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NA CASA DE MEU PAI

Os anos anteriores a "Refúgio Secreto"


Corrie ten Boom e C. C. Carlson
Traduzido por
Hagar Aguiar Caruso
Digitalizado por: L.D.

-E.G.-
_______________

Este livro foi digitalizado com o intuito


de disponibilizar literaturas edificantes à
todos aqueles que não tem condições
financeiras ou não tem boas literaturas
ao seu alcance.

Muitos se perdem por falta de


conhecimento como diz a Bíblia, e às
vezes por que muitos cobram muito caro
para compartilhar este conhecimento.

Estou disponibilizando esta obra na rede


para que você através de um meio de
comunicação tão versátil tenha acesso ao
mesmo.

Espero que esta obra lhe traga edificação


para sua vida espiritual.

Se você gostar deste livro e for


abençoado por ele, eu lhe recomendo
comprar esta obra impressa para
abençoar o autor.

Esta é uma obra voluntária, e


caso encontre alguns erros ortográficos
e queira nos ajudar nesta obra, faça
a correção e nos envie.
Grato
_______________
Traduzido do original norte-americano:
IN MY FATHER'S HOUSE

Copyright © 1976 por Corrie ten Boom e Carole C.


Carlson.

Copyright © 1978 por EDITORA VIDA Reservados todos


os direitos

Os textos bíblicos citados são da tradução de João


Ferreira de Almeida — Edição Revista e
Atualizada no Brasil pela Sociedade
Bíblica do Brasil.
Capa: Gary Roulston

Impresso nos E.U.A.


Quando meus pais se casaram, há muitos anos, eles elegeram o
versículo 8 do Salmo 32, como o "versículo de sua vida"; a promessa
que eles sentiram era a garantia de Deus para eles.

Instruir-te-ei e ensinarei o caminho que deves seguir; e, sob as


minhas vistas, te darei conselho.

... esta promessa tornou-se, igualmente, a principal diretriz para a


minha vida.

CORRIE TEN BOOM


De Andarilha para o Senhor
ÍNDICE

1. Herança
2. Aos cinco anos não se é tão criança
3. Pequenos começos
4. As idades do amor
5. Anjos travessos
6. Ao redor da mesa oval
7. Dezessete anos, e tanta coisa para aprender
8. O melhor ainda está por vir
9. Amor e mente sadia
10. Alcançando outros
11. Dentro e fora da relojoaria
12. Tudo vai bem... enquanto a chuva não cai
13. O clube dos gorros vermelhos
14. Até mesmo o menor deles
15. Líderes e seus erros
16. Alfinetes de segurança em uniformes
17. Oposição
18. "... Ele tomou a minha mão"
PREFÁCIO
Hoje eu sei que as memórias são a chave não para o
passado, mas para o futuro. Sei que as experiências
de nossa vida, quando usadas por Deus, tornam-se na
misteriosa e perfeita preparação para o trabalho que
ele nos dará para realizar.

Corrie escreveu isso em Refúgio Secreto, sem imaginar que


havia preparado a introdução para este livro.
Enquanto eu trabalhava com Corrie, acompanhando-a em
suas viagens pelos Estados Unidos, e vivendo com ela na Holanda,
pude vê-la em muitas circunstâncias diferentes. É espantoso notar
como Deus a utiliza. Certo dia eu e Ward, meu esposo, orávamos
com ela numa saleta ao lado de um grande salão de conferências. Ela
estava abatida, sentindo dores e grande exaustão. Mas quando se
encaminhou para o palco, diante de quatro mil pessoas, sua voz era
firme e sua mensagem entusiasta. Ela era—e continua a ser—um
exemplo vivo da maneira pela qual o Espírito do Senhor trabalha por
intermédio de sua valiosa serva.
Contudo, à medida que Na Casa de Meu Pai começou a
desenvolver-se, eu me ia entusiasmando para ver como seria este
relato que era mais do que uma coletânea de memórias—mais do que
nostalgia provinda de uma vida rica. Aqui nós tínhamos as lições
singulares de uma família em -preparação para um futuro, um futuro
que exigiria o poder do amor e da força de Deus.
Se estamos vivendo no tempo em que cremos que o plano de
Deus para o planeta Terra está chegando ao seu termo final—quando
ocorrer o novo começo que Jesus prometeu—então cada indivíduo,
cada família necessita do padrão para viver na presente era. Nunca
antes na história humana as diretrizes de vida têm sido mais im-
portantes.
As aplicações de várias partes da vida de Corrie à vida
moderna ficaram impressas em mim, à medida que eu saboreava
esses maravilhosos "anos anteriores". Aprendi tanto para minha
própria vida e para a vida de minha família enquanto convivi com
Corrie Na Casa de Meu Pai. Façamos a visita juntos....

CAROLE C. CARLSON
1
HERANÇA
—Notável! Extraordinário! . . . Peter, onde Cook conseguiu
encontrar morangos nesta época de inverno?
O negociante holandês perguntou ao mordomo indicando os
apetitosos e suculentos frutos na compoteira de prata. Nos começos
da década de 1800 isso constituía um luxo, mesmo entre as famílias
mais abastadas.
—É o hortelão, senhor ... ten Boom, que faz verdadeiros
milagres na sua estufa.
—Ten Boom? Hum, lembro-me dele, sim. Admirável! Eu
aceito um pouco mais de morangos, Peter, e com bastante creme!
Meu bisavô ten Boom cultivava esses viçosos morangos
durante os meses de inverno quando as crianças, de faces vermelhas
pelo frio, esquiavam nos canais. Ele não era nenhum hortelão
especial, mas um artista que, com amor, arrancava milagres do solo.
Fazia experiências com as plantas, trabalhando com elas em porões
gelados ou em estufas, tentando todos os meios até conseguir os
frutos que eram servidos à mesa do seu patrão, um dos homens mais
ricos de Hofstede, Bronstede, Heemstede.
Esses simples morangos salvaram meu bisavô do cárcere!
Foi na época de Napoleão. A Europa tremia ante o ataque do
maligno homenzinho da Córsega. Arrogante, vitorioso na guerra, o
imperador francês conquistava nação após nação, subjugando todos
os homens ao seu poder. A Holanda estava sendo governada pelos
representantes de Napoleão, sujeita ao seu opressivo regime.
Meu bisavô era um homem independente; ele tinha coragem,
porém não muita diplomacia, na minha opinião. Ele não se submetia
a homens que negavam a liberdade aos semelhantes. Todavia, os
holandeses naquele tempo só tinham duas alternativas:, obedecer
àqueles que serviam ao enfatuado imperador, ou enfrentar os severos
castigos impostos por motivo de rebelião.
A tirania em qualquer tempo da história humana demanda
lealdade.
Um domingo, meu bisavô foi à sua igreja e ouviu o pastor
anunciar o hino de abertura, cujo tema era o Salmo 21. A
congregação começou a cantar, mas de repente as vozes foram
cessando, uma a uma, à medida que entendiam as palavras do hino.
Era como se fosse uma descrição real da situação política do
momento. Ninguém se animou a continuar.
Porém meu bisavô e o pastor continuaram cantando com
entusiasmo, como num desafiante dueto (traduzido do holandês):
O diabo se considera livre de toda a escravidão, e anda ao
redor enquanto incita o povo. Ao mesmo tempo, os maus supõem
segurar as rédeas do governo e alcançar os píncaros da glória.
Corações abatidos e vozes silenciosas se reanimavam ante a
bravura do pastor e do destemido hortelão.
Quando a notícia do procedimento desafiante e traidor de ten
Boom chegou às autoridades, ele foi chamado para enfrentar as
conseqüências já pela maneira de se dirigir ao oficial que veio à sua
procura.
—Que é que esse Sr. Snotneus (maneira ofensiva de dirigir-se
a alguém) quer de mim?
Primeiramente ele desafiou o regime e agora lança aquele
desdenhoso apelido ao seu acusador!
Mas, que é que têm os morangos a ver com tudo isso? Antes
que meu bisavô fosse condenado ou preso, seu patrão, que era
homem de grande influência, intercedeu por ele e conseguiu-lhe o
perdão. (Um hortelão não poderia cultivar frutas numa prisão,
poderia?)
Meu pai nos contava a história de seu avô e seu desafio
pessoal ao regime de Napoleão com um verdadeiro senso de humor.
—Alegro-me por ter sido ele um verdadeiro homem—dizia-
nos papai.
Mais de cem anos depois, quando diziam a papai:—Pare de
recolher os judeus em sua casa; o senhor ainda pode ser preso por
isso—ele respondia:—Já estou muito velho para a vida da prisão;
porém se isso acontecer, será uma honra para mim dar a minha vida
pelo antigo povo de Deus, os judeus!
De geração para geração
Willem ten Boom, meu avô, não era tão forte como seu pai,
por isso escolheu um tipo de trabalho que não o desgastasse muito
fisicamente. No ano de 1837, ele adquiriu uma casinha em Haarlem
por quatrocentos florins e ali se estabeleceu como relojeiro.
No ano de 1844, certo dia vovô recebeu a visita de Dominee
Witteveen, o seu pastor.
—Willem, você sabe que a Bíblia nos manda orar pela paz de
Jerusalém e pelo povo judeu? —disse-lhe o pastor.
—Sim, Dominee; eu sei. Eu sempre amei o antigo povo de
Deus, o povo que nos deu a Bíblia e o nosso Salvador.
Essa pequena conversa foi o início de um concerto de oração
em prol do povo judeu, tomando parte nesse concerto, meu avô e um
grupo de amigos. A idéia era um tanto estranha entre os cristãos
naquela época. Os judeus estavam espalhados pelo mundo todo, sem
pátria, sem nacionalidade; Jerusalém era uma cidade atormentada por
séculos de conflito. A atenção do mundo não estava voltada para o
Oriente Médio; mesmo assim, esse pequeno grupo de crentes
holandeses começou a se reunir numa casinha de Haarlem, numa
pequena relojoaria (mais tarde chamada Beje), para ler as Escrituras
e orar pelos judeus.
De um modo divino, fora da compreensão humana, aquelas
orações foram respondidas! Foi nessa mesma casa, exatamente cem
anos depois, que meu pai, filho de meu avô, quatro de seus netos e
um bisneto, foram levados presos por haverem salvado a vida de
judeus durante a ocupação alemã na Holanda.
Outro ditador, mais arrogante e insano que Napoleão,
planejou exterminar todos os judeus do mundo. Durante o domínio
das tropas de Hi-tler, na Holanda, muitos judeus foram mortos.
Por ajudarem a esconder judeus, meu pai, minha irmã e o
filho de meu irmão morreram todos na prisão. Meu irmão sobreviveu
à prisão, porém morreu logo depois em conseqüência. Somente
Nollie, minha irmã mais velha e eu conseguimos sobreviver.
Muitas vezes tentávamos descobrir o porquê de certas coisas
que Deus permitia nos acontecessem. Tentávamos entender as
circunstâncias de nossa vida, porém tudo ficava em nossa ima-
ginação. Mas o que nos parece tolice da parte de Deus é muito mais
sábio do que a nossa sabedoria.
De geração, em geração, de pequenos começos e pequenas
lições, em tudo ele tem um propósito para todos aqueles que o
conhecem e nele confiam.
Deus não tem problemas—somente planos!

Começando com Mamãe


Mamãe era uma criatura com um amorável senso, de humor e
uma aparência marcante. Seus cabelos eram bastos, escuros e
crespos; seus olhos, brilhantes e azuis—estranha combinação de tra-
ços fisionômicos para uma holandesa. Era descendente de uma
numerosa família, ficando órfã de pai logo após o nascimento de seu
oitavo irmãozinho. Muito jovem ainda, ela, sua mãe, seus irmãos e
suas irmãs viram-se forçados a ganhar o próprio sustento.
Uma de suas irmãs, Jans, fundou um Jardim de Infância onde
Cor (minha mãe) e outra sua irmã, Ana, tornaram-se suas assistentes.
Estou certa de que essa experiência ajudou mamãe mais tarde
na educação de seus próprios filhos.
Quando Jans adicionou uma escola dominical ao seu Jardim
de Infância, começou a trabalhar com um jovem estudante de
teologia, Hendrik Wildeboer, que se tornou seu namorado. Cor, por
sua vez, encantou-se com um professor da escola dominical cujo
nome era Casper ten Boom; imediatamente descobriram algo em
comum: faziam anos no mesmo dia, 18 de maio.
Um romance começou entre Cor e Casper; quando ela viajou
para Harderwijk a fim de visitar a avó, Casper foi acometido de tal
solidão que no dia seguinte embarcou em seu encalço.
Cerca de cinqüenta anos mais tarde, visitei com papai a aldeia
de Harderwijk sobre o Zuider Zee. Enquanto caminhávamos pela.
Bruggestraat, papai disse:
—Foi aqui que eu propus casamento à sua mãe. A rua não era
pavimentada como hoje; o calçamento era de pedras; porém muitas
dessas casas antigas são ainda daquele tempo.
Ele parou, como que a lembrar a mocidade passada, e seu
amor pela gentil jovem de olhos sorridentes.
—Mamãe lhe deu o sim imediatamente? —perguntei.
—Não; ela fez-me esperar até ao dia seguinte, fazendo-me
passar uma noite insone esperando pela resposta!
Perguntei-lhe então se alguma vez se arrependera de haver
desposado a mamãe. Foi com voz firme que ele respondeu:
—Nunca! Até ao último dia de sua vida eu a amei com a
mesma intensidade existente naquele dia, aqui em Harderwijk.
Nunca tivemos uma vida fácil, é verdade. Tivemos muitas tristezas e
problemas, mas Deus nos guiou por sua extraordinária providência.
Uma pequena joalheria
Vovó morreu um pouco antes do casamento de Casper e Cor.
Nessa ocasião, papai havia adquirido uma joalheria numa pequena
casa no centro do bairro judeu de Amsterdã.
Certa vez apareceu-lhe um freguês, um pastor de Ladysmith,
na África do Sul. Ele veio à loja encomendar ao papai um relógio e
um sino para a torre de sua igreja. Isto foi como uma injeção de
ânimo para o jovem negociante. O pedido era simples de resolver;
tudo o que papai tinha de fazer era ir à fábrica em Brabant e escolher
a mercadoria. O próprio fabricante se encarregaria até mesmo da
instalação requerida. Entretanto, a comissão recebida pela transação
representava uma bela soma em dinheiro que ajudou grandemente o
casal holandês nas despesas do casamento.
Tio Hendrik, marido de tia Jans, era pastor num vilarejo perto
de Amsterdã. Papai e mamãe deviam casar-se primeiro no civil para
depois realizar a cerimônia religiosa. O homem que devia realizar a
cerimônia civil naquele vilarejo achou que o casal que ora se
apresentava para o casamento pertencia à família de alta sociedade
pelo fato de ter vindo de Amsterdã. Então, assumindo ares de
importância, preparou-se para a cerimônia procurando usar
linguagem rebuscada, à altura de tão nobre casal, no seu modo de en-
tender. Emocionado, começou:
—Distintos noivos ... vós estais agora ... estais agora reunidos
... vós estais agora reunidos aqui para ... —Parou de falar, olhou em
volta, e debulhou-se em lágrimas.
Papai então disse:—Suas palavras e suas lágrimas me
sensibilizam; mas o que gostaríamos mesmo é de nos casar!
O pobre homem terminou a cerimônia mal e mal, porém o tio
Hendrik celebrou o final dos ritos do casamento na sua igreja—e sem
lágrimas.
Os recém-casados mudaram-se para uma casinha simples em
Amsterdã. Indubitavelmente, o emotivo juiz de paz que não
conseguia terminar a cerimônia do casamento não sabia do quão hu-
mildes eram eles!
Mamãe havia sonhado com uma casa e um jardinzinho, pois
amava as flores com seus belos matizes.
—E eu adoro ver bastante do céu—dizia ela sempre.
Coitada! O céu lá estava. Porém só podia ser visto se ela
saísse à rua estreita, fora da velha casa. O velho edifício compunha-
se de muitos pa-vimentos com um cômodo em cada um deles. O
cômodo que pertencia ao jovem casal era mobiliado com móveis
usados deixados por minha avó.
O dinheiro era escasso, porém a felicidade era abundante.
Os vizinhos judeus possibilitaram a participação de papai nos
seus sabbaths e outros dias santificados. Ele estudou o Antigo
Testamento e o Talmude com eles, havendo assim oportunidade de
entender e explicar o cumprimento das profecias do Antigo
Testamento no Novo Testamento.
O amor que papai votava ao povo judeu foi cultivado nesse
bairro de Amsterdã durante aqueles primeiros anos de sua vida de
casado. Papai e mamãe viviam numa zona pobre, mas isso não os
tornou infelizes. O relacionamento com os semelhantes e com Deus
deu-lhes a força necessária para viver.

Plano para paternidade


Quando o primeiro bebê estava sendo esperado, mamãe se
alegrou por haver aprendido a costurar. Herdara de sua mãe uma
máquina de costura e assim podia a qualquer momento confeccionar
roupinhas para o nenê. Uma judia que morava no pavimento de cima,
não contendo a curiosidade, perguntou à mamãe se ela era costureira.
—Não—respondeu mamãe com orgulho—; estou esperando
meu primeiro bebê. Veja as roupinhas que fiz!—E mostrou-lhe as
pecinhas já prontas.
A judia estava atônita. —A senhora não pode costurar roupas
para o nenê antes de ele nascer! Isso é tentar a Deus!
Mamãe admirou-se da observação, mas nem por isso deixou
de preparar o enxovalzinho. Ao mesmo tempo começou a entender
por que Maria só tinha alguns panos para envolver o pequeno Jesus.
Não devia ter sido falta de recursos, mas pelo costume judeu de não
preparar roupas para o nenê antes de seu nascimento. Ouvi dizer que
os judeus,portugueses mantêm essa tradição até hoje.
Com o nascimento de Betsie, a primeira filha, mamãe ficou
muito doente. Requisitou então sua irmã mais nova, Ana, para vir
ficar com ela por algumas semanas e ajudá-la com o nenezinho.
Essas poucas semanas, entretanto, se prolongaram por quarenta anos!
Mamãe e Ana sempre foram muito unidas; mas quando
mamãe casou, Ana foi morar com tia Jans e tio Hendrik. Ana sempre
sentia a falta de Cor; por isso, quando recebeu o chamado de mamãe
e papai para vir ficar com eles em Amsterdã, atendeu alegre e
prontamente.
Dentro de sete anos nasceram mais quatro bebês, porém um
deles não chegou a viver. Papai teve de procurar uma casa de aluguel
mais módico para poder dar conta das responsabilidades.
Quando eu nasci, a casa em que eles moravam ficava no fim
do canal, numa rua sem movimento; por isso poucas pessoas
passavam pela loja. O negócio ia muito mal.
Eu era prematura, raquítica, de pele azulada. Quando tio
Hendrik me viu, abanou a cabeça penalizado. —Espero que o Senhor
tome logo esta criaturinha para si, levando-a para o seu lar no céu—
disse ele.
Felizmente meus pais não sentiam o mesmo que o tio
Hendrik. Eles cercaram-me de amor e cuidados. Como não havia
estufa para os prematuros naqueles dias, um dos maiores problemas
era manter-me quente. Eu chorava tão triste por causa do frio que a
tia Ana começou a enrolar-me no seu avental, prendendo-me bem
junto ao seu corpo; então eu me aquecia e me acalmava.
Muitos anos mais tarde, quando estive na África, encontrei
uma família missionária cujo nenê só se acalmava quando uma
nativa o envolvia em um pedaço de pano e o prendia às suas costas
bem junto ao corpo. O nenê sentia-se seguro e amado.
Eu devia ter-me sentido assim também quando
embrulhadinha no avental de tia Ana, bem junto ao seu corpo.
Durante o meu primeiro ano de vida eu era uma criaturinha
fraca e de aparência franzina. Mamãe contou-me de uma vez em que
ela viajou de trem com uma sua amiga que levava um belo nenê ao
colo. Seu nome era Rika. Os seus encantos provocavam comentários
e olhares de admiração por parte dos passageiros. Naturalmente, eles
olhavam para mim nos braços de mamãe, e viravam-se para o lado,
sem encontrar nada de positivo para dizer a meu respeito.
Mamãe me disse que a princípio ela áe entristeceu,
penalizada por mim; mas imediatamente, apertando-me nos braços,
murmurou em seu coração:—Eu não trocaria você por nenhuma
outra criança, no mundo inteiro, meu querido bebê feio, e com olhos
tão belos!
Quando Rika estava com dois anos de idade começou a ter
crises epilépticas. Durante a minha primeira infância ela foi minha
companheira de folguedos. Lembro-me de como se me apertava o
coração ao perceber aquele rostinho lindo transformar-se durante as
crises que lhe sobrevinham de um modo brutal. Mamãe sempre
estava pronta a acudir Rika; durante a vida toda ela nos ensinou a
amar e ajudar aqueles que são fracos ou doentes.

A herança de Haarlem,
Vovô Willem morreu quando eu estava ainda com seis meses
de idade; ele deixou para o papai a sua loja no Haarlem. Mudamo-
nos, pois, para lá; a casa não era muito grande; mamãe ainda não teve
o tão sonhado jardim. Ela plantava flores em vasos de barro e os
colocava sobre o telhado achatado a que chamava o seu quintal. Os
gerânios floresciam ao lado de outras plantas em vasos pendurados
ao muro de tijolos por onde subia uma trepadeira florida. Ela
cultivou um jardim no telhado muito antes de surgir a moda de
plantas nos terraços.
Mesmo na "nova" casa de Haarlem, ela podia ver só uma
nesguinha do céu que ela tanto amava. O telhado veio a ser o seu
quintal quando ela ficou muito fraca para fazer suas caminhadas
diárias pela rua.
Durante os primeiros anos de casados a situação financeira
devia ter sido muito séria. Ana trabalhava dia e noite para cuidar de
mamãe quando ela adoecia, e ainda dar conta de quatro crianças. Ela
recebia de papai a grande soma de um florim por semana (mais ou
menos cinco cruzeiros em nossa moeda). Papai pagava-lhe esse
magnífico salário todos os sábados; muitas vezes, porém, quando
chegava a quarta-feira e as finanças não iam bem, ele corria à
cozinha: —Ana, você ainda tem os seus cinco cruzeiros?
E Ana sempre tinha o seu florim e o usava para comprar
comida naquele dia e nos que se seguiam. Esse dinheiro era, por
certo, um "dinheiro abençoado"!
Aí está o começo da minha rica herança. Quando me lembro
da vida de minha família, compreendo que meus pais e minhas tias
nos ensinaram fielmente a arte de viver. Eles sabiam tirar proveito da
vida e amavam as crianças.
—Nunca nos rimos tanto em nossa vida como quando vocês
eram pequeninos—dizia-nos sempre tia Ana.
Em nosso coração devemos ter armazenado essas memórias
de alegrias para traze-las à tona anos mais tarde, quando o som de
vozes felizes era escasso em nossa querida pátria.
2
AOS CINCO ANOS
NÃO SE É TÃO CRIANÇA
O ano de 1892, quando nasci foi para a Holanda o começo de
uma excitante e importante era. Dentro de poucos anos, Guilhermina
seria coroada rainha com a tenra idade de dezoito anos. Tudo
indicava que a estabilidade da última parte desse século seria logo
sacudida pelas espadas germânicas. A política externa começava a
assumir contornos de poder, quando o jovem Kaiser Guilherme II
governava o país que mais tarde representou uma parte importante na
minha vida.
A formação da história nada significa para uma criança, mas
para mim era um acontecimento mundial o fato de mamãe ou titia
Ana contar e recontar o dinheirinho que já era tão escasso, para
adquirir açúcar e manteiga extras para os bolinhos de que eu tanto
gostava! O cheiro do bolo no forno devia chegar até à loja como um
suplício para os empregados, ao mesmo tempo que nos punha felizes.
Quando eu tinha cinco anos aprendi a ler; eu adorava
histórias, e em especial as histórias sobre Jesus. Ele era um membro
da família ten Boom; e era tão fácil manter uma conversa com ele
como era quando o fazíamos com mamãe, papai, minhas tias, meus
irmãos, minhas irmãs. Jesus estava ali em nosso meio.
Um dia aconteceu algo importante enquanto eu brincava de
"faz-de-conta". No meu mundo de fantasia, eu visitava uma vizinha
que não me queria atender. Eu batia, e batia à porta... e nada. Mamãe,
que me observava, entendendo o meu "faz-de-conta", chamou-me:—
Corrie, sua vizinha não a atende? Eu conheço alguém que está neste
exato momento batendo à sua porta, esperando que você a abra.
Estaria mamãe brincando de "faz-de-conta" comigo? Hoje eu
sei que meu coração infantil estava sendo preparado naquele
momento; o Espírito Santo nos prepara para receber a Jesus Cristo
fazendo com que nossa vida se volte inteiramente para ele. Jesus
disse que ele está à porta; e se você o convidar, ele entrará no seu
coração—continuou mamãe—. E você gostaria de convidar Jesus
para entrar em seu coração?
Naquele momento mamãe me pareceu a mais bela pessoa do
mundo inteiro. —Sim, mamãe; eu quero Jesus no meu coração.
Ela tomou minhas pequeninas mãos nas suas e oramos juntas.
Era tão simples; todavia Jesus diz que todos devemos ir a ele como
crianças, não importa a idade, posição social ou intelectual.
Quando mais tarde mamãe me falou sobre essa experiência de
criança, lembrei-me dela claramente.

Mas você é tão pequena


Pode uma criança de cinco anos saber o que está fazendo? Há
os que dizem que crianças não têm discernimento espiritual para
tomar uma decisão, por isso devem esperar até que possam pensar
por si mesmas. Creio que a criança deve ser conduzida e não
abandonada ao léu da sorte.
Jesus tornou-se mais real para mim depois daquela
experiência. Mamãe contou-me mais tarde que eu, pequena assim
como era, comecei a orar por outras pessoas.
Atrás de nossa casa ficava a Snedestraat, uma rua cheia de
bares onde aconteciam tantas coisas que me deixavam assustada.
Muitas vezes, enquanto brincava de pular corda ou de jogar bola com
minha irmã Nollie no fundo de nosso quintal, eu via dali aqueles
homens cambaleando, quase sem poderem ficar em pé, e outros que
se deitavam pelas portas eram arrastados pela polícia e levados para a
delegacia.
E eu ficava observando (a delegacia ficava atrás do Beje) os
embriagados serem empurrados para lá. Isso me fazia tremer. O
edifício era alto, de tijolinhos vermelhos, cheio de janelinhas
gradeadas. "Onde seriam as celas? Seriam atrás daquelas
janelinhas?" pensava eu.
Foi naquele mesmo edifício de tijolinhos vermelhos que, anos
mais tarde, meu pai, todos os filhos e um neto foram encarcerados,
por ajudarem os judeus a livrar-se da Gêstapo.
Criança como eu era, preocupava-me com aqueles presos e
corria para mamãe soluçando:—Mamãe, estou com medo que eles
maltratem aqueles pobres homens ... eles estão muito doentes ... nem
podem ficar em pé sozinhos!
Abençoada compreensão de mamãe! Ela dizia: —Ore por
eles, Corrie.
E eu orava pelo bêbados. "Querido Jesus, por favor, ajuda
aqueles homens ... e, Jesus, ajuda a todos os da Smedestraat."
Muitos anos mais tarde, fui falar numa estação de televisão na
Holanda. Depois do programa, recebi uma cartinha que dizia: "Meu
marido se interessou pelo programa porque a senhora disse que
morou no Haarlem. Ele morou numa casa na Smedestraat. Há três
anos ele aceitou a Jesus como seu Salvador pessoal."
Aquela carta me fez lembrar das orações da pequenina
Corrie! Aquele homem, cuja esposa me escreveu, era uma pessoa por
quem, sessenta anos antes, eu havia orado.

Ele atende?
Lembro-me de outra ocasião, na minha juventude, quando
participava de um acampamento com algumas meninas do Haarlem.
À tardinha, ao redor do fogo, conversávamos sobre o Senhor e
comentávamos os acontecimentos agradáveis do dia.
—Você sabe que sou sua vizinha?—disse-me uma das
meninas—. Eu moro na Smedestraat.
—E eu morei lá há cinco anos—disse-me outra.
—Minha mãe morou lá—disse a terceira.
E caímos na risada ao descobrir que dezoito moças que
dormiam na grande barraca desse acampamento haviam morado
naquela rua ou, quando não, os pais haviam morado lá. Elas acharam
uma coincidência divertida.
—Ouçam—disse-lhes eu—. Lembro-me agora de algo que
quase me havia esquecido. Quando eu tinha cinco ou seis anos de
idade, costumava orar todos os dias pelos moradores da Smedestraat.
O fato de estarmos aqui hoje falando sobre Jesus; o fato de Deus ter-
me usado para alcançar os pais de algumas de vocês não deixa de ser
resposta à oração de uma criança. Não há dúvida de que Deus ouve
nossas orações, por mais estranhas que pareçam.
Quantas vezes pensamos que Deus disse não a uma oração
não respondida. Muitas vezes ele simplesmente está dizendo: Espere.

O futuro vera rápido


Quando somos crianças, quase não conseguimos
compreender o futuro. Meu pai mencionava em todas as suas orações
certo acontecimento futuro que me deixava pensativa por não con-
seguir entendê-lo. Também eu não queria perguntar-lhe diante da
família toda reunida para o culto doméstico, pois poderia passar por
tola ignorando algo que era mencionado tantas vezes ao dia.
Esperei então até à hora em que papai subia ao meu quarto
para o costumeiro "boa noite"; lá eu poderia fazer todas as perguntas
que quisesse.
—Papai, o senhor sempre diz em todas as suas orações:
"Apressa o grande dia quando Jesus Cristo, teu amado Filho, voltará
sobre as nuvens do céu." Eu lhe pergunto: Por que o senhor está tão
ansioso por aquele dia?
—Correman, lembra-se daqueles homens bêbados da
Smedestraat, que eram levados pela polícia? Pois bem; o mundo está
cheio de lutas e desordens. No decorrer da sua vida você verá lutas
piores do que aquelas da Smedestraat.
Eu não desejava isso. Brigas e lutas sempre me assustavam.
—Na Bíblia—continuou papai—, lemos que Jesus prometeu
voltar a este mundo para fazer novas todas as coisas. O mundo de
hoje está vivendo coberto de ódio. Mas, quando Jesus vier, o mundo
será coberto pelo conhecimento de Deus, como as águas cobrem o
profundo dos mares.
Pensando naquele maravilhoso dia, entendi por que papai
orava pela sua vinda constantemente.
—Oh! papai, então é preciso que todos conheçam a Jesus!
Como serei feliz quando ele voltar!

Deixai as crianças virem a mim


Dezenas de anos mais tarde, fazendo uma palestra a um
grupo, dirigi-me especialmente aos pais, incentivando-os a trazerem
seus filhinhos a Jesus. O próprio Jesus disse: "Deixai os pequeninos,
não os embaraceis de vir a mim, porque dos tais é o reino dos céus"
(Mateus 19:14).
Então narrei como eu me decidi por Jesus quando tinha cinco
anos de idade.
Depois da palestra, encaminhei-me para uma saleta onde
encontrei um pai, com dois meninos sobre os joelhos. Ele, com os
braços ao redor dos dois garotinhos, falava ternamente com eles.
Voltei-me sobre meus pés silenciosamente, enquanto o pai dizia com
todo o amor aos filhinhos que eles não eram tão pequenos que Jesus
não pudesse entrar e morar nos seus corações.
Que herança maravilhosa o pai daqueles garotos lhes
transmitia! Sentir que o pai os amava tanto ao ponto de guiá-los ao
conhecimento do Pai do céu!
Mais tarde recebi uma carta de uma senhora contando-me
sobre os resultados daquela palestra na sua vida. Ela dizia:
Fui para casa depois daquela reunião e encaminhei-me direto
ao quarto de minha filhinha Mary para conversar com ela. Mary já
estava na cama. Ela conhecia a Deus, pois tinha freqüentado a escola
dominical; mas naquela noite, na sua cama, depois da nossa
conversa, ela fez a entrega total do seu coração a Jesus.
Na manhã seguinte ela disse:—Oh! mamãe! estou tão feliz
porque agora Jesus está dentro do meu coração. Eu sinto que ele fez
de mim uma filha de Deus!
Mary cantou todo o tempo antes de ir para a escola; era
surpreendente ouvi-la cantar tantos hinos sobre o céu.
Naquele dia, meu marido foi buscá-la depois das aulas. Ao
aproximar-se da escola notou um grande ajuntamento que lhe cha-
mou a atenção. Era óbvio que havia acontecido um acidente.
Aproximando-se mais, logo tudo foi esclarecido.
Mary jazia estendida na calçada, seu pequenino corpo
disforme como uma bonequinha de trapo. Estava morta.
Enquanto eu lia aquela carta, não conseguia dominar as
lágrimas que lhe tornavam as letras quase que em um borrão.
Mary passara atrás de um caminhão e não vira um carro que
vinha sobre ela, em direção contrária. Sua morte foi instantânea.
Meu marido trouxe seu corpinho para casa. Ele estava
profundamente abalado. Então se lembrou das canções que Mary
entoou naquela manhã. Contei-lhe sobre o que havia acontecido na
noite anterior; então, meu marido que nunca havia tomado uma
decisão por Cristo, naquele momento se decidiu, aceitando-o como
seu Salvador.
No dia dos funerais de Mary, muitas crianças de sua classe
entregaram-se a Cristo.
Fiquei ali parada, com a carta nas mãos, pensando na
urgência de falar com os pais sobre a importância e felicidade de
encaminhar os filhinhos a Deus. Com que certeza os pais de Mary
esperavam o dia em que estariam com ela novamente !
Durante algumas de minhas palestras, muitas vezes tenho
usado esta pequena poesia como ilustração:

SALVO?
Um precioso rapazinho
Um dia ao pai foi falar:
"A Cristo entregar-me eu posso
P'ra minhas culpas lavar?"

"Filho meu, tão pequeno é você


Espere um pouco, até quando crescer;
Gente grande de Cristo precisa;
Crianças 'stão salvas, já deve saber."

Disse o pai ao precioso rapaz,


Pressentindo um feroz temporal:
"Estarão as ovelhas seguras,
Todas salvas em nosso curral?"

"As crescidas, meu pai, sim, pois não!


Os cordeiros, porém, deixei-os sair.
Que importância haveria na fuga, afinal?
Pequeninos, 'stão salvos, já podem partir."
Autor Desconhecido.

Orando por Thys, o bobo


Quando eu era criança, em Haarlem, orava sempre por um
homem que era desprezado e esquecido por quase todas as pessoas.
Chamavam-no de Thys, o bobo; ele era anormal, um desses tipos
inofensivos que andam pela cidade servindo de chacota. Eu tinha
pena dele, e, aos cinco ou seis anos de idade comecei a falar com
Deus sobre Thys, o bobo.
Que coisa curiosa é a mente infantil! Teria sido por influência
de minha mãe ou de uma de minhas tias que comecei a levar minhas
preocupações a Deus? Ou quem sabe ele mesmo me inspirou a tal ?
Todas as minhas orações da manhã e da noite terminavam assim. "E,
ó Deus, fica com todos da Smedestraat; e não te esqueças de Thys, o
bobo."
Minha irmã Nollie era somente um ano e meio mais velha do
que eu; porém ela era muito mais amadurecida e sensata. Lembro-me
de uma vez em que juntas passávamos pela Smedestraat e paramos
para ver um ajuntamento de crianças. Ficamos a certa distância, pois
tínhamos medo de envolver-nos com os acontecimentos dessa rua.
As crianças, formando um círculo, riam e gritavam. Percebia-se logo
que alguém no meio do círculo estava servindo de chacota.
Aproximando--me um pouco mais do grupo, divisei o rosto ferido e
assustado do infeliz Thys, o bobo. Meu coração se me apertou e não
suportei. Empurrando uns e outros, gritei furiosa:—Parem com isso!
Deixem-no em paz, estão ouvindo? Vamos!
As crianças pararam instantaneamente. Thys, o bobo, olhou
em volta como que à procura do seu defensor e viu uma garotinha
com menos que a metade de sua altura. De repente, ele se
encaminhou em minha direção e parou. Pude sentir o cheiro
desagradável que exalava de suas roupas sujas e de sua barba
emaranhada. Com sua mão ele levantou meu queixo e, curvando-se,
beijou-me o rosto em ambas as faces.
Nollie estava alarmada! Puxou-me rápido e, segurando-me
pela mão, começou a correr, a correr tanto que eu mal podia
acompanhá-la. Fui quase arrastada pela corrida de Nollie descendo a
Smedestraat, até chegar em casa, onde quase sem fôlego entramos de
supetão.
—Titia! Mamãe! Alguém aí, depressa! Aquele velho sujo, o
Thys, beijou a Corrie. Ela precisa lavar o rosto! Já, já!
E o meu rosto foi tão esfregado que pensei que me
arrancavam a pele. —Esses vagabundos perigosos não deviam andar
soltos pelas ruas!— ouvi alguém dizer.
Com o coração queimando pela repreensão tal qual o meu
rosto pelos esfregoes, corri para mamãe.
—Mamãe, que há de tão horrível no fato de Thys me haver
beijado? Ele não passa de um coitado, um infeliz. Todo mundo faz
chacota dele!
Mamãe levou-me para sua cama e, ternamente conversou
comigo, enquanto me aninhava em seus braços carinhosos. E ela
disse:
—Correman, é bom, muito bom mesmo que você se
compadeça desse homem. O Senhor Jesus colocou no seu coração a
capacidade de amar os bêbados da Smedestraat, bem como a Thys, o
bobo. Jesus ama os pecadores; porém, antes de eles o aceitarem,
esses homens se tornam perigosos. Muitas vezes eles são maus
porque não conhecem o amor de Deus. Por isso é melhor conservá-
los à distância. Mas há uma coisa importante que podemos fazer, e
que você já está fazendo: orar fielmente por eles.
Depois desse incidente, Thys, o bobo desapareceu das nossas
ruas. Não sei qual foi a atuação de Deus em sua vida, mas uma
profunda preocupação pelos débeis mentais se apossou de meu
coração.

Não temer nenhum mal... exceto


A criança nem sempre é corajosa como os pais muitas vezes
pensam. Ela é um amontoado de medo, terrores inexplicáveis e
angústias irreais.
Eu tinha medo do consultório médico, medo de perder minha
família, medo do mistério da morte.
A camisola de dormir de Nollie representava segurança para
mim. Eu e Nollie dormíamos juntas na mesma cama. Lembrar-me-ei
sempre da maneira como me enrolava à sua camisola enquanto ela o
permitia. Pobre Nollie! quando ela tentava virar-se na cama, lá estava
a camisola presa a mim e eu tão encostadinha em busca de
segurança.
Certa vez mamãe nos levou, a mim e a Nollie, para visitar
uma senhora cujo nenê havia falecido. Como eu gostaria que Nollie
tivesse levado sua camisola de dormir naquela visita, pois eu sentia
desesperadamente a necessidade de enrolar-me nela.
Subimos por uma escada estreita e entramos num quarto
humilde e pobremente mobiliado, de uma das "exploradoras" de
mamãe (esse era o nome que nós, crianças, dávamos às protegidas de
mamãe). Apesar de nunca termos dinheiro suficiente em casa,
mamãe sempre encontrava alguém mais necessitado que nós.
Naquele miserável quarto, num berço pequenino, estava um
nenezinho. Não se movia. Seu rosto era da cor de cera. Nollie
aproximou-se do berço e, com a mão tocou as faces do nenê.
—Sinta isto—disse-me ela—; como está gelado!
Toquei a mãozinha do nenê e imeditamente corri para minha
mãe, abraçando-me a ela. Eu havia tocado a morte pela primeira vez
e parecia--me que a sensação daquela mãozinha gelada ficara comigo
por muitas e muitas horas.
Quando voltamos para casa, corri escadas acima para o meu
quarto e lá fiquei debruçada sobre a velha cômoda. Havia um medo
terrível dentro de mim; era quase terror. Em minha imaginação, o
futuro se me apresentava como um quadro onde eu me via sozinha,
sem minha família, desolada. Minha família era minha segurança;
mas naquele dia eu havia visto a morte, e sabia que os meus
poderiam morrer também. Eu nunca havia pensado nisso antes.
Soou a campainha para o jantar e eu me senti grata por poder
correr para a grande mesa oval, onde poderia aquecer meu coração e
sentir a segurança de estar com a minha família. "Como os adultos
me achariam tola se soubessem do medo que ainda se aninha em meu
coração", pensava eu.
Jantei calada naquela tarde, coisa difícil de se dar quando se
vive, como eu, numa família tão alegre e jovial.
Depois do jantar papai tomou a Bíblia como sempre o fazia e
começou a ler o versículo 2 do Salmo 46: "Portanto não temeremos
ainda que a terra se transtorne, e os montes se abalem no seio dos
mares."
Endireitei-me na cadeira e olhei fixamente para o meu pai. Eu
não entendia muito sobre montanhas, visto como morávamos na
plana, plana Holanda; mas sobre temer eu entendia muito bem, e de
sobra! Pensei até que papai estivesse ciente do problema que me
assaltava, naquela tarde.
Minha fé no papai e nas palavras que ele leu na Bíblia era
absoluta. Se eles disseram para não temer, é porque Deus cuida de
tudo. E eu me sentia segura e tranqüila novamente.
3
PEQUENOS COMEÇOS
Minha boneca chama-se Casperina. Ela e eu vamos ter uma
festa! Mamãe e tia Ana estavam cozinhando e eu, do meu
esconderijo embaixo da mesa, observava suas longas saias roçando
pelo tapete ao passarem por mim. Ali onde eu estava, debaixo da
toalha belamente estampada que cobria a mesa de jantar, era um
lugar seguro e adorável para brincar com a minha Casperina.
Minha boneca amiga trazia o nome de meu pai; mas a
semelhança estava apenas no nome: Casper—Casperina; quanto ao
resto, nada mais. Eu a amava muito, mas as idas e vindas, arrastando-
a comigo escada acima, escada abaixo ali no Beje, resultaram na
perda de alguns dedos em suas mãozinhas, e numa cabeça
completamente rachada. Oh! gente! Por que ela não se parece com a
boneca de Nollie, que estava sempre imaculadamente vestida, sem
um arranhão em suas faces de porcelana? Pobre Casperina! Não
podia nem mesmo ser comparada a Ema, a boneca de Betsie, cujo
nome era tirado do nome da mãe de nossa rainha.
—Não importa, Casperina!—eu cochichava ao seu ouvido,
em nossa casinha embaixo da mesa—; Jesus ama a você, e eu
também a amo.
Quando me sentia plenamente feliz, costumava cantar uma
canção composta por tia Jans. Terminava assim:
'k Zou zoo graag eens Jcomen, Heiland, In dat heerlijk
Vaderhuis. (Eu gostaria de entrar, Salvador, Na bela casa de meu
Pai.)

Porém, em vez de dizer entrar, eu dizia: olhar; assim


combinava minhas palavras com as travessas olhadelas que eu dava
por entre as pernas torneadas da mesa.
Tia Ana, ao ouvir-me cantar, dizia-me rindo:
—Corrie, espero que tia Jans não ouça que você está trocando
as palavras de sua canção. Quando ela escreve "entrar no céu", é isso
mesmo que ela quer dizer.
"É, há muita coisa mesmo que gente grande não entende",
pensei comigo mesma. Eu queria dizer, ao cantar olhar no lugar de
entrar, que simplesmente naquele momento seria mais interessante
dar só uma olhadela no céu, onde eu sabia ter de viver um dia o meu
futuro. Agora eu queria dar só uma simples olhadela; afinal de
contas, a casa de meu pai era justo aqui onde eu estava, no
Barteljorisstraat; aqui era todo o céu que eu queria hoje.
Apertei os dedinhos restantes de Casperina em minhas mãos e
sussurrei: "Nós ficaremos aqui em nosso lugar secreto, onde
ninguém, por coisa alguma jamais ralhará conosco."

Tempo de arrancar
Chega o dia em que todas as crianças, e até mesmo uma
holandesinha com seus dentes cerrados, meias pretas em suas pernas
rígidas no alto de uma escada, têm que deixar a casa paterna por
algumas horas. Eu nasci com os pés levemente virados para dentro,
defeito esse que médico garantiu desapareceria por si mesmo, com o
meu crescimento.
__Não se preocupem—disse o médico a meus pais__ Quando
ela chegar aos dezesseis anos, sua própria vaidade a obrigará a
endireitar os dedos.
Entretanto, quando eu, de propósito entortei mais os pés e me
agarrei ao corrimão com tanta força que as juntas dos meus dedos se
tornaram brancas, eu não estava brincando: era sério mesmo.
__Eu não vou para a escola. Não vou mesmo.
Já sei ler; aritmética eu posso aprender com papai; além
disso, Casperina precisa de mim em casa. É isso! Está decidido!
—Claro que você não irá sozinha à escola, Corrie. Eu vou
junto com você—, ouvi a voz de papai curvando-se sobre mim. Sua
barba roçava a minha cabeça; ele foi desprendendo lentamente meus
dedos, um a um, agarrados pertinazmente ao corrimão. Cada dedo
que se soltava era acompanhado de um berro, cada vez mais alto.
À hora determinada, papai, com a minha mão na sua, quase
me arrastava rua abaixo em direção à escola. Pensei que minha mão
fosse quebrar-se como a da minha pobre Casperina, e se isso
acontecesse, ser-me-ia impossível ir à escola.
Devia ter sido difícil para o papai, com seu imaculado terno,
seu porte ereto, ter de passar em frente das casas e lojas de seus
amigos arrastando uma menina de olhos e faces vermelhos,
proclamando seus protestos ao mundo inteiro!
Eu sabia que papai não estava zangado; mas sua vontade era
lei. Eu tinha que obedecer.
Quando chegamos à escola, vi um garoto que entrava na
classe do professor Robyns, carregado pelo pai. Ia aos berros! (Pelo
menos, embora arrastada, eu cheguei andando.) O garoto gritava
alto, alto, muito mais que eu. Apesar de achar aquilo muito feio, tive
pena dele. Mas, que dizer de mim? Como parecia eu aos olhos dos
outros? Feia também? Diante desses pensamentos, calei--me
abruptamente.
Papai soltou-me a mão; meus dedos afinal não estavam
quebrados; só meu coração estava levemente ferido. Todavia, quando
papai me beijou carinhosamente nas faces, transmitindo-me a fa-
miliar fragrância de charutos e água-de-colônia, garantiu-me que
estaria em casa à tarde esperando por mim; e eu estava certa de que
encontraria aquela segurança bendita de que tanto eu necessitava, no
aconchego de seus braços.
Deus estava ensinando uma pequena lição a uma vida
também pequena, porque sessenta anos mais tarde ele me faria
lembrar os dedos apertados fortemente no corrimão.
Eu estava num quarto de Zonneduvn, uma casa na Holanda
estabelecida por, mim e por alguns amigos meus para receber, a
princípio, ex-prisioneiros dos campos de concentração; e mais tarde
para abrigar qualquer pessoa necessitada de cuidados ou repouso. Eu
tinha viajado muito e estava cansada de dormir aqui e ali, comer
comidas estranhas; cansada de me vestir de um modo especial para
as refeições; cansada de gente nova e de novas experiências; afinal,
cansada de tudo. Eu gostava desta casa luxuosa com seus con-
fortáveis quartos; decidi então ficar e gozar um pouco da vida suave
da Holanda, isso apesar de eu saber que Deus não estava de acordo
com essa minha decisão.
A maioria de todo o mobiliário da casa me pertencia. Havia
um quarto em particular que me lembrava a feliz vida familiar do
meu passado. Era o quarto onde eu guardava meus tesouros:
fotografias daqueles que eu amei, recordações de minha família
durante os anos que se foram. Cada quadro, cada fotografia era para
mim aquele corrimão da escada onde eu me segurava. Minhas mãos
agarradas ao passado tentavam prender-se mais e mais; mas as mãos
do meu Pai celeste eram mais fortes.
Saí de casa por algum tempo para fazer umas palestras já
combinadas antes, porém com a intenção de voltar e então ali
permanecer definitivamente. Entretanto, quando voltei a Zonneduin
algumas semanas mais tarde, meus quadros tinham sido retirados e
os pertences estranhos de alguém estavam em minha cama.
Meus amigos não estavam sabendo da minha decisão de
voltar para o meu quarto; minha vida acidentada, minhas idas e
vindas inesperadas traziam dificuldade àqueles que tinham de con-
trolar a grande família de pacientes e empregados.
Mas eu decidi ficar, e estava resolvida a questão!
Meu Pai celeste falou comigo: "Obedeça-me somente, Corrie!
Eu segurarei sua mão. É meu plano que você deixe o seu quarto.
Mais tarde você me agradecerá esta experiência. Você não percebe
ainda, mas isto é uma das minhas grandes bênçãos para você."
E de novo meus dedos se foram soltando do corrimão, um a
um. A mão do Pai do céu era firme, e eu conhecia o seu amor.
Arrumei minhas malas e parti para os Estados Unidos. Como
Deus abençoou a minha permanência ali! As reuniões começaram a
crescer, e a crescer em número. E quando eu via pessoas saindo das
trevas para a luz; da escravidão para a liberdade, comecei a entender
a semelhança do quadro do passado! Eu pude dar louvores a meu Pai
porque suas mãos eram mais fortes do que as minhas.

Pedras azuis podem ferir


A vida na escola não era tão horrível como eu imaginava.
Pelo menos assim o sentia, especialmente quando, ao receber uma
tarefa de aritmética, via que o meu resultado combinava com o do
professor. Não deixava de ser uma vitória! Todavia, eu não prestava
muita atenção a detalhes. Não havia tempo para tal, pois eu era uma
sonhadora! Em minha fantasia eu vivia num mundo onde todos
necessitavam de um novo relógio, e dos bem caros! Diariamente eu
me via correndo pelas dunas com as faces ardendo ao calor do sol.
O diretor da nossa escola era um homem enérgico e exigente.
Suas ordens eram leis para serem obedecidas sem discussão. Ele
havia feito um aviso aos alunos para que não pisassem na "pedra
azul" que era uma pequena pedra quadrada azul, um pouquinho mais
elevada do que o chão, assim como uma pequena plataforma. Com a
mente a divagar, não prestei atenção ao aviso e ... pisei na pedra.
Imediatamente senti minha face arder ao estalo de uma bofetada. Até
hoje sinto aquela sensação de vergonha, pois nem em minha casa,
nunca havia levado um tapa no rosto. Esse fato gravou-se em minha
mente de modo indelével. As lágrimas me inundaram o rosto; mas
ainda assim, por entre elas consegui perceber a menina que estava na
minha frente, e que usava um vestido vermelho com um avental
branco; o verde do portão do jardim confundia-se com os olhos
faiscantes do senhor Loran, o diretor.
Mal pude esperar a hora de voltar para casa. Antes mesmo de
abrir a porta, meu choro era tão alto que encobria o som da
campainha anunciando a chegada de algum freguês na loja.
Mamãe tomou-me ao colo e me consolou; e depois que eu me
acalmei um pouco, papai me ergueu em seus braços como fazia
quando eu era pequenina. Posso sentir ainda aquela sensação de
amparo ao aninhar minha cabeça em seus ombros. Que tranqüilidade
encontrar um refúgio quando a vida é realmente cruel!
Quarenta e cinco anos depois do incidente da pedra azul, a
Gestapo me levou presa. Fui interrogada sobre o lugar secreto onde
eu havia escondido quatro judeus e dois outros homens que
trabalhavam na resistência. Responder seria condenar à morte
aquelas seis pessoas; por isso me calei. Então senti o estalo de uma
bofetada em meu rosto, vinda das mãos do meu inquiridor.
Imediatamente me vi pisando na "pedra azul" e revi os olhos irados
do diretor da escola, enquanto ao mesmo tempo sentia o conforto e
consolo por parte de meus pais.
—Senhor Jesus, protege-me!—eu gritei.
—Se você repetir esse nome eu a mato!—gritou o homem
irado. Porém a sua mão erguida estacou no ar e ele não conseguiu me
bater mais.
Que segurança encontrar um refúgio quando a vida é
realmente cruel!

In dat Vaderhuis (Naquela casa paterna)

Nossa casa não era muito grande, mas as largas portas


estavam sempre abertas. Não creio que muitos que passaram pelo
Beje percebessem a luta para que tudo corresse nos seus devidos
eixos. Mamãe sempre dizia:—Precisamos tornar cada centavo em
dois antes de gastá-lo.
Nós nunca nos sentimos pobres, e não o éramos, em
realidade. A expressão "não podemos fazer isso" não fazia parte do
nosso pensamento, porque mesmo crianças, conhecíamos até certo
ponto a situação financeira da família; então, nunca pedíamos o que
sabíamos ser impossível conseguir.
Muitas pessoas solitárias encontravam um lugar em nosso lar,
onde havia música, risos, alegria, conversas interessantes e sempre
um lugar a mais em nossa mesa oval da sala de jantar.' È verdade que
muitas vezes era preciso colocar mais um pouco de água na sopa já
pronta, com a chegada de hóspedes inesperados; mas isso não nos
importava.
Mamãe adorava receber visitas. Seus amorosos olhos azuis se
tornavam mais brilhantes enquanto ajeitava ligeiramente os cabelos
escuros ao saber que tínhamos de nos apertar um pouquinho mais à
mesa para dar lugar a um novo hóspede, embora já contasse na mesa
com quatro crianças, três tias, ela e papai. Era com graça que ela
colocava uma caixinha sobre a mesa; e com um gesto muito amigo
dizia ao visitante:—Bem-vindo à nossa casa; e em sinal de gratidão
pela sua visita, vou colocar mais dez centavos na caixinha de bênção
para os nossos missionários.
Anos mais tarde, em minhas viagens pelo mundo, quando
dependia da hospitalidade de outros, acredito que estivesse
recebendo a retribuição das portas e corações abertos em nosso lar.
Aqui na terra eu tenho desfrutado de "muitas moradas".
Sempre penso naquele versículo: "Lança o teu pão sobre as
águas, porque depois de muitos dias o acharás" (Eclesiastes 11:1).

Corrie, quieta!
Apesar de o dinheiro em casa nos ser escasso, o mundo lá
fora nos tinha na conta de ricos. Cada membro de nossa família
andava bem limpinho e bem vestido. Quero dizer, quase todos.
Mamãe costurava a maior parte da nossa roupa. Quando se sentia
muito sobrecarregada, a senhorita Anna van der Weyden, a
costureira, vinha ajudá-la.
Roupas para mim serviam simplesmente para cobrir-me o
corpo e manter-me aquecida. Toda aquela confusão nos arremates do
vestido, as últimas provas, aquela infinidade de alfinetes a me
espetarem a pele, tudo isso era uma tortura para meu corpo
irrequieto.
—Corrie, venha cá, querida!—chamava a mamãe, naquela
entonação de voz tão minha conhecida para as "benditas" provas de
vestido!
—Se eu não terminar este exercício, mamãe, o professor
Robyns vai deixar-me em pé no canto da sala!
—Corrie!
Agora não havia escapatória. Eu sabia que se não atendesse à
mamãe para as provas do vestido, eu cairia nas mãos da Srta. Anna,
cujo corte não me caía tão bem quanto o da mamãe. Todo esse
processo era cacete demais para mim. Não havia mesmo jeito de eu
me parecer com Nollie ou Betsie. Eu preferia ser eu mesma, embora
fosse uma ten Boom e não devesse envergonhar o nome da família!
Mamãe tinha um maravilhoso senso de humor; tendo sido
professora de Jardim de Infância antes de casar-se, éramos
beneficiados com o grande conhecimento de psicologia prática
infantil adquirido naquela ocasião. Ela sabia que elogiando a minha
aparência não despertaria meu interesse. Entretanto, quando ela
disse: "Corrie, você é uma menina inteligente, brilhante... Estou certa
de que você é sempre chamada em classe para lição oral. E você quer
estar de boa aparência na hora de levantar-se para expor a lição
diante de seus colegas e do professor Robyns, não quer?" Agora ela
atingia meu ponto fraco, pois o que eu mais desejava era aprender e
ser reconhecida como boa aluna pela minha classe.
Então eu ficava quietinha, pelo menos por um instante. Havia
muita coisa por fazer, muito por aprender e muito para viver! Eu
tinha dentro de mim um senso de urgência para desfrutar tudo o que
a vida e o amor podiam oferecer em cada dia que me era tão
precioso!
4
AS IDADES DO AMOR
As crianças necessitam da sabedoria dos adultos e estes, por
sua vez, necessitam do estímulo que vem da exuberância delas.
Assim é que, sabedoria e exuberância viviam lado a lado no
Beje, uma casa cheia de personalidades jovens e adultas.

Tia Bep (Sozinha na multidão)

As babás nas casas ricas da Holanda viviam muito solitárias.


Não se sentiam em casa na cozinha com as copeiras, que geralmente
pensavam que as babás tinham privilégios dos quais elas não
partilhavam. Também não se sentiam em casa quando
acompanhavam as crianças e respectivas professoras na sala de
estudo. Conseqüentemente, tornavam-se amargas por não en-
contrarem um lugar certo na sociedade. Tia Bep trabalhava como
babá; por toda a vida, desde mocinha, indo de emprego em emprego,
tornou-se uma pessoa cada vez mais amarga e infeliz.
Ela era a irmã mais velha da mamãe; talvez por isso (hoje eu
entendo) mamãe tivesse um cuidado especial na maneira de tratá-la.
Mamãe geralmente precisava de muito tato para dirigir a casa,
fazendo com que tudo corresse suavemente—todas aquelas tias com
seus respectivos e individuais pontos de vista sobre educação e
disciplina ... Mamãe sabia como conduzir o barco por entre as
rochas!
Quando tia Bep não estava mais com idade e saúde para
continuar o seu trabalho, papai e mamãe trouxeram-na para casa. Tia
Bep tinha os mesmos olhos azuis e bonitos da mamãe; porém sua
expressão era triste e infeliz. Ela reclamava de tudo. Havia, por
exemplo, a questão do café. Ela disse à tia Ana:
—Ana, eu sou a única pessoa aqui que pode fazer café.
Se havia alguma coisa importante em nossa casa era uma
xícara de um bom café. Diante, pois, da observação da tia Bep, tia
Ana tirou o avental e, limpando com gosto a garganta, colocou o
avental na cintura da tia Bep com estas palavras:
—Bep, se você acha que o seu café é tão bom, então cuide
também de tudo na cozinha. De agora em diante o fogão é seu.
—Ana—intervinha mamãe com aquele jeitinho calmo e
suave de acomodar as coisas—; nós não poderíamos viver sem as
suas deliciosas iguarias; e, Bep, eu sei que o seu café é excelente
também. Que tal você tomar a tarefa de preparar o seu delicioso e
especial café nas segundas e quintas--f eiras ?
Nossa casa era pequena, por isso era difícil evitar os
encontros com tia Bep. Mas eu tudo fazia para desviar-me dela
porque eu não gostava de ser sempre comparada com as crianças
Waller; parecia até que as crianças daquela casa eram anjos com suas
lindas auréolas polidas diariamente.
As crianças Waller estavam sempre limpinhas. As crianças
Waller não corriam dentro de casa... Eu não gostava de contar nada à
tia Bep porque sabia o que ela ia dizer: "As crianças Waller não
diriam nunca tais coisas."
Mamãe muitas vezes procurava acalmar meus sentimentos
agressivos dizendo-me:—Tia Bep sempre se queixava das crianças
Waller no tempo em que cuidava delas. Procure amar a tia Bep pelo
que ela é, Correman, e, lembre-se também de que ela tem tido uma
vida muito solitária.

Tia Jans (É isso aí!)

—Corrie, feche a porta ... meus pés estão frios e vou ficar
doente com toda essa corrente de ar pela casa.
Tia Jans estava sempre preocupada com sua saúde e nos fazia
constantemente, de um modo ou de outro, tomar conhecimento de
suas necessidades. A comida dela era diferente da de toda a família,
pois estava quase sempre de regime. Como criança, muitas vezes tive
vontade de ficar doente para receber a comida numa bandeja,
acompanhada de atenções especiais.
Os cômodos da casa ocupados por tia Jans eram especiais
também. Mamãe e papai reservaram para ela uma boa parte da casa
para que pudesse acomodar todo o mobiliário que ela trouxe consigo.
Seu marido fora um pastor muito conhecido em Rotterdã e
ela uma fiel ajudadora dele nos trabalhos da igreja. Não tiveram
filhos, o que lhe tornou a vida mais triste ainda ao perder o marido
antes mesmo de ela haver completado quarenta anos de idade. Viúva,
é claro que o seu lugar seria em nossa casa.
Tia Jans não era uma mulher que se deixasse abater pelas
tristezas. Assim que se instalou em nossa casa, colocou também sua
vida no lugar. Começou logo todas as suas muitas atividades fazendo
a família toda movimentar-se.
Ela era poetisa, escritora e excelente oradora. Fundou um
jornalzinho mensal para crianças; escreveu livros, todos com uma
mensagem espiritual; organizou clubes para jovens e mais tarde
começou um clube para os soldados.
Um dia tia Jans entrou em casa como um furacão, dizendo:—
Há soldados vagando pelas ruas de Haarlem, com ares muito
suspeitos. Vou fundar um clube para soldados.
É isso aí! Estava decidido. Quando tia Jans fazia um dos seus
avisos, podia-se saber que as rodas já estavam em movimento. Antes
que se pudesse pensar no assunto, já nossa casa parecia haver-se
transformado num posto militar. Os soldados chegavam sozinhos ou
aos pares, jovens que não gostavam de perambular pelas ruas e
suspiravam pelo simples calor de um lar. Um sargento que ela
encontrou num bonde era um grande musicista. Quando ele
descobriu o harmônio de tia Jans, ali no canto, imediatamente tomou
lugar e as paredes de nossa sala tremeram ao som do crescendo de
uma linda peça musical.
Tia Jans, mãos cruzadas ao colo, ouvia embevecida o
talentoso soldado. Logo decidiu que Nollie e eu estudaríamos música
com o tal sargento.
Se porventura não gostássemos de música, mesmo assim
teríamos que estudar porque tia Jans assim o determinara. Logo
aprendi a tocar o suficiente para acompanhar os hinos na hora de
nossa devocional. Isso me ensinou, desde bem jovem, a
desembaraçar-me diante dos homens, embora eu creia não ter sido
essa a intenção de tia Jans.
Há indivíduos que têm o dom de levantar dinheiro
convencendo as pessoas do valor de um projeto; esse era um dos
dons especiais da tia Jans. Certa tarde ela organizou um chá e convi-
dou algumas senhoras ricas da cidade para comparecerem e se
reunirem nos aposentos dela. Nós lustramos seu aparelho de chá, de
prata, fazendo-o cintilar. Tudo devia estar imaculadamente limpo e
em ordem para a ocasião.
À hora determinada, de longe, pela janela eu observava as
damas chegando com o ruge-ruge das sedas de seus longos vestidos
armados pelas muitas anáguas engomadas. Como podiam elas movi-
mentar-se e subir aquelas escadas estreitas com todas aquelas saias?
Eu não podia compreender. Colocar-me em pé, em posição correta,
já me era difícil! Ser rico deve ser uma carga muito pesada; e ainda
por cima ter de usar essas roupas extravagantes! Era o que eu
pensava.
Não tenho dúvida de que tia Jans era convincente nas suas
afirmações, pois em pouco tempo ela conseguiu dinheiro bastante
para construir uma casa para os militares. Depois da casa pronta e
cheia de soldados, ela ia lá visitá-los pelo menos duas vezes por
semana a fim de ministrar-lhes estudos bíblicos. Tia Jans
não acompanhava a época; ela seguia os seus próprios passos. Assim,
suas ideais sobre educação, teologia, moda, etc, eram antiquadas, o
que não era muito bem aceito em nosso círculo de relações.
Em criança, eu achava que tia Jans era muito rica, porque,
como viúva de pastor, ela recebia uma pensão. E quando recebia uma
contribuição extra, ela nos fazia participar dessas alegrias. Mas se
nos comprava alguma roupa de presente, deixava-nos embaraçadas,
especialmente a Nollie e Betsie que já tinham suas próprias opiniões
sobre a moda.
—Oh, vejam aqui!—dizia Betsie, fazendo uma pirueta com o
vestido que tia Jans lhe havia dado—. Será que ela se ofenderia se eu
colocasse outro tipo de gola, ou, quem sabe, uma faixa cor-de-rosa
na cintura?
—Betsie—respondia Nollie—, se você acha que o seu vestido
está fora de moda, que dizer deste chapéu?—E Nollie experimentava
o chapéu, presente de tia Jans, provocando risos abafados. O gosto de
tia Jans em matéria de chapéus ficava entre o estilo de uma
empregadinha doméstica e o de uma bisavó! Nollie entendia de
modas; usar esses modelos sérios de roupa e chapéu, para ela era
humilhante.
Eu não me incomodava com a aparência; aceitava tudo o que
vinha da tia Jans e conseqüentemente era eu quem ganhava mais
vestidos e chapéus. Durante a Primeira Guerra Mundial a pensão de
tia Jans, que provinha de donativos dos crentes, foi bem diminuída,
pois todos lutavam com muitas dificuldades nesse período. Lembro-
me de uma vez em que ela foi surpreendida com um donativo extra
de cinqüenta florins (cerca de uns 250 cruzeiros). Com que alegria
tomou imediatamente a bolsa e a sombrinha e se encaminhou para as
lojas da cidade. Quando voltou, percebemos que algo de especial
havia acontecido, pois vinha com a gola do casaco desabotoada. A
figura de tia Jans com as faces afogueadas, gola aberta e sem o
costumeiro cachecol era-nos tão estranha como se víssemos a Rainha
passeando de bonde pelas ruas!
—Venham! venham todos! Quero mostrar-lhes uma coisa!
E nós a seguimos escada acima até aos seus aposentos. No
sofá. ela espalhou todos os pacotes e, com grande entusiasmo,
começou a distribuição. Mamãe ganhou um cobertor quentinho. Eu
ganhei um casaco (preto e disforme, porém prático); para tia Ana
uma blusa; bolos e doces para toda a família. Para nós foi uma festa,
pois na época os doces eram raros e por isso reservados para
aniversários e ocasiões especiais.
Naquele dia, mais tarde, descobri que tia Jans gastou mais de
setenta florins conosco! Acho que realmente ela era uma das pessoas
mais ricas que conheci, pois sabia repartir com os outros.

Tia Ana (Avental protetor)


Tia Ana, prática, controlada, era quem substituía mamãe
quando esta se achava doente e impossibilitada de cuidar de nós. Ela
dirigia a cozinha como um dos sargentos de tia Jans dirigia o seu
pelotão. Era enérgica, decidida e trabalhadeira, mas excessivamente
amorosa e sensível com mamãe, papai e todas as crianças. Quando eu
era menina, gostava de ficar com ela na cozinha, que ficava nos
baixos de nossa casa, e destampar as panelas e vasilhames de comida
que ela preparava, e experimentar de tudo. Gostava também de
observar as pessoas que passavam pela rua; mas da janela da cozinha
eu só podia avistar as pernas dos transeuntes, pois a cozinha ficava
abaixo do nível da rua. Eu ficava imaginando o que faria todo aquele
povo nesse gigantesco mundo lá fora.
—Tia Ana, de onde vêm os bebês?—perguntei--lhe certa vez.
Ela mexeu o alie haphetzelfde um pouco e respondeu
cuidadosamente:—Bem, Corrie, no começo o nenê é muito pequeno
e fraco para viver em nosso mundo frio; há, então, um lugar
quentinho bem junto ao coração da mamãe onde o nenê pode crescer
até ficar forte o suficiente para enfrentar o frio no mundo grande
onde vivemos.
Pude entender isto. Parecia-me ser um plano muito acertado
de Deus.
Obtendo eu a resposta à minha pergunta de um modo tão
simples, parti para outras informações que me interessavam mais no
momento: colocar o dedo dentro de outra tigela. Oh, esta aqui
contém a célebre sobremesa feita com claras em neve, açúcar e
limão. Era tão fofinha como se fosse de puro ar; porém, boa e
especial para uma família grande.
Tia Ana era uma boa cozinheira. Ela preparava um delicioso
cozido no fogão grande a carvão. Deixava-o ao fogo até que todas as
verduras e legumes estivessem quase a desmanchar-se e bem
misturados. Dessa maneira era uma surpresa e até um prêmio
encontrar um pedaço de carne no cozido.
Havia também o trabalho do seu clube. Ela se preocupava
com as mocinhas empregadas em casas de famílias ricas. Todas as
tardes de quartas--feiras e domingos essas mocinhas se reuniam em
uma sala do clube para costurar e bordar. Tia Ana dava-lhes aulas de
Bíblia e ensinava-lhes lindas canções sacras. Quando uma de "suas
mocinhas" se desencaminhava, tia Ana chegava a ficar doente! Nem
precisávamos indagar quando a víamos com as faces inchadas e
olhos vermelhos; sabíamos que alguma notícia desagradável sobre as
"suas mocinhas" lhe havia chegado aos ouvidos.
—Tia Ana, quem foi desta vez?—perguntávamos. E ela,
tentando esconder o rosto amargurado, respondia enquanto enxugava
os olhos:
—Foi a Betty; ela não era tão firme nos preceitos de Deus ...
foi-se embora com Hans ... e ele já teve duas mulheres antes disto!—
E ela sofria tanto como qualquer mãe com uma filha que se
desviasse.
—Ana—papai dizia—, você não pode suportar tudo isso
sozinha. Entregue seus problemas a Deus.

Nollie (Mijn Moedertje)


Nollie era fisicamente a mais forte das três meninas da
família. A mais velha das irmãs era Betsie; mas para mim era
Nollie, muito embora ela fosse só um ano e meio mais velha do que
eu. Desde pequena ela se responsabilizou por mim; era a minha
moedertje (mãezinha). Tratava-me como a um bebê. Até na hora da
sede eu tinha que acompanhá-la; mesmo que fosse uma xícara de
água eu tinha de tomar fazendo-lhe companhia. . Quantas vezes,
mesmo sem vontade, tomava aquela água porque a Nollie a trouxe
para eu tomar, e Nollie sabia tudo o que era melhor para mim. Eu era
tímida; ela, não; ela reclamava seus direitos e impunha suas ideais;
eu simplesmente aguardava.
Certa vez, ainda éramos pequenas, Nollie e eu saímos para
dar uma volta na calçada quando um ciclista nos derrubou com sua
bicicleta. Levantamo-nos assustadas e cobertas de lama. Corremos
para dentro de casa anunciando aos berros a nossa presença.
Todos correram ao reconhecer os gritos de Nollie. Acudiram-
na logo limpando-lhe o rosto, os cabelos, ajeitando-lhe a roupa e
enxugando--lhe as lágrimas com beijos e palavras de carinho. Eu
permaneci no canto, observando todo o movimento ao redor de
Nollie, sabendo que depois de Nollie se acalmar chegaria a minha
vez de ser consolada e mimada.
De repente, mamãe exclamou:—Hemeltje! (Céus!) Vejam a
Corrie como está!
Todos pararam e só então perceberam a minha presença—
uma menina ali no canto, rosto assustado, sujo, sulcado de lágrimas
abundantes. Finalmente chegara a minha vez de receber as atenções
dos grandes.
O corredorzinho ao lado da casa era o lugar onde muitas
coisas aconteciam em nossa vida. Dentro de nossa casa sempre
superlotada não havia um lugar livre onde pudéssemos brincar;
então, aquele corredor era o nosso quintal, nosso quarto de
brinquedos e a escola de nossa vida. Uma vez Nollie encontrou um
menino chamado Sammy Staal. Creio que ele tinha algum problema
cardíaco, pois a sua pele era azulada e o nariz sempre vermelho. Era
paralítico e se locomovia numa cadeira de rodas. Nollie tornou--se
sua amiga, e, incentivada pela mamãe, passava horas e horas
conversando com Sammy e empurrando a cadeira de rodas para cá e
para lá enquanto outras crianças brincavam, corriam, jogavam bola.
Quando o menino morreu, Nollie sofreu muito.
A tristeza de Nollie era compartilhada pelos demais. Mesmo
quando éramos pequenas, sabíamos que nossos problemas não eram
tão insignificantes para os adultos; havia muitas maneiras e muitas
idades para o amor sob aquele teto holandês.
5
ANJOS TRAVESSOS
Segredos e promessas, para crianças, geralmente são como
bolhas de sabão: fáceis de fazer, fáceis de quebrar. A única vez,
porém, que tentei guardar um segredo, falhei redondamente. Falei
dormindo.
Quando eu estava com meus oito ou nove anos de idade, foi
com orgulho que recebi o convite de Richard, sobrinho de nosso
pastor para fazer um passeio pelas dunas. Richard era já um
rapazinho, adolescente.
Eu não tinha muita convivência com rapazes, por isso não
estava preparada para enfrentar certas atitudes. O que aconteceu foi
para mim surpresa e vergonha ao mesmo tempo. Ao alcançarmos um
vale onde não podíamos ser vistos por ninguém, Richard de repente
me puxou para junto de si e tentou fazer certas coisas estranhas. Sem
mesmo ter sido prevenida por meus pais, senti que aquilo era errado.
Afastei-me rápido e, vermelha de infantil indignação, batendo
os pés, protestei:
—Richard, pare! Mamãe acharia isso uma atitude impura!
Richard olhou-me admirado e ao mesmo tempo desafiante, e
respondeu:
—Ora, ela não está aqui... e você não tem que contar nada a
ela.
—Mamãe não está aqui, mas Jesus está; e eu tenho certeza de
que ele acha isso errado.
Richard sentiu-se derrotado. Ele parou imediatamente e disse:
—Você me promete nunca contar a quem quer que seja,
especialmente à sua mãe, o que tentei fazer?—perguntou ele.
Refleti por um instante. Afinal ele era Richard, e, a meu ver,
uma pessoa muito importante.
—Bem, acho que ... bem, eu prometo.
Ao voltarmos, ele contou-me tantas histórias interessantes e
conversamos tão amigavelmente que me esqueci do incidente.
Aliás, eu pensei que havia esquecido.
No dia seguinte senti-me um tanto indisposta e tive febre.
Durante os momentos de delírio febril, falei sobre o passeio; porém
não tinha consciência do quanto havia revelado. Passada a febre,
mamãe surpreendeu-me com a pergunta:
—Corrie, que é que houve com Richard?
—Promessa é promessa, mamãe; e eu prometi não contar a
quem quer que fosse.
—Correman, nunca se esqueça de que Jesus está sempre com
você. Todas as manhãs peço a Deus para guardar você. Todas as
manhãs peço a Deus para conservar você e todos os meus filhos sob
seu cuidado constante e paternal. À noite agradeço a ele porque
enviou seus anjos para proteger vocês. Vamos orar juntas agora?
Lembro-me de que mamãe tomou a minha mão entre as suas
ternas mãos enquanto orava. E eu pensava em como era maravilhoso
ouvi-la pedir que Jesus me protegesse. Ela orou: "Eu te agradeço,
Jesus, por nunca deixares a minha Correman sozinha... e te agradeço
por a haveres protegido durante o passeio nas dunas. Peço-te que
coloques tua mão sobre Richard e o ajudes. Mostra-lhe como estava
errado e como queres fazer dele um rapaz puro."
Como sabia ela sobre Richard? E eu ficava imaginando se as
mães sabem todas as coisas. Ora, isso não importa... Jesus sabe,
mamãe sabe, e tudo está bem.

Traquinices
Eu não era nenhum anjinho. Traquinas era o meu apelido e
Dot, minha prima e melhor amiga, era minha parceira. Seu pai, tio
Arnold, era o zelador da magnífica catedral gótica de São Bavo,
majestosamente instalada no centro de Haarlem. Seu interior
cavernoso proporcionava-nos horas infindas de brincadeiras
imaginárias. Entre as fileiras de bancos brincávamos de casinha. Ás
vezes éramos piratas escondidos em cavernas; outras vezes, lojistas
nos nossos escritórios; ali podíamos ter desde uma escola até um
gracioso bazar. Nossa imaginação funcionava admiravelmente bem.
O púlpito era sagrado. Nada de brincadeiras. Sentíamos não
dever esticar nossas brincadeiras até lá; seria impróprio e
desrespeitoso. Brincar lá era temível para qualquer criança, porque a
cadeira do púlpito não era assentada no chão, mas nas asas de uma
águia de bronze. A pia batismal em frente ao púlpito era sustentada
por três cobras de bronze; só a vista desse quadro era suficiente para
nos afastar dali sem que ninguém nos mandasse.
O eco de nossa voz no interior daquelas paredes de pedra
movimentava o sentido das nossas brincadeiras. Às vezes tio Arnold
tentava acalmar nossa exuberância.
—Crianças, crianças, há sepulturas debaixo deste chão. Pisem
mais leve dizia-nos ele.
Como zelador, tio Arnold tinha o privilégio de morar nos
terrenos da Catedral, numa confortável casinha ao lado da entrada do
templo. Eu gostava de correr por aquelas passagens estreitas,
cercadas de lindos ladrilhos azuis.
Morar quase dentro da Catedral não tornava Dot mais santa.
Quando eu não inventava a arte, podia esperar que a cabecinha de
Dot entrava em ação, e lá vinha a idéia à tona!
Nós estávamos na mesma série na escola e geralmente íamos
juntas para nossas classes. Eu me sentia bem na companhia de Dot
porque éramos do mesmo nível escolar e, por sinal, um nível um
tanto baixo. Quando tínhamos dificuldades com alguma tarefa
escolar que levávamos para casa, apelávamos para Josien van
Paassên. Ela, além de ser aluna brilhante, possuía também uma
bicicleta. Uma dupla vitoriosa! Seu pai era um pastor que percebia
um ordenado mensal fixo, o que não acontecia com o ganho de um
relojoeiro, que oscilava como os pêndulos do relógio do vovô.
Certa manhã, a caminho da escola, Dot me falou com um
entusiasmo desusado e um tanto malicioso:—Corrie, veja o que eu
achei!
E mostrou-me uma moeda de dez centavos partida ao meio;
como acontecera aquilo, não sei; só sei que estavam as duas metades
entaladas nas pedras na calçada, esperando por uma menina para
apanhá-las. Uma moeda de dez centavos era dinheiro bastante para
nós. Podíamos comprar um punhado de caramelos na confeitaria da
Begynestraat. Barbaridade! Que negócio raro e maravilhoso!
Continuamos o caminho da escola, muito santinhas. E como que
agindo da maneira mais correta, entramos as duas na confeitaria e
pedimos os caramelos à balconista, uma graciosa senhora. Dot
escorregou as metades da moeda na minha mão, e, enquanto ela
apanhava o pacotinho, coloquei-as rapidamente no balcão e corremos
para fora em direção à escola.
—Meninas!... meninas, voltem aqui! — era a balconista que
nos chamava.
Eu segurei a mão de Dot e continuamos a correr, tão depressa
quanto permitia o meu pé defeituoso. Entretanto, sentimo-nos
culpadas, pois por algum tempo evitamos passar pela confeitaria. Os
caramelos não tinham aquele sabor delicioso de caramelos. Anos
mais tarde, a travessura de minha infância veio-me à mente quando li
este provérbio: "Suave ê ao homem o pão ganho por fraude, mas
depois a sua boca se encherá de pedrinhas de areia" (Provérbios
20:17). Pode realmente uma balinha ter o sabor de areia?
Certa vez Dot e eu fizemos algumas bolas de neves e as
guardamos nos bolsos. Estava muito frio; as bolas não se derretiam
mas tomavam perfeitamente o formato de mãozinhas enluvadas
prontas para serem atiradas a um alvo. Andávamos pela Kruisstraat
justo atrás de três cavalheiros muito distintos, que, acaloradamente
discutiam os seus problemas. Dei uma significativa piscada de olhos
para Dot, e ambas colocamos as mãos nos bolsos, retiramos a
munição, miramos o alvo, e... fogo! Os chapéus dos distintos ca-
valheiros voaram sobre a neve enquanto duas gentis senhoritas
corriam a apanhá-los.
—Aqui está o seu, senhor!—disse eu com ar sério, curvando-
me respeitosamente, enquanto tentava limpar a neve do chapéu. Dot
apanhou o segundo e o entregou ao outro protagonista que, sendo
calvo, devia estar sentindo terrível frio na careca. Ele tomou o
chapéu nas mãos e, delicadamente, acrescentou:—Obrigado,
senhoritas—. E olhando ao redor, procurava descobrir onde se
haviam escondido os patifes autores de tal crime.

Os chapéus
Nem todos os episódios com chapéus me ficaram impunes. O
diretor de nossa escola era um homem muito severo que não permitia
mau comportamento dos estudantes, especialmente em classe. Papai
havia sido o braço direito do Professor van Lyden na fundação do
Instituto Cristão Educacional, motivo pelo qual podíamos freqüentar
a escola gratuitamente, o que, para os ten Boom era um grande
auxílio. No começo, muitos alunos com problemas de disciplina
vinham de outras escolas e muitas vezes eram mandados de volta,
pois o diretor não permitia desordem.
Eu me escandalizava sempre com a expulsão de um aluno.
Que humilhação para os pais verem seus filhos expulsos por mau
comportamento!
Eu devia estar com dez anos mais ou menos quando
aconteceu o que se segue. Sentada em minha carteira, olhava
distraidamente pela janela o vento que levantava a poeira no chão lá
fora no pátio. Não sei por que pensava no chapéu que havia ganhado
da tia Jans, um chapéu tipo marinheiro, azul e branco, que eu
detestava unicamente porque era um chapéu. O professor havia saído
da classe por um instante; então me aflorou à mente uma idéia.
—Escutem, todos!—disse eu à classe—. Tive uma feliz e
brilhante idéia. Exatamente às duas horas em ponto, todos nós
colocaremos nossos chapéus ou bonés na cabeça. Podemos guardá-
los dentro das carteiras, longe dos olhos do professor van Ree. Eu
tenho relógio, e darei o sinal. De acordo?
A sala com sessenta alunos na faixa dos dez aos doze anos
vibrou de entusiasmo! Eu era a líder. O fato de eu ser a única em
toda a classe a possuir um relógio tornava-me muito importante.
Duas horas. Silêncio absoluto. Fazíamos um exercício de
aritmética e o professor olhava de um para outro aluno desconfiado
daquele comportamento fora do comum.
Eu me assentava numa das carteiras da frente, e, depois de
dar o combinado sinal, tomei rápido o meu chapéu de dentro da
carteira e o coloquei na cabeça. Não ouvi rumor algum atrás de mim.
Olhei vagarosamente ao redor, e horrorizada vi que ninguém teve
coragem de seguir meu exemplo, exceto Jan Vixeboxe que sentava
bem no fundo da classe. Quando meus olhos se voltaram para o
professor, ele quase me fulminava com o olhar. A atmosfera estava
carregada.
—Vá para a diretoria, já, Corrie ten Boom!— ele ordenou.
Oh, não, não na diretoria! O senhor van Lyden expulsa os
alunos que quebram os regulamentos, pensei trêmula de medo.
Levantei-me da carteira, guardei o chapéu e deixei a sala. No
corredor eu abri o armário dos agasalhos e me encolhi dentro dele,
bem no cantinho, atrás dos casacos. Nem sei quantas horas horríveis
passei naquela escuridão; parecia-me uma eternidade! Quando a
sineta soou indicando o término da aula, saltei de dentro do armário e
corri para a rua antes que a turma começasse a deixar as classes.
Eu contava com uma expulsão, como acontecia com aqueles
que vinham de outras escolas. Que vergonha para papai e para
mamãe! Que não teriam eles de suportar por causa do meu mau
comportamento! E como eu os amava! Lembrava--me do carinho
com que eu era tratada; das dificuldades que atravessávamos
resultantes de doenças e escassez de dinheiro. Nós éramos uma
família tão unida que compartilhávamos todos das alegrias e tristezas
de cada um; e agora, isto!
Talvez expulsa da escola que meu próprio pai ajudara a
fundar!
À hora do jantar naquele dia eu estava tão quieta e silenciosa
que mamãe pensou que eu estivesse doente. Subi mais cedo para o
quarto e deitei, enrolando-me ao "sono leve" até ao queixo. Aí então
contei a Nollie tudo o que me havia acontecido.
—Por que você não pede perdão a Deus?— sugeriu ela.
—Eu já fiz isso... mas, será que ele faria algo para evitar a
minha expulsão da escola?
E fiz a Nollie todas as perguntas que me preocupavam porque
ela estava com quase doze anos! Certamente saberia todas as
respostas.
—Eu não sei; mas você se lembra do salmo que papai leu à
mesa onde de cada seis ou sete versículos, mais ou menos, a mesma
frase se repetia? "... Então, na sua angústia, clamaram ao Senhor, e
ele os livrou das suas tribulações" (Salmo 107).
Pela primeira vez depois do incidente dos chapéus em classe,
comecei a reanimar-me. "E por que não podemos nós fazer o
mesmo?" pensei eu.
Nós "clamamos ao Senhor" e adormecemos. De manhã,
Nollie me acordou para contar-me sua maravilhosa idéia. Tínhamos
uma pequena revista missionária que eu distribuía entre algumas
pessoas como meu trabalho especial de evangelizar o mundo. O
professor van Lyden era um dos assinantes. Nollie sugeriu que
quando eu fosse para a escola entregasse pessoalmente a revistinha
ao diretor. E acrescentou:—Acho que o resultado será mais para o
bem do que para o mal.
Então, naquela manhã, com o coração pesado, dentro do meu
melhor uniforme escolar e com o rosto contrito, entrei no escritório
do diretor e lhe entreguei a revista. Ele olhou para ela, depois para
mim. Essa pausa foi como centenas de anos; o silêncio feria-me os
ouvidos. 0 seu humor não me parecia dos melhores; porém a sua
boca parecia expressar um arzinho gaiato.
Ele limpou a garganta, e tamborilando na mesa com o lápis,
disse:—Corrie ten Boom, não acho que você se tenha portado ontem
como uma boa menina cristã.
Foi tudo o que ouvi pelo meu crime. Deus livrou-me das
tribulações!

Os ratos e o manuscrito
Quando eu estava com doze anos, mais ou menos, resolvi
tornar-me escritora. Então, um dia me acomodei na cama e, com o
bloco nos joelhos, dava largas à imaginação fantasiando as aventuras
de Nollie, Josien, Dot e seus irmãos e irmãs num feriado, e sem a
presença dos respectivos pais. Ah! que linda história! As aventuras
superariam as de Dickens! E os personagens, muito mais brilhantes
do que os de Louisa May Alcott! Ah! Como eu seria famosa!
Betsie interrompeu meus sonhos. Entrou no quarto e
perguntou:
—Que é isso?
Que pergunta sem sentido! —É um livro que estou
escrevendo—respondi tão petulantemente quanto uma irmã sete anos
mais nova responderia à pergunta ridícula de um adulto.
Betsie que tinha sempre palavras de estímulo, desta vez agiu
diferente ao dizer-me:
—Que tolice!... você não é capaz de escrever um livro.
"Não quero mostrar meu livro a ninguém, nem falar dele,
nunca mais", pensei. Então escondi os meus rascunhos no sótão e,
por alguns meses, lá ficou meu precioso manuscrito esquecido.
Certo dia, quando me lembrei de pegar as folhas de papel
do esconderijo, para surpresa minha só encontrei lá um décimo do
meu futuro "best seller". O resto, fora comido pelos ratos. Fiquei tão
desapontada que resolvi jamais escrever livro outra vez.

A sombra de suas asas


Quando pequena, havia muitas maneiras de sentir-me segura.
Todas as noites vestia minha roupa de dormir, ia até à porta do
quarto e chamava:—Papai, estou pronta para a cama!— Ele vinha ao
meu quarto e orava comigo antes de eu dormir. Lembro-me de como
sempre tomava o seu tempo conosco. Ele me aconchegava o cobertor
cuidadosamente ao redor dos meus ombros, com aquele jeitinho tão
seu característico. Depois passava a mão gentilmente sobre o meu
rosto e dizia:—Durma bem, Corrie ... querida.
Eu ficava bem quietinha, quase sem respirar, pois pensava
que se me movesse perderia a sensação daquele carinho que eu
queria sentir até à hora de pegar no sono.
Muitos anos mais tarde, num campo de concentração na
Alemanha, quantas vezes eu sentia aquela sensação da mão de papai
sobre o meu rosto. Deitada ao lado de Betsie num colchão imundo e
em farrapos naquela desumana prisão, eu dizia: "ó Deus, que eu
possa sentir tua mão sobre mim ... que eu me abrigue à sombra de
tuas asas."
No meio daquele sofrimento, meu Pai celeste era a minha
segurança.

Atingindo o alvo
Meu desejo de agradar ao papai era uma das motivações
básicas de minha vida. Lembro-me de que, ao voltar da escola,
passava sempre por uma rua onde havia um muro muito sujo, sempre
cheio de moscas. Nas tardes quentes, um de meus brinquedos era
passar a mão ao longo desse muro tentando apanhar as moscas.
Quando conseguia apanhar uma, soltava-a logo para repetir a façanha
com outra logo em seguida.
Certo dia, enquanto me entretinha com essa brincadeira de
mau gosto, ouvi atrás de mim uma voz muitíssimo familiar:—Não;
não me alegra encontrar minha caçulinha aqui na rua!
Voltei-me, e ao dar com o papai tão imaculado e bem vestido
diante de mim, senti-me de tal modo embaraçada que não tive
coragem nem de dar-lhe a mão. Ele não fez menção alguma quanto à
minha aparência; simplesmente andamos juntos para casa
conversando, ele contando sobre a visita que fizera à senhora de
Vries e sobre a conversa que tivera com a sua empregada a respeito
de Deus, até que chegamos ao Beje.
—Já estou em casa, Cor!—falou em voz alta avisando a
mamãe da sua chegada. Depois se virou para mim:—Eu sei, Corrie,
que você vai lavar as mãos antes de encontrar-se com sua mãe.
Era uma coisa insignificante, parece; entretanto, eu me
lembro da vergonha que senti por me encontrar tão suja na presença
do papai.
Nós éramos sempre estimulados a fazer o melhor em tudo.
Quando papai desmontava um relógio, a tarefa de repará-lo era
realizada escrupulosamente sem entrar em jogo a posição social ou
econômica do cliente, dono do relógio. Ele nos ensinava que não era
importante o que pensávamos, nem o que os outros pensavam, mas o
que Deus pensa da tarefa que estamos realizando.
Quando Nollie e eu estávamos na faixa da adolescência,
decidimos entrar para a aula de costura. Eu fiz uma blusa que, por
sinal, muito mal feita, com costuras tortas e mangas mal colocadas.
Vesti a blusa, consciente do meu relaxamento, o que não me
importou muito, a não ser quando me defrontei com o papai.
—Corrie, a empregada doméstica está habilitada a ensinar-lhe
como se limpa bem o chão; mas sua mãe pode ensinar-lhe a costurar.
Quando você gasta seu tempo e dinheiro em algum empreendimento,
empenhe nele o melhor de seus esforços.
Foram essas as palavras de papai.
Honestidade e perfeição eram ingredientes tão básicos na
personalidade de papai que havia horas em que até as risadinhas
inconseqüentes, próprias da nossa idade, nós as reprimíamos, por
saber que lhe desagradavam. Risadas francas que traduziam alegria
eram compartilhadas por ele; risadinhas veladas, acompanhadas de
segredinhos e cochichos, ele as condenava. Uma das histórias que
mamãe contava sobre ele era:—Meu marido é tão honesto que
quando vocês eram bebês, não me era permitido oferecer-lhes uma
chupeta quando choravam, não importava o quanto gritassem! Ele
dizia: "O bebê pensa que vai tomar alguma coisa. É zombar de uma
criança colocar algo em sua boca que não passa de uma mentira."
Mamãe suspirava resignadamente, dizendo:— Assim, meus
filhos nunca tiveram chupetas, porque meu marido é altamente
honesto.
Papai era honesto em se tratando de doença, também.
Todavia, quando íamos ao médico ou dentista, sempre que possível
ele nos acompanhava para nos encorajar. Porém, nunca dizia que não
íamos sofrer dores. Ele dizia que se tivéssemos que obturar um dente,
ou mesmo extraí-lo, devíamos ser fortes e corajosos. Indo conosco,
só o lhe segurar a mão já nos dava coragem. Se o médico ou dentista
apelava para a sua ajuda, suas mãos fortes seguravam as nossas, ou
nos amparavam a cabeça para nos imobilizar.
Pela maneira liberal como os filhos de hoje vão crescendo,
parece até estranho contar que nós fomos disciplinados sem castigos
físicos. Nunca me lembro de haver levado uma surra em criança; mas
em nossa família, indiscutivelmente, obedecíamos ao papai. Sua
vontade era lei e todos sabíamos disso.
Nunca discutíamos sobre a "linha de autoridade" em nosso
lar: ela era simplesmente compreendida. Papai não tinha que se
levantar e dizer: "Eu sou o cabeça desta casa!" Ele simplesmente o
era. Nós nunca desejamos que fosse diferente porque o amor e a
segurança de todo o nosso relacionamento estavam construídos sobre
o fato estabelecido de que Deus estava sempre conosco, e de que ele
havia designado Casper ten Boom para dirigir a mansão chamada
Beje, em Haarlem.
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AO REDOR DA MESA OVAL
É possível uma peça do mobiliário de uma casa revestir-se de
especial importância numa família? Sim! A mesa oval da nossa sala
de jantar era essa peça importante. Ao redor dela nos assentávamos
para discutir nossos sonhos e esperanças; ao redor dela nos
assentávamos para entrar em comunhão com Deus pela oração e
súplica; e ainda era ao redor dela que dávamos vazão às expansões
de alegria em família.
Aos domingos, porém, a mesa oval atingia o seu mais alto
grau de importância: era quando os amigos se reuniam à nossa
família.
O domingo era um dia especial para nós; era o dia quando
tudo, desde a roupa que usávamos até aos talheres na mesa, era
especial. Meu vestido domingueiro era sempre o vestido novo, ganho
no Natal; desse modo eu não tinha que me preocupar com a escolha
de vestido para ir à igreja. Tia Ana fazia milagres com o meu vestido
acrescentando-lhe uma faixa ou fita colorida para melhorar a minha
aparência um tanto descuidada. Este era outro dos seus pequenos
dons de servir, que significava "eu cuido".
Quando estávamos prontas para a igreja, papai tomava a
dianteira e nos conduzia para a Catedral de S. Bavo. Lá íamos nós
andando com cuidado para não esfolar nossos sapatos nas pedras da
calçada nem sujar ou amarrotar nossos trajes domingueiros.
Terminado o culto, era bom voltar para casa, especialmente
nos dias frios. S. Bavo não tinha aquecedor de ambiente e muitos
dias houve em que eu tiritava batendo os dentes durante o tempo do
serviço religioso.
Em casa eu procurava ajudar no preparo do almoço,
primeiramente cobrindo a mesa oval com a bela toalha branca
própria para aquele dia. Tentava desempenhar essa tarefa com
esmero porque eu sabia que Betsie gostava de ver a mesa bem-posta,
especialmente a toalha que devia estar colocada de modo impecável;
e eu desejava contentá-la. Betsie era completa em tudo: ordem,
asseio, elegância; e eu era ... oh, bem, eu era simplesmente Corrie.
—Muito bem, Corrie! ótimo!—dizia ela; e era tudo o de que
eu precisava ouvir para estimular--me pelo resto do dia. Sobre a
mesa viam-se a porcelana trazida da Indonésia pela tia Toos, irmã
mais velha de papai, e o centro de prata que a tia Jans ganhara dos
membros ricos da sua igreja quando ainda o marido era pastor.
Depois de tudo pronto, tia Ana surgia da cozinha limpando as mãos
no grande avental que lhe cobria o vestido preto de seda. Ela fazia
soar um si-ninho, dizendo:—Para a mesa! Todos! Todos!
Depois de assentados, papai retirava o seu guardanapo da
argola, desdobrava-o sobre os joelhos e curvava a cabeça.
"ó Deus, nós te somos gratos por este belo domingo, o dia do
Senhor. Somos-te gratos por esta família. Abençoa o alimento,
abençoa nossa Rainha e apressa o dia em que Jesus, teu Filho amado
virá nas nuvens dos céus. Amém."
Nossa conversa à mesa, aos domingos, muitas vezes girava
em torno do sermão do dia; não obstante, papai era prudente em suas
opiniões. Ele freqüentava a igreja perto de nossa casa porque sentia
que Deus o chamara para aquele lugar; porém ele não tomava
nenhuma posição definida nos trabalhos do culto. Seus pontos de
vista não eram aceitos pelos livre-pensadores que exerciam a
liderança da igreja.
A conversa à mesa era animada porque todos nós tínhamos
histórias e experiências a serem partilhadas. Eu acho que o maior
prazer de reunir-se para as refeições é o fato de cada pessoa poder ser
ouvida.
Papai tinha o dom especial de encaminhar as conversas de tal
maneira que ninguém era deixado a um lado. Gostávamos de contar
experiências pessoais que muitas vezes nos faziam rir; mas risos de
zombaria não nos era permitido.
Lembro-me de uma vez em que Nollie nos contava sobre um
desenho que fizera na escola.
—Achei que o desenho estava mais ou menos apresentável—
disse Nollie—; mas o professor Ar-kel aproximou-se de minha
carteira, tomou o desenho e ficou a examiná-lo virando a folha de
papel de um lado e de outro, cenhos carregados todo o tempo ...
—Talvez ele procurasse uin ângulo melhor de visão—opinou
Betsie.
—Creio que não era esse o motivo—respondeu Nollie. (Os
estudos eram importantes em nossa família; assim, cada um de nós
recebia atenção especial em se tratando da escola.)
—Que foi então que o professor Arkel disse, Nollie?—
perguntou mamãe.
—Ele disse: "Você sabe qual o provérbio que seu desenho me
sugere, Nollie ten Boom?"—E eu lhe respondi: "Honi soit qui mal y
pense." (Maldito aquele que pensar mal disto.)
A expressão é de um moto do emblema da nobreza da
cavalaria. Barbaridade, como o Prof. Arkel riu!
Os olhos de Nollie faiscavam ao contar a história. Papai
compartilhava das histórias humorísticas quando eram assim de
humor sadio. Ele adorava um ambiente alegre.
Aos domingos à tarde sempre tínhamos visitas que passavam
pela nossa casa para uma xícara de chá ou um bate-papo. Às vezes
saíamos para dar umas voltas; não estudávamos nem costurávamos
nem fazíamos trabalho algum no dia do Senhor. O único trabalho
permitido era dar corda aos relógios que estavam em conserto.
Papai dizia:—Mesmo aos domingos, tenho que ordenhar
minhas vacas.

Os amigos de papai
A camaradagem ao redor da mesa oval era mais do que
simples hábito familiar. Através dos anos, muitas pessoas, velhos e
moços, ricos e pobres, contribuíram para o enriquecimento de minha
infância. Eu vibrava com a presença de alguns amigos de papai em
nossa casa, porque eles riam muito e contavam muitas histórias ma-
ravilhosas.
Quando papai era moço, em Amsterdã, ele trabalhou numa
missão chamada Heü des Volks, localizada num bairro pobre da
cidade. Havia três outros homens que com ele deram seu tempo e
energias a essa particular atividade; tornaram-se grandes amigos.
Esses quatro companheiros se reuniam sempre em nossa casa
para partilhar suas preocupações, seus fracassos e vitórias, e também
para estudar juntos a Bíblia e discutir os tópicos de interesse comum.
Quando criança, eu ficava muito feliz quando eles apareciam. Eu
gostava de ficar ali por perto ouvindo suas conversas e aprendendo
de suas maravilhosas experiências. A nós, crianças, era-nos muitas
vezes permitido permanecer ali e, inclusive, tomar parte em algumas
discussões se algo tivéssemos a perguntar sobre o assunto corrente.
Ainda me lembro da mistura da fragância da água-de-colônia e
charuto holandês que invadia a sala.
Frits Vermeer era um holandês gordo que gostava de brincar.
Ele era "tio Frits" para nós, assim como os outros dois eram tio Dirk
e tio Hendrik.
Uma das primeiras coisas que o papai fazia quando seus
amigos chegavam era apanhar a caixa de charutos do armário onde
era guardado o grande livro "caixa" da loja e colocá-la na mesa. Ele
tirava do bolso o chaveiro que tinha de um lado o cortador de
charutos, e do outro, as chaves para dar corda aos relógios. Esse cha-
veiro era uma peça antiga e muito apreciada pelas crianças que
durante mais ou menos cinqüenta anos se assentaram nos joelhos de
papai fazendo dela um brinquedo divertido.
Tio Hendrik, considerado o teólogo do grupo, era sempre
desafiado a apresentar um versículo bíblico que se adaptasse a um tal
problema ou situação. Dificilmente ele se confundia em suas
citações, fosse qual fosse a ocasião apresentada.
Tio Dirk, o quarto membro do grupo, era o único que não era
casado. Não obstante, gostava muito de crianças, e tinha um jeitinho
muito especial de mostrar seu amor a elas.
Certa ocasião, quando esses amigos de papai discutiam seus
problemas, tio Dirk estava ansioso por falar sobre um orfanato de
cuja diretoria ele fazia parte. Permaneci sentada, em silêncio e atenta;
crianças sem pais sempre me preocupavam muito. Imaginava o
sofrimento horrível em não se ter o amor de mãe e de pai.
—Resolvi tornar-me o pai do orfanato—declarou tio Dirk—.
Como membro da diretoria, meus argumentos para melhorar as
condições daquelas crianças não têm dado resultado positivo. Sinto
que tenho de estar lá dentro para fazer o trabalho eu mesmo.
Papai estava radiante. —Dirk, por certo esta é a missão que
Deus reservou para você. Ele não lhe deu uma esposa, mas vai
abençoá-lo com muitos, muitos filhos. Vamos orar por esse trabalho.
Papai começou a orar com seus amigos, numa atitude tão
simples e natural como se aquela conversa nunca tivesse sido
interrompida; as palavras fluíam naturalmente de um amigo para
outro, e para o Senhor.
Muito tempo depois, através dos anos, posso ainda lembrar-
me dos maravilhosos momentos em que eu ouvia as histórias e
experiências relatadas pelos amigos de papai. Há um provérbio que
diz: "Não abandones o teu amigo, nem o amigo de teu pai..."
(Provérbios 27:10). Sempre penso em quão sábias são essas palavras.

O estudo bíblico, um brinquedo


Quando a louça do jantar estava lavada e a cozinha em
ordem, a mesa oval se transformava em um lugar de jogos e
passatempo. Não jogávamos cartas (jogar cartas já seria jogo de azar
e não um passatempo); mas nós nos divertíamos com os tipos de
jogos e brinquedos que nos proporcionavam algum ensinamento.
Aprendíamos diferentes idiomas brincando, na forma de jogo,
não de um estudo obrigatório. Quando eu cursava a quarta série,
comecei a aprender francês. Lembro-me de que apreciava
grandemente o som melodioso desse belo idioma; mas não deixava
de reconhecer a dificuldade dessa língua que ainda me é difícil. No
ano seguinte comecei a estudar inglês, que eu achava mais fácil. E eu
pensava, enquanto lutava com os diversos sentidos dos vocábulos da
língua inglesa, se algum dia eu teria a oportunidade de ir à Inglaterra
ou à América do Norte para praticar o que estava aprendendo.
Papai, querendo que eu aprendesse bem o inglês, deu-me uma
revista de escola dominical em inglês, intitulada "Nenhum lugar é
como o lar". Li a revista muitas vezes, do princípio ao fim.
A maior diversão no aprendizado de línguas surgia durante
nosso estudo bíblico. A família toda tomava parte nesse estudo
usando cada um de nós uma Bíblia em diferente idioma. Willem
usava geralmente o original em hebraico ou grego; eu, em inglês;
mamãe, em holandês; Nollie, em francês; Betsie ou papai, em
alemão. Era realmente uma hora divertida para toda a família.
Papai, por exemplo, começava perguntando o que dizia João
3:16 em inglês. Eu respondia lendo na minha Bíblia em inglês;
mamãe lia o mesmo texto na sua, em holandês, e Betsie, em alemão.
Quando eu era pequena, achava impossível que Betsie tivesse
um dia a chance de usar um versículo bíblico em alemão, visto não
conhecermos pessoa alguma dessa nacionalidade. Todavia, Deus usa
meios aparentemente insignificantes a fim de preparar-nos para o
plano que ele tem para a vida de cada um de nós. Quarenta anos de-
pois, num campo de concentração na Alemanha, Betsie estava
preparada para usar aqueles versículos e ensinar às prisioneiras e
guardas da prisão sobre o grande amor de Deus.

Quando papai orava...


Todos os cômodos de nossa casa ouviram nossas orações;
mas a mesa oval foi a maior testemunha de nossas conversas com o
Senhor Deus. Orar não nos era embaraçoso quando estávamos
reunidos em família, nem mesmo na presença de um estranho, Papai
orava porque tinha um bom Amigo com quem falar dos problemas
do dia-a-dia; ele orava quando havia alguma preocupação, porque se
sentia diretamente ligado ao seu Criador; ele orava porque tinha
muito que agradecer a Deus.
Quando papai falava com Deus, ele o fazia com seriedade e
ao mesmo tempo despretensioso. Conversava com Alguém que ele
conhecia. Certa vez recebemos a visita de um pastor em nossa casa;
terminada a visita, papai orou; uma oração simples, como de
costume: "Obrigado, Senhor, por um bom dia. Esperamos que todos
se combinem da mesma forma."
O pastor saiu com uma expressão enigmática no rosto. Seria
esse o Casper ten Boom, tão comentado pelos seus paroquianos
como um profundo conhecedor da Palavra de Deus?
Papai sempre orava antes e depois de cada refeição. Em suas
preces ele incluía invariavelmente duas coisas: a Rainha e a Segunda
Vinda de Jesus Cristo.
O conhecimento e a esperança da vinda de Jesus Cristo eu
recebi de meu pai numa daquelas caladas noites antes de eu
adormecer, quando criança. Quanto à Rainha, patriotismo e lealdade
estavam implantados em nossa família e na maioria das casas
holandesas. Todavia, nunca pensei que as orações da pequena ten
Boom fossem respondidas de modo tão extraordinário como percebi
mais tarde.
Eu? Hóspede da Rainha? Não eu!
Era o ano de 1956, mais de meio século depois que, pela
primeira vez, ouvi papai orar pela Rainha. Eu estava em Formosa,
com o Dr. Bob Pierce, um homem cujo amor e cuidado pela hu-
manidade se estendiam pelo mundo inteiro. O Dr. Bob disse-me um
dia:—Corrie, acho que seria uma boa idéia se você falasse com a
Rainha de seu país.
Como Bob era norte-americano, eu o desculpei por ignorar o
protocolo em se tratando de membros da realeza. Ridículo! pensei.
—Bob, você não sabe o que diz... Eu não posso falar com a
Rainha.
Ele me olhou gentilmente e disse:
—Então ore sobre o assunto—. E foi o que fiz.
Guilhermina havia sido rainha durante duas guerras mundiais.
Seu reinado abrangeu duas gerações; agora ela abdicara em favor de
sua filha única, que é nossa rainha Juliana. Guilhermina escolheu o
título de Princesa daquele momento em diante.
De volta à minha pátria, escrevi à Princesa Guilhermina e
disse que gostaria de encontrar-me com ela e levar-lhe as saudações
de Bob Pierce e da Visão Mundial Internacional. Assim que minha
carta lhe chegou às mãos, a Princesa mandou seu carro para me
buscar.
Tomei assento no banco de trás da limusine, desfrutando cada
quilômetro percorrido desde Haarlem até Het Loo Apeldoorn, onde
estava seu palácio.
Como papai teria vibrado com isto, pensei eu. Por todos
aqueles anos ele havia orado pela Rainha e aqui estava sua filha
Corrie, indo a uma visita à própria Princesa Guilhermina!
Coisas surpreendentes aconteceram, uma após outra. A mim
me foi dada a oportunidade de falar com a Rainha e todos do palácio.
Depois de algumas horas comuniquei à Princesa Guilhermina que eu
tinha de deixar o palácio a fim de dirigir algumas reuniões
previamente marcadas na Alemanha.
Ela olhou-me e disse:
—Eu esperava que você permanecesse aqui por algumas
semanas e ao fim de algumas horas você já se despede? Por que vai à
Alemanha?
Havia dez anos já que a guerra terminara; mas as lembranças
ainda continuavam vividas para muitos holandeses.
—Tenho que ir à Alemanha, Sua Alteza, porque Deus me
chamou para falar do seu amor e perdão àquele povo.
Ela aceitou minhas explicações com um aceno de mão; mas
quando mais tarde retornei à Holanda, ela me mandou chamar ao
palácio para ali permanecer por um tempo maior. Nessa segunda
visita me fora reservada uma hora todas as tardes a fim de estar com
a Princesa Guilhermina. Ela me disse:—Não sou muito forte, pois já
tenho muita idade; por isso, podemos separar uma hora todos os dias
para conversarmos ou tomarmos refeição juntas.
Escolhi, então, a primeira idéia; as refeições, eu as faria com
a sua dama-de-companhia. A Princesa Guilhermina conhecia a Bíblia
muito bem; e aquelas horas passadas nos seus aposentos privados nos
foram agradáveis e de muito proveito. Ela deu-me a oportunidade de
contar-lhe sobre o milagre que Deus realizou em minha vida:
capacitou-me a perdoar a meus inimigos.
Creio que, de algum modo, as orações de papai, feitas muitos
e muitos anos antes, foram respondidas quando Deus encaminhou a
filha do relo-joeiro ten Boom para levar sua mensagem de amor à
Rainha.
Tive muitas horas de agradável camaradagem com as pessoas
do palácio. Tive contacto pessoal com muitas delas ao conversarmos
sobre a Pessoa mais importante—Nosso Senhor Jesus Cristo. Porém,
os momentos mais preciosos de cada dia foram, para mim, aqueles
passados com aquela nobre dama que havia reinado sobre nosso pe-
queno país numa época em que duas guerras mundiais haviam ferido
a Europa.
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DEZESSETE ANOS,
E TANTA COISA PARA
APRENDER
Quando Betsie contava uma história, ela dava um colorido
brilhante a cada palavra do quadro que criava. Ao andar, era com
graça que se movimentava; sabia vestir-se adequadamente para
qualquer ocasião; era um dom especial seu. Ela sabia levenshunst (a
arte de viver)!
Eu, por minha vez, não era o que chamam uma adolescente
"amadurecida". Fui uma garota estouvada durante toda a minha
adolescência, nunca uma "jovem dama". Apesar de eu gostar de
imitar e querer aprender, jamais me parecia possível alcançar algum
dia aquelas qualidades suaves e femininas tão naturais em minha
irmã mais velha.
Aprendi muitas coisas com Betsie, dentre as quais a arte de
contar histórias. Betsie foi professora de uma classe de Escola
Dominical por muito tempo, desde os seus 17 anos. Ela amava os
seus alunos; e as muitas lembranças e protestos de estima que recebia
desses meninos e meninas eram a prova de que seu amor era cor-
respondido. Um dia ela me disse:
—Corrie, você precisa dirigir uma classe também.
—Eu? que posso eu ensinar?—perguntei-lhe pensando no
meu embaraço diante de uma pergunta cuja resposta eu não soubesse
dar. Havia muita coisa na Bíblia que eu não entendia, especialmente
aquelas histórias dos reis e dos juizes, e as tantas batalhas descritas
no Antigo Testamento.
—Experimente!—foi a resposta de Betsie. —Comece
contando na minha classe a história de Jesus alimentando os cinco
mil homens.
Bem, ali estava uma história que eu conhecia! Animada, fui
com ela para a classe, pensando em quão simples seria desempenhar
tal tarefa. Como me enganara! Fiquei tão embaraçada e senti-me
completamente frustrada ao terminar a história em cinco minutos! O
período de aula era de 30 minutos e eu não sabia mais o que dizer
para preecher o tempo. Então Betsie se levantou e, para meu
assombro, prendeu a atenção daquelas crianças durante os minutos
restantes, contando a mesma história que eu havia contado an-
teriormente.
Não me desanimei; depois daquela experiência tomei a
deliberação de aprender a contar histórias. Ouvindo Betsie, eu ia
aprendendo que ao contar uma história devemos apresentar o quadro
de tal forma que os ouvintes sejam guiados a uma jornada falada.
Mina, uma amiga minha que era professora numa escola
evangélica, propôs ajudar-me. Pedimos permissão ao diretor da
escola para que eu contasse a história bíblica em sua classe todas as
segundas-feiras de manhã. A princípio a aula parecia um tanto
enfadonha, até que, aos poucos, fui aprendendo a dar aqueles toques
imaginários à história, despertando assim mais e mais o interesse da
classe.
Eu adotava o método de descrever em uma história um
quadro após o outro, dirigindo minha pequena classe através da
galeria de arte da Bíblia. Quando contei de novo a história da multi-
plicação dos pães, o primeiro quadro que visualizamos foi o de Jesus
com todo o povo assentado na relva, ao seu redor. Procuramos sentir
as pessoas individualmente, imaginando onde moravam, quais os
problemas que as afligiam e o que pensariam agora sobre este
Homem em cujos olhos se refletia o amor divino. O quadro seguinte
seria o de Jesus e seus discípulos, estes falando com o Mestre sobre a
necessidade de alimentar aquela multidão faminta e cansada.
Alimentar como? não havia nas proximidades nenhum mercado ou
armazém ... Entretanto, havia urgência de alimento. As águas azuis
do mar da Galiléia refletiam as verdes montanhas ao redor; a relva
viçosa onde as pessoas se assentavam para ouvir Jesus dobrava-se
premida pela multidão.
Então eu encaminhava os' ouvintes para o clímax: Jesus
tomando os cinco pães e os dois peixes oferecidos a ele por um
menino que talvez tivesse saído às compras para a mamãe, e ...
"erguendo os olhos ao céu, os abençoou; e partindo os pães, deu-os
aos discípulos para que os distribuíssem; e por todos repartiu também
os dois peixes. Todos comeram e se fartaram" (Marcos 6:41, 42).
"Que júbilo para nós quando cremos em Jesus Cristo!" Essa
frase encerrava a minha história.
Eu não podia imaginar o valor que este trabalho teria para
mim nos dias futuros. Se Betsie nie tivesse dito que um dia eu teria
de falar a um auditório de milhares de pessoas, por certo eu teria
silenciado meus esforços no desejo de melhorar meus fracos recursos
na arte de contar histórias.

De Bach com amor


A música foi uma parte tão grande na minha infância como a
televisão o é para as crianças nos dias de hoje. Mamãe e tia Ana
foram professoras de Jardim da Infância; ainda hoje ouço--as cantar
para mim as pequenas canções que elas ensinavam aos seus
pequeninos alunos. Quando cresci o bastante para assentar-me ao
harmônio e movimentar-lhe o pedal com meus próprios pés, tia Jans
contratou um dos seus protegidos militares, grande conhecedor de
música, para dar lições a Nollie e a mim.
Gostávamos de cantar em nossa casa. Nollie com sua bela
voz de soprano; Willem cantando tenor; eu, o contralto, aprendemos
a cantar o coral de Bach "Seid froh die Weü". Cresci cultivando
grande admiração por Bach.
Certa vez papai nos reuniu e disse:—Preparem--se para irmos
a uma festa em São Bavo amanhã à noite!
Eu não podia imaginar nada melhor do que os concertos a que
já havíamos assistido em São Bavo, a igreja do tio Arnold. Por ser
ele zelador da igreja, era-nos permitido assistir aos concertos no
banco ao lado da porta que lhe separava a casa do corpo do templo.
Só às pessoas de posses era dado o privilégio de assistir a esses
importantes recitais de música; não fora pelo tio Arnold, dificilmente
os membros da família ten Boom poderiam partilhar de tais
privilégios.
—Não se esqueçam dos agasalhos—recomendou mamãe
quando nos aprontávamos para a misteriosa festa.
São Bavo era um edifício enorme e sem aquecimento central.
Havia uns aquecedores portáteis especialmente reservados às pessoas
mais importantes, para aquecer-lhes os pés. Aos membros da família
do zelador era reservado um banco duro de madeira encostado à
parede de pedra, gelada.
Aprontamo-nos alegres com a expectativa do grande festival
e lá fomos para São Bavo. Passamos em frente da entrada principal e
entramos pela porta ao lado até alcançar o banco que nos era
reservado. Aquele cheiro do pó e umidade do gás dos lampiões e do
carvão queimando nos aquecedores me era familiar; um grande
excita-mento começou a apossar-se de mim. Tomamos lugar ao lado
do papai, que, com carinho aconchegava a manta aos ombros da
mamãe e ajeitava-lhe às costas as almofadas que trouxera para mais
confortavelmente ela poder usufruir o programa.
Um homem alto e magro, de bigode recurvado, cabelos
grisalhos e rebeldes, passou por nós, dirigindo-se ao mundialmente
famoso órgão de tubos. Eu, que já conhecia bem o lugar onde se
achava tão grandioso instrumento, não conseguira entender como
uma pessoa podia aprender a tocar naqueles teclados com 68
registros! Alguém nos contou que Mozart tocara nesse órgão aos dez
anos de idade.
Agora já podíamos concluir porque essa noite seria tão
importante! E foi com a respiração suspensa que ouvi deliciada, para
início do programa, um dos prelúdios de Bach, pelas mãos de Albert
Schweitzer! Ele era autoridade não só na montagem de um órgão,
como também organista capaz de encher a atmosfera daquela
catedral com primorosa e rara beleza. O edifício da catedral de São
Bavo era uma mistura cinzenta e fria, por dentro e por fora; mas à
noite—com os lampiões de gás refletindo uma luz rembrand-tesca, as
colunas apontando para o alto num fulgor misterioso—a atmosfera
de harmonia era divina. Eu achava que a eternidade devia conter esse
tipo de beleza.
Albert Schweitzer era um filósofo alemão, médico, escritor e
teólogo. Ele foi para a África como médico missionário e lá fundou
um hospital e uma colônia para leprosos. Ao acompanhar seu êxito e
fama pelo mundo todo, lembrava-me da primeira vez que o ouvi
interpretar Bach na catedral de São Bavo, e do quanto aquele ines-
quecível recital contribuiu para aprimorar meu amor à música pela
vida afora.

Impaciente para aprender paciência


Não nascemos com paciência; creio que Deus começou a
ensinar-me o significado de tal virtude quando eu estava com 17
anos. Como caçula da família, fui uma criança dengosa, continuando
assim por longo tempo. Eu amava a vida com intensidade e ansiava
por captar todas as experiências valiosas de cada dia. Então desabou
sobre mim uma terrível catástrofe, abalando-me de tal forma que
pensei não sobreviver.
Por algumas semanas me sentia febril. Durante algum tempo
procurei disfarçar meu estado, porém mamãe notando minha
indisposição chamou o médico. Ele me examinou, virando-me de
todos os lados; auscultou-me, fez-me perguntas e afinal diagnosticou:
tuberculose!
Sentença de morte! Tão jovem, pensei... por que Deus me
chamava para si quando havia tanta coisa para eu fazer aqui na
terra?
—Você tem de ir para a cama, Corrie, até que a febre se vá—
ordenou o médico.
Naqueles dias, a tuberculose era tão terrível e temida quanto o
é o câncer nos dias atuais. Subi as escadas devagar, chorando, sem
nem olhar para trás. O dia ainda ia alto; parecia-me por demais
estranho aprontar-me e ir para a cama!
Clamei ao Senhor: "Por que tenho eu de ficar doente, meu
Deus?! Eu quero viver! Quero recuperar a saúde!" Levou muitos dias
para eu me render e aceitar a situação. Por certo eu tinha de aprender
o que está escrito em Colossenses 1:11, 12:
Sendo fortalecidos com todo o poder, segundo a força da sua
glória, em toda a perseverança e longanimidade; com alegria, dando
graças ao Pai...
Por entre lágrimas e revolta, eu agradeceria a Deus, porém
não podia entender por que ele queria prender-me na cama entre as
paredes do meu pequeno quarto!
A princípio muitos visitantes subiam ao meu quarto; mas
depois de algum tempo alguns se esqueceram de mim. E eu,
revoltada, sentia-me cada vez mais uma pobre e miserável criatura.
Comecei então a orar diariamente pela paz em meu coração; e assim
chegou o momento em que pude dizer: "Sim, meu Deus, tu sabes o
que é melhor!"
Naquela época Willem estudava teologia na Universidade de
Leiden. Ele ia prestar exame sobre História da Igreja. Geralmente ele
passava os fins de semana em casa.
—Posso gravar melhor as lições na minha mente se eu tentar
ensiná-las. Que acha, Corrie, se eu lhe der alguns livros você os
estudará?— perguntou Willem.
Não era a primeira vez que eu o ajudava dessa maneira. Para
ganhar algum dinheiro extra no seu tempo de faculdade ele dava
aulas particulares de latim a um rapaz que, como estudante, não se
recomendava muito bem. Todas as manhãs, das sete às oito, ele dava
aula ao rapaz; eu tirava partido dos dois lados. Se o rapaz não
prestava atenção e se desligava, Willem dava a aula para mim.
Aproveitei imensamente essas lições, e pude ver além de tudo que
meu irmão era um ótimo professor.
Aprendi a gostar de "História da Igreja" durante aqueles
meses de reclusão; esse estudo foi para mim uma fuga, desviando-me
os pensamentos do problema da saúde.
O médico não me visitava muito; repouso era o único
remédio que ele conhecia para o meu mal; assim, recomendou à
mamãe que não me deixasse sair da cama enquanto eu não estivesse
totalmente sem febre. Certo dia ele passou pelo corredor após uma
visita à tia Bep, que era muito idosa e fraca; chamei-o.
—Doutor, um instante, por favor; estou sentindo uma dor
aguda no abdome, justamente aqui, neste lugar—disse-lhe eu,
apertando com a mão o local dolorido bem no lado direito.
Ele examinou-me e descobriu que meu apêndice estava
inflamado, o que provavelmente havia causado a febre durante todo
aquele tempo. Não sei de ninguém que tivesse ficado tão feliz com o
diagnóstico de apendicite quanto eu! Depois de cinco meses de
prisão, deixei o leito, passei por uma pequena cirurgia e voltei ao
maravilhoso mundo que eu tanto amava!

No mundo, sem pertencer a ele


Até àquela época de minha vida o meu mundo exterior era
muito pequeno. Limitava-se às ruas e becos de Haarlem, às curtas
excursões com papai a Amsterdã, ou a visitas ocasionais a amigos
nos seus vilarejos circunvizinhos.
Comecei a sentir desejos de libertar-me do Beje—tomar
conhecimento do mundo que existia longe do Barteljoristraat. Eu não
sonhava com a possibilidade de conhecer países e povos sobre os
quais lia em meu livro de geografia; mas gostaria, pelo menos, de
experimentar a vida fora da relojoaria.
Estaria eu errada? Eu lutava com esta ambição, e resolvi
consultar minha professora de Bíblia, a Sra. van Lennep, que era
muito preparada e ótima conselheira. Ela me disse:—Corrie, é muito
natural o seu anseio. Você pode realizar algo no mundo mediante o
poder de Deus.
A primeira coisa que fiz foi atirar-me a diversos cursos
intensivos. Assim, recebi o certificado de economia doméstica,
puericultura, corte e costura e outros. Isso me garantiu uma boa base
para o primeiro emprego.
Finalmente, surgiu-me a oportunidade de conhecer o mundo
fora. Ouvi de uma das colegas de escola a notícia de um emprego. A
família Bruins, que tinha uma casa magnífica, precisava de alguém
para cuidar de uma garotinha; seria o posto de governanta ou coisa
parecida. Eu sabia que esse foi o tipo de trabalho que tia Bep
desempenhou na sua juventude—o que a tornou uma solitária e
amarga criatura na velhice—porém esse fato não diminuiu meu
entusiasmo por aquilo que me surgia como uma nova aventura na
vida.
Papai e mamãe deram-me o consentimento; arrumei as
poucas roupas na maletinha e tror quei, entusiasmada, o meu Beje
por Zandvoort, uma vila no litoral, distante de Haarlem mais ou
menos quinze quilômetros.
O contraste entre minha vida no lar e o meu novo emprego
começou com o primeiro relance à nova casa. Ela era grande e
majestosa! Como podia uma só família morar numa casa de tal
tamanho?
Assim que comecei o trabalho, esforcei-me ao máximo por
agradar a todos da nova família. Em minha casa sempre conheci
humor e alegria, com uma grande dose de amor e afeição. Fora, no
mundo, não era assim. Pela primeira vez defrontei-me com um novo
modo de pensar, um novo tipo de vida familiar tão diferente, com-
pletamente novo para mim.
Se era essa a maneira de se "ser alguém", por certo não era
isso o que eu queria.
Quinta-feira era sempre meu dia de folga; era com um suspiro
de alívio que eu me encaminhava para o Haarlem, para as minhas
aulas de catecismo. Ir para casa uma vez por semana só me fazia
sentir o contraste entre a segurança de nossa família e a vida no
mundo lá fora. Em alguns aspectos eu me sentia desiludida.
Havia-me proposto fazer o melhor no meu trabalho. Muitas
vezes fui tentada a abandonar o emprego; mas como eu não me
considerava fracassada, permanecia.
Certo dia, porém, Willem veio a Zandvoort trazendo-me a
notícia do falecimento de tia Bep, a mais velha de nossas tias. Ela era
inválida e morou conosco por muito tempo; tia Ana arcou sozinha
com a responsabilidade de cuidar dela depois que comecei a
trabalhar. Agora ela estava muito cansada e precisando de repouso,
disse-me Willem.
Diante dessas notícias achei que a minha presença se fazia
necessária em minha casa; assim, conversei com meus patrões e,
finalmente — livre! Em meu coração eu me regozijava com a volta
para o lar; mas, em tais circunstâncias, procurei controlar meus
arroubos.
Quando Willem tomou a minha bagagem e juntos deixamos
aquela luxuosa casa, senti o coração leve. Willem disse:—Vamos até
à praia para gozar de tão glorioso dia!—E ele começou a entoar em
alta voz música de Bach! De algum modo era cabível o regozijo
íntimo; entretanto, não achava correto externar tais sentimentos. —
Willem, como pode você agir dessa maneira? Tia Bep acaba de
falecer; você não devia mostrar-se tão alegre!...
—É claro que devemos estar alegres, Corrie. Um filho de
Deus é um cidadão dos céus; a atitude do cristão deve ser de louvor
diante da morte de alguém. Nosso pesar pela morte de tia Bep seria
um tipo de egoísmo de nossa parte, assim como se sofrêssemos por
nós mesmos.
Eu sei que ele estava certo; por isso, chegamos ao Beje, com
o coração em paz, na certeza gloriosa de estar tia Bep em pleno gozo
do seu novo lar nos céus. Como era bom estar em casa! Que
harmonia contrastante com a daquela luxuosa casa do cerimonioso
patrão! Compreendi, pois, o motivo por que tia Bep revelava tal tipo
de personalidade. Somente uma pequena experiência da vida que ela
levara foi o suficiente para tornar--me mais compreensiva. Nunca
entendemos bem uma pessoa até que andemos nas suas pegadas.

Os braços eternos
Houve muitas vezes em que os problemas do momento,
grandes ou pequenos, quase me esmagaram. Lembro-me de uma vez,
não muito depois da morte de tia Bep, em que mamãe adoeceu
gravemente. Eu estava por demais preocupada com ela e, para
aumentar o problema do momento, havia ainda uma grande conta
que devia ser saldada dentro dos próximos dias. Quase ninguém se
interessava na compra de relógios nessa época. Papai e eu,
assentados na sala de jantar, conversávamos.
Eu tinha os olhos fitos na toalha preta e vermelha tão
familiar, testemunha das horas felizes e tristes. Sentia-me
grandemente deprimida. Tudo ia mal e parecia haver nada de bom
que surgisse de tão desanimadora situação.
—Papai, que faremos? Tudo é tão terrível!
—Não se esqueça, Corrie,... por baixo de nós se estendem os
braços eternos. Não cairemos.
Eu não conhecia aquela expressão, e perguntei:
—Isso está na Bíblia?
—Claro que está. Moisés disse essas palavras aos filhos de
Israel.
—Mas como podem essas palavras ajudar-nos agora?—
perguntei com rebeldia.
—Menina, entenda bem. Moisés fala-nos no livro de
Deuteronômio (33:27) que Deus é nossa habitação. Nós temos a
promessa de segurança quando seus braços estão por baixo de nós...
segurando-nos . . . sustentando-nos . . . fortalecendo-nos.
Trinta anos mais tarde eu estava deitada num colchão imundo
num campo de concentração. Estava escuro como breu, e naquele
quarto desconfortável Betsie deitava-se tão junto a mim que eu podia
sentir as batidas de seu coração. Eram batidas irregulares e fracas.
Tentei pensar em algumas palavras que pudessem confortá-la
antes de cairmos no sono; de repente, vi-me na sala de jantar, a
toalha preta e vermelha sobre a mesa e papai dizendo-me com sua
voz calma: "... por baixo de nós estão os braços eternos."
—Betsie ... você está com sono?
—Não, ainda não—respondeu ela fracamente.
—Lembre-se das palavras de papai: "O Deus eterno é a tua
habitação, e por baixo de ti estende os braços eternos."
Não posso afirmar, porém creio que ela devia ter sorrido
naquela negra barraca.
—Oh, sim, Corrie ... eles nunca nos deixarão.
8
O MELHOR AINDA ESTÁ POR VIR
Nossas preocupações e interesses ultrapassavam agora os
limites da Holanda. Todos nós queríamos saber mais e mais sobre
outros países com seus diferentes idiomas e culturas. Tal sentimento
nos fora estimulado pela leitura de bons livros e pelo convívio com
pessoas estrangeiras.
Quando eu estava entre os meus 18 ou 19 anos de idade foi
um homem que veio à Holanda quem nos despertou a atenção para as
missões estrangeiras. Seu nome era Jan Willem Gunning; ele iniciou
um movimento chamado "orientação para o estudo missionário".
Betsie, Nollie, Willem e eu nos vimos envolvidos em grupos
organizados por ele. Durante o verão fomos a um congresso de
missões em Lunteren, um núcleo situado no meio de bosques e
campos de urze. Era emocionante encontrar verdadeiros missionários
vindos de toda parte do mundo.
No primeiro dia dos trabalhos um missionário idoso dirigiu o
grupo que entre as centenas de pessoas podia cantar, sendo a nossa
própria Nollie escolhida para solista.
—Nollie, não é emocionante? Imagine, você vai cantar para
toda essa multidão—disse-lhe eu.
—Oh, Corrie, nem me fale sobre isso; se eu começar a
pensar, não serei capaz de emitir um som!
Era uma experiência nova para todos nós. Ouvíamos as
palestras e depois nos dividíamos em pequenos grupos para discutir
os assuntos. Escolhíamos o tema que gostaríamos de estudar e mais
tarde o usávamos também em nossas reuniões semanais em casa. Os
estudantes de uma grande escola missionária dirigiam os debates em
grupos; muitos deles se tornaram grandes amigos nossos.
Muitas meninas, sabíamos estarem elas interessadas em
outros assuntos mais do que nos grupos de estudo. Os estudantes
missionários eram tão novatos e diferentes como os próprios assuntos
que nos eram ensinados. Infelizmente havia muito pouco tempo para
encontros. Na realidade, o único tempo disponível eram as duas
horas antes do café da manhã. Dificilmente eu conseguia acordar
assim tão cedo; mas aprendi a fazê-lo em favor das vantagens da
amizade.
Eu dormia com um cordão amarrado ao dedão do pé. Quando
um rapaz vinha para me encontrar e eu ainda dormia, ele me
acordava puxando a outra ponta do cordão que estava presa fora da
minha janela. Dentro de instantes estávamos nós dois pelo meio das
urzes de Lunteren, a conversar animadamente sobre as atividades
missionárias e nossos projetos de trabalho para o futuro. Era um
encontro inocente—mas não seria essa a parte do congresso que eu
iria relatar a tia Jans!
Um rapaz, Albert de Neef, tinha uma namorada que não
gozava de muita saúde. Ela consultou o médico para saber se estava
forte bastante para ir trabalhar na Indonésia; porém, durante os
trabalhos do congresso, ela soube que fora reprovada. Os dois
ficaram tão tristes com a notícia que resolvemos convidá-la para um
fim de semana no Beje. Ela se distraiu e divertiu tanto em nossa casa
que chegou a esquecer um pouco o seu desapontamento. Um ano
mais tarde, durante o outro congresso de missões, ela estava em
forma e apta para o trabalho no campo missionário.
Esse pequeno gesto hospitaleiro de nossa parte tornou-nos
populares entre os estudantes das missões. Um novo mundo se abriu
para nós quatro ao iniciarmos um grupo de estudo das missões em
nossa casa.
Recebemos um ótimo treinamento naquelas reuniões. Eu
nunca poderia sonhar o quanto isso me significaria anos mais tarde,
quando me tornei mensageira do Senhor, visitando muitos campos
missionários nos cinco continentes.

Além dos diques


Meus horizontes começaram a ampliar-se. Nos
acampamentos para missões encontramos pessoas vindas de toda
parte do mundo. E através da A.C.M. (Associação Cristã de Moços)
em Haar-lem tivemos muitas oportunidades de conhecer pessoas de
outros países e de outras denominações. A ACM era simplesmente
um edifício onde os jovens realizavam suas reuniões; mas os turistas,
pensando que ali fosse, um hotel, para lá se encaminhavam, sendo
muitas vezes enviados ao Beje pela diretora que não sabia expressar-
se, em inglês. Ela sabia do nosso espírito hospitaleiro. Dessa forma
praticávamos o inglês conversando, unindo ao mesmo tempo esse
interesse ao de nos inteirarmos da situação do mundo.
Comecei a aprender mais sobre os cristãos que não
professavam exatamente as mesmas crenças e doutrinas como o
fazíamos nós. Quando menina, eu acreditava que a teologia
apresentada pela Igreja Reformada da Holanda fosse a única certa.
Outros podiam amar a Deus, eu admitia; mas realmente eles tinham
muito que aprender!
À medida que crescia em mim um interesse pela verdadeira
fé ecumênica, comecei também a aprender acerca dos muitos cristãos
que sofreram horrores- em defesa de suas crenças. Certa vez papai
me contou a respeito de uns cristãos na Rússia que eram conhecidos
por Stundists. Eles amavam a Deus e estavam prontos a sacrificar-se
por Jesus. Conheciam a Bíblia de ponta a ponta e eram muito
escrupulosos na maneira de comportar-se.
Papai havia dito: "A Rússia foi grandemente abençoada por
Deus ao enviar ele aqueles cristãos para aquela pátria. Eles
habitavam a vasta área da Sibéria numa vida comunitária onde jo-
vens e velhos eram treinados para glorificar a Deus."
Parecia-me tão remoto ouvir sobre o sofrimento e
perseguição dos cristãos. Nós éramos livres na Holanda; era-me,
pois, difícil imaginar os cristãos em outras terras sendo perseguidos.
Mais de meio século se passou depois que papai nos falou
sobre os Stundists. Minha secretária e companheira Ellen de Kroon e
eu fomos à Rússia; viajando para Tadzhik, perto da Sibéria,
encontramos lá uma animada igreja tão dedicada ao Senhor, que era
uma verdadeira Ia" naquela sombria terra. Esses cristãos eram
Studinsts; eu me lembrei da história do papai.
Uma senhora, curvada já pela idade avançada, com as faces
marcadas por uma vida de privações e misérias, chegou-se a mim e
disse:—Corrie ten Boom, venho orando por você diariamente, por
muitos e muitos anos.
Eu estava atônita. —Como a senhora veio a conhecer-me?
—Certa vez recebi uma encomenda da Alemanha; uma das
caixas estava embrulhada com uma folha de uma revista cristã, na
qual li sobre as suas experiências e o trabalho que a senhora realiza
agora. Senti que Deus me mandava orar fervorosamente pela
senhora.
É de admirar a maneira pela qual Deus entrelaça os seus fiéis
através dos continentes, não importa qual seja a raça ou cor. Este elo
espiritual é algo que o homem tem tentado estabelecer por meio de
grandes concílios nacionais e movimentos ecumênicos; porém, todo
esse esforço será em vão se o Espírito do Senhor não estiver
presente.

Sadhu Sundar Singh


Uma pessoa que exerceu grande influência sobre a minha
vida no final de minha adolescência foi um homem da índia chamado
Sadhu Sundar Singh. Quando menino, ele foi ensinado a odiar a
Jesus. Ele conhecia algo sobre Deus, mas a Bíblia dos cristãos era
considerada uma grandíssima mentira. Certa vez ele queimou uma
Bíblia achando que com esse gesto declarava publicamente seu
desprezo pelas inverdades que cria aquele livro conter. Quando os
missionários passavam por ele, atirava-lhes lama.
Sentia, contudo, uma grande insatisfação íntima; ansiava por
conhecer a Deus. E ele contou a sua própria história:
"Apesar da certeza de haver feito bem queimando a Bíblia,
sentia-me infeliz. Depois de três dias, esse peso tornou-se-me
insuportável. E ao levantar-me de manhã, orei com fervor para que
Deus se manifestasse a mim, caso ele existisse realmente. Eu queria
ter a certeza de uma vida além da morte; queria saber se existia um
céu. E como saber, senão pela própria morte? Assim, resolvi morrer.
"Planejei atirar-me na frente de um trem que passava ao lado
de minha casa. Então, subitamente, algo fora do comum aconteceu.
O quarto encheu-se de um magnífico fulgor, e ali no meio eu vi um
homem. Pensei que talvez fosse Buda ou algum outro homem santo.
Então uma voz se fez ouvir:
" 'Até quando vai você rejeitar-me? Morri por você; dei a
minha vida por você.'
"Vi as suas mãos—as mãos feridas de Jesus Cristo. Este era o
Cristo que eu havia imaginado como um homem importante que
outrora vivera na Palestina, mas que morreu e desapareceu. E agora
ele estava à minha frente ... Vivo! Eu vi o seu rosto! Olhava para
mim com amor!
"Três dias antes eu havia queimado a Bíblia, e ele não estava
zangado. Fui repentinamente transformado... Eu o vi, o Cristo, aquele
que vive, o Salvador do mundo. Ajoelhei-me, experimentando uma
paz maravilhosa como nunca antes havia conhecido. Era a felicidade
pela qual ansiava havia muito, muito tempo."
Quando pela. primeira vez ouvi falar sobre Sadhu Sundar
Singh, as histórias pareciam ser tão aumentadas que era impossível
separar a realidade da ficção. Então ele veio à Holanda e foi
convidado por um grupo ativo do trabalho missionário para, num fim
de semana, fazer algumas palestras num congresso em Lunteren. Eu
estava tão encantada com a possibilidade de ouvi-lo, que rumei para
o congresso sem nem mesmo me haver inscrito.
Com um saco de viagem e um cobertor sob o braço, cheguei à
entrada do acampamento. Um estudante alto, chamado van
Hoogstraten, distribuía os cartões da reserva dos quartos. Quando ele
se aproximou, eu disse:
—Não fiz reserva, mas posso dormir fora mesmo. Eu só
quero assistir às reuniões do Sadhu.
O estudante sorriu diante da minha firmeza, e disse:
—Senhorita ten Boom, há um quarto à sua disposição. Seja
bem-vinda!
Este mesmo jovem estudante mais tarde se tornou
missionário, e morreu numa prisão japonesa durante a Segunda
Guerra Mundial. A bondade que ele me revelou era uma de suas
características, e anos mais tarde foi uma bênção para os guardas de
sua prisão. Uma de suas filhas, Connie, mais tarde acompanhou-me
por sete anos nas viagens que fiz pelo mundo. Naquele fim de
semana as palavras de Sadhu me encantavam e me transformavam ao
mesmo tempo. Ele contou das visões que tivera, e como na realidade
ele vira a Jesus, justamente numa ocasião em que ele não cria. Lemos
sobre o apóstolo Paulo e sua experiência no caminho de Damasco;
mas aqui era diferente; era alguém que pedia que ele próprio tivesse
uma experiência.
Um rapaz aventurou-se a perguntar algo que todos queríamos
saber.
—Por favor, meu senhor, como se parecia Jesus?
Ele colocou a mão diante dos olhos e disse:
—Oh! seus olhos! Seus olhos ... eram tão lindos!
Desde aquele instante sinto um desejo enorme de ver os olhos
de Jesus.
Ninguém se moveu. O silêncio era completo. O rosto do
Sadhu era o rosto mais semelhante ao de Cristo que eu já vira até
então. Isso me deixou alegre e triste ao mesmo tempo.
Após a reunião senti necessidade de meditar; então saí pelo
campo, andando só, tentando lembrar-me de tudo o que tinha ouvido,
tentando tudo compreender; examinava o meu coração tentando
entender o meu relacionamento com Deus.
Enquanto caminhava, profundamente imersa em meus
pensamentos, foi quase correndo que fui ao encontro do Sadhu que,
por sua vez, saíra também para um passeio. De início quase me
faltou coragem para fazer-lhe algumas perguntas; mas num instante
ele me colocou à vontade e a conversa correu facilmente.
—Por favor, Sr. Sadhu, diga-me, o que há de errado comigo?
Sou uma filha de Deus e recebi a Cristo como meu Salvador; sei que
meus pecados estão perdoados. Sei que ele está comigo, pois ele
mesmo disse: "Eu estarei contigo até ao fim dos séculos." Mas, que
há de errado comigo? Nunca tive uma visão nem a experiência de um
milagre.
O Sadhu sorriu-me enquanto dizia:
—Às vezes algumas pessoas vêm a mim esperando ver um
milagre. Quando vierem agora, mandá-las-ei para Corrie ten Boom.
Que Jesus vive e está comigo, isso não é milagre... estes olhos viram
a Jesus. Mas você, que nunca o viu, sente a sua presença. Não é isso
um milagre do Espírito Santo? Veja em sua Bíblia o que Jesus disse a
Tome em João 20:29: "...Bem-aventurados os que não viram e
creram." Não ore pedindo visões; ele lhe dá a certeza de sua presença
mesmo sem visões.
Foi um alívio para mim essa conversa. Foi como se o Senhor
tivesse rasgado uma cortina para que eu pudesse ver a luz. Sim, é
maravilha sem par sabermos que o Senhor está conosco!
Paulo disse: "Eu sei em quem tenho crido."
E Pedro ... com que beleza o expressou:
A quem, não havendo visto, amais; no qual, não vendo agora,
mas crendo, exultais com alegria indizível e cheia de glória, obtendo
o fim da vossa fé, a salvação das vossas almas.
1 Pedro 1:8, 9

Repartindo
Quando voltei para casa depois daquela viagem, mal podia
esperar para contar aos meus sobre as experiências que eu tivera. Era
bem de manhã e tia Ana ainda estava deitada. Acordei-a e comecei a
contar o que havia acontecido. Eu não conseguia parar de falar.
Betsie e os demais, percebendo a minha presença, correram
para o quarto de tia Ana e assim ficamos reunidos ao lado do seu
leito. Tentei lembrar-me de tudo o que havia ouvido; finalmente,
quando fiz uma pausa longa o bastante para qualquer comentário, tia
Ana disse:
—É justamente como se você tivesse visto e ouvido um dos
discípulos de Jesus.
Estas foram as palavras de papai no momento: "Não é
maravilhoso tal felicidade aqui na terra? É um pequeno antegozo do
céu. Sim, o melhor ainda está por vir."
Papai sempre dizia isso depois que partilhávamos qualquer
rica e especial experiência.
Anos mais tarde, quando papai entrava pela porta da prisão,
ele disse:
—Lembre-se, Corrie, o melhor ainda está por vir.
Dez dias depois o espírito de papai deixava a prisão para
entrar no paraíso. O melhor havia chegado.
9
AMOR E MENTE SADIA
Era o ano de 1909. O mundo ao nosso redor caminhava para
uma transformação; um explorador norte-americano, Robert Peary,
havia atingido o polo norte; o infeliz Lusitânia, um dos maiores
transatlânticos, fazia luxuosamente a travessia do Atlântico; na
Rússia, o Tzar começava um programa de perseguição aos judeus,
enquanto na Palestina um jovem, David Ben Gurion, sonhava com a
volta do povo escolhido de Deus à sua antiga terra.
O começo do século vinte preparava-se para um surto da
ciência e uma sublevação da sociedade. Na Holanda, entretanto,
nossa atenção voltava-se para o nascimento da princesinha Juliana,
herdeira do trono.
Na busca intérmina do homem pela paz feita pelo próprio
homem, os dirigentes mundiais se reuniram em Haia, Holanda, para
mais uma tentativa de constituir um organismo internacional onde as
nações tentassem solucionar suas divergências.
Nollie, Willem, Betsie e eu éramos jovens intensamente
envolvidos em nossos próprios interesses, girando nossas atenções
em torno de cada um.
Nollie, que era vocacionada para o magistério, seguiu a sua
vocação. De uma feita foi professora em Haarlem, numa escola cujo
diretor era um homem desagradável e, além de tudo, bitolado. Dava
pena ver a nossa meiga e gentil Nollie tomar-se de uma terrível
depressão aos domingos à noite, à simples expectativa do dia
seguinte quando de novo teria que enfrentar o diretor da escola. Sua
expressão se tornava sombria, porém diante da dedicação que
aquelas crianças lhe demonstravam, ela continuava como professora
do primeiro ano.
Finalmente ela foi ensinar numa outra escola em Amsterdã,
tendo por isso de ficar longe de casa pela primeira vez. Lá ela
encontrou Flip van Woerden, também professor, com quem se casou
mais tarde. Deus lhes deu sete filhos, e no lar ela teve melhor
oportunidade de usar seus dons maternos do que o fazia nas classes
de uma escola.
Meu querido o estudioso irmão, Willem, com sua peculiar
barba e mente esclarecida proporcionava sempre o estímulo
intelectual às nossas palestras em casa. Embora Willem fosse o
natural herdeiro dos negócios de papai, não sentindo inclinação para
tal ofício, preferiu estudar teologia. Papai nunca forçou os filhos a
seguir esta ou aquela carreira profissional para a qual não fossem
vocacionados; conseqüentemente, Willem não sentia estar
desapontando ao pai por não seguir--lhe os passos na profissão.
Todos nós amávamos a música; mas para Willem só existia
um compositor: Bach. Assim aprendemos a cantar os corais de Bach
como as crianças aprendem as canções de minar. Nollie cantava o
soprano, Willem o baixo e eu, contralto. Éramos felizes por termos
um irmão; podem imaginar um coral de Bach com um trio feminino?
Willem não tinha namoradas. Por isso quando ele participou
aos amigos na universidade que ia se casar com Tine, seu amigo
Karel exclamou: —Ora, nunca pensei em vê-lo casar-se um dia!
Você nunca olhava para garotas!
Dez anos depois de casado, Willem foi chamado para
trabalhar como ministro entre os judeus. Ele foi para Dresden,
Alemanha, onde estudou no Delitcheanum. Sua tese versou sobre o
anti-semitismo racial, assunto que talvez não tenha agradado a alguns
de seus professores. Ele disse em sua tese que o pior movimento de
massacre na história viria da Alemanha. O mais surpreendente de
tudo é que a tese foi apresentada por Willem em 1930, três anos
antes da fundação do III Reich de Hitler.
Eu nutria uma grande admiração por Willem, e muitas vezes
me perguntava por que Deus não havia feito de mim uma intelectual.
Talvez ele pudesse me usar de alguma forma, apesar de toda a minha
simplicidade. Porém, realmente eu não sabia como tal cousa poderia
acontecer.
Ao olhar para Betsie eu suspirava. Seus cabelos eram
encaracolados; os meus, lisos, escorrido. Betsie era elegante e gentil;
ao lado dela eu simplesmente me sentia desaparecer. E como eu
amava Betsie, que era sete anos mais velha que eu. Ela não podia
fazer trabalhos pesados porque seu organismo se enfraquecera depois
de uma anemia profunda; porém ela conseguia realizar muito.
Betsie podia dar um ambiente agradável e aconchegante a
uma sala desalinhada. Tudo o que era obscuro e enfadonho se
transformava em interessante e divertido nas mágicas mãos de Bet-
sie. Começamos a interessar-nos pelas artes quando ainda éramos
pequenos; Betsie podia fazer de uma exposição de arte uma
estupenda diversão, sendo ela a dirigente.
Nós, os holandeses, éramos ricos em arte e nos orgulhávamos
grandemente da herança que nossos mestres do passado nos legaram.
Quando Betsie me levava ao museu de Frans Hals em Haar-lem, ela
me apontava cada traço de beleza em cada peça de arte que ali havia.
—Veja, Corrie, como Hals pinta o rosto dos seus modelos.
Não é maravilhoso? E veja as mãos ... você já viu coisa mais linda?
Ela ia me falando sobre o talento de Rem-brandt, mostrando-
me como ele conseguia dar expressão a todas as suas pinturas. Betsie
tecia histórias através de uma visita a um museu de arte de um modo
tão emocionante que eu mal podia esperar pelo próximo capítulo!
Tudo isso contribuía para o enriquecimento de minha infância na
sábia avaliação da arte clássica e da música.
Betsie nunca se fazia notar; sempre ficava em segundo plano,
porém ajudando a todos e pronta com um bom conselho mesclado de
um senso de humor todo especial. Muitas vezes ela ajudava ao papai
no jornalzinho semanal que ele redigia para os relojoeiros;
transformava ela uma simples reportagem sobre a visita a uma fá-
brica em uma história original e humorística.
A igreja de nossa infância e dos anos seguintes, a velha
catedral de S. Bavo, teve parte importante na vida de cada um de nós.
À tardinha havia um culto chamado "culto diário", cuja duração era
de meia hora. Geralmente não mais de vinte fiéis se congregavam
para esse trabalho que era obrigatoriamente dirigido pelos pastores.
Como é da natureza humana esquecer-se de um trabalho que não lhe
é muito grato, os pastores às vezes também não apareciam.
Quando eu estava entre os meus 18 e os vinte e poucos anos,
meu primo, filho do tio Arnold, era o zelador de S. Bavo, em lugar
do pai. Então ele sempre me telefonava: "Corrie, nenhum pastor veio
para o culto diário. Por favor, dê-nos uma ajuda!"
Lembro-me de uma vez em que recebi um desses telefonemas
depois de haver tido um dia cheio de trabalhos em casa e na loja.
Sentia a cabeça vazia de qualquer idéia ou mensagem para transmitir
aos poucos fiéis reunidos na igreja àquela hora. Corri para a cozinha
onde Betsie preparava o jantar, esperando dela uma sugestão.
—Betsie, que poderei eu falar àquela gente na catedral?
Sua resposta veio imediatamente, como se ela houvesse
preparado tudo durante o dia. E ela começou a falar sobre o sermão
de um modo tão natural enquanto escovava meu casaco, corrigia meu
cabelo, e examinava criticamente a minha aparência.
—Corrie, abotoe o casaco; seu vestido não está muito em
ordem. Tome o Salmo 23 como tema: "O Senhor é o meu Pastor."
Ovelhas geralmente são bobinhas, você sabe. Muitas vezes não
enxergam nem o alimento que está logo atrás delas. Precisamos de
Deus tanto quanto as ovelhinhas precisam de um pastor.
Betsie me deu todo o esboço do sermão enquanto me
acompanhava até à porta.
—Eu orarei por você ... Estou certa de que Deus abençoará a
mensagem.
—Betsie, não sei que hinos vamos cantar... que sugere você?
—Peça a eles que digam o que desejam cantar.
Eu estava já na metade da rua e me virei para ver Betsie ainda
em pé na porta.
Bênçãos do céu desceram à catedral naquela tarde enquanto
na cozinha de nossa casa Betsie orava.
Ela era zelosa com sua pessoa, seus pertences e seus
pensamentos também. Anos mais tarde, lembro-me de uma vez que
passei pela sua cela na prisão alemã na Holanda onde estávamos de-
tidas como presos políticos do regime nazista. A Cruz Vermelha
havia mandado um pacote de alimentos para os presos; os alimentos
estavam dispostos em fila numa prateleira no canto. Sobre uma
banqueta, forrada com um lencinho, estava um vidro com duas
tulipas, presente do juiz com o qual Betsie orara depois da audiência.
Naquele ambiente árido havia uma atmosfera de asseio e ordem, que
era a imagen da personalidade de Betsie.
Apesar de termos nossos próprios interesses, gostávamos de
tomar parte nas reuniões e planos em família. As bodas de prata de
papai e mamãe a comemorar-se dentro de poucos dias seriam para
nós uma oportunidade de planejar um real e festivo programa. Nollie,
como lecionava, financiaria a festa. Ela economizou o quanto pôde
para alugar o salão da A.C.M. Programamos o entretenimento, que
seria grátis, exceto para mim, cuja dose de coragem necessária para
representar diante dos convidados constituía um preço alto demais.
Willem apresentou-se como Johann Sebastian Bach,
interpretando o seu papel com originalidade e graça. Como
musicista, era-lhe fácil tal papel, pensava eu. Nollie, cujo assunto
sobre moda empolgava, fez o papel de Sarah Bernhardt. (Por que não
aprendera eu a arte de ser graciosa?)
Na tarde da festa, mamãe estava emocionada! Acho que ela
nunca esteve tão bonita como naquele dia! Papai levou-a à A.C.M.
como se estivesse conduzindo a própria rainha para o baile da corte.
Dezenas de amigos, ricos e pobres, lá estavam para a festa; os
negociantes, os clientes cujos relógios papai consertara; os
protegidos de mamãe aos quais ela alimentava e confortava ... todos
presentes para cumprimentar o popular relojoeiro e sua esposa.
Quando o programa estava quase terminando, eu me muni de
coragem para dar minha contribuição à festa. Fui conduzida à frente
por Willem, vestida num uniforme do Exército de Salvação,
emprestado por alguém. Não sei se o uniforme me assentava bem;
não sei se o que cantei estava afinado ou não; uma coisa, porém, eu
sei: um lado da minha timidez desapareceu com a minha primeira
apresentação em público.
Nós quatro havíamos economizado algum dinheiro para
comprar um par de alianças de prata para mamãe e papai; a gravação
ficou aos cuidados de Willem, que providenciou uma inscrição em
hebraico. Dizia assim: O SENHOR É BOM, A SUA
MISERICÓRDIA DURA PARA SEMPRE, E DE GERAÇÃO EM
GERAÇÃO A SUA FIDELIDADE.

O Senhor foi fiel em dar-me forças para cantar diante de


todas aquelas pessoas. Estou certa de que naquela ocasião, nos meus
dezessete anos, nem sonhava que seria chamada um dia para falar
diante de milhares de pessoas. A fidelidade do Senhor é certamente
"de geração em geração".

Ética, Teologia Dogmática e Banheiras


Em 1910 abriu-se uma escola bíblica em Haarlem. Quando vi
o programa fiquei entusiasmada! Havia tanta coisa que eu queria
aprender. Lancei-me a este novo empreendimento escolhendo sete
diferentes assuntos ao mesmo tempo. Por dois anos lutei com Ética,
Dogmática, História da Igreja, Antigo Testamento, Novo
Testamento, História do Antigo Testamento e História do Novo
Testamento. Tal curso não devia ser difícil para um aluno inteligente;
mas para mim era.
Durante esse tempo mamãe sofreu um derrame cerebral.
Apesar de ela enfraquecer-se fisicamente, seu espírito suave e suas
atitudes positivas eram uma força para todos nós.
Como o meu trabalho em casa aumentou, mais difícil também
se tornou levar a cabo meus estudos. Finalmente chegaram os
exames. A primeira parte era de aplicação prática: tínhamos que dar
aula aos alunos e responder-lhes as perguntas. Nessa parte eu me saí
bem, e foi plena de confiança que me apresentei diante do grupo de
ministros para a segunda parte do meu exame.
Os ministros se reuniram numa determinada sala que por si só
não devia me amedrontar. Era uma sala grande que dava para um
corredor familiar de S. Bavo. Dot e eu brincamos muitas vezes
naquela sala, quando crianças; mas ao avistar aqueles bem
apessoados cavalheiros ladeando a mesa maciça, minha coragem
começou a falhar. A lareira no canto da sala era grande bastante para
eu até entrar nela; entretanto eu não era mais aquela criança pronta a
esconder-se no armário de casacos para não ser vista pelo diretor da
escola.
O presidente da mesa fez-me a primeira pergunta.
—Senhorita ten Boom, que estudou você sobre Ética?
—Acompanhei as aulas do professor Johnson durante dois
anos ...
Comecei, mas não fui além.
S. Bavo era, por natureza, um edifício gelado; mas parecia
agora que filetes de gelo pendiam do teto de onde eu não conseguia
despregar os olhos. 0 pastor Williamson, o presidente, ergueu as
sobrancelhas e olhou firme para mim. Ele e o pastor Johnson foram
colegas de seminário na mesma universidade e suas
incompatibilidades eram notórias dentro da escola.
—Só, é? não estudou nada mais que isso?— perguntou
desdenhosamente o pastor Williamson.
O ambiente estava tenso. Eu estava tensa. De repente fugiu
tudo e não pude lembrar-me de nada, nada. De sete diferentes
assuntos eu consegui sete reprovações!
Willem, por que não tenho o cérebro dele?
Quando voltei para casa com a notícia do meu fracasso,
Betsie foi a primeira a me consolar. Não obstante, no momento não
me pareceu que ela estivesse do meu lado, pois disse:
—Você deve tentar outra vez.
A maneira pela qual ela proferiu essas palavras fez-me calar
os argumentos.
—Quando fracassamos num exame, Corrie, sabemos durante
a vida toda que temos falhado; quando tentamos de novo sabemos
também durante a vida toda que vencemos e recebemos o diploma.
Resultado: oito anos mais tarde tentei de novo o exame e
passei.
A lição mais importante da minha experiência na escola
bíblica foi que desses estudos organizados aprendemos a sabedoria
dos sábios, mas não muito da "loucura de Deus".
Foi ensinando que mais consegui aprender. Eu servia à igreja
dando aulas de catecismo e preparando as pessoas para a
confirmação ou profissão de fé. Na Igreja Reformada da Holanda pó
podia dar essas aulas quem tivesse mais de 18 anos de idade. Eu
tinha licença também para ministrar aulas de Bíblia nas escolas que
não eram cristãs. Os pais que tinham filhos nas escolas seculares
tinham liberdade de aceitar ou não essas aulas para eles.
Aprendi a ouvir o Espírito Santo ao preparar essas aulas;
quando falava com as crianças ou com os jovens, minhas "aulas"
eram mais uma conversa com eles do que um relato do meu co-
nhecimento. Era um prazer aprender, desta maneira, mais da
realidade do Espírito Santo. Falar sobre minhas experiências com
papai e outras pessoas constituía para mim um ótimo treinamento no
trabalho. Ao lado do aspecto positivo desse trabalho havia também a
experiência nova de receber um pequeno honorário que eu resolvi
guardar para um projeto especial.
Quando me tornei moça havia certo luxo que eu queria
adquirir para nossa casa: uma privada com descarga. Naturalmente,
havia privadas em casa: uma no pavimento superior e outra em
baixo; mas eram instalações antiquadas que, pelo menos uma vez por
mês, necessitavam dos serviços do departamento sanitário da cidade.
Assim, guardei meu pequeno salário das aulas bíblicas para suprir o
Beje com dois "prazeres" de porcelana!
Minha próxima economia—outro verdadeiro luxo—foi para
comprar uma banheira! Cada quarto em casa tinha uma bacia para se
lavar o rosto de manhã. Porém, a água quente no inverno era escassa
e muitas manhãs tivemos de quebrar pedaços de gelo para podermos
lavar o rosto.
Quando a minha reserva para a banheira atingiu a quantia
desejada, foi um dia de festa no Beje. A banheira era equipada com
um aquecedor a gás; agora não precisávamos mais tornar-nos em
ursos polares para mantermos nosso asseio. A banheira estava sobre
uma plataforma para dar melhor vazão à água.
Assim, todas aquelas horas de luta com estudo e exames
sobre Ética, Dogmática e todos os demais assuntos que me
capacitaram a dar aulas, foram compensadas com aquisições tão
valiosas! Como eu me deliciava com a banheira!

Patriotismo e oração
Discutir as verdades da Bíblia em nossa família era tão
natural como conversar sobre esportes ou acontecimentos do dia-a-
dia. Era interessante como papai encontrava pessoas de tipos tão di-
versos para formar seus grupos de estudo bíblico. Essa disposição de
repartir seu tempo com os seus semelhantes é que o tornava tão rico
em conquistar amigos.
Durante três anos tivemos uma reunião de oração todos os
sábados à noite em Heemstede, uma aldeia da redondeza. Papai,
Betsie e eu íamos de bonde a essas reuniões, fizesse frio ou calor,
chovesse ou nevasse; isso fazia parte de nossa vida.
Em 1914 a guerra rondava nosso pequeno país. Cada nação
vinha tentando impor sua força e poder, e agora a ameaça de uma
catástrofe era quase uma realidade. Somente cinco anos se haviam
passado desde a Conferência da Paz em Haia, e já as grandes
potências pareciam crer que só conseguiriam o que desejavam
mediante as táticas da força. O mundo se engolfava num jogo de
verdadeiro terror.
Desde o momento em que o príncipe austríaco, Arquiduque
Francisco Ferdinand e sua esposa foram assassinados, uma nação
após outra foi declarando guerra.
Papai continuou orando pela rainha e pelo governo da
Holanda, como sempre o fizera. Nós éramos patriotas e leais à rainha
Guilhermina e seu primeiro-ministro, Abraham Kuyper, que era
também um preeminente teólogo.
Uma divergência de opiniões desenvolveu-se entre nosso
grupo semanal de oração.
—Casper, não é direito orar por esses do governo. 0 mundo é
mau; Satanás é o príncipe deste mundo; temos que olhar só em
direção ao reino de Deus—diziam alguns.
Mas papai contestava:
—Como cristãos estamos no mundo, mas não somos do
mundo, Não devemos entregar nossa pátria ao inimigo, pois
estaríamos desobedecendo a 1 Timóteo 2, que diz em seus dois
primeiros versículos: "Antes de tudo, pois, exorto que se use a prática
de súplicas, orações, intercessões, ações de graça, em favor de todos
os homens, em favor dos reis e de todos os que se acham investidos
de autoridade, para que vivamos vida tranqüila e mansa, com toda
piedade e respeito."
À medida que as semanas e os meses da Primeira Guerra
Mundial iam passando, mais difícil se tornava acomodar o grupo dos
pietistas quando papai, Betsie e eu continuávamos firmes a orar pelo
nosso governo. As diferenças de opinião foram-se acentuando.
Alguns começaram a fechar--se mais e mais em suas conchas
espirituais de tal maneira que não nos foi mais possível orar juntos.

Além deste mundo


Papai não era muito de discutir suas crenças bíblicas, mas
gostava de sustentar debates teológicos, especialmente com tia Jans.
Às vezes eles tinham discussões um tanto acaloradas, que não
agradavam à mamãe nem a mim.
Papai era calvinista e freqüentemente eu o ouvi falando sobre
predestinação. Eu não podia entender direito tal assunto, por isso um
dia lhe perguntei:
—Que é predestinação, papai?
—A base sobre a qual edifico a minha fé não está em mim,
mas na fidelidade de Deus—respondeu-me ele.
Foi um modo de responder que me satisfez; repeti essa
afirmação muitas vezes nos anos que se seguiram.
Um dos pontos principais de divergência entre papai e tia
Jans era sobre fé e obras. Em Filipenses 2:12, 13 está escrito:
"Assim, pois, amados meus, como sempre obedecestes, não só a
minha presença, porém muito mais agora minha ausência,
desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é
quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua
boa vontade."
Papai falava mais sobre "Deus é quem efetua em vós..." e tia
Jans acentuava: "desenvolvei a vossa salvação". Creio que o medo
que tia Jans tinha da morte talvez fosse resultado da sua incerteza de
haver trabalhado o bastante para Deus.

A grande jornada
Um dos grandes mistérios humanos sobre o qual papai e eu
sempre conversávamos era o fato de a tia Jans, uma evangelista de
poder, uma mulher cujo zelo em ensinar e escrever sobre Jesus era
patente, possuir tanto pavor da morte! Quando chegasse a hora,
sabendo que lhe restaria pouco tempo de vida, qual seria sua reação?
Papai estimava a tia Jans, e bem assim todos nós, a despeito
das suas maneiras rudes e contestadora personalidade.
— Jans, você está pronta para a grande jornada? O médico
disse que em pouco tempo você nos deixará...
Papai falou-lhe gentilmente, tocando-lhe com ternura a mão
já enrugada e sorrindo para aquele rosto já não mais tão austero.
O olhar de tia Jans se iluminou ao responder:
—Jesus disse: "Eu dou às minhas ovelhas a vida eterna." Isso
é bom... eu nada mais posso fazer. Estou salva nas mãos do Bom
Pastor que deu a sua vida por nós. Ele preparou para mim uma casa
nas mansões do Pai.
Quando a hora final chegou, Deus a libertou do medo.
No dia dos funerais a casa estava repleta de pessoas que
contavam como tia Jans havia sido instrumento nas mãos de Deus
para levá-las a ele. Nós lhes falamos sobre quão feliz estava ela e da
maneira pela qual se libertara do medo da morte, ao saber que sua
hora havia chegado. Uma enfermeira, sua amiga, disse:
—Estou contente em ouvir isso. Sempre me pergunto se à
hora da morte poderá Satanás tirar-me a certeza de salvação. Tenho
visto tantos cristãos morrerem em agonia, tomados pelo medo, apesar
de eu saber que eles eram filhos de Deus.
Então outra enfermeira que também ali estava em
homenagem à sua amiga Jans, deu este conselho:
—Fale com Jesus sobre o seu medo ... ore para que quando a
hora da morte chegar, Jesus lhe dê proteção contra qualquer ataque
do inimigo e lhe dê uma experiência clara da sua presença. Ele disse:
"Eu estarei convosco até ao fim dos séculos." Esta oração não ficará
sem resposta. Tenho visto muitas pessoas morrerem também. Todos
os que desta maneira oraram de antemão, morreram em perfeita paz e
segurança, certos da sua salvação, certos da presença de Jesus. Era
essa segurança que se podia ver transparecer nos seus rostos.
A morte de nossa segunda tia em nossa família fez-me pensar
mais sobre tempo e eternidade. Somos cidadãos dos céus—nossa
visão vai além deste mundo. Conheço a verdade da Bíblia quando diz
que Deus não nos dá um espírito de temor, mas de poder; um espírito
de amor, e mente sadia.

Seu silencioso amor


Certa manhã eu falava com papai sobre a possibilidade de
termos uma revista publicitária para o nosso negócio, quando ouvi o
som surdo, de um baque. Corri para a cozinha e vi mamãe caída ao
lado da pia; uma chaleira grande, caída também no chão. O braço
esquerdo da mamãe pendia sem movimento enquanto ela lutava para
se firmar.
—Mamãe, vamos sentar, querida.
Ajudei-a a sentar-se numa cadeira e corri a chamar o papai.
—Depressa ... alguma coisa aconteceu com a mamãe.
Papai precipitou-se para a cozinha e, chegando--se à mamãe,
enlaçou-a com os braços. Ela levantou os olhos e sussurrou, numa
voz quase inaudível:
—Oh, Cas, nós temos sido tão felizes juntos!
Ela pensava que a sua hora havia chegado. Levamo-la quase
carregada para o quarto. Quando o médico chegou e a examinou,
animou-nos dizendo que o derrame cerebral pode ser perigoso; mas,
de um modo geral, não apresenta tanta gravidade. E continuou:
—Um de meus pacientes teve derrame e depois disso ainda
viajou três vezes para a Suíça. Sua mãe poderá ainda viver mais oito
ou dez anos.
Mamãe nunca mais recobrou completamente os movimentos
depois do segundo derrame. Pelo resto da vida, sua fala se
limitou a uma só palavra: "Corrie." Com uma palavra, o movimento
da cabeça e o abrir ou fechar dos olhos, sentíamos a demonstração do
amor que nos enriquecia a todos nós.
Tremamos um método de comunicação pelo qual tentávamos
adivinhar seus pensamentos, ao que ela respondia com aceno de
cabeça.
Era um prazer estar com ela—e minha própria atitude
melhorou durante os três anos que Deus permitiu ter a mamãe
conosco, depois do seu mais forte derrame cerebral. Comecei a
entender o sentido daquele versículo de Romanos: "Porque para mim
tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não são para
comparar com a glória por vir a ser revelada em nós" (Romanos
8:18).
E a glória de Deus brilhou através da mamãe.
10
ALCANÇANDO OUTROS
A Europa estava devastada ao término da Primeira Guerra
Mundial. Apesar da miséria e da fome ameaçarem os países por onde
a guerra passou, havia o ressurgimento de esperança no mundo.
"Salvar o mundo para a democracia" era o slogan dos Aliados. O
sentimento de compaixão humanitária dos Estados Unidos e das
nações vitoriosas providenciando socorro e alimento, livrou milhões
de pessoas das torturas da fome.
Na Holanda éramos gratos por havermos sido poupados de
tão terrível conflito; não obstante, queríamos de algum modo
alcançar aqueles menos afortunados. Que poderia a família ten Boom
fazer nesse sentido?
A Alemanha sofria terrivelmente os resultados da guerra.
Muitas de suas crianças quase perecendo por subnutrição.
Começamos a pensar num meio de providenciar lares para essas
crianças na Holanda, onde elas tivessem boa alimentação e cuidados
até poderem voltar para as suas próprias casas. Como papai conhecia
muitos relojoeiros, discutimos a possibilidade de dar assistência aos
filhos de relojoeiros da Alemanha.
Papai era presidente da Liga Internacional de Relojoeiros,
posição essa adquirida não só pelo respeito que outros profissionais
tinham por ele mas também por ser grande cumpridor de seus
deveres e promessas. Depois da guerra ele gastou horas e horas
entrando em contacto com os relojoeiros da Holanda, pedindo-lhes
que aceitassem uma criança alemã em seus lares por algum tempo.
—Por que o senhor mesmo não toma essa iniciativa, papai?—
perguntei-lhe.
Porém, papai era mais realista.
—Espere, Corrie. Muitos prometem receber uma criança, mas
nem todos cumprem a promessa. Não podemos esperar cem por
cento de positivo no resultado. Vai haver crianças no final sem lares
para recebê-las; então chegará a nossa vez.
No dia em que as crianças deviam chegar, papai, Betsie e eu
fomos à estação ferroviária para ajudar a colocar cada criança na
família certa. Que cena! As crianças de um lado, ariscas, assustadas,
rostos tristonhos e sombrios. Do outro lado, os adultos esperando na
expectativa de encontrar a criança certa que por algum tempo faria
parte da família. Um por um os nomes iam sendo chamados ao
mesmo tempo que alguém dos adultos se encaminhava para receber
as pobres criaturinhas. Procurou-se organizar a distribuição de tal
modo que cada criança fosse recebida no lar onde houvesse meninos
e meninas mais ou menos da mesma idade que ela. Eu quase não
podia conter as lágrimas. Nossas crianças holandesas, tão
vermelhinhas e saudáveis, ao lado daquelas tão frágeis, pálidas e
subnutridas alemãzinhas!
Logo estavam todos colocados; todos? Não quase todos.
Chamou-me a atenção uma garotinha que tentava esconder-se num
canto da sala de espera, tão encolhidinha, colada à parede de
madeira, como se dela fizesse parte. A cada nome chamado, mais ela
se encolhia para não se fazer notar.
—Papai, veja aquela garotinha ... não há ninguém na sua lista
para recebê-la?
—Deixe-me ver ... Não, por incrível que pareça! Nós a
levaremos conosco.
Minha mente já começou a trabalhar. Ela poderia ficar no
quarto de Willem. (Ele havia-se casado em 1916, com Tine, a irmã
de nosso médico.) "Preciso providenciar algumas roupas para ela;
talvez haja algumas bonecas também no sótão..." pensava eu.
Então avistamos uma outra criança. Um garotinho
maltrapilho esperava desconsoladamente que alguém o escolhesse.
Papai passou os olhos pelo seu caderninho e viu que a dona da casa
para onde o garotinho devia ir, caíra doente. Assim, ficamos com
Willy, o menino também.
—Vamos, meus bons amiguinhos—disse o papai. —Vocês
estão precisando de uma boa refeição e uma caminha bem quente!
Ele curvou-se e segurou as duas assustadas crianças pela
mão; uma teria dez anos de idade; a outra, talvez um ou dois anos
menos. Que figura eles faziam! Quatro perninhas finas lutando para
acompanhar as passadas do papai ao voltarmos para casa!
Willy era um menino das ruas de Berlim. O lar dos ten Boom,
com toda a sua simplicidade devia parecer-lhe um verdadeiro
palácio! Quando as crianças se assentaram à mesa e tia Ana lhes
serviu a sopa, ambos tomaram as tij elas e levaram-nas à boca
sofregamente; o caldo em excesso escorria-lhes pelos queixinhos
sujos.
—Corrie, esses dois aí precisam de um banho!— falou Betsie
embora tal necessidade fosse visível a qualquer um que possuísse
bons olhos e bom olfato.
Willy só falava alemão; mas a palavra "banho" deve ter um
sentido universal para crianças, pois Willy imediatamente olhou para
Betsie, depois para mim. Havia pânico em seus olhos.
Papai calculou logo que o menino se perguntava por que
essas duas moças engraçadas iam sujeitá-lo à indignidade de um
banho!
—Venha comigo, cavalheiro, e eu lhe mostrarei a mais
magnificente invenção de nossos dias!— disse papai.
Tenho certeza de que Willy não conseguiu entender o que ele
dizia; mas o tom de sua voz e a doçura com que o conduziu para o
banheiro, asseguraram-lhe de que algo maravilhoso o esperava.
Depois de vestir as crianças com roupas limpas, Betsie, papai
e eu fomos ao quarto da mamãe para falar-lhe sobre o aumento de
nossa família. Ela não entendia alemão, mas nas semanas seguintes
era-nos uma inspiração ver a maneira pela qual ela demonstrava o
seu amor e carinho a essas duas crianças alemãs. Um movimento es-
pecial de cabeça fazia calar uma discussão enquanto as mãos
estendidas consolavam e suavizavam qualquer mágoa.
—Não é maravilhoso ter crianças na casa?— perguntou
Betsie. —E que bênção é a presença do Willy! Papai tem estado
muito deslocado só na companhia de mulheres!
O próximo apelo chegou logo pela pessoa da Sra. Treckmann
e suas duas filhas. Nós a conhecíamos através da A.C.M.; e quando
ela escreveu da Alemanha em situação desesperadora, clamando por
ajuda, contando de suas filhinhas que sofriam por subnutrição,
começamos a preparar mais camas.
A Sra. Treckmann estava mais abatida do que suas filhas
Rute e Marta. Suas faces maci-lentas traziam as marcas terríveis da
miséria e sofrimento que a guerra grava nos corpos e nos espíritos
dos seres humanos. "6 Deus!" pensei; "não nos deixes passar por isso
na Holanda. Eu não sei se teria a força necessária para ver minha
família dentro de tal sofrimento!"
Durante as semanas que a Sra. Treckmann passou em nossa
casa, não nos foi fácil lidar com as meninas. Rute, com seus acessos
de raiva, não só punha em risco os painéis de madeira da porta do
meu quarto com os seus pontapés incontroláveis, mas também tirava
a paz do nosso lar cujo ambiente era agitado pelas muitas atividades
mas não pela troca de palavras duras e vozes de discórdia. A mãe
respondia a esses acessos de Rute com tapas pelo seu rosto, o que a
deixava mais rebelde ainda.
Pelas atitudes da Sra. Treckmann entramos em contacto com
a disciplina germânica. Bater por qualquer motivo produzia
resultados negativos, pois Rute respondia aos tapas com acessos
maiores ainda.
De algum modo, sem palavras, mamãe conseguiu ensinar a
Sra. Treckmann que às vezes umas palmadas no traseiro das crianças
fazem bem; mas tapas não dão bom resultado.
Finalmente a Sra. Treckmann voltou para a Alemanha
deixando as meninas conosco. Assim, Rute, Marta, Willy e Katy
continuaram fazendo parte de nossa família por mais algum tempo. A
primeira vez que Rute começou com as suas crises de raiva e os seus
pontapés na porta, nós simplesmente a ignoramos como se ela fosse
nada mais, nada menos que uma mosca a zumbir ao redor de nossos
ouvidos surdos.
Nada mais de tapas e castigos. Rute e Marta se tornaram duas
jovens das mais educadas que já havíamos encontrado.
Muitos anos mais tarde recebi uma carta de Rute. Ela
escreveu que havia lido alguns dos meus livros, e lembrou-se do
tempo que vivera em nossa casa. "Que menina má eu era! E quanta
demonstração de amor eu recebi em sua casa!" escreveu ela. "Meu
marido e eu oramos para que possamos, passar adiante o amor que aí
recebemos àqueles que dele necessitam. O Senhor é a nossa força.
Como é bom saber isso!"
Vinte e oito anos depois. Eu estava na Alemanha. Outra
grande guerra havia engalfinhado as nações, e então conheci a
terrível experiência de ver minha família e milhares de outras pas-
sando por sofrimentos talvez piores do que os da Primeira Guerra
Mundial.
Depois de uma reunião em Berlim Ocidental, vi um
cavalheiro muito bem apessoado que sorria para mim. Algo em sua
fisionomia despertou minha memória. Claro! Ele era aquele
garotinho de rua, com seus olhos travessos e assustados!
—Tia Corrie, não se lembra de mim? Eu sou Willy, que
morou com sua família há muitos anos!
Havia um brilho novo em seus olhos, e não me surpreendeu o
que me contou a seu respeito.
—Eu nunca tinha ouvido antes alguém orar em casa. Sabia
que as pessoas iam às igrejas para fazer suas orações. Mas quando
morei com a família ten Boom, ouvi orações feitas antes e depois das
refeições, e outras vezes durante o dia. Muito anos depois eu aceitei
o Senhor Jesus como meu Salvador; porém creio que foi o resultado
das sementes de amor plantadas pela família ten Boom no coração
daquele menino tímido e assustado que saiu das favelas de Berlim.
O dia mais triste
As crianças da Alemanha permaneceram em nossa casa por
algum tempo, desenvolvendo-se física e espiritualmente antes de
voltarem para os seus lares. Aqueles foram anos de crescimento para
todos nós, porém de enfraquecimento para mamãe. Três anos depois
do grave derrame cerebral—período esse em que o seu amor e pa-
ciência falaram mais alto que qualquer sermão— sua vida física nos
deixou. Papai viu a mulher que muitos anos tanto amara, a esposa
que tanta força lhe dera, partir para o seu lar no céu.
Ela muito nos ensinou. Ela nunca forçou o papai a grandes
sucessos em sua carreira profissional; porém ela o sustentou com a
sua coragem e força nas horas em que os problemas surgiam, fosse
qual fosse a gravidade deles. Quando o dinheiro era escasso, ela
sabia esticar o pouco que nos sobrava; nas horas de fracasso, ela nos
ensinava a tentar outra vez.
Papai olhava para a mulher do seu amor, na certeza de que ela
agora estava com Jesus e, pela primeira vez em muitos anos, livre
das dores e sofrimentos.
—Este é o dia mais triste da minha vida— disse ele. —
Obrigado, Senhor, por me haveres dado esta mulher.
A perda que o papai sofreu foi aguda; mas ele não se deixou
abater. Ele sabia onde mamãe estava e sabia também que o trabalho
do Senhor tinha que continuar neste mesmo mundo.
11
DENTRO E FORA DA
RELOJOARIA
Cinco .. . seis ... sete ... oito ... as badaladas dos relógios da
loja diziam-me que já eram oito horas da manhã. Que maravilhosa
maneira de começar o dia ... com o gracioso relógio frisão cantando a
hora; o sonoro relógio de papai vibrando sua grave melodia, e uma
dúzia ou mais de pêndulos juntando-se ao coro! Eu cantarolava uma
canção enquanto colocava ao fogo a chaleira para o café e separava
uma fatia de pão branco e uma fatia de pão preto para o desjejum do
papai. Ele desceria a estreita escada dentro de dez minutos
exatamente. Podia-se até acertar o relógio pela sua entrada na sala de
jantar cada manhã.
Hoje era o dia de papai sair para dar corda aos relógios das
casas de seus clientes abastados. Sua primeira refeição devia estar
pronta em cima da hora, porque papai era disciplinado como os
cronômetros com que trabalhava!
Oito horas e dez minutos.
—Goede morgen, (bom dia) Corrie. Pelo que vejo, você
começou cedo hoje.
Ele olhou para os pacotes alinhados na prateleira, por isso
sabia que eu já havia preparado as refeições para o dia todo: carne,
verduras, batatas... Eu adotava um sistema para preparar os
alimentos: levava-os em água ao fogo e então, ao ferver, tirava-os do
fogo e eles terminavam de cozinhar por um processo especial de
cozimento longo. Cada panela era envolvida em dezesseis páginas de
jornal, depois em uma toalha para vedar a saída do calor. Era um
método eficiente de cozinhar e conservar os alimentos.
Após o café e as orações, papai se encaminhava para o nosso
relógio astronômico e conferia com ele o relógio de bolso. O relógio
grande era mais alto do que papai; sua precisão era tão impres-
sionante que demandava sincronização com o relógio do
Observatório Naval em Amsterdão. Nem frio nem calor afetavam o
relógio astronômico.
—Huumm ... dois segundos adiantado ... —comentava o
papai acertando o seu relógio de bolso, preparando-o para
acompanhar os trabalhos do dia.
Sua bicicleta limpa, o chapéu ajustado... e lá ia ele, pedalando
intensamente, descendo as ruas estreitas de Haarlem, até alcançar as
casas dos seus clientes nos subúrbios da cidade. Papai era um
aristocrata e ao mesmo tempo um empregado; um cavalheiro com
muita dignidade e um confidente para os humildes. Distinção de
classes era forte na Holanda, mas para papai cada ser humano era
alguém de valor.
Enquanto descia as ruas ia acenando para as pessoas que
encontrava, pondo em risco a segurança do chapéu na cabeça, à
mercê do vento. Quando chegava à primeira casa, quase sem fôlego
mas decidido, dirigia-se à porta dos fundos, tocava a campainha e
cumprimentava a empregada que vinha atender.
—Anna, que prazer em ver seu alegre rosto esta manhã!—
dizia ele com um modo tão galante quanto nobre.
—Oh, senhor ten Boom, estou contente por encontrá-lo.
Estou lendo o livro de João, exatamente como o senhor me explicou;
tenho muitas perguntas a fazer-lhe sobre ele.
—Bem, Anna, estarei aqui na cozinha às 11 horas para um
cafezinho. Talvez alguns outros empregados queiram conversar um
pouco também ...
Papai fazia todas as pessoas sentirem-se importantes; numa
casa onde havia doze ou quatorze empregados, a arrumadeira ou a
ajudante de cozinha talvez não tivessem a consciência de seu próprio
valor. Muitos deles esperavam ansiosos a semana toda pela visita do
velho relo-joeiro.
Os clientes de papai eram pessoas de destaque. Muitos deles
trabalhavam no ramo de importação; outros eram donos de plantação
de cana na Indonésia. A dona de uma das mansões perguntou-lhe
certa vez que escola de danças havia ele freqüentado para saber
curvar-se com tanta elegância !
Escola de danças! Imaginem só isso! Papai respondeu:
—Nunca aprendi a dançar, nem freqüentei nenhuma escola de
danças. Meu pai ensinou-me boas maneiras.
Preparo acadêmico não fazia parte da formação educacional
de papai. Ele deixou os estudos aos 14 anos de idade para ajudar meu
avô na oficina. Por algum tempo freqüentou uma escola noturna;
porém o seu preparo não era de nível intelectual elevado. Ele era um
autodidata; aprendia lendo revistas e livros teológicos. Algumas
vezes, quando Willem explicava a seus colegas de universidade
algum problema teológico segundo a explicação dada por papai, eles
perguntavam:
—Onde seu pai estudou teologia?
Papai tinha uma ampla visão; era com sabedoria e
discernimento que ele trocava ideais com os mais importantes
clientes. O que ele era na cozinha de nossa casa era também nas
luxuosas salas de visitas. Era o amor recebido por meio do Espírito
que o fazia entender qualquer tipo de pessoa. (Veja Romanos 5:5.)
Entre os clientes cujos relógios ele costumava dar corda,
havia um notável pastor e filósofo, Dominee de Sopper. Papai
sempre lhe fazia perguntas quando alguma dúvida devia ser esclare-
cida. Certa ocasião o pastor ofereceu-se para ministrar um curso de
filosofia em nossa casa; apesar de os pontos de vista de papai não
combinarem com os desta escola liberal, tais divergências não
afetavam a amizade entre ele e o pastor.
Durante muitos invernos este pastor, que mais tarde se tornou
professor de filosofia na Universidade de Leiden, atendeu
semanalmente a um grupo de estudantes em nossa casa. Entre eles
havia agnósticos, ateus, fundamentalistas e liberais, todos sempre
com uma pergunta sobre algum problema complexo. Ninguém
escapava à resposta vinda de Casper ten Boom. "A Bíblia diz..."
começava ele quando os argumentos se complicavam e não
chegavam a um acordo.
Papai nada tinha contra a filosofia, pois ele cria numa
filosofia de vida baseada na Palavra de Deus. Contudo, quando
outros expressavam suas crenças baseadas em homens tais como
Kant e Hegel, ele estava sempre pronto a mostrar a diferença entre
tais filosofias. Kant, o filósofo alemão do século dezoito, havia
introduzido um modo de pensar que exerceu muita influência na
comunidade intelectual. Ele não acreditava no certo e errado
absolutos; ele não entendia como era possível alguém acreditar
naquilo que estava além dos cinco sentidos. Com isso punha de lado
as realidades espirituais ou as verdades bíblicas. Hegel defendia a
filosofia do pensamento relativo, que liderou a política básica e as
ideais econômicas de Karl Marx e Adolfo Hitler.
Sem nenhum preparo acadêmico, papai podia sustentar um
debate brilhantemente, usando o Livro que ele conhecia tão bem. Ele
derrotava uns, convertia outros, e era honestamente respeitado por
todos naquele peculiar grupo de estudos.

Fora da frigideira
Quando papai voltava de suas andanças no dia de dar corda
aos relógios, eu mal podia esperá-lo entrar para pedir-lhe o relatório
dos acontecimentos.
—Que foi que a Sra. van der Vliet disse hoje? O senhor viu o
pastor de Sopper? B a cozinheira dos Bok? Ela tem lido a Bíblia que
lhe enviamos?
—Oh, Corrie, Corrie! espere até depois do jantar—dizia
papai rindo. —Só a lembrança de tudo o que você preparou hoje de
manhã me fez vencer os últimos oito quilômetros que ainda tinha de
percorrer.
Minha obrigação em casa por muitos anos era ajudar tia Ana
a cuidar da casa, cozinhando, limpando, arrumando, atendendo aos
doentes. Enquanto Betsie trabalhava com papai na loja cuidando da
contabilidade, eu atendia a parte doméstica. E eu gostava dessa
atribuição; era estimulante e criativa. Por exemplo: eu organizava o
meu próprio horário de começar e terminar a tarefa de lavar e passar,
horário esse que tinha de ser cumprido. Na segunda-feira eu devia ter
a roupa pronta e dobrada até às 16 horas. Se eu conseguisse terminar
até às 3:30 ou 3:45 eu teria para mim meia hora ou quinze minutos
para dedicar à leitura. Aprendi a assar pão e bater manteiga; aprendi
até a malícia para fazer aumentar a massa.
As obrigações e tarefas na família ten Boom sofreram de
repente uma alteração devido a uma epidemia de gripe na Holanda.
Todos da família caíram enfermos. Então, enquanto Betsie guardava
o leito, eu a substituía na loja; era algo que eu nunca havia feito
antes. Parecia que eu só trabalhava com duas mãos esquerdas! Era
um mundo totalmente novo para mim: encontrar pessoas, gravar suas
fisionomias, seus gestos e hábitos peculiares; além do mais, ver em
fatos e em números a situação precária dos negócios da família.
Quando Betsie se recuperou, sugeri que trocássemos de tarefa
por alguns meses, a fim de que eu aprendesse mais sobre o trabalho
da loja; ignorava totalmente o negócio do qual dependíamos.
Assim fizemos. Estávamos em 1920; Willie e Tine tinham
sua própria família; Nollie e Flip estavam casados havia um ano; as
crianças alemãs já haviam voltado para seus lares. Era tempo de
mudar um pouco a nossa vida.
Gostei de trabalhar na loja. A única coisa que me atrapalhava
era quando algum cliente chegava com um relógio para consertar. Eu
não entendia coisa alguma de maquinismos de relógios. Tinha então
de levá-lo para o papai ou para algum funcionário que entendesse
para ver qual era o problema: se precisava de trocar peça ou
simplesmente um ajuste qualquer.
—Papai, acho que me seria útil aprender a consertar relógios;
o senhor me ensinaria a arte dos relojoeiros.?
Papai concordou imediatamente, pois sempre confiou nas
minhas habilidades.
—Claro, Corrie; posso ensinar-lhe, sim. E ainda mais: daqui
a algum tempo mandarei você à Suíça para trabalhar como aprendiz
numa fábrica. Espero que, no futuro, você se torne melhor que eu
nessa função.
Pai querido! ele era um dos melhores relojoeiros da Holanda;
ele escreveu um livro sobre a precisão dos relógios; publicou um
jornalzinho semanal sobre o assunto, para os relojoeiros; além de
tudo, fora aluno de Howu, um dos melhores relojoeiros do mundo, na
sua época. Como podia papai esperar que eu me tornasse melhor do
que ele? Impossível!
Tia Ana que por acaso ouviu a opinião do papai, disse:
—Casper, devo preveni-lo de que Corrie nunca dará o seu
tempo integral ao negócio. Ela sempre tenta fazer meia dúzia de
coisas ao mesmo tempo.
Tia Ana estava certa. Era ela uma mulher que vivia com o
simples propósito de proporcionar conforto à nossa família. Então,
devia ser-lhe difícil acompanhar as muitas direções da minha mente,
as ambições do meu coração que ignorava as circunstâncias da vida
de cada um. Eu reconhecia que era a filha caçula de um respeitável e
dinâmico cidadão que não tinha muito dinheiro; eu vivia feliz e
contente como tal. Não obstante, acreditava haver ainda mais coisas
para eu fazer. "Querido Deus!" orava eu no meu quartinho de dormir;
"podes tu de algum modo usar a minha pessoa?"

Dinheiro abençoado e dinheiro maldito


Em uma semana Betsie e eu pudemos perceber a vantagem da
troca de tarefas. Betsie, com o seu espírito de amor à ordem e ao
belo, deu um novo brilho ao aspecto da casa. Os guarda-louças foram
arrumados com mais gosto; flores apareciam sobre a mesa e nas
jardineiras das janelas; até os pratos pareciam servidos com mais
imaginação.
Eu gostava da loja e da oficina. Havia lá uma atmosfera
especial; aos poucos fui vencendo minha timidez e insegurança no
atendimento a pessoas estranhas; tomei gosto pela venda de relógios.
Havia muitos altos e baixos no ramo de relojoaria, porém papai
parecia ter um profundo conhecimento e controle da situação econô-
mica que atravessávamos. No seu jornalzinho semanal, Christiaan
Huygens, ele escrevia as informações e sugestões para os seus
colegas de profissão. Como ele lia outros jornais sobre o referido
negócio na Alemanha, Inglaterra e França, ele podia apresentar
ótimas reportagens e notícias sobre o trabalho e comércio de
relógios.
Entretanto, quando se tratava de ganhar dinheiro na sua
própria oficina, a coisa era outra. Papai amava seu trabalho mas não
era ganancioso.
Certa vez tivemos de enfrentar uma séria crise financeira.
Uma enorme conta estava por pagar e simplesmente não tínhamos o
dinheiro. Um dia entrou em nossa loja um fino cavalheiro, muito
bem trajado, e começou a examinar os relógios mais caros. Fiquei ali
no meu lugar orando e ao mesmo tempo atenta à conversa do papai
com o distinto cliente na saleta da loja.
—Huum... este relógio é magnífico, senhor ten Boom. É
justamente o que procuro—disse o cliente virando nas mãos um dos
relógios mais caros que tínhamos na loja.
Sustive a respiração ao notar que o nobre cliente retirava de
sua carteira um maço de notas. Aleluia! Dinheiro! (E eu me vi
pagando nossa dívida, livrando-me assim do peso que me martirizava
desde algumas semanas.)
O abençoado cliente, enquanto admirava o relógio, comentou:
—Eu tinha um bom relojoeiro aqui em Haarlem ... chavama-
se van Houten. Talvez o senhor até o tenha conhecido.
Papai assentiu com a cabeça. Ele conhecia quase toda gente
em Haarlem, muito especialmente os colegas de profissão.
—Van Houten morreu e seu filho o substituiu o negócio. Pois
bem; comprei dele um relógio ue não regulava muito bem. Três
vezes o relógio oltou lá para o devido reparo, e... nada feito.
Por isso resolvi procurar outro relojoeiro.
—Por favor, mostre-me o referido relógio— disse papai.
O cavalheiro retirou do bolso do colete um relógio grande e o
apresentou ao papai.
—Deixe-me examiná-lo—disse papai abrindo a caixa do
relógio. Ele fez algum ajuste, e o devolveu ao cliente.
—Aqui está; um pequeno engano. Tudo bem agora. Meu
senhor, eu confio no jovem relojoeiro... ele é tão bom quanto o pai.
Penso que o senhor pode estimulá-lo comprando dele o seu novo
relógio.
—Mas, ten Boom!—objetou o cliente.
—Esse jovem tem atravessado um período difícil no seu
trabalho, sem a presença do pai. Se o senhor tiver algum problema
com qualquer relógio adquirido lá, traga-mo aqui, e eu o ajudarei.
Agora, eu lhe devolvo o seu dinheiro e o senhor me devolve o meu
relógio.
Eu estava petrificada! Vi o papai receber de volta o relógio e
devolver todo aquele maço de dinheiro ao cliente! Então, abriu-lhe a
porta e o despediu curvando-se cavalheirescamente como era seu
costume.
Meu coração estava em pedaços ao deixar o meu lugar.
—Papai, papai! como pôde fazer isso? Eu estava tão abalada
com o absurdo que presenciei e ouvi, que procedi como criança
diante de meu pai.
—Corrie, você sabe que eu preguei o evangelho no ofício
fúnebre do Sr. van Houten.
Claro que me lembrava. Era sempre o papai quem dirigia a
palavra no sepultamento dos re-lojoeiros de Haarlem. Além de ser
ele muito querido e respeitado por seus colegas, era também bom
orador; usava sempre essas oportunidades para pregar o evangelho de
Jesus.
Papai sempre dizia que as pessoas são tocadas pela eternidade
ao verem alguém morrer. E aí está a oportunidade de lhes apresentar
aquele que está pronto a dar a vida eterna.
—Corrie, que diria aquele jovem relojoeiro quando soubesse
que um dos seus distintos clientes havia procurado o Sr. ten Boom?
Estaria o nome de Jesus sendo glorificado? Corrie, há dinheiro
abençoado e há dinheiro maldito. Confie em Deus. Ele é dono do
rebanho espalhado pelas milhares de montanhas; ele cuidará de nós.
Senti-me envergonhada e reconheci que papai estava com a
razão. "Ser-me-ia dado possuir tão grande fé?" perguntava a mim
mesma. Lembrei--me então da minha infância, quando tive que ir à
escola pela primeira vez. De novo senti meus dedos fortemente
presos ao corrimão da escada, tentando seguir o meu próprio
caminho e não o caminho indicado por Deus. Poderia eu confiar
plenamente em Jesus—tendo aquela enorme conta por pagar?
—Sim, meu pai!—respondi agora já tranqüila. A quem
estaria eu respondendo? a meu pai da terra, ou a meu Pai do céu?

'Coisas triviais
Trabalhando com papai chegamos ambos à conclusão de que
nossas personalidades se formam imediante nosso trabalho. Por
exemplo: consertar I relógios era um treinamento da paciência. E
como papai me ajudava, ao se deparar-me dificuldades no trabalho!
—E a quem no mundo eu ajudaria com maior , prazer do que
à minha própria filha!—dizia sempre papai.
Nossa oficina abria-se de manhã com a leitura l da Bíblia e
uma oração. Se houvesse problemas ; especiais, oraríamos juntos.
Papai punha em prá-I tica o conselho de Paulo: "... estais firmes em L
um só espírito, como uma só alma, lutando juntos pela fé evangélica"
(Filipenses 1:27).
Essas coisas simples levantam o nosso moral, e também nos
dão a alegria de experimentar a . vitória em Cristo Jesus. Ele é um
Amigo que não nos deixa sós.
Quando sentia a minha mão tremer, especialmente ao ajustar
uma pecinha do maquinismo de um relógio, eu orava: "Senhor Jesus,
podes colocar tua mão sobre a minha?" E ele sempre o fazia; e nossas
mãos juntas trabalhavam com segurança. Em momento algum Jesus
nos falha.
Experimentei o milagre de sentir o valor do poder e amor de
Deus nas coisas mais triviais da vida diária.
12
TUDO VAI BEM...
ENQUANTO A CHUVA NÃO CAI
Senti-me um tanto deslocada no ambiente daquela sala.
Muitas das senhoras na reunião da União Cristã das Damas Amigas
da Mocidade se apresentavam solenemente com vestidos pretos, gola
alta, mangas compridas ... Que fazia eu aqui neste meio? pensava.
De repente me senti estranha com o pescoço nu, blusa de mangas
curtas, enfim, usando uma roupa adequada para a I oficina da
relojoaria, mas não para aquele lugar onde se reunia a União Cristã
das Damas Amigas da Mocidade.
Quando, porém, uma senhora tomou a palavra, esqueci-me
por completo de mim mesma, para ouvir com atenção a oradora que
expressava o amor às jovens que necessitam de ajuda e orientação
numa época em que os extremos, tanto do bem como do mal, eram
patentes.
Na Holanda, as classes de Escola Dominical atendiam às
crianças até aos doze ou treze anos; e a A.C.F. (Associação Cristã de
Moças) destinava-se a moças de dezoito anos ou mais. Para essa fase
crucial entre os treze e os dezoito anos, nada havia organizado na
comunidade cristã.
De repente senti alguém tocar-me e uma voz sussurrante
dizer-me: —Aí está o trabalho para você, Corrie ten .Boom.
Virei-me e dei com os olhos bondosos da Sra. Bechtold, uma
senhora querida, que havia sido amiga de tia Jans.
—Não tenho tempo—respondi, pensando na casa, na loja, nos
estudos bíblicos nas escolas... Oh, era impossível! Eu estava muito,
muito sobrecarregada !
—Fale sobre isso com o Senhor—disse a Sra. Bechtold.
E foi justamente o que fiz ao deitar-me essa noite.

Faça isso
No dia seguinte, narrei a Betsie os acontecimentos da reunião,
e falei-lhe sobre o desejo que Deus me colocara no coração de ajudar
as meninas na fase da adolescência. Betsie começou a fazer planos—
não tínhamos dinheiro, nem experiência—mas, começamos.
Betsie havia sido professora de Escola Dominical por muitos
anos, portanto não lhe foi difícil preparar uma lista de nomes de suas
ex-alunas. Começou por conversar com elas sobre nossos planos, e,
com seu jeitinho calmo, foi uma tremenda ajudadora. A primeira
coisa que fizemos foi organizar um Clube Cristão de Passeios. Ou
culto da mocidade em Bakenessegracht, aos domingos, começava às
10 horas da manhã. Então marcamos um encontro na ponte para as 8
e meia a fim de darmos um longo passeio às dunas; depois da
caminhada e algumas brincadeiras, seguíamos juntas para a igreja.
Isto era o começo; mas logo percebemos que só os encontros
aos domingos não eram bastante.
Expusemos o assunto ao grupo, e resolvemos encontrar-nos
todas as quartas-feiras à tarde no mesmo lugar de sempre, na ponte,
para irmos até Bloemendaal, onde algumas senhoras ricas colocaram
à nossa disposição seus parques e jardins para os jogos e brinquedos.
Os terrenos de algumas dessas propriedades eram como verdadeiros
bosques particulares; era-nos um privilégio podermos usufruir desses
lugares livremente. Nos intervalos dos jogos e brinquedos, falávamos
sobre Deus com o grupo.
O clube ia crescendo à medida que as meninas iam trazendo
suas amigas. Começou a circular a notícia de que tia Kees (era o meu
apelido) não era "tão má pessoa" para uma adulta, essa era a verdade!
Betsie e eu sentimos logo a necessidade de mais líderes para
o clube. Enquanto Betsie procurava mais nomes e endereços de ex-
alunas da Escola Dominical, eu procurava as dirigentes no meu
trabalho, na loja. Quando uma jovem entrava na loja para comprar
um relógio, ou trazia algum para conserto, eu me via olhando para
ela e pensando: "Será que esta é cristã?" Enquanto eu permanecia
atrás do balcão e ela numa cadeira em frente, eu começava a
conversar sobre a delinqüência juvenil e sobre a necessidade de o
evangelho alcançar o mundo todo, particularmente os jovens entre os
doze e os dezoito anos.
Quando uma dessas jovens mostrava interesse pelo assunto,
eu a convidava para participar do grupo de uma de nossas líderes em
nosso clube. Em pouco tempo conseguimos quarenta líderes.
Algumas abandonavam o campo ao sentirem tão grande
responsabilidade; mas quando a semente plantada conseguia
germinar, surgia logo um entusiasta e apto grupo de moças pronto
para o trabalho.
Uma vez por semana as líderes se reuniam para ensinar uma à
outra os jogos e brinquedos que conheciam. Eu as instruí a
apresentarem uma mensagem bíblica por meio de uma pequena
história, deixando-lhes um pensamento que. pudessem utilizar
naquela semana. Quando surgiam perguntas, estudávamos em
conjunto para descobrir as respostas certas. Nossos problemas eram
levados a Deus em oração, e dessa maneira a solução deles não
dependia de nossos próprios recursos.
As líderes em conjunto conseguiram uma lista de ex-alunas
da Escola Dominical e falaram com elas sobre os clubes, sobre o
lugar na ponte onde nos encontrávamos, e o nome do parque ou jar-
dim onde tínhamos nossos jogos e palestras.
Que começo maravilhoso tivemos! Era dinâmico—até que o
mês das chuvas chegou! Então o H.M.C. (Haarlemse Meisjes Clubs)
ou Clubes de Moças de Haarlem se transformou em um grupo de
líderes a escorrer água da cabeça aos pés, na ponte, à espera em vão
das meninas que nunca chegeriam. Tínhamos tantas companheiras
quando brilhava o sol! Poderíamos interromper o nosso trabalho
agora na estação das chuvas; mas a maioria de nós acreditava que se
Deus nos colocou na direção dessa tarefa, era para seguir em frente.
Estávamos ensopadas, mas não afogadas.
Precisávamos agora era de um teto sobre nossas cabeças; e
encontramos esse teto num salão de uma casa em Bakenessegracht.
Era tão perto do Beje que em poucos minutos após o jantar eu
chegava lá para uma reunião. Havia as noites de quarta-feira quando
o salão ficava repleto de meninas; mas havia também outras em que
o salão permanecia vazio. Foi durante os períodos de "salão vazio"
que nossas líderes de treinamento dos clubes se tornaram em líderes
de grupos de oração; pedimos a Deus que no lugar de um salão
apenas, nos desse uma casa para a sede de nosso clube.
Todas as cidades têm seus benfeitores; e em Haarlem o nome
Teyler era conhecido como tal. Falava-se da sua riqueza, das
organizações patrocinadas por ele e da sua reputação como promotor
da arte na Holanda. Entre as muitas propriedades do Sr. Teyler havia
uma casa que consistia em um grande salão com muitas outras
saletas ao redor; do ponto de vista de uma família, não era uma
residência ideal. Pedimos então ao administrador da propriedade que
nos alugasse a casa. Como íamos usá-la para um fim nobre, nossa
oferta foi imediatamente aceita. Que resposta às nossas orações!
Chegou o momento supremo de nossa vida! Numa conversa
geral com as meninas, todas as diferentes áreas de interesse foram
expostas. Uma das garotas, por exemplo, gostaria de aprender inglês.
Então, na semana seguinte, numa das saletas começamos uma classe
de inglês sob a direção de um dos nossos clientes da loja.
A única coisa que não podíamos realizar na casa de Teyler
era o exercício físico intenso que algumas meninas gostariam de
praticar. Por isso, alugamos em Haarlem um pavilhão de ginástica,
com todos os equipamentos, para uma tarde por semana. Lá
começamos os clubes atléticos para as mais afoitas.
Deus abençoou nosso trabalho. Sim, muitos erros foram
cometidos; mas apesar das fraquezas, nossos clubes cresceram em
número e força.
Como resultado do meu contacto com aquelas senhoras que
me inspiraram a começar o trabalho que ora florescia, nosso grupo se
aliou à União Cristã das Damas Amigas da Mocidade com sua sede
internacional na Suíça. Nossa diretoria se constituía de senhoras
distintas, muitas delas da nata da sociedade, e muito rigorosas em
seus costumes e opiniões. Porém, não deixavam de mostrar um
saudável senso de humor e uma flexibilidade admirável,
considerando sua educação e posição social.
Uma das áreas de maior desafio para o trabalho consistia
numa jovem solteirona com idéias explosivas! Seu nome era Corrie
ten Boom. À esposa de um médico, a Sra. Burkens, foi confiada a
tarefa de "controlar" Corrie, e proteger o grande grupo contra as
aventuras que fossem consideradas muito arriscadas e perigosas.
Tabu!
Tudo ia muito bem com o nosso movimento até que uma
idéia considerada revolucionária explodiu em minha mente! Eu
queria iniciar um clube misto, ou seja, para rapazes e moças juntos!
Tal coisa nunca se ouviu em uma organização cristã; meninos
pertenciam a clubes de meninos, e meninas a clubes de meninas,
especialmente no período da adolescência.
Encontros de namoro não tinham lugar na sociedade cristã;
não obstante, um rapaz e uma moça muitas vezes se encontravam nas
ruas, secretamente. Afinal, eu conhecia um pouco sobre o assunto,
pois nunca me esquecerei do que tia Jans escreveu depois de
observar os namoricos na Barteljorisstraat: "Jonge Meisjes, Scharrelt
Niet!" (Moças, não andem de namoros!")
O motivo por que pensávamos em um clube misto era que as
meninas pareciam acomodar-se tão bem na convivência entre elas
mesmas que temíamos estar formando uma sociedade de solteironas.
As líderes do movimento eram de opinião que se começássemos um
clube misto, as meninas teriam liberdade de convidar os seus I
namoradinhos para as reuniões do clube, sem I precisar muitas vezes
de recorrer aos encontros I secretos.
Nunca me esquecerei daquela reunião em que t apresentamos
o plano de tal tipo de trabalho. —Corrie, que pensarão alguns pais?
—Corrie, nunca se fez isso antes! —Corrie, você realmente nos
surpreende! Creio que também me surpreendi comigo mesma.
Defendi meu ponto de vista e tentei argumentar sobre a oportunidade
de uma real confraternização entre moças e moços mediante um
clube misto, já que no momento eles procuravam encontrar-se nas
ruas quando o tempo era bom I e em caso de mau tempo ou chuva,
nos bares. Ganhei a batalha, porém a diretoria me fez uma restrição:
por um ano inteiro deveríamos guardar sigilo sobre a nossa nova
experiência. Ao final desse primeiro período crítico, caso não
surgisse problema algum grave, então poderíamos dar publicidade.
Assim começamos o Vrien-ãenkring (Clube dos Amigos). Seu
nome não dizia muito, mas o clube em si era muito popular. O
aspecto secreto de sua organização aumentou--lhe a popularidade.
Cada programa vespertino do clube era realmente um
programa muito especial para nós. Minha primeira pergunta era:
"Bem, que vamos fazer neste instante?" Algumas vezes discutíamos
sobre a possibilidade de navegarmos pelo rio Spaarne; mas a maioria
das vezes permanecíamos no salão discutindo assuntos políticos ou
religiosos, assuntos esses que eram mais bem acatados pelos jovens
do que pelos mais velhos.
Tínhamos jovens de diversas ideologias; alguns eram
comunistas enquanto outros se dedicavam à nossa pátria e à nossa
rainha. Muitos eram membros fiéis de igrejas; outros, agnósticos ou
ateus. Para filiação aos clubes não fazíamos exigência de nenhuma
espécie; aqueles que não gostavam de participar das curtas palestras
sobre a Bíblia não eram obrigadas a fazê-lo.
Certa vez o clube misto resolveu escalar a torre da catedral.
Nunca me esquecerei do que senti ao galgar os últimos degraus do
lado de fora da torre, para atingir o meio do pináculo! Vi lá embaixo
a feira onde os lavradores e negociantes expunham suas mercadorias
três vezes por semana, e me perguntava como seria uma aterragem
numa enorme caixa de lindas cebolas!
Essa foi a primeira e última vez que tive coragem para tal
experiência de escalar a torre. A descida me foi talvez um pesadelo
maior do que a própria subida; e eu me perguntaria (se tivesse
tempo) que motivo teria Deus para me pôr à prova em tal teste de
coragem!
Rapazes e moças encontravam-se através do clube, sendo o
casamento a mira de todos nós. Alguns casaram-se em igrejas e mais
tarde me disseram:
—Esquecemo-nos do que o ministro falou à hora da
cerimônia; mas as lições que você nos ensinou depois na recepção do
clube compreendemos melhor e delas nos lembramos sempre.

Liderança da família
Havia um ponto em nossos clubes mistos que me preocupava
e que constituía um problema cuja solução parecia estar fora de
minha capacidade. Eu sabia que na sede de um clube devia morar
alguém que substituísse os pais, isto é, alguém que se
responsabilizasse pelos que ali se reuniam; eu não estava preparada
para ocupar tal posição. Oramos, pois, e de fora do nosso clube
surgiu justamente o casal certo para essa função.
Wim era um alfaiate oriundo de uma família de alfaiates. Seu
pai, seu irmão, e Fie, a namorada de Wim, trabalhavam todos juntos
nesse ; ofício. Eles viviam no mundo da alegria: amavam a vida e a
festejavam com música. Os primeiros dias de cada semana eles
dedicavam todo o tempo no desenvolvimento de seus interesses :
musicais. As paredes da pequena oficina da alfaiataria eram forradas
com instrumentos musicais: violinos, violões, bandolins ... Até a
filhinha de nove anos de idade fazia parte da orquestra da família.
Tive que levar um terno do papai para reformar, numa
segunda-feira de manhã, e fui convidada a entrar, sentar e assistir ao
concerto da família. Eu era a única ouvinte naquele dia; depois de
quase uma hora, perguntei:
—Quanto tempo dura o concerto de vocês?
—Oh, geralmente tocamos das oito da manhã até às onze da
noite, nos primeiros quatro dias da semana.
Eu não estava acostumada a esse esquema de trabalho.
—Mas, e o negócio das costuras, como funciona?—
perguntei.
—Na maioria das vezes começamos o trabalho na quinta-
feira... às vezes um pouco antes, e ainda outras vezes um pouco
depois. Isso depende ...
—... do que temos em casa para comer!—disse a mãe para
terminar a explicação.
Meu senso de dever se alertou.
—Seus clientes concordam com essa longa espera quando
lhes enviam um terno ou um vestido para confeccionar?
—Eles não têm que esperar muito; quando ;. trabalhamos, nós
quatro o fazemos juntos. Fie .trabalha conosco também—respondeu
Wim, dirigindo um olhar cheio de amor e carinho à sua Fie. E
continuou:—E sabe, tia Corrie, logo vamos nos casar, e então
passaremos a morar no quarto dela.
Eu conhecia o quarto de Fie; era justamente o sótão de um
grande prédio de apartamentos. Não seria nunca um lugar agradável
para o começo de uma vida a dois, pensei.
—Bem, o aluguel do quarto é barato—apressou-se Wim a
dizer, notando a minha preocupação.
—Wim ... Fie ... eu tenho uma idéia. "Vamos conversar a
respeito—disse eu.
Fie não só era um dos membros do nosso clube de amigos,
mas também uma líder perfeita em outros clubes nossos. Naquela
manhã de segunda-feira, na alfaiataria temporariamente transformada
em sala de concertos, começamos a sonhar. Se Wim e Fie pudessem
morar na sede do clube e dirigir o H.M.C. (Clube da Mocidade de
Haarlem), resolveríamos seu problema de habitação e ao mesmo
tempo a presença permanente do casal faria calar algumas das
críticas que nos haviam chegado aos ouvidos.
Wim e Fie mudaram-se para lá, e dirigiram fielmente nossa
sede por muitos anos. Eles se tornaram "Tio Wim" e "Tia Fie", e
mais tarde sua filhinha ainda bebê veio a ser o membro mais novo do
H.M.C.
Todo o meu tempo disponível era dedicado aos clubes. Papai
e eu lutávamos com os muitos altos e baixos no negócio de relógios;
mas todas as tardes eu tinha um ou dois clubes para atender. Ao
voltar para casa, era com grande expectativa que Betsie e papai me
aguardavam para ouvir das experiências daquela tarde. Eles eram
meus companheiros de oração, e sabíamos que o Beje era a base
familiar das orações que sustentavam todo o trabalho dos clubes.
Como nos regozijávamos ao ouvir daqueles que se associavam aos
clubes o I seu primeiro sim a Jesus!
Mais ou menos quarenta anos mais tarde voltei à Holanda
depois de meu trabalho missionário ao redor do mundo. Numa igreja,
um dia, encontrei um cidadão que veio a mim e perguntou:—Você
não me reconhece? Em seu Clube de Amigos eu encontrei o Senhor.
E ele nunca me falhou.
Noutra ocasião um pastor avistou-me em sua congregação e
disse do púlpito:—Em seu clube, Corrie, aprendi a conhecer a Bíblia
como a Palavra viva de Deus.
Dei glória a Deus e o meu coração se regozijou—por certo foi
valioso o ano da "prova de fogo" e aquela terrível subida à torre da
catedral, para ao fim ouvir tais testemunhos!
13
O CLUBE DOS GORROS
VERMELHOS
OS anos tranqüilos da década de 1920 em nosso lar foram
marcados pelo som já enfraquecido da voz de contralto de tia Ana,
entoando antigos hinos da igreja. Enquanto o seu corpo antes
vigoroso se enfraquecia, ela permanecia na cama a maior parte do
tempo, decorando verso por verso do seu tão manuseado hinário. Ela
conhecia por alto a maioria dos hinos; mas agora queria decorar
todas as palavras da primeira até à última linha. "Eu nunca tive
tempo para decorar os hinos", dizia ela, "e o fazer isto agora me
alegra muito."
Ela sabia que o seu tempo na terra chegava ao fim; mas
parecia decidida a entrar no céu com uma canção nos lábios.
Quando o dia em nossa oficina nos era particularmente
penoso; quando alguém chegava em casa esmagado pelo peso de
uma dor, era um estímulo e consolo ouvir do pequeno aposento em
cima estas belas palavras:
Ele me guia, oh abençoado pensamento! Palavras com
conforto divino! Qualquer coisa que eu faça, onde quer que eu esteja,
A mão de Deus será sempre o meu guia.
Depois de uma curta e grave enfermidade, Deus conduziu tia
Ana para o seu novo lar no céu. Papai, Betsie e eu nos sentamos
então à grande mesa oval antes rodeada por todos os ten Boom, e
conversamos sobre o passado.
—É uma nova vida agora, Corrie; devemos lembrar o
passado, porém viver em antecipação do futuro.
Quem poderia viver desanimado ao lado do papai? Sua
atitude positiva amenizava o mais pesado dia. Olhando para as
cadeiras vazias, comecei a divagar. Mamãe sempre nos estimulava os
sonhos. Lembrei-me do dia em que Betsie e eu a procuramos com
uma de nossas idéias.
—Mamãe, quando crescermos queremos fazer algo pelas
crianças, filhos de missionários. Muitas dessas crianças que não
podem ficar com os pais no campo das missões são enviadas de volta
à Holanda para viverem naquelas casas grandes destinadas a receber
os filhos dos missionários.
Havíamos visitado recentemente uma dessas casas, e nosso
coração se entristeceu diante daquelas pequeninas vidas que, apesar
da bondade dos dirigentes, se sacrificavam porque os pais
obedeceram ao chamado de Deus para servi-lo em outras pátrias.
Lembro-me de como mamãe vibrou ante o nosso ideal. Ela
havia chegado do hospital depois de uma pequena cirurgia e contou-
nos sobre a conversa que tivera com a chefe de enfermagem naqueles
dias.
—Minha enfermeira havia sido missionária por muitos anos;
quando ela soube que eu tinha três filhas, disse:—Sra. ten Boom,
creio que com três filhas a senhora poderia deixar uma em casa;
outra poderia ser diaconisa em nosso hospital, enquanto a terceira
deveria ser oferecida para o trabalho das missões.
Meus olhos se arregalaram ao ouvir tais palavras. Qual desses
seria o trabalho reservado para mim?
—E qual foi a sua resposta, mamãe?
—Eu disse à enfermeira que duvidava ter coragem de dedicar
uma de minhas filhas ao campo missionário!
Mamãe explicou a razão desse seu modo de pensar, e
continuou sua história:
—Minha própria mãe, em sua primeira infância, morava na
Indonésia. Seus pais morreram lá, os dois no mesmo dia, deixando
órfãos três filhos pequenos. Uma senhora de cor levou as crianças
para sua casa e cuidou delas por dois anos, até que encontrou um
navio cujo capitão se dispôs a trazer para a Holanda três órfãos
menores desacompanhados. A família de cor que recebeu mamãe e
seus dois irmãos foi muito boa para eles, mas a infância da mamãe
foi muito primitiva. Se você deseja servir a Deus mediante a
educação de filhos de missionários, está-se dedicando a uma obra
valiosa e de muita responsabilidade, Corrie.
Essa história ligada ao meu sonho passou de um salto para a
realidade. A corrente de pensamentos foi bruscamente interrompida
pela voz familiar de Willem:
—Alguém em casa?
Ele disse que tinha algo importante para dizer--nos; assim,
Betsie, papai e eu nos reunimos na saleta.
—Como sabem—começou Willem—, sou membro da
diretoria da missão das índias Orientais Holandesas de Salatiga.
Que surpresa! Seria possível Willem estar indo para o campo
missionário?
Mas não era bem isso. Seu pedido, admito, era uma estranha
"coincidência" chegando na hora certa.
—Há três crianças, filhos de missionários, que necessitam de
um lar por um curto período de tempo. Seus pais devem partir para o
campo missionário. São crianças muito inteligentes, duas meninas e
um menino. Podemos encontrar lugar para o menino, mas para as
meninas está difícil. As crianças precisam estudar, mas não há muito
dinheiro para isso. (Não há dinheiro ... era uma frase familiar em
nossa casa.)
—Esta é uma missão de fé—continuou Willem. —Quando as
finanças forem bem para os pais, eles poderão pagar; caso contrário,
os pais adotivos devem sujeitar-se a viver pela fé como o fazem os
missionários. Pensei que talvez este trabalho possa ser entregue a
vocês.
—Vamos orar a esse respeito, Willem—respondeu o papai,
passando os dedos pela barba, como fazia nos momentos de grande
reflexão.
Willem sabia que não podia forçar o papai a qualquer decisão
antes que ele orasse; era assim que se tomavam as decisões em nossa
família. Como sempre, depois do jantar e da oração, retirei a louça da
mesa enquanto Betsie servia o leite nas xícaras de café fumegante, e
o papai acendia o seu charuto.
—Uma menina poderia dormir no quarto da tia Bep ... —
sugeri.
—E assim, como sempre, você dando um jeito na casa,
hein?—disse o papai com um sorriso malicioso. —Se vocês duas
concordam, não faço objeção. Embora ... —e papai fez uma pausa,
pensando, talvez, na tolice que era um homem sexagenário, com duas
filhas solteiras, ainda assumir a responsabilidade sobre crianças em
fase de crescimento. —... é melhor não tomarmos decisões
precipitadas sobre isto.
No dia seguinte o diretor da missão nos visitou. —Sr. ten
Boom ... senhoritas ... —disse curvando-se galantemente o diretor.
—A diretoria da K missão reuniu-se ontem à noite e agradeceu a Í
Deus por vocês concordarem em ficar com as duas meninas. Papai
sorriu.
—Quem disse isso? Naturalmente, se os senhores já
agradeceram a Deus, não podemos recusar. Quando virão as
crianças para que as conheçamos? —Amanhã, Sr. ten Boom. Betsie
e eu começamos os preparativos arrumando guarda-roupas, camas,
planejando as refeições antes mesmo que tivéssemos oportunidade
de duvidar de nossa decisão. Estava claro para nós que o Senhor
desejava que tomássemos conta dessas meninas; porém não
contávamos com a surpresa que seria acrescentada à encomenda
missionária!
No dia seguinte chegaram três crianças: Puck, uma
espirituosa menina de onze anos; Hans, uma inteligente garota de
doze, e Hardy, o irmão, de quatorze. Amamos a essas crianças à
primeira vista, correspondendo imediatamente às suas mentes
brilhantes e ao desejo ardente de que se adaptassem ao novo tipo de
vida.
Essas crianças, enquanto pequeninas, foram educadas na
Indonésia, em cujo campo missionário seus pais serviam; mas, ao
crescerem, foram mandadas de volta a seu país, para um internato, ou
para morar com famílias que pudessem recebê-las e encaminhá-las à
escola. Naturalmente, as crianças preferiam as famílias ao I internato,
por isso faziam questão de ser amáveis , e gentis.
Indicamos a Puck e Hans os seus aposentos e imediatamente
elas começaram a desempacotar a pequena bagagem. Hardy,
entretanto, cabisbaixo, permaneceu em pé na cozinha.
—Venha, Hardy, está na hora de sairmos— disse o diretor da
missão.
—Senhor—disse Hardy suavemente, olhando do papai para o
diretor—, eu não poderia ficar nesta casa com esse senhor barbudo?
Já tive de despedir-me do papai e da mamãe; e agora não queria
despedir-me também de Hans e Puck.
Papai disse:
—Claro que você pode ficar conosco, jovem. Você não pensa
que eu vou correr nesta casa cheia de mulheres, sozinho, eu só de
homem aqui? Não! Essa não!
Então, agora éramos seis.
Nossa silenciosa e pequena casa para três, de repente viu suas
paredes esticadas ao som das atividades de três crianças! A porta da
frente abria e fechava como se fosse o pêndulo de um dos nossos
relógios; e era um som agradável de se ouvir! Papai parecia aumentar
sua produtividade a despeito de todo aquele movimento e cantoria ao
seu redor. O ritmo de nossa vida melhorava sensivelmente.
Betsie e eu discutimos a divisão de tarefas, e ficou resolvido
que ela cuidaria da parte de roupa e alimento das crianças enquanto
eu ficaria responsável pela música e esportes, o que poderia ser
coordenado com o meu trabalho do clube. A primeira coisa que fiz
logo que as crianças chegaram foi vender minha bicicleta. Decidi
fazer a pé minhas caminhadas com elas, já que o dinheiro não dava
para se adquirir uma bicicleta para cada um. Dessa maneira
treinávamos andar.
A companhia de relógios Alpina mandou-nos alguns
gorrinhos vermelhos—do tipo usado pelos cantores dos Alpes
suíços—e eu dei um para cada uma das crianças. A primeira vez que
saímos andando a pé, um dos guardas da rua disse ao ver-nos:—
Bem, eis que chegam Corrie e seu clube de gorro vermelho.
Avançávamos pelas ruas de Haarlem, até às dunas, em nossas
andanças; em pouco tempo havia mais "gorros vermelhos"
aumentando o nosso pequeno "clube".

A chegada de Lessie
Do mesmo modo que tivemos os filhos dos relojoeiros
morando conosco depois da Primeira Guerra Mundial, herdamos
outra menina a quem fora prometido um lar na Holanda e no mo-
mento esse lar a havia rejeitado. Lessie era essa menina, filha de
missionários, que já estava no navio pronta a vir da Indonésia para a
Holanda, quando um telegrama do tio para cuja casa ela se
encaminhava lhe chegou às mãos, dizendo que não mais podia
recebê-la. Sua mãe ficou aflita, porque Lessie precisava ficar alguns
tempos na Holanda a fim de iniciar um curso para professoras, cujos
preparativos já haviam sido feitos.
Os pais de Hans e Puck estavam a bordo, pois tinham ido ali
para despedir-se de Lessie quando o telegrama chegou. —Enviem-na
para o Beje— disseram eles. —Lá sempre há lugar; e se porventura
não houver, eles sempre dão um jeitinho...
Conseqüentemente, recebemos uma carta anunciando a
chegada de Lessie dentro de dois dias. Não havia tempo para uma
resposta; assim, não havia outra alternativa.
—Não temos lugar para mais camas, Corrie!— disse Betsie
que, com sua natureza precisa de dona de casa antevia a
impossibilidade de aumentar a família. Mesmo assim, porém, ela co-
meçou a mudar a posição da mobília, auxiliada >por nós, é claro.
—Posso dormir lá em cima, no lugar onde guardamos as
malas—disse Hardy.
De imediato se formou um plano em minha mente.
—Escutem, podemos colocar duas camas, uma sobre a outra,
em meu quarto.
Assim, inventei um tipo de beliche com nossos velhos
estrados.
Quando Lessie chegou, magoada por ter sido rejeitada pelo
próprio parente seu, demos-lhe as boas-vindas, recebendo-a de
braços abertos.
Dentro de pouco tempo o Senhor nos escolheu para
recebermos mais duas meninas. A experiência nos ensinou que com
os homens há situações e circunstâncias verdadeiramente
impossíveis; mas com Deus, todas as coisas são possíveis.
Nosso clube dos gorros vermelhos recebeu mais gorros, e aí
então nos assemelhávamos realmente a uma tropa de alpícolas!
Todas as nossas meninas entraram para a escola de
preparação de professoras; Hardy foi para outra escola destinada a
rapazes. Pobre Hardy! vivia rodeado de mulheres, e estou certa de
que muitas vezes se sentia oprimido com a situação. Então ele
começou a ausentar-se por algumas horas de quando em quando. Um
dia Betsie invadiu a cozinha com uma ruga de preocupação em seu
semblante delicado.
—Corrie, sabe o que Hardy anda fazendo?
—Ah, não!—e comecei a imaginar toda sorte de coisas
erradas, apesar de nada se ajustar ao tipo de caráter de Hardy.
—Ele está indo ao cinema!—anunciou Betsie indignada.
—Ao cinema? Não me diga!
Nenhum de nós jamais havia entrado em um cinema; mas a
mim não me parecia tão escandaloso dar uma olhada nessa nova
invenção como o era para Betsie. Não proibimos Hardy de participar
de tal diversão, mas procuramos tornar as atividades do grupo de tal
maneira atraentes que ele não sentisse necessidade de divertimentos
extras.
Eu gostava das atividades físicas com meus filhos adotivos.
As caminhadas que fazíamos, as conversas e o bate-papo eram mais
valiosos do que as palestras e conferências que lhes apresentávamos.
Divertíamo-nos muito em nossas andanças. Certa vez fizemos a pé,
com um de meus clubes, o trajeto de Haarlem a Amsterdã, uma
distância de dezessete quilômetros. Levamos nossa merenda e
cantávamos para levantar o ânimo quando nos sentíamos prestes a
esmorecer. Meus filhos adotivos eram os mais entusiastas do grupo.
Recebíamos lições de ginástica também, apesar de eu mesma
não ser boa aluna nessa disciplina.
Meus pés nunca estavam prontos a fazer o que a mente lhes
ordenava. Todos nós praticávamos exercícios de barras com uma
sucessão de professores ensinando cada qual o seu tipo individual de
movimentos; o método alemão apresentava um estilo diferente do
francês, sendo os dois, ao mesmo tempo, contrários ao estilo sueco.
Aprendi a fazer ninho de pássaro nas barras; porém eu devia ser um
pássaro muito deselegante em comparação com as meninas do meu
clube.
De entremeio à ginástica eu usava meu apito para suspender o
exercício por uns cinco minutos a fim de ministrar uma aula de
Bíblia aos meus alunos. Essas lições eram geralmente em forma de
histórias que eles pudessem guardar na memória—histórias que
enfatizavam uma verdade bíblica.
Por exemplo: contei certa vez a história do velho monge.
"Havia um velho monge que todos os anos, na noite de 24 de
dezembro, véspera do Natal, fazia o solo de uma canção natalina para
os seus irmãos do mosteiro, e para os visitantes que porventura
viessem da aldeia para o serviço religioso. Sua voz era muito feia e
áspera; mas ele amava a Deus e cantava com o coração. Um dia o
superior do mosteiro chegou-se ao velho monge e disse: 'Desculpe-
me, irmão Don; temos agora conosco um jovem monge que tem uma
belíssima voz... ele fará o solo neste Natal.'
"O novo monge cantou tão lindo que agradou a todos
imensamente. Naquela noite, porém, um anjo se aproximou do
superior e lhe disse: 'Por que vocês não tiveram o solo de Natal neste
ano?'
"O superior surpreendeu-se. 'Sim, tivemos uma bela canção
de Natal; porventura não a ouviu?'
"O anjo meneou a cabeça tristemente; 'então a canção deve
ter sido uma inspiração para vocês; porém não a ouvimos no céu!'
"Vocês entendem; o velho monge, com sua áspera e feia voz,
tinha um relacionamento pessoal e íntimo com o Senhor Jesus; mas o
jovem monge cantava para o seu próprio deleite, para o seu próprio
benefício e não para louvar o Senhor Jesus."
—É uma bonita história, tia Kees—falou Puck ofegante
enquanto tentava o movimento da ginástica e falava ao mesmo
tempo. (Ela me tratava pelo apelido usado por todas as meninas do
clube.) —Essa história está na Bíblia?
—Não, Puck; mas a Bíblia diz: "Se alguém ama a Deus, é
conhecido por ele" (1 Coríntios 8:3). E você acha que Deus conhecia
o jovem monge?
As meninas cursavam uma escola de preparação de
professoras; os rápidos estudos bíblicos em forma de histórias
chegavam-lhes bem na hora certa.
Um dia elas nos contaram de uma aluna em sua classe que
chorava muito. Hans, especialmente, estava muito preocupada com a
menina; então, à hora do jantar, quando estávamos todos ao redor da
mesa oval, ela tocou no assunto.
—Lembram-se de eu falar de Miep, a menina de nossa classe
que chora muito? Bem, falei com ela hoje na hora do recreio e fiquei
sabendo que ela mora com uma prima. Seus pais estão na Bélgica.
Ela quase não tem apetite. Entretanto, a prima a obriga a comer tudo
o que está no prato antes de ir para a escola; por isso chega sempre
atrasada. Ela está tão revoltada que não quer mais voltar para a casa
da prima.
—Por favor, tia Betsie, tia Kees; tragam Miep para cá—disse
Puck. —Ela é tão meiga e tão infeliz. Podemos dormir as duas na
mesma cama.
No dia seguinte, Betsie foi visitar o casal de primos de Miep.
Eles eram boas pessoas, mas não estavam suficientemente
preparados para cuidar de uma adolescente. Concordaram em deixar
Miep conosco por algum tempo.
Quando Miep chegou, Betsie deu-lhe com alegria as boas-
vindas! —Veja, Miep; ninguém aqui é obrigado a comer se não tem
vontade ... Aqui está o pão; quando você tiver fome, pode servir-se e
preparar um sanduíche.
Miep tornou-se logo uma alegre e descontraída menina, cheia
de humor e um bom e normal apetite.
Agora com sete crianças na casa, o Beje se transformou num
ativo e barulhento lugar. Às tardinhas papai se assentava na saleta,
rodeado de sua segunda família, e atarefado redigia o seu jornal
semanal, alheio ao rumor em volta. De quando em quando levantava
os olhos do trabalho para enviar um sorriso a uma das crianças.
As meninas quase não podiam esperar pela hora de irem aos
clubes, ou preparar as tarefas escolares. Muitas vezes tentavam
abreviar as devoções da hora do jantar; mas papai, chamado Opa
pelas crianças, sabia bem dos métodos delas.
Certa vez Puck disse:—Opa, vamos só ler o Salmo 117 esta
noite.
—Bem, Puck; creio que agora vou ler o Salmo 119.
Um visitante comentou com papai que admirava aquele
barulho e toda aquela alegria da nossa casa. Papai disse:
—Nossas crianças são muito boas ... por isso nunca brigam e
estão sempre prontas a ajudar-se mutuamente. Elas são verdadeiros
anjos!
Suspirei e subi para conversar com Puck que havia sido
mandada para o quarto por causa da sua maneira "angelical" de dizer:
"Eu odeio Lessie!"
Puck estava sentada na beirada da cama, de cabeça baixa,
naquela posição que as crianças assumem quando sabem que vão ser
punidas.
—Puck, você não sabe que Jesus diz que aquele que sem
motivo se irar contra alguém estará sujeito a julgamento? Ele nos
mandou amar aos nossos inimigos—disse-lhe eu.
—Bem, eu não posso amar a Lessie; só isso!
—Em Romanos 5:5 Paulo diz: "... o amor de Deus é
derramado em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi
outorgado." Se você der lugar no seu coração ao Espírito Santo, ele
lhe dará o seu amor, uma parte do fruto do Espírito—e esse amor
nunca falha!
Puck ergueu a cabeça; havia sinais de lágrimas em seus olhos.
—Mas, tia Kees, que devo eu fazer? Tais pensamentos
odiosos me vêm ao coração.
—João diz: "Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e
justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça" (1
João 1:9). : Jesus lavará seu coração com o seu sangue, e então você
será cheia do seu amor. Vamos nos achegar a ele agora e contar-lhe
tudo, tudo?
Puck se descontraiu. Toda a tensão desapareceu; ela curvou a
cabeça enquanto nós duas orávamos. Puck e Lessie tornaram-se as
maiores amigas. Anos mais tarde Puck se encontrava num campo de
concentração na Indonésia, para onde foi levada pelos japoneses
durante a Segunda Guerra Mundial. Os guardas eram muito cruéis e
ela então precisava do Espírito Santo para ajudá-la a amar os seus
inimigos! Nesse tempo ela era casada e seu marido Fritz estava em
outro campo de concentração, nas Filipinas. Quando ela se libertou,
estava pesando 36 quilos. Fritz sobreviveu aos anos de prisão e seu
peso estava reduzido a 51 quilos ao ser libertado.
Puck contou-me depois da guerra:—Sempre pensei se no
caso de sobreviver, encontraria meus pais com força suficiente para
enfrentar as conseqüências da guerra; porém eu sabia que Opa, tia
Betsie e tia Kees estariam lá. Este pensamento me dava uma
sensação de segurança. Quando me espancavam, eu pensava em
vocês e em Opa, e me lembrava do que vocês me ensinaram sobre o
amor aos inimigos.
Os pais de Puck estavam vivos quando ela voltou depois da
guerra. Opa e tia Betsie não estavam mais lá, mas o que eles
ensinaram a Puck permaneceu. "... o justo será tido em memória
eterna" (Salmo 112:6).
Embora Betsie e eu nunca nos houvéssemos casado,
recebemos muito amor de todos os nossos filhos adotivos e fomos
capazes de dar-lhes também muito do nosso amor! Não obstante,
uma casa cheia de adolescentes não era uma casa sem complicações.
Havia muita coisa para se conversar com Deus. Diariamente. Às
vezes o dinheiro era pouco. Quando precisavam de um novo par de
sapatos, tinham freqüentemente de esperar até que as finanças se
equilibrassem. O remédio então era recorrer a jornais e papelão para
forrar os sapatos como medida de emergência.
Dividíamos com as crianças nossas alegrias e tristezas.
Quando eu conseguia vender um relógio de primeira categoria, eu me
apresentava na porta da saleta e solenemente anunciava:
—Minhas senhoras e meus dois cavalheiros! Nesta hora tão
importante quero informar a todos vocês aqui reunidos que a Sra. van
der Hoeven acaba de fechar negócio com o Alpina de ouro, e pagou à
vista, dinheiro vivo!
Alegria. Cumprimentos. Hurras!
—Agora já posso comprar meus sapatos!
—E eu, o meu casaco!
Quando a situação era séria, orávamos e não nos esquecíamos
de, juntos, agradecer a Deus, apesar dos pesares. Vivíamos como
uma verdadeira família.
Betsie era maravilhosa no mister de manter contacto com os
pais de nosos filhos; escrevia-lhes semanalmente. Quando uma das
meninas ganhava um vestido novo, ela tirava um instantâneo e
mandava para os pais com um retalhinho do vestido.
Marijke era a única de nossas meninas que tinha dificuldade
na escola. Ela se preparava para ser professora de jardim de infância
e gostava imensamente de crianças; apavorava-se, porém, com os
exames. Certa vez ela foi reprovada e foi difícil persuadi-la a uma
nova tentativa.
Ela adorava Opa—como todas as demais crianças. Na noite,
véspera do decisivo dia de exame, papai redigia seu jornal semanal.
Sua concentração era tão grande que só algo muito especial poderia
desviar-lhe a atenção.
Ele largou a pena quando Puck lhe trouxe o chá. Ela havia
feito biscoitos, o que chamou a atenção de todos.
—Não vou ao exame amanhã—começou Marijke.
—Por que não?—perguntou papai já preocupado com um de
seus filhos.
—Serei reprovada de novo.
Papai sorriu.
—Escute, Marijke; você fez o melhor que pôde e
possivelmente não poderá fazer isso sozinha. Paulo disse: "Posso
todas as coisas em Cristo que me fortalece." Você crê que Cristo lhe
dará forças se você confiar nele?
—Paulo nunca teve que enfrentar exames— observou Hardy
com aquela segurança do adolescente que conhece todas as respostas.
—Mas eu penso que o interrogatório de Félix foi para Paulo
mais penoso do que um exame para professora de jardim de
infância—falou Lessie, orgulhando-se por fazer tal comparação.
(Nós estávamos estudando o livro de Atos.)
—Podemos realmente orar por qualquer coisa? Até mesmo
por um simples exame?—perguntou Marijke com um novo interesse.
Papai recostou-se em sua cadeira, aquecendo as mãos na
xícara de chá que fumegava, aproveitando a oportunidade de discutir
as Escrituras.
—Palavras de Jesus: "Pedi, e dar-se-vos-á; pois todo o que
pede recebe." Ou, como diz Paulo: "O que quer que aconteça,
certifique-se de que sua vida quotidiana é digna do evangelho de Je-
sus Cristo" (Veja Filipenses 1:27). Quando você se entrega ao
Senhor, nada há, por simples que seja, que você tenha que conquistar
por sua própria força. Os cabelos de sua cabeça estão contados; pode
haver coisa mais trivial que isto? Não é maravilhoso?
—Mas Opa—disse Puck—; ontem não estudei francês porque
eu estava muito ocupada fazendo biscoitos. Era muito mais
interessante do que esse francês cacete. Então hoje de manhã orei
pedindo a Deus para que eu não fosse chamada. Mas Deus não me
ajudou. Fui chamada e foi aquele fiasco! Que confusão eu fiz com as
palavras francesas!
—Isso não me surpreende—respondeu papai. —Se você não
estudou, não podia esperar que Deus a ajudasse.
Hardy acrescentou, em tom compreensivo que me fez
congratular com ele:—Descobri que se eu quiser orar por algo
errado, simplesmente não posso!
Anos mais tarde tive que aprender outra lição sobre orar por
algo que não seja cem por cento certo.
Em 1945, logo depois da guerra, fui para a Suíça, onde falei
em muitas reuniões; também visitei meus velhos amigos relojoeiros
com os quais eu aprendera o ofício muitos anos antes. Comprei
alguns relógios lá, pois na Holanda havia dificuldade para se obter
artigos importados; assim, comprar relógios suíços era um tanto
complicado.
Ao guardar cuidadosamente meus relógios na mala, sorri ao
lembrar-me dos métodos que aprendemos ao trabalhar na
"resistência" quando salvávamos judeus e escondíamos objetos em
nossa bagagem. Certamente ninguém seria capaz de encontrar meus
três relógios! Antes de tomar o trem, orei como sempre fazia antes de
iniciar uma viagem.
"Senhor, protege-nos contra os acidentes; abençoa o
maquinista do trem e dá-lhe sabedoria; faze--nos uma bênção para os
nossos companheiros de viagem, e Senhor ... dá-nos êxito em contrab
... (eu queria dizer "contrabandear", mas não consegui).
No momento em que comecei a orar a esse respeito, eu sabia
estar pecando. Burlar a alfândega para passar com a mercadoria sem
pagar os direitos é o mesmo que furtar. Assim, não contrabandeei
meus relógios e senti mais uma vez que orar é uma disciplina. Orar
por algo errado é impossível.
À medida que as meninas foram crescendo e descobrindo que
os rapazes representavam mais do que simplesmente um embaraço,
nossas respostas às suas indagações se revestiram de maior
responsabilidade. As caminhadas que fazíamos juntas aproximaram-
nos de tal maneira que a nossa comunicação e relacionamento se
estreitaram, a despeito da diferença de idade entre nós. Geralmente
fazíamos caminhadas aos domingos à tarde, visto que nossa semana
era todinha tomada com os deveres caseiros e escolares. Lembro-me
de quando caminhávamos de Haarlem até às dunas perto de
Zandvoort, com o sol quente em nossas faces e a areia a convidar-nos
para um banho de sol, que então nos deitávamos de costas e
conversávamos sobre ... bem, conversávamos sobre os assuntos
próprios de meninas naquela idade.
—Tia Kees, a senhora nunca esteve noiva?
—Tia Kees, a senhora alguma vez desejou ter um marido?
Achou difícil viver solteira?
Às vezes as perguntas choviam com tal rapidez como os
ponteiros de segundos se movimentam num relógio de precisão.
—Ah, suas marotas ... por certo este assunto é importante
porque vocês estão começando a entrar na juventude.
Eu não me sentia triste ou abatida; pelo contrário, sentia-me
feliz em poder contar a história de Karel.
—Houve um tempo em minha vida que eu esperava casar-me
com um rapaz que eu amava e que me amava também. Ele
tencionava ser pastor como muitos de sua família já o eram. E como
tal, era de se esperar que ele tivesse grandes problemas financeiros.
Sua mãe não aprovava o nosso casamento, pois aspirava para o filho
a uma esposa rica. Que luta íntima enfrentei naquela época! Quando
ele me apresentou a jovem rica com quem devia casar-se, pensei que
meu coração não sobreviveria a tal choque!
—Que fez a senhora, tia Kees?
—Fui para o meu quarto e conversei com Deus a respeito. Se
bem me lembro, foi mais ou menos assim: "Eu quero, Senhor,
pertencer a ti, de corpo, alma e mente. Imploro a tua vitória, Senhor
Jesus, sobre este sofrimento que tanto me magoa. Deixa que a tua
vitória seja patente em minha vida sexual também." Eu quase não
podia analisar minha situação sentimental; mas alegra-nos saber que
com Deus não é necessário fazer-lhe uma diagnose completa e clara
antes que ele conhece a cura.
—E a senhora recebeu vitória imediata?
—Não; houve ainda uma luta—e luta renhida— mas então o
Senhor me curou o sofrimento que se foi para não mais voltar. O
Senhor me deu e ainda continua a dar-me uma vida muito feliz.
Tenho o amor de vocês, e eu, de minha parte, amo a vocês todos.
Minha vida não é enfadonha, afinal. O melhor de tudo é que quando
Jesus restaura uma perda, ele preenche aquele vazio; e esse
preenchimento é como um pedacinho do céu—uma paz que excede a
todo entendimento. De nossa parte, é necessário simplesmente que
nos rendamos a ele.
Depois deste relato, Puck disse:
—Agora entendo melhor as palavras que Opa proferiu ontem:
"Nossos tempos estão em suas mãos."

Ele conduz você ao lar com segurança


Meados de maio de 1940. Por essa ocasião as crianças
estavam todas fora, em seus diferentes trabalhos ou até mesmo
casadas. Era a época de temor e confusão em nossa pátria.
Hitler e Goering haviam ordenado um pesado bombardeio em
Roterdã—e nós fomos atingidos! Os holandeses experimentaram os
primeiros ataques aéreos em larga escala na história da guerra.
Estávamos completamente despreparados para tal provação.
Na manhã de 14 de maio de 1940, um mensageiro alemão atravessou
a ponte de Roterdã empunhando uma bandeira branca e exigindo a
rendição da cidade. Ele avisou que se não se rendesssem, a cidade
seria bombardeada.
Enquanto se processavam as negociações da rendição, as
bombas estouraram, destruindo o coração de nossa cidade. Mais ou
menos 800 pessoas, a maioria civis, foram massacradas; alguns
milhares ficaram feridos e 78.000 ficaram desabrigados. Roterdã
rendeu-se, bem como as forças armadas da Holanda. Foi então que a
nossa querida rainha Guilhermina e os membros do governo fugiram
para Londres.
O ídolo alemão estava a caminho! Uma força blindada, a
maior em tamanho, concentração e habilidade que qualquer outra
força blindada já mobilizada, começou atravessando a floresta de
Ardenas a partir da fronteira alemã. Soubemos que esses tanques se
estendiam por três colunas numa extensão de 160 kilômetros atrás do
Reno, e romperam os exércitos franceses encaminhando--se para o
Canal da Mancha.
Nossa Hans estava casada nessa época e já tinha dois filhos e
um terceiro a caminho. Seu marido era professor, e moravam em
Roterdã na ocasião daquele terrível bombardeio. Fugiram para um
subúrbio de Roterdã onde nasceu o terceiro filhinho enquanto se
abrigavam em uma adega. Durante um ano eles viveram nessa adega,
que, por sua conformação, servia de abrigo antiaéreo.
Hans contou-me, anos mais tarde, que sempre, sempre repetia
a seus filhos: "Opa nos ensinou firmeza. Quando Jesus nos segura
com firmeza, ele nos guia através da vida toda. E quando Jesus nos
guia pela vida toda, ele nos leva com segurança até ao nosso lar."
14
ATÉ MESMO O MENOR DELES...
Paralelamente ao meu trabalho na loja, no clube e com as
nossas crianças, eu continuava dando estudos bíblicos nas escolas.
Uma dessas classes era constituída de crianças retardadas ou
excepcionais. Era reconfortante saber que o Espírito Santo não
precisa de uma pessoa de elevado Q.I. para se revelar a ela. Mesmo
as pessoas de inteligência normal ou superior precisam de Deus para
entenderem as verdades espirituais que só espiritualmente se
discernem.
Deus dotou-me de um grande amor às crianças excepcionais.
Lembro-me de que em uma dessas escolas, quando eu contava as
histórias bíblicas, sentia-me grandemente recompensada à simples
observação de um brilho de doce felicidade em seus rostinhos.
Às vezes eu lhes fazia perguntas para saber o quanto haviam
entendido das lições bíblicas. Certa ocasião uma menina retardada
deu-me uma resposta a uma pergunta que por certo teria em-
basbacado uma pessoa de inteligência normal. Perguntei: "Que é um
profeta e que é um pastor?"
Ela respondeu: "Ambos são mensageiros entre Deus e o
homem."
E continuei: "Então eles são iguais—um profeta e um
pastor?"
Ela pensou um pouco e respondeu: "Não, um profeta tem as
costas voltadas para Deus e a face voltada para nós; o pastor tem a
face voltada para Deus e as costas para nós."
Eu não estava bem certa se ela havia decorado aquela
resposta ou se a entendia realmente. Então prossegui: "Bem, o que
fui eu hoje?" E ela disse: "Hoje a senhora foi os dois—quando nos
falou de Deus, foi profeta. Depois a senhora orou. Orou não só a seu
favor, mas orou por nós—aí então a senhora foi um pastor."
E era uma criança retardada que me respondia daquela
maneira! Quando você prega o evangelho é o Espírito Santo que faz
o trabalho.
Tentei ministrar outras lições a essas crianças, porém com
menor êxito. Certa vez comecei a ensinar-lhes sobre as estrelas.
Levei à escola alguns feijões brancos e os arrumei na mesa em forma
de constelações. Mostrei-lhes órion; elas olharam bem a posição dos
grãos de feijão; pareciam entender e saber tudo muito bem. Então
uma noite saí com elas e disse-lhes:—Vejam, crianças, lá está órion
... estão vendo?
Elas simplesmente menearam negativamente a cabeça. —
Não, tia Corrie; elas são simples grãos de feijão branco no céu.
Nunca entenderam realmente o que eu lhes ensinei sobre as
estrelas; mas as verdades a respeito de Deus pareciam entender muito
bem.
Sempre que vocês entrarem em contacto com crianças
mentalmente retardadas, por favor, falem-lhes de Jesus e do seu amor
a elas. Elas sempre entendem o amor de Deus melhor do que aquelas
que têm problemas inerentes a suas dúvidas intelectuais.
Paulo escreveu em 1 Coríntios 1:20, 21: "Onde está o sábio?
onde o escriba? onde o inquiridor deste século? Porventura não
tornou Deus louca a sabedoria do mundo? Visto como, na sabedoria
de Deus, o mundo não o conheceu por sua própria sabedoria, aprouve
a Deus salvar aos que crêem, pela loucura da pregação."

Alguns são esquecidos


Papai compartilhava as minhas preocupações pelas crianças
fracas e mentalmente retardadas. Certa vez uma empregada
doméstica lhe falara sobre uma mulher internada num sanatório de
moléstias nervosas que nunca. havia recebido a visita de pessoa
alguma.
Papai, Betsie e eu oramos por essa mulher e depois me
encaminhei para o sanatório. Levou algumas horas para chegar lá;
quando,. afinal, encontrei a paciente, percebi que os seus pen-
samentos eram claros, embora um tanto perturbada mentalmente.
Também seu corpo estava enfermo; assim sendo, não podia deixar o
leito.
—Posso apresentar-me? Sou Corrie ten Boom. Vim fazer-lhe
uma visita—disse-lhe.
Ela olhou-me com lágrimas de alegria brilhando em seus
olhos.
—Foi Deus quem mandou você aqui?
—Sim, estou certa de que ele me mandou ... e estou feliz
também; gostaria,quê você fosse minha amiga. Quer ser?
—Oh, sim!—disse ela ansiosa. —Por favor, venha visitar-me
mais vezes. E agora você pode falar-me de Jesus?
Pensei por um momento. Quanto saberia esta mulher acerca
de Jesus? Que história bíblica poderia ajudá-la? Então orei a Deus
buscando inspiração; depois lhe contei a história do bom pas-í tor
que trouxe a ovelha perdida para o aprisco.
Tornamo-nos grandes amigas, apesar da diferença existente
entre nós. Lá estava eu, .uma jovem normal e saudável, e ela, uma,
mulher de bem mais idade e com a mente perturbada. Acredito, na
realidade, que foi Deus quem nos reuniu.
Algumas vezes depois disso, em meio a um dia de trabalho
árduo na loja, com os relógios a um canto para serem consertados,
papai me dizia:
—Por que não vai visitar Alida hoje? Lembrei-me dela ...
talvez ela esteja em solidão.
Oh, papai querido! Isso significava mais trabalho para ele,
pois uma visita a essa minha amiga me tomava no mínimo quatro
horas do dia.
Em uma das visitas conversamos sobre o céu. Dois dias
depois a enfermeira do hospital me chamou ao telefone. —Alida
acaba de morrer repentinamente. Pode você me dar o endereço de
seus parentes?
Sei que meus olhos se encheram de lágrimas; não obstante,
pude agradecer a Deus por ela estar agora com ele no lindo céu sobre
cujas belezas recentemente havíamos conversado.
—Sinto muito—disse eu à enfermeira—; não sei nada sobre
os parentes de Alida.
—Mas você lhe era tão chegada ...
—Perguntei a ela uma vez sobre seus irmãos. Ela me disse
que anos atrás eles a haviam trazido para o hospital. Desde aí nunca
mais a procuraram. Ela nem sabia se eles ainda viviam; e se viviam,
ignorava o paradeiro.
Papai disse-me naquela tarde:—Corrie, creio que a amizade e
o tempo que você dedicou àquela pobre mulher mostraram o amor e
a bondade de Deus pelos desprezados e perdidos, mais do que
qualquer outro trabalho que você já tenha feito nesse sentido. Estou
certo de que tudo isso foi importante aos olhos de Deus.

Apenas um menino chamado Henk


Henk era aluno de uma de minhas classes bíblicas para
crianças retardadas. Ele pertencia a uma família de onze filhos e era
difícil para sua pobre e cansada mãe dar-lhe muito tempo e atenção.
Foi por intermédio deste simples menino que tornei a sentir
como o Espírito Santo se revela de maneira tão extraordinária aos de
Q.I. inferior.
Numa de minhas visitas a Henk em sua casa, recebi de sua
mãe uma acolhida muito gentil.
—Henk fala muito sobre as histórias da Bíblia que você conta
na classe. Geralmente ele nada se lembra das outras aulas; mas
quando ele volta da sua classe bíblica, conversa com os irmãos sobre
a aula.
—Ele está em casa agora?
—Sim, está no seu quartinho lá em cima... bem no canto do
sótão. A maior parte do tempo ele passa lá; dos meus filhos ele é,
realmente, o de trato mais fácil. Sabemos que ele nunca virá a ser um
professor ou algo importante; mas ele trabalha e faz jus a um salário;
ele trabalha numa oficina do governo onde fazem prendedores de
roupa o dia todo. Meu querido Henk é' um menino muito alegre, mas
quando o barulho em casa é muito grande ele corre e se refugia no
seu quartinho no sótão.
Subi até lá a encontrei Henk ajoelhado diante de uma cadeira.
À sua frente estava uma velha e suja estampa de Jesus na cruz. Parei
à porta para ouvir o que Henk cantava. Sua voz suave e rouca ao
mesmo tempo.
De minha escravidão, tristeza e sombras, Jesus, eu venho,
Jesus eu venho;
Para a tua liberdade, alegria e luz, Jesus, eu venho a ti.
Das profundezas da ruína indizível, para a paz de teu abrigo
Para tua gloriosa face contemplar, Jesus, eu venho a ti.
Tenho ouvido Bach interpretado por Schweitzer, e lindas
melodias cantadas por grandes corais; mas naquele momento me
senti numa catedral com anjos ao meu redor. Sorrateiramente desci
as escadas sem perturbá-lo, de novo louvando a Deus pelo amor que
ele derramou sobre a vida "até mesmo do menor de todos".
Soube, algum tempo depois, que a mãe de Henk subira ao
quartinho do sótão e encontrara o menino diante da cadeira, com a
estampa de Jesus em sua mão. Henk havia partido para o lar com o
Senhor. Quando soube de sua morte, imaginei-o cantando: "Jesus, eu
venho a ti", nos seus últimos instantes.

Trinta anos depois


Foi após a Segunda Guerra Mundial e eu pregava o
evangelho numa grande igreja da Alemanha Oriental. Aproximei-me
então de um grupo para falar com as pessoas individualmente; em
outra sala havia um número muito maior de pessoas necessitando de
ajuda, à minha espera. De lá de dentro vinha um grande rumor de
acalorada discussão; parecia que todos, além de tão alto, falavam ao
mesmo tempo. De repente as vozes cessaram e do meio daquele
profundo silêncio ouvi uma estranha, doce e linda voz cantando. Era
o hino de Henk, em alemão: "De minha escravidão, tristeza e
sombras, Jesus eu venho."
Abri a porta da referida sala e vi uma menina aparentando
seus quatorze anos de idade. Seu rosto parecia o de um anjo; havia
algo de tocante em sua pessoa e na sua voz, que muitos na sala
choravam. A mãe da menina, ao seu lado, segurava-lhe a mão.
Quando passaram para a outra sala onde eu atendia, descobri
que o nome da menina era Elsa, e percebi imediatamente que ela não
era uma criança normal.
—Onde você aprendeu aquele cântico, Elsa— perguntei-lhe
em tom amável.
—Na prisão ... um homem ensinou-me e eu canto essa canção
todos os dias.
—Por que Elsa esteve na prisão?—perguntei à sua mãe.
—Meu marido é comunista. Elsa é retardada mental. Ela ama
a Jesus e fala sobre ele freqüentemente; sendo o pai ateu e líder do
partido, não teve dúvidas nem dificuldade em colocar Elsa na prisão.
Faz pouco tempo que ela foi libertada; estava em uma cela tão gelada
que os próprios guardas me ajudaram a tirar Elsa de lá. Eles ouviam-
na cantar sempre; e como gostavam de ouvi-la! Além disso, Elsa
estava sempre pronta a falar-lhes sobre o seu Deus!
Meus lábios tremeram quando em minhas mãos tomei as de
Elsa; muitas recordações me vieram à mente... Os estudos bíblicos na
Holanda ... Henk no seu quartinho do sótão ... e ainda o que o papai
sempre me falava.
"Corrie, o que você faz em favor dessas pessoas tem pouca
importância aos olhos dos homens; mas estou certo de que perante
Deus este é o mais valioso de todos os trabalhos."
15
LÍDERES E SEUS ERROS
Eu amava a atividade—o desafio—o entusiasmo de ver vidas
transformadas. As necessidades da juventude eram visíveis em face
da rapidez com que os clubes se multiplicavam.
Uma vez por mês as representantes de cada clube se reuniam
para dar suas sugestões e fazer novos planos. Tínhamos muitos
grupos interessantes: trabalhos manuais, costura, piano, harmônio,
coro ... Quando algumas jovens com novos talentos expressavam a
necessidade de formar um novo grupo, arrumávamos uma dirigente e
outro clube se formava.
Eu dirigia o grupo de música. Música foi sempre uma parte
importante da minha vida; era com imensa satisfação que eu
trabalhava com esse grupo. Nosso grupo musical tinha oito
membros; sete meninas trabalhavam numa mesa cuidando de
harmonia e estudo da música; a outra ia para o órgão ou piano.
Conseqüentemente, cada membro tinha a longa chance de ficar cinco
ou dez minutos à frente do teclado.
Ufa! Quantos erros cometi naquele grupo! Se eu lhes tivesse
ensinado a consertar relógios saberia exatamente o que estava
fazendo. Não obstante, quando mandei uma substituta para o
grupo musical, minhas falhas naquele setor foram claramente
evidenciadas! Minha substituta era Ann, uma jovem com muitos
diplomas da academia de música. Quando ela tomou conta do meu
grupo de órgão e piano, seus apurados ouvidos sofreram! Ann
querida! quanto aprendi com você! Ela nunca me recusou sua ajuda.
Com seu jeitinho delicado, ela carinhosamente me mostrava os
grandes erros de ensino que eu havia cometido. Embora ela não
tivesse espírito crítico, era sempre com amor que me apontava os
erros. Isto era um dom que me serviu de grande exemplo.
Eu amava este clube de música; mas os poucos minutos que
usávamos para as mensagens, constituíam a parte mais importante do
trabalho. Essas curtas palestras sobre o Senhor não eram estudos
teológicos profundos; eram histórias da Bíblia, histórias sobre a vida
de outros cristãos. Eram mensagens breves de propósito; alguns dos
membros do clube esperavam esta parte do programa não como se
fosse o prato do dia. Esses momentos eram simplesmente tolerados
por amor ao prazer que os clubes proporcionavam.
Tínhamos um tema para tudo o que fazíamos: Era "Ele no
centro dos clubes." E era isso exatamente o que fazíamos—
colocávamos a mensagem bem no meio do programa da reunião. Sa-
bíamos que se a mensagem fosse no começo muitos chegariam tarde;
e se fosse no final, muitos sairiam mais cedo; assim, sendo no meio,
todos estariam presentes para ouvi-la.
Apesar dos pesares, muitas sementes caíram em terreno fértil;
e quando os membros do clube começaram a abrir o coração e a
indagar sobre Jesus, decidimos iniciar o clube de Catecismo. Neste
grupo eles aprendiam o bastante para se tornarem membros da igreja.
Alguns chamavam este grupo de clube da confirmação ou da pro-
fissão de fé.
Eu, particularmente, gostava do Catecismo de Heidelberg
(não de todos os 52 tópicos, mas de alguns deles). Simplifiquei o
complicado estilo das expressões passando para a nossa linguagem
corrente do dia-a-dia a fim de que todos pudessem entender bem. Era
agradável de ver como os membros do clube apreciavam estas lições
e o quanto elas se tornaram parte da vida de cada um.
Meu trabalho, não obstante, nem sempre encontrava
entusiasmo entre os pastores das igrejas.
Para se tornar membro da Igreja Reformada da Holanda
passava-se por uma banca examinadora constituída do pastor,
presbíteros e diáconos. Na primeira vez, como o número dos meus
professandos era pequeno, o pastor reuniu-os ao grupo preparado por
ele para o exame em conjunto. Foi uma experiência interessante.
O pastor começou fazendo a primeira pergunta, muito
simples, a uma de suas alunas.
—Quem foi o primeiro homem no mundo?
Silêncio total e embaraçador.
Ele tentou dar um empurrãozindo, dizendo:
—Começa com a letra A.
—Deve ter sido Abrão—respondeu ela com um sorriso de
orgulho.
O pastor estava envergonhado.
Meus alunos estudaram com afinco a Bíblia e o catecismo.
Nas últimas semanas antes da profissão eles me procuravam às tardes
para recapitular o que haviam aprendido. A um de meus
professandos foi dirigida esta pergunta:
—Você sabe o nome de um juiz de Israel?
Sem hesitar, o menino citou os nomes de Otniel, Eúde,
Sangar, Débora e outros nomes de juizes. A banca examinadora
estava impressionada.
A uma de minhas alunas foi solicitada contar a história de um
dos juízes. Então ela disse que Gideão era um homem tímido e
medroso, mas quando o anjo lhe apareceu, disse-lhe que ele era um
homem forte e valoroso, porque Deus estava com ele. Não obstante,
ela acrescentou:
—Eu, particularmente, nunca teria escolhido Gideão para se
tornar herói. Acho que ele era um tolo. Mas porque Deus estava com
ele, ele foi poderoso.
Mais tarde eu soube pela pajem francesa do filho do pastor
que ele havia declarado:—Nunca mais vou examinar os professandos
da Corrie junto com os meus. Fiquei tão envergonhado diante dos
fracos resultados do meu ensino!
Posteriormente houve mais do que embaraço; houve um
verdadeiro conflito. Eu estava examinando uma jovem para a
profissão de fé e recusei-me a recomendá-la porque ela dizia não crer
que Jesus havia morrido na cruz. A candidata, triste com a minha
decisão, falou-me:
—Não sou religiosa como você, mas eu gostaria de tornar-me
membro de uma igreja. Acho isso importante; e eu gosto de ser
importante. Além disso, mamãe vai dar-me um vestido novo para a
ocasião.
Ainda assim continuei com o mesmo propósito: reprovação.
Então ela procurou o pastor que, discordando de minha idéia, opinou
pela recepção da jovem como membro da igreja. Ele disse: —Gosto
da idéia de "rebanho". Alguns são ovelhas, outros não, mas isso não
importa.
Finalmente esse ministro deixou o pastorado para tornar-se
professor de teologia em uma universidade.

Treinamento para líderes


À medida que os clubes e o trabalho cresciam, forçosamente
começamos a dar mais tempo ao treinamento de líderes. Quando
tínhamos as reuniões semanais com nossas dirigentes, fazíamos
rodízio para contar histórias bíblicas enquanto as restantes faziam as
críticas. Os tipos de perguntas postas em discussão eram:
Estava claro o evangelho?
Qual foi a sua primeira frase? Despertou o interesse? Havia
humor?
Que tipo de ajuda havia para as meninas nesta semana?
Que importância tinha a história com relação à eternidade?
Descreveu cores, movimentos?
Pintou ela quadros claros com boas ilustrações?
Foi a história uma inspiração para as ações, a fé e segurança?
Discutíamos os problemas e depois orávamos. Todos
cooperávamos no trabalho porque gostávamos dele; nós nos
divertíamos e ao mesmo tempo compreendíamos a importância
dessas reuniões. Era uma parte pequena contribuindo na edificação
do reino de Deus.
Um dos problemas no trabalho era a falta de líderes com reais
aptidões para dirigir. Outro problema sério era a dificuldade para
livrar-nos dos líderes incapazes. A mais problemática de nossas
dirigentes era Kipslang. As meninas deram-lhe esse apelido porque
ela, contando a história de Adão e Eva, disse que a serpente enga-
nadora tinha pernas como as de galinha. Depois disso, seu nome
tornou-se Kipslang (serpente--galinha).
As meninas desse grupo davam boas gargalhadas durante a
história de Adão e Eva; á dirigente gritava de santa indignação diante
de tal zombaria. "Será que essas meninas não podiam comportar-se
enquanto ouvem uma história da Bíblia?" pensava ela. O clube de
Kipslang era sempre uma sensação! As meninas muitas vezes
chegavam a chorar por causa de suas ásperas observações; e ela por
sua vez respondia chorando também. Havia constantemente gritaria e
desordem nesse clube, chegando ao ponto de um dia até atirarem
cadeiras umas às outras. Não havia controle; não obstante, nenhum
outro clube se tornou tão popular porque algo sempre estava
acontecendo lá! Era realmente notável: tivemos uma vez dez clubes
formados de grupos que se dispersavam do clube da Kipslang.
Kipslang querida X Ela nos dava muita dor de cabeça; mas sem
dúvida o trabalho do clube preparou-a para o futuro. Quando mais
tarde tive notícias dela, soube que se casara havia três anos e acabara
de dar ao mundo o seu segundo par de gêmeos.

Vamos acampar
Durante o verão organizamos acampamentos que serviram
para aproximar as dirigentes de seus grupos muito mais do que as
próprias reuniões semanais. A maioria das vezes nós nos acampá-
vamos em Bliscap (uma palavra antiga que quer dizer alegria); era
uma simples cabana de madeira com acomodação para sessenta
meninas.
A fogueira era o ponto máximo de nossos acampamentos. Ao
redor dela falávamos sobre Deus, cantávamos hinos e orávamos. As
meninas levavam muito a sério as reuniões ao redor da fogueira—
elas eram marotinhas, mas sempre diziam: "ao redor da fogueira
olhamos para as chamas e ouvimos a Deus."
Nos acampamentos e congressos, um dos maiores perigos era
o mexerico. Estabelecemos uma norma de acampamento, e um dos
artigos era: "Se você tiver que falar algo negativo sobre uma pessoa,
mencione primeiramente dez qualidades positivas dela."
Se qualquer mexerico surgia durante a refeição, simplesmente
dizíamos: "Passe o sal, por favor!"
Nossos filhos adotivos gostavam imensamente do clube e dos
acampamentos em minha companhia. Todos eles eram de grande
auxílio para nós, as líderes; e o amor que nos ligava possibilitava-me
confiar-lhes muitas tarefas. Era um prazer vê-los misturando-se com
outros membros do clube. Muitos deles tinham já um treinamento tão
bom que mais tarde estariam aptos a organizar clubes como os
nossos onde quer que estivessem espalhados pelo mundo afora.
Minhas jovens aprenderam nos acampamentos algumas das
lições básicas sobre a vida e a morte. Toddy e Janny, duas irmãs,
tinham diversas tias na Holanda, com as quais sempre passavam
parte de suas férias. Certa vez, quando acampavam comigo, elas
receberam um telefonema de um tio avisando que a tia que lhes era
mais querida havia falecido. Elas sabiam que a vida dessa tia corria
perigo, pois ela sofria de moléstia incurável. Houve complicações e
ela agora veio a falecer ao nascer-lhe o primeiro filho. Ela era muito
jovem; as meninas estavam desoladas. Era a primeira vez que alguma
pessoa querida lhes era arrebatada pela morte.
—Vocês gostariam de ir fazer companhia ao seu tio?—
perguntei.
—Oh, sim, gostaríamos. Aliás, não poderíamos mais sentir
prazer no acampamento depois disto. Talvez a gente possa ajudar nos
funerais ...
—Bem, então amanhã eu as levarei a tomar o trem. Hoje à
noite não há mais horário.
Diante de seus rostos tão tristes e sombrios, convidei-as para
dar umas voltas pelo campos de urze. Quando nos vimos a sós,
deixei-as falar à vontade sobre a querida tia. Aprendi que a melhor
maneira de ajudar alguém que está sofrendo a perda de um ente
querido, é deixar que fale sobre a pessoa que partiu. Toddy e Janny
sabiam que a tia amava ao Senhor; ela conhecia seu estado de saúde
e sabia que corria risco de vida.
Eu trazia o meu Novo Testamento no bolso do uniforme e li
para elas Romanos 8:28: "... todas as cousas contribuem para o bem
daqueles que amam a Deus..." E também: "Porque a nossa leve e
momentânea tribulação produz para nós eterno peso de glória, acima
de toda comparação" (2 Coríntios 4:17).
Toddy e Janny confrontaram a realidade e a glória da morte
naquele acampamento de verão. Alguns anos mais tarde, Toddy
casou-se com o tio, o que pode parecer estranho; porém ele era
apenas nove anos mais velho do que ela. Eles tiveram alguns filhos e
uma boa vida em comum.

O rio Reno
Uma viagem que se tornou inesquecível para nós e as
meninas do clube foi a que fizemos pela Alemanha, Todas as
meninas (que podiam dispor de tempo e dinheiro) se reuniam
semanalmente em nossa sede para aprender a língua alemã. Se uma
delas sabia uma frase em alemão que podia ser útil em nossa viagem,
ela a ensinava às demais que a registravam em seus caderninhos de
notas em alemão e em holandês. Todas adquiriram um pequeno
conhecimento da língua antes de iniciarmos a viagem. Eu lhes en-
sinava as palavras em alemão e elas as anotavam foneticamente.
Nunca o rio Reno pareceu tão belo como naquele verão. Não
creio jamais ter aproveitado tanto de uma viagem fora de nosso país
como a que fiz com as meninas do clube, em especial aquelas que
nunca haviam estado fora de sua pátria.
Muitos anos depois, uma das meninas que nos acompanharam
nessa viagem pela Alemanha, adoeceu gravemente. Em seu estado de
delírio febril, ela falava sobre a sua única viagem feita ao exterior:
fora o ponto culminante de sua vida. Entretanto, só a recordação
daquela viagem não a ajudou a atravessar o vale da sombra da morte,
mais sim a certeza de que não estava só, porque Jesus era seu
Salvador. Ela lhe havia entregado o coração em um dos nossos
clubes. Este era o mais importante objetivo do trabalho nos clubes:
colocar cada pessoa frente a frente com Jesus, que é o nosso único
conforto na vida e na morte.
Jesus é a verdadeira segurança neste mundo, até na hora em
que temos de partir.

Um mundo de erros
Às vezes chego a pensar que meu nome do meio devia ser
Errada. Cometi alguns erros grandes, mas posso afirmar que apesar
de tudo nossos clubes foram um sucesso! Eu amava minhas meninas
e compartilhávamos muitas de suas alegrias e dificuldades.
Com o passar dos anos algumas de nossas meninas foram
crescendo enquanto outras procuravam juntar-se a nós. Então
algumas adolescentes reclamavam da presença dos membros mais
velhos.
—Precisamos estabelecer uma idade-limite para os nossos
clubes—sugeriam algumas dirigentes mais experimentadas. —
Estabeleçamos a idade-limite de 25 anos, por exemplo.
Protestei. Eu tinha algumas excelentes jovens que já haviam
passado daquela idade, e eu não me conformava com a idéia de
desligá-las do nosso trabalho.
—Não acho que devamos ter uma idade-limite.
Consideremos antes as idades de oito a oitenta. Por que não?
Ninguém se opôs. Quando eu tinha uma opinião formada, era
impossível dissuadir-me. Conseqüentemente, a idade-limite nunca
foi estabelecida.
Um erro (que se tornou em bênção) foi a escolha que fiz de
um lugar para acamparmos bem próximo ao quartel militar. Nas
horas de folga os militares mostravam um grande interesse pelas
meninas. Naturalmente, as meninas por sua vez correspondiam a tais
atenções. Era compreensível, claro.
Um dia, durante um desses acampamentos, marchamos pelo
bairro exatamente na hora de folga dos soldados. Os rapazes nos
cercaram de todos os lados. Um dos oficiais, que havia sido um dos
protegidos da tia Jans anos atrás e que se tornara um assíduo visitante
do Beje, viu nosso problema. Imediatamente apanhou sua bicicleta e,
caminhando ao nosso lado ordenou aos soldados que se retirassem. E
ele nos escoltou até chegarmos ao local do acampamento.
Aquele oficial foi uma bênção para mim, porém não tenho
certeza se as meninas sentiram o mesmo que eu. As fogueiras
naquele acampamento tornaram-se quase um problema. Quando as
meninas se reuniam ao pé do fogo, percebiam-se os soldados
surgindo entre os galhos das árvores ao redor. Era difícil prender a
atenção das meninas às nossas palestras e canções. Então apelei para
o auxílio do referido oficial e ele disse:—Todas as noites serão
escalados dois sargentos de confiança para servirem de guarda ao seu
acampamento. Eles marcarão qualquer soldado que porventura se
aproxime menos de quatrocentos metros das suas barracas e da
fogueira.
Depois disso, todas as tardes, dois militares sempre estavam
ao nosso lado junto à fogueira. Nunca eram os mesmos todos os dias;
o sistema de rodízio funcionava muito bem. Eles me disseram mais
tarde do quanto gostavam da missão de guardar o clube das meninas;
e o mais interessante é que nunca faltavam voluntários para o
trabalho!
Às vezes me ponho a pensar se alguma semente do
Evangelho teria caído no coração daqueles homens. Nunca o
saberemos. Deus pode com um simples sopro fazer a semente
germinar. Ele nos abençoa apesar de nossos graves erros.
16
ALFINETES DE SEGURANÇA
EM UNIFORMES
Usávamos todos os métodos possíveis a fim de recrutar
jovens para nossos clubes. Fazíamos listas na igreja e na escola;
falávamos com os lojistas; colocávamos anúncios nos jornais. Annie,
uma de nossas jovens, atendeu ao nosso anúncio quando estava com
onze ou doze anos de idade, permanecendo em nosso clube por
muitos anos. O anúncio era simples mas dava resultado. Dizia:
VOCÊ GOSTA DE FAZER PASSEIOS? SE VOCÊ QUISER
ENCONTRAR OUTRAS MENINAS E DIVERTIR-SE, VENHA À
LOJA DO TEN BOOM, EM BARTELJORISSTRAAT 19.
O clube de ginástica era um dos mais populares. Eu
trabalhava com as meninas nesse setor sob a direção de professores
competentes; por certo eu não era uma das melhores alunas. Longe
disso! Minhas meninas eram muito mais fortes que eu; como me
ajudaram quando em vão eu tentava fazer alguns dos exercícios!
Quando o clube de ginástica precisou de um moto, uma das
meninas sugeriu: "Nós endireitamos o que estiver torto." Que
marotas! Elas olharam para minhas pernas e depois para meu rosto a
fim de ver se eu havia entendido o sentido do moto. Divertíamo-nos
bastante. A liberdade de brincar estreitava nossas relações de
amizade. Nós éramos amigas, mas quando eu fazia soar o meu apito,
todas obedeciam assentando--se para ouvir. Muitas delas sabiam
pouco sobre o Senhor Jesus, e outras havia que admitiam
francamente estar ali para divertir-se e não para assuntos espirituais.
Certa vez caí pesadamente ao chão depois de tentar um novo
exercício nas barras, falhando vergonhosamente. As meninas fizeram
o possível para ajudar a tia Kees a realizar os exercícios para elas tão
simples. No final deles, avistei Greetje assentada num canto, de
pernas cruzadas. Então me encaminhei para lá. Percebi que ela
chorava. Perguntei-lhe se queria contar-me o motivo de tal tristeza.
—Betty, minha irmã mais velha está doente e muito mal; ela
vai morrer. Aprendi tanto sobre Jesus, porém sei que ela tudo ignora;
nada sabe sobre ele!
—Fale-lhe então sobre Jesus—disse-lhe eu.
—Mas como, tia Kees? eu não sei tanto quanto você sabe.
—Fale-lhe da cruz onde Jesus morreu para receber o castigo
em nosso lugar. Conte a Betty que Jesus a ama e disse: "Vinde a mim
todos ..." e isso quer dizer: "Venha a mim, Betty."
Greetje começou a chorar convulsivamente; mas como era a
sua vez de ir à barra, ela dominou o choro, enxugou as lágrimas, e
depois do exercício veio procurar-me.
—Então, como devo fazer?
—Pergunte a Betty se ela sabe que é pecadora.
—Ela sabe disso.
—Diga-lhe que ela deve ir a Cristo e pedir-lhe perdão de seus
pecados; Cristo lhe perdoará os pecados e purificará seu coração.
Você se lembra do que lhe falei hoje sobre isso. Ela deve pedir a
Jesus que entre em seu coração já purificado. Ela dirá primeiro:
"Obrigada, Jesus, por mor-reres por mim."
Nossa conversa foi interrompida porque Greetje tinha outra
tarefa a realizar. Na terceira vez que tornamos a falar, eu disse:
—Repita a Betty as palavras de Jesus: "Na casa de meu Pai
há muitas mansões ... vou preparar um lugar para todos os meus."
Assim que Betty entregar seu coração a Jesus, certamente ela
pertencerá a ele.
Por algumas vezes mais tentei ensinar a Greetje a maneira de
levar Betty a Cristo. Algumas semanas depois fui convidada a ir à
sua casa. Greetje recebeu-me à porta; não havia mais em seu rosto os
traços de desespero.
—Tia Kees, venha ... quero que você veja Betty.
Deitada em uma pequena cama encostada à parede estava
uma pálida jovem, sorrindo-me com a radiância que só de Deus pode
vir.
—Jesus está no meu coração... Ele perdoou-me os pecados.
Greetje me falou sobre tudo isso—foram suas palavras.
Dias depois aquela jovem morreu, e mais uma vez tive de
falar num ofício fúnebre. Dei graças a Deus pelo meu trabalho na
ginástica com as meninas, apesar da minha falta de jeito, por ter
servido para alcançar alguém antes que fosse tarde.
Aos poucos os clubes foram tomando a forma de uma
organização. Era emocionante sentir que a organização em si não era
o mais importante para as meninas; em primeiro lugar estava a
necessidade das atividades antes de estruturação.
Do clube de ginásticas, em particular, surgiu o escotismo
feminino na Holanda. Os uniformes, slogans, canções e motos eram
acrescentados aos poucos, à medida que se faziam necessários. Não
obstante, notamos que havia uma diferença salutar entre escotismo
de meninos e escotismo de meninas.
Um de nossos professores de ginástica era chefe de
escoteiros. Perguntei-lhe que atividades ele teria com os meninos
naquela semana; ele me mostrou alguns jogos e me ensinou a fazer
alguns nós em cordas e barbantes. Oh, bem, pensei; nós podemos
fazer isso. No dia seguinte ensinei nossas meninas a fazer os nós, e
tivemos alguns jogos com elas. É fácil! Simplesmente perguntarei ao
professor quais as atividades da semana e as executaremos todas.
Na semana seguinte ele me contou que havia amarrado uma
corda forte em uma árvore no topo de uma duna e prendido a outra
ponta da corda bem esticada, ao pé de outra árvore mais distante. Os
meninos teriam de subir pela corda de uma extremidade à outra.
Ouvi bem a idéia, porém naquele dia me convenci de que escoteiros
e bandeirantes são duas coisas bem diferentes!

O fim do mundo?
Certa tarde eu me reunia com um grupo de pioneiras (as mais
velhas do nosso escotismo), quando Max, uma das minhas fiéis
bandeirantes entrou correndo na sala, atrasada, quase sem fôlego, e
quase gritando alarmada:
—Tia Kees, há algo errado com as estrelas! Elas estão
correndo todas pelo céu, como se procurassem ver o que está
acontecendo no outro lado do horizonte!
As meninas, curiosas criaturas que eram, correram para fora.
—Ora, vejam! São meteoros—disse eu. —Vamos até Kenaupark
para observar de lá ... poderemos ver melhor.
Corremos todas para o Kenaupark onde estava a nossa bela
cerejeira chamada A Noiva de Haarlem, e observamos o
emocionante espetáculo das estrelas cadentes.
Pietje disse:—Estou com medo ... será agora o fim do
mundo?
—Meninas, o que vocês vêem não são estrelas; são meteoros,
talvez caídos de outros planetas. Assim que penetram a atmosfera
terrestre são aquecidos e se tornam luminosos como um raio de luz.
Voltando-me para Pietje, eu lhe disse:—Isto não é sinal do
fim do mundo, muito embora Jesus tenha dito que quando ele vier,
dentre os sinais do tempo, coisas assombrosas aconteceriam nos
céus. Jesus nos adverte a observar esses sinais. Pedro mostra-nos isso
de um modo prático quando diz: "Por essa razão, pois, amados,
esperando estas cousas, empenhai-vos por ser achados por ele em
paz, sem mácula e irrepreensíveis" (2 Pedro 3:14).
Voltamos para nossa sede do clube, e nos sentamos de novo
em círculo no chão enquanto as perguntas começavam a bombardear-
me. Era entusiasmante a hora de repartir com elas nossos
conhecimentos; e eu me sentia grata pelas estrelas cadentes.
Falei-lhes sobre os muitos sinais que Jesus mencionou, e que
Lucas em seu capítulo 21, verso 32, nos diz que a geração que vir
estes sinais não passará até que tudo seja cumprido.
Jap era uma menina que pensava muito.
—Gostaria de saber, tia Kees, se não estaremos nós vivendo
na geração em que todos os sinais serão cumpridos e que Cristo
voltará? Teríamos de conservar nosso triângulo dentro do círculo e
não nos esquecer dele!
(O triângulo representava as três fases de desenvolvimento:
social, intelectual e físico, o círculo significava o desenvolvimento
espiritual. Nós acentuávamos que, quando o triângulo está dentro do
círculo, estamos na posição certa na vida como filhos de Deus.)
Milly estava perplexa; era o seu segundo dia no novo clube, e
essas conversas sobre assunto espiritual a confundiam.
—Que quer dizer essa história de triângulo e círculo?—
perguntou ela. —Vocês estão falando alguma linguagem secreta?
Pela primeira vez Mien tomou a palavra:
—Isso quer dizer... parar de fazer as coisas por nós mesmos e
pedir a Deus que as faça por nós. Tentei fazer tudo por mim mesma e
não o consegui... agora eu peço a Deus que me dirija.

Em desfile
Havia anualmente uma ocasião especial em que meu pai
tomava parte direta no trabalho com as minhas meninas. Era no
importante feriado na Holanda, o dia de aniversário da rainha.
Em 31 de agosto, dia do aniversário natalício da rainha, havia
uma grande festa com desfile, discursos, convescotes e quermesses.
Era como um antigo Sete de Setembro realizado em estilo holandês.
Papai, como um dos principais cidadãos de Haarlem organizava o
programa do dia e tomava lugar no palanque com o prefeito.
Como o papai era o presidente da comissão dos desfiles,
minhas bandeirantes sempre tinham um lugar proeminente na fila.
Podíamos ostentar nossa bandeira com o triângulo dentro do círculo
e tínhamos a oportunidade de explicar o significado do nosso
símbolo a qualquer um que se interessasse em saber.
Fazíamos o trajeto do desfile num carro alegórico puxado por
cavalos, com um cocheiro lindamente uniformizado. Era tão elegante
o desfile que eu não resistia e colocava minha cabeça fora da janela
da carruagem para fazer uma cara cômica. Papai, como sempre,
portava-se com dignidade, a despeito de sua travessa filha.
Depois que Juliana tomou o lugar de sua mãe Guilhermina no
trono, a data da celebração passou para 30 de abril. Como o dia
seguinte era o Io. de maio, ocasião da parada internacional co-
munista, sempre dávamos um jeito de remover todas as bandeiras e
estandartes, para que os comunistas não pudessem tirar vantagens de
nossas decorações.

Tornando-se internacional
O trabalho do clube e as atividades do escotismo feminino
cresceram tanto cada ano que a notícia chegou a alguns membros da
A.C.M. nos Estados Unidos. Assim, fui convidada a participar de um
congresso internacional em Riga, Letônia. A pequena Letônia era
então um país independente, com liberdade religiosa. Mas depois que
os comunistas a invadiram em 1940, o Cristianismo perdeu sua
liberdade.
Foi na década de 1930 que fui à Letônia. A caminho do
congresso, fui convidada por duas senhoras idosas para hospedar-me
na casa delas. Seu país havia sido dilacerado por guerras e re-
voluções. Durante a revolução, a casa dessas senhoras havia sido
invadida; muitos de seus valiosos pertences foram destruídos, outros
danificados, inclusive o antigo relógio de parede. Depois disso, o
relógio havia passado por diversos consertos, mas nunca mais bateu
as horas.
A corrente do peso estava estragada. Então trabalhei
duramente com o relógio tentando consertá-lo, embora eu fosse
perita em consertar relógios pequenos e não os de parede. Senti-me
frustrada; conversei com Deus sobre o assunto e ele me ajudou.
Posso ainda ver as duas senhoras em pé, de mãos dadas, lágrimas de
alegria a rolar-lhes pelas faces, ao ouvirem o relógio bater as horas
novamente. Naquela noite, quando uma delas ouviu o relógio bater,
acordou a outra e cochichou: "O relógio do papai está batendo!"
Como me senti feliz por ser uma relojoeira e poder com isso
trazer alguma felicidade àquelas duas vidas solitárias.
No congresso aprendi que ainda tinha muito que aprender!
Ouvi sobre a liderança de escoteiros em outros países e me senti
como verdadeira principiante. O treinamento espiritual, porém, me
desapontou um pouco. Havia muitas palestras sobre "formação de
caráter", até que finalmente perguntei:
—Não acham que faltamos ao objetivo quando dizemos às
meninas para serem boas cidadãs e deixamos de conduzi-las a Jesus
Cristo?
Para surpresa minha, eles modificaram o programa diante da
pergunta. A palestra sobre evangelização nos clubes, que estava
programada para o último dia, foi transferida para o segundo dia.
Quando voltei para casa, decidimos melhorar de algum modo
a nossa imagem; resolvemos ter melhores uniformes. Adotamos
uniforme azul--marinho; se alguma das meninas não tinha dinheiro
suficiente para isso, permitíamos-lhe usar qualquer vestido azul do
tipo marinheiro.
Com o meu uniforme simples, uma fita alaranjada
substituindo o lenço do uniforme oficial das bandeirantes, lá fui eu
para o meu segundo congresso internacional numa montanha perto
de Viena, Áustria. Lá encontrei a cúpula das dirigentes do
movimento feminino de escotismo na Inglaterra. Uma hora tivemos
que atender a uma chamada oficial do rol, e ao me preparar, não
consegui encontrar meu cinto. Agarrei o primeiro cinto que encontrei
de outro vestido e o coloquei na cintura. Estávamos fazendo uma
demonstração marchando e formando a figura de uma ferradura,
quando uma escoteira holandesa sussurrou-me aflita ao passar por
mim:—Você está com dois cintos: um está pendurado nas suas
costas.
De repente me senti qual maltrapilha; comparei meu vestido
com os uniformes elegantes, perfeitos nos mínimos detalhes.
Comecei a sentir--me como Alice no País das Maravilhas quando ela
foi crescendo até se tornar gigante. Lá estava eu com aqueles dois
cintos, e aquela berrante fita alaranjada presa ao pescoço com um
alfinete de segurança.
Uma das oficiais de escotismo disse-me:
—Estou contente pela oportunidade de encontrá-la e
conversar com você justamente no topo desta montanha; mas eu lhe
digo: se eu a encontrar com esse uniforme em Londres, eu agirei
como se nunca a tivesse visto antes.
Depois dessa experiência, percebi que este empreendimento
era sério demais para permanecer como amadorismo. Quando voltei
para a Holanda, pedimos a algumas talentosas e preeminentes se-
nhoras que nos ajudassem a formar um conselho nacional de
diretores. Estudamos os manuais de outras áreas e promovemos
muitos congressos. Como havia grupos de senhoras de diversas
partes da Holanda interessadas neste trabalho, escolhemos um lugar
central para o nosso encontro—a estação ferroviária de Amsterdã.
Podíamos conversar e fazer planos na silenciosa sala de espera da
primeira classe, até ao momento da partida dos nossos trens.
Mas eu me preocupava com a direção do grupo das
bandeirantes. Entrando em contacto com dirigentes de outras partes
do país, descobrimos que a "instrução religiosa" não era aceita. Era
considerada propaganda de religião. Podíamos ter clubes para
meninas cristãs com líderes cristãs; mas o nosso alvo de alcançar
outras meninas estava sendo impossível de realizar, pelo menos no
movimento de escotismo. Parecia-nos que todo trabalho do clube,
estudos bíblicos, palestras, acampamentos, tudo isso era justo uma
preparação para alguma coisa mais. Conseqüentemente, um novo
movimento cristão acabava de nascer.
O De Neãerlandse Meisjesclubs (Clube Feminino dos Países-
Baixos) teve origem em nosso movimento de bandeirantes, mas
acrescido da dimensão que faltava. Após alguns anos, a influência
desses clubes ultrapassou as fronteiras da Holanda; contávamos
então com seis mil membros das índias Orientais Holandesas e
oitocentos nas índias Ocidentais. Devido ao nosso símbolo, o nome
dos membros de nosso clube era Moças do Triângulo.
O primeiro artigo do regulamento de nosso novo clube estava
impresso nas mentes de muitas jovens. Era: BUSCA TUA FORÇA
ATRAVÉS DA ORAÇÃO.
Anos mais tarde, numa época em que os acampamentos e
desfiles, congressos e cânticos eram doces lembranças dos tempos de
paz, eu estava na cela de uma prisão. Todo som ouvido era magnífico
no silêncio mortal daqueles cubículos. Certa vez pareceu-me ouvir o
choro de uma jovem na cela ao lado. Chamei por ela e disse:—Não
chore, seja forte... Logo estaremos livres!
A resposta me surpreendeu.
—Tia Kees ... oh, tia Kees ... é você? Eu sou Annie.
Eu lhe reconheci a voz. Ela fora uma de minhas fiéis meninas
dos clubes, aprisionada depois que minha família e eu fomos levadas
para a prisão. Meu coração quase parou. Aquela pobre moça era a
última pessoa que eu esperava fosse forte em tão terrível situação. Eu
falava com ela através das paredes da cela.
—Annie, você se lembra do artigo primeiro do regulamento
de nosso clube? BUSCA TUA FORÇA ATRAVÉS DA ORAÇÃO.
Ela parou de chorar.
17
OPOSIÇÃO!
As oposições que surgem às vidas que se rendem a Jesus
Cristo tomam as formas mais diversas; algumas dramáticas, outras
sutis. Satanás é um esperto anjo de luz, mas às vezes ele escolhe
meios sobrenaturais para nos assustar e atrapalhar nosso trabalho.
Certa vez, num acampamento com as meninas, depois que as
luzes se apagaram, eu estava cantando fora da barraca, ao ar livre. As
palavras da canção eram mais ou menos estas: "Não te atemorizes
diante do que te vier; teu Pai celeste cuida de ti."
De repente ouvi ruídos terríveis ao meu redor. Parecia que do
meio das árvores alguma sorte .de seres tentava fazer-me calar. Os
ruídos foram aumentando, aumentando, provocando um tremor pelo
meu corpo com seus estranhos sons. Enquanto eu cantava, implorava
ao Senhor: "Cobre--me e protege-me com teu sangue, Senhor Jesus
... dá-me forças para seguir cantando, e fala por mim para que eu
alcance todas essas meninas."
Os ruídos persistiram, tornando-se mais aterradores e mais
terríveis; mas continuei cantando. Eu sabia estar na frente de uma
linha de fogo, mas através de Jesus, haveria vitória, não fracasso.
Assim que terminei o cântico, os ruídos cessaram, tão abruptamente
como haviam começado.
Entrei e fui dormir, não sem antes agradecer a Deus a vitória
concedida. Na manhã seguinte perguntei às meninas se haviam
ouvido alguma coisa diferente ou estranha na noite anterior. Elas
responderam que nunca me haviam ouvido cantar tão lindo!
Ninguém ouvira nada mais do que o meu cântico.

Ele nunca falha


Muitas das meninas do meu clube permanecem em minha
lembrança. Peggy, por exemplo, fazia parte do clube de ginástica; ela
não tinha condições de pagar a taxa, embora esta fosse uma
importância quase irrisória. Infelizmente descobrimos que ela
desviava dinheiro do clube, dinheiro esse guardado em uma pequena
caixa junto ao peitoril da janela na sede do clube. Eu estava
preocupada com Peggy; então marquei uma moeda e a deixei no
peitoril da janela para um teste. Quando a moeda desapareceu,
chamei Peggy em particular e lhe pedi que me deixasse ver sua bolsa.
Lá estava a moeda que eu havia marcado.
Peggy havia aceitado a Jesus como seu Salvador, mas ainda
estava ligada ao passado e à família—uma família que era um
verdadeiro fracasso. Eu lhe disse:—Peggy, um filho de Deus é
tentado, mas a diferença entre ele e os que não são cristãos é que
Deus concede a seus filhos, com a tentação, uma via de escape. Ele
diz: "Se confessares os teus pecados, ele é fiel e justo para perdoar."
Peggy entendeu, e imediatamente confessou o que havia
feito. Desse dia em diante, nós a elegemos tesoureira de nosso clube
e nunca mais se perdeu nem um centavo. Peggy realmente levou a
sério seu "sim" a Jesus; ela confiou nele, e eu também o fiz—por isso
pude confiar nela. Ela não mais falhou porque Jesus nunca falhou.

O único conforto
Pietje tinha um defeito físico: era corcunda. Ela era uma das
mais queridas no clube. Apesar de tanto tempo já haver passado,
lembro-me ainda muito bem da maneira pela qual ela reagia às
histórias bíblicas. Um dia discutíamos a passagem de Êxodo 20:5,
onde Deus fala com o povo judeu sobre o pecado dos pais continuar
sobre os filhos, netos e bisnetos. Pietje começou a chorar; ao
perceber, levei-a para outra sala onde pudéssemos conversar sobre
seus problemas.
O rosto de Pietje era muito triste ao dizer:— Sou corcunda, e
sei que foi castigo por meu pai ter sido alcoóltra.
—Mas, Pietje, você ouviu o versículo seguinte: "E mostrará
misericórdia até mil gerações para com aqueles que o amam e
guardam os seus mandamentos." Quando seu pai começar a amar a
Deus ele experimentará sua misericórdia. Você ama a Deus, e apesar
do seu defeito físico, você é uma menina feliz por experimentar a
misericórdia divina e paz no seu coração, porque Jesus habita em
você.
Quando Pietje participou do grupo de estudo bíblico, lemos
em Romanos 8:34 e perguntei:— Quem é o nosso juiz?—Elas
responderam:—Jesus!—E eu continuei:—Quem é nosso advoga-
do?—A resposta veio de Pietje:—Jesus!—E quase gritando, ela
disse: —Que alegria— Juiz e advogado ao mesmo tempo! Jesus
intercede por nós, por isso nada há que temer!
Certo dia fui chamada às pressas porque Pietje estava à morte
no hospital. Eu sabia que ela havia aceitado a Cristo como seu
Salvador. Enquanto me colocava ao lado do seu leito, eu disse:
—É confortante saber que Jesus é nosso juiz e também nosso
advogado! Como ele ama você!
Naquele momento vi a transformação em seu rosto: em lugar
de dor, havia paz.
—Pietje, você pode me ouvir?—perguntei.
Ela não abriu os olhos. Não consegui alcançá-la mais; orei
com ela colocando minha mão em sua testa febril; pedi ao bom
Pastor que tomasse sua ovelhinha em seus braços e a levasse segura
pelo vale da sombra da morte até à casa do Pai onde há muitas
moradas.
Quando eu proferi "Amém", Pietje abriu os olhos pela última
vez e sorriu.
Pietje estava ainda muito vivida em minha mente e meu
coração quando no dia seguinte me reuni às dirigentes e diretoria da
Associação Cristã Feminina. Conversamos sobre as experiências dos
clubes, e então uma senhora disse:
—Não gosto do método dos seus clubes em Haarlem. Todos
aqueles sermões que vocês fazem! Não acho certo. Creio em
ambientes cristãos que proporcionam atmosfera para as meninas—
isso atrai mais a elas do que falar sobre a Bíblia. Eu prego mais pelas
minhas ações do que pelas palavras.
Minha resposta foi:—Romanos 10:14 diz: "... e como crerão
naquele de quem nada ouviram? e como ouvirão, se não há quem
pregue?"
Alegro-me por haver falado a Pietje sobre Jesus nosso
advogado e juiz na ocasião em que podíamos alcançá-la. Nos 25 anos
de trabalho com os clubes, mais ou menos quarenta moças morreram
vítimas de acidentes, moléstias graves e até assassínios. Quando eu
me via ao lado do leito de morte de uma dessas moças, sentia-me
feliz por haver redimido o tempo quando ela ainda podia ouvir sobre
o evangelho. Doenças, sofrimentos, inclusive drogas, tornam muitas
vezes os últimos momentos de uma pessoa tão difíceis que seria
quase impossível a ela poder ouvir.
Quando Pietje morreu, falei em seu sepultamento. Papai
havia falado em tantos funerais de seus colegas de trabalho que podia
perfeitamente me ajudar de muitas maneiras. Sua franqueza de
testemunho nem sempre era apreciada; mas, quando a morte entrava
numa família, papai era um consolador muito bem recebido. Quando
alguém morre, as pessoas se confrontam com a eternidade e aí está,
então, a melhor oportunidade para se falar sobre a segurança da vida
eterna, segurança que só Jesus pode dar.
Papai deu-me alguns conselhos práticos para esses momentos
de dor. —Quando chegar a hora de falar, Corrie, não hesite. Muitas
pessoas são sensíveis e nervosas; assim, procure um lugar onde possa
ser vista e ouvida por todos. Caminhe para a frente sem hesitação.
Parentes e amigos ali presentes devem ser levados a arrepender-se de
seus pecados e a receber Jesus como seu Salvador.
Sim, a oposição vem em estranhos lugares e por estranhos
veículos: ruídos sobrenaturais vindos de uma floresta negra, e até
mesmo atitudes superficiais dos farisaicos.

Dúvida
A oposição surge também de dentro de nós. Tem havido
dúvida em meu coração? Tem sido árida a minha vida de oração?
Sim, claro.
Certa vez precisei submeter-me a uma operação cirúrgica. Por
algum motivo estranho persuadi o cirurgião a não me aplicar
anestesia geral; somente anestesia local. Eu não imaginara que isso
pudesse causar um grande choque para meu organismo. Não senti
dor durante a cirurgia, mas vivi momentos de grande tensão. Por
muitos meses após essa operação necessitei de tratamentos médicos
bem dolorosos.
Naquela ocasião minha mente e meu espírito passavam por
grande depressão; eu não conseguia orar; a Bíblia não me
interessava; a igreja era vazia de sentido. Lembro-me de que minhas
orações eram curtas. A maior parte do tempo eu murmurava: "ó
Deus! Não consigo alcançar-te... não consigo orar. Senhor, sei que tu
podes alcançar-me. Toma-me sob teus cuidados e ajuda-me a poder
orar novamente."
A Corrie exterior era a mesma. Eu realizava os trabalhos dos
clubes como sempre o fizera. Trabalhava na loja, recebia os clientes
e levava a cabo todas as atividades de nossa afanosa vida. Não sei se
alguém poderia descobrir o escuro vale que eu atravessava, pois
guardava tudo isso bem dentro de mim. Eu não falava sobre meus
problemas com a minha família nem com as amigas. Afinal, eu
pensava, eles já têm problemas demais. Hoje posso ver quão tola eu
fora!
Então, uma menina, Colly, chegou-se a mim e me perguntou
se podia conversar um pouco comigo sobre os seus problemas. Ela
era uma menina brilhante, de uma ótima família que vivia do
trabalho árduo; eu gostava muito dessa menina.
—Tia Kees—disse-me ela, cabeça baixa. —Você pode me
ajudar? Há semanas que não consigo nem orar! Acha que estou
perdida? Acha que não sou mais uma filha de Deus?
—Colly, você é uma filha de Deus, sim, e tampouco está
perdida. Agora sente-se e vou contar--lhe algo sobre mim mesma.
Sei o que se passa com você, pois estou enfrentando o mesmo pro-
blema. Há semanas que não consigo orar... mas ainda que tudo
pareça escuro, sei que Jesus está comigo e ele pode me alcançar.
Vamos ver algo na Bíblia que nos possa ajudar.
Lemos em Romanos 8:26: "Também o Espírito,
semelhantemente, nos assiste em nossa fraqueza; porque não
sabemos orar como convém, mas o mesmo Espírito intercede por
nós."
Colly e eu, ambas sentimos que o Espírito Santo nos ajuda
em nossos problemas diários e nos problemas de oração também.
Quando sentimos nossa total incapacidade, o Espírito intercede por
nós junto a Deus, o Pai. O peso da culpa foi-nos tirado a Colly e a
mim, e juntas agradecemos a Deus porque ele nos perdoou e res-
taurou nossa comunhão com ele.
Os clubes femininos de Haarlem
Os H.M.C. (Clubes de Moças de Haarlem) tinham uma vez
por ano a oportunidade de apresentar-se na sala de concertos onde
cada clube fazia uma demonstração de suas habilidades. Certa vez
abrimos o programa fazendo uma entrada marcial no palco com 250
a 300 meninas. Elas cantaram uma canção e depois falei mais ou me-
nos durante cinco minutos ao auditório.
O clube misto (que havia passado o "ano de prova" sem
acontecimentos graves) encarregou-se da orquestra que devia
abrilhantar a festa. Pela primeira vez estes músicos se apresentavam
diante dos amigos e parentes (cerca de milhares deles); eles estavam
gelados de nervosismo ao enfrentarem o palco. Então me encaminhei
para a frente e, como se fosse uma virtuose, tomei um violino e fingi
tocar, certificando-me de que ninguém no auditório notasse que o
arco, virado de cabeça para baixo, não tocava as cordas. Enquanto eu
"tocava" o violino, os meninos ganharam confiança e, descontraídos,
começaram a tocar. Aqueles que tocavam instrumentos de sopro
provavelmente sentiram dificuldade em conter o riso e ao mesmo
tempo executar a música.
Entre lágrimas e risos, oposição e apoio, os clubes deram a
esses jovens, moços e moças, a preparação para a vida.
Quando a guerra começou, tivemos que fechar nossos clubes
de Haarlem. Jamais me esquecerei daquela tarde em que nos
reunimos pela última vez. Saudamos nossa bandeira, com lágrimas a
rolar-nos pelas faces; depois dobramo-la cuidadosamente e a
escondemos num lugar secreto na sede do clube.
Enquanto cantávamos o hino nacional pela última vez juntos,
as meninas sofriam.
—Meninas, não devemos chorar—disse-lhes eu. —Tivemos
momentos muito alegres nos clubes, mas não é só nos momentos
alegres que devemos ser unidas. Aprendemos os fatos importantes
que nos fazem fortes mesmo nos tempos calamitosos. O Senhor Jesus
nos dá segurança até mesmo na insegurança dos tempos de guerra.
Eu olhava para aquelas jovens e me perguntava: "Apoiar-se-
ão elas na força do Senhor nos dias e anos que estão por vir? Que
estará reservado para elas neste nosso mundo hoje tão cheio de ódio
e crueldade?"
Eu me alegrava por não havermos usado nosso tempo nos
clubes só para formar "bons cidadãos"; tivemos oportunidade de
aprender a mensagem viva da vitória de Jesus, aquela que nos daria
força nas horas de sofrimento que a muitas de nós nos aguardavam.
18
"... ELE TOMOU A MINHA MÃO"
Guerra. Era ainda madrugada quando ouvimos as bombas.
Sabíamos que o som das explosões vinha de Schiphol, o aeroporto
próximo de Haarlem. Corri para o quarto de Betsie onde a encontrei
trêmula e pálida, assentada na cama. Ficamos ali abraçadas,
tremendo a cada explosão; os clarões das bombas eram tétricos,
lúgubres na escuridão de nosso céu antes tão pacífico.
Estávamos com medo, sim; mas aprendemos desde a infância
a depositar nossas cargas e temores no Senhor. Orávamos como
crianças assustadas que correm para o pai em busca de auxílio e
proteção.
"Senhor, faze-nos fortes... dá-nos força para ajudar aos
outros."
"Senhor, livra-nos deste medo. Dá-nos fé." Foi uma crise de
medo que se apossou de nós duas; mas Jesus deu-nos a vitória sobre
isso. Nunca nos sentimos tão assustadas como naquela noite, nem
mesmo quando a guerra e a invasão destruíram toda a nossa vida
familiar e tudo o que havíamos conhecido por mais de meio século.
Seria aquela noite o meio de Deus inocular em nós a preparação para
o futuro?
Nos cinco dias de guerra que se seguiram, muitas pessoas
vieram para nossa casa; papai era um apoio para todas elas; ele orava
com cada uma que lhe pedisse. Às vezes o choque do que estava
acontecendo me subjugava; e enquanto papai trazia paz e confiança
àqueles aflitos, eu me assentava ao piano e tocava Bach. Nenhuma
outra música me era tão repousante como a de Bach.
A hora mais triste durante aqueles cinco dias foi quando a
nossa família real partiu, nossa rainha Guilhermina para a Inglaterra
e a princesa Juliana para o Canadá. Sabíamos então que nossa
situação era desesperadora.
Eu não era muito de chorar; mas ao ouvir falar sobre a família
real deixando a pátria, senti meu coração partir-se e chorei. Para nós,
os holandeses, a rainha era nossa segurança—nós a amávamos.
Então a Holanda se rendeu. Saí à rua com papai; todos
conversavam com todos. Naquele momento havia uma harmonia
entre o povo como nunca houve antes. Estávamos todos unidos no
grande sofrimento, na humilhação e derrota de nosso país. Apesar de
meu coração doer miseravelmente, era encorajador sentir essa união.
No milênio será assim: o mundo todo será coberto com o
conhecimento de Deus como as águas cobrem o fundo do mar. Não
haverá divisões; todos serão unidos, não pela miséria e sofrimento,
mas pela comunhão com Deus.
O exército alemão marchava pela Barteljorisstraat; tanques,
canhões, cavalaria e centenas de soldados de infantaria. A estreita
ruazinha onde Dot e eu brincávamos—o beco onde eu, menina de
cinco anos havia visto homens bêbados e orava por eles e por "todos
de Smedestraat"—o caminho que fazíamos para a catedral aos
domingos—tudo estava coalhado de soldados.
Enquanto passavam os conquistadores, notei no meio deles
alguns que tinham o rosto vermelho— a vergonha estampada em
suas fisionomias. Depois da guerra um alemão me contou:—Cada
passo que eu avançava na Holanda era uma vergonha para mim. Eu
sabia que estava ocupando uma nação neutra.
As igrejas viviam apinhadas naqueles dias: os Salmos que
foram escritos em tempos de grande sofrimento ganharam um novo
valor. Pastores que nunca haviam pregado sobre a Segunda Vinda de
Cristo agora escolhiam para texto dos sermões passagens da Bíblia
que falavam sobre o assunto.
No começo houve pequenas alterações em nossa vida diária;
mas aos poucos o inimigo começou a impor suas restrições. A
princípio o toque de recolher era às 22 horas, o que não era difícil
para nós; porém mais tarde foi mudado para as 20 horas, depois para
as 18 horas. Ninguém podia deixar a casa depois desse horário; havia
absoluto "blackout" e todas as janelas eram cobertas com papel preto
assim que o sol se punha.
Os telefones foram cortados; o alimento, racionado; e muitas
vezes depois de permanecermos em longas filas com nossos cartões
de racionamento, voltávamos de mãos vazias porque os armazéns
também estavam vazios.
Numa bela tarde de domingo, Betsie, papai e eu passeávamos
pelo parque da zona sul de Haarlem, quando a Gestapo surgiu e
prendeu todos os pais jovens que por ali passeavam com suas fa-
mílias, deixando para trás crianças chorando e esposas desoladas.
Os holandeses, na sua maioria, tinham bicicletas, e muitas
vezes a Gestapo fazia um bloqueio delas. Todos eram obrigados a
entregar o seu veículo. Se você era afortunado bastante para
conservar sua própria bicicleta, aprendia a usá-la sem os pneus,
porque eles eram confiscados e enviados para a Alemanha.
Não estávamos seguros nem mesmo nas igrejas. Certa vez,
durante o serviço religioso na catedral, os alemães se postaram às
portas para que ninguém pudesse sair. Então eles foram" ordenando
que todos os homens de 18 a 40 anos de idade viessem para fora.
Naquele mesmo dia eles foram enviados para a Alemanha. Muitos
desses" homens nunca mais foram vistos.
A ocupação, o movimento clandestino para salvar judeus, os
campos de concentração, tudo isso está documentado em A Prisoner
and Yet... (Prisioneiro, não obstante... ) e no meu livro e filme The
Hiding Place (Refúgio Secreto).
Por mais de trinta anos depois da Segunda Guerra Mundial
tenho sido uma "andarilha" para o Senhor em mais de 60 países em
todos os continentes deste mundo perturbado. Muitos me
perguntaram sobre minha infância, juventude e os anos antes do
"Refúgio Secreto". Uma pessoa não começa a existir com a idade de
cinqüenta anos, sem os anos de preparação, anos de experiência, que
são usados por Deus nas formas que muitas vezes nunca chegamos a
conhecer até que o encontremos face a face.
Não obstante, ao chegar aos oitenta anos de vida, tenho tido a
maravilhosa oportunidade de descobrir a doçura de alguns dos frutos
do labor divino. Ainda recentemente tenho recebido, por meio de
carta ou de um encontro pessoal, notícias de algumas meninas dos
meus clubes. (Elas ainda são "meninas" para mim!) É como se eu
recebesse uma carta vinda do próprio Deus.

Aukje
Uma de nossas fiéis meninas dos clubes era a tranqüila
Aukje. Ela era uma garota pacífica que com poucas palavras podia
dizer muito. Quando algumas meninas se mostravam rebeldes e
revoltadas, eu me lembro de Aukje dizendo: "Ora, não sejam tolas.
Por que viemos nós para o clube? Muitas querem divertir-se e
aprender alguma coisa; então, se vocês não gostam, têm liberdade de
sair; deixem-nos aproveitar o que o clube nos oferece."
Essas palavras eram ditas com tanta delicadeza que na
maioria das vezes os problemas eram resolvidos. Quando Aukje
estava com mais ou menos dezessete anos, ela se tornou uma
dirigente de clube, liderando o grupo de meninas em trabalhos
manuais. Ela era tão calma e gentil que não esperávamos dela
resultados vibrantes ou excitantes; mas o seu amor ao Senhor era
muito claro e real.
Quando a família ten Boom foi aprisionada, Aukje veio à
nossa casa sem saber que se realizava uma batida da Gestapo. Então
ela foi levada à prisão e passou uma semana com Mary, a jovem
judia mais velha que havia estado em nosso refúgio secreto, e mais
tarde capturada na rua.
Aukje falou com Mary sobre o Senhor Jesus. Contou-lhe que
Jesus havia morrido na cruz pelos pecados de todo o mundo e que ele
dissera: "Vinde a mim todos os que estais sobrecarregados e eu vos
darei descanso." Mary disse:—Ouvi o vovô ten Boom orar muitas
vezes quando eu estava no Beje. Ele sempre me dizia: "Mary, você é
uma judia; esse fato não mudará por você convidar Jesus a habitar o
seu coração. Jesus, pelo lado divino, era Filho de Deus; mas pelo seu
lado humano era judeu."
Mary aceitou a Jesus como seu Salvador naquela cela. Nossa
tranqüila Aukje teve uma vitória pelo Senhor. Ela me contou depois
que no momento em que Mary disse o sim para Jesus em sua oração
de entrega a ele, os guardas entraram na cela e a levaram embora.
Soubemos mais tarde que ela fora enviada para a Polônia onde
morreu.
Nada mais ouvi sobre Aukje por muitos anos. Que surpresa
para mim quando a vi entrar na minha sala em Haarlem, trinta anos
depois*. Ela me contou que estava trabalhando numa pequena aldeia
onde não havia nem pastor; então ela pregava todos os domingos
para a pequena congregação. E acrescentou:—O que aprendi nos
seus clubes aplico ainda hoje quando ensino crianças e quando dirijo
meus grupos de estudo bíblico.

Pões
Pões era uma irrequieta marotinha; em qualquer grupo ou
clube onde estivesse, havia risos e alegria. Nos acampamentos ela era
a nota alegre mesmo quando chovia ou quando o desânimo nos
invadia o espírito. Se houvesse meninas fracas que precisassem de
ajuda em saltos ou ginástica, Pões estava sempre pronta a ajudar.
Lembro-me de uma vez em que ela, andando atrás de mim,
externava suas ideais a respeito das minhas pernas. Disse ela: "Se eu
tivesse tais pernas, decidiria andar ao lado delas." Ela casou--se com
um rapaz bem mais velho e mudaram-se para a África do Sul.
Encontrei-me com eles lá depois da guerra. Ele se dizia ateu mas não
fazia objeção a que Pões e eu partilhássemos com ele nosso amor ao
Senhor Jesus. Prometi orar por ele, mas em nossa correspondência
posterior Pões nunca mencionou que ele estivesse interessado em
assuntos espirituais.
Então uma coisa estranha aconteceu—uma dessas
"coincidências" que dizemos ser parte maravilhosa do plano de Deus.
Pões e seu marido andavam nas ruas de Johannesburg, quando um
menino lhes ofereceu um bilhete de uma rifa com o fim de angariar
dinheiro para a aquisição de uma casa para um clube de meninos.
Disse Pões: —Sem dúvida, pois aproveitei muito nos nossos clubes
quando eu era menina. Espero que vocês se divirtam em sua nova
casa.
Mais tarde ela soube que o bilhete daquela rifa premiado em
primeiro lugar fora o deles—era um plano de viagem para duas
pessoas aos Países-Baixos! Assim aconteceu que um dia eles sur-
giram em minha casa na Holanda. Quantas recordações nos
assaltavam enquanto conversávamos! Pões me contou que ela se
tornou membro de uma igreja; Henk, seu marido, ouvia encantado
nossas conversas sobre os clubes. Então ele declarou com veemência
não acreditar em Deus. Eu sabia que agora seria a minha única
chance de pregar-lhe o evangelho; por isso lhe disse:
—Henk, provavelmente seja esta a única oportunidade que
tenho de falar com você. Há dois caminhos na vida: você pode seguir
o seu caminho, ou o caminho de Deus; pode aceitar a Jesus Cristo
como seu Salvador, e ele fará de você um filho de Deus. Então você
pode levar a ele todos os seus pecados, pedir-lhe perdão e ser
perdoado. Ele lhe dará a certeza de ser você um filho de Deus, e
escreverá seu nome no livro da vida.
Depois que orei com eles, Henk disse:
—Creio que eu já havia entregado meu coração a Jesus.
Tenho visto muito de Jesus na vida de Pões; ele deve ser uma
realidade. Sei que sou pecador, e você disse que Jesus aceita
pecadores. Vou confessar a ele tudo o que tenho feito e o que tenho
sido; e ele me tornará num filho de Deus.
Eles voltaram para a África do Sul e Henk tornou-se membro
de uma animada igreja. Há alguns meses Henk morreu; e ele disse:
"Conte à tia Kees que Deus a usou para conduzir-me ao Senhor."
Deus começou a trabalhar anos antes com uma travessa
menina, Pões, num clube de ginástica numa pequena cidade
holandesa.

A festa áurea
Como estarão elas? Será que os anos lhes trouxeram grandes
transformações? Quantas alegrias e tristezas, triunfos e derrotas terão
elas visto nas décadas que se seguiram ao nosso último encontro ?
Eu estava tão entusiasmada quanto a jovem Corrie de
antigamente, naquele dia em que apresentou suas meninas dos clubes
na sala de concertos de Haarlem. Agora, nos meus oitenta anos, eu
voltava à Holanda para uma visita e convidara aquelas senhoras que
no passado haviam pertencido aos clubes—e moravam ainda nas vi-
zinhanças de Harlem—para um chá em minha casa.
Nenhum uniforme com dois cintos e um alfinete de segurança
desta vez! Eu usava o meu melhor vestido de verão, de seda, branco
e vermelho; tomei muito cuidado para que nada desfigurasse a minha
aparência.
Chegaram todas juntas à porta da minha casa. Algumas, nas
suas grandes e antigas bicicletas; outras, em seus próprios carros e
ainda outras vindo do ponto de ônibus. Nada de cerimônias, pois de
início começaram todas a rir e a falar ao mesmo tempo.
Ariapja, cujo apelido era Jap, explodiu com seu entusiasmo
sobre o trabalho dos clubes. Ela nos contou como entrou pela
primeira vez para fazer parte do nosso grupo e o que sua mãe lhe
havia dito: "Você não vai usar uniforme."
Assim ela foi para o seu primeiro acampamento um tanto
envergonhada, porque não estava vestida como as suas
companheiras. Esse foi o problema mais sério na vida dela na
ocasião. Hank, que também tomara parte em nosso chá naquela tarde,
foi quem deu o uniforme a Jap; aquele ato de desprendimento foi
lembrado por Jap toda a sua vida. Quando ela foi para casa,
perguntou à mãe se lhe dava permissão para ser bandeirante. A mãe
concordou, contanto que não usasse o uniforme aos domingos.
Escotismo tornou-se a vida de Jap; ela nos contou naquela
ensolarada tarde em minha saleta na Holanda, que o muito que ela
aprendeu nos clubes quando menina a preparou para enfrentar as
experiências da vida.
Stien entrara para um dos meus clubes quando estava com 16
anos, para aprender catecismo. Fui sua professora, e quando ela foi
recebida na Igreja Reformada da Holanda, eu lhe disse:— Agora,
Stien, você deve dirigir um clube.
Depois que Stien se tornou uma de nossas dirigentes de clube,
por iniciativa própria ela começou um clube para crianças retardadas.
Contou-me mais tarde: "Você me ensinou, tia Kees, a amar esses
menos afortunados, e eu realmente amei aquelas crianças." Para
Stien, ir para os clubes era a melhor coisa de sua jovem vida! Sua
casa não era franqueada a outros; por isso ela passava muitas de suas
tarde no Beje. Felizmente ela estava em sua própria casa naquele dia
fatídico de fevereiro de 1944, quando a Gestapo nos fez uma visita
indesejável.
Annie, que havia respondido a um anúncio no jornal para
filiar-se a um clube, disse que atendeu ao convite pensando somente
em divertir-se e não para ouvir aquelas coisas espirituais. E ela se
divertiu realmente! Tomou parte no clube de cântico, no clube de
inglês, no clube de ginástica; e quando se referiu ao último, ela nos
lembrou a todas o slogan do clube. (Eu sabia que uma delas —que
marotas!—ia tocar nesse ponto.) O slogan do clube de ginástica—
NÓS ENDIREITAMOS O QUE ESTIVER TORTO—não era muito
bom— longo demais para figurar num programa. (Eu tinha de fingir
não notar as risadas toda vez que ele era mencionado.)
Annie contou como se enamorou do professor de ginástica.
Não obstante, quando a namorada dele chegou, Annie sentiu-se
enciumada, e por desaforo costurou as pernas da calça dele uma à
outra e lhe encheu de água os sapatos.
(As xícaras quase caíram ao chão quando essa história foi
repetida.)
Como castigo, eu havia dito a Annie que ela estaria suspensa
do clube por três semanas. Não obstante ela me lembrou que havia
voltado dentro de uma semana, provando assim que a disciplina da
tia Kees era um tanto frouxa.
Quando Annie estava com 17 anos, participava do
acampamento em Bliscap, passando nessa época por um período de
depressão. Ela acabara de romper seu namoro, e isso lhe parecia o
fim do mundo. Lembrou-se então de que estávamos todas fora da
barraca olhando as estrelas e eu lhe disse:—Quando você estiver em
apuros ou em dificuldade e não souber a solução, fale com Deus
sobre o assunto. Ele tem o seu passado, presente e futuro nas mãos—
. Foi aí que Annie aceitou a Jesus Cristo como seu Salvador; ela
disse que toda vez que se via em necessidade nos anos que se
sucederam, lembrava-se daquele momento. —Sei que o Senhor quer
tomar nossa vida em suas mão quando somos pequenas—disse
Annie.
Nellie nasceu na Alemanha, e só veio para a Holanda com 14
anos de idade. Aos 18 anos entrou para os nossos clubes, não sendo
ainda crente em Jesus Cristo. Depois ela aceitou a Jesus durante um
de nossos acampamentos. Quando Nellie falou sobre as lembranças"
e experiências do tempo de nossos clubes, frisou as fogueiras—a
hora das discussões em conjunto. Ela pensou um pouco para
responder quando lhe perguntamos qual teria sido a missão para cujo
desempenho o trabalho dos clubes a preparou. Então ela se lembrou
de um dos artigos do regulamento dos • clubes que era "ajudar" a
outros. E acrescentou que até hoje todo mundo sabe que em seu lar
há sempre o espírito de ajudar. "Vamos à casa de Nellie—ela sempre
tem a sopa sobre ..."
Enquanto partilhávamos das lembranças e experiências de
cada uma, as histórias se sucediam, uma após outra. Reina nos
contou sobre o quanto ela amava o círculo e a canção do clube. Foi
difícil para Ellen de Kroon minha secretária, e Carole Carlson
dominarem a emoção quando todas nós nos levantamos e, dando-nos
as mãos, repetimos nosso moto e entoamos o hino oficial depois de
quase 40 anos de separação! As vozes haviam mudado um pouco,
mas o entusiasmo ainda se fazia presente!
Reina viera de uma família cristã; porém o trabalho dos
clubes inspirou-a a levar o evangelho a outras meninas.
—Vocês sabiam—perguntou ela olhando em derredor—que a
última vez que as bandeirantes usaram seus uniformes foi no meu
casamento?
Hank era uma das pioneiras dos clubes e lembrou-se da
primeira experiência que tivera no acampamento. Uma das meninas
era sonâmbula; tia Kees preocupava-se muito com ela, e sempre a
levava gentilmente de volta para a cama durante suas caminhadas
noturnas em estado de sonambulismo. Não obstante, descobriu-se
que a dita sonâmbula tinha também dentinhos doces, pois na manhã
seguinte as barras de chocolate reservadas para a hora da fogueira
haviam sido estranhamente consumidas por alguém durante o sono.
Julie, que permanecia um tanto calada durante nosso bate-
papo, resolveu finalmente falar:
—Quero muito dar à nossa juventude algo do amor, das
experiências e da força advindos do conhecimento do Senhor, que
aprendemos e recebemos em nossos clubes, tia Kees. Nossas crianças
hoje têm muito e ao mesmo tempo são muito pobres. Elas são tão
livres hoje, muito mais do que éramos nós. Mesmo assim elas
enfrentam maiores perigos no mundo do que acontecia em nosso
tempo.
Reinou silêncio na pequena sala. Cada pessoa ali estava
envolvida em seus próprios pensamentos sobre filhos, netos—nossa
juventude que enfrenta "guerras e rumores de guerra" que existem
em um mundo cuja corrida se dirige para sua autodestruição.
Relanceei o olhar pela minha saleta, pela sala de jantar onde
estava o retrato do papai. Pude vê-lo à mesa oval, cabeça baixa,
orando: "Senhor, abençoa a rainha; agradecemos-te este belo dia do
Senhor, e a promessa da próxima vinda do teu Filho. Graças te
damos por este alimento e por esta família. Em nome de Jesus Cristo.
Amém."
Como sou grata por ter vivido na casa de meu pai! Sim, meu
Deus, eu te agradeço esta família!
Corri os olhos pelas minhas amigas, reunidas para uma tarde
de chá e recordações; dei graças a Deus pela família da fé em todo
este globo terrestre. Como o amor de Deus se estendeu da oficina do
relojoeiro para todas as partes do mundo—para as mansões da
Califórnia, para os hospitais em Quênia, antingindo desde as rainhas
até aos guardas das prisões.
Quando a "festa áurea" chegou ao fim, nós, as meninas dos
clubes, voltamos ao presente, e, quebrando algumas de nossas
restrições holandesas, abraçamos-nos umas às outras. Muitas delas
haviam sofrido muito através dos anos, e ainda continuavam firmes
no Senhor. Compreendi que tudo o que fazemos pela nossa própria
força tem que ser purificado; mas o que fazemos por intermédio de
Deus, tem o seu valor hoje e por toda a eternidade. Esta não é a hora
de olhar para trás. Quantos desafios temos hoje! Lembro-me das
palavras do papai:

Quando Jesus toma a sua mão, ele segura você com firmeza.
Quando Jesus segura você com firmeza, ele guia você através da
vida. Quando Jesus guia você pela vida, ele conduz você a salvo ao
seu lar.
Corrie ten Boom

Finalmente, Corrie ten Boom revela aos seus leitores a


primeira parte de sua vida que culminou com o REFÚGIO
SECRETO — um período de cinqüenta anos que para muitas pessoas
constitui toda o vida, mas que para Corrie foi apenas o começo.
A família ten Boom vivia em Haarlem, Holanda, num prédio
de alvenaria e tijolo chamado Beje onde funcionava a relojoaria.
Neste livro você ficará conhecendo algumas das personalidades
inesquecíveis que moldaram o caráter de Corrie: seu sábio pai, sua
meiga e amoroso mãe, suas tias, seu irmão, irmãs e um batalhão de
ten Booms "adotivos".
NA CASA DE MEU PAI é muito mais que uma coleção de
memórias da vida interessantíssimo de Corrie ren Boom; é uma visão
do lado íntimo e humano de uma dos mais autênticas testemunhas de
Cristo e da fé que a tem mantido em intensa atividade por mais de
oitenta anos. Você verá como Deus usou os pequenos começos e os
acontecimentos do dia-a-dia para preparar Corrie para os sofrimentos
e as vitórias que o futuro lhe reservava.
CORRIE TEN BOOM tem viajado pelo mundo inteiro
empolgando suas audiências com sua emocionante história. Entre os
seus livros de maior sucesso estão: REFÚGIO SECRETO,
ANDARILHA PARA O SENHOR e CARTAS DA PRISÃO.

www.ebooksgospel.com.br

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