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PSICANÁLISE FREUDIANA
DESCORTINA: CONSIDERAÇÕES
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Léia Priszkulnik
A criança, pelo menos a maioria das que temos hoje de criança não é um dado
vivem em sociedades industrializadas, tem atemporal. Pode-se dizer que é uma “in-
como principal ocupação a escola. O fato venção” da modernidade. Segundo o his-
de ela precisar freqüentar a escola, ser edu- toriador francês Philippe Ariès (1981), no
cada e se preparar gradualmente para a decorrer da História, a criança tem ocupa-
vida adulta aparece como “natural” e in- do diferentes posições ante as expectati-
questionável. vas dos pais e da sociedade.
Atualmente, a criança está no centro Tomando como ponto de partida a
dos estudos de várias áreas de conhecimen- sociedade medieval, Ariès (1981, p. 156)
to: não só a psicologia, mas também a me- afirma que nesse período, “assim que a
dicina, a biologia, a pedagogia, a psicaná- criança tinha condições de viver sem a so-
lise, a educação física, a história, a socio- licitude constante de sua mãe ou de sua
logia, entre outras, pesquisam e escrevem ama”, ela passava a fazer parte do grupo
sobre ela. Mas qual a idéia de criança que dos adultos, participando das mesmas ati-
permeia todos esses trabalhos? A criança vidades e freqüentando os mesmos espa-
como “um adulto em miniatura”, como ços. Não havia uma preocupação com a
“uma tábula rasa”, como “um ser inocen- educação escolar. A diferença e a passa-
te” ou como “um ser plenamente feliz”? gem entre o mundo da criança e o mundo
Essa criança que vem sendo estudada sem- do adulto não se constituíam em proble-
pre existiu? ma, já que a criança, independente da mãe,
O presente capítulo visa buscar algu- passava a integrar o grupo dos adultos, no
mas respostas a essas indagações, e, para qual fazia seu aprendizado para a vida.
isso, o caminho a ser trilhado passa por al- Conseqüentemente, a transmissão dos co-
guns aspectos considerados na história da nhecimentos prescindia de instituições
criança no Ocidente e nos escritos de Freud. especializadas e de textos escritos. Em re-
lação a isso, o autor escreve (Ariès, 1981,
p. 229):
A CRIANÇA NO OCIDENTE
Não havia lugar para a escola
nessa transmissão através da
Com o passar dos séculos, o conceito
aprendizagem direta de uma ge-
de criança e de infância modificou-se de ração a outra. [...] E a escola era
acordo com visões de mundo peculiares a na realidade uma exceção, e o
um determinado tempo e lugar. A idéia que fato de mais tarde ela ter-se es-
12 Dante De Rose Jr. e colaboradores
o que faz com que algumas crianças te- Para Chauí (1996, p. 169), com a no-
nham o dia repleto de atividades. ção de inconsciente surge algo desconhe-
A história atual da criança, no Brasil cido – ou só indiretamente conhecido – pa-
e no mundo, tem evidenciado contradições ra a consciência, algo sobre o qual a cons-
relevantes. Como escreve Del Priore (1999, ciência nunca poderá refletir diretamente
p. 8): e que determina tudo que a consciência e
o sujeito sentem, falam, dizem e pensam.
Existe uma enorme distância en- Com a noção de inconsciente, Freud des-
tre o mundo infantil descrito pe- cobre “uma poderosa limitação às preten-
las organizações internacionais, sões da consciência para dominar e con-
pelas não-governamentais ou pe-
trolar a realidade e o conhecimento”.
las autoridades e aquele no qual
a criança encontra-se cotidiana- O inconsciente freudiano não deve
mente imersa. O mundo do qual ser pensado como o lugar da irracio-
a “criança deveria ser” ou “ter” nalidade em oposição à racionalidade da
é diferente daquele onde ela vi- consciência. Ele tem seus atributos e sua
ve, ou, no mais das vezes, sobre- lógica própria (lógica do inconsciente),
vive. O primeiro é feito de ex- que diferem marcadamente das leis da ati-
pressões como “a criança precisa”, vidade psíquica consciente (lógica do cons-
“ela deve”, “seria oportuno que”,
ciente). O inconsciente freudiano designa
“vamos nos engajar para que”,
etc., até o irônico “vamos torcer um sistema psíquico que possui um modo
para”. No segundo, as crianças próprio de funcionamento (processo pri-
são enfaticamente orientadas pa- mário, deslocamento e condensação) e
ra o trabalho, o ensino, o ades- opera segundo leis próprias (desconhece
tramento físico e moral, sobran- o tempo, a negação, a contradição). A
do-lhes pouco tempo para a ima- melhor maneira para se admitir a existên-
gem que normalmente se lhes cia do inconsciente é prestando atenção
está associada: aquela do riso e
nas suas formações. Nasio (1999, p. 33)
da brincadeira.
escreve de forma clara sobre isso.
As formações do inconsciente
O mundo do qual a “criança deveria ser” apresentam-se diante de nós
ou “ter” é diferente daquele onde ela como atos, falas ou imagens ines-
vive, ou, no mais das vezes, sobrevive. peradas, que surgem abrupta-
mente e transcendem nossas in-
tenções e nosso saber conscien-
te; esses atos podem ser condu-
tas corriqueiras, por exemplo, os
CONTRIBUIÇÕES DA atos falhos, os esquecimentos, os
PSICANÁLISE FREUDIANA sonhos, ou mesmo o aparecimen-
to repentino desta ou daquela
Freud, com a psicanálise, traz um idéia, ou a invenção improvisada
novo discurso sobre o ser humano, não de um poema ou de um conceito
como indivíduo (objeto da ciência), mas abstrato, ou ainda certas manifes-
marcado pelo inconsciente, por essa “ou- tações patológicas que fazem so-
frer, como os sintomas neuróticos
tra cena” ao mesmo tempo inquietante e ou psicóticos; (...) os produtos do
familiar, um ser humano passível de so- inconsciente são sempre atos sur-
nhar, amar, desejar, construir crenças, preendentes e enigmáticos para
odiar, culpar-se, etc. a consciência do sujeito.
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 17
Com a “descoberta” da sexualidade
infantil (perverso-polimorfa), Freud pro- Freud aponta para um sujeito que esca-
pa ao controle da educação.
voca uma enorme onda de protestos. Ele
mesmo se refere a isso, assinalando que
til, Freud descobre o corpo erógeno: o cor- Esse autor, seguindo o espírito da obra
po representado investido sexualmente; o freudiana, mostra de forma enfática a im-
corpo representado originário, ou a ima- portância da linguagem para a constitui-
gem que se tem do corpo, marcado pela ção do sujeito humano, já que somos hu-
pulsão, “no qual as manifestações somáti- manos porque falamos. O inconsciente,
cas surgem articuladas à fantasmática do como formulado por Freud, revela-se na
sujeito e suas vicissitudes” (Cukiert; Prisz- fala, mesmo que o sujeito não queira e
kulnik, 2000, p. 57). além de seu conhecimento consciente, ou
Como conseqüência, a noção de cor- seja, a linguagem opera fora de nosso con-
po para a psicanálise tem uma espe- trole consciente. Para estudar o discurso
cificidade que merece ser mencionada, pois humano, já que o humano é um sujeito
difere da noção de corpo para a biologia. falante, Lacan (1985) recorre à lingüísti-
ca e ao signo lingüístico (esse signo com-
O corpo biológico é um corpo porta duas faces, o significado ou o con-
objetivado (objeto da ciência), ceito da palavra e o significante ou a ima-
um organismo, para ser estuda-
gem acústica do som material), reexamina
do em termos de suas funções
(digestão, respiração, etc.), do o campo da linguagem e centra esse cam-
funcionamento específico dos po sobre o conceito de significante. Pro-
vários órgãos e seus tecidos, do curando articular o inconsciente freudiano
funcionamento das células. O cor- e a linguagem, Lacan (1985, p. 139) afir-
po, para a Psicanálise, é um corpo ma que o inconsciente é “estruturado, tra-
tecido e marcado pela sexualida- mado, encadeado, tecido de linguagem; e
de e pela linguagem (Priszkulnik, não somente o significante desempenha ali
2000, p. 20).
um papel tão grande quanto o significa-
Freud, portanto, propõe uma nova do, mas ele desempenha ali o papel fun-
leitura da corporeidade, que acaba ofere- damental”.
cendo uma nova leitura da construção do Um significante pode produzir várias
sujeito humano. significações, ou seja, uma mesma imagem
A psicanálise freudiana enfatiza a pa- acústica pode querer dizer coisas diferentes
lavra e o poder da palavra. Freud (1976a, p. para sujeitos diferentes; posso querer di-
214) destaca isso quando escreve: zer uma palavra com determinada signifi-
cação, mas quando falo, falo sem saber e
Não desprezemos a palavra; afi- sempre mais do que sei (além do conheci-
nal de contas, ela é um instru- mento consciente); portanto, ao falar, pos-
mento poderoso; é o meio pelo so estar dando à palavra uma significação
qual transmitimos nossos senti- diferente daquela que realmente queria
mentos a outros, nosso método dar. Quem ouve pode dar à mesma pala-
de influenciar outras pessoas; as
vra uma outra significação, bem diferente
palavras podem fazer um bem
indizível e causar terríveis feridas. da minha, da qual também não tem co-
nhecimento. Essa situação também abala
A palavra nomeia, ordena, alivia, con- a ilusão do ser humano de saber perfeita-
sola, cura; chega a criar quando nomeia mente o que está falando, de ter certeza
algo. O poder da palavra e o fato de o su- que o outro está entendendo plenamente
jeito humano estar inserido na linguagem o que está sendo falado e de ter a convic-
e falar merecem, de Jacques Lacan, um ção de que é possível uma comunicação
nome de peso no universo psicanalítico, sem ambigüidades. A fala tem a caracte-
um desenvolvimento teórico considerável. rística de ser inevitavelmente ambígua.
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Lacan, nas suas formulações, também inevitável, e é inevitável pelo fato de o ser
se refere ao corpo marcado pela lingua- humano pertencer a uma dada filiação, a
gem, o corpo que pode ser “tocado” por uma dada sociedade, a uma dada cultura.
meio da palavra. Essa idéia de a palavra Portanto, nasce inserida na linguagem e
poder “tocar” e modificar o corpo aparece em um determinado contexto familiar e
em Freud (1972, p. 297), em um texto em socioeconômico-cultural. Essa criança
que discorre sobre o tratamento psíquico. freudiana, que já existe antes mesmo do
nascimento biológico, persiste no adulto,
[...] um leigo sem dúvida achará porque o que Freud acentua é a importân-
difícil compreender de que forma cia das impressões nos primeiros anos de
os distúrbios patológicos do cor- vida para a compreensão dos distúrbios
po e da mente podem ser elimi-
futuros.
nados por “meras” palavras. Ele
achará que lhe estão pedindo que Se pensarmos na palavra criança, ela
acredite em mágica. também é uma criação da linguagem, e
vimos como essa noção se modifica no
decorrer da História, e como a noção de
A CRIANÇA PARA FREUD criança, nos dias atuais, está muito ligada
à “criança escolar”. Então, a criança freu-
Com esses parâmetros – inconscien- diana está aquém e além da criança estuda-
te, sexualidade, corpo, linguagem –, como da, por exemplo, pela biologia e também
pensar a criança na perspectiva de psica- está aquém e além da criança escolar.
nálise freudiana? Demora algum tempo para a criança
A criança que Freud (1976b, p. 139) ter acesso à sua própria fala, para dispor
descortina, portadora de sexualidade, “é de uma função simbólica própria. Mas isso
capaz da maior parte das manifestações não significa que não se possa conversar
psíquicas do amor, por exemplo, a ternura, com ela. Ela nasce inserida na linguagem
a dedicação e o ciúme”, vive conflitos e e, portanto, precisará aprender a falar; os
contradições. Ela é um sujeito desejante, adultos que não conversam com crianças
está submetida às leis da linguagem que a pequenas pela simples razão de acredi-
determinam, demandando amor e não só tarem que elas não entendem o sentido
os objetos que satisfaçam suas necessida- das palavras estão equivocados; é eviden-
des. Não é a criança “inocente”, aquele ser te que o vocabulário delas é mais reduzi-
em quem o “demônio da sensualidade” não do, entretanto, quando nos dirigimos a elas
provoca abalos, inquietações e perturbações. com palavras mais simples, não só enten-
A construção desse sujeito humano dem o que está sendo dito, como as pala-
criança começa antes mesmo de ela nas- vras dirigidas a elas adquirem um sentido
cer biologicamente. Antes de vir ao mun- “humanizador” (somos seres humanos por-
do, já é falada pelos outros, já é marcada que falamos). Resgatar a criança por meio
pelo desejo inconsciente dos pais e ocupa de sua fala possibilita separá-la das con-
um lugar no imaginário deles (esses pais cepções que os adultos possam estar fa-
têm as marcas de seus pais, estes últimos zendo dela.
têm as marcas dos respectivos pais, e as- A criança freudiana nasce com o cor-
sim sucessivamente); ela é esperada de po-organismo que passará pelas etapas de
determinado jeito, já representa algo para desenvolvimento e de maturação estuda-
ambos os pais em função da história de das pela biologia. Entretanto, irá cons-
cada um, já tem um lugar marcado simbo- truindo seu corpo de modo que seja teci-
licamente. Ao nascer, encontra essa trama do e marcado pela sexualidade e pela lin-
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guagem (dependente das vicissitudes de esse fracasso pode ser até “saudável”, na
sua própria vida e de sua estruturação in- medida em que fracassar diante de um
consciente). Esse corpo, muitas vezes, não ideal inatingível é uma condição para se
coincide com o corpo-organismo e pode buscar um caminho próprio, para buscar
chegar a alterar seu funcionamento. usufruir suas características específicas e
Freud observa que o nascimento de singulares.
uma criança nunca corresponde exatamen- A psicanálise sublinha que idealizar
te ao que os pais esperam dela, pois o que o outro (criança, aluno, amigo, cônjuge,
eles esperam é a perfeição. Refere-se a isso etc.) é inevitável, uma vez que qualquer
escrevendo que os pais relação com o outro traz a marca do nar-
cisismo, faz parte da constituição do su-
acham-se sob a compulsão de atri- jeito humano, e ninguém se livra ou se
buir todas as perfeições ao filho “cura” dele.
[...] e de ocultar e esquecer todas Outro aspecto importante que mere-
as deficiências dele. [...] A crian-
ce ser enfatizado na relação entre a crian-
ça concretizará os sonhos doura-
dos que os pais jamais realizaram. ça e o adulto é a amnésia infantil. Freud
[...] O amor dos pais, tão como- se refere a essa questão, conhecida e ex-
vedor e no fundo tão infantil, nada plicada pela ciência como uma imaturida-
mais é senão o narcisismo dos pais de funcional da criança para registrar as
renascido, o qual, transformado suas impressões, apresentando uma expli-
em amor objetal, inequivocamen- cação específica. Laplanche e Pontalis
te, revela sua natureza anterior (1976, p. 52), no verbete amnésia infan-
(Freud, 1974, p. 108).
til, escrevem de maneira clara que é a
Assim, os pais sempre idealizam a
amnésia que geralmente cobre os
criança. Esperam que ela seja inteligente, fatos dos primeiros anos de vida.
educada, obediente, boa aluna, asseada, [Para Freud] ela resulta do recal-
ordeira, etc., enfim, uma supercriança que camento que incide na sexualida-
se transformará em um superadulto. Como de infantil e se estende à quase
é impossível para qualquer ser humano totalidade dos acontecimentos da
atingir a perfeição, quanto mais se espera infância. O campo abrangido pela
de uma criança, mais ela pode fracassar, e amnésia infantil encontraria o seu
limite temporal [por volta dos 5
ou 6 anos].