação – a brasilidade –, lançando as bases do mito das três raças como elemen-
tos essenciais da formação do Brasil, fato esse explorado pela Revolução de
1930 e pelo Estado Novo.15
Esse movimento forçou o universo acadêmico a inquirir sobre o lugar do
negro na identidade brasileira. Por força disso realizou-se o I Congresso Afro-
-Brasileiro (Recife, 1934) e sua segunda edição (Salvador, 1937), com Gilberto
Freyre, Édison Carneiro e Manuel Querino. Nesses Congressos o principal
objetivo era entender a ‘questão negra’ para a constituição do ‘caráter nacional
brasileiro’.16 Nesse sentido, Gilberto Freyre17 lançou a ideia da ‘democracia
racial’.
Embora Gilberto Freyre tenha valorizado a presença dos portugueses,
indígenas e africanos e suas culturas para a formação do Brasil, minimizou o
preconceito racial entre os portugueses.18
Outros estudiosos como Arthur Ramos,19 Édison Carneiro20 e Luiz Viana
Filho21 se debruçaram sobre temáticas afro-brasileiras, formando até mesmo
um Centro de Estudos:

Quando se realizou, em 1959, em Salvador, o 2º Colóquio de Estudos Luso-Bra-


sileiros, chegou à Bahia o professor George Agostinho da Silva, um português
que tinha se autoexilado no Brasil depois de haver sido perseguido pelo governo
Salazar. Agostinho propôs ao então reitor da Universidade da Bahia, Edgar Rego
dos Santos, a criação de um Centro de Estudos Afro-Orientais. O Centro foi
criado e retomaram-se, então, os estudos sobre os negros da Bahia.22

Nesse Centro de Estudos, as reflexões sobre o negro intensificaram a ideia


de sua importância para o entendimento do processo de construção cultural
brasileira.
Por sua vez, Caio Prado Júnior,23 Florestan Fernandes24 e Octávio Ianni25
lançaram bases para a compreensão do negro numa outra perspectiva. Anco-
rados em aportes marxistas, tenderam a considerar o trabalho compulsório
como elemento de um sistema de opressão, o capitalismo comercial. A escra-

248 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Um olhar sobre a historiografia africana e afro-brasileira

vidão derivava, portanto, do sentido mercantil da colonização, e estava umbi-


licalmente ligada a ela.
Assim, os africanos teriam sido utilizados estritamente como mão de obra,
como força de trabalho. Com efeito, surgia a concepção de que a escravidão
reduzia o africano a uma condição de anomia social.26 Era a ideia reificadora
da escravidão.
Entretanto, a África e as suas relações com o nosso país foram minima-
mente destacadas. Foi somente com José Honório Rodrigues que a relação
entre a África e o Brasil emergiram.27 Nas últimas duas décadas esses estudos
se avolumaram, sobretudo com relação ao africano no Brasil, colocando-o
como sujeito de sua própria história. Nessa linha, cabe destacar a obra de Ká-
tia Mattoso, Ser escravo no Brasil, que, segundo Ronaldo Vainfas,

recolocou a importância do paternalismo como mecanismo de poder senhorial


e, por meio disso, negou a quase exclusividade do fator violência como explica-
ção do sistema escravista. Indicou também a importância de se estudar a África,
o tráfico, as etnias, os mores, as religiões, para se entender a conformação da
cultura negra no Brasil – cultura que muitos chamaram de afro-brasileira. (Vain-
fas, 1999, p.10)

Ainda na década de 1980, os estudos sobre a história da África para com-


preender os afro-brasileiros começaram a entrar na cena histórica. Por exem-
plo, João Reis, em sua obra Rebelião escrava no Brasil, recorreu à história da
África para analisar a revolta dos Malês na Bahia, em 1834. Também Manolo
Florentino e José Roberto Góes, em A paz das senzalas, recorreram a aspectos
históricos ligados ao continente africano para lançar luzes sobre os afro-bra-
sileiros. Enfim, a historiografia mais recente tem buscado considerar a história
da África como fundamental para o entendimento do tráfico negreiro, da es-
cravidão e dos territórios da Diáspora, só para citar alguns exemplos. Nesse
sentido,

Depois de uma geração de historiadores engajada em desmontar o mito da escra-


vidão benevolente, através de estudos sobre a violência no sistema e sobre a resis-
tência escrava, sobretudo violenta, assumiu o debate uma nova geração preocu-
pada com o cotidiano dos escravos e com a variedade de relações dentro do
sistema escravista. A nova perspectiva da escravidão se abre com pesquisa empí-

Junho de 2012 249


Luciano Everton Costa Teles

rica intensiva em materiais manuscritos antes inexplorados, como inventários


post-mortem, processos-crime, ações de liberdade, correspondência policial, além
de uma leitura ‘a contrapelo’ de relatos de viajantes e de documentos oficiais ... A
pesquisa revela com riqueza de detalhes o funcionamento das relações no sistema
escravista e a vida dos escravos propriamente. Enquanto antes os escravos eram
vistos como uma massa uniforme, agora percebe-se uma hierarquia entre escra-
vos, e o entrecruzar de identidades, baseadas em gênero, idade, ocupação (escra-
vos rurais, urbanos, domésticos, artesãos, ganhadores etc.) e origem (africanos de
diversas etnias ou nascidos no Brasil). (Mamigonian, 2004, p.35-36)

Com efeito, os estudos sobre a África e a cultura afro-brasileira se aden-


saram. As relações entre a África e o mundo, em especial o Brasil, foram pos-
tas em relevo com o surgimento e avanço de cursos de pós-graduação Lato
Sensu e Stricto Sensu sobre a História da África e da Cultura Afro-brasileira,
além de centros de estudos, a exemplo do Centro de Estudos Afro-Orientais
(Ceao) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Considerações finais

Observa-se que no decorrer de algumas décadas, uma reconstrução da


História da África pelos africanos veio se colocando como atividade primor-
dial, não somente para resgatar o movimento e a dinâmica próprios do conti-
nente e das populações africanas, como também para promover um olhar
mundial tendo a África como foco.
No âmbito nacional, os estudos africanos foram avançando ao longo do
tempo, sobretudo deixando de se assentar em questões biológicas e racistas
(como é o caso das obras de Nina Rodrigues), em estudos etnográficos (nota-
damente nas décadas de 1950 e 1960, no interior do Centro de Estudos Afro-
-Orientais), na percepção da escravidão e do trabalho escravo como elementos
do capitalismo comercial, para focar as relações entre a África e o Brasil e as
contribuições dos afrodescendentes na formação cultural brasileira.
Os desafios que se apresentam atualmente requerem uma ampliação e
intensificação daquilo que a historiografia internacional e nacional vem sina-
lizando. O grande desafio que o universo docente brasileiro tem é o de “disse-

250 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Um olhar sobre a historiografia africana e afro-brasileira

minar, para o conjunto da sua população, num curto espaço de tempo, uma
gama de conhecimentos multidisciplinares sobre o mundo africano”.28
Sabe-se que o povo afrodescendente há séculos vem sofrendo preconcei-
tos no interior de nossa sociedade. Parafraseando Laureano, “somente o co-
nhecimento da história e uma compreensão de sua cultura vão encaminhar a
nossa sociedade para o rompimento com práticas preconceituosas e discrimi-
natórias”.29

NOTAS
1
FAGE, J. D. A evolução da historiografia da África. In: UNESCO. História Geral da Áfri-
ca, I: Metodologia e pré-história da África. 2.ed. Brasília, 2010. p.1.
2
SAID, E. W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia
das Letras, 1990.
3
Olhos no sentido de observação e percepção da África a partir de uma ideologia e de um
discurso tendo como base os parâmetros europeus...
4
HOBSBAWM, E. A era do capital (1848-1975). 13.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007.
5
OLIVA, A. R. A História da África nos bancos escolares. Representações e imprecisões na
literatura didática. Estudos Afro-Asiáticos, ano 25, n.3, 2003. p.436.
6
TREVOR-HOPER citado em FAGE, 2010, p.8-9.
7
BARBOSA, Muryatan Santana. Eurocentrismo, História e História da África. Revista
Sankofa, n.1, jun. 2008. p.47.
8
HAMA, B.; KI-ZERBO, J. A evolução da historiografia da África. In: UNESCO. História
Geral da África. I: Metodologia e pré-história da África. 2.ed. Brasília, 2010.
9
CURTIN, P. D. Tendências recentes das pesquisas históricas africanas e contribuição à
história em geral. In: UNESCO. História Geral da África. I: Metodologia e pré-história da
África. 2.ed. Brasília, 2010. p.43.
10
PEREIRA, Amauri Mendes. Por que estudar História da África. Grupo de Estudos Afro-
-brasileiros e Educação, Rio de Janeiro: Uerj, n.21, s.d. p.7.
11
Na página do domínio público encontram-se os oito volumes.
12
AZEVEDO, Amailton Magno. África, Diáspora e o Mundo Atlântico na Modernidade:
perspectivas historiográficas. Caderno de Pesquisa Histórica, Uberlândia (MG), v.23, n.2,
jul.-dez. 2010. p.363.
13
RODRIGUES, N. Os africanos no Brasil. São Paulo: Madras, 2008.
14
MAMIGONIAN, B. G. África no Brasil: mapa de uma área em expansão. Revista de His-
tória da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n.9, v.5, 2004. p.34.

Junho de 2012 251


Luciano Everton Costa Teles

15
ZAMPARONI, V. Estudos africanos no Brasil: Veredas. Revista de Educação Pública,
v.4, n.5, 1995.
16
LEITE, M. D. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. 4.ed. São Paulo:
Pioneira, 1983.
17
FREYRE, G. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 1998.
18
Cabe destacar que Freire, ao observar aspectos relacionados ao espaço da escravidão
doméstica, acabou estendendo esses aspectos ao âmbito do escravismo colonial, dando a
ele uma conotação menos dura.
19
RAMOS, A. O Negro Brasileiro. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1940.
20
CARNEIRO, E. Antologia do Negro Brasileiro. Porto Alegre: Globo, 1950.
21
VIANA FILHO, L. O Negro na Bahia. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1946.
22
Entrevista concedida por Waldir Freitas Oliveira. Estudos Avançados, São Paulo, v.50,
n.18, 2004. p.128.
23
PRADO JÚNIOR, C. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1945.
24
FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes. v.1. 3.ed. São Paulo: Áti-
ca, 1978.
25
IANNI, O. Raças e classes sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
26
Os estudiosos da chamada escola histórico-sociológica paulista (1960-1970) encaminha-
ram seus estudos no sentido de afirmar a completa anomia social a que a escravidão acaba-
va reduzindo o africano. Ver VAINFAS, Ronaldo. Colonização, miscigenação e questão
racial: notas sobre equívocos e tabus da historiografia brasileira. Revista Tempo, Universi-
dade Federal Fluminense, n.8, ago. 1999. p.9.
27
RODRIGUES, J. H. Brasil e África – outro horizonte. Rio de Janeiro: Civilização Brasilei-
ra, 1961.
28
WEDDERBURN, Carlos Moore. Novas Bases para o ensino da História da África no
Brasil. In: BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabeti-
zação e Diversidade. Educação Anti-Racista: caminhos abertos pela Lei Federal
10.639/2003. Brasília, 2005. p.4.
29
LAUREANO, M. A. O Ensino de História da África. Ciência e Letras, Porto Alegre, n.44,
2008. p.343.

Artigo recebido em 20 de dezembro de 2011. Aprovado em 11 de abril de 2012.

252 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Espaço cibernético, cibercultura
e pesquisa acadêmica
Cyberspace, cyberculture and academic research
Marcos Silva*

Resumo Abstract
O texto relata os resultados de uma pes- The text is the report of the results of a
quisa sobre cibercultura e as possibilida- research about cyberculture and the
des de sua utilização pedagógica. Além possibilities of its pedagogic use. Be-
disso, descreve os esforços de constru- sides, it describes the efforts of con-
ção de um instrumento metodológico struction of a methodological instru-
de pesquisa acadêmica utilizando o es- ment of academic research using the
paço cibernético como principal fonte cybernetic space as main source of in-
de informações. formation.
Palavras-chave: cibercultura; pesquisa Keywords: cyberculture; academic re-
acadêmica; representação docente. search; educational representation.

O intuito deste artigo é descrever o desenvolvimento de uma pesquisa que


teve como um dos objetos de estudo as principais manifestações da mais nova
fronteira cultural da humanidade, a cibercultura. Acrescenta-se a esse objetivo
a exposição do teste, aplicado durante a pesquisa, de um instrumento que se
destinava a sugerir uma metodologia de utilização do espaço cibernético como
fonte de pesquisa acadêmica.
Com base no Projeto de Pesquisa intitulado “A Integração do Ciberespa-
ço na Práxis dos Professores de Humanidades”, admitiu-se como uma das
hipóteses de trabalho a necessidade de os professores de ciências humanas
incorporarem uma nova dinâmica pedagógica tendo como suporte o espaço
cibernético. Dentre os recursos indicados na pesquisa para a consecução des-
se objetivo destaca-se, pelo seu caráter original, a apropriação pedagógica da

* Departamento de História, Universidade Federal de Sergipe (UFS). Cidade Universitária Prof.


José Aloízio de Campos. Av. Marechal Rondon, s/n, Jardim Rosa Elze. 49100-000 São Cristóvão
– SE – Brasil. silva.marcos@uol.com.br

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 253-265 - 2012


Marcos Silva

cibercultura e o exame das possibilidades iniciais de introdução de algumas


dessas manifestações1 no currículo escolar.
Com o fim de executar uma pesquisa exploratória no ciberespaço em
busca de websites dedicados às principais manifestações da cibercultura, foram
incorporados/as à equipe do projeto três bolsistas de IC Júnior (Iniciação Cien-
tífica Júnior) que, após a realização de leituras básicas de fundamentação teó-
rica, foram apresentados/as ao desafio da construção de um instrumento que
servisse de roteiro para guia-los nas incursões pela internet.
Na realidade, a coordenação da pesquisa tomou como ponto de partida a
necessidade do estabelecimento de critérios para a análise de websites, utiliza-
dos como fonte de informação de pesquisa acadêmica. Às voltas com proble-
mas de validação e normalização de documentos online,2 de interface gráfica
e de filtragem de conteúdos, e com um número viável de websites para análise,
percebeu-se a necessidade de construção de um instrumento capaz de meto-
dologizar a pesquisa e que pudesse servir de subsídio para pesquisas acadêmi-
cas que fizessem uso do espaço cibernético como fonte de pesquisa.
Na realidade, é bom esclarecer, não se trata meramente da possibilidade
de acesso a documentos, artigos, livros, ensaios, dissertações e teses que são
disponibilizados online, algo que diz respeito à digitalização da cultura escrita.
Para esse tipo de pesquisa já se podia contar com ferramentas como o Google
Scholar que, na descrição do próprio website,

Fornece uma maneira simples de pesquisar literatura acadêmica de forma abran-


gente. Você pode pesquisar várias disciplinas e fontes em um só lugar: artigos
revisados por especialistas (peer-rewiewed), teses, livros, resumos e artigos de
editoras acadêmicas, organizações profissionais, bibliotecas de pré-publicações,
universidades e outras entidades acadêmicas. O Google Acadêmico ajuda a iden-
tificar as pesquisas mais relevantes do mundo acadêmico.3

A nova perspectiva é outra, e implica partir do pressuposto de que o es-


paço cibernético é um fenômeno tão significativo para o homem pós-moder-
no que as suas manifestações culturais peculiares constituem-se em um novo
e importante objeto de investigação acadêmica. Assim, convém estabelecer
princípios para nortear pesquisas exploratórias que tomem os conteúdos pro-
duzidos e veiculados na internet como corpus documental principal.

254 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Espaço cibernético, cibercultura e pesquisa acadêmica

Lucia Santaella explica que esse novo campo de investigação se deve à


circunstância de que “o computador colonizou a produção cultural. Uma má-
quina que estava destinada a mastigar números, começou a mastigar tudo: da
linguagem impressa à música, da fotografia ao cinema. Isso fez da cibernética
a alquimia do nosso tempo e do computador seu solvente universal”.4
Deve-se, porém, acrescentar um breve adendo a essa constatação de Lucia
Santaella. Assmann complementa bem ao afirmar:

Fica evidente que deixou de fazer sentido falar do computador como se fosse
uma referência totalizável em si. Entenda-se bem: o computador isolado já se
tornou um objeto obsoleto. Hoje o computador só faz sentido como nó de acesso
a essa vasta redificação planetária. E como tal passou a ser entendido pela quase
totalidade de seus usuários. Essa imersão nas redes digitais passou a ser uma ex-
periência concreta até mesmo das crianças, que têm acesso a um computador li-
gado à rede mundial de computadores. O computador isolado deixou pratica-
mente de existir e, com sua desaparição, desapareceram muitos aspectos da
anterior experiência do aprender.5

Instrumento para sistematização de pesquisas na internet

Como maneira de encaminhar a construção do formulário para a siste-


matização da procura de documentos/websites foram propostas algumas lei-
turas à equipe de trabalho, como maneira de possibilitar a participação de
todos na elaboração da ferramenta de pesquisa. Dentre as leituras, merecem
destaque aquelas realizadas com o objetivo de compreender a lógica de fun-
cionamento do principal mecanismo de busca em operação na atualidade, o
Google.6
Uma primeira dificuldade foi a determinação de um critério que justifi-
casse, diante da imensa quantidade de websites localizados pelo mecanismo de
busca quando de uma pesquisa, a análise de determinado número de páginas.
Porém, a própria lógica de funcionamento do mais eficiente mecanismo de
busca em operação, o Google, ajudou a encaminhar a solução desse problema,
uma vez que os websites são relacionados de acordo com um critério lógico de
importância dentro do ciberespaço.7 Na explicação do próprio Google, o me-
canismo de busca trabalha assim:

Junho de 2012 255


Marcos Silva

O Google funciona através de uma combinação complexa de hardware e softwa-


re tecnologicamente avançados ... O PageRank (algoritmo de pesquisa do Google,
ou seja, um sistema de classificação e ordenamento de páginas web) assenta na
natureza excepcionalmente democrática da web, ao utilizar a sua vasta estrutura de
links como uma medida do valor de uma página individual. Essencialmente, o
Google interpreta um link da página A para a página B como um voto da página A
em direção à página B. No entanto, o Google analisa mais do que o simples volume
dos votos ou os links recebidos por uma página; analisa, também, a página que
lança o voto. Os votos dados pelas páginas que são, por si próprias, ‘importantes’,
têm maior peso e ajudam a tornar outras páginas ‘importantes’.8

Desse modo, admitindo-se que os websites que resultam de uma pesquisa


já aparecem obedecendo a uma ordem lógica de importância, convencionou-
-se analisar apenas 10% dos primeiros resultados apresentados como resposta
a uma pesquisa efetuada.
Em seguida, procedeu-se à identificação das principais manifestações da
cibercultura que, além de consistirem na estrutura lógica da investigação em
operação, determinariam os termos principais a serem utilizados nas buscas
na internet. Foram selecionadas as seguintes expressões culturais: blogosfera,
ciberarte (web arte), poesia digital, ciberjornalismo, comunidades virtuais, ci-
bercidadania, ciberpsicologia e cibergeografia.
Depois dessa etapa, chamada no formulário de coleta de dados de ‘Fase
Global’, iniciou-se a testagem do instrumento mediante duas manifestações
da cibercultura, escolhidas aleatoriamente: ‘poesia digital’ e ‘comunidades vir-
tuais’. Para cada uma dessas expressões da cibercultura foram determinadas,
como fruto de uma pesquisa exploratória inicial, palavras-chave que, distin-
guidas como termos de maior incidência no assunto pesquisado e, enquanto
pormenorização, com um número total de resultados no Google bem menor,
viabilizavam uma análise de conteúdo dos documentos/websites encontrados.
Na fase que se segue, utilizando as palavras-chave específicas, o modelo
busca determinar questões ligadas à autoria do documento/website, a confia-
bilidade das informações prestadas (validação), os requisitos de interface, pe-
quena sinopse do assunto e uma avaliação da possibilidade de utilização do-
cente do conteúdo do website (ver Anexo).
Como os bolsistas de IC Jr. enfrentariam dificuldades se fossem utilizadas
outras línguas além do português, definiu-se que as pesquisas ficariam restritas

256 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Espaço cibernético, cibercultura e pesquisa acadêmica

ao idioma pátrio. À medida que a pesquisa ia se desenvolvendo, os dados co-


letados eram enviados para um disco virtual, sendo armazenados para poste-
rior análise e utilização.

Entendendo as principais expressões da cibercultura

A consideração da cibercultura como o mais recente e avançado espaço de


produção cultural da humanidade se deve ao fato de que a imagem que outro-
ra se tinha da televisão como ‘lareira’, ou ponto em torno do qual se reunia a
família, está sendo substituída, segundo Galimberti e Gatti,9 pela imagem do
PC como ‘novo tear’, indicando que a relação dos indivíduos e da família com
a nova media não é mais passiva e de mão única (emissor-receptor), mas ense-
ja a produção de informações pelos sujeitos pós-modernos. Essa perspectiva
pode ser mais bem compreendida na explicação de Santaella (2003, p.176):

Se é verdade que cada período da história da arte no Ocidente é marcado pelos


meios que lhe são próprios, os meios do nosso tempo, neste início do terceiro
milênio, estão nas tecnologias digitais, nas memórias eletrônicas, nas hibridiza-
ções dos ecossistemas com os tecnossistemas e nas absorções inextricáveis das
pesquisas científicas pela criação artística, tudo isso abrindo ao artista horizontes
inéditos para a exploração de novos territórios da sensorialidade e sensibilidade.

O ‘novo tear’, a nova paleta, suporte privilegiado e mídia polivalente, é a


telemática. No entanto, esta, ao invés de se constituir como apenas mais um
mass media, por suas características singulares está se transformando em
um personal media. Em função disso, Turkle10 considera que o computador,
como ‘máquina intimista’, tem efeitos subjetivos que tendem a alterar a relação
da pessoa com os outros, com a sexualidade, com a política, com a identidade
e, deve-se acrescentar, como corolário, com a produção cultural.
Assim, nota-se a importância desse levantamento sobre as produções e
manifestações culturais surgidas em função do novo sensorium de base digital.
Essa percepção se fortalece na medida em que o advento desse novo meio de
comunicação está alterando até a compreensão das categorias tradicionais
de explicação da realidade utilizadas por algumas ciências, como é o caso da
Sociologia.

Junho de 2012 257


Marcos Silva

1. Comunidades virtuais

Atribui-se a expressão ‘comunidade virtual’ ao escritor norte-americano


Howard Rheingold, que a teria cunhado em 1993, com o lançamento do livro
A comunidade virtual (publicado em português pela Gradiva, Portugal). Uma
procura no Google por esse termo resulta em algumas centenas de milhares de
páginas, mostrando que esse é um dos aspectos mais considerados da nova
cultura.
A concepção que Rheingold11 passa de comunidade virtual é simples: um
novo tipo de cultura, uma teia de relações pessoais mediadas por computador
ou agregados sociais que emergem no ciberespaço, que respondem a uma ne-
cessidade das pessoas por vivência comunitária, cujas finalidades e/ou possi-
bilidades são as mais diversas possíveis, desde psicoterapia, passando por jogos,
chegando a atividades científicas e artísticas, formando um ecossistema de
subculturas, com potencial para mudar a relação das pessoas com o mundo
real.
No dizer de Castells, “o novo padrão de sociabilidade em nossas socieda-
des é caracterizado pelo individualismo em rede”.12 Ou seja, a própria noção
de comunidade está mudando, deixando-se de enfatizar os aspectos espaciais
e culturais para ressaltar o seu papel de suporte a indivíduos e famílias. Isso
significa que o sentimento de pertença agora se dá com base em interesses
compartilhados. Wellman e Gulia13 apontam alguns exemplos de como
esses novos laços se constroem por meio da internet. Pode ser a partir de in-
formações sobre tratamentos, em função da consulta a médicos especialistas,
pela participação em grupos de apoio emocional para pessoas que se recupe-
ram de vícios em álcool e drogas, pelo desejo de obtenção de companhia e
conselhos, a partir do teletrabalho etc.
Na verdade, o que se afigura é a possibilidade concreta de uma glocaliza-
ção (o global com suporte no local, que está sendo chamado de glocal). Isso
porque a partir da infraestrutura técnica proporcionada pela telemática “não
é que o mundo tenha se tornado uma aldeia global, como McLuhan disse
originalmente, a aldeia particular de cada um pode agora abranger todo o
globo”, no dizer de Wellman e Gulia (2005).
Dessa forma, percebe-se como as redes sociais amparadas por computa-
dor transformaram-se em elemento fundamental de laço social, a ponto de

258 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Espaço cibernético, cibercultura e pesquisa acadêmica

Castells (2003) afirmar que as relações de família estão ultimamente sendo


ajudadas pelo uso do e-mail.

2. Cidades digitais

Com o surgimento do novo meio de comunicação propiciado pela inter-


conexão planetária dos computadores, o ciberespaço, afigura-se também a
configuração de, no mínimo, um novo espaço antropológico, espaço de signi-
ficação ou de proximidade, chamado por Lévy de ‘espaço do saber’.14
Esse novo sistema de agregação social precisaria, à semelhança do espaço
tradicional, desempenhar as mesmas funções de proteção, compartilhamento
simbólico e centro de atividades comerciais, administrativas, científicas e be-
neficentes.
Essa é a pretensão do novo surto urbanístico da humanidade. Desta vez,
constituído não de cidades-Estado, mas de cidades virtuais enquanto “novo
ambiente tecnológico de mobilização social” (Castells, 2003, p.120). Nesse fe-
nômeno urbano destacam-se as cidades digitais de Amsterdã,15 Bolonha16 e
Aveiro.17
Na definição de Zancheti,18 uma cidade digital é “um sistema de pessoas
e instituições conectadas por uma infraestrutura de comunicação digital (a
internet) que tem como referência uma cidade real”. Os objetivos dessa cidade
vão desde a instauração de uma utópica democracia eletrônica a ser desfruta-
da pelos netizens, cidadãos da internet, à formação de redes comunitárias, ou
seja, integração social; manifestações culturais, notadamente aquelas que ca-
racterizam a nova fronteira cultural da humanidade, a cibercultura; banco de
dados sobre a comunidade originária; incubação de negócios; possibilidade de
atuação do governo eletrônico,19 o chamado e-gov, e divulgação turística, den-
tre outros.

3. Poesia digital

A poesia digital é a poesia

que circula nos computadores (discos rígido e flexível), nos CD-ROMs e nos sites
da internet. Essa poesia pode ser chamada de poesia experimental, nova poesia
visual, poesia digital, poesia internética ou nova poesia das mídias e, de certa

Junho de 2012 259


Marcos Silva

forma, ela se constitui num gênero, o gênero da poesia digital, como um dos
muitos gêneros de poesia existentes (poesia verbal, visual, sonora etc.).20

Com base no levantamento realizado destacou-se a produção de Eduardo


Kac21 e a pesquisa de Sergio Caparelli,22 da Universidade Federal do Rio Gran-
de do Sul (UFRGS). Uma pesquisa mais detida será suficiente para revelar
obras interessantes do novo gênero de poesia.23

4. Webart

São os trabalhos de arte que foram especialmente desenvolvidos para a


internet e que por isso utilizam as possibilidades e características desse meio,
como hipertextualidade, interatividade, imaterialidade e reprodutibilidade
incalculável. Ou seja, nessa nova expressão cultural ocorre a digitalização dos
instrumentos da produção artística.
Algumas manifestações da cibercultura de evidente e imediata aplicação
pedagógica são o ciberjornalismo, que já se transformou até em disciplina aca-
dêmica de cursos superiores, e a blogosfera, um campo de expressão pessoal
em franca expansão que tem influenciado bastante até a esfera política.
Para uma aplicação pedagógica dos weblogs, importantes sugestões podem
ser encontradas no Aulablog,24 um projeto desenvolvido por professores espa-
nhóis com sugestões para o uso educacional de blogs, com artigos, experiências
e links interessantes.
A questão principal não deixa de ser: “Como se poderia incluir a ciber-
cultura no currículo dos Cursos Superiores de Ciências Humanas?”. As suges-
tões abrangem desde a proposição de disciplinas específicas sobre cibercultu-
ra no currículo até a correspondência com autores de outras universidades
(troca de experiências), a utilização de atividades extraclasse e, especificamen-
te no caso do curso de Geografia, a utilização das cidades digitais como mode-
lo para análise e planejamento dos problemas urbanos.
Esta última representa uma excelente sugestão. Porém, a manifestação da
cibercultura que desperta especial interesse para o campo da educação é a das
comunidades virtuais. Segundo Lévy, “comunidade virtual é um grupo de pes-
soas se correspondendo mutuamente por meio de computadores interconec-
tados”.25 Para Castells (2003), as características fundamentais das comunidades
virtuais são: o valor da comunicação livre, horizontal, e a formação autônoma

260 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Espaço cibernético, cibercultura e pesquisa acadêmica

das redes, sobre o princípio de que qualquer um é livre para divulgar sua men-
sagem.
Com base nessa classificação e na percepção de que a cultura das comu-
nidades virtuais tem um potencial pedagógico ainda por ser explorado, algu-
mas categorias importantes vêm à tona. Destacam-se os conceitos de ‘comu-
nidades aprendentes’, ‘inteligência coletiva’ e ‘ecologia cognitiva’.
A ideia básica que se pode apreender da articulação desses conceitos é que
as ‘comunidades virtuais’, enquanto coletivos interconectados para fins peda-
gógicos, podem aspirar a se tornarem ‘comunidades aprendentes’ que desen-
volvam uma ‘inteligência coletiva’ a partir do compartilhamento de uma rica
‘ecologia cognitiva’.
Na definição de Lévy (2000, p.28), inteligência coletiva “é uma inteligên-
cia distribuída por toda parte, incessantemente valorizada, coordenada em
tempo real, que resulta em uma mobilização efetiva das competências”. O
objetivo da inteligência coletiva seria, então, o ‘enriquecimento mútuo’ das
pessoas que partilham a mesma comunidade virtual aprendente.
Para conceituar ‘ecologia cognitiva’, Lévy argumenta:

Quem pensa? É o sujeito nu e monádico, face ao objeto? São grupos intersubjeti-


vos? Ou ainda as estruturas, as línguas, as epistemes ou os inconscientes sociais
que pensam em nós? Ao desenvolver o conceito de ecologia cognitiva, irei defen-
der a ideia de um coletivo pensante homens-coisas, coletivo dinâmico povoado
por singularidades atuantes e subjetividades mutantes...26

Assim, na perspectiva de Lévy (1993, p.144), uma ecologia cognitiva é for-


mada não apenas por seres humanos, mas também por máquinas, ferramentas,
estradas, carros, cidades, enfim, “todos os elementos do universo físico que as
ações humanas implicam”. Como fica o professor diante do desafio de propiciar
‘ecologias cognitivas’ que favoreçam o aprendizado? Lévy responde:

A principal função do professor não pode mais ser uma difusão dos conheci-
mentos, que agora é feita de forma mais eficaz por outros meios. Sua competên-
cia deve deslocar-se no sentido de incentivar a aprendizagem e o pensamento. O
professor torna-se um animador da inteligência coletiva dos grupos que estão a
seu encargo. Sua atividade será centrada no acompanhamento e na gestão das

Junho de 2012 261


Marcos Silva

aprendizagens: o incitamento à troca dos saberes, a mediação relacional e simbó-


lica, a pilotagem personalizada dos percursos de aprendizagem etc. (1999, p.171)

O desafio é aproximar as contribuições da pedagogia com as da técnica,


aqui representada pelos recursos do ciberespaço, o conteúdo das humanidades,
sem olvidar a produção da cibercultura, no intuito de sugerir um processo de
formação regular e continuada dos professores de Ciências Humanas que lhes
propicie uma nova dinâmica didática.

Considerações finais

Os dados coletados na pesquisa exploratória através da internet em do-


cumentos/websites revelam que a cibercultura é um vasto campo aberto para
a realização de pesquisas acadêmicas, não só pelo surgimento de novos objetos
de pesquisa, mas também porque o ciberespaço permite a adoção de novos
procedimentos metodológicos. Além disso, o ciberespaço e a sua cultura cor-
relata também constituem um vasto campo inexplorado, especialmente do
ponto de vista educacional.
Ora, essas considerações permitem concluir este breve relatório de pes-
quisa levantando a tímida hipótese de que as novas possibilidades acadêmicas,
as dificuldades sentidas para a sua incorporação pedagógica e até mesmo as
hesitações constatadas em relação à cibercultura deixam entrever que esses são
fenômenos que se associam a um autêntico movimento de vanguarda. Assim,
defendendo a cibercultura como um fenômeno que está guiando a cultura dos
dias atuais, sinalizamos para a importância do prosseguimento dos estudos
aqui esboçados.

262 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Espaço cibernético, cibercultura e pesquisa acadêmica

Anexo
A INTEGRAÇÃO DO CIBERESPAÇO NA PRÁXIS DOS PROFESSORES DE HUMANIDADES
FORMULÁRIO DE AVALIAÇÃO DE WEBSITES / TEMA DA PESQUISA: CIBERCULTURA

1. Manifestação da Cibercultura 2. Ferramenta de Busca 3. Data de Acesso


____/____/_____
FASE GLOBAL

4. Idioma 5. Resultados (∑) 6. % de Visitação do ∑


(Número Total de chamadas)

7. No de Sites 8. Palavras-Chave definidas:


Analisados
9. Palavra-Chave Utilizada

10. URL

11. Autor(es)
(Responsável)
Pessoal ________________________________________________________________
Institucional ___________________________________________________________
Não Identificado.
12. Validação: Baixa Média Elevada.
(Confiabilidade da Informação)
FASE PARCIAL

13. Sinopse

14. Características/Curiosidades

15. Requisitos de interface


Navegação fácil Sim Não
Cores amenas Sim Não
Contraste de cores Sim Não
Fácil leitura Sim Não
Possibilidade de interação Sim Não
(E-mail, Chat, Blog etc.)
Identidade visual
      Logomarca, banners Sim Não
    Animações, multimídia       Sim Não
Presença de Notícias, Informações    Sim Não

16. Aplicação/Possibilidade de utilização docente    Sim    Não

Junho de 2012 263


Marcos Silva

NOTAS

1
As manifestações da cibercultura abrangem várias subculturas, desde videogames, webart,
música, fotografia, filmes, universo hacker, tecnologias de ponta, poesia digital e ciberjor-
nalismo, passando pelas comunidades virtuais e práticas sociais online, tais como chats,
weblogs, fotologs, webcams, listas, newsgroups ou fóruns. Abrange também o cibersexo, o
imaginário cyberpunk e até as FlashMobs, as manifestações-relâmpago, combinadas e di-
vulgadas no ciberespaço por pessoas, a maioria desconhecidas, para se reunirem em locais
públicos e dispersarem-se logo em seguida sem uma causa definida. De um modo geral
fala-se de ciberarte, ciberliteratura, ciberciência, cibercidadania, cibersociologia, ciberpsi-
cologia, cibergeografia e cibersociedades, e até a criação de cidades digitais também é con-
siderada um subproduto desta nova expressão cultural.
2
Um estudo introdutório sobre essas questões pode ser encontrado em: PALACIOS, Mar-
cos. A internet como ambiente de pesquisa: problemas de validação e normalização de
documentos online. Revista da FAEEBA, Faculdade de Educação do Estado da Bahia, Sal-
vador, n.6, jul.-dez. 1996.
3
SCHOLAR.GOOGLE. Disponível em: scholar.google.com.br/intl/pt-BR/scholar/about.
html; Acesso em: 2 jun. 2006.
4
SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultu-
ra. São Paulo: Paulus, 2003. p.20.
5
ASSMANN, H. Redes digitais e metamorfose do aprender. Petrópolis (RJ): Vozes, 2005.
p.9.
6
Um texto de fácil acesso, que apresenta a lógica de funcionamento do Google, foi publi-
cado pela revista SuperInteressante (n.201, jun. 2004), intitulado: “O Mundo Google”.
Também já é possível encontrar nas livrarias mais de uma dezena de títulos de obras que
abordam diferentes aspectos dessa ferramenta de busca. O próprio website do mecanismo
de busca disponibiliza algumas informações básicas sobre seu funcionamento e dicas de
operacionalização: www.google.com.br/intl/pt-BR/about.html.
7
A revista SuperInteressante (jun. 2004) comparou o funcionamento do Google ao do
mundo acadêmico, onde a importância de uma publicação é aferida pelo número de cita-
ções que ela recebe em outras obras do meio universitário.
8
GOOGLE. Disponível em: www.google.com.br/intl/pt_BR//why_use.html; Acesso em: 4
jun. 2006.
9
GALIMBERTI, Carlo; GATTI, Fabiana. Nova mídia e família. In: PELUSO, Ângelo
(Org.) Informática e afetividade. Bauru (SP): Edusc, 1998.
10
TURKLE, Sherry. A vida no ecrã: a identidade na era da internet. Lisboa: Relógio D’água,
1997.
11
RHEINGOLD, Howard. The virtual community. Disponível em: www.rheingold.com/
vc/book/; Acesso em: 4 jun. 2006.

264 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Espaço cibernético, cibercultura e pesquisa acadêmica

12
CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a
sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p.108.
13
WELLMAN, Barry; GULIA, Milena. Comunidades virtuais como comunidades: os sur-
fistas da rede não viajam sozinhos. Disponível em: members.fortunecity.com/cibercultura/
vol6/comucomo.html; Acesso em: 5 mar. 2005.
14
LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. 3.ed. São
Paulo: Loyola, 2000.
15
www.amsterdam.nl/asp/get.asp?ItmIdt=00000494&SitIdt=00000005&VarIdt=00000002.
16
www.comune.bologna.it/.
17
www.aveiro-digital.pt/.
18
ZANCHETI, 2004, citado em DA SILVA, Michele Tancman Candido. A (ciber)geografia
das cidades digitais. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografia y Ciências Sociales, Bar-
celona: Universidad de Barcelona, v.VIII, n.170 (36), 1 ago. 2004. [ISSN:1138-9788]. Dis-
ponível em: www.ub.es/geocrit/sn/sn-170-36.htm; Acesso em: 30 nov. 2004.
19
www.redegoverno.gov.br/.
20
ANTONIO, Jorge Luiz. O gênero poesia digital. Symposium, ano 5, n.1, jan.-jun. 2001.
p.65.
21
www.ekac.org./index.html.
22
www.capparelli.com.br.
23
www.pucsp.br/pos/cos/epe/mostra/; www.ociocriativo.com.br/poesiadigital/epoesia/;
artecno.ucs.br/; www.cce.ufsc.br/nupill/; www.lucialeao.pro.br/.
24
www.aulablog.com/.
25
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999. p.27.
26
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informá-
tica. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34, 1993. p.10-11.

Artigo recebido em 20 de janeiro de 2012. Aprovado em 10 de abril de 2012.

Junho de 2012 265


267
Currículos de História e expectativas de
aprendizagem para os anos finais do ensino
fundamental no Brasil (2007-2012)
Curriculum of History and learning expectations for
the final years of primary education in Brazil (2007-2012)
Margarida Oliveira*
Itamar Freitas**

Resumo Abstract
O artigo traça um perfil das propostas The article presents a profile of curricu-
curriculares produzidas entre 2007 e lar proposals produced between 2007
2011, por 18 estados da Federação, des- and 2011 by 18 states of Brazil, for the
tinadas aos anos finais do ensino funda- final years of primary education. The
mental. O texto é um dos resultados da text is one of the results of a research
pesquisa empreendida nos últimos três undertaken in the last three years by re-
anos por pesquisadores das universida- searchers at the federal universities of
des federais do Rio Grande do Norte e Rio Grande do Norte and Sergipe,
de Sergipe, que prioriza o exame das ex- which prioritizes the review of learning
pectativas de aprendizagem histórica expectations in terms of historical pur-
em termos de finalidades, quantidades, poses, amounts, distribution, skills,
distribuição, habilidades, conhecimen- knowledge and levels of incorporation
tos e níveis de incorporação da pesquisa of cutting edge research. The goal is to
de ponta. O objetivo é fornecer subsí- provide subsidies for knowledge and
dios para o conhecimento e a discussão discussion of public policy and point
sobre políticas públicas e apontar a out the opportunity to research issues
oportunidade de investigação de temáti- and problems few explored by the acad-
cas e problemas ainda pouco explorados emy.
pela academia. Keywords: History Teaching, Curricu-
Palavras-chave: ensino de história; cur- lum, Elementary school.
rículo; ensino fundamental.

* Departamento de História, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal


do Rio Grande do Norte (UFRN). Campus Universitário de Lagoa Nova. 59078-970 Natal – RN
– Brasil. margaridahistoria@yahoo.com.br
** Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Educação, Universidade Federal
de Sergipe (UFS). Cidade Universitária “Prof. José Aloísio de Campos”. Av. Marechal Rondon,
s/n, Jardim Rosa Elze. 49100-000 São Cristóvão – SE – Brasil. itamarfo@gmail.com

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 269-304- 2012


Margarida Oliveira e Itamar Freitas

Há 14 anos, Circe Bittencourt publicou um balanço das propostas curri-


culares de história produzidas entre o fim da década de 1980 e o início da de
1990 em 22 estados brasileiros. A intenção da pesquisadora era “identificar o
alcance de tais propostas no que se refere às mudanças do conhecimento his-
tórico escolar”,1 transformações essas operadas a partir do processo de demo-
cratização pelo qual passara o país, que resultou até mesmo no retorno da
disciplina História aos currículos do ensino fundamental.
Em seu balanço, como o próprio título sugeria, Bittencourt apontou con-
tinuidades e transformações. Entre as primeiras, destacou a presença do ensi-
no de história fundado no ‘tempo cronológico como único ordenador das
mudanças’ e do ‘estruturalismo’ na versão dos ‘modos de produção’ – com a
consequente subsunção do indivíduo à coletividade. Das mudanças, destacou
o esforço de algumas propostas para estabelecer uma ‘história problema’, os
cuidados com a análise das noções de tempo histórico, a introdução, ainda que
tímida, de estudos sobre as ‘culturas africanas’ e a superação da ideia de ‘espa-
ço europeu’ como ‘lugar do nascimento da nação’ – formação fundada na
mistura de raças e no predomínio da experiência portuguesa.
A quase uma década e meia da publicação desse importante inventário,
vivenciamos o debate em torno da elaboração e circulação dos Parâmetros
Curriculares Nacionais, a produção das Diretrizes Curriculares para o Ensino
Médio, a ampliação do Ensino Fundamental em mais um ano e o atendimen-
to de várias demandas sociais que resultaram em prescrições sobre a legislação
de ensino, a exemplo das orientações sobre o estudo da história da África e dos
afrodescendentes, para citarmos apenas os temas de maior difusão entre os
professores do Ensino Básico.
Em termos historiográficos, os novos objetos, problemas e abordagens
introduzidos no ambiente acadêmico, no final da década de 1980, parecem
conviver civilizadamente com as perspectivas um pouco mais à esquerda. Em-
pregando as categorias de Ciro Flamarion Cardoso,2 diríamos: os paradigmas
rivais – o ‘iluminista’ e o ‘pós-moderno’ –, enfim, reconheceram os seus exa-
geros (e as possibilidades de interação).
Acerca das ideias de aprendizagem, ensino e currículo, vigoram as mes-
mas certezas cunhadas a partir da obra de autores como Jean Piaget, Lev Se-
menovich Vygotsky, Jerome Bruner, David Ausubel, Philippe Perrenoud,
César Coll e de um grupo de teóricos críticos entre os quais podem ser incluí-

270 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Currículos de História e expectativas de aprendizagem

dos os nomes de Paulo Freire e de Dermeval Saviani. Tais ideias são por demais
conhecidas da maioria dos profissionais: desenvolvimento humano em termos
de estágios, respeito aos saberes prévios, aluno como construtor de conheci-
mento, professor como mediador das situações de aprendizagem, pedagogia
das competências e dialogismo.
Novidade mesmo, afirmaríamos, foi o crescimento da produção acadê-
mica resultante da pesquisa básica sobre o ensino de história. Encontros na-
cionais, revistas, consolidação de grupos de investigação e formação de mestres
e doutores proporcionaram o acúmulo de grande experiência analítica (em-
bora de forma desequilibrada) sobre os aspectos que envolvem a aprendizagem
histórica em todas as etapas do ensino básico e até do nível superior. Quais os
desdobramentos dessa nova conjuntura para a formatação das propostas cur-
riculares elaboradas nos estados do Brasil no período 2007-2012? Que desafios
detectados no final da década de 1980 foram superados e que novos problemas
se busca enfrentar? Qual o perfil das expectativas de aprendizagem formuladas
na última década para os anos finais do ensino fundamental – ambiente privi-
legiado de formação de pré-adolescentes e adolescentes onde atua o profissio-
nal com formação inicial em história?
Este artigo retoma a discussão por nós levantada nos últimos três anos3
no sentido de produzir indicadores sobre a experiência brasileira em termos
de ensino de história, visando subsidiar políticas públicas, bem como chamar
a atenção dos pesquisadores para a importância do investimento na investiga-
ção sobre determinadas temáticas e problemas que fogem aos interesses de tal
ou tal estado, corrente historiográfica, pedagógica, ou seja, que refletem sobre
o ensino de história em escala nacional, frente a outros movimentos e expe-
riências internacionais.
Nos trabalhos de 2011, examinamos as prescrições de pesquisadores de
vários países sobre o ensino de história como também as expectativas de apren-
dizagem produzidas para os anos iniciais do ensino fundamental, no âmbito
de 12 capitais brasileiras. Aqui, dando continuidade à pesquisa, analisamos as
propostas curriculares produzidas para os anos finais do ensino fundamental,
entre os anos 2007 e 2012, em 18 estados da Federação.4 Nosso objetivo é es-
clarecer alguns pontos que consideramos fundamentais para o conhecimento
da realidade brasileira em termos de prescrições sobre o ensino de história. Os
indicadores que se seguem fornecem, portanto, a estrutura deste artigo: 1. o

Junho de 2012 271


Margarida Oliveira e Itamar Freitas

lugar da história na formação do aluno (ou ideal de aluno a ser formado); 2. o


sentido de conteúdo e a quantidade de expectativas anunciadas; 3. as prescri-
ções em termos de conhecimentos e de habilidades (conhecimentos substan-
tivos e meta-históricos); e 4. os usos dos diálogos entre as durações, e dos jogos
de escala.

O lugar da história na formação do aluno

As propostas curriculares para o ensino de história datam da década de


2000, como já informamos. As 18 com as quais trabalhamos5 foram elaboradas
entre 2007 e 2012, demonstrando a concentração, nesse período, das reformas
curriculares estaduais, em grande parte estimuladas pela ampliação do ensino
fundamental de nove anos, como também pela ascensão de partidos de centro-
-esquerda ao poder nos estados, a partir do segundo mandato do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva.
Do ponto de vista das concepções de história que norteiam as propostas,
podemos afirmar que a tônica, diferentemente do que imaginávamos, é a in-
definição ou, pelo menos, a não explicitação desse ou daquele paradigma, cor-
rente ou escola. Dois terços das propostas não indicam orientação. Traçam
panorama da historiografia europeia do século XX, criticam a ‘história positi-
vista’, mas, ao contrário das propostas da década de 1980, não fundam as es-
colhas sobre um ou outro autor.
Mesmo entre os projetos que partem de uma definição de ciência histó-
rica, as afirmações são gerais. Há referências aos historiadores Eric Hobsbawm
– a defesa do exame da relação presente-passado-futuro –, Marc Bloch – a
história como fornecedora de prazer – e Jörn Rüsen – o estudo das formas de
superação das carências humanas. A história também é definida metaforica-
mente, a exemplo de termos como ‘espelhos do tempo’ e ‘expressão de huma-
nidade’.
Apesar de anunciadas em algumas propostas, as definições não chegam
(solitariamente) a determinar a escolha de habilidades, a seleção e a distribui-
ção dos conhecimentos. Isso ocorre por um motivo óbvio, embora pouco com-
preendido: nenhum historiador/corrente fornece o suporte necessário a todas
as demandas do ensino. Observemos, por exemplo, a proposta do estado do
Paraná. Ela está centrada na ‘perspectiva da formação da consciência histórica’,

272 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Currículos de História e expectativas de aprendizagem

devedora da nova história social alemã, que tem Rüsen como figura de proa.
No entanto, para a eleição dos ‘conteúdos estruturantes’ (relações de trabalho,
relações de poder e relações culturais), os autores das expectativas reivindicam
a contribuição de Eric Hobsbawm e Edward Thompson (trabalho), Norberto
Bobbio e Michel Foucault (poder), Raymond Williams, Roger Chartier e Car-
lo Ginzburg (cultura).
No que se refere às funções da disciplina escolar História, a situação se
inverte, uma vez que a maioria explicita essa informação fundamental para os
professores, sobretudo. Mesmo na ausência de explicitação da ideia de história-
-ciência, a maioria das propostas converge para quatro grandes finalidades: a
formação de identidades, a capacitação para a cidadania, a leitura crítica da
realidade e a compreensão dos procedimentos meta-históricos.
Assim, uma verdadeira vulgata, interligando identidade, cidadania, leitu-
ra da realidade e operação historiográfica, se instaura nas propostas. A forma-
ção da identidade surge como aquisição das noções e compreensão das iden-
tidades individuais/pessoais e coletivas (locais, nacionais, por exemplo). A
identidade também aparece na forma de sentimento de pertença, compreensão
de si e dos outros, e de percepção da condição do aluno como sujeito histórico.
Identidade oscila entre fundamentos e abordagens políticas, antropológicas e
historiográficas, mas que convergem para a ideia de formação cidadã.
A cidadania é requerida em termos de conhecimento dos princípios, com-
preensão e preparação para a ação (atuação). É também traduzida como luta
contra a exclusão social e em favor dos direitos fundamentais. Cidadania faz
par com a preparação do aluno para a vida em regime democrático, o desen-
volvimento da habilidade de fazer escolhas, agir e intervir no mundo que o
cerca. Aqui surge o terceiro e mais referido objetivo para o ensino de história:
a habilidade de ler o real.
A leitura da realidade, anunciada como leitura do mundo que cerca o
aluno, do presente ou da sociedade, atribui à disciplina escolar História a res-
ponsabilidade de desenvolver no/com o aluno as habilidades de observar, in-
terpretar, compreender e pensar.
O domínio dos conteúdos meta-históricos, por fim, complementa o leque
de finalidades expresso pela vulgata histórica. As justificativas implícitas, aqui,
parecem oscilar entre as orientações da psicologia do desenvolvimento – a
habilidade de identificar semelhanças e diferenças, continuidades e permanên-

Junho de 2012 273


Margarida Oliveira e Itamar Freitas

cias – e as prescrições da teoria/metodologia da história: identificar mudanças


e permanências, semelhanças e diferenças, relacionar presente/passado, racio-
cinar, pensar historicamente, construir consciência histórica ou, simplesmen-
te, conhecer os princípios da ciência da história.

O sentido de conteúdo e quantidade


de expectativas anunciadas

O que os adolescentes devem aprender com o ensino de história? Essa


questão é respondida com o emprego da expressão ‘expectativas de aprendi-
zagem’. Não obstante a variedade de concepções de ‘aprendizagem’, a locução
não deixa dúvidas sobre o sentido que queremos transmitir: o que os legisla-
dores, gestores e professores esperam que os alunos aprendam sob a rubrica
de uma área do conhecimento chamada história.
Nas propostas, evidentemente, a diversidade de nomenclatura impera. As
expectativas são chamadas de ‘aprendizagens básicas esperadas’ (AL), ‘expec-
tativas de aprendizagem’ (PR), ‘expectativas de ensino e aprendizagem’ (GO),
‘atitudes’ (AM), ‘habilidades’ (ES, MG, SE, TO), ‘capacidades’ (MT, SP), ‘com-
petências e habilidades’ (MS, RS), ‘conteúdos’ (CE), ‘conteúdos, habilidades e
competências’ (RJ) e ‘objetivos’ (AC, BA, PB, PE). Como vemos, o glossário
indica a incorporação da vulgata construtivista e o quase abandono do vocá-
bulo ‘objetivo’, associado, no senso comum da docência, ao tecnicismo com-
portamentalista.
Para nós, entretanto, o anúncio de uma expectativa de aprendizagem ga-
nha a forma de um objetivo educacional, independentemente dos sentidos de
ensino e de aprendizagem que se queiram emprestar. Dizendo de outro modo,
informar sobre o que se espera que o aluno aprenda requer a construção de
uma sentença composta por verbo(s) e substantivo(s) que expressem, simul-
taneamente, processos cognitivos (lembrar, compreender, aplicar, avaliar,
criar, entre outros) e conhecimentos (factuais, conceituais, procedimentais,
metacognitivos, entre outros).6
Nesse sentido, excetuando-se as propostas do Ceará e de São Paulo7, todos
os documentos analisados anunciam expectativas em forma de objetivo edu-
cacional – alguns mais extensos, contendo dois, três ou mais verbos, outros

274 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Currículos de História e expectativas de aprendizagem

resumidos (veremos isso adiante) –, constatação que nos leva a questionar de


início com quantos objetivos se faz uma proposta curricular.
Aqui, novamente, a variação é a tônica. Há estados que prescrevem entre
duas e cinco dezenas de objetivos (AC, AL, BA, CE, ES, MT, PR, RS, SE, SP),
que estabelecem de seis a nove dezenas objetivos (AM, MG, MS, PB, RJ), e um
terceiro grupo que lista entre dezoito e dezenove dezenas de objetivos educa-
cionais (GO, PE, TO). Embora não possamos discutir neste artigo as razões de
cada uma dessas escolhas,8 podemos inferir que tais números fornecem indí-
cios sobre a pluralidade de concepções acerca de ‘conteúdo histórico’ (mais ou
menos factuais, conceituais ou generalistas) e, ainda, sobre graus diferenciados
de autonomia docente e/ou de apoio teórico-metodológico fornecido pelas
equipes técnicas.
A forma de distribuição das expectativas por ano9 também indica varia-
ção. Há propostas que estabelecem a mesma quantidade de objetivos para os
dois primeiros ou os dois últimos anos, para os três primeiros ou os três últi-
mos anos do ensino fundamental. Rara é a proposta que os distribui equitati-
vamente. No geral, o 7º e o 9º anos recebem o maior número de objetivos.
Esses dados nos levam à conclusão de que, em termos de quantidade de obje-
tivos, as propostas não sugerem qualquer tipo de progressão da aprendizagem.

Gráfico 1 – Distribuição das expectativas entre os anos


finais do ensino fundamental e por estado (2007-2011)
60%

50%

40%

30%

20%

10%

0%
AC AL AM BA CE ES GO MS MT MG PB PR PE RJ RS SP SE TO
-10%

6 o ano 7 o ano 8 o ano 9 o ano

Observação: Para a adequada leitura do gráfico, conferir os comentários da Nota 5 sobre as


propostas de Alagoas, Ceará e Amazonas, que explicam a homogeneização dos quantitativos
referentes a cada ano.
100%

80%

Junho de 2012 275


60%
Margarida Oliveira e Itamar Freitas

Encerrando este tópico, esclareçamos um pouco mais sobre a natureza


das expectativas de aprendizagem ou, como circula na vulgata pedagógica,
sobre o sentido de conteúdo nos currículos prescritos para a história. A lite-
ratura da área não chegou a um consenso sobre o que seria o específico em
termos de aprendizagens históricas,10 razão pela qual consideramos os três
tipos de ‘conteúdo’ correspondentes às posições em disputa: 1. habilidades
específicas do ofício do historiador; 2. conhecimentos produzidos a partir das
habilidades específicas do ofício do historiador; e 3. habilidades e conheci-
mentos que excedem às tarefas da heurística, análise, síntese e escrita históri-
cas (ofício do historiador), demandadas, por exemplo, pela linguística, psico-
logia do desenvolvimento, psicologia da aprendizagem, filosofia
(principalmente, a ética e a estética), política, sociologia e antropologia, ou
seja, áreas do conhecimento que, geralmente, fundamentam as políticas edu-
cacionais para a escolarização básica.
Partindo dos saberes experienciais dos professores do ensino fundamen-
tal, poderíamos, sem grandes problemas, nomear o primeiro e o segundo tipo
como objetivos específicos, e o terceiro como objetivos gerais. Eles serão deta-
lhados no próximo tópico. Aqui, é bastante informar que 90% do total de
objetivos são constituídos por habilidades e conhecimentos ‘específicos’ da
história e apenas 9% enfocam outras áreas do saber.11 Examinado caso a caso,
verificamos que 13 das 18 propostas possuem de 84% a 100% de objetivos
voltados para as habilidades e conhecimentos específicos do ofício do histo-
riador, demonstrando uma compreensão endógena e restrita a respeito dos
‘conteúdos’ concebidos como históricos.
As propostas da Paraíba e do Espírito Santo, por exemplo, são constituí-
das, respectivamente, por 71% e 65% de objetivos específicos, um pouco abai-
xo, portanto, da taxa majoritária. Esses dados significariam, então, que os dois
desenhos curriculares reduzem o espaço do conhecimento histórico na forma-
ção dos adolescentes? É evidente que não. Conclusões desse tipo são possíveis
somente após o levantamento em detalhe dos conhecimentos e habilidades
explorados pelos objetivos.

276 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Currículos de História e expectativas de aprendizagem

As prescrições em termos de conhecimentos e de habilidades

1. Conhecimentos e habilidades nos ‘objetivos gerais’

Comecemos pelos mais raros, os conhecimentos e habilidades constituin-


tes dos objetivos que supostamente excederiam as tarefas clássicas do historia-
dor. Eles somam 118 em um total de 1.380 objetivos. Além de serem minori-
tários em todas as propostas que os contemplam, eles não compõem os
currículos de quatro estados (AM, BA, CE e PR). Porém, apresentam números
significativos outros quatro: 47% (SP), 35% (ES, PB) e 23% (MT).
As expectativas expressas por objetivos gerais abordam conhecimentos
relativos à comunicação (39%),12 quais sejam: leitura13 (sobretudo, busca de
informações e interpretação de texto escrito) e escrita, análise e leitura de grá-
ficos e tabelas e uso de mapas.
Os objetivos gerais também exploram temas relacionados aos valores que
fundamentam o comportamento individual e a vida em sociedade (68%). 14
Nesse sentido, e em ordem decrescente de ocorrências, abordam cidadania,
identidade, alteridade, diversidade cultural, étnica e de gênero, democracia,
justiça, tolerância, solidariedade, direitos humanos, sociedade, o meio ambien-
te e o planeta. Esses objetivos também exploram a capacidade humana de
transformação e de convivência da diversidade na unidade.
Na mesma rubrica, espera-se que os alunos ampliem as capacidades de
viver em grupo, conviver com as ideias do outro, compreender e combater as
ideias de dominação (entre os países), a atitude consumista, o preconceito e a
discriminação em relação à mulher, aos idosos, aos afrodescendentes e aos
indígenas.

Junho de 2012 277


Margarida Oliveira e Itamar Freitas

Gráfico 2 – Valores/atitudes x habilidades linguísticas


por estado: Brasil (2007-2012)
50%

40%

30%

20%

10%

0%
AC AL ES GO MS MT MG PB PE RJ RS SP TO

Valores/atitudes Habilidades linguísticas

Observação: Os demais estados não apresentam expectativas em termos de valores/atitudes ou


de habilidades linguísticas.
70%

60% Em termos de habilidades, o ‘aplicar’ predomina nos objetivos de comu-


nicação, coerente com a natureza da expectativa. Ao contrário, nos objetivos
50%

40%
que
30%
abordam valores e atitudes, prevalecem as habilidades de baixa complexi-
dade
20%
cognitiva – lembrar e compreender –, indicando maior ênfase na aquisi-
ção
10% de informações em detrimento da resolução de situações-problema.
0% Este é o momento de retomar aquela indagação do tópico anterior, acer-
AC AL AM BA CE GO MS MT MG PB PR PE RJ RS SP SE TO
ca da menor frequênciaBreve
de objetivos
Conjuntural
‘específicos’
Longa
nas propostas do Espírito
Longuíssima
Santo, Mato Grosso e Paraíba e indicar que se trata de uma ressignificação dos
conteúdos históricos e não, propriamente, de uma redução do espaço da his-
tória no currículo. Os valores e as atitudes, cidadãos em sua maioria, seriam
absorvidos como tarefas da disciplina, tão importantes quanto a compreensão
de acontecimentos do passado próximo ou distante.
No entanto, independentemente do desempenho desses e de outros esta-
dos, como demonstra o Gráfico 2, valores, atitudes e habilidades linguísticas
representam aproximadamente 6% do total de expectativas no Brasil. Caso
quiséssemos estabelecer um paralelo entre a tipologia empregada neste artigo
e as possíveis razões que fundamentam a introdução dos objetivos gerais,15
sobretudo aqueles que abordam valores e atitudes, poderíamos afirmar, com
convicção, que os princípios éticos, estéticos e de cidadania, seja na sua versão

278 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Currículos de História e expectativas de aprendizagem

constitucional, seja na disposição indicada pela Unesco, ocupam um lugar


restrito no currículo de história para os anos finais no Brasil.

2. Conhecimentos e habilidades nos objetivos específicos:


conteúdos
60%
meta-históricos
50%
Os objetivos ‘específicos’, como anunciamos no tópico anterior, são cons-
40%
tituídos por habilidades singulares ao ofício do historiador (as operações pro-
cessuais do ofício – pesquisa e escrita da história) e conhecimentos produzidos
30%

a 20%
partir do emprego dessas mesmas habilidades (são os ‘fatos’ ou os ‘conteúdos
propriamente ditos’ da vulgata docente). Nomeamos os primeiros conteúdos
10%

como
0% meta-históricos,
AC AL AM BA
e osES
CE
últimos,
GO MS
como substantivos.
MT MG PB
ElesRJrepresentam,
PR PE RS SP SE
res-
TO
pectivamente, 11% e 79% do
-10%
total
6 anoo
das expectativas
7 ano 8 ano
o
prescritas.
9 anoo
16
o

Gráfico 3 – Conteúdos substantivos x conteúdos


meta-históricos: Brasil (2007-2012)
100%

80%

60%

40%

20%

0%
AC AL AM BA CE ES GO MS MT MG PB PR PE RJ RS SP SE TO

Substantivos Meta-históricos

Como podemos acompanhar pelo Gráfico 3, apenas duas propostas não


explicitam os conteúdos meta-históricos (AL e MG) entre os seus objetivos.
Nas demais, entretanto, tais conteúdos são distribuídos de forma bastante va-
riada. Há desenhos, por exemplo, que reservam pouco menos (PR – 45%) ou
pouco mais que a metade (ES – 58%, MT – 55%). Entretanto, há também
propostas cujo espaço preenchido pelos conhecimentos e habilidades referen-
tes à teoria da história, à pesquisa e à escrita histórica não ultrapassa os 5% do
total dos seus objetivos específicos (BA, CE, MS, RJ – 4%, e TO – 5%).

Junho de 2012 279


Margarida Oliveira e Itamar Freitas

Resta saber quais são os conhecimentos e habilidades mais recorrente-


mente utilizados pelas propostas. Esse exame é viabilizado mediante a recolha
dos verbos e dos substantivos empregados no anúncio dos objetivos.
O Quadro 1 apresenta as escolhas de todas as propostas. Podemos obser-
var as referências aos conceitos básicos (história-processo, história-ciência,
fonte histórica, acontecimento, tempo, período, historicidade, sujeito históri-
co, duração, espaço, memória, narrativa, interpretação e anacronismo) e aos
procedimentos canônicos que guiam a pesquisa e a escrita da história (obser-
vação, descrição, análise, comparação, interpretação, crítica e síntese) – ambos,
objetos da formação inicial em história.
Tais escolhas, entretanto, não são expostas esquematicamente, como lis-
tamos acima – pelo menos, não o são nas propostas que apresentam baixo
índice de conteúdos meta-históricos. Um estado, por exemplo, privilegia os
conceitos de duração, fontes, interpretação-versão e a diferenciação história-
-ciência/história-vida (AC). Outro já concentra os objetivos na importância
da história-ciência (BA). O terceiro espera do aluno a compreensão da ideia
de historicidade e da diferença entre história e mito (SE). Um quarto estado,
por fim, sugere os conhecimentos e as habilidades meta-históricas, apresen-
tando o ‘conteúdo’ ‘introdução à história’ (CE) e assim por diante.
Mesmo nos estados que reservam maior espaço para os conteúdos meta-
-históricos, os objetivos são concentrados em quatro ou cinco noções e/ou
procedimentos. Podem, por exemplo, privilegiar o trabalho com narrativas,
fontes e na relação presente-passado (PR), com os conceitos de história, his-
toricidade e memória e tempo e os procedimentos de observação, simultanei-
dade, mudança, permanência e ruptura, continuidade e descontinuidade (MT)
ou, ainda, história, historicidade, tempo, narrativa e fontes (ES).
Verticalizando o exame sobre tais propostas, verificamos que os conteú-
dos meta-históricos são distribuídos nos anos finais de forma equilibrada em
dois currículos (ES, MT). Apenas três propostas apresentam tendência de-
crescente, ou seja, maior quantidade de objetivos no sexto e menor no nono
ano (TO, PB, PR), indicando possibilidade de progressão em termos quan-
titativos.17

280 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Currículos de História e expectativas de aprendizagem

Quadro 1 – Habilidades e conhecimentos


meta-históricos: Brasil (2007-2012)

Habilidades Conhecimentos
Identificar Acontecimento (o conceito e o
referente)
Analisar Anacronismo (o conceito e o
referente)
Utilizar Escalas (Cartografia)
Definir, reconhecer, reconhecer a História-ciência (o conceito e o
importância e compreender referente)
Discutir Conceitos históricos
Comparar Cronologias
Identificar Durações
Analisar, comparar, compreender, Fontes históricas
identificar, interpretar, ler, reconhecer,
reconhecer a importância (para a escrita da
história), utilizar, criticar e verificar
Reconhecer, diferenciar História conhecimento/história
processo (vida) e história/mito
Relacionar História individual e história
coletiva
Compreender Historicidade
Interpretar Fontes (imagens)
Comparar, interpretar, relacionar, buscar Informações em fontes históricas
Comparar, compreender Interpretações (versões) históricas
Compreender, relacionar Tempo (medidas de)
Identificar, coletar, discutir, comparar Memórias
Diferenciar Narrativa e mito
Diferenciar, comparar, compreender, Narrativas
produzir, utilizar
Desenvolver Noções de simultaneidade,
mudança, permanência, ruptura,
continuidade, descontinuidade e
transformações
continua

Junho de 2012 281


Margarida Oliveira e Itamar Freitas
continuação

Habilidades Conhecimentos
Conhecer Noções de tempo, espaço, duração
e periodização, temporalidade e
historicidade
Estimular, projetar Pesquisa histórica
Refletir Tempo (presente/passado)
Desenvolver Procedimentos de observação,
descrição, registro, comparação,
análise e síntese
Problematizar, refletir Sujeito histórico (conceito)
Conhecer, identificar, compreender, Tempo
comparar representar (em linhas de
tempo), medir
Refletir Valor do ensino de história

Outra informação relevante, mas que esse quadro não pode fornecer, é a
frequência dos conhecimentos e das habilidades. De maneira geral (no soma-
tório de todas as propostas), os conteúdos privilegiados são: fonte histórica,
história-ciência e tempo. Esses três conceitos – isolados ou associados – pre-
enchem mais da metade dos objetivos e estão presentes, respectivamente, em
11, 13 e 9 propostas, contabilizando 47, 26 e 14 ocorrências.
Quanto às habilidades, dos 27 verbos listados no Quadro 1, compreender,
identificar, interpretar, comparar, conhecer e reconhecer concentram 50% das
expectativas relativas aos conteúdos meta-históricos. Essa concentração reve-
la um dado preocupante em relação aos procedimentos da pesquisa e da escri-
ta da história: é diminuta a presença de habilidades de maior complexidade
como analisar e diferenciar, e quase ausentes as iniciativas de avaliar (criticar/
julgar) e criar (hipóteses/generalizações/narrativas).

3. Conhecimentos e habilidades nos objetivos ‘específicos’:


conteúdos substantivos

Independentemente do paradigma historiográfico de apoio, da orientação


pedagógica em termos de aprendizagem e currículo, da maior ou menor pro-
ximidade com a legislação educacional produzida pelo estado, os conteúdos

282 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Currículos de História e expectativas de aprendizagem

substantivos de história consideram, majoritariamente, o acontecimento como


elemento central,18 tal como o define Paul Ricoeur.19 Nas 18 propostas em es-
tudo, 87% dos objetivos tratam direta ou indiretamente dos acontecimentos.
O restante das ocorrências remete diretamente aos protagonistas (4%), artefa-
tos (4%) e aos conceitos (4%).20 Vejamos, em, primeiro lugar, a categoria de
maior frequência, ou seja, os conhecimentos e habilidades que exploram, na
ausência de melhor palavra, a configuração21 dos acontecimentos.

Tabela 1 – Habilidades e conhecimentos


substantivos – configuração dos acontecimentos: Brasil (2007-2012)

Habilidades* Conhecimentos*

Compreender (10%), identificar Consequências (8%), semelhanças/


(8%), analisar (6%), reconhecer diferenças (6%), importância (5%),
(4%), refletir (3%), relacionar (2%), processo (5%), causas (5%), conceitos
discutir (2%), comparar, descrever, (4%), crescimento (3%), mudanças (2%),
avaliar, caracterizar (1%), imaginar, estrutura (1%), cronologia (1%), história
valorizar (1%), diferenciar, listar, (1%), contexto (1%), apogeu,
pesquisar, problematizar, ler, características, decadência, fim, limites,
refletir, escrever, definir, permanências, representações,
posicionar-se, localizar, respeitar, crescimento, imaginário, importância e
sintetizar. origem.
* Os números relativos são extraídos da base de 1.118 objetivos que veiculam conteúdos substantivos.
Os conhecimentos destituídos de porcentagem alcançaram menos de 1% desse total.

Como exposto na Tabela 1,22 os conhecimentos auxiliam na identificação


do acontecimento-chave, ou seja, exploram os seus constituintes, ciclo vital
(início, desenvolvimento e fim), antecedentes e consequentes, a exemplo de:
“Reconhecer as características da era imperialista: crescimento das cidades e a
formação de um mercado e de uma cultura de massa” (AL, 9º ano). Nesse
exemplo, espera-se que o aluno ‘reconheça’ (habilidade) as ‘características’
(conhecimento) do ‘imperialismo’ (acontecimento-chave).
No entanto, ainda que o objetivo refira-se ao acontecimento ‘imperialis-
mo’, ele não induz o aluno a reconhecê-lo de forma direta como neste outro
exemplo: “Relacionar o Imperialismo com a Primeira Grande Guerra” (GO, 9º
ano). Aqui, a habilidade ‘relacionar’ é imediatamente seguida do acontecimen-

Junho de 2012 283


Margarida Oliveira e Itamar Freitas

to ‘Imperialismo’. Ambos, portanto, exploram o ‘imperialismo’, mas o primei-


ro objetivo o faz de forma analítica (dando a conhecer as partes) e o segundo
de forma sintética (requerendo conhecimento prévio de ‘imperialismo’ para
que o objetivo seja cumprido).23
Dentro dessa categoria, como podemos acompanhar pela Tabela 1, as
causas, consequências e relevâncias ainda imperam, presentes, respectivamen-
te, em 11, 13 e 10 propostas. No entanto, as velhas demandas da história dita
conservadora convivem com expectativas de aprendizagem que exploram se-
melhanças e diferenças (14 propostas), processos (14), definições (11) e mu-
danças (10) nos eventos, bem acima, portanto, das tradicionais demandas por
cronologia (8). Sobre as habilidades, constatamos o predomínio dos processos
cognitivos mais simples: compreender (presente em 14 propostas), identificar
(11), analisar (11), reconhecer (10).24

Tabela 2 – Habilidades e conhecimentos


substantivos – os acontecimentos-chave: Brasil (2007-2012)

Habilidades Conhecimentos
Compreender (7%), Acontecimentos – Abolição, abolicionismo, absolutismo, acordos
identificar (7%), (Conferência de Berlim, Congresso de Viena, Aliados, Eixo, Pacto de
relacionar (3%), Varsóvia), Anistia, bandeiras, barroco, belle époque, capitalismo,
caracterizar, capitanias hereditárias, caudilhismo, código de desmembramento,
analisar (3%), colônia, colonização (espanhola, europeia, francesa, inglesa, portuguesa),
refletir, ler, escrever, Coluna Prestes, Confederação dos Tamoios, conquista/domínio (sobre os
reconhecer (2%), territórios indígenas, do movimento Cartista, sertão, do campo sobre a
comparar, discutir, cidade, de Goiás, do Brasil, da América), Constituição de 1824,
conhecer, definir, contracultura, controle, propriedade/posse/uso da terra, coronelismo,
descrever, crise (de 1929, do século XIV), crescimento do Sudeste brasileiro,
problematizar (1%), cruzadas, democratização, depressão econômica, descobertas
avaliar, diferenciar, (tecnológicas, arqueológicas), descolonização, desemprego,
estimular, imaginar, desenvolvimentismo, despotismo esclarecido, Diretas Já, ditadura
localizar (tempo/ (militar, Vargas), domesticação de plantas e animais, divisão social do
espaço), promover, trabalho, dominação muçulmana, economia (do açúcar, café), emigração,
sintetizar, valorizar escravidão (antiga, moderna), centralização do poder, exclusão (social,
e verificar. econômica), êxodo rural, família real/corte no Brasil, Fascismo, festivais
gastronômicos (GO), feudalismo, FICA (GO), Frente Negra Brasileira,
fundamentalismo, globalização, Golpe Militar de 1964, governo (Jânio
continua

284 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Currículos de História e expectativas de aprendizagem
continuação

Habilidades Conhecimentos

Quadros, João Goulart, militar, napoleônico, totalitário, Vargas), Guerra


(do Paraguai, Fria, local), Guerrilha do Araguaia, Igreja Católica
(combate à Reforma), Iluminismo, imigração, império (bizantino,
carolíngio), inconfidências, independência (da América espanhola, EUA,
América colonial, América francesa, América latina, Haiti),
industrialização, intervenção (dos EUA), islamismo/islão, liberalismo,
libertação nacional, lutas sociais, meio ambiente (preservação),
mercantilismo, modernismo, modernização (do estado, do país),
monarquia, movimentos (artísticos, culturais, de dominação, de
resistência, intelectuais, nativistas, políticos), nacional-
desenvolvimentismo, nacionalismo, nazifascismo, neoclassicismo,
neocolonialismo, oligarquia, Período 1930, perseguição à esquerda (no
Brasil, nos EUA), populismo, pós [segunda] guerra, pré-golpe militar,
Primeira (Guerra Mundial, República), Primeiro (Império, Reinado),
Proclamação da República, quilombos (resistência), redemocratização,
reforma (agrária, religiosa), Regência, regime (democrático, ditatorial,
militar, oligárquico), Renascimento (comercial, urbano), repressão,
República (oligárquica), resistência (de esquerda), revolta, Revolução (de
1820, 1830, 1848, 1917, 1924, 1930, francesa, industrial, mexicana, russa,
socialista, soviética, política, cultural, inglesa, religiosa, social), Rússia
czarista, Segunda Guerra Mundial, Segundo (império, reinado), sistema
colonial, socialismo, stalinismo, tenentismo, terrorismo, tráfico
(indígena, negreiro), transição monarquia/república, Trombas (GO),
Formoso (GO), Tropicalismo e urbanização.

Na segunda posição, no que se refere à frequência, encontram-se as de-


mandas por acontecimentos-chave. Eles ocupam 40% do total de expectativas.
Como podemos observar pela Tabela 2,25 tal categoria apresenta idêntica varia-
ção em termos de habilidade e maior dispersão em termos de conhecimentos.
As habilidades de compreender (presente em 13 propostas), identificar
(10), caracterizar (9), relacionar, analisar (7) e reconhecer (6)26 são as mais
empregadas em termos de frequência relativa ao número total de objetivos
como também em relação ao número de propostas que as adotam. Quando as
comparamos com os dados da tabela anterior (Tabela 2), verificamos que, não
obstante as pequenas variações de ordem e frequência, as expectativas referen-
tes à configuração dos acontecimentos e aos próprios acontecimentos (acon-

Junho de 2012 285


Margarida Oliveira e Itamar Freitas

tecimento em detalhe/acontecimento em sua totalidade) apresentam habilida-


des idênticas e totais aproximados (25 habilidades para a ‘configuração’ e 24
para os ‘acontecimentos’).
Quanto aos acontecimentos, infelizmente, não podemos quantificar a fre-
quência relativa ao total dos objetivos, uma vez que eles estão presentes em
vários enunciados, de forma isolada ou relacionada.27 No entanto, é possível
verificar que alguns deles constituem maioria absoluta das 18 propostas ana-
lisadas, sendo os mais recorrentes: guerra (presente em 14 propostas), revolu-
ção (14), república (12), cidadania (12), colonialismo, movimentos sociais (11),
capitalismo, imperialismo (9). Além disso, considerada a presença das palavras
política, economia, sociedade e cultura (com seus similares semânticos – po-
lítico, econômico, social e cultural, socioeconômico e sociocultural), podemos
afirmar que as dimensões mais conhecidas da topologia das capacidades hu-
manas são referenciadas na maioria absoluta (algumas no total) das expecta-
tivas anunciadas pelas 18 propostas na seguinte proporção: social (126 citações
e 18 propostas), cultural (99/18), político (90/17) e econômico (85/16).
Vejamos, por fim, a configuração das três categorias minoritárias também
anunciadas como conteúdos substantivos: os artefatos, os conceitos e os pro-
tagonistas. Juntos, constituem apenas 12% do total de 1.118 objetivos.

Tabela 3 – Habilidades e conhecimentos


substantivos – protagonistas, artefatos e conceitos: Brasil (2007-2012)

Habilidades* Conhecimentos*

Compreender (1%), analisar, Protagonistas – indígenas, asiáticos e africanos,


avaliar, caracterizar, definir, família real, classe social, trabalhadores da
diferenciar, identificar, ler, mineração, intelectuais do iluminismo, massas
refletir, escrever, localizar, populares, mercado, capital, cidades e vilas, Belo
reconhecer, refletir e verificar. Horizonte, Goiânia, Egito, Mesopotâmia, EUA,
Europa.
Identificar (2%), analisar Artefatos – códigos de leis, fontes, imagens,
(1%), avaliar, caracterizar, patrimônio, propaganda, rotas e técnicas.
compreender, conhecer,
descrever, discutir, listar,
reconhecer.
continua

286 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Currículos de História e expectativas de aprendizagem

continuação

Habilidades* Conhecimentos*

Identificar (1%), compreender Conceitos – cidadania, cidadão, classe, clientelismo,


(1%), analisar (1%), coronelismo, democracia, divisão do trabalho,
caracterizar, comparar, escravidão, federalismo, feudalismo, mito,
contextualizar, definir, monarquia dual, oligarquia, parlamentarismo,
descrever, diferenciar, patriarcado, populismo, relações sociais, trabalho
discutir, reconhecer, refletir, escravo, trabalho livre; doutrinas/ideologias/modelos
relacionar. de pensamento – Monroe, do branqueamento, dos
movimentos políticos contemporâneos, do
movimento operário, religiosas, totalitárias e
iluministas; projetos – iluminista, universalista da
história moderna, imperialista napoleônico, político-
transformador, político-conservador, de ocupação e
construção da identidade, de ocupação da América
portuguesa.

* Os números relativos são extraídos da base de 1.118 objetivos que veiculam conteúdos substantivos.
Os conhecimentos destituídos de porcentagem alcançaram menos de 1% desse total.

Pela Tabela 3, constatamos que a variação das habilidades é menor, quan-


do comparadas às habilidades referentes às categorias já analisadas (configu-
ração dos acontecimentos e demandas por acontecimentos-chave). Contudo,
os atos de identificar, analisar e compreender continuam na lista dos mais
requisitados, seja para o tratamento dos artefatos, seja para a abordagem dos
protagonistas. Observe-se que os artefatos são assim considerados em razão
de sua natureza inanimada. Os conceitos, por sua vez, dão sentido aos acon-
tecimentos e aos objetos que encarnam vontades, regras, saberes e identidades.
Conceitos e artefatos, entretanto, aparecem isolados ou relacionados a outros
artefatos/acontecimentos, como nos respectivos exemplos: 1. “Entender o que
é ser cidadão no império” (RJ, 8º ano); 2. “Analisar a Lei de Terras de 1850 e
relacioná-la com a questão agrária no Império” (MG, 8º ano).
Sobre os protagonistas (ou atores ou sujeitos históricos), é necessário aler-
tar, mais uma vez, que listamos apenas os conteúdos substantivos anunciados
imediatamente após as habilidades (também, de forma isolada ou relaciona-
da).28 Eles são, principalmente, sujeitos individuais pessoais, coletividades,
instituições jurídico-políticas, cidades, países e continentes considerados, al-
guns de forma metafórica, como detentores de vontade e promotores de ação.

Junho de 2012 287


Margarida Oliveira e Itamar Freitas

Protagonistas são categoria diminuta em frequência no total de objetivos. Isso


ocorre, provavelmente, por causa do apelo ao coletivo, tendência crescente na
historiografia dos últimos 20 anos.
Ampliando, porém, o universo de análise, incorporando os sujeitos indi-
viduais pessoais, por exemplo, mencionados nas categorias já comentadas, não
será difícil constatar que tais protagonistas praticamente desapareceram dos
currículos nas últimas duas décadas. Os tradicionais responsáveis pelas ações
– os indivíduos, nomeados como pessoas – são tão raros que é possível listá-los
aqui: D. João VI (RJ), D. Pedro II (PE), Napoleão Bonaparte (MS, PE),
Abraham Lincoln (MG), Luís Carlos Prestes (AM, GO), Getúlio Vargas (AM,
PE, MG, MX, GO, RJ, SP), Juscelino Kubitschek (MG), Jânio Quadros (MG)
e João Goulart (MG). Ao que parece, perderam o status de objeto principal das
expectativas de aprendizagem histórica, por exemplo, as figuras de Cabral,
Camarão, Tiradentes, Isabel e Deodoro da Fonseca, entre os ‘nacionais’, e os
irmãos Graco, Colombo e Henrique IV, por exemplo, entre os protagonistas
da experiência estrangeira.
Outra constatação importante, mas que abrange todas as categorias de
conteúdos analisados até aqui, foi a vigorosa referência aos novos sujeitos de-
mandados na primeira década do século XXI. Eles estão presentes em 10% do
total das expectativas inventariadas. Africanos/afrodescendentes/África/cul-
tura africana/cultura afro-brasileira e indígenas/cultura indígena são referen-
ciados, respectivamente, por 11 e 10 propostas (entre 18). Essa proporção cai
à metade quando o tema são as mulheres (5 propostas), e rareia em relação às
crianças (2), jovens (2) e idosos (1).
O peso que o conjunto dessas temáticas representa no total de expectati-
vas de cada proposta, porém, é bastante diversificado. Elas ocupam 28% (em
1 estado), 19% (3), 14% (1) 10% (3), 9% (1), 7% (3), 6% (1), 4% (4), 3% (2) e
até 2% (1). Em 80% dos casos, os protagonistas frequentam as expectativas de
forma isolada (ou indígenas ou mulheres ou crianças entre outras composi-
ções). Por isso, e pelo fato de as experiências indígenas, africana e afro-brasi-
leira estarem presentes no currículo de história para os adolescentes há mais
de um século (ainda que não tenham recebido a abordagem sugerida pela le-
gislação atual), não nos é possível avançar nas afirmações sobre esse indicador.
Apenas podemos inferir que a experiência de crianças, idosos e jovens repre-
senta uma inovação no currículo, típica do século atual.

288 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Currículos de História e expectativas de aprendizagem

Tempos, durações, espaços e escalas

Considerando os acontecimentos em todas as expectativas, independen-


temente das categorias analisadas até agora, podemos examiná-las sob o pon-
to de vista do recorte do tempo, das durações, dos espaços focados e das esca-
las. Esses indicadores podem informar sobre o grau de permanência e/ou
mudança em relação às periodizações e aos cenários privilegiados nas propos-
tas da década de 1980 e início da de 1990. Eles também dão a conhecer os graus
de incorporação de duas formas de abordar o tempo e o espaço que entraram
para a historiografia brasileira (ao menos como sugestão) no mesmo período:
os diálogos entre durações e os jogos de escala.
Em primeiro lugar, vejamos o tempo histórico, aqui viabilizado pelo ar-
tefato calendário.29 Seu domínio e sua representação no ensino de história
foram bastante criticados na década passada, uma vez que a divisão quadri-
partite, entre outros problemas, não considerava experiências exteriores ao
Velho Mundo.30 A nosso ver, não é o emprego da periodização clássica da
experiência humana que aproxima ou distancia a proposta das prescrições
inovadoras produzidas pelos especialistas e sim a distribuição de expectativas
por períodos e a distribuição dos períodos por ano. O que temos, então, nas
propostas do novo século?
Sobre o primeiro aspecto – expectativas por período –, os dados expres-
sam maior preocupação por parte dos professores, técnicos e gestores com a
experiência do contemporâneo31 (57%),32 seguida de longe pelos acontecimen-
tos das idades Moderna (18%) e Antiga (6%), da Pré-História (4%), e do Me-
dievo (3%).33
Ao contrário do que ocorre com o emprego das habilidades,34 em termos
de conhecimento a presença de vários conteúdos substantivos no mesmo ob-
jetivo é muito mais frequente. Dessa prática têm origem os objetivos compos-
tos, ou seja, que incluem acontecimentos de dois ou mais períodos. Ainda
assim, o emprego simultâneo das idades Moderna e Contemporânea é majo-
ritário (7%), superando os outros dois pares mais recorrentes que também
incluem as duas idades dominantes – idades Antiga/Contemporânea (1%) e
Média/Moderna (1%).35

Junho de 2012 289


Margarida Oliveira e Itamar Freitas

Tabela 4 – Distribuição das expectativas de aprendizagem


histórica por período e estado: Brasil (2007-2012)

Pré- Pré-
% Atemporal Antigo Medieval Moderno Contemporâneo
-histórico -colombiano

AC 60 2 3 1 3 20 9
AL 7 – – – – 4 89
AM 34 – – 9 3 18 36
BA 4 4 4 8 12 28 40
CE 6 2 2 2 1 18 70
ES 100 – – – – – –
GO 27 1 2 5 1 22 43
MS 16 6 1 18 1 12 46
MT 93 – – – – 3 5
MG 11 4 – – 2 18 65
PB 38 8 – 4 1 12 37
PR 77 – – – 4 11 7
PE 14 – 3 4 3 19 58
RJ 21 9 – 11 7 19 34
RS – – 2 3 3 27 65
SP 5 2 3 7 9 31 43
SE 6 6 3 6 10 11 59
TO 81 1 1 – 1 5 13

Examinando a distribuição dos períodos em cada uma das propostas, ob-


servamos que os acontecimentos referentes ao período contemporâneo são
majoritários em 12 das 18 propostas, o mesmo ocorrendo com o período mo-
derno, situado em segundo lugar (em termos de frequência) em 17 currículos.
A dominação do par moderno/contemporâneo só não se efetivou por comple-
to porque seis estados optaram por elaborar objetivos que não prescrevem
temporalidades, pondo ênfase nos conteúdos substantivos não datados (TO,
AC) ou nos conteúdos meta-históricos (PR, MT), ou, ainda, distribuindo os
objetivos quase que de forma equitativa entre as demandas substantivas, meta-
-históricas ou relacionadas aos valores da cidadania e da democracia (ES, PR).

290 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Currículos de História e expectativas de aprendizagem

Mesmo entre aquelas propostas que dataram a maioria dos seus objetivos,
chamaram a nossa atenção as propostas centradas no contemporâneo (AL), e que
não explicitam a abordagem dos períodos pré-histórico (AM, PE, RS) e antigo
(MG). Isso reforça ainda mais a hipótese de que a compreensão sobre a relevân-
cia do contemporâneo – bastante significativa no início da década de 1930 –
cresceu ainda mais nos currículos, ampliando de 40%, na reforma Francisco
Campos,36 para 57% nas reformas locais da primeira década do século XXI.37
Caminho inverso têm tomado os períodos antigo e medieval, reduzidos,
respectivamente (e também em relação à reforma Francisco Campos) de 22%
e 13% para 3% e 6% nas atuais reformas. Os acontecimentos da pré-história
(considerada a experiência americana – aqui categorizada de pré-colombiana)
mantiveram sua representação no currículo. Outra mudança importante foi a
introdução dos conteúdos sem referências temporais.38
Saber a frequência com que aparecem os períodos em cada proposta é
importante, mas conhecer as formas de distribuí-los ao longo dos anos finais
do ensino fundamental é ainda mais esclarecedor. Para tanto, comparamos as
propostas aos dois perfis aqui citados: a distribuição total dos currículos no
Brasil de 2012 e a clássica distribuição dos períodos na reforma Francisco Cam-
pos. Examinando a distribuição das expectativas atemporais, percebemos pro-
postas que apresentam progressão decrescente (TO, PE, MG, GO) ou distribui-
ção equânime para todos os anos (AL, AM, ES, MT, PB). Outras estão mais
próximas das totalizações da reforma Campos (BA, CE, RJ, RS, SE), que apre-
senta (se não expectativas, mas) acontecimentos datados em sua totalidade.
Isso mesmo se pode dizer em relação ao contemporâneo. Das 18 propos-
tas, 12 apresentam expectativas em progressão crescente (AC, BA, CE, GO,
MS, MG, PB, PR, PE, SP, SE, TO), ou seja, quanto mais se avança para o último
ano do ensino fundamental, mais se propõe o contemporâneo como tema
para discussão. De igual maneira, em 12 das 18 propostas, o contemporâneo
ocupa todos os anos letivos (AC, AL, AM, CE, GO, MS, MG, PB, PE, SE, TO).
Esses números representam uma permanência em relação à reforma Campos,
uma vez que 8 das 12 propostas que têm o contemporâneo como majoritário
reservam o 9º ano para as expectativas referentes a esse período.39
Desse exame, concluímos que não há modelo(s) dominante(s). Não se
pode mais classificar os currículos prescritos de história como majoritariamen-
te estruturados no quadripartidarismo (antigo, medieval, moderno e contem-

Junho de 2012 291


40%

Margarida Oliveira e Itamar Freitas


30%

porâneo).
20% Porém, é cedo para se afirmar que os currículos contemporâneos
integram os tempos e as temáticas de forma sofisticada, distante daquele mo-
delo
10%
inaugurado pela reforma Campos. Isso só é possível conhecer por meio
do exame da relação entre esses tempos, capturada mediante o diálogo das
0%
durações.AC AL ES GO MS MT MG PB PE RJ RS SP TO

Valores/atitudes Habilidades linguísticas

Gráfico 4 – Distribuição das durações nos anos finais


do ensino fundamental: Brasil (2007-2012)
70%

60%

50%

40%

30%

20%

10%

0%
AC AL AM BA CE GO MS MT MG PB PR PE RJ RS SP SE TO

Breve Conjuntural Longa Longuíssima

Como expresso no Gráfico 4, o tempo40 conjuntural ou a duração média


dos acontecimentos predomina em 12 das 17 propostas. Em ordem decrescen-
te, seguem-se a longa (MT, RJ, TO) e a breve (PR) duração.41 Observe-se que
em duas propostas há concentração das durações longa (MT) e breve (PR).
Quando postas em comparação sob o ponto de vista da distribuição entre
os anos finais do ensino fundamental, constatamos a predominância do tempo
conjuntural no 7º, 8º e 9º anos, seguido das durações longa, longuíssima e
breve. Também constatamos que os tempos configuram uma progressão entre
o 6º e o 9º anos, sendo crescente para o conjuntural e o breve e decrescente
para os tempos longo e longuíssimo.
Quanto ao diálogo entre durações, isto é, a possibilidade de observar a
experiência humana da perspectiva de uma ou mais de uma duração, enrique-
cendo, dessa forma a interpretação sobre um ou vários acontecimentos, os
dados apontam para o exíguo emprego dessa estratégia (anunciada até mesmo
pelos PCN). Do total de objetivos que informam sobre o tempo (996), apenas
4,3% (43) deles relacionam diferentes durações.42 O pequeno grupo de objeti-
vos com tempos compostos explora as durações breve e conjuntural (16 ocor-

292 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Currículos de História e expectativas de aprendizagem

rências), breve e longa (8), conjuntural e longa (9), longa e longuíssima (9), e
longuíssima e conjuntural (1).

Quadro 2 – Distribuição das expectativas segundo o espaço privilegiado


nos anos finais do ensino fundamental: Brasil (2007-2012)

6º ano 7º ano 8º ano 9º ano


A B C D E F G A B C D E F G A B C D E F G A B C D E F G
AC
AL
AM
BA
CE
GO
MS
MT
MG
PB
PR
PE
RJ
RS
SP
SE
TO
Legenda: A – local; B – estadual; C – regional; D – nacional; E – continental; F – transcontinental;
G – global. Observação: Este quadro indica apenas a presença ou ausência dos referidos espaços.
Os dados foram contabilizados com base nas expectativas datadas.

No que diz respeito aos espaços de ação – cenários ou locus dos aconteci-
mentos – os dados indicam exígua vantagem do espaço nacional-brasileiro
(36%) sobre o transcontinental (33%), seguidos de longe pelos espaços global
(13%) e continental (11%). A tríade estadual (5%), regional (1%) e local/mu-
nicipal (0,4%) apresenta a mais baixa frequência nas expectativas.
A distribuição desses espaços nos anos finais é bastante variável, não ex-
plicitando, portanto, um padrão. O local/municipal como cenário está presen-
te, apenas, em uma proposta (GO), situado nos dois primeiros anos,43 enquan-
to o recorte estadual ocupa três ou mais de três anos em quatro propostas (GO,
MG, MS, TO) e um entre os dois anos finais em dois currículos (AC, TO).44

Junho de 2012 293


Margarida Oliveira e Itamar Freitas

O reduzido número de expectativas que fazem referências ao regional45


(AM, GO, MG, MS, PE), por sua vez, explora a conquista e a ocupação e a
formação de limites e fronteiras na Amazônia, no Centro-Oeste e no Sul,
e a presença de indígenas no Centro-Oeste. Também abordam a urbanização
do Nordeste e os processos de centralização administrativa e industrializa-
ção no Sudeste.
Quanto ao continental,46 dominantemente surge a experiência das Amé-
ricas – do Norte, Central e do Sul – com metade dessa categoria, difusa em um,
dois, três ou em todos os anos do ensino fundamental. Os movimentos de
independência e a vivência dos povos pré-colombianos são conteúdos subs-
tantivos mais explorados, seguidos de acontecimentos da história moderna
europeia.
Quando abordados dois ou mais continentes no mesmo objetivo, a situa-
ção se inverte: a Europa ocupa dois terços das representações, tratando, sobre-
tudo, de guerras e revoluções e de movimentos como a Reforma e o Renasci-
mento e a formação dos Estados nacionais. Em seguida, vem a América (com
os temas já citados). A Ásia e a África estão parcamente representadas nessa e
na categoria anterior.
O cenário global, dominado por temas como o capitalismo e seus consti-
tuintes – colonização, descolonização, globalização, entre outros –, está pre-
sente na maioria das propostas, no 6º e no 9º anos. E, por fim, vem o nacional-
-brasileiro, espaço majoritário nas propostas, distribuído pelos quatro anos,
com maior presença no penúltimo, onde são explorados, com grande frequên-
cia, a economia do açúcar, a independência política, a transição monarquia/
república, o governo Vargas, a industrialização, o golpe de 1964/ditadura mi-
litar, a experiência indígena e a luta por cidadania.
A exemplo do que verificamos com as durações, os jogos de escala são
pouco empregados nas propostas que anunciam objetivos com um ou mais
cenários. Não chega a trinta o número de expectativas que sugerem o estabe-
lecimento de relações entre dois ou mais espaços diferenciados.47 Assim, ape-
sar de o espaço estadual ser bastante referenciado nas propostas, a explícita
relação espaço estadual/espaço nacional é rara.48 As mais frequentes dão con-
ta das interações entre espaço nacional e o americano49 e do espaço nacional e
europeu.50

294 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Currículos de História e expectativas de aprendizagem

Conclusões

Ao final desta análise, podemos elaborar um perfil das expectativas de


aprendizagem histórica para os anos finais do ensino fundamental, ambiente
privilegiado de formação de pré-adolescentes e adolescentes e lugar de atuação
do profissional com formação inicial em história.
Sobre o papel do ensino nesse processo de formação, vimos declinar a
prática de orientar as propostas curriculares por uma teoria da história ou
corrente ou escola. Mesmo quando definida a ciência da história, seu lugar na
formação incorpora elementos da vulgata defendida por pesquisadores de vá-
rios países e recupera finalidades centenárias: formar identidades, cidadanias,
compreender a realidade e os modos de produção do conhecimento histórico
acadêmico.
A ideia de conteúdo é tributária do construtivismo (ou da aversão ao
tecnicismo comportamentalista). As formas de nomeá-lo indicam pluralidade
de concepções que vão do factualismo à história conceitual, do rígido contro-
le à autonomia docente. Essa mesma variação pode ser observada quando se
comparam as quantidades de expectativas por estado, encontrando-se desde
indicações gerais até prescrições, por assim dizer, quase que diárias.
Em termos quantitativos, verificamos a ausência de progressão na maio-
ria das propostas, a ênfase nos conhecimentos factuais e conceituais e proce-
dimentais relacionados à pesquisa histórica, e a residual participação dos va-
lores e conhecimentos linguísticos. Entre as expectativas que exploram os
conteúdos meta-históricos, predominam as habilidades de baixa complexida-
de (conhecer, compreender) em detrimento das iniciativas de analisar e dife-
renciar. As habilidades de avaliar, criticar, elaborar hipóteses e narrar são raras.
Das que empregam conhecimentos substantivos, também é patente o predo-
mínio do ‘conhecer’ e do ‘compreender’, seja para explorar os acontecimentos
como totalidade, seja para explorar os acontecimentos em sua configuração.
Ainda sobre os conhecimentos substantivos, pudemos verificar a presen-
ça equilibrada de todas as conhecidas e difundidas dimensões humanas, hie-
rarquizadas em termos quantitativos na seguinte ordem: social, cultural, polí-
tico e econômico. Sujeitos individuais pessoais são raros, e já se contempla a
experiência de crianças, idosos e jovens.

Junho de 2012 295


Margarida Oliveira e Itamar Freitas

Quanto à incorporação de conceitos e abordagens recentemente introdu-


zidos na historiografia de ponta, constatamos algumas assimetrias. O contem-
porâneo continua ampliando seu espaço no currículo e hoje já ocupa mais da
metade do total de expectativas. Isso não significa, porém, apropriação das
abordagens difundidas pela historiografia universitária. Trata-se de uma ten-
dência verificada, por exemplo, desde a Reforma Francisco Campos, originada
nas próprias demandas escolares. É provável que o contemporâneo só inter-
rompa esse crescimento quando a historiografia didática assumir a rubrica do
‘tempo presente’ como um novo período da experiência humana.
Ainda sobre a incorporação da historiografia acadêmica, é certo afirmar
que a duração conjuntural predomina e são verificados indícios de progressão
entre o 6º e o 9º ano, no que diz respeito às durações longa e breve. No entan-
to, o diálogo entre durações tem uso restrito.
Isso mesmo podemos afirmar acerca dos jogos de escala. Apesar de bas-
tante diversificadas em termos de recorte espacial – com ligeira vantagem do
recorte nacional sobre o transcontinental –, as propostas que apresentam ex-
plícita relação entre o espaço estadual e o espaço nacional são raras. Frequen-
tes são as interações entre Brasil e América e Brasil e Europa.
Como anunciamos no início, nosso objetivo foi traçar um perfil que sub-
sidiasse as políticas públicas e apontasse algumas questões e temas prioritários
para a pesquisa sobre ensino de história. Nesse sentido, encerramos este artigo
convidando-os a refletir sobre as seguintes indagações:
1. Estaria o ensino de história nos anos finais do ensino fundamental
incorporando finalidades, conhecimentos e habilidades das ciências
humanas e sociais, independentemente das demandas da historiogra-
fia de ponta?
2. É possível reproduzir nas prescrições curriculares todas as inovações
da pesquisa de ponta em termos de habilidades e de conhecimentos?
3. É possível atualizar a experiência crescente do tempo presente e man-
ter os espaços ocupados pelos conhecimentos que explicam a constru-
ção do modo de vida ocidental (Grécia, Roma, Europa) e as heranças
recentemente concebidas como formadoras de uma brasilidade (Áfri-
ca)?
4. Devemos continuar mantendo a história local segregada ao ensino dos
anos iniciais?

296 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Currículos de História e expectativas de aprendizagem

5. As matrizes que fundamentam os instrumentos de avaliação nacional


da aprendizagem em história, a exemplo do Exame Nacional do Ensi-
no Médio, são representativas do conjunto das propostas curriculares
em vigor?
6. A posição que o Brasil ocupa no cenário global (assim como as previ-
sões sobre a manutenção e até o crescimento do seu papel) não suge-
ririam uma revisão desses currículos em termos de prioridades na se-
leção dos conhecimentos e das habilidades?
7. Após 25 anos de experiências curriculares, passando por dois grandes
momentos na vida democrática – as lutas por extirpar os vestígios au-
toritários e as vitórias dos movimentos sociais –, não seria o momento
de pensar numa base comum em termos de expectativas da aprendi-
zagem ou, de maneira inversa, esperaremos que a disputa por cursos
superiores (fundada na carência de vagas no setor público) transforme
os itens de prova dos exames nacionais no currículo real para todos os
brasileiros?

FONTES

ACRE. Governo do Estado. Cadernos de orientação curricular – Orientações curriculares


para o ensino fundamental: Caderno 1 – História. Rio Branco: Acre, 2010.
ALAGOAS. Governo do Estado. Referencial curricular da educação básica para as escolas
públicas de Alagoas. Maceió: Secretaria de Estado da Educação e do Esporte, 2010.
AMAZONAS. Governo do Estado. Proposta curricular do ensino fundamental do 6º ao 9º
ano: Rede pública estadual. Manaus: Secretaria de Estado de Educação e Qualidade de
Ensino, s.d.
ESPÍRITO SANTO. Governo do Estado. Currículo básico da escola estadual: guia de imple-
mentação. Vitória: Secretaria de Estado da Educação Básica e Profissional, 2009.
FORTALEZA. Prefeitura Municipal. Diretrizes curriculares para o ensino fundamental do
sistema municipal de ensino de Fortaleza. Fortaleza: Secretaria Municipal de Educação,
2012.
GOIÁS, Governo do Estado. Reorientação curricular do 1º ao 9º ano. Currículo em debate:
expectativas de aprendizagem – convite à reflexão e à ação. Goiânia: Secretaria de Es-
tado da Educação, 2007.
MATO GROSSO DO SUL. Governo do Estado. [Proposta curricular para história nos anos
finais do ensino fundamental]. Campo Grande: Secretaria de Estado da Educação, s.d.

Junho de 2012 297


Margarida Oliveira e Itamar Freitas

MATO GROSSO. Governo do Estado. Orientações curriculares da educação básica do esta-


do de Mato Grosso. Cuiabá: Secretaria Estadual de Educação de Mato Grosso, [2010].
MINAS GERAIS. Governo do Estado. Proposta curricular de história do ensino fundamen-
tal: 6º ao 9º ano. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Educação, [2007].
PARAÍBA. Governo do Estado. Referenciais curriculares do ensino fundamental: ciências
humanas, ensino religioso e diversidade sociocultural. João Pessoa: Secretaria de Edu-
cação e Cultura, 2010.
PARANÁ. Governo do Estado. Diretrizes curriculares da educação básica: História. Curiti-
ba: Secretaria de Estado da Educação Básica, 2008.
PERNAMBUCO, Governo do Estado. Orientações teórico-metodológicas – ensino funda-
mental: História. Recife: Secretaria de Educação, 2011.
RIO DE JANEIRO. Governo do Estado. Currículo mínimo: História. Rio de Janeiro: Secre-
taria de Estado da Educação, 2011.
RIO GRANDE DO SUL. Governo do Estado. Lições do Rio Grande do Sul. Ciências Huma-
nas e suas tecnologias. Caderno do Professor (ensino fundamental/ensino médio). Porto
Alegre: Secretaria de Estado da Educação, [2009].
SANTOS, Cristiano dos; SILVA, Irlana Jane Menos da; SANTOS, Selma dos (Org.) Mentes
e mãos construindo o Projeto Político Pedagógico (PPP). Feira de Santana (BA): Univer-
sidade Estadual de Feira de Santana, Departamento de Educação, Colegiados de Peda-
gogia, Fórum de Dirigentes das Escolas Públicas Estaduais, 2009.
SÃO PAULO. Governo do Estado. Proposta curricular do estado de São Paulo: História. São
Paulo: Secretaria da Educação, 2008.
SERGIPE. Governo do Estado. Referencial curricular: rede estadual de ensino de Sergipe.
Aracaju: Secretaria de Estado da Educação, 2012.
TOCANTINS. Governo do Estado. [Proposta curricular de História]. Palmas: Secretaria de
Estado da Educação, [2009].

Notas
1
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Propostas curriculares de História: continuida-
des e transformações. In: BARRETO, Elba Siqueira de Sá (Org.) Os currículos do ensino
fundamental para as escolas brasileiras. 2.ed. São Paulo: Fundação Carlos Chagas; Campi-
nas (SP): Ed. Associados, 2000. p.127-161. p.128.
2
CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronald. Domínios da história: ensaios de teoria
e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p.27-43.
3
FREITAS, Itamar; OLIVEIRA, Margarida Maria Dias. Ensino de história nos currículos
de história de doze municípios brasileiros: um perfil das habilidades e dos conhecimentos
prescritos para a alfabetização histórica das crianças (2000/2010). Publicado em 27 mar.
2011. Disponível em: itamarfo.blogspot.com.br/2011/03/curriculos-de-historia-e-expecta-
tivas.html; FREITAS, Itamar. O que deve “saber” e “saber fazer” o profissional de História?

298 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Currículos de História e expectativas de aprendizagem

Publicado em 2 abr. 2011. Disponível em: itamarfo.blogspot.com.br/2011/04/o-que-deve-


saber-e-saber-fazer-o.html.
4
Este trabalho somente foi possível graças à colaboração de colegas pesquisadores de vá-
rios estados, aos quais somos enormemente agradecidos: Arnaldo Pinto Júnior (ES), Car-
los Augusto Lima Ferreira (BA), Egberto Melo e Jane Semeão (CE), Jussara Luzia Leite
(ES), Luciana Oliveira (BA), Magda Ricci (PA), Maria Augusta de Castilho (MS), Nathalia
Alem (BA), Rita de Lourdes Campos Feitoza (RN), Simone Dias Cerqueira de Oliveira
(BA) e Tarcisio Normando (AM).
5
O quadro que esboçamos aqui está condicionado à seguinte situação: 16 estados reformu-
laram suas expectativas entre 2007 e 2012 – Acre, Alagoas, Amazonas, Espírito Santo,
Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio
de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo, Sergipe e Tocantins; dois estados não prescre-
vem expectativas para os anos finais (é o município quem o faz), razão pela qual adotamos
como amostra as propostas da capital ou de uma das diretorias regionais – Bahia e Ceará;
quatro estados, além do Distrito Federal, estão reformulando ou construindo suas propos-
tas (alguns até já as concluíram, mas ainda não disponibilizaram no site da Secretaria de
Educação) – Pará, Rio Grande do Norte, Rondônia, Roraima; e um estado não será objeto
de análise em virtude de a proposta ser datada de 1998 e, ainda, pelo fato de não apresentar
expectativas de aprendizagem para os alunos – Santa Catarina. Apesar das buscas, até o
fechamento deste artigo não obtivemos informações sobre as expectativas do Piauí e do
Amapá. A proposta do Maranhão, que nos chegou após a conclusão do trabalho, será in-
cluída em novo texto (em preparo) que examina as ideias de progressão e avaliação.
6
Cf. ANDERSON, Lorin W.; KRATHWOL, David R. et al. A taxonomy for learning, tea-
ching, and assessing: a revision of Bloom’s taxonomy of educational objectives. New York:
Longman, 2001.
7
A proposta do Ceará anuncia conhecimentos. Os processos cognitivos são citados na
exemplificação dos ‘mapas de ensino’. A proposta de São Paulo indica processos cognitivos
no texto introdutório. A informação objetiva sobre os ‘conteúdos’, entretanto, é também
fornecida em termos de conhecimentos. A proposta do Rio Grande do Sul apresenta ‘com-
petências e habilidades’ e ‘sugestões de conteúdo’. Os conhecimentos substantivos estão
presentes nos dois tópicos, mas somente ‘competências e habilidades’ constituem objetivos
completos (verbos e substantivos).
8
Apesar da variação em termos de quantidade de aulas semanais e dias letivos.
9
A maioria das propostas discrimina as expectativas por ano, seguindo o ensino funda-
mental de 9 anos. As exceções são Alagoas, que aponta os objetivos ao final do 9º ano, e
Amazonas, que discrimina por biênios (6º e 7º anos e 8º e 9º anos). Os estados não adapta-
dos ao ensino fundamental de 9 anos ou que fizeram a opção pelo trabalho com ciclos tive-
ram seus dados reclassificados para efeito de comparação. Foram os casos do Espírito San-
to, Rio Grande do Sul (onde o 6º, 7º, 8º e 9º anos correspondem à 5ª, 6ª, 7ª e 8ª séries) e do
Mato Grosso (6º ano corresponde ao segundo ciclo e 7º, 8º e 9º anos correspondem ao
terceiro ciclo). A proposta do Ceará (Fortaleza) apresenta os ‘conteúdos’ em bloco para o

Junho de 2012 299


Margarida Oliveira e Itamar Freitas

intervalo do 6º ao 9º ano. Para viabilizar as estimativas, distribuímos equitativamente os


conteúdos da proposta do Ceará pelos quatro anos finais e repetimos as expectativas de
Alagoas (do final do 9º ano para os anos 6º, 7º e 8º) e do Amazonas (do biênio para os anos
correspondentes).
10
O sentido de aprendizagem histórica e de conteúdos históricos está diretamente relacio-
nado ao sentido de história-conhecimento, sobre o qual também não há consenso. Além
desse condicionante, os interesses de pais de alunos (relativos aos exames e certificações),
professores do ensino fundamental e professores universitários lotados em programas de
pós-graduação, entre outros, se repartem nas defesas de um ‘conteúdo histórico’ mais ou
menos factual (informação), centrado em conceitos das ciências humanas e sociais, ou nas
habilidades e valores relativos ao ofício do historiador (que, às vezes, coincidem com os
valores democráticos e de cidadania). Uma simples divisão encontrável nos textos de Peter
Lee sintetiza e esclarece o sentido de conteúdo para aqueles que querem se iniciar na pes-
quisa. Ele afirma que a aprendizagem da história faz uso de dois tipos: os conhecimentos
factuais (conceitos substantivos) e os conhecimentos da disciplina (conceitos de segunda
ordem ou conceitos meta-históricos). Cf. LEE, Peter J. Putting principles into practice:
understanding history. In: DONOVAN, M. Suzanne; BRANSFORD, John D. How stu-
dents learn: history in the classroom. Washington: National Research Council of The Na-
tional Academies, 2005. p.31-77. p.31.
11
Os dados restantes (1%) correspondem aos objetivos sobre os quais não foi possível esta-
belecer classificações (alguns, por má redação ou erros tipográficos).
12
Embora não ofereça orientações específicas sobre o desenvolvimento dessa habilidade, a
proposta de São Paulo é a mais fértil (considerada a possibilidade de os seus autores terem
prescrito tais processos para todos os objetivos), representando dois terços do somatório
dos objetivos de todos os estados que prescrevem habilidades linguísticas (ler e escrever).
13
A leitura é entendida aqui, sobretudo, como busca de informações em textos escritos.
Quando o objetivo determina que a busca seja feita em texto de documentos históricos e
seus sinônimos (fontes, textos históricos etc.), classificamos a expectativa como meta-his-
tórica e não, somente, como atividade de ampliação das habilidades linguísticas.
14
A proposta da Paraíba nomeia esse tipo de objetivo como ‘atitudinal’ e ‘procedimental’.
15
Na Constituição e na Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional podem ser ob-
servados os objetivos gerais nos princípios éticos (responsabilidade, solidariedade, respeito
ao bem comum), de cidadania (exercício da criticidade, respeito à ordem democrática) e
estéticos (sensibilidade, criatividade, diversidade de manifestações artísticas e culturais).
Nas orientações da Unesco, os objetivos aqui rotulados como específicos correspondem ao
‘saber’ e ao ‘saber fazer’, enquanto os gerais estão relacionados ao ‘saber ser, estar e com-
portar-se’.
16
Os demais, como já afirmamos, correspondem aos objetivos gerais (9%) e aos não iden-
tificados (1%).

300 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Currículos de História e expectativas de aprendizagem

17
Afora esses casos, nenhuma proposta formula objetivos para todos os anos finais do en-
sino fundamental.
18
Suponhamos a Revolução Francesa como exemplo. Certamente, as propostas que a in-
cluem esperarão que os alunos apreendam o nome e os interesses dos sujeitos envolvidos,
as causas, etapas, limites, consequências e importância da Revolução Francesa para deter-
minado grupo, povo ou sociedade – não necessariamente contemplando todos os indica-
dores ou obedecendo a essa mesma ordem de exposição.
19
Para Paul Ricoeur, o acontecimento em História corresponde ao que Aristóteles chama-
va de mutação de sorte – metabolé – na sua teoria formal da armação da intriga. Um acon-
tecimento é o que não somente contribui para o desenvolvimento da intriga, mas dá a esta
a forma dramática de uma mudança de sorte (Cf. RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. São
Paulo: Papirus, 1994. v.1, p.320).
20
Não foi possível chegar a uma classificação em 1% dos objetivos.
21
Maneira pela qual as coisas se apresentam ou se desenvolvem (HOUAISS, Antonio. Di-
cionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 2.0. Rio de Janeiro: Instituto Antonio
Houaiss; Objetiva, 2007. 1 CD-ROM).
22
Os termos constituintes dessa e das próximas tabelas não esgotam o glossário das pro-
postas. As palavras foram agrupadas e codificadas dentro do seu campo semântico para
viabilizar a estatística, tanto dos conhecimentos (a exemplo de bases/estrutura/matrizes,
causas/fatores/razões, expansão/crescimento/evolução/desenvolvimento, importância/in-
fluência/significado/legado/contribuição/papel/valor) quanto das habilidades (representar
por desenho/desenhar, destacar o papel.../reconhecer, debater/discutir, distinguir/diferen-
ciar, elencar/listar, entre outras).
23
Pode parecer irrelevante essa sutil diferença. Mas, se mensurarmos as propostas esta-
duais de história ao longo do século XX, não será difícil concluir que migramos da expec-
tativa direta para o exame do entorno e do interior, o que significa dizer, em termos peda-
gógicos, que estamos, gradativamente, substituindo a pergunta “o que é?” – inspiradora da
memorização e da resposta ao pé da letra – para as questões “como é?” e “por que é?” – su-
gerindo, assim, a compreensão sobre o que se estuda. O mesmo se pode dizer em termos
de teoria da história. Estamos mudando da história dita factual para a história problema.
24
As pequenas variações de ordem de exposição, entre essa listagem e o descrito na Tabela
1, apenas confirmam a informação sobre a representatividade dessas habilidades, uma vez
que os primeiros números (as porcentagens da tabela) são relativos ao total de objetivos, e
os últimos (os algarismos entre parênteses) informam sobre a frequência das habilidades
no total de propostas. Cruzando as duas informações, entretanto, é fácil concluir pela dis-
tribuição equilibrada de tal grupo de expectativas nas propostas brasileiras.
25
Os números relativos são extraídos da base de 1.118 objetivos que veiculam conteúdos
substantivos. Os conhecimentos destituídos de porcentagem alcançaram menos de 1%
desse total.

Junho de 2012 301


Margarida Oliveira e Itamar Freitas

26
O conjunto ‘refletir, ler e escrever’, como já alertamos, apresenta-se em destaque, mas
está concentrado na proposta de um estado, apenas: São Paulo.
27
Como nos respectivos exemplos: “1. “Reconhecer no capitalismo financeiro os aspectos
da concentração de capital pelas nações industrializadas e a expansão do capitalismo como
a origem da internacionalização do capital e dos entraves do protecionismo” (PE, 9º ano);
2. “Relacionar a crise do socialismo e do capitalismo, nova expansão capitalista (globaliza-
ção)” (PB, 9º ano).
28
Conforme os exemplos: 1. “Discutir o sertão como expressão de uma cultura” (GO, 7º
ano); 2. “Identificar e caracterizar as instituições nacionais e internacionais que lutam pela
garantia dos direitos dos cidadãos” (TO, 9º ano).
29
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. São Paulo: Papirus, 1997. v.3.
30
Na tabela a seguir, observem, isolamos os objetivos que abordam a experiência do Novo
Mundo, anterior à colonização europeia, sob a rubrica de período pré-colombiano. Não
queremos criar um novo período. É, apenas, um procedimento operatório para separar um
tipo de acontecimento paralelo à experiência europeia e asiática, mas que não se enquadra
na periodização quadripartite ou nas classificações que tomam por base os estágios tecno-
lógicos comumente usados nos estudos de pré-história. Tentamos tratar com os mesmos
critérios os acontecimentos relativos à história da África, mas a proposta mostrou-se invi-
ável, dada a generalidade (ausência de referências sobre tempo e espaço no continente)
com que os objetos abordam tal experiência.
31
Aqui entendido como os acontecimentos referentes ao período iniciado a partir da Re-
volução Francesa.
32
Números calculados sobre o total de expectativas datáveis, já que 32% (474) dos 1.380
objetivos são atemporais (sobretudo aqueles relacionados aos conteúdos meta-históri-
cos) ou genéricos (sem referências cronológicas, a exemplo das expectativas que abor-
dam valores).
33
Se somarmos os objetivos que tratam de povos pré-colombianos (2%) aos da classe de
pré-história, os acontecimentos relacionados ao período medieval aparentam representa-
ção ainda mais reduzida.
34
Do total de expectativas que explicitam habilidades (111 não as explicitam), 86% (1.094)
são constituídas por um verbo, 12% (155) por dois e 1% (17) por três verbos. Há, também,
dois casos com quatro verbos e apenas um com cinco. Neste trabalho, priorizamos o pri-
meiro verbo de cada expectativa.
35
Os conjuntos antiga/contemporânea, pré-colombiano/moderno, antiga/média, antiga/
moderna, média/contemporânea foram empregados, mas nenhum deles alcançou a fre-
quência de 1%.
36
A proposta Francisco Campos destinava-se ao nível secundário e estruturava-se em cin-
co anos. No entanto, o público do secundário, em termos de faixa etária, é o mesmo dos
anos finais do ensino fundamental (em média, a partir dos 10 anos de idade – na verdade,

302 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Currículos de História e expectativas de aprendizagem

tratava-se de um curso pós-primário). Além disso, o secundário foi substituído pelo curso
de primeiro grau (séries 5ª, 6ª, 7ª e 8ª), que, por sua vez, ganhou o nome de ensino funda-
mental (anos finais). O elemento definidor da reforma Campos como termo de compara-
ção, entretanto, está no seu caráter inaugural em termos de currículo: é a primeira propos-
ta oficial, declaradamente integrada (Brasil/América/Mundo), como também o é a maioria
das propostas contemporâneas.
Esse fato talvez seja explicado pelo crescimento, na ausência de melhor termo, vegetativo
37

dos acontecimentos contemporâneos e estabilização, também na ausência de melhor ter-


mo, dos acontecimentos da idade moderna que incluem a experiência brasileira.
38
É provável que esse novo elemento, aliado ao crescimento vegetativo do contemporâneo,
tenha causado essa drástica redução no espaço dos períodos antigo e medieval.
39
Em relação aos períodos antigo e medieval, excetuando-se os estados que não os incluem
(ES, MG, AL), apenas uma proposta (GO) não os distribui nos dois primeiros anos, apro-
ximando-se, portanto, da disposição de 1931. O mesmo ocorre no que diz respeito às ex-
pectativas que tratam dos períodos pré-histórico e pré-colombiano. A maioria aproxima-
-se do modelo Francisco Campos (BA, CE, GO, MS, MG, PB, PE, SP, SE, TO),
distribuindo-os ao longo dos primeiros anos, enquanto apenas uma proposta (RJ) prescre-
ve o período pré-histórico para o 6º e 9º anos. As demais (AC, AL, AM, ES, MT, PR) não
reservam, explicitamente, expectativas para o recorte pré-histórico.
40
Estes foram os critérios de classificação das durações: tempo breve – 0 a 10 anos; duração
conjuntural – 10 a 50 anos; longa duração – mais que 50 e até 300 anos; longuíssima dura-
ção – mais que 300 anos.
41
As durações conjuntural e longa se equivalem na proposta do Acre. O currículo do Espí-
rito Santo não permite o cálculo, já que as suas expectativas não prescrevem durações.
42
Os que assim o fazem são, sobretudo, objetivos que exploram causas, consequências,
significados, semelhanças e diferenças entre acontecimentos, como neste exemplo que po-
de reunir, respectivamente, as durações breve e conjuntural: “Compreender a Primeira
Guerra Mundial como resultado das tensões territoriais-nacionalistas que marcaram a Eu-
ropa entre o final do XIX e o início do XX, aliada às disputas por reservas de mercado ca-
racterísticas da segunda revolução industrial” (SE, 9º ano).
43
“Identificar as origens das cidades goianas, seus nomes originais, sua arquitetura, festas
e costumes” (GO, 7º ano).
44
“Identificar e caracterizar a pré-história no Tocantins” (TO, 6º ano).
45
Aqui entendido no sentido jurídico-político-administrativo mais recente, que divide o
país em cinco territórios (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul).
46
O continente tomado isoladamente.
47
A maioria das expectativas compostas (aproximadamente uma centena e meia) propõe o
estabelecimento de relações do tipo “Brasil x Brasil” e “Europa x Europa”.
48
“Identificar as consequências políticas do golpe militar (1964) em Goiás” (GO, 9º ano).

Junho de 2012 303


Margarida Oliveira e Itamar Freitas

49
“Relacionar o processo da abolição da escravidão nas áreas dos confederados com o pro-
cesso de abolição no Brasil” (PE, 9º ano).
50
“Compreender as lutas socialistas e de libertação nacional contra a exploração e o domí-
nio imperialista, bem como seus impactos na América Latina” (PB, 9º ano).

Artigo recebido em 20 de janeiro de 2012. Aprovado em 7 de maio de 2012

304 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


305
E-storia
Dilton C. S. Maynard*
Marcos Silva**

Prezad@s colegas,

A História hoje navega nos mares das novas tecnologias da informação.


Apesar dos muitos críticos, é impossível negar a inserção destes novos recursos
na produção do conhecimento histórico. Desse modo, considerando os obje-
tivos da nossa publicação, concebida como mais um suporte ao professor,
resolvemos encarar o desafio de oferecer a cada edição algumas sugestões sobre
novas tecnologias aos navegantes. Nosso alvo são principalmente aqueles me-
nos íntimos, aqueles que podem achar muito difícil se adaptar ao mundo em
redes e mudanças contínuas.
A ideia aqui não é apresentar uma simples listagem de endereços eletrô-
nicos, mas oferecer exemplos de ambientes que propiciem experiências peda-
gógicas inovadoras e que, em sua maioria, aliam um traço lúdico às atividades
pedagógicas. Todavia, teremos sempre o cuidado de indicar diferentes cami-
nhos possíveis. Poderemos apenas apontar um programa, aplicativo ou coisa
do tipo, tendo o cuidado de explicar o seu potencial em sala de aula. Apresen-
taremos sítios resultantes de iniciativas isoladas, de professores ou memoria-
listas, páginas sem apoio financeiro e recursos sofisticados, mas também sítios
eletrônicos construídos com amparo de órgãos de fomento e resultantes do
empenho de equipes de profissionais, nem sempre todos eles da História. O
ponto em comum será a capacidade que cada uma das experiências seleciona-
das terá de disponibilizar um olhar inovador no ensino de História.
Nesta edição, apresentamos exemplos de ‘viagens virtuais’, ‘museus digi-
tais’ e ‘educação e entretenimento’, cada um com uma pequena introdução.
Além disso, indicamos um ambiente como exemplo de ‘ferramenta para o

* Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).


** Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 307-311 - 2012


Dilton C. S. Maynard e Marcos Silva

ensino’, onde o destaque não é o ambiente em si, mas as alternativas pedagó-


gicas que ele disponibiliza.

1. Viagem virtual

Viagens virtuais podem ser uma das maneiras mais interessantes de le-
vantar informações sobre países e regiões. Em função do compromisso de
localizar o estudante no tempo e no espaço, esse recurso online pode utilizar a
ampla gama de possibilidades da Internet. Assim, será possível ensinar sobre
outros países e/ou regiões apresentando filmes (www.youtube.com/), imagens
de satélite e mapas (Google Earth e Google Maps), além de fotos, guias de
turismo online etc.

a) Viagem virtual à Índia: sites.google.com/site/viagemvirtualaindia


Nem sempre um professor necessita de maiores recursos para
construir ou acessar um ambiente com viagens virtuais. Um exem-
plo claro é essa viagem virtual à Índia. Com facilidade para nave-
gar e opções bem simples, o professor ou o aluno podem ter in-
formações sobre o país, bem como acessar vídeos e mapas que
informam sobre aspectos distintos da região. O formato simples
não prejudica a proposta e é, além de tudo, um convite a experi-
mentações no ensino de História.

b) Viagem virtual para São Paulo: www.sp360.com.br


Um ambiente pode ser interessante mesmo que ele não tenha sido
planejado originalmente como um sítio para o ensino de História.
Com recursos sofisticados, a página SP 360 possibilita um passeio
agradável e rico em informações. Merecem destaques as imagens
em 360 graus, que permitem ao navegante dar um giro em torno
de lugares que marcam a paisagem da capital paulista. Evidente-
mente, recomendamos ao professor que, caso pretenda visitar o
ambiente, formule antecipadamente um ‘roteiro de viagem’, de
forma a indicar aos alunos o que deve ser observado.

308 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


E-storia

2. Museus virtuais

Com o amplo processo de digitalização de todas as atividades e esferas


humanas, a moda atingiu uma das áreas mais tradicionais possíveis, o mundo
dos museus. A partir do exemplo dos principais museus internacionais como
o Louvre (França) e o Museu Nacional do Prado (Espanha), com suas galerias
online, não se concebe mais um projeto museológico atual sem a sua dimensão
no espaço cibernético. Assim, de modo geral, o professor poderá sugerir aos
estudantes atividades das mais diversas perspectivas cobertas pelos acervos
digitais.
Entre as experiências pedagógicas no ensino de História ligadas às novas
tecnologias, os museus virtuais talvez sejam aquelas mais conhecidas. Justa-
mente por isso, nem sempre é fácil selecionar os ambientes que podem ser
utilizados para enriquecer as atividades da sala de aula. Assim, optamos por
apresentar aqui dois tipos de experiências que, em pontos quase opostos, ofe-
recem suporte de igual relevância ao docente e ao aluno.

a) Museu Afro-Digital: www.museuafro.ufma.br


É um projeto sofisticado, que conta com recursos da Capes-Pro-
cultura e foi desenvolvido pelo Ceao/UFBA, além do apoio da
UFPE e da UFMA, esta através do seu Programa de Pós-Gradua-
ção em Ciências Sociais. Apresenta uma clara perspectiva de de-
mocratização do acesso ao conhecimento, aliando a facilidade
para navegar no ambiente à riqueza de seu acervo e a perspectivas
atenciosas ao abordar minorias étnicas e grupos historicamente
marginalizados. O museu ocupa-se com a digitalização de docu-
mentos, acervos e usos de novas tecnologias para valorizar as me-
mórias das culturas afrodescendentes.

b) Museu Virtual do Rio-Grande: www.riograndeemfotos.fot.br/


museuvirtual/
Trata-se de um ambiente criado sem recursos financeiros, sem
apoio governamental, mas isso não compromete a qualidade do
que foi selecionado para ser exposto. Disponibilizando diversos
tipos de documentos, o sítio deve ser visitado com atenção, pois

Junho de 2012 309


Dilton C. S. Maynard e Marcos Silva

aborda a memória regional de modo bem simplificado. Porém, é


exemplo de que mesmo sem grandes aportes financeiros e sem um
apelo altamente sofisticado é possível criar um ambiente que esti-
mule o interesse pela História Regional. O desafio do professor
está em selecionar as possíveis opções nele existentes que liguem
o conteúdo do sítio à História do Brasil, de forma a não enclausu-
rar a narrativa no Rio Grande do Sul. A página possui facilidade
para a navegação, permite cópias de seus conteúdos e download
das reproduções dos documentos nela disponibilizados.

3. Educação e entretenimento

Apesar de o processo ensino-aprendizagem incorporar uma carga de com-


promissos e exigir esforço, uma perspectiva que vem se consolidando nos últi-
mos tempos é a possibilidade de desenvolver atividades de ensino aliadas àque-
las que as pessoas comumente realizam com o objetivo principal de obter
prazer – o entretenimento. Assim, está se configurando um campo de pesquisa
e desenvolvimento chamado de edutainment, o popular ‘aprender brincando’.

a) Caça Digital ao Personagem: silva.marcos.sites.uol.com.br/meh/


cd.htm
O exemplo inicial oferecido é de uma atividade que foi desenvolvi-
da para alunos do Curso de História com o objetivo de fazê-los
explorar a milenar e cativante prática da proposição e solução de
enigmas. Assim, baseado nos princípios da emulação pela disputa
de enigmas e da aprendizagem mediada por computador, o profes-
sor sugeriu para a turma o desafio “Caça Digital ao Personagem”

b) Detetives do Passado: www.historiaunirio.com.br/numem/dete-


tivesdopassado/
Não se engane se esta página demorar a ser completamente visua-
lizada. Vale a pena a visita! “Detetives do Passado” é um projeto
inovador, desenvolvido pelo Núcleo de Documentação, História
e Memória (Numem) da UniRio e o pelo Centro de Estudos dos
Oitocentos (CEO) e financiado pela Faperj e pelo CNPq. A equipe

310 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


E-storia

concebeu um ambiente dinâmico, no qual é possível, como numa


atividade detetivesca, tentar resolver ‘casos’. A interface da página,
com armários e gavetas que se abrem e dão acesso a pastas com as
‘pistas’, certamente encanta alunos. Mas o mais importante é o
cuidado da equipe em oferecer suporte ao professor para que o
ambiente seja adequadamente explorado. A navegação pode ser
dificultada em algumas seções, talvez por conta da necessidade de
carregar imagens ou pelo tipo de conexão utilizada. Mas nada dis-
so deve impedir a experiência de convidar os alunos a serem de-
tetives e, desse modo, tornar a História ainda mais divertida.

4. Ferramentas para o ensino

Alguns recursos podem congregar não apenas um, mas diversos expe-
dientes pedagógicos. São ambientes que possibilitam desde viagens virtuais até
atividades que mesclam entretenimento e educação. Nesta edição, gostaríamos
de indicar um deles:

Artehistoria: www.artehistoria.jcyl.es
Ambiente em espanhol, a página Arte Historia oferece diferentes
ferramentas para o ensino de História. O sítio não se limita a uma
época específica, aborda assuntos que passam da Antiguidade
Clássica a temas recentes. Reúne biografias, mapas, animações e
conexão com o YouTube, entre outras opções. Os muitos recursos
fazem do sítio uma alternativa interessante para se encontrar
exemplos de experiências que podem ser levadas adiante de modo
interdisciplinar.

Junho de 2012 311


313
Detetives do passado no mundo do futuro:
divulgação científica, ensino de História e internet
Detectives of the past in the world of the future:
popularization of science, teaching History, and internet
Keila Grinberg*
Anita Almeida**

Resumo Abstract
O objetivo do texto é refletir sobre a di- The aim of this paper is to discuss the
vulgação científica, o ensino de História popularization of science, history tea-
e as possibilidades que a internet oferece ching and the possibilities the Internet
offers in this field. At the same time, we
nesse campo. E, ao mesmo tempo, dis-
intend to discuss a specific experience:
cutir uma experiência específica, a ela-
the website “Detetives do Passado” [De-
boração do site “Detetives do Passado”,
tectives of the Past], dedicated to the te-
produzido pelas autoras e dedicado ao aching of history and produced by the
ensino de história. authors.
Palavras-chave: divulgação científica; Keywords: popularization of science;
ensino de História; internet. history teaching; internet.

Os historiadores e a internet

Já chamada de ‘o quadro negro do futuro’, antes do entretenimento onli-


ne e do e-commerce, a internet, ao surgir, foi imediatamente atrelada a possi-
bilidades de renovação de métodos de ensino,1 mesmo que hoje dê para ver
que o mundo dos negócios avançou bem mais rápido no uso da rede do que o
da educação. A ideia de aliar os avanços tecnológicos e da comunicação a
novas formas de educar já seduzia professores e universidades desde pelo me-
nos a década de 1960, com a criação das primeiras Universidades Abertas na
Europa, dedicadas ao ensino a distância, mais ou menos na mesma época em

* Departamento de História, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). Av.


Pasteur, 458, Urca. 22290-240 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. keila@pobox.com
** Departamento de História, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). Av.
Pasteur, 458, Urca. 22290-240 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. anita.correialima@gmail

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 315-326 - 2012


Keila Grinberg e Anita Almeida

que a linguagem da educação em massa começava a mudar, e a ênfase na pa-


lavra ‘aprendizado’ ganhava espaço em relação à quase démodé ‘ensino’.2
Mas o espaço que as chamadas novas tecnologias ganharam no campo da
reflexão mais geral sobre Educação não parece ter encontrado correspondente
similar na área de História.3 Para além da utilização do computador como fer-
ramenta para construção de bancos de dados, principalmente por especialistas
em história econômica, quantitativa ou demográfica – procedimento feito des-
de a década de 1960 –, até recentemente foram poucos os historiadores que se
dedicaram a refletir sobre as mudanças que a rede mundial de computadores
traria à pesquisa, à produção e à divulgação do conhecimento em História.4
Como bem notou Camila Dantas, os primeiros historiadores a chegarem
à internet foram os amadores, seguidos por centros universitários e instituições
de memória. Atualmente, projetos de divulgação científica em História na
internet, a maioria localizada nos Estados Unidos, estão mesclados a reflexões
mais amplas sobre os documentos produzidos em meio digital e as novas for-
mas de realização de pesquisa acadêmica, como o projeto Digital History5,
desenvolvido por Daniel J. Cohen e Roy Rosenzweig na George Mason Uni-
versity, talvez o primeiro a, ao dirigir-se igualmente a historiadores profissio-
nais e amadores que elaboram projetos na internet, defender uma nova iden-
tidade para o historiador, expressa no
logotipo do grupo.6
Hoje, a maioria das atividades de
historiadores na internet é relativa à
digitalização de documentos e de
acervos de instituições, tanto para
preservá-los quanto para torná-los
disponíveis a pesquisadores e interes-
sados que dificilmente a eles teriam
acesso. No Brasil, além de iniciativas
governamentais (como o Projeto Res-
gate,7 que, em esforço sem preceden-
tes, digitalizou aproximadamente 150
mil documentos, com 1,5 milhão de
páginas manuscritas, do acervo do Ar-
quivo Histórico Ultramarino de Lis-

316 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Detetives do passado no mundo do futuro

boa), e da atuação de instituições como a Biblioteca Nacional e o Arquivo


Nacional, fundamentais na discussão pública sobre a digitalização de acervos,
são importantíssimas as iniciativas de grupos de pesquisa, que vêm elaboran-
do projetos de digitalização e disponibilização online de documentos de outro
modo praticamente inacessíveis ao pesquisador. Exemplar, nesse caso, é o tra-
balho do Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI) do Departamen-
to de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), que vem, median-
te projetos coletivos ou individuais, se dedicando a digitalizar documentos,
que incluem até mesmo acervos de outros países, como Cuba e Angola.8 Outro
bom exemplo são projetos de realização colaborativa de bancos de dados di-
gitais, como fazem pesquisadores do Centro de Pesquisas em História Social
da Cultura (Cecult) da Unicamp e do Centro de Estudos do Oitocentos (CEO).9
Esses avanços na disponibilização e tratamento de fontes históricas nos
colocam diante de novas e complexas questões: por exemplo, a de como pre-
servar os documentos já criados em formato digital.10 Esse e outros desafios
certamente acompanharão o trabalho dos historiadores do futuro.
Mas, passadas várias décadas da invenção do ‘quadro negro do futuro’, e
apesar de iniciativas muito importantes11 que ajudam a mostrar a riqueza das
possibilidades nessa área, os usos didáticos da internet, em sentido mais global,
ainda parecem bem modestos.

Os historiadores, o ensino de História


e a divulgação científica

Uma questão que talvez esteja relacionada ao pouco uso da internet, de


maneira mais específica, como ferramenta para a divulgação científica e o en-
sino de História, é o fato de que o interesse pelo próprio ensino de História,
como área de reflexão e de produção, ainda é restrito na universidade. Um
fenômeno que se observa é que, embora o campo tenha crescido bastante nos
últimos anos, ainda são relativamente poucos os historiadores que se dedicam
a pensar a forma como a História é ensinada nas escolas. Evidência disso é o
fato de serem praticamente inexistentes os programas de pós-graduação no
Brasil a se dedicarem ao assunto. Dos 63 cursos existentes na área de História
no início de 2012, nenhum tem sua área de concentração dedicada ao Ensino
de História. Há apenas alguns programas, como é o caso da Universidade Es-

Junho de 2012 317


Keila Grinberg e Anita Almeida

tadual de Londrina (UEL) ou da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), que


têm linhas de pesquisa dedicadas à pesquisa no campo. Para se ter ideia do
contraste com outras áreas, existem hoje 72 cursos de pós-graduação no Brasil
dedicados exclusivamente ao ensino de ciências – física, química, biologia,
ciências da terra – e matemática, entre mestrado profissional (39), mestrado
acadêmico e doutorado. Aliás, o número desses cursos cresceu tanto que eles
deixaram de entrar na rubrica “Outros”, na classificação das áreas de avaliação
da Capes, para ter nomenclatura própria: “Ensino”.12 O mesmo é observado
quando se analisa o número de professores universitários de História que se
dedica à redação de livros didáticos e demais produtos dirigidos ao público
escolar. Como exemplo, veja-se o caso do Programa Nacional do Livro Didá-
tico (PNLD) do Ministério da Educação. Na análise dos livros a serem adota-
dos em 2012, há vários professores universitários de História avaliando as
coleções, mas poucos escrevendo.13 Além disso, um aspecto da questão que
precisa ser mencionado é que a Capes, por decisão dos comitês de área – e é
assim na área de História – não considera o livro didático como produção in-
telectual qualificada dos pesquisadores, item de fundamental importância na
avaliação dos programas de pós-graduação.14
Há alguns indícios, no entanto, de que esse estado de coisas pode estar
mudando – e para melhor. Nesse ponto, as agências de fomento têm ocupado
papel importante, tanto o CNPq, através do prêmio José Reis de divulgação
científica e tecnológica, quanto a Faperj, por exemplo, por meio dos editais de
Difusão e Popularização da Ciência e Tecnologia no Estado do Rio de Janeiro,
existente pelo menos desde 2007, e de Apoio à Produção de Material Didático
para Atividades de Ensino e/ou Pesquisa, existente desde 2009. E há o sucesso
de iniciativas recentes, no campo da divulgação, como a Revista de História da
Biblioteca Nacional,15 ou no campo da pesquisa, como as atividades do grupo
de pesquisa Oficinas de História, composto por pesquisadores de várias insti-
tuições de ensino e pesquisa do país, que desenvolve, entre outras atividades,
o projeto Caixa de História.16

O passado, a História e as questões do futuro

Voltando aos historiadores e à internet, no momento parece que estamos


diante de vários desafios. O primeiro é o já mencionado anteriormente, que

318 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Detetives do passado no mundo do futuro

mobiliza, além de historiadores, arquivistas e cientistas da informação: o de-


safio da preservação da documentação, produzida em vários suportes, inclu-
sive a própria internet.
Outro desafio é a reflexão sobre a forma como o público em geral tem
dialogado com os sites que disponibilizam documentos históricos, como pro-
cessos criminais, registros de batismo, fotografias, relatórios oficiais etc. Hoje
é muito mais fácil, para estudantes e interessados em geral, obter informações
retiradas das próprias fontes históricas, algo anteriormente feito apenas pelos
historiadores que sabiam localizá-las no mundo real.
Nesse sentido, a maior facilidade em consultar documentos de épocas e
locais variados significa uma maior divulgação do conhecimento histórico?
Por conta da internet, estaríamos mais perto de uma História Pública, no sen-
tido atribuído ao termo pelo National Council on Public History, qual seja, o
de tornar a História, seus procedimentos metodológicos e suas referências mais
acessíveis ao grande público?17
Acreditamos que não. Sendo um pouco pessimistas, talvez um dos efeitos
de tanta facilidade de acesso, neste caso principalmente a textos, possa até ter
sido o contrário: apesar de ainda não termos estatísticas a respeito, é flagrante
o aumento de plágios em trabalhos acadêmicos, e não há professor universi-
tário que não tenha uma história triste para contar sobre a ocasião em que se
sentiu um policial, procurando crimes de autoria no Google.18
Talvez esteja aí a maior dificuldade, e ao mesmo tempo o maior desafio,
que une tanto o ensino de História quanto a divulgação científica na internet.
Ao invés de apenas combater o plágio – que naturalmente já existia bem antes
de serem criados os mecanismos de busca –, trata-se de evidenciar, através da
internet, o processo de produção do conhecimento, a começar pela própria
noção de autoria, tão discutida no âmbito da criação artística.19 Afinal, a aces-
sibilidade a textos e documentos proporcionada pela rede mundial de compu-
tadores, para ser bem usada, requer conhecimentos prévios sobre confiabili-
dade e relevância das informações a serem obtidas na internet. Sem elas, o
leitor – ou o usuário do sistema – não consegue avançar na leitura e na produ-
ção de texto (de qualquer texto, de uma tese a um comentário em um blog).
Como fazer isso? Um caminho possível é criar mecanismos que permitam
ao usuário – leitor, estudante, qualquer que seja seu login – conhecer as etapas
do processo de produção do conhecimento em História. Assim, saber ler do-

Junho de 2012 319


Keila Grinberg e Anita Almeida

cumentos de época, contextualizá-los, criticá-los, cotejar as informações obti-


das com outros documentos e com outros textos e verificar a procedência de
informações obtidas nesses textos são alguns dos procedimentos que ajudam
as pessoas a observar, analisar e classificar informações de qualquer natureza.
No caso das informações de natureza histórica, isso é fundamental, tanto para
os estudantes de História, quanto para os interessados no assunto.
Refletir sobre o processo de produção do conhecimento histórico talvez
não seja o objetivo inicial das pessoas interessadas em História – público po-
tencial das ações de divulgação científica – que buscam a internet como forma
de aprimorar seus conhecimentos. Mas talvez esta seja uma surpresa que os
historiadores podem reservar a seus leitores: além de divulgar o conhecimen-
to produzido nas universidades, divulgar também seu processo de produção.
E a internet, para isso, é um meio extraordinário.

O site “Detetives do Passado”

O site “Detetives do Passado” foi pensado como um espaço de atividades


de investigação e pesquisa escolar, voltado para alunos da Educação Básica,
tanto dos últimos anos do ensino fundamental, como do ensino médio. Ainda
em fase experimental, nasceu da tentativa de lidar com algumas questões que
envolvem o uso da internet no ensino de História, através do desafio que é a
elaboração de um material específico. E é preciso dizer que se é possível ima-
ginarmos que as possibilidades nessa área são amplas, as dificuldades também
não são pequenas. Por ser um campo ainda novo, os procedimentos e recursos
didáticos criados no mundo virtual da internet ainda não foram ampla e glo-
balmente testados, por alunos e professores, e tampouco existem práticas con-
solidadas. Esse é um campo em que ainda estamos mais ou menos tateando no
escuro. E foi assim, como um pequeno experimento, em área que se imagina
tão vasta e ainda pouco explorada, que o site foi desenvolvido.
O Projeto foi financiado pela Faperj, mediante o Edital de “Difusão e
Popularização da Ciência e Tecnologia no Estado do Rio de Janeiro”, de 2007,
e obteve apoio da Faperj e do CNPq, através do Programa de Apoio a Núcleos
de Excelência (Pronex) “Dimensões da cidadania no Oitocentos”, liderado
pelo prof. dr. José Murilo de Carvalho (UFRJ). E está disponível na página do
Núcleo de Documentação, História e Memória da UniRio (Numem).20

320 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Detetives do passado no mundo do futuro

Como ajudar os alunos a estudar história navegando na rede? Uma das


grandes possibilidades que a internet trouxe foi justamente a da facilidade de
obter informações, inclusive sobre temas históricos. Todo mundo sabe que
basta digitar um evento, uma data, um personagem, sobre qualquer lugar do
planeta, em qualquer site de busca, que em poucos segundos há na tela bem
mais resultados do que alguém é capaz de acessar. A dificuldade de estudar
história usando a internet está muito longe de estar relacionada à escassez de
recursos, e mesmo considerando apenas os sites de instituições de pesquisa que
hoje dão acesso a documentos digitalizados, ainda assim estamos falando de
milhões de documentos. A dificuldade certamente não está na quantidade de
material disponível, e quase poderíamos dizer que, ao contrário, o perigo é ser
soterrado. Na internet, então, o mais importante é saber fazer escolhas e ter
um roteiro de pesquisa.
Voltando à ideia da importância de o aluno, ao mesmo tempo em que tem
acesso a determinado conhecimento histórico, ter também contato com o pro-
cesso de produção desse conhecimento, o Projeto foi elaborado com a preo-
cupação, por um lado, de divulgar pesquisas recentes na área de História e, por
outro, mas não menos importante, de poder funcionar como uma ferramenta
para ‘aprender a investigar’.
Assim foi desenvolvida a ideia de oficinas, cuja realização se dá através do
contato com as fontes, a matéria-prima dos historiadores.21 A metodologia de
trabalho a ser desenvolvida nas oficinas – tanto na sua elaboração quanto no
momento de serem colocadas em prática por professores e alunos – segue
como inspiração a perspectiva do método indiciário, tal como explicitada por
Carlo Ginzburg em Mitos, emblemas e sinais.22 Com base no paralelo com o
trabalho do detetive, o objetivo foi mostrar como o conhecimento histórico é,
necessariamente, fruto de uma investigação. O objetivo último, no entanto, era
que os alunos, ao realizarem as oficinas propostas, exercitassem a autonomia.
E assim fossem animados a seguir navegando pelo enorme arsenal de infor-
mações – inclusive históricas – que a internet fornece. Mas com seus próprios
olhos.
Como um projeto piloto, foram criadas oito atividades, todas com o tema
da escravidão no século XIX. A escolha do tema da escravidão esteve relacio-
nada a dois contextos. Em primeiro lugar, esse é um tema em que as pesquisas
históricas se desenvolveram notavelmente nos últimos anos. Além disso, o

Junho de 2012 321


Keila Grinberg e Anita Almeida

ensino de história da África e cultura afro-brasileira foi tornado obrigatório


no Brasil desde a promulgação da Lei 10.639/2003, e regulamentado através
das “Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-
-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana”, de 2004.
Era possível, então, que o material se inserisse no conjunto das várias iniciati-
vas que têm sido realizadas no sentido de promover o ensino do tema.
Para a criação das oficinas, optamos por selecionar casos e documentos
reais, conservados em arquivos públicos brasileiros e de outros países, de ma-
neira que os alunos do ensino fundamental e médio pudessem ter a experiên-
cia de lidar com documentação utilizada nas pesquisas históricas.
As oito oficinas foram organizadas cronologicamente. A primeira, “Re-
beldia no Engenho Santana”, baseia-se em um acordo ou ‘tratado de paz’, o
“Tratado proposto a Manoel da Silva Ferreira pelos seus escravos durante o
tempo em que se conservaram levantados”, enviado pelos escravos do engenho
Santana a seu senhor, por volta de 1789. Esse e outros documentos relativos
ao engenho baiano estão depositados na Torre do Tombo, em Portugal, e fo-
ram utilizados pela primeira vez pelo historiador Stuart Schwartz, em seu livro
Segredos internos.23 Já a última oficina, “Padeiros livres, padeiros escravos e
cartas de alforria falsas”, gira em torno de um documento, conservado no
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro e escrito no ano de 1934, mas
que remete a acontecimentos que se passaram nos últimos anos da escravidão,
quando escravos e livres trabalharam lado a lado. Os outros casos analisam o
processo de uma escrava contra seu senhor, no Desterro (Florianópolis), em
1813, a história de um ‘preto forro’ que em 1819, no Rio de Janeiro, pede au-
torização para exercer a profissão de sangrador, e a vida em uma grande fa-
zenda no Vale do Paraíba fluminense, observada a partir de um quadro pinta-
do em 1844. Temos ainda a história da luta de um grupo de africanos libertos
para conseguir a ajuda dos ingleses no intuito de voltar para a África e fundar
uma cidade em Cabinda, em 1851, além de uma oficina sobre o trabalho dos
escravos carregadores de piano, na década de 1860, no Rio de Janeiro, em que
se contou com a ajuda de um romance de Machado de Assis. E, finalmente, o
tema da abolição, investigado com base na poesia de Castro Alves.
Além dos documentos-chave usados na montagem de cada oficina, elas
foram preenchidas com uma série de outras fontes, mapas, aquarelas, relatos
de viajantes, trechos de romances, algumas tabelas com dados consolidados e

322 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Detetives do passado no mundo do futuro

citações de trechos de obras historiográficas, de maneira que todo esse material


pudesse ser analisado, comparado e inter-relacionado, de diversas formas, du-
rante a realização da atividade.
Todas as oficinas foram construídas sobre um esquema básico: o caso, a
tarefa, o passo a passo e a solução. A partir do contato inicial com o ‘caso’, o
aluno precisa consultar algumas ‘pistas’ (fontes de pesquisa), que são acessadas
ao longo do passo a passo, e que ajudam na realização da tarefa proposta. Ele
conhece a ‘solução’ – ligada ao documento central, com base no qual aquela
oficina foi montada – apenas no final. A ideia era que, invertendo a lógica mais
comum nos livros didáticos, o aluno não usasse as fontes apenas como ilustra-
ção, ou que não fosse incentivado a analisar as fontes somente depois de já ter
lido sobre aquele assunto, como um complemento do aprendizado, mas, ao
contrário, que as fontes fossem indispensáveis para a elaboração da atividade.
Não há, portanto, textos básicos ou explicativos sobre o tema, nas oficinas.
Para a solução dos casos, os alunos são convidados a participar, ora como
pessoa próxima, ora como o próprio protagonista da história, escravo, descen-
dente ou liberto. Escolhemos abordar histórias que colocassem em evidência
a diversidade da experiência de escravos, libertos e seus descendentes no sécu-
lo XIX, ainda que todas essas experiências estivessem ligadas, de uma maneira
ou de outra, pela marca do cativeiro. Além disso, pretendemos criar situações
em que os estudantes pudessem viver a experiência de ficar no lugar de pessoas
reais, que viveram situações reais, e que, em alguma medida, e apesar da escra-
vidão, puderam ser sujeitos da sua própria história.
E por falar em protagonistas, o nosso objetivo era que o aluno pudesse ter
a experiência de ser o protagonista em relação, também, ao seu processo de
aprendizagem, aprendendo a olhar, julgar, medir e comparar, a criar hipóteses
de investigação, a sustentar uma argumentação e, afinal, a criar sua própria
maneira de ver as coisas. E que assim pudesse ficar um pouco mais preparado
para navegar, e pegar bons peixes, no mar que é a internet. Esse foi o nosso
desejo, a nossa aposta.

NOTAS

1
A expressão é do Secretário de Educação de Bill Clinton, dita em 1996, por ocasião da
implantação da ligação, por telefone fixo, das salas de aula da Califórnia com a internet.

Junho de 2012 323


Keila Grinberg e Anita Almeida

Citada em BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Uma história social da mídia: de Gutenberg à in-
ternet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. p.303.
2
A Universidade Aberta da Grã-Bretanha (Open University) formou sua primeira turma
em 1971. A expressão ‘sociedade de aprendizagem’, depois de ter sido utilizada pelo segun-
do reitor da nova universidade das Nações Unidas, foi usada no título de estudo produzido
pela Comunidade Europeia em 1995. BRIGGS; BURKE, 2006, p.307-308.
3
Ver, a respeito, GALLO, Silvio; RIVERO, Cléa Maria (Org.) A formação de professores
na sociedade do conhecimento. Bauru (SP): Edusc, 2004. Ver também o interessante, em-
bora um tanto ingênuo, vídeo sobre o impacto das novas tecnologias na educação, postado
por Bruno Leal na rede social Café Historia. Disponível em: cafehistoria.ning.com/
video/o-impacto-das-novas; Acesso em: 5 mar. 2012. Outra forma de acessar o vídeo é
pelo YouTube: www.youtube.com/watch?v=Uppyy6eRcBQ&feature=player_embedded;
Acesso em: 5 mar. 2012.
4
Ver, a respeito, FIGUEIREDO, Luciano. História e informática: o uso do computador. In:
CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Org.) Domínios da História. Rio de Ja-
neiro: Campus, 1997. Para uma história da relação entre os historiadores e a internet, ver a
excelente dissertação de mestrado de DANTAS, Camila Guimarães. O passado em bits:
memórias e histórias na internet. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação
em Memória Social, UniRio. Rio de Janeiro, 2008.
5
DANTAS, 2008, p.50. Ver o projeto Digital History em: chnm.gmu.edu/digitalhis-
tory/; Acesso em: 5 mar. 2012.
6
A imagem também foi citada em DANTAS, 2008, p.49.
7
O Banco de Dados do Projeto Resgate pode ser acessado no Centro de Memória Digital
da Universidade de Brasília, em www.cmd.unb.br/resgate_index.php.
8
As atividades do LABHOI podem ser acessadas em www.historia.uff.br/labhoi/. Ver, por
exemplo, os projetos de digitalização desenvolvidos por Mariza de Carvalho Soares, como
“A escravidão africana nos arquivos eclesiásticos”. Disponível em: www.historia.uff.br/
curias/modules/tinyd0/; Acesso em: 5 mar. 2012.
9
Para acessar os projetos desenvolvidos por esses grupos de pesquisa ver, respectivamente,
www.unicamp.br/cecult/ e www.ceo.historia.uff.br/.
10
Ver, por exemplo, os projetos desenvolvidos pelo Arquivo Nacional (www.arquivona-
cional.gov.br) e pela Biblioteca Nacional (www.bn.br). A questão da relação entre a His-
tória e a preservação de documentos criados em suporte digital vem sendo desenvolvida
por Camila Guimarães Dantas em seu projeto de doutorado, no Programa de Pós-Gradu-
ação em Memória Social da UniRio.
11
O Arquivo Nacional possui um grande Projeto – “O Arquivo Nacional e a História Luso-
-Brasileira” – elaborado com base na documentação da instituição, referente aos séculos
XVI ao XIX, e voltado, ao mesmo tempo, para a difusão do acervo e para a sala de aula.
Disponível em: www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.

324 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Detetives do passado no mundo do futuro

htm?sid=134; Acesso em: 5 mar. 2012. Ver também, para um exemplo na universidade, o
Projeto “Pesquisa e Produção de Material Didático para o Ensino de História do Brasil
Colonial e República”, coordenado pelos professores Luiz Carlos Villalta e Priscila Bran-
dão Antunes, da UFMG. Disponível em: www.fafich.ufmg.br/pae/; Acesso em: 5 mar.
2012. A ideia aqui não é, nem o espaço permite, a de um inventário dos diversos projetos
em andamento nas universidades e em outras instituições de pesquisa. Mas um inventário
desse tipo seria importante. Como exemplo de portal dedicado ao Ensino de História em
outros países, ver teachinghistory.org/, da George Mason University, Estados Unidos;
Acesso em: 5 mar. 2012.
12
Os dados podem ser verificados no site da Capes: www.capes.gov.br. Para os dados
sobre a área de História, ver diretamente: conteudoweb.capes.gov.br/conteudoweb/Projet
oRelacaoCursosServlet?acao=pesquisarIes&codigoArea=70500002&descricaoArea=CI%C
ANCIAS+HUMANAS+&descricaoAreaConhecimento=HIST%D3RIA&descricaoAreaAv
aliacao=HIST%D3RIA; Acesso em: 5 mar. 2012 (o site foi atualizado em 2 mar. 2012). Para
os dados sobre a área de Ensino, ver: conteudoweb.capes.gov.br/conteudoweb/ProjetoRel
acaoCursosServlet?acao=pesquisarIes&codigoArea=90200000&descricaoArea=MULTIDI
SCIPLINAR+&descricaoAreaConhecimento=ENSINO&descricaoAreaAvaliacao=ENSI
NO; Acesso em: 5 mar. 2012.
13
Ver, para o ensino fundamental, o Guia de livros didáticos: PNLD 2011: História
(2010). Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica. Para o
ensino médio, o Guia de livros didáticos: PNLD 2012: História (2011). Os volu-
mes podem ser acessados em: www.fnde.gov.br/index.php/pnld-guia-do-livro-didati-
co; acesso em: 5 mar. 2012.
14
O Conselho Técnico-Científico da Educação Superior da Capes aprovou em 24 de agosto
de 2009 o Roteiro para Classificação de Livros, que serviu de orientação para a classificação
de livros com base na avaliação trienal de 2010. Disponível em: www.capes.gov.br/images/
stories/download/avaliacao/Roteiro_livros_Trienio2007_2009.pdf; Acesso em: 5 mar. 2012).
Por decisão da área de História, os livros didáticos elaborados por pesquisadores devem ser
considerados como ‘inserção social’, item de menor importância na avaliação dos programas
de pós-graduação. Os critérios adotados pela área de História estão no Relatório de Avaliação
2007-2009 – trienal 2010. Disponível em: trienal.capes.gov.br/wp-content/uploads/2010/12/
HIST%C3%93RIA-RELAT%C3%93RIO-DE-AVALIA%C3%87%C3%83O-FINAL-dez10.
pdf; Acesso em: 5 mar. 2012.
15
A Revista tem uma seção – “Sala de aula” – voltada especificamente para o ensino de
História. Disponível em: www.revistadehistoria.com.br/sala-de-aula; Acesso em: 5 mar.
2012.
16
Sobre o grupo Oficinas de História, suas atividades e sua produção acadêmica, ver: www.
oficinasdehistoria.com.br/; Acesso em: 5 mar. 2012. O projeto Caixa de História pode ser
conhecido em projetocaixadehistoria.blogspot.com/; Acesso em: 5 mar. 2012.
17
National Council on Public History. Disponível em: ncph.org/cms/; Acesso em: 5 mar.
2012.

Junho de 2012 325


Keila Grinberg e Anita Almeida

18
Ver, a respeito, o artigo de Brent Staples, “Cutting and Pasting: a senior thesis”, publica-
do no New York Times em 12 jul. 2010. Disponível em: www.nytimes.com/2010/07/13/
opinion/13tue4.html?_r=1&src=me&ref=opinion; Acesso em: 8 set. 2010.
19
Neste sentido, são conhecidas as proposições de Gilberto Gil para a flexibilização da le-
gislação do direito autoral. Ver o artigo de Gil, “Por uma reforma da lei do direito autoral”,
publicado em O Globo em 11 nov. 2007. Disponível em: www.creativecommons.org.br/
index.php?option=com_content&task=view&id=90&Itemid=1; Acesso em: 5 mar. 2012.
Alguns professores vêm encontrando alternativas interessantes para lidar com o plágio
realizado pelos alunos na internet, principalmente da Wikipedia: ver, por exemplo, o pro-
jeto de atualização de verbetes da Wikipedia desenvolvido por Juliana Bastos Marques, do
Departamento de História da UniRio. Mais informações sobre o projeto podem ser encon-
tradas em: wikipedianauniversidade.blogspot.com/; Acesso em: 5 mar. 2012.
20
A página do Numem é historiaunirio.com.br/numem/index.php, e o endereço do
Projeto é www.historiaunirio.com.br/numem/detetivesdopassado/. Como o acesso à inter-
net ainda é difícil em muitas regiões e escolas, foi feita uma edição em CD-ROM, com o
mesmo conteúdo do site, para ser distribuída às escolas.
21
As oficinas tiveram como inspiração as webquests, atividades de ensino baseadas na web,
principalmente o site canadense Mystery Quests: www.mysteryquests.ca/indexen.html;
Acesso em: 5 mar. 2012.
22
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: _______. Mitos, emble-
mas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.143-179.
23
SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São
Paulo: Companhia das Letras, 1985. As referências completas dos documentos utilizados
nas oficinas podem ser encontradas no próprio site.

Artigo recebido em 10 de janeiro de 2012. Aprovado em 22 de março de 2012.

326 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


327
Historiografia e Nação no Brasil – um clássico e
suas possibilidades, da gênese da historiografia
ao lugar da História Ensinada nos dias de hoje
Historiografia e Nação no Brasil – a classic and its possibilities,
from the beginnings of historiography until today
Mauro Cezar Coelho*

Guimarães, Manoel Luiz Salgado


Historiografia e Nação no Brasil (1838-1857)
Trad. Paulo Knauss e Ina de Mendonça
Rio de Janeiro: Ed. Uerj, 2011. 284p.

O livro de Manoel Luiz Salgado Guimarães, Historiografia e Nação no


Brasil (1838-1857),1 me fez reviver, pelo que recordo, a primeira vez em que a
História me chamou atenção: uma visita ao Museu Histórico Nacional, no
começo da década de 1970. Lembro ter notado a convergência entre o que
aprendia nos livros didáticos, nas revistas ilustradas, nas festas cívicas e na
narrativa das professoras e o que via no Museu: uma história de grandes ho-
mens que superavam as limitações de seu tempo e o moldavam à sua vontade.
O livro de Manoel Guimarães esclarece as origens da cultura histórica que
engendrou a constatação feita por mim, naquela visita.
Ao desvendar as raízes da historiografia brasileira, Manoel Guimarães
aponta os signos que a demarcaram desde o início. Essa, desde onde percebo,
é uma contribuição importante e oportuna, no momento em que a formação
do historiador passa por uma inflexão decisiva e o seu mais significante campo
de atuação vive uma crise surda. A distinção dos cursos de bacharelado e li-
cenciatura e os questionamentos sobre a importância da área de História na
Educação Básica reeditam questões análogas àquelas presentes na origem da
disciplina no Brasil.

* Faculdade de História, Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade Federal


do Pará (UFPA). Av. Augusto Correa, 1, Guamá. 66075.110 Belém – PA – Brasil. mauroccoelho@
yahoo.com.br

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 329-333 - 2012


Mauro Cezar Coelho

O livro abarca os primeiros vinte anos de atuação do Instituto Histórico e


Geográfico Brasileiro (IHGB). Nesse período, Manoel Guimarães identifica o
“processo de promoção da nação brasileira”, quando os estudos históricos bus-
caram atender aos objetivos de consolidação do Império e de formação da nação.
Daí terem assumido importância política, a qual condicionou os seus primeiros
passos e lhes delegou algumas de suas características mais duradouras.
A análise encaminha as conexões havidas entre os objetivos políticos e
ideológicos do Império e a escrita produzida pelo IHGB. Identifico, nela, três
movimentos. Primeiramente, as questões que importavam ao recém-constitu-
ído Império do Brasil: o contexto geopolítico no qual o país estava inserido; as
relações entre as diversas regiões do Império; o perfil populacional, com imen-
sas parcelas da população consideradas impróprias, diante do modelo de nação
almejado. Em seguida, o perfil dos intelectuais ligados ao instituto. Em que
pesem as diferenças de origem social, tinham em comum a formação – a Uni-
versidade de Coimbra – e a carreira – marcadamente dependente das oportu-
nidades abertas pelo serviço público. Finalmente, a produção do IHGB. A
questão indígena, o reconhecimento do território e os fatos históricos regionais
ocuparam grande parte da produção da revista trimestral do instituto.
Os três movimentos sustentam um exame minucioso da cultura histórica
que deu origem à historiografia brasileira. A análise que deles resulta desven-
da os vínculos que ligavam o IHGB ao Estado imperial, tanto do ponto de
vista programático (dos objetivos do instituto) quanto do ponto de vista ope-
racional (a sua manutenção). Ela estabelece a identificação do instituto brasi-
leiro com o modelo francês no qual se pautava. Ela esquadrinha a produção de
seu sócio mais importante, Francisco Adolfo de Varnhagen, percebido como
o formulador “da base da nacionalidade brasileira” a partir da perspectiva da
elite imperial.
Trata-se de uma história da historiografia brasileira, demarcada pela in-
dicação do significado assumido por ela, em meados do século XIX: para os
sócios do instituto, a História constituía uma instância política – tanto de seu
aprendizado, quando do seu exercício. Nesse sentido é que Manoel Guimarães
encaminha a visão de história compartilhada pelos homens do instituto: uma
história que se pretendia um manancial de exemplos e lições para os governos
e comprometida com o progresso, desde certa perspectiva. Tal visão sustentou
o caráter civilizador da escrita de uma História do Brasil, pelo IHGB, concre-

330 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Historiografia e Nação no Brasil – um clássico e suas possibilidades

tizado, sobretudo, pela consolidação de uma narrativa histórica que integrava


os diversos elementos da população em acordo com uma ordenação que de-
signasse o lugar de cada um, segundo uma hierarquia bem definida.
Da consideração da obra de Varnhagen, para quem a herança europeia
deveria constituir a matriz da nacionalidade, emerge o argumento central do
livro. A escrita da história do IHGB, demarcada pelos compromissos políticos
com o Império, elegeu o Estado como principal agente, como “o motor da
vida social”, instituindo um ideal de nacionalidade profundamente dependen-
te dos interesses da classe dirigente e por ela demarcado. Da mesma forma, ela
pretendeu “gerar sentimentos condicionadores de uma comunidade como
passo relevante para o surgimento da nação brasileira” (p.229-258). A história
formulada a partir desses princípios acentuava a participação dos colonos
brancos no passado e encaminhava a sua liderança no presente e no futuro.
Ela orientava uma visão do passado que delegava para as margens imensas
parcelas da população brasileira.
A reflexão presente em Historiografia e Nação no Brasil (1838-1857), des-
de a publicação de seu resumo, deu azo a diversos estudos sobre a trajetória da
disciplina, conforme apontam Paulo Knauss e Temístocles Cézar.2 Essa, po-
rém, não é sua única contribuição. Ela nos convida a refletir, também, sobre o
quanto aquelas raízes permanecem latentes na cultura histórica, especialmen-
te aquela difundida pelo saber histórico escolar. Esse, me parece, é um desafio
importante que deriva da obra de Manoel Luiz Salgado Guimarães.
A remissão inicial à visita ao Museu Histórico Nacional e a relação que
estabeleci, quando criança, entre o seu acervo e a narrativa que a disciplina
História me apresentava não é fortuita. Ela ilustra a permanência daquele sig-
no inicial que demarcou a historiografia brasileira e, sobretudo, a memória
histórica. Manoel Guimarães deixa claro que a historiografia brasileira nasceu
livre dos vínculos acadêmicos e em estreita relação com os imperativos políti-
cos. Essa condição inicial foi decisiva para a produção subsequente, mesmo
após a emergência de uma historiografia abalizada pelos ditames acadêmicos,
determinando os rumos e usos da História entre nós. É certo que, desde a
década de 1930, a historiografia problematiza tal herança, mas é igualmente
certo que se a historiografia deixou de cumprir aquela função inicial e traçou
outros rumos para si, o Ensino de História ainda se vê às voltas com ela.

Junho de 2012 331


Mauro Cezar Coelho

Ainda na década de 1970 e na seguinte, os historiadores que refletiam


sobre o Ensino de História assumiram um novo compromisso: formar o cida-
dão – um objetivo relacionado aos ideais democráticos que lutavam para afir-
mar-se ao longo e ao final da Ditadura Militar. Desde então, ‘formar o cidadão
crítico’ tem se constituído no apanágio do Ensino de História. A partir do que
pontua a reflexão de Manoel Guimarães, poder-se-ia argumentar que a matriz
inicial não foi superada, mas substituída.3 Não obstante, ela provoca a reflexão
sobre o estatuto recentemente proposto e, principalmente, sobre a função e a
importância do Ensino de História na Educação Básica, sua relação com a his-
toriografia e seu lugar na constituição da memória histórica do Brasil de hoje.
Por mais de século e meio, os professores de História foram vistos (e se
viram, também) como os responsáveis por transmitir a narrativa que inseria
crianças e adolescentes no universo do qual faziam parte. Mesmo diante das
críticas formuladas nas décadas de 1970 e 1980, essa responsabilidade perma-
neceu inalterada. Grande parte das aulas de história configura narrativas sobre
o passado brasileiro e ocidental, ainda de uma perspectiva eurocêntrica – re-
sultado, também, da matriz dos cursos de formação de professores. Dois fato-
res provocam a alteração desse quadro, desde fora, e colocam em questão a
função da disciplina História em sala de aula: em primeiro lugar, a emergência
de outros espaços a partir dos quais a memória histórica se constitui; em se-
gundo lugar, a inclusão de novos agentes na narrativa sobre a formação do
Brasil (refiro-me à inclusão da História da África, da Cultura Afro-brasileira
e da História Indígena, na Educação Básica).
O livro de Manoel Luiz Salgado Guimarães sinaliza os caminhos a serem
percorridos pelas reflexões que pretendam elucidar a trajetória da disciplina.
Ele permite, portanto, entrever as questões que devem ser discutidas no que se
refere à dimensão que incorpora e exige a atuação de um número imenso de
historiadores: a Educação Básica. Desde onde falo, percebo três linhas de in-
vestigação necessariamente interligadas: a reflexão sobre a trajetória dos cursos
de formação de professores em História – uma História da Formação; a refle-
xão sobre a prática docente em História – uma História do Ensino de História;
e a reflexão sobre o estatuto do ensino de história na Educação Básica – uma
História da Cultura Histórica Escolar.
Historiografia e Nação no Brasil (1838-1857) nasceu clássico. Ele não so-
mente demarca uma periodização para a História da Historiografia, indicando

332 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Historiografia e Nação no Brasil – um clássico e suas possibilidades

o significado assumido por ela em dado momento, como inicia um campo de


estudos. Isso já seria suficiente para torná-lo obra obrigatória. Mas, além de
soberbamente escrito (o que acrescenta prazer à leitura), seu brilhantismo de-
corre das questões que suscita não apenas sobre o passado da disciplina, mas
sobre seu presente e seu futuro. Ao desvendar as origens da historiografia
brasileira, ele nos convida a pensar os percursos traçados por ela e seus desdo-
bramentos. Neste momento, segundo me parece, esse convite deve ser aceito,
de modo a refletir sobre seus rumos. Há que se discutir qual o lugar da Histó-
ria ensinada, qual a formação engendrada por ela, que compromissos lhe são
pertinentes. Nosso agradecimento ao saudoso historiador pelo ensinamento e
pela provocação. Boa leitura a todos!

NOTAS
1
Originalmente uma tese de doutoramento defendida em 1987 na Universidade Livre de
Berlim, sob a orientação do professor Hagen Schulze. Desde 1988, um resumo da tese
orienta um sem-número de reflexões sobre o período: GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado.
Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto
de uma História Nacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro: FGV, n.1, p.5-27, 1988.
2
Ambos assinam o belíssimo ensaio que apresenta a obra: KNAUSS, Paulo; CEZAR,
Temístocles. O historiador viajante: itinerário do Rio de Janeiro a Jerusalém (Prefácio). In:
Historiografia e Nação no Brasil: 1838-1857. Rio de Janeiro: Ed. Uerj, 2011. p.7-21.
Acrescento ao rol elaborado por eles as seguintes obras: D’INCAO, M. A. História e ideal:
ensaios sobre Caio Prado Jr. São Paulo: Brasiliense; Ed. Unesp, 1989; SAMARA, Eni de
Mesquita; SOIHET, Rachel; MATOS, Maria Izilda S. de. Gênero em debate: trajetórias e
perspectivas na historiografia contemporânea. São Paulo: Educ, 1997; FREITAS, Marcos
Cézar de (Org.) Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 2001; SILVA,
Rogério Forastieri da. História da historiografia: capítulos para uma história das histórias
da historiografia. Bauru: Edusc, 2001; NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira; GUIMARÃES,
Lúcia Maria Paschoal; GONÇALVES, Márcia de Almeida; GONTIJO, Rebeca. Estudos de
historiografia brasileira. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2011.
3
Sobre isso ver COELHO, Mauro Cezar. A história, o índio e o livro didático: apontamen-
tos para uma reflexão sobre o saber histórico escolar. In: ROCHA, Helenice Aparecida
Bastos; REZNIK, Luís; MAGALHÃES, Marcelo de Souza (Org.) A história na escola: auto-
res, livros e leituras. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009. p.263-280.

Resenha recebida em 10 de janeiro de 2012. Aprovada em 10 de março de 2012.

Junho de 2012 333


Oficina da história no ciberespaço
History workshop in cyberspace
Anita Lucchesi*

Maynard, Dilton Cândido Santos


Escritos sobre história e internet
Rio de Janeiro: Fapitec; Multifoco, 2011. 152p.

Uma das mais belas apresentações de livros que já li começava assim:


“Apresentar um livro é fazê-lo presente”. Ora, mas não é óbvio? Contudo,
continua argutamente o autor: “Mas, qual poderia ser seu presente? O da es-
critura, que já não é, ou o da leitura, que ainda não é?”. Repito as palavras e
questionamentos de Jorge Larrosa1 pensando na velocidade com que se trans-
formam as paisagens da seara em que Dilton Maynard decidiu se enveredar ao
eleger como tema central de seu livro as relações entre história e internet.
Sendo assim, a obra Escritos sobre história e internet chama a atenção por
um particular interesse pelo tema dos ambientes telemáticos e provoca, em
virtude disso, certo conforto antecipado em, ao menos, podermos esperar que
sua leitura abrace as discussões sobre o elemento digital e suas implicações
para o nosso métier, historicamente analógico e papirofílico. Assim, recomen-
do o livro desejando que as presenças que dele fizerem, consoantes ou disso-
nantes à minha, venham incrementar o debate acerca deste Novo Mundo pa-
ra onde as agitadas águas do ciberespaço nos levam. Por enquanto navegamos
à deriva.
O breve mas consistente volume de Maynard se apresenta nos moldes de
um pequeno códex, composto por quatro artigos que foram escritos em mo-
mentos distintos e posteriormente linkados uns aos outros sob a tag dos pro-
blemas que a internet traz para o dia a dia da Oficina da História. Decerto o
livro não pretende esgotar o assunto, mas sim, apresentar reflexões e propor

* Mestranda, Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Universidade Federal do Rio


de Janeiro. Largo de São Francisco de Paula nº 1, sala 311, Centro. 20051-070 Rio de Janeiro – RJ
– Brasil. anita.lucchesi@gmail.com

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 335-340 - 2012


Anita Lucchesi

questionamentos de caráter introdutório que possam, em um horizonte augu-


rável, ser desdobrados mais à frente por outros pesquisadores. Mesmo porque
a publicação é uma cápsula de perguntas, um convite a novas investigações
sobre a internet e através dela. Aliás, a grande pergunta do livro talvez seja
justamente aquela não dita, mas todo o tempo presente no background dessa
leitura: “Afinal, por que não trabalhar com internet?”.
Para evidenciar como a internet pode ser um objeto-problema e também
uma ferramenta-problema para os historiadores do nosso século, Maynard
primeiro nos apresenta o que é essa tal Rede Mundial de Computadores, para
depois trazer alguns casos de estudos resultantes de sua experiência com a
internet nos últimos anos e pesquisas que vem realizando nessa área.
No capítulo de abertura, o autor esboça uma breve história da internet.
Descreve a trajetória dessa inovadora tecnologia, pontuando, sobretudo, quais
foram as circunstâncias históricas que favoreceram seu surgimento. Apresen-
ta a emergência da internet como um produto do seu tempo, de demandas
sociais específicas e condições propícias para o desenvolvimento de seu caráter
aberto, descentralizado e colaborativo. Características que se acentuaram prin-
cipalmente a partir da década de 1990, depois que a rede se libertou dos gri-
lhões de sua missão como tecnologia militar do Departamento de Defesa
norte-americano e começou a ser viabilizada também para fins comerciais.
Segundo Maynard, professor de História Contemporânea da Universida-
de Federal de Sergipe (UFS) e orientador de diversos trabalhos sobre cibercul-
tura, intolerância e extrema-direita na internet, teriam sido o cenário bipola-
rizado da Guerra Fria e, concomitantemente, o ambiente descentralizado dos
protestos pacifistas e contraculturais das décadas de 1960 e 1970 a proporcio-
narem as condições ideais para o surgimento e desenvolvimento da ‘rede das
redes’. Para o autor, “a verdadeira questão não é ser contra ou a favor da in-
ternet. O importante é compreender as suas mudanças qualitativas” (p.42).
É nessa esteira que o autor segue apresentando outros três principais filões
por onde tem espreitado as implicações da internet nas dinâmicas sociais do
Tempo Presente e, consequentemente, os desafios que tal panorama vem apre-
sentando para a história. Na realidade, os capítulos centrais do livro dialogam
todo tempo entre si. Isto porque ambos vão tratar em maior ou menor escala
das apropriações que grupos de extrema-direita têm feito da internet. Suas
preocupações referem-se ao modo como, cada vez mais, a internet se apresen-

336 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Oficina da história no ciberespaço

ta como “uma espécie de novo oráculo, como um espaço autônomo do conhe-


cimento” (p.43). Do deslumbramento com essa realidade, e do fato de a inter-
net ser uma espécie de zona neutra, território sem lei, ele alerta que decorrem
graves perigos. Um deles, senão o principal, é o tema da engajada exposição
do autor no Capítulo 2: a facilidade de produção de suportes pedagógicos na
rede mundial de computadores e sua apropriação por grupos ou indivíduos de
extrema-direita.
Para lidar com história em meio à superinformação característica da world
wide web, em plena ‘Era Google’, tomando emprestada a expressão de Carlo
Ginzburg,2 toda cautela é pouca, pois, como nos diz o historiador italiano, “No
presente eletrônico o passado se dissolve”. Como assim? O ‘dissolver-se’ de
Ginzburg pode ser lido em muitas direções, uma das quais é a que diz respeito
aos dilemas da memória e do esquecimento na rede, como e o que preservar
dos arquivos digitais neste século XXI. Entretanto, a preocupação do nosso
autor é mais específica. A ‘dissolução’ do passado, para Maynard, está nas
possíveis manipulações da história que podem ser feitas na internet. Uma das
evidências desse problema, para ele, são os espaços virtuais destinados a servir
de suportes pedagógicos para projetos de doutrinação, alguns deles compro-
metidos, por exemplo, com retóricas revisionistas. Tais iniciativas pretendem
fazer reconstruções historiográficas, tentam estabelecer falsificações e forjar
narrativas que classifiquem, por exemplo, as memórias sobre o Holocausto e
a Segunda Guerra Mundial como meras conspirações. Ele chama a atenção:

Em inversões interpretativas, os algozes são vítimas, qualquer tipo de documen-


tação que evidencie tortura, prisão, assassinatos e a racionalização das mortes em
campos de concentração e câmaras de gás é descartada como ‘falsificação’ ... Em
meio a apropriações simbólicas e batalhas da memória, estes portais são exem-
plos de ferramentas eletrônicas dedicadas a promover uma leitura intolerante da
história sob pretensa pátina de luta por liberdade de expressão. (p.45)

Dentre as tentativas de reescrita da história, um dos casos destacados


pelo autor é o do portal Metapedia,3 autodenominado ‘enciclopédia alternati-
va’, que traz, entre outros, verbetes sobre líderes e representantes da extrema-
-direita, em que estes são apresentados sem nenhuma menção aos seus xeno-
fobismo ou racismo. Mesmo o führer nazista, Adolf Hitler, é descrito com
benevolentes esquecimentos. Fica para a nossa reflexão a importância de um

Junho de 2012 337


Anita Lucchesi

inventário, como esse que empreende Maynard, de ódios e revisionismos sol-


tos pela rede. Se não nos ocuparmos deles, a quem os delegaremos? Às inteli-
gências estatais ou às polícias? Mas, e pela história, quem fará vigília?
Cabe lembrar que essa batalha das memórias e dos lugares de memórias
é atualíssima e extrapola as fronteiras do ciberespaço. É importante ressaltar,
portanto, que apesar dos limites dessa obra, o esforço que nela se faz para
advogar em favor da sistemática investigação histórica do e no ciberespaço,
embora se baseie majoritariamente em exemplos e documentações disponíveis
na própria rede, guarda estreita relação com a realidade ‘não virtual’.
A intolerância promovida na rede por grupos extremistas como os ski-
nheads, os carecas paulistas e outros, desgraçadamente faz vítimas reais para
além dos frios números de audiência que podemos verificar em web-estatísti-
cas. O alcance das páginas de ódio, como o www.radioislam.org, o www.ildu-
ce.net e o www.valhalla88.com,4 ou ainda o www.libreopinion.com (infeliz-
mente os exemplos são vastos e de várias nacionalidades), é grande. E como
lembra o título do terceiro capítulo, esses sites não trabalham isolados, em
muitos casos se montam verdadeiras ‘Redes de Intolerância’, com troca de
links, apoio ‘cultural’ (pela troca de banners etc.) e mesmo assistência mútua
em caso de um site precisar ser hospedado em outra ‘casa’ para poder fugir ao
rastreamento da polícia. Organizados e rápidos, eles conseguem escapar mais
facilmente das investigações e das consequências, graças à transnacionalidade
do mundo virtual, que permite, em certos aspectos, essa “anomia geográfica”
(p.103-104), e assim prorrogam indeterminadamente a impunidade dos inte-
grantes desses grupos. O que mais precisamos viver para lembrar o fascismo?
Se a resposta for neofascismos, aí vamos nós. Preparem suas mentes, corações
e hard disks para o caso de carregamentos muito pesados: xenofobia, machis-
mo, homofobia, misoginia, racismo... eugenias.
Por fim, Maynard nos introduz no fantástico campo do ‘ciberativismo’
ou ‘hacktivismo’. Temas por onde esbarraremos também com os profissionais
de Relações Internacionais preocupados com a diplomacia clássica em crise
(será?) em tempos daquilo que algumas nações vêm chamando de ‘ciberguer-
ra’ (guerra de informação) ou ainda ciberterrorismo. O autor demonstra como
os Estados Unidos se apropriaram dos escândalos midiáticos referentes ao
Cablegate 5 para alimentar uma interpretação belicista do momento, conde-
nando as denúncias do Wikileaks e os atos de protestos do grupo de hackers

338 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


Oficina da história no ciberespaço

Anonymous em 2010 como terrorismo. Para Maynard, o perigo dessa mani-


pulação de opinião a partir de apropriações políticas do ativismo cibernético
é a criação de uma atmosfera promissora para um “indesejável remake dos dias
da Guerra Fria” (p.141). A saber, com quais intencionalidades políticas, a tro-
co de que esquecimentos...
Os problemas expostos nesse livro nos remetem a vários estudos sobre
história e internet, ou, como já batizaram alguns estudiosos, ‘Historiografia
Digital’. Todos, contudo, bastante recentes e também marcados, uns mais,
outros menos, por uma levada introdutória, da apresentação de problemas e
tímidas formulações de hipóteses, em virtude da relativa novidade do tema.6
Entretanto, pensando especialmente nas variantes ética, moral e política da
história, gostaríamos de fazer referência aqui ao trabalho do historiador fran-
cês Denis Rolland, que, assim como Maynard, também entende a internet
como uma nova fonte e objeto para a história, inscrita no Tempo Presente e
demandando cautelosos e redobrados exames críticos. Para Rolland, na rede,
a história assume frequentemente a forma de narrativas de ‘costuras invisíveis’,
cujo nível de credibilidade científica é quase sempre desconhecido ou inveri-
ficável, o que pode acabar levando a um ‘mal-estar da história’, por ser, muitas
vezes, repleta de dissimulações ou amnésias-construtivas, uma “história sem
historiador”,7 exposta, portanto, aos riscos de reconstruções historiográficas
tal qual nos adverte Maynard no Capítulo 2 (p.43-66). É por tudo isso que,
como afirma o autor já no início do livro, “pesquisar a história da internet,
assim como navegar, é preciso” (p.42).

NOTAS

1
LARROSA, Jorge. Linguagem e educação depois de Babel. Trad. Cynthia Farina. Belo Ho-
rizonte: Autêntica, 2004. p.7.
2
GINZBURG, Carlo. História na Era Google. Fronteiras do Pensamento, 29 nov. 2010.
(Conferência). Disponível em: www.youtube.com/watch?feature=player_
embedded&v=wSSHNqAbd7E (Vídeo); Acesso: 22 mar. 2012.
3
Página da ‘enciclopédia’ em Português: pt.metapedia.org/wiki/P%C3%A1gina_principal;
Acesso em: 23 mar. 2012.
4
Cujo conteúdo hoje se encontra disponível em outro endereço: www.nuevorden.net/por-
tugues/valhalla88.html; Acesso em: 23 mar. 2012.

Junho de 2012 339


Anita Lucchesi

5
Termo cunhado pela imprensa mundial para nomear o escândalo gerado pelo site Wiki-
leaks ao divulgar centenas de documentos e telegramas ‘secretos’ de autoridades da diplo-
macia norte-americana sobre vários países.
6
Para uma apreciação mais detida dos problemas de ordem teórico-metodológica na rela-
ção entre história e internet, sob o ponto de vista da Historiografia Digital, ver: COHEN,
Daniel J.; ROSENZWEIG, Roy. Digital History: a guide to gathering, preserving, and pre-
senting the past on the web. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2006. Dispo-
nível em: chnm.gmu.edu/digitalhistory/; Acesso em: 22 mar. 2012; RAGAZZINI, Dario. La
storiografia digitale. Torino: UTET Libreria, 2004. Em língua portuguesa, ver: LUCCHESI,
Anita. Histórias no ciberespaço: viagens sem mapas, sem referências e sem paradeiros no
território incógnito da web. Cadernos do Tempo Presente, ISSN 2179-2143, n.6. Disponí-
vel em: www.getempo.org/revistaget.asp?id_edicao=32&id_materia=111; Acesso em: 23
mar. 2012.
7
ROLLAND, Denis. Internet e história do tempo presente: estratégia de memória e mito-
logias políticas. Revista Tempo, Rio de Janeiro, n.16, p.59-92. jan. 2004. p.2. Disponível em:
www.historia.uff.br/tempo/artigos_dossie/artg16-4.pdf; Acesso em: 23 mar. 2012.

Resenha recebida em 20 de janeiro de 2012. Aprovada em 26 de março de 2012.

340 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1


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Objetivo e política editorial


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trabalho na área de História e Ensino.
Todos os textos serão submetidos a dois pareceristas, desde que atendam aos requisitos
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trários, recorrer-se-á a um terceiro. O Editor responsável e o Conselho Editorial se reservam
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grama utilizado deve ser compatível com o Word for Windows. Imagens: 300 dpi.
2. Em uma folha separada devem constar os dados completos do autor (nome completo,
filiação institucional, titulação acadêmica, endereço institucional e e-mail para corres-
pondência). O autor deve também declarar que o texto submetido é inédito e não se
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3. Caso o trabalho tenha apoio financeiro de alguma instituição, esta deverá ser mencio-
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5. Os artigos terão a extensão de 15 a 20 páginas em formato A4, digitadas em fonte
Times New Roman 12, com espaço 1,5. As citações de mais de três linhas deverão ser
feitas em destaque, com fonte 11 e recuo de 2,5 cm. Margens: superior e esquerda: 3,0
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mesmas normas dos artigos. Devem referir-se a livros nacionais publicados no mesmo
ano ou no ano anterior ao da submissão, ou livros estrangeiros publicados nos últimos
quatro anos.

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7. A publicação e os comentários a respeito de documentos inéditos seguirão as normas
especificadas para os artigos.
8. As notas devem ser colocadas no final do texto, não ultrapassando o número de 30.
Serão admitidas notas explicativas, desde que imprescindíveis e limitadas ao menor
número possível. A revista não publica bibliografias.
9. Normatização das notas cf. NBR 6023:

Livro: SOBRENOME, Nome. Título do livro em itálico: subtítulo. Tradução. Edição. Cida-
de: Editora, ano. nnnp.

Capítulo ou parte de livro: SOBRENOME, Nome. Título do capítulo ou parte do livro. In:
SOBRENOME, Nome. Título do livro em itálico: subtítulo. Tradução. Edição. Cidade: Edi-
tora, ano. p.xxx-yyy.

Artigo em periódico: SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico em itáli-


co, Cidade: Editora, v.xx, n.xx, p.xxx-yyy, ano.

Trabalho acadêmico: SOBRENOME, Nome. Título em itálico: subtítulo. Dissertação/Tese


(Mestrado/Doutorado em .....) – Unidade, Instituição. Cidade, ano. nnnp.

Texto obtido na internet: SOBRENOME, Nome. Título. Data (se houver). Disponível em:
www..........; Acesso em: dd mmm. ano.

Trabalho apresentado em evento: SOBRENOME, Nome. Título do trabalho. In: NOME


DO EVENTO, número (se houver), ano, Local do evento. Anais... Local: Editora (se hou-
ver), ano. p.xxx-yyy.

342 Revista História Hoje, vol. 1, nº 1

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