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VOLUME 37, NÚMERO ESPECIAL

OUTUBRO/NOVEMBRO, 2017

PSICOLOGIA
ciência e profissão
Psychology: science and profession
Psicología: ciencia y profesión

VERSÃO IMPRESSA ISSN 1414-9893 | VERSÃO ONLINE ISSN 1982-3703

BRASÍLIA/DF - BRASIL
PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO
VOL.37, N.SPE, OUT/NOV, 2017
VERSÃO IMPRESSA ISSN 1414-9893 | VERSÃO ONLINE ISSN 1982-3703

Editora Responsável Neuza Maria de Fátima Guareschi (Universidade Lucia Boarini (Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR - Brasil) Maria
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Impressão Setembro 2017
(Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ - Brasil)
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Cláudia Amorim Garcia (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,
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Psicologia: Ciência e Profissão / Conselho Federal de Psicologia. - Brasília, DF,


Brasil : CFP, 1981- vol. 37, n.spe. 2017

Trimestral
ISSN 1414-9893 - impresso
ISSN 1982-3703 - online
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digital da revista em:
1. Psicologia I. Conselho Federal de Psicologia. CDD 150 http://dx.doi.org/10.1590/
1982 – 3703003442014

2 | psicologia: ciência e profissão


sumário

Artigos

Editorial

3 Psicologia e Democracia: da Ditadura Civil-Militar às Lutas pela Democratização do Presente


Psychology and Democracy: from the Civil-Military Dictatorship to the Struggles for the Democratization of the Present
Psicología y Democracia: de la Dictadura Civil-Militar a las Luchas por la Democratización del Presente
Domenico Uhng Hur (Universidade Federal de Goiás), Fernando Lacerda Júnior (Universidade Federal de Goiás)

Artigos

11 Psicología y Destrucción del Psiquismo: La Utilización Profesional del Conocimiento Psicológico para la
Tortura de Presos Políticos
Psicologia e Destruição do Psiquismo: a Utilização Profissional do Conhecimento Psicológico para a Tortura de Presos Políticos
Psychology and Destruction of the Psyche: the Professional use of Psychological Knowledge for Torture of Political Prisoners
David Pavón-Cuéllar (Universidad Michoacana de San Nicolás de Hidalgo)

28 Ditadura e Insurgência na América Latina: Psicologia da Libertação e Resistência Armada


Dictatorship and Insurgence in Latin America: Liberation Psychology and Armed Resistance
Dictadura e Insurgencia en Latinoamérica: Psicología de la Liberación y Resistencia Armada
Domenico Uhng Hur (Universidade Federal de Goiás), Fernando Lacerda Júnior (Universidade Federal de Goiás)

44 Luta Armada na Psicologia: Prática de Classe contra o Terrorismo de Estado


Armed Struggle in Psychology: Class Practice against State Terrorism
Lucha Armada en la Psicología: Práctica de Clase contra el Terrorismo de Estado
Juberto Antonio Massud de Souza (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), Ana Maria Jacó-Vilela (Universidade Estadual do Rio
de Janeiro)

57 A Psicologia Brasileira nos Ciclos Democrático-Nacional e Democrático-Popular


Brazilian Psychology during the Democratic and National Cycle and the Democratic and Popular Cycle
La Psicología Brasileña en el Ciclo Democrático-Nacional y en el Ciclo Democrático-Popular
Filipe Milagres Boechat (Universidade Federal de Goiás)

71 O Fazer Psicológico na Ditadura Civil Militar


The Psychological practice during the Military Civilian Dictatorship
El Quehacer Psicológico de la Dictadura Civil Militar
Ana Maria Batista Correia (Universidade Federal do Piauí), Carla Náyad Castelo Branco Dantas (Universidade Paulista)

82 Psicologia no Contexto da Ditadura Civil-militar e Ressonâncias na Contemporaneidade


Psychology in the Context of the Military Civil Dictatorship and Resonances in the Contemporaneity
Psicología en el Contexto de la Dictadura Civil Militar y Resonancias en la Contemporaneidad
Fabíola Figueirêdo da Silva (Universidade Federal de São Paulo)

91 Psicologia e a Política de Direitos: Percursos de uma Relação


Psychology and the Rights Policy: Paths of a Relationship
Psicología y Política de Derechos: Caminos de una Relación
Vinicius Furlan (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)

103 Psicologia Social e Pesquisa com Memória: Método e Reparação de Danos da Ditadura Civil-Militar
Social Psychology and Memory Research: Method and Repair for Damages of the Civil-Military Dictatorship
Psicología Social e Investigación con Memoria: Método y Reparación de los Daños de la Dictadura Cívico-Militar
Luis Eduardo Franção Jardim (Universidade de São Paulo)

116 Análise Reparável e Irreparável: o Conceito Psicanalítico de Reparação na Agenda da Transição Brasileira
Reparable and Irreparable Analysis: The Psychoanalytic Concept of Reparation in the Agenda of the Brazilian Transition
Análisis Reparable e Irreparable: el Concepto Psicoanalítico de Reparación en la Agenda de la Transición Brasileña
Rafael Alves Lima (Universidade de São Paulo)

1
133 Reminiscências da Violência Estatal: A Reparação Psíquica Através de uma Clínica Política
Reminiscences of State Violence: The Psychological Repair Through a Political Clinic
Reminiscencias de la Violencia Estatal: La Reparación Psíquica a Través de una Clínica Política
Natália Centeno Rodrigues (Universidade Federal do Rio Grande), Francisco Quintanilha Véras Neto (Universidade Federal do
Paraná), Rodrigo Fernandes Teixeira (Universidade Federal do Rio Grande)

149 Reparação Psíquica e Testemunho


Psychic Reparation and Testimony
Reparación Psíquica y Testimonio
Alexei Conte Indursky (Universidade Paris VII), Bárbara de Souza Conte (Universidade Autônoma de Madrid)

161 O Ensino Testemunhal entre os Restos da Ditadura: uma Metodologia Ético-política


Testimonial Teaching among the Remains of the Dictatorship: An Ethical-political Methodology
La Enseñanza Testimonial entre los Restos de la Dictadura: una Metodología Ético-política
Helena Pillar Kessler (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Daniel Boianovsky Kveller (Universidade Federal do
Rio Grande do Sul), Marina da Rocha Rodrigues (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Karine Shamash Szuchman
(Universidade Federal do Rio Grande do Sul)

172 A Psicologia e o Discurso Racial sobre o Negro: do “Objeto da Ciência” ao Sujeito Político
Psychology and Racial Discourse on Black People: from “Object of Science” to Political Subject
Psicología y Discurso Racial acerca del Negro: de “Objeto de la Ciencia” a Sujeto Político
Lia Vainer Schucman (Universidade de São Paulo), Hildeberto Vieira Martins (Universidade Federal Fluminense)

186 Parecer Psicossocial da Violência contra os Povos Indígenas Brasileiros: o Caso Reformatório Krenak
The Psychosocial Report of Violence against the Indigenous Brazilian People: The Case of the Krenak Correctional Facility
Informe Psicosocial de la Violencia contra los Pueblos Indígenas Brasileños: el Caso Reformatorio Krenak
Bruno Simões Gonçalves (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro)

197 Práticas Discursivas sobre a Luta pela Terra na Transição Democrática Brasileira
Discursive Practices in the Struggle for Land in the Transition to Democracy in Brazil
Prácticas Discursivas sobre la Lucha por la Tierra en la Transición Democrática Brasileña
Jáder Ferreira Leite (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), Magda Dimenstein (Universidade Federal do Rio Grande do
Norte), Candida Maria Bezerra Dantas (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)

208 Psicologia, Democracia e Laicidade em Tempos de Fundamentalismo Religioso no Brasil


Psychology, Democracy and Laicity in Times of Religious Fundamentalism in Brazil
Psicología, Democracia y Laicidad en Tiempos de Fundamentalismo Religioso en Brasil
Tatiana Lionço (Universidade de Brasília)

224 Psicologia e Democracia em um Cenário de Cidade como Campo em Disputa


Psychology and Democracy in a Scenario of the City as a Disputed Field
Psicología y Democracia en un Escenario de Ciudad como Campo en Disputa
Elisa Martins (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Fhillipe Pereira (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Gabriela Salem
(Universidade Federal do Rio de Janeiro), Lucas Gabriel de Matos Santos (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Roberta
Brasilino Barbosa (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

239 A Ditadura que se Perpetua: Direitos Humanos e a Militarização da Questão Social


The Dictatorship that Remains: Human Rights and the Militarization of the Social Issue
La Dictadura que se Perpetúa: Derechos Humanos y la Militarización de la Cuestión Social
Ana Vládia Holanda Cruz (Faculdade DeVry Fanor), Tatiana Minchoni (Universidade Federal de Santa Catarina), Adriana Eiko
Matsumoto (Universidade Federal Fluminense), Soraya Souza de Andrade (Universidade Federal do Pará)

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 3-10.
https://doi.org/10.1590/1982-3703190002017

Psicologia e Democracia: da Ditadura Civil-Militar


às Lutas pela Democratização do Presente

Psychology and Democracy: from the Civil-Military Dictatorship


to the Struggles for the Democratization of the Present

Psicología y Democracia: de la Dictadura Civil-Militar a


las Luchas por la Democratización del Presente

Domenico Uhng Hur Fernando Lacerda Júnior


Universidade Federal de Goiás, GO, Brasil. Universidade Federal de Goiás, GO, Brasil.

Psicologia e política
O Conselho Federal de Psicologia (CFP) é uma autarquia de Estado que orienta e fiscaliza
a profissão do(a) psicólogo(a). Mas não atua apenas pela melhoria do exercício profissional.
Desde o início da década de 1980, o CFP e o Sistema-Conselhos de Psicologia perceberam que
suas práticas não devem ficar restritas à normatização do exercício profissional e das técnicas
psicológicas. Também devem atingir as questões sociais e políticas do país, tendo em vista a luta
pela democratização dos processos sociais e políticos. Nos anos 1980, o CFP lutou pelos direitos
humanos e pela democracia, equidade e igualdade, participando das mobilizações das “Diretas
Já” e da “Constituição cidadã” (Hur, 2012). Na década de 1990, fomentou o lema da “Psicologia e
o compromisso social”. Desde os anos 2000, adotou como bandeira a atuação da Psicologia nas
políticas públicas. Esses posicionamentos e práticas resultaram na constituição de uma Psico-
logia plural e múltipla, que se exerce em inúmeros campos de trabalho, que tem um lugar de
destaque nas políticas sociais e que assume um compromisso pela mudança e transformação
psicossocial. Por exemplo, se compararmos o Brasil com outros países da América Latina, tere-
mos uma porcentagem muito maior de psicólogas(os) contratadas(os) pelas diversas políticas
públicas e que exercem atividades que vão além da clínica tradicional.
Deste modo, constata-se que o CFP assume posicionamento e práticas que visam a produ-
ção de uma sociedade mais igualitária, justa e democrática e, por conseguinte, com menor sofri-
mento psicossocial. Portanto, pode-se afirmar que suas ações são eminentemente políticas.
Por política não aludimos apenas ao que aparece no Poder Executivo, no Congresso Nacio-
nal, às práticas de corrupção ou outros dissabores que são transmitidos pelos meios de comuni-
cação. Política refere-se às práticas de gestão da vida no espaço da polis, da cidade. Refere-se às
relações incessantes de poder e de forças que são exercidas a todo momento nos espaços sociais
e que têm como finalidade a gestão da vida (Hur, 2013). Compreende-se que o CFP, em suas prá-
ticas, sempre está exercendo relações de forças para a gestão da vida, isto é sempre está atuando
politicamente, seja no âmbito da normatização da profissão, ou das lutas sociais.
No que tange à relação entre Psicologia e política, não só o CFP assume posicionamentos
políticos, como também a própria Instituição Psicologia, seus saberes, dispositivos técnicos de
intervenção e seus atores sociais (psicólogas[os]). Pois suas práticas sempre estão posiciona-
das social-historicamente e exercem relações de forças que culminam na gestão da vida, tanto
individual, como social. É inegável que a atuação do psicólogo no Sistema Único de Assistência
Social (SUAS) exerce relações de forças que podem transformar a vida da comunidade. É inegá-
vel que a atividade do psicólogo no seu consultório privado, ou mesmo um psicodiagnóstico,
altera as relações de forças de um indivíduo consigo próprio e com seu entorno, no qual ele

Disponível em www.scielo.br/pcp
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 3-10.

pode reconfigurar e assumir não só um novo posicio- nentes. Portanto, apreender a memória e o passado é
namento existencial, mas também político, porque se a produção de um futuro e de devires, e não de algo
atualizam ali novas relações de forças e desejantes. que já passou e que está concluído. A construção da
Assim, as práticas da Psicologia sempre exercem for- memória está em disputa, em conflito (Ansara, 2008;
ças que atuam na gestão da vida e da subjetividade. Dobles, 2009), principalmente no que se refere aos
Assumem um posicionamento político que pode inci- episódios de violência do Estado.
tar processos de autonomia e desejantes, ou mesmo Dentre muitas obras da Psicologia sobre o tema
processos cerceadores e de bloqueio da vida. Podem que tiveram maior profusão na década de 1990,
estar implicadas com a emancipação e transforma- citamos apenas algumas publicadas no cone sul.
ção, mas também com o seu reverso, seja a captura Na Argentina, Janine Puget (Puget, 2000; Puget, &
pelas estigmatizações e disciplinarizações, a opressão Kaës, 1991) dedicou-se aos estudos e intervenções
da violência de Estado, a exclusão promovida pelo sobre os efeitos psíquicos e na memória da violên-
neoliberalismo etc. Então, mesmo que parte das(os) cia de Estado; no Chile, a equipe de Elizabeth Lira
psicólogas(os) tenha dificuldades em vislumbrar o (Lira, Weinstein & Kovalskys, 1987; Lira, & Piper, 1997)
caráter político de suas práticas profissionais, suas produziu extensa obra a partir dos milhares de aten-
relações de forças e efeitos, sempre há produção de dimento que realizaram; no Uruguai, o trabalho do
regimes de poder em suas intervenções profissionais. casal Marcelo e Maren Viñar é referência para o estudo
Não há neutralidade nas práticas psicológicas e, tam- psicanalítico sobre a tortura, a violência e seus efeitos
pouco, nas científicas: há uma microfísica das rela- subjetivos (Viñar, 1992; Viñar, 1997). Já no Brasil, tra-
ções de poder em todos os espaços e práticas sociais. balhos seminais sobre o tema, e imprescindíveis para
Aqui vale citar uma máxima bastante emitida pelo a área, são os livros de Naffah Neto (1985), sobre as
Prof. Pedrinho Guareschi em suas conferências: “Se situações de tortura, de Arantes (1994), sobre psica-
ignoramos a política, nos tornamos vítima dela”. nálise e clandestinidade política e de Coimbra (1995),
que faz uma análise pormenorizada sobre as práticas
Psicologia e ditadura civil-militar da Psicologia no período da ditadura civil-militar. A
No Brasil e na América Latina, a produção acadê- professora Cecília Coimbra se tornou a maior referên-
mica da Psicologia investigou os efeitos da violência cia no país nas discussões sobre a Psicologia, ditadura
de Estado e do regime de opressão das ditaduras que e violência de Estado, tanto por sua produção aca-
se deflagraram nas décadas de 1960 e 1970. Estes estu- dêmica, como por sua intensa participação política.
dos não tiveram apenas finalidades psicoterápicas, de A fundadora do “Movimento Tortura Nunca Mais”
elaborar o trauma sofrido diretamente pelas vítimas não apenas investigou a violência do passado, como
do regime de exceção, mas também finalidades políti- também as opressões que se atualizam hoje em dia,
cas, de produzir novas narrativas sobre o que ocorreu, por exemplo, os abusos da violência policial-estatal.
diferente da versão da “história oficial”. Os discursos Seguramente podemos afirmar que todas(os) as(os)
sobre a memória são uma forma de elaboração dos autoras(os) presentes nesse número temático foram
horrores que se viveu, seja no Holocausto, ou nas inspiradas(os) por sua obra e palestras magistrais.
ditaduras latino-americanas (Huyssen, 2002), e que Em 2013, com a finalidade de ampliar a produção
visam a produção de uma “contra-história” (Foucault, de pesquisas e textos que analisam a ditadura civil-mili-
1999), na qual não se heroiciza os agressores e não se tar no Brasil, o CFP, em parceria com a Comissão Nacio-
culpabiliza as vítimas, tal como ocorreu no discurso nal de Direitos Humanos (CNDH), organizou o “Prêmio
oficial no Brasil. A elaboração da memória e de histó- de Psicologia e Direitos Humanos: ditadura civil-militar
rias alternativas não é algo que fica estanque no pas- e repercussão sobre a Psicologia como Ciência e Profis-
sado, senão é uma produção incessante do presente são”. Buscou-se estimular análises problematizando o
(Vázquez, 2001), que conforma realidades e formas de regime autocrático e as possíveis implicações sobre a
ser que pavimentam um caminho para um futuro a se Psicologia. Foram recebidos 52 artigos de profissionais
construir. A atividade mnemônica é uma cartografia, e estudantes de todo o Brasil. Com isso, ficou claro que
em que seu método, como diria Deleuze (1997), não há muitas psicólogas(os) interessadas(os) em discutir
é o de escavar para encontrar a tumba do faraó, mas criticamente a história do regime autocrático e suas
de acompanhar os movimentos de deriva dos conti- reminiscências no Brasil. Vale ressaltar que na data de

4
Hur, Domenico; Lacerda, Fernando Jr. (2017). Psicologia e Democracia.

premiação dos artigos vencedores, o CFP (2013) publi- ramos que a luta pelos direitos humanos e contra a
cou o livro “A verdade é revolucionária: testemunhos e exploração e opressões não é algo que ficou no pas-
memórias de psicólogas e psicólogos sobre a ditadura sado, mas sim que se atualiza com os desafios colo-
civil-militar brasileira (1964–1985)”, que contém as nar- cados pelo presente. Atualizar a memória histórica
rativas de dezenas de psicólogas(os) de todo o país que das duras experiências da ditadura civil-militar se
vivenciaram o período de exceção. torna uma tarefa importante, na qual urge visibilizar
Infelizmente, as violências retratadas no perí- e transmitir as produções de psicólogas(os) sobre as
odo da ditadura civil-militar não ficaram restritas ao implicações ético-políticas da Psicologia relacionadas
passado. As opressões, os ataques à democracia e aos a este difícil momento histórico-social e suas lutas
direitos sociais ocorrem a todo momento, atingindo pela democratização do país. Dessa forma, a “Revista
outro ápice na atualidade. A efetivação de mais um Psicologia: Ciência e Profissão” apresenta o número
golpe político em 2016 (neste caso, parlamentar), a especial “Psicologia e democracia” para aglutinar
implementação acelerada de um programa de aus- e visibilizar essa produção. Consideramos que este
teridade que penaliza trabalhadoras(es) e as classes volume é um marco histórico na Psicologia brasileira,
mais pobres, os aprisionamentos políticos arbitrá- pois é a primeira vez que um periódico acadêmico da
rios, o desrespeito do Judiciário a uma de nossas mais Psicologia no país dedica integralmente um número
caras resoluções (Resolução CFP no 01/1999 – Conse- temático para a discussão de sua relação com a dita-
lho Federal de Psicologia, 1999), e a censura a expo- dura civil-militar1.
sições artísticas etc. denotam o recrudescimento de Busca-se apresentar análises sobre como a dita-
posições conservadoras, coercitivas da vida e que dura civil-militar teve repercussões sobre a Psicolo-
prejudicam as maiorias sociais e as liberdades de se gia como Ciência e Profissão, bem como a Psicologia
expressar e de ser. contribuiu ou pode contribuir nas lutas emancipató-
A conjuntura atual sinaliza como a defesa da rias pela democracia no Brasil e na América Latina.
democracia é parte constituinte das lutas para a manu- O tema deste número temático é ousado, pois apre-
tenção de direitos sociais e a criação de melhores condi- ende a Psicologia não apenas como conjunto de sabe-
ções sociais e políticas para a classe trabalhadora, que é res ou dispositivos técnicos de intervenção, mas no
a maior parte da população brasileira. No ano de 2017, seu compromisso enquanto Instituição social para a
durante as manifestações que ocorreram no Distrito constituição de uma sociedade mais justa e democrá-
Federal contra as reformas da previdência e trabalhista, tica. Discute não apenas sua atuação profissional, mas
o Exército foi utilizado para reprimir violentamente sua implicação nas distintas relações de poder sociais,
manifestações pacíficas de dezenas de milhares de ou seja, a função política da Psicologia na história
pessoas. O fato do governo de Michel Temer mobilizar brasileira. De certa forma também se coloca a Psico-
o Exército para reprimir pessoas que, legitimamente, logia no “banco dos réus”, para analisar suas implica-
lutavam contra a corrupção, em favor de eleições ções com os processos políticos do país, se realmente
diretas e por direitos sociais, mostra a importância de esteve a serviço da democracia, ou se pode ter tido
entendermos as razões pelas quais a democracia ainda alguma relação com a opressão do período ditatorial.
é tão frágil no Brasil. Isso significa olhar para nossa his- Infelizmente os estudos sobre a Instituição Psicologia
tória e o presente criticamente e buscar perceber o que no Brasil nos mostram que houve casos, não isolados,
restou da ditadura civil-militar. Percebe-se que há uma de contribuição para as práticas políticas opressivas
estreita relação entre o que permanece da ditadura no no período da ditadura, e que podem estar sendo rea-
processo de redemocratização e as recentes manifesta- tualizados até os dias de hoje.
ções de parte da sociedade brasileira. Neste número temático, recebemos 34 propos-
Deste modo, a discussão sobre a função política tas. A triagem seguiu os mesmos padrões usuais para
da Psicologia torna-se ainda mais relevante em face a seleção e avaliação de artigos para dossiês temáti-
do atual quadro macropolítico enfrentado. Conside- cos em revistas científicas. Após análise da adequa-

1
Vale citar que a Revista Psicologia Política organizou em 2015 um dossiê com temática próxima, sobre “O impacto psicossocial das
Comissões da verdade e outros processos de justiça de transição em países de América Latina”. No entanto, diferentemente de nosso
número temático, não contou com nenhum trabalho sobre o ocorrido no Brasil e seus cinco artigos focalizaram as experiências das
Comissões da Verdade da Argentina, Equador, Paraguai, Peru e Uruguai (Páez, Espinosa, & Beristain, 2015).

5
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 3-10.

ção dos manuscritos ao tema deste número especial, logia, a Psicologia da Libertação, e como transformou
enviamos os trabalhos para avaliação por pareceristas as formas de participação política dos sujeitos que
ad hoc, doutores especialistas na área e com reconhe- aderiram a práticas radicais de luta política.
cida trajetória científica no tema do artigo. O sistema Em “Luta armada na Psicologia: prática de classe
utilizado foi o da “avaliação cega”, na qual os parece- contra o terrorismo de estado”, Juberto Antonio Mas-
ristas desconhecem a identidade do(a) autor(a) e vice- sud de Souza e Ana Maria Jacó-Vilela, da Universidade
-versa. Foram aprovados dezessete artigos de autores Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), resgatam as traje-
de todas as regiões do país e um do México. Dentre tórias de estudantes e profissionais da Psicologia que
eles também constam cinco artigos vencedores do participaram diretamente de organizações políticas
prêmio “Psicologia e Direitos Humanos: ditadura que adotaram a luta armada como tática de combate
civil-militar e repercussão sobre a Psicologia como à ditadura civil-militar. Ao demonstrarem que exis-
ciência e profissão2” de 2013. tiam estudantes, psicólogas e psicólogos que colo-
Dentre a variedade de temáticas dos diversos caram suas vidas em risco ou até mesmo morreram
artigos, agrupamos em quatro tópicos: a) Práticas e defendendo uma sociedade igualitária e democrática,
políticas da Psicologia na ditadura civil-militar; b) Psi- os autores argumentam que a Psicologia não foi ape-
canálise e testemunhos: clínica e política; c) Psicolo- nas um poço de práticas conservadoras e defendem
gia e os movimentos de raça, etnia e sociais e d) Desa- a ideia de que as ações e os sacrifícios dos exemplos
fios para a democratização do presente. de luta citados no artigo podem ter contribuído para
impulsionar debates e problematizações sobre as
Práticas e políticas da Psicologia políticas da Psicologia no Brasil.
na ditadura civil-militar Filipe Boechat, da Universidade Federal de Goiás
Neste primeiro tópico agrupamos os artigos que (UFG), em “A Psicologia brasileira nos ciclos democrá-
se referem diretamente à reconstrução da memória tico-nacional e democrático-popular”, assume a tese
e das narrativas no período da ditadura civil-militar. de que a história da Psicologia como ciência e profis-
Os trabalhos versam sobre a relação entre as práticas e são no Brasil não pode ser compreendida de forma
políticas da Psicologia no período de exceção. separada da história da formação social brasileira.
Em “Psicología y destrucción del psiquismo: la uti- Dessa forma, problematiza as diferentes propostas de
lización profesional del conocimiento psicológico para Psicologia que emergiram em dois períodos específi-
la tortura de presos políticos”, David Pavón-Cuellar, cos da sociedade brasileira. Mostra como a concepção
da Universidad Michoacana de San Nicolás de Hidalgo “tradicional” de Psicologia que predominou nas pri-
(UMSNH – México), analisa a utilização da Psicologia meiras décadas após a regulamentação da profissão
para a tortura de presos políticos no mundo e espe- esteve estreitamente relacionada com as necessida-
cialmente na América Latina. Centra-se em casos des dos aparelhos ideológicos do ciclo democrático-
ocorridos no México, Uruguai, Chile e Brasil, além de -nacional da sociedade brasileira. O autor também
tecer considerações acerca do recente debate sobre elabora importante crítica sobre os limites do tipo de
os psicólogos torturadores da American Psychological “Psicologia Crítica”, que se tornou hegemônica após o
Association, dos Estados Unidos. processo de democratização da sociedade brasileira e
Domenico Uhng Hur e Fernando Lacerda Júnior, destaca sua estreita articulação com os aparelhos ide-
da Universidade Federal de Goiás (UFG), em “Dita- ológicos típicos do ciclo democrático-popular.
dura e insurgência na América Latina: Psicologia da Em “O fazer psicológico no período da ditadura
Libertação e resistência armada” discutem como a luta civil-militar”, Ana Maria Batista Correia, da Universi-
insurgente de ex-guerrilheiros brasileiros e um das dade Federal do Piauí (UFPI), e Carla Náyad Castelo
FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) Branco Dantas, do Instituto Dom Barreto, discutem
contra o terrorismo de Estado no Brasil e na América as práticas da Psicologia no período da ditadura
Latina resultou na produção de novas ideias na Psico- civil-militar questionando se esta estava a serviço do

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Os artigos premiados já estavam pré-aprovados, mas também foram avaliados pelos mesmos critérios, passando por reformulações
para se adequar ao formato da Revista. Na categoria profissional foram os de Hur & Lacerda Jr. (2017), Jardim (2017) e Correia & Dantas
(2017). Os da categoria estudante foram os de Silva (2017) e Furlan (2017). A outra autora premiada na categoria estudante não submeteu
seu artigo para este número temático.

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Hur, Domenico; Lacerda, Fernando Jr. (2017). Psicologia e Democracia.

regime de opressão ou da sociedade. Para realizar tal Rafael Alves Lima, da Universidade de São Paulo
reflexão, utilizam a perspectiva do psicólogo da liber- (USP), em “Análise reparável e irreparável: o conceito
tação Ignácio Martín-Baró. psicanalítico de reparação na agenda da Transição bra-
Fabiola Figueirêdo da Silva, da Universidade sileira”, nos brinda com um importante arcabouço teó-
Federal de São Paulo (Unifesp), em “Psicologia no rico ao discutir o conceito de reparação em distintas tra-
contexto da ditadura civil-militar e ressonâncias na dições teóricas da psicanálise. Fornece-nos importante
contemporaneidade”, busca refletir sobre a relação material para a escuta de testemunhos de elaboração do
entre as práticas da Psicologia e suas entidades da passado, que insistem e persistem no presente.
classe profissional com a ditadura civil-militar. Res- Em “Reminiscências da violência estatal: a repa-
salta a importância de uma Psicologia ética e compro- ração psíquica através de uma Clínica Política”, Natália
metida socialmente com a realidade vivida. Centeno Rodrigues, Francisco Quintanilha Véras Neto
Em “Psicologia e a política de direitos: percursos e Rodrigo Fernandes Teixeira, da Universidade Federal
de uma relação”, Vinicius Furlan, da Pontifícia Univer- do Rio Grande (FURG), discorrem sobre o processo de
sidade Católica de São Paulo (PUC-SP), discute a rela- transição da ditadura civil-militar para a democracia.
ção da Psicologia com as políticas de direito nos perío- Focalizam as práticas reparatórias adotadas e a consti-
dos da ditadura civil-militar e da atualidade. Perscruta tuição do projeto responsável por fornecer a reparação
diferentes práticas que mostram como a Psicologia psíquica, o supracitado Clínicas do Testemunho.
assume práticas mais progressistas, ao mesmo tempo Já Alexei Conte Indursky e Bárbara de Souza Conte,
em que há uma série de desafios diante da profissão. da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Instituto
Fazendo a transição com o presente, Luis Edu- Appoa), em “Reparação psíquica e testemunho”, deba-
ardo Franção Jardim, da Universidade de São Paulo tem a implementação do Projeto Clínicas do Testemu-
(USP), em “Psicologia Social e pesquisa com memó- nho, focalizando a experiência do dispositivo “Grupo de
ria: método e reparação de danos da ditadura testemunho”, enquanto uma via clínico-política nas polí-
civil-militar”, discute as marcas que a ditadura civil- ticas de reparação. Além dos processos psicoterápicos,
-militar deixou na memória coletiva e individual. focalizam também as políticas da reparação psíquica.
Apresenta o Clínicas do Testemunho e a Comissão da Em “O ensino testemunhal entre os restos da
Verdade como práticas de justiça transicional e nos ditadura: uma metodologia ético-política”, Helena
brinda com uma proposta metodológica de pesquisa Pillar Kessler, Daniel Boianovsky Kveller, Marina
com a memória a partir da Psicologia Social, que tam- da Rocha Rodrigues e Karine Shamash Szuchman,
bém pode contribuir neste processo. da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), narram a experiência de uma disciplina de
graduação que focalizou o que permanece da ditadura
Psicanálise e testemunhos: clínica e política
entre nós. Trauma, testemunho e crise foram concei-
A psicanálise foi um dos principais dispositivos
tos cruciais utilizados para refletir sobre o ocorrido.
teórico-clínicos utilizados para elaborar os traumas
e marcas da violência de Estado na América Latina.
Os psicanalistas não se limitaram ao exercício téc- Psicologia e os movimentos
nico, mas também assumiram posicionamentos polí- de raça, etnia e sociais
ticos em relação às ditaduras em nosso continente. Neste tópico apresentam-se os trabalhos rela-
Citamos como um exemplo inspirador as práticas cionados a movimentos sociais, raciais e étnicos rela-
do Grupo Plataforma, dissidência da Associação Psi- cionados aos impactos da ditadura civil-militar. São
canalítica Argentina. Devido ao seu aguerrido e crí- abordadas as discussões sobre o negro, os indígenas e
tico posicionamento, foi perseguido politicamente e o maior movimento social latino-americano, o Movi-
muitos dos seus integrantes tiveram que se exilar em mento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).
outros países (Rodrigues, Fernandes & Duarte, 2001). Lia Vainer Schucman, da Universidade de São
Os artigos aqui apresentados referem-se às investi- Paulo (USP), e Hildeberto Martins, da Universidade
gações psicanalíticas sobre os processos de escuta e Federal Fluminense (UFF), em “A Psicologia e o dis-
construção das narrativas, em grande parte ampa- curso racial sobre o negro: do ‘objeto da ciência’ ao
rados no projeto de reparação e justiça transicional sujeito político”, discutem como se modificaram as
denominado de “Clínicas do testemunho”. apreensões da Psicologia sobre os estudos raciais,

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 3-10.

desde o início do século XX até o período pós-redemo- Fhillipe Pereira, Gabriela Salem, Lucas Gabriel de
cratização do país. Há um deslocamento de sentidos, Matos Santos e Roberta Brasilino Barbosa, da Univer-
no qual outrora a Psicologia abordava o negro como sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), nos mostram
objeto, mas, seguindo a atualização de forças progres- a necessidade de práticas que visam democratizar o
sistas da abertura política, tomou-se as questões raciais espaço urbano da cidade, bem como a subjetividade.
a partir de um enfoque crítico e politizado, no qual este Por meio de variados dispositivos coletivos de inter-
emerge como protagonista e importante ator social. venção no Rio de Janeiro discutem o papel da Psico-
Em “Parecer psicossocial da violência contra os logia para os processos de democratização de uma
povos indígenas brasileiros: o caso Reformatório Kre- cidade que constantemente nos vem sendo subtraída.
nak”, Bruno Simões Gonçalves, da Universidade Fede- Ana Vládia Holanda Cruz, da Faculdade DeVry
ral Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), analisa algo pouco Fanor (Fortaleza/CE), Tatiana Minchoni, da Universi-
presente nos estudos tradicionais sobre a ditadura-civil dade Federal de Santa Catarina (UFSC), Adriana Eiko
militar: a violência estatal policial contra indígenas. Matsumoto, da Universidade Federal Fluminense
Através de análise documental, viagem de campo e 23 (UFF – Volta Redonda) e Soraya Souza de Andrade,
entrevistas, o autor investigou o centro de detenção de da Universidade Federal do Pará (UFPA), em “A dita-
indígenas que ficou conhecido como “Reformatório dura que se perpetua: direitos humanos e a militari-
Krenak”, que funcionou entre 1969 e 1973. zação da questão social”, discutem como a violência
Em “Práticas discursivas sobre a luta pela terra da ditadura se perpetua no presente nas práticas de
na transição democrática brasileira”, Jáder Ferreira militarização do contemporâneo. A partir da Crimi-
Leite, Magda Dimenstein e Candida Maria Bezerra nologia Crítica refletem sobre a construção da figura
Dantas, da Universidade Federal do Rio Grande do do delinquente como inimigo interno, assim como da
Norte (UFRN), narram o acontecimento do I Con- função dos processos de criminalização.
gresso Nacional do Movimento de Trabalhadores
Sem Terra (MST). Ressaltam a relação do MST e da
Um convite
Comissão da Pastoral da Terra (CPT) com a reaber-
A abertura de um espaço para discutir a democra-
tura política no país.
cia na Revista Psicologia: Ciência e Profissão significa
que as(os) psicólogas(os) não podem ficar alheias(os)
Desafios para a democratização do presente aos principais acontecimentos sociais e políticos que
A luta pela democracia é algo que se constrói e fraturam a sociedade brasileira. Pensamos que, além
se faz no presente. Neste último tópico, contamos da discussão das implicações da Psicologia na transi-
com artigos que refletem sobre o papel da Psicologia ção da ditadura à democracia, a leitura desse número
nas lutas contemporâneas, como pela laicidade, pela temático consiga incitar as(os) psicólogas(os) a fazer
democratização da cidade e na luta contra a militari- uma autoanálise de suas práticas profissionais, para
zação do contemporâneo. refletirem sobre que regimes de poder estão sendo
O artigo de Tatiana Lionço, da Universidade de fomentados e reproduzidos. As questões que se colo-
Brasília (UnB), traz discussão extremamente relevante cam são: Suas práticas incitam processos de poten-
e atual pela qual a Psicologia passa e que foi recen- cialização da vida e desejantes, ou opressores, nor-
temente visibilizada pela mídia do mundo inteiro. matizadores e despotencializadores? Favorecem as
Em “Psicologia, democracia e laicidade em tempos minorias privilegiadas ou as maiorias desfavorecidas
de fundamentalismo religioso no Brasil”, a autora socialmente? Beneficiam o chefe, o empresário, ou os
defende a importância da laicidade para práticas trabalhadores? Fomentam relações democráticas ou
democráticas e sociais na Psicologia. Neste contexto, autoritárias? Então, primeiramente, o(a) psicólogo(a)
analisa a ofensiva dos fundamentalismos religiosos e deve se apropriar dos efeitos políticos de suas práticas
a denominada “Psicologia Cristã” contra normativas profissionais. Tendo essa clareza, cremos que poderá
da profissão, tal como a Resolução CFP no 01/1999. contribuir de forma mais explícita para a produção de
Destaca, assim, as práticas e lutas do CFP em defesa relações mais humanitárias, solidárias e de democrati-
da laicidade e de um exercício ético na Psicologia. zação nos distintos espaços institucionais. Os desafios
Em “Psicologia e democracia em um cenário enfrentados são tamanhos que não devemos nos per-
de cidade como campo em disputa”, Elisa Martins, der em conflitos personalistas e de manutenção das

8
Hur, Domenico; Lacerda, Fernando Jr. (2017). Psicologia e Democracia.

hierarquias e lugares de poder instituídos. A demo- Psicologia brasileira mais crítica e comprometida com
cracia é uma prática coletiva que está em permanente a vida e as minorias sociais (que são as maiorias do
construção. Defendê-la significa colocar a Psicologia ponto de vista numérico). Dentre tantas(os) psicólo-
ao lado da maior parte da população, ao lado daque- gas(os), agradecemos o conselheiro Pedro Paulo Bica-
las(es) que estão lutando por uma vida justa e digna. lho, que, além de ser militante de direitos humanos,
Então, acreditamos que este número temático irá construiu conosco a ideia deste número temático e
contribuir para consolidar uma reflexão permanente a Editora da Revista Psicologia: Ciência e Profissão,
e relevante sobre a função, o papel e as implicações da Professora Neuza Guareschi, que acolheu entusias-
Psicologia na construção da história de um país, e de ticamente esta proposta. Também não podemos
outros mundos possíveis, diferentes das opressões e esquecer o trabalho e empenho dos pareceristas, pro-
microfascismos que vemos emergir. fessores(as) e pesquisadores(as) de importantes Uni-
Para finalizar, gostaríamos de agradecer os ple- versidades do país, que mesmo estando com a agenda
nários do CFP e do Sistema-Conselhos de Psicologia, lotada, contribuíram com as avaliações dos artigos
que, desde a década de 1980, vêm construindo uma em tempo recorde.

Referências

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Fernando Lacerda Júnior


Graduado e doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas – SP. Brasil.
Professor adjunto de graduação e pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Goiás, Goiânia – GO.
Brasil. Ex-presidente da Associação Brasileira de Psicologia Política (2014–2016).
E-mail: fernando_lac@yahoo.com.br

Domenico Uhng Hur


Graduado, mestre e doutor em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo. Professor adjunto de graduação
e pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Goiás, Goiânia – GO. Brasil. Editor da Associação
Ibero-latino-americana de Psicologia Política (2016–2018). Atualmente realiza pós-doutorado na Universidade de
Santiago de Compostela, Espanha.
E-mail: domenicohur@hotmail.com

Ambos são organizadores e coautores de sete livros e dezenas de artigos científicos nas áreas de Psicologia Social
e Psicologia Política.

Como citar: Hur, D.U., & Lacerda Júnior, F. (2017). Psicologia e democracia: da ditadura civil-militar
às lutas pela democratização do presente. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 3-10.
https://doi.org/10.1590/1982-3703190002017

How to cite: Hur, D.U., & Lacerda Júnior, F. (2017). Psychology and Democracy: from the Civil-Military
Dictatorship to the Struggles for the Democratization of the Present. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 1-8.
https://doi.org/10.1590/1982-3703190002017

Cómo citar: Hur, D.U., & Lacerda Júnior, F. (2017). Psicología y Democracia: de la Dictadura Civil-Militar
a las Luchas por la Democratización del Presente. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 1-8.
https://doi.org/10.1590/1982-3703190002017

10
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 11-27.
https://doi.org/10.1590/1982-3703010002017

Psicología y Destrucción del Psiquismo: La Utilización Profesional


del Conocimiento Psicológico para la Tortura de Presos Políticos

David Pavón-Cuéllar
Universidad Michoacana de San Nicolás de Hidalgo, México.

Resumen: El artículo aborda el tema de la utilización de la Psicología para la tortura de presos


políticos en el mundo y especialmente en América Latina. Primero se incursiona en el reciente
debate sobre los psicólogos torturadores de los Estados Unidos. Luego se recuerdan los
precedentes del empleo de la Psicología para torturar en la Alemania nazi, la España franquista,
la represión colonial francesa en Argelia y la estrategia militar estadounidense durante la Guerra
Fría. La consideración de tales precedentes y del reciente debate en los Estados Unidos permite
llegar a una representación general de la forma en que la Psicología opera en la tortura como
forma de supresión y desintegración del psiquismo. Esta representación general guía un análisis
de los casos de cuatro profesionales de la salud mental que pusieron sus profesiones al servicio
de regímenes autoritarios latinoamericanos para torturar a presos políticos entre los años 60 y
70 del siglo XX: el psiquiatra mexicano Salvador Roquet, el psicoanalista brasileño Amílcar Lobo
Moreira, el psicólogo uruguayo Dolcey Brito y el psicólogo chileno Hernán Tuane.
Palabras clave: Dictadura, Tortura, Psicología, Psicoanálisis, Psiquiatría.

Psicologia e Destruição do Psiquismo: a Utilização Profissional do


Conhecimento Psicológico para a Tortura de Presos Políticos

Resumo: O artigo aborda o tema da utilização da Psicologia para a tortura de presos políticos
no mundo e especialmente na América Latina. Primeiro discorre-se acerca do recente debate
sobre os psicólogos torturadores dos Estados Unidos. Logo recorda-se os precedentes do
emprego da Psicologia para torturar na Alemanha nazista, na Espanha franquista, na repressão
colonial francesa na Argélia e na estratégia militar estadunidense durante a Guerra Fria. A
consideração de tais precedentes e do recente debate nos Estados Unidos permite chegar a uma
representação geral da forma com que a Psicologia opera na tortura como forma de supressão
e desintegração do psiquismo. Esta representação geral guia uma análise dos casos de quatro
profissionais de saúde mental que colocaram suas profissões ao serviço de regimes autoritários
latino-americanos para torturar presos políticos entre os anos 60 e 70 do século XX: o psiquiatra
mexicano Salvador Roquet, o psicanalista brasileiro Amílcar Lobo Moreira, o psicólogo uruguaio
Dolcey Brito e o psicólogo chileno Hernán Tuane.
Palavras-chave: Ditadura, Tortura, Psicologia, Psicanálise, Psiquiatria.

Disponível em www.scielo.br/pcp
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 11-27.

Psychology and Destruction of the Psyche: the Professional use of


Psychological Knowledge for Torture of Political Prisoners

Abstract: This article addresses the issue of the use of Psychology for the torture of political
prisoners in the world and especially in Latin America. First, it examines the recent debate on
psychologists involved in torture in the United States. Then it reminds the precedents of the
use of Psychology to torture in Nazi Germany, Francoist Spain, French colonial repression in
Algeria and US military strategy during the Cold War. The consideration of such precedents and
the recent debate in the United States allows arriving at a general representation of the way in
which Psychology operates in torture understood as a form of suppression and disintegration
of the psyche. This general representation guides an analysis of the cases of four mental health
professionals who put their professions at the service of Latin American authoritarian regimes
to torture political prisoners between the 1960s and 1970s: the Mexican psychiatrist Salvador
Roquet, the Brazilian psychoanalyst Amílcar Lobo Moreira, the Uruguayan psychologist Dolcey
Brito and the Chilean psychologist Hernán Tuane.
Keywords: Dictatorship, Torture, Psychology, Psychoanalysis, Psychiatry.

Introducción víctima (Viki, Osgood, & Phillips, 2013) y la personalidad


Al ocuparse de la relación entre la Psicología y la autoritaria y socialmente dominante (Lindén, Björklund,
tortura, Suedfeld (1990) la concibió a través de tres & Bäckström, 2016). En lo concerniente al tratamiento
posibles roles del psicólogo: el de torturado, el de tor- psicológico, psicoterapéutico y psicosocial de los efec-
turador y el de agente externo que intenta compren- tos de la tortura, tenemos valiosas propuestas generales
der la tortura y tratar sus efectos en sus víctimas. Este (v.g. Gorman, 2001; Pope, & Garcia-Peltoniemi, 1991;
último rol, el más natural según Suedfeld, es efectiva- Wilson y Drozdek, 2004) y evaluaciones de las propues-
mente el que suelen desempeñar los psicólogos en la tas (v.g. Campbell, 2007; Patel, Willias, & Kellezi, 2016),
variada literatura científica y académica sobre el tema. así como testimonios de intervenciones que se han
En sus reflexiones e investigaciones sobre la tortura, realizado, por ejemplo, entre exiliados sudamericanos
los profesionales de la Psicología no aparecen gene- en Bélgica (González-Bermejo, 1979), entre víctimas de
ralmente ni como víctimas ni como verdugos, sino la represión política en Chile (Lira, & Weinstein, 1984)
como especialistas o como sanadores, como quienes y Guatemala (Hanscom, 2001), entre palestinos en Gaza
comprenden o como quienes tratan. (Qouta, & El-Sarraj, 2002), entre los refugiados tibetanos
En lo que se refiere a la comprensión psicológica en la India (Ketzer, & Crescenzi, 2002) y entre víctimas
de la tortura, se han considerado factores tan disí- de opositores maoístas y de fuerzas represivas guber-
miles como el poder de la situación (Haney, Banks, namentales en Nepal (Van Ommeren, Sharma, Prasain,
& Zimbardo, 1973), la obediencia a la autoridad por & Poudyal, 2002).
parte del torturador (Milgram, 1974), los mecanismos Además de hacer lo que suelen hacer, compren-
defensivos internos del propio torturador y el papel der y tratar los efectos de la tortura, puede ocurrir que
externo de la dominación y de las contradicciones los profesionales de la Psicología, siguiendo la dis-
sociales (Bendfeldt-Zachrisson, 1988), una hipotética tinción de Suedfeld, sean ellos mismos torturados o
destructividad humana extrema (Staub, 1990), diver- torturadores. El primer caso, ya estudiado en contex-
sos aspectos contextuales e ideológicos (Dobles, 1990), tos como el brasileño (Carvalho, 2013) y el argentino
la influencia de los contextos sociales y de las presiones (Carpintero, & Vainer, 2005), pone a los psicólogos en
y prejuicios también sociales (Fiske, Harris, & Cuddy, la situación de cualquier víctima de tortura y quizás
2004), la falsa creencia popular en la eficacia de la tor- tan solo resulte significativo para la Psicología por lo
tura (Janoff-Bulman, 2007), la deshumanización de la que nos enseña sobre su historia, sobre su lugar en la

12
Pavón-Cuéllar, David (2017). Psicología y Destrucción del Psiquismo.

sociedad y sobre los riesgos de algunas formas de ejer- rios latinoamericanos para torturar a presos políticos
cicio profesional. En cuanto al segundo caso, el de los entre los años 60 y 70 del siglo XX: primero el psiquia-
psicólogos como quienes torturan o contribuyen de tra mexicano Salvador Roquet, al que le dedicaremos
algún modo a torturar, tiene obviamente una gran sig- una sección completa por ser el primero en el tiempo
nificación para la Psicología, pero significativamente y el menos conocido, y luego el psicoanalista brasileño
ha sido muy poco abordado en décadas anteriores, Amílcar Lobo Moreira, el psicólogo uruguayo Dolcey
con la excepción de unos pocos estudios generales, Brito y el psicólogo chileno Hernán Tuane, de los que
como el clásico de Suedfeld (1990), y otros circunscri- nos ocuparemos brevemente.
tos a contextos particulares como el latinoamericano Los casos mencionados no podrán analizarse
(v.g. Riquelme, 2004). aquí de modo amplio y exhaustivo. Tendremos que
El desinterés por el tema es desconcertante ser muy selectivos y centrarnos tan solo en aquellos
cuando uno considera su gravedad y todo lo que puede detalles con los que mejor pueda confirmarse, ilus-
revelarnos sobre la Psicología en sí misma, sobre la trarse y problematizarse nuestra conjetura sobre la
manera en que existe y opera, sobre su función en el utilización de la Psicología para la destrucción de su
sistema socioeconómico y su relación con el orden propio objeto. Sin embargo, ante estos detalles, inten-
político establecido. Es precisamente por esto que aquí taremos dar voz a los involucrados, ofreciendo citas
deseamos abordar el tema de los psicólogos torturado- literales y favoreciendo las fuentes primarias. Nues-
res. Y quizás haya sido por lo mismo, paradójicamente, tro análisis tendrá cierta densidad teórica y será de
que el tema fuera tan desatendido en el pasado, hasta carácter crítico reflexivo y no solo histórico narrativo.
que llegó el momento, hace poco, en que sencillamente En otras palabras, no solo buscará echar luz y atraer la
ya no podía ignorarse más. Fue el momento en que atención sobre uno de los capítulos más sombríos de
estalló el escándalo por la participación de psicólo- la historia de la Psicología en América Latina, sino que
gos estadounidenses en la tortura de sospechosos de también intentará elucidar el encargo que la Psicolo-
terrorismo. Vimos entonces, de pronto, una avalancha gía cumple al utilizarse para suprimir y desintegrar la
de artículos acerca de algo muy viejo que salía súbita- esfera psíquica mediante la tortura. Esta elucidación,
mente a la luz y parecía nuevo, inédito y sin preceden- a su vez, debería servir para profundizar en todo lo
tes (v.g. Arrigo, & Long, 2008; Costanzo, Gerrity, & Lykes, que está en juego en el actual debate sobre los psicó-
2007; Lira, 2008; Saldarriaga, 2009; Soldz, 2008, 2011; logos torturadores en los Estados Unidos.
Suedfeld, 2007; Welch, 2010).
Aunque tomando nuestras distancias con res- Mitchell, Jessen and Associates: una
pecto al actual debate en torno a los psicólogos tor- compañía de Psicología especializada en
turadores de los Estados Unidos, lo retomaremos la tortura
aquí, de manera lateral, para problematizar algunos En diciembre de 2014, en el Senado de los Esta-
de sus términos y para cuestionar una posición en dos Unidos, el Comité Selecto sobre Inteligencia hizo
la que simultáneamente se ha disimulado y justifi- público un informe sobre la tortura de sospecho-
cado el empleo de la Psicología para torturar. Luego, sos de terrorismo por parte de la Agencia Central de
aportando una contextualización que suele faltar en Inteligencia (CIA) durante la presidencia de George
el actual debate, recordaremos brevemente los prece- W. Bush (Senate Select Committee on Intelligence,
dentes de tal empleo en la Alemania nazi, la España 2014). El informe divulgaba la participación de psi-
franquista, la represión colonial francesa en Arge- cólogos en el diseño y la implementación de “técni-
lia y la estrategia militar estadounidense durante la cas de interrogación mejorada” que se utilizaban en
Guerra Fría. La consideración de tales precedentes y centros clandestinos de detención de la CIA alrededor
del reciente escándalo en los Estados Unidos nos per- del mundo, entre ellos Bagram, Guantánamo y Abu
mitirá llegar a una representación general de la forma Ghraib, y que incluían diversas formas de tortura,
en que la Psicología opera en la tortura como forma de entre ellas las posiciones corporales incómodas pro-
supresión y desintegración del psiquismo. Esta repre- longadas, la exposición a un frío intenso o a ruidos
sentación general guiará nuestro análisis de los casos ensordecedores, el ahogamiento simulado, la priva-
de cuatro profesionales de la salud mental que pusie- ción sensorial, la privación de sueño hasta el punto
ron sus profesiones al servicio de regímenes autorita- de provocar alucinaciones, la privación de alimentos

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 11-27.

y bebidas, la rehidratación anal y el confinamiento en una “condena clara”, una “investigación indepen-
estrechas cajas similares a ataúdes. El parágrafo 13 diente” y una “prohibición expresa” de la participa-
del mismo informe detallaba cómo la CIA contrató ción de psicólogos en “torturas o en otras formas de
especialmente a dos psicólogos, fundadores de una tratamiento cruel, inhumano o degradante como téc-
compañía privada especializada en “interrogaciones nica de interrogación” (p. 10). El mismo informe sir-
mejoradas”, a quienes pagó 80 millones de dólares vió para que aprendiéramos a desconfiar de quienes,
para “desarrollar, operar y evaluar las operaciones de como Suedfeld (2007), ponían en duda que los profe-
interrogación”, lo que habían hecho “basándose en la sionales de la Psicología estuvieran verdaderamente
indefensión aprendida” (Senate Select Committee on implicados en “inventar o aplicar técnicas de tortura”
Intelligence, 2014, p. 11). (p. 59), pero al mismo tiempo recomendaban a la APA,
Al mencionar la “indefensión aprendida” (lear- con una buena dosis de cinismo, que alentase a los
ned helplessness), el informe del Comité Secreto del psicólogos a que ayudaran a “autoridades legítimas
Senado se estaba refiriendo a un concepto que le ase- a evitar falsas confesiones y a obtener información
guró la celebridad al psicólogo estadounidense Martin veraz con el nivel mínimo posible de incomodidad,
Seligman, promotor de la Psicología positiva y antiguo privación o dolor (mental o físico) de las personas
presidente de la Asociación Americana de Psicolo- interrogadas” (p. 61).
gía (APA). El concepto de Seligman (1975) describe la Lo que Suedfeld plantea es bastante claro: aun
condición de quien aprende a sentirse impotente y a cuando las policías de los gobiernos instituidos emple-
comportarse pasivamente por causa de circunstancias aran el dolor para extraer información, aun cuando
como los castigos continuos. Las torturas, operando recurrieran a la tortura en sus interrogatorios, debe-
como castigos continuos, harían “aprender la inde- rían ser apoyadas por los profesionales de la Psicolo-
fensión” a los sospechosos de terrorismo, los cuales, gía. O peor aún: había que estimular a los psicólogos a
convertidos en seres indefensos, impotentes y pasivos, poner su profesión al servicio de los torturadores en los
habrían de mostrarse lógicamente más dóciles y sumi- interrogatorios, pero siempre y cuando la tortura fuera
sos en el curso de sus interrogatorios. Al menos esto era lo menos dolorosa posible. Sobra decir que “lo menos
lo que se esperaba, pero no fue lo que ocurrió, como dolorosa posible” puede ser sinónimo de “inmensa-
lo muestra el informe del Comité Secreto del Senado, mente dolorosa” cuando se trata de personas parti-
en el que se denuncia la ineficacia de la estrategia diri- cularmente refractarias al interrogatorio. ¿Pero acaso
gida por los dos psicólogos seguidores de Seligman. estas personas no son precisamente aquellas que nece-
El Comité Secreto había cubierto bajo el anoni- sitan ser torturadas? Pedir que “se les torture lo menos
mato a los dos psicólogos que dirigían las torturas de posible para conseguir lo que se necesita” es igual a
la CIA, pero los medios no tardaron en identificarlos pedir que “se les torture solamente lo que se necesita”.
y en difundir sus nombres: James Elmer Mitchell y El razonamiento de Suedfeld es el de cualquier tortu-
John Bruce Jessen (Windrem, 2014). La identificación, rador simplón y suficientemente sensato: si ya hemos
por cierto, no podía ser más fácil. Ambos psicólogos obtenido todas las informaciones que necesitábamos,
ya habían sido públicamente denunciados mucho ¿para qué molestar al torturado y para qué molestarse
tiempo antes. Eran tan conocidos entre los profesio- uno mismo al intensificar la tortura?
nales de la Psicología, que “la sola reacción ante sus Como hemos visto, Suedfeld se empeña en disi-
nombres se había convertido en la prueba de fuego de mular y justificar la tortura con los argumentos del
la actitud ante la coerción y los derechos humanos” más vulgar de los golpeadores. Esto es todo lo que
(Eban, 2007, párr. 18). hace con lo que él mismo describe, con un orgullo
Mitchell y Jessen estaban en el centro de una enternecedor, como su “pensamiento complejo”
enardecida controversia que se había desatado por (Suedfeld, 2007, pp. 55-56). Tal pensamiento es el
una resolución de la APA, en julio 2005, en la que se mismo con el cual, 17 años antes, abordó la relación
autorizaba que los psicólogos rindieran sus servicios de la Psicología con la tortura, llegando al recon-
en los interrogatorios militares. En el contexto de esta fortante descubrimiento de que tan solo existía un
polémica, el informe del Comité Secreto de 2014 vino caso demostrado en el que un psicólogo profesional
a justificar, validar y reforzar la posición de quienes, hubiera practicado la tortura (Suedfeld, 1990). Podía
como Costanzo et al. (2007), habían exigido a la APA entonces concluirse alegremente que la Psicología no

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Pavón-Cuéllar, David (2017). Psicología y Destrucción del Psiquismo.

es de ningún modo, por así decir, una “profesión útil tortura y la Psicología. Sabemos que la Gestapo recurrió
para torturar”. Sin embargo, para demostrar lo con- a diversos métodos rigurosos de “interrogatorio inten-
trario, ahí están los psicólogos James Elmer Mitchell y sificado” (verschärfte Vernehmung) que eran idénticos
John Bruce Jessen con sus colaboradores, entre ellos el o muy similares a las “técnicas de interrogación mejo-
mismísimo expresidente de la APA Joseph Matarazzo, rada” propuestas por Mitchell y Jessen. La exposición
y con su firma Mitchell, Jessen and Associates: no solo al frío y la privación sensorial, de sueño, de alimento
una macabra “empresa de tortura”, sino una “com- y bebida, formaban parte del arsenal de estrategias
pañía especializada en la Psicología para la tortura”. empleadas por los nazis en los interrogatorios durante
De modo que ya no es verdad que haya solo un caso de la Segunda Guerra Mundial. Un caso bien documen-
psicólogo torturador en el mundo. Pero de cualquier tado es el de Richard Wilhelm Hermann Bruns, Rudolf
manera, como lo veremos en las siguientes páginas, Theodor Adolf Schubert y Emil Clemens, quienes fue-
tampoco era verdad en 1990, cuando Suedfeld lo afir- ron juzgados en Noruega por haber efectuado “inter-
maba. Y, para empezar, ¿por qué reducir la cuestión rogatorios intensificados” entre 1942 y 1945, durante
del uso profesional de la Psicología para la tortura a la la ocupación alemana de aquel país (Sullivan, 2009;
simple constatación de casos plenamente demostra- Suprema Corte de Noruega, 1946).
dos en los que haya un profesionista psicólogo tortu- Mientras la Gestapo se valía de un método psi-
rador? Tal reducción resulta inadmisible por muchas cológico de tortura para interrogar a posibles oposi-
razones, entre ellas tres bastante obvias: 1) la tortura, tores al nazismo, centenares de niños, adolescentes
especialmente la psicológica, no suele ser algo ple- y algunos adultos eran torturados por profesionales
namente demostrable; 2) los psicólogos pueden con- de la salud mental en diversas clínicas psiquiátricas y
tribuir a la tortura de modo indirecto, inspirándola “guarderías para niños especiales” en Alemania y en las
o concibiéndola, sin participar directamente en ella; zonas ocupadas por los nazis. Es bien conocido el caso
y 3) no son únicamente los psicólogos, sino también del hospital Am Steinhof y específicamente de la clí-
los psiquiatras, los psicoanalistas y otros profesiona- nica Am Spiegelgrund de Viena, en donde el psiquiatra
les de la salud mental, quienes están en condiciones Heinrich Gross no solo decidió la muerte de muchos
de hacer un uso profesional, relativamente riguroso y internos, sino que también los hizo pasar por los más
metódico, de la Psicología como ciencia para torturar. dolorosos tormentos con fines de reeducación y expe-
Lo cierto es que hay varias situaciones concretas rimentación (Czech, 2014; Jahn, 2012; Martens, 2004).
conocidas, algunas de ellas bien evidenciadas y otras Poco tiempo antes, Robert Ritter, doctor en Psicología
bastante verosímiles, en las que el conocimiento cien- educativa, se había dedicado a realizar extensas inves-
tífico psicológico ha sido utilizado profesionalmente tigaciones para demostrar, según él, que los gitanos
por psicólogos y otros especialistas de la salud mental eran congénitamente “criminales y asociales”, con lo
para inspirar, asesorar, concebir, diseñar, perfeccionar o que proporcionó la justificación psicológica perfecta
aplicar técnicas de tortura. Semejante utilización de la que se necesitaba para internarlos en campos de con-
Psicología será ejemplificada y examinada más adelante centración y ahí someterlos a un trato inhumano que
a través de los ya mencionados cuatro casos latinoame- hoy correspondería exactamente a lo que entendemos
ricanos de la segunda mitad del siglo XX. Sin embargo, por tortura (Friedlander, 1995, p. 252).
antes de pasar al examen puntual de estos casos, con- El trato recibido por los gitanos en la Alemania
viene que nos detengamos un momento en los prece- nazi es comparable al que recibieron por la misma
dentes del empleo de la Psicología para la tortura y en época muchos presos políticos en la España franquista.
algunas consideraciones generales en torno a tal empleo. Aquí también se contó con una justificación psico-
lógica perfecta, la ofrecida por el psiquiatra Antonio
Breve revisión histórica de la Psicología Vallejo Nájera, jefe de un Gabinete de Investigaciones
en la tortura: nazismo alemán, Psicológicas dedicado a investigar las raíces psíquicas
franquismo español, colonialismo del marxismo. Vallejo Nájera pretendió probar cientí-
francés e imperialismo estadounidense ficamente que los marxistas eran “psicópatas antiso-
A finales de los treinta y principios de los 1940, ciales” que debían segregarse para “liberar a la socie-
entre los franquistas españoles y los nazis alemanes, dad de plaga tan temible” (Vallejo Nájera, 1939, p. 52).
encontramos ya claros indicios de vinculación entre la Esta forma de “terapia segregacionista” buscaba una

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 11-27.

“liquidación moral” de los enemigos comunistas, los de lo que el propio Cameron denominaba “conducción
cuales, en los propios términos de Vallejo Nájera, “per- psíquica” (psychic driving): una estrategia que se valía de
derán la libertad, gemirán durante años en prisiones, electrochoques, drogas y “repetición de señales verbales”
purgando sus delitos” (Vinyes Ribas, 2001, pp. 237- para desintegrar y reprogramar el psiquismo de pacien-
239). El psiquiatra franquista parece confesar aquí, de tes en un hospital psiquiátrico (pp. 43-44). Desde el año
manera un tanto velada, un objetivo de infligir dolor de 1956, los psiquiatras y neurólogos Lawrence Hinkle y
que es propio de la tortura y que puede servir por sí Harold Wolff, del Centro Médico de Cornell y también
mismo para justificar su necesidad como una forma con financiamiento y dirección de la CIA, cuestionaron
de expiación, incluso en ausencia de cualquier otro el uso de técnicas de lavado de cerebro y de control de
propósito. De cualquier modo, aun cuando Vallejo la mente en los interrogatorios, y pusieron en evidencia
Nájera no hubiera justificado abiertamente la tortura la mayor eficacia de “prácticas policiales” tradicionales
de los comunistas como algo necesario, sus conclu- como el “aislamiento”, la “incomodidad” y otros motivos
siones sí podían servir y seguramente sirvieron para de “dolor auto-infligido” en los que el malestar procede-
excusarla como algo moralmente aceptable, ya que ría del mismo sujeto, de su cuerpo y de su mente, de su
presentaban a la víctima como un “infra-hombre mal- posición incómoda y de sus ideas, en lugar de provenir
vado sobre el cual todo era lícito” (p. 240). de un agente externo, haciendo que el torturado se per-
Después de haber sido una tarea obsesiva de cibiera como responsable de la tortura, escindiéndolo de
nazis y franquistas como Vallejo Nájera, la guerra con- sí mismo y evitándose así que se acentuara su resistencia
tra los comunistas pasó a ser una de las ocupaciones contra los torturadores (pp. 45-46). Por último, en 1961,
principales del gobierno de los Estados Unidos. Fue en la Universidad de Yale y con posible financiamiento
muy pronto, ya en los años 50 del siglo XX, poco des- de la CIA, los experimentos de Stanley Milgram, demos-
pués del fin de la Segunda Guerra Mundial, cuando la trando que la gente común era capaz de torturar y hasta
CIA empezó a servirse de psicólogos y psiquiatras en matar por obedecer a la autoridad, sirvieron para con-
su desarrollo de técnicas de tortura dirigidas especial- vencer a los servicios de inteligencia estadounidenses
mente contra sospechosos de comunismo o de espio- que podían valerse de cualquier “soldado o policía ordi-
naje de los países comunistas. Hoy en día, gracias a las nario” para ser obedecidos y llevar a cabo las torturas
investigaciones exhaustivas de McCoy (2006), sabe- diseñadas gracias a las investigaciones de Hebb, Came-
mos que la agencia de inteligencia estadounidense, ron, Hinkle y Wolff (pp. 47-49).
a través de su programa de interrogatorios alternati- En los años 1950, mientras los recién menciona-
vos denominado “MKUltra”, utilizó intensivamente, dos investigadores trabajaban de manera voluntaria
a menudo financió y a veces dirigió el trabajo de algu- o involuntaria para la CIA en clínicas y laboratorios
nas de las más importantes figuras de la Psicología y la de los Estados Unidos, algunos psiquiatras franceses
psiquiatría entre los años 50 y 60 del siglo XX. administraban sustancias psicoactivas para obtener
Las investigaciones experimentales del psicólogo informaciones de los militantes políticos torturados
Donald O. Hebb (1904–1985) sobre la “privación senso- en el contexto de la Guerra de Argelia. Fanon (1965)
rial” en la Universidad de McGill, financiadas por la CIA y relata cómo estos “sueros de la verdad”, que provo-
efectuadas a partir de 1951 con animales y con humanos caban “pérdida de control” y “embotamiento de la
voluntarios a los que se remuneraba, demostraron que conciencia”, dejaban graves secuelas como la “inca-
la eliminación de estímulos visuales, auditivos y táctiles pacidad para distinguir lo verdadero de lo falso” y un
podía posibilitar el “lavado de cerebro” y el “control de “temor casi obsesivo a decir lo que debe mantenerse
la mente” al provocar una “ruptura de la actividad orga- oculto” (pp. 137-138). Aún peores eran las secuelas
nizada en los procesos centrales complejos” del cerebro dejadas por los electrochoques, también usados por
(McCoy, 2006, pp. 41-42). En la misma Universidad de los psiquiatras que trabajaban para los centros fran-
McGill, entre 1957 y 1963, los experimentos particular- ceses de tortura en Argelia, como lo sabemos por el
mente violentos del psiquiatra Donald Ewen Cameron, mismo Fanon. Al mismo tiempo que Donald Ewen
dirigidos y no solo financiados por la CIA, ya no se limita- Cameron buscaba desintegrar el psiquismo con des-
ban a las condiciones de posibilidad del lavado de cere- cargas eléctricas, los psiquiatras franceses usaban la
bro y el control de la mente, sino que realizaban en acto misma técnica en los interrogatorios para causar la
y de manera forzada este lavado y este control a través “confusión, la relajación de la resistencia y la desa-

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Pavón-Cuéllar, David (2017). Psicología y Destrucción del Psiquismo.

parición de las defensas” del torturado, haciendo que en que las diversas “técnicas de coerción” están inva-
al final solo quedara una “personalidad en pedazos” riablemente “diseñadas para inducir una regresión” en
cuya recomposición y rehabilitación era “extremada- la que el torturado, perdiendo la estructura psíquica y
mente difícil” (p. 138). las “defensas del hombre civilizado”, termina viendo al
De los expertos franceses en tortura durante la interrogador como una “figura paterna” a la que debe
Guerra de Argelia, el más polémico fue Paul Aussares- someterse (pp. 83, 90).
ses, quien enseñó técnicas de contrainsurgencia en El manual KUBARK, destilado sintético del para-
Fort Bragg y Fort Benning, en los Estados Unidos, entre digma psicológico de tortura de la CIA, fue utilizado
1961 y 1962 (Robin, 2003). Posteriormente, en los años entre los años 1970 y 1980 en los diferentes campos
1970, mientras asesoraba la dictadura brasileña, Aussa- de batalla de la Guerra Fría, entre ellos el de Vietnam,
resses ofreció el mismo entrenamiento a oficiales brasi- en el que los métodos para torturar en los interrogato-
leños, chilenos, argentinos y venezolanos en el Centro rios, como nos lo recuerda McCoy (2009), terminaron
de Instrucción de Guerra en la Selva (Centro de Ins- traduciéndose en “la cruda brutalidad física del pro-
trução de Guerra na Selva). Mientras que Aussaresses grama Phoenix que produjo 46.000 ejecuciones extra-
entrenaba directamente a futuros torturadores, otros judiciales y poca inteligencia accionable” (párr, 16). En
dos expertos franceses, David Galula y Roger Trinquier, 1983, exactamente 20 años después del lanzamiento
escribían textos que se convertirían en manuales obli- del KUBARK y sobre la base del mismo conocimiento
gados en los centros de formación en contrainsurgen- psicológico, empezó a circular un segundo manual de
cia en los Estados Unidos y en América Latina. Tene- tortura e interrogatorio, el Human Resource Exploi-
mos aquí algunos principios generales para encuadrar tation Training Manual, que estaba especialmente
la tortura: si Galula considera que sería “peligroso y diseñado para el contexto latinoamericano y que se uti-
contraproducente dejar los interrogatorios a aficiona- lizó en campos estadounidenses de entrenamiento en
dos”, Trinquier piensa que “los especialistas deberán, Honduras. El nuevo manual exhortaba a “manipular el
por todos los medios, arrancar los secretos” del tortu- ambiente del sujeto para crear situaciones desagrada-
rado, quien “deberá entonces, como el soldado, enfren- bles o intolerables” para él, así como hacerle creer que
tar el sufrimiento y quizás la muerte” (Le Cudennec, sus familiares estarían “sufriendo o en peligro” (Cohn,
2009, párr. 3). El trabajo más influyente de Trinquier, Thompson, & Matthews, 1997, párr. 11, 15). Al igual
“La guerra moderna”, obtenido por la CIA a través de que en el KUBARK, se buscaba desencadenar procesos
la mediación del propio Aussaresses, terminó convirti- regresivos, recomendando “tener a un psicólogo dispo-
éndose en una referencia obligada para la inteligencia nible cuando se induce la regresión” (párr. 37).
estadounidense y orientó la estrategia en una Guerra Tras el final de la Guerra Fría, en 1994, los Estados
de Vietnam en donde los comandos terminaron “actu- Unidos ratificaron la Convención contra la Tortura de
ando exactamente como los escuadrones de la muerte la ONU. Sin embargo, al definirse las formas de tor-
de Paul Aussaresses” en Argelia (Robin, 2003, p. 254). tura en el documento oficial de ratificación enviado
Tras diez años de observaciones o reflexiones de por el presidente Bill Clinton al Congreso, no se con-
expertos franceses y de experimentos de investigadores sideraba ni la privación sensorial de Hebb ni el dolor
estadounidenses, la CIA pudo elaborar por fin, en 1963, auto-infligido de Hinkle y Wolff, es decir, el eje rector
el famoso “Manual de Interrogación de Contrainteli- de la tortura psicológica, psicológicamente funda-
mentada e implementada, que la CIA desarrolló en
gencia KUBARK”, en el que la agencia estadounidense
los años 1950 (McCoy, 2009). Es así como se ha man-
de inteligencia ofrecía un amplio abanico de avanza-
tenido un vacío legal por el que se ha posibilitado que
das técnicas de tortura, no sin antes dar crédito a la
esta forma de empleo de la Psicología para la tortura
“importancia y relevancia” del trabajo de los “psicólo-
se perpetúe desde los años 70 del siglo XX hasta el
gos americanos” cuyas “investigaciones psicológicas”
escándalo de Mitchell y Jessen entre 2007 y 2014.
y “hallazgos psicológicos” habían generado el “conoci-
miento pertinente, moderno”, en el que se basaban las
técnicas propuestas (CIA, 1963, p. 2). La insistencia en La Psicología como dispositivo destructivo
la Psicología es aquí notable, así como también lo es la La revisión histórica recién ofrecida nos ha permi-
centralidad de la privación sensorial de Hebb, la opción tido apreciar dos grandes usos de la Psicología para los
por el dolor auto-infligido de Hinkle y Wolff, y la forma torturadores: la justificación de la tortura, para Vallejo

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 11-27.

Nájera, Ritter y quizás Gross, y la concepción y reali- concebida y realizada, para conseguir la destruc-
zación de la tortura, para todos los demás. El segundo ción psíquica, personal y subjetiva, de quien es tor-
uso presupone de algún modo el primero, pues la tor- turado. Vislumbramos aquí un propósito destructivo
tura no se realiza y se concibe psicológicamente sino de la Psicología que debe sumarse a sus otros fines
con un objetivo también psicológico por el que se jus- positivos mejor conocidos, particularmente el ideo-
tifica su eficacia en la misma esfera de la Psicología. lógico, enfatizado por los marxistas (v.g. Braunstein,
Es verdad que el objetivo último no es exactamente Pasternac, Benedito, & Saal, 2006; Parker, 2010), y el
psicológico, pues consiste en la obtención de la ver- disciplinario, en el que insisten los foucaultianos (v.g.
dad en los interrogatorios, pero este objetivo mediato Rose, 1989, 1998). De pronto nos percatamos de que
se alcanza invariablemente a través de un propósito la Psicología no debe dedicarse únicamente a ideolo-
psicológico inmediato: la coerción y la resultante gizar y disciplinar, a reproducir de este modo su pro-
regresión del torturado, su anulación o sometimiento, pio objeto y el sistema en el que se inserta, es decir,
la inhabilitación de su voluntad, la supresión de su a formar y conformar una subjetividad recluida en su
personalidad, la neutralización de sus resistencias o interioridad individual y relacionada exteriormente
de sus defensas, la desintegración o desorganización con los otros de cierto modo y en cierta estructura
y la sucesiva reorganización o reprogramación de su transindividual. Además de sus funciones reproducti-
psiquismo. Todos estos fines psicológicos justifican vas, la Psicología nos muestra de pronto una función
psicológicamente la tortura como un medio eficaz destructiva, en la cual, paradójicamente, la ciencia del
para alcanzarlos y también para alcanzar, a través de psiquismo destruye su propio objeto psíquico. Esta
ellos, la obtención de la verdad en el interrogatorio. destrucción parece derivar directamente, ya no de los
A veces incluso la obtención de la verdad termina per- aparatos ideológicos y disciplinarios del Estado, sino
diéndose de vista, como en el caso de Cameron, para de sus aparatos represivos: de la violencia directa y no
quien la reprogramación del psiquismo aparece como de la indirecta, de la dominación y no de la persua-
un fin en sí mismo. sión, de la tiranía y no de la hegemonía.
Ya sea que el fin último sea reorganizar el psi-
quismo u obtener la verdad o incluso castigar o ree- Salvador Roquet: la tortura psicosintética
ducar al sujeto, el objetivo inmediato de la tortura en la dictadura perfecta mexicana
será generalmente negativo y consistirá las más de las El siglo XX convirtió a México en un lugar de
veces en desorganizar, desintegrar, neutralizar, anular, acogida para perseguidos políticos: en los años 1930,
someter, inhabilitar, suprimir, destruir. Este objetivo españoles que huían del franquismo; en los 1970,
destructivo podrá estar subordinado a uno recons- argentinos, chilenos y otros que escapaban de las dic-
tructivo, desde luego, pero la reconstrucción requiere taduras del cono sur; en los 1980, guatemaltecos y sal-
de otros medios que la tortura, la cual, por sí misma, vadoreños que habían sufrido la violencia de las tira-
tal como se concibe y se realiza en la Psicología, suele nías sostenidas por el imperialismo estadounidense.
tener un objetivo inmediato eminentemente destruc- Para estos exiliados y para muchos otros, México
tivo. La destrucción habrá de revestir las más diversas representaba un espacio de tolerancia y libertad. Era
formas: la ruptura de la actividad cerebral organizada un refugio para los demócratas del mundo entero,
a través de la privación sensorial de Hebb, la desin- así como para los ideales democráticos. El gobierno
tegración del psiquismo en la conducción psíquica mexicano llegó incluso a ser percibido como la demo-
de Cameron, la escisión del sujeto en el dolor auto- cracia perfecta de América Latina. Sin embargo, espe-
-infligido de Hinkle y Wolff, la pérdida del control y el cialmente en la segunda mitad del siglo XX, la realidad
embotamiento de la conciencia por los sueros de la era otra, completamente diferente.
verdad de los psiquiatras franceses en Argelia, el des- En 1990, durante un encuentro de intelectuales
pedazamiento de la personalidad por los electrocho- transmitido por la televisión mexicana, el escritor
ques administrados por los mismos psiquiatras fran- peruano Vargas Llosa (1990, 1 de septiembre) no dudó
ceses, la regresión y la desaparición de las defensas del en afirmar que México, lejos de ser la democracia
hombre civilizado en el manual KUBARK. perfecta, era la “dictadura perfecta”, una “dictadura
En los casos recién mencionados, la tortura opera sui generis que muchos en América Latina habían
como una estrategia psicológica, psicológicamente tratado de emular”, una “dictadura camuflada” que

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Pavón-Cuéllar, David (2017). Psicología y Destrucción del Psiquismo.

tendría “todas las características de una dictadura”, dos por la DFS, entre ellos un dirigente estudiantil del
entre ellas “la permanencia, no de un hombre, pero movimiento de 1968, el maoísta Federico Emery Ulloa
sí de un partido inamovible” (párr. 3-5). Además de la (Marín, 1985, 28 de marzo).
permanencia del Partido Revolucionario Institucio- Es por Emery, por su testimonio detallado ver-
nal (PRI) que gobernó ininterrumpidamente México tido a través de varias entrevistas y de una denun-
desde 1928 hasta el año 2000, una característica típi- cia penal, por quien ahora podemos reconstruir con
camente dictatorial por la que se distinguió el régi- cierta exactitud la forma o al menos una de las formas
men gubernamental mexicano fue la represión bru- en que Roquet operaba. Su intervención no se reali-
tal, sistemática y permanente contra sus opositores. zaba en la famosa prisión de Lecumberri en la que se
Esta estrategia represiva incluyó el encarcelamiento, concentraban los presos políticos, sino en una casa de
la tortura, la desaparición y el asesinato de miles de seguridad a la que se desplazaba únicamente a quien
personas, así como importantes matanzas colectivas, pasaría por la tortura psicosintética. El preso, forzado
en grupo y hasta en masa, como la de henriquistas en a ingerir diversos alucinógenos químicos y naturales,
La Alameda en 1952 (unos 200 muertos), las de la Aso- se encontraba encerrado en un cuarto amplio, de
ciación Cívica Guerrerense en Chilpancingo en 1960 y aproximadamente seis por ocho metros, en el que
en Iguala en 1962 (más de 50 víctimas en total), las de había dos sillas y una mesa con una grabadora y con
copreros en Acapulco (entre 30 y 80 muertos y desa- dos proyectores, uno de cine de 16 milímetros y otro
parecidos) y maestros y padres de familia en Atoyac en de diapositivas, frente a dos pantallas.
1967 (5 muertos), Tlatelolco en 1968 (entre 100 y 300 Durante el proceso, que se prolongada por 10 a
muertos), el Halconazo en 1971 (entre 30 y 50 muer- 20 horas, el preso debía escuchar “música de Wagner a
tos), La Trinidad en 1982 (9 muertos), Aguas Blancas todo volumen”, hasta el punto de “lastimar los oídos”,
en 1995 (17 muertos), Acteal en 1997 (45 muertos) y El mientras veía “películas pornográficas” de “lesbianas
Charco en 1998 (11 muertos), por mencionar única- y orgías” que se entremezclaban con diapositivas de
mente las más conocidas. “pinturas realizadas por locos”, por “locos de mani-
Entre finales de los sesenta y principios de los comio”, según se lo explicó el propio Roquet a Emery
1970, en uno de los períodos más sangrientos de la (Marín, 1985, 29 de marzo, párr. 5; Monge, 2002, párr.
dictadura del PRI en México, la estrategia represiva 16). Las drogas consumidas por el sujeto lo hacían
gubernamental se convirtió en una guerra de exter- “pasar de la histeria al terror” (Sánchez, 2003, párr.
minio en la que destacó la figura siniestra de Miguel 1), u oscilar entre “el miedo, el miedo, el miedo”, y “el
Nazar Haro (1924–2012), máxima autoridad en la coraje hasta tratar de destruir”, y “luego la euforia, la
Dirección Federal de Seguridad (DFS) y feroz antico- alegría hasta la risa y la carcajada” (Marín, 1985, 29
munista formado por militares estadounidenses en de marzo, párr. 4). Finalmente, el sujeto “se hundía” y
la Escuela de las Américas de Panamá (López de la sentía un “temor pavoroso” que lo hacía correr hasta
Torre, 2013; Rodríguez Castañeda, 2013; Torres, 2008). un rincón y tirarse en el suelo, y es entonces cuando
El equipo de Nazar Haro estaba formado por decenas Roquet, mostrándose amenazante y diciéndole “tú
de esbirros, matones y torturadores sin formación eres ratón, yo soy gato”, podía empezar un largo inter-
alguna, pero también por algunos profesionales acre- rogatorio de unas diez horas con centenares de pre-
ditados, como el psiquiatra Salvador Roquet Pérez guntas centradas en las actividades políticas del tor-
(1920-1995). Este controvertido psiquiatra, de hecho, turado (Monge, 2002, párr. 17).
se había ganado cierta celebridad en México y en el Emery no solo debió sufrir la psicosíntesis recién
mundo, hasta el punto de ser comparado con Freud relatada, sino también torturas psicológicas más
por algunos de sus admiradores, gracias a su inven- convencionales, entre ellas tres simulacros de eje-
ción y desarrollo de la “psicosíntesis”: un tratamiento cución en los que era conducido a lugares apartados,
psicoterapéutico apoyado en alucinógenos como le ponían el cañón de un arma en la cabeza y jalaban el
peyote, hongos, datura y LSD (Ramírez, 1985) Fue pre- gatillo sin disparar. Las torturas psicológicas se com-
cisamente una variante del método psicosintético lo plementaban, además, en este caso como en otros,
que Roquet parece haber transformado, a finales de con las más diversas torturas físicas, sin contar el aisla-
los sesenta, en la elaborada técnica de tortura psico- miento, las pésimas condiciones de encarcelamiento
lógica implementada en militantes políticos deteni- y el temor por la propia vida y por los seres queridos.

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Interpretando retrospectivamente lo ocurrido, Emery lógico autodestructivo” e incluyéndolos en la misma


concluye que Nazar Haro, el director de la DFS, “que- categoría que los hippies drogodependientes con sus
ría llevarlo al borde de la locura, quería desacomodar “neurosis subyacentes” (Dawson, 2015, p. 126). Esta
sus sensaciones, sus percepciones, para acomodarlas psicopatologización de la militancia revolucionaria de
a su modo” (Monge, 2002, párr. 27). No hay manera de izquierda – que nos recuerda evidentemente a Vallejo
saber cómo es que Emery llegó a esta conclusión, pero Nájera –, junto con la misión curativa que el propio
su interpretación resulta interesante por la manera en Roquet parece haberse fijado, han hecho que se lle-
que relaciona la desorganización y la reorganización gue a considerar que él mismo no entendía su trabajo
de los elementos psíquicos, es decir, en definitiva, las en la DFS como una simple “tortura” de perseguidos
funciones destructiva y reconstructiva del psiquismo políticos, sino como un “tratamiento” de enfermos
que distinguimos anteriormente. autodestructivos (p. 127).
La experiencia de Emery, tal como él mismo la per- El propósito de Roquet habría sido clínico, psico-
cibe, corresponde exactamente al proceso de repro- terapéutico y no solo político. Se trataba de curar a los
gramación del psiquismo desarrollado por Cameron militantes y no solo de violentarlos, atormentarlos, vul-
en el marco del ya mencionado programa MKUltra de nerabilizarlos y extraer información. Tal vez podamos
la CIA. ¿Cómo no suponer que hay un vínculo entre conjeturar que el propósito final de la tortura, tal como
este programa, en el que también se emplearon aluci- Roquet la concebía, no era destruir al sujeto y así des-
nógenos con el mismo propósito de obtener informa- cubrir los secretos de su militancia revolucionaria, sino
ción, y la técnica de tortura psicosintética implemen- reconstruirlo y así curarlo de su enfermedad militante.
tada por Roquet en el tiempo en el que trabajó para Aunque esto quizás contradiga tanto la falta de cualquier
Nazar Haro? Tal suposición bien puede convertirse en indicio de reconstrucción como el peso del interroga-
convicción, especialmente cuando consideramos, por torio en la sesión de tortura psicosintética relatada por
un lado, que el trabajo mexicano, realizado a finales Emery, al mismo tiempo coincide con la interpretación
de los sesenta, coincide temporalmente con el tiempo retrospectiva del propio Emery, quien veía en su expe-
de operación de MKUltra entre 1953 y 1973, y, por otro riencia, como recordaremos, una desorganización para
lado, que Nazar Haro era un agente activo de la CIA la reorganización del psiquismo. La reconstrucción y la
al que la propia agencia protegió legalmente en los curación habrían sido, pues, desde este punto de vista,
Estados Unidos (Torres, 2008), liberándolo de prisión, el sentido último de la destrucción. En los términos mis-
dándole inmunidad y presentándolo como un “con- mos de Roquet (1971), el objetivo de la “desintegración”
tacto esencial de la CIA en México” (Scott, 2014, p. 46). habría sido la “psicosíntesis”, la “síntesis”, la “reestructura-
En lo que se refiere a Roquet, Emery terminó con- ción”, la “integración con los elementos esenciales” (párr.
venciéndose de que trabajaba para la CIA después de 11-14). Volvemos así al método propuesto por Cameron.
que fuera encarcelado, según el informe oficial, por
su utilización psicoterapéutica de alucinógenos, pero Amílcar Lobo, Dolcey Brito y Hernán Tuane
justo en el momento en que el gobierno mexicano De los dos momentos sucesivos de la conduc-
investigaba la presencia de la CIA en México (Marín, ción psíquica de Cameron, el más característico es el
1985, 29 de marzo). Esta versión es exactamente la segundo, el reconstructivo, pues ya hemos visto que el
inversa de otra, quizás menos verosímil, según la primero, el destructivo, suele aparecer como propó-
cual Roquet habría sido encarcelado precisamente sito inmediato de casi cualquier estrategia psicológica
por negarse a trabajar con la CIA, que le proponía de tortura. Este propósito destructivo será el más visi-
instalarse en los Estados Unidos y “tratar” a “pacien- ble en las estrategias de los tres profesionales tortu-
tes especiales” para el gobierno estadounidense radores de los que ahora nos ocuparemos: el médico
(Wolfson, 2014, p. 171). En cualquier caso, indepen- y psicoanalista brasileño Amílcar Lobo, el psicólogo
dientemente de sus posibles relaciones con la CIA y de uruguayo Dolcey Brito y el psicólogo chileno Hernán
su indiscutible trabajo de torturador en la DFS, Roquet Tuane Escaff, quienes aportaron sus conocimientos
parece haber sido alguien bastante conservador que psicológicos para torturar a presos políticos en dic-
mostraba incomprensión y quizás incluso aversión taduras del Cono Sur. Los tres empezaron a operar
hacia los jóvenes militantes de izquierda, psicopato- como torturadores justo después de Roquet, en los
logizándolos al atribuirles un “comportamiento pato- años 70 del siglo XX: Lobo en 1970, Dolcey en 1972 y

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Pavón-Cuéllar, David (2017). Psicología y Destrucción del Psiquismo.

Tuane en 1974. De los tres casos, quizás el más origi- Varias fuentes militares han admitido que el Penal
nal y también el peor documentado sea el de Tuane, buscaba “destruir la salud mental de los presos”, mien-
quien urdió una guerra psicológica en la que detecta- tras que el psiquiatra Martín Gutiérrez, colaborador
mos elementos propios de la intervención de la Psi- de Brito en el Penal, reconoció que “día tras día, regla-
cología en la tortura, entre ellos el más fundamental, mento tras reglamento, el objetivo perseguido era el de
el destructivo, y quizás también el reconstructivo que hacerlos sufrir psicológicamente” (Bloche, 1987, pp.
ya hemos visto operar en Cameron y en Roquet. 6-8). En el cumplimiento de este objetivo, Dolcey Brito,
El caso mejor conocido es el de Amílcar Lobo a diferencia de Amílcar Lobo, actuaba libremente y
Moreira (1939–1997), el cual, entre 1970 y 1974, siendo desempeñaba un rol más directivo que subordinado en
médico, psicoanalista y miembro en formación de la la estructura jerárquica en la que se insertaba. Se le ha
Sociedad de Psicoanálisis de Río de Janeiro, participó descrito como “uno de los arquitectos del monstruoso
activamente en sesiones de tortura en las que debía programa de experimentación psicológica del Penal”,
supervisar el estado físico de cada torturado (Lobo como “el cerebro detrás de un esquema científico
1998). Su función precisa era informar si la víctima pensado para arrasar sistemáticamente las personali-
podía seguir siendo torturada, si “estaba fingiendo” y dades”, como conductor y ejecutor de un “desmante-
si “aún aguantaba”, no solo en sesiones ordinarias de lamiento personal, individuo por individuo” (Uruguai,
tortura con fines de interrogatorio, sino también en 1989, p. 222). Ajustándose a la singularidad de cada
“clases de tortura” con fines didácticos (CNV, 2014, pp. caso, Dolcey Brito no seguía siempre la misma estrate-
351, 355). Sin embargo, además de cumplir esta fun- gia, sino que usaba todos los medios a su alcance para
ción, Lobo fue denunciado por intervenir en las tortu- lograr su objetivo, entre ellos la desinformación y la dis-
ras, por administrar sustancias psicoactivas y quizás torsión de informaciones, el ocultamiento de cartas de
también electrochoques. Una prisionera lo acusó de familiares, el aislamiento e incomunicación de los pre-
“aplicar algunas inyecciones” del más clásico suero sos, desplazamientos y combinaciones selectivas de los
de la verdad, el pentotal, para uno de los interrogato- ocupantes de las celdas, y administración de sustancias
rios (Romeu, 2011, párr. 38). Otro torturado también psicoactivas como flufenazina y meprobamato.
cuenta cómo Lobo “aplicó pentotal muy lentamente” Así como el psicólogo uruguayo Dolcey Brito
para sumirlo en “turbación mental y somnolencia” en pensó el Penal de Libertad como una gran sala de tor-
los interrogatorios (Brasil, 2014, p. 370). En el mismo tura para los presos políticos, el psicólogo chileno Her-
sentido, pero en una acusación más grave, el testi- nán Tuane Escaff (nacido en 1927) parece haberse obs-
monio de una exguerrillera relata cómo Lobo habría tinado en concebir su país, tras el golpe de 1973, como
sido “el jefe de su tortura”, cómo la “llenaba de reme- un gigantesco espacio dedicado, en cierto modo, a tor-
dios psiquiátricos” que le hacían perder “la noción de turar al conjunto de la población (Mella, 2013). Quizás
tiempo, de calor, de frío”, además de que se le hacía tal aserción deje de juzgarse exagerada cuando se con-
pasar por “simulaciones de ejecución” y por “descar- sidere la estrategia de guerra psicológica planeada por
gas eléctricas” que “contraían la musculatura”, todo en Tuane mientras estaba al frente de la Dirección de Rela-
una estrategia “muy bien articulada para enloquecer” ciones Humanas de la Secretaria General de Gobierno
(Magalhães, 2009, párr. 215). del dictador Augusto Pinochet. Además de intentarse
El objetivo de enloquecer a los torturados fue tam- legitimar la dictadura, desacreditar a los opositores y
bién denunciado al describir las estrategias de tortura “destruir la imagen del marxismo”, había un propósito
diseñadas e implementadas en un centro de reclusión explícito de amedrentar, fragilizar, vulnerar, deses-
de Uruguay, a partir de 1972, por Dolcey Marcelino tructurar, enfermar e incluso lastimar a la población
Brito Puig (1930-2016). Este psicólogo con “mediocre al suscitar y “manejar los sentimientos traumáticos
formación académica”, graduado en una institución de angustia, neurosis, tragedia, inseguridad, peligro y
privada de “bien pobre reputación” (González Ber- miedo”, y, de manera más precisa, “actualizando fac-
mejo, 1985, pp. 108-109), habría convertido el Penal tores neurotizantes” y haciendo emerger “contenidos
de Libertad en un “gran centro de enloquecimiento psicológicos latentes de índole angustiosa” y emo-
de presos políticos” (Uruguai, 1989, p. 221). Todo en el ciones como el “temor instintivo” de los delincuentes
Penal parecía estar destinado a la “destrucción psico- ante la perspectiva de “castigos angustiosos severos”
lógica planificada” (González Bermejo, 1985, p. 109). (Dirección de Relaciones Humanas, 1974, en Baltazar

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Mozqueda, 2017, pp. 127-130). La intervención del pinza del imperialismo estadounidense que no deja de
conocimiento psicológico en esta estrategia colectiva oprimir y lastimar a los pueblos latinoamericanos.
es prácticamente la misma que encontramos en algu- Considerando lo dudosa que resulta la recons-
nas torturas individuales. Quizás la estrategia de Tuane trucción en una ecuación destructiva-reconstructiva
reproduzca de alguna manera su experiencia más con- en la que solo hemos visto evidenciarse histórica-
vencional cuando auxiliaba torturas y administraba el mente la destrucción, quizás pueda considerarse que
suero de la verdad, el pentotal, a torturados por el Ser- lo único distintivo de Cameron, de Tuane y quizás
vicio de Investigaciones (Oliva García, 2013). El caso es también de Roquet, en contraste con Brito, Lobo y
que tenemos a un psicólogo torturador que además los demás, es el apéndice ideológico de un fin posi-
diseñó una estrategia de guerra psicológica en la que tivo, reconstructivo, con el que pretende justificarse el
vemos reaparecer elementos que nos hacen recordar la medio, así como también, tal vez, disimular el verda-
utilización de la Psicología en la tortura. dero fin. ¿Y cuál es el verdadero fin? Quizás precisa-
mente aquello que se hace pasar por medio. ¿Acaso
Consideraciones finales no es lógico y comprensible que el poder busque en
Una táctica reveladora de Tuane y de su equipo, última instancia destruir aquello que se le contra-
en la que alcanzamos a entrever la función destruc- pone? Y esto contrapuesto al poder puede ser para-
tiva de la Psicología en la tortura, es aquella por la dójicamente el psiquismo: el mismo psiquismo cre-
que se buscaba “desconcientizar” y así preparar el ado y recreado por el poder. Si lo más común es que
terreno para después “concientizar” en una direc- el mundo interno sea un lugar para ejercer el poder,
ción diferente (Dirección de Relaciones Humanas, aquí aparece como un reducto de resistencia contra
1974, en Baltazar Mozqueda, 2017, p. 129). Lo que se el interrogatorio y contra cualquier otra forma de
intentaba, en otras palabras, era desintegrar y destruir ejercicio del poder. La tortura buscaría entonces la
la conciencia compatible con el socialismo, aquella supresión de tal reducto, la eliminación de una bolsa
por la que Salvador Allende llegó al poder, para des- de resistencia, es decir, en definitiva, la sujeción del
pués reconstruir aquella forma de in-conciencia que torturado, su obediencia ante el torturador, su domi-
se requería en el capitalismo neoliberal pinochetista. nación por quienes emplean al torturador, su capitu-
Nos acercamos así, una vez más, como en el caso de lación ante el poder, su resignación a la condición de
Roquet, a la técnica de Cameron consistente en la subyugado, sometido, avasallado, oprimido.
reorganización y reconstrucción del psiquismo sobre La tortura funcionaría como el golpe de estado:
la base de su previa desorganización y destrucción. como un choque traumático para poner al dominado
La guerra psicológica de Tuane, como la tortura en su lugar de una vez por todas. La Psicología es aquí
psicológica de Roquet y de Cameron, servía para des- decisiva. Y, como hemos visto, no se necesita un psicó-
truir de algún modo el psiquismo: para desintegrar logo para aplicarla. De hecho, como lo demuestran los
el soporte psíquico del socialismo como un requisito hechos, ni siquiera se requiere de un profesional de la
indispensable para poder posteriormente constituir el salud mental. ¿Acaso hay que estudiar mucho para com-
soporte psíquico neoliberal. ¿Cómo no ver aquí el vín- prender las virtudes inherentes al shock del que habla
culo que Naomi Klein establece entre la estrategia des- Naomi Klein? Existe un testimonio en el que un tortura-
tructiva-reconstructiva de la conducción psíquica de dor brasileño, un simple oficial de policía, explicaba que
Cameron y la misma estrategia destructiva-reconstruc- los torturados eran “como perros de Pavlov”: el choque
tiva utilizada para la implantación del neoliberalismo al principio debía “ser de alto voltaje” y luego podían
en Chile a través del golpe de estado en el que Tuane aplicarse “choques más pequeños”, pues la “memoria
tuvo un rol decisivo? Quizás Tuane sea una suerte de sería del choque de alto voltaje” (Murat, 2013, párr. 28).
eslabón perdido entre los dos “doctores Shock” a los que No hay que ser un psicólogo para entender esto. O mejor
se refiere Klein (2014): entre Milton Friedman y Ewen dicho: esto puede ser comprendido por casi todos en
Cameron, entre la Escuela de Chicago y la de McGill, nuestra sociedad, pues casi todos somos un poco psi-
entre la técnica golpista y la de electrochoques, entre cólogos, entre ellos los torturadores, los represores, los
la dictadura y el empleo de la Psicología en la tortura dictadores, los políticos y los economistas.
(pp. 49-108). Es como si en Tuane viéramos cerrarse las Los sujetos van convirtiéndose en psicólogos
dos mordazas, la psicológica y la política, de aquella mientras que aquello que les rodea obedece cada

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Pavón-Cuéllar, David (2017). Psicología y Destrucción del Psiquismo.

vez más a funciones y determinaciones psicológi- vez más de la Psicología, no solo puntualmente para
cas. El mundo social ha ido psicologizándose así en torturar a quienes resisten a la despolitización, sino
el transcurso del siglo XX, y su psicologización, por también, de manera constante y general, para con-
cierto, implica una despolitización de lo que se vuelve seguir la despolitización de los demás a través de la
psicológico, es decir, aparentemente privado, personal psicologización masiva de la sociedad. Esta orienta-
e íntimo (De Vos, 2012). Desde luego que esta despoli- ción psicologizadora y despolitizadora parece haber
tización es política en sí misma y persigue un objetivo cumplido un papel central y fundamental en diversos
político preciso. Como bien lo ha señalado Rancière contextos en los que se ha torturado, como lo ha mos-
(1998), el “más viejo trabajo del arte político” es preci- trado Coimbra (1995) en el caso brasileño. Es como
samente la “despolitización” (p. 47). Despolitizar con- si las tiranías del último siglo fueran también despo-
tinúa siendo una de las más importantes estrategias tismos de la Psicología. Entendemos que esta misma
políticas para dominar. De ahí que podamos pensar Psicología no pudiera faltar en el instrumental de los
incluso, como Bourdieu (2001), en una “política de torturadores nazis y franquistas en Europa, franceses
la despolitización” (99-102). Lo importante aquí es la en Argelia, estadounidenses en todo el mundo y lati-
manera en que semejante política se ha servido cada noamericanos en regímenes dictatoriales.

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David Pavón-Cuéllar
Doutor em Psicologia – Universidad de Santiago de Compostela e Doutor em Filosofia – Université de Rouen.
E-mail: davidpavoncuellar@gmail.com

26
Pavón-Cuéllar, David (2017). Psicología y Destrucción del Psiquismo.

Endereço para envio de correspondência:


David Pavón-Cuéllar, Facultad de Psicología de la UMSNH, Francisco Villa 450, Dr. Miguel Silva González, 58110
Morelia, Michoacán, México

Recebido 30/06/2017
Reformulação 14/09/2017
Aprovado 20/09/2017

Received 06/30/2017
Reformulated 09/14/2017
Approved 09/20/2017

Recebido 30/06/2017
Reformulado 14/09/2017
Aceptado 20/09/2017

Cómo citar: Pavón-Cuéllar, David. (2017). Psicología y destrucción del psiquismo: la utilización profesional
del conocimiento psicológico para la tortura de presos políticos. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 11-27.
https://doi.org/10.1590/1982-3703010002017

Como citar: Pavón-Cuéllar, David. (2017). Psicologia e destruição do psiquismo: a utilização profissional do
conhecimento psicológico para a tortura de presos políticos. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 11-27.
https://doi.org/10.1590/1982-3703010002017

How to cite: Pavón-Cuéllar, David. (2017). Psychology and destruction of the psyche: the professional use
of psychological knowledge for torture of political prisoners. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 11-27.
https://doi.org/10.1590/1982-3703010002017

27
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 28-43.
https://doi.org/10.1590/1982-3703020002017

Ditadura e Insurgência na América Latina: Psicologia


da Libertação e Resistência Armada1

Domenico Uhng Hur Fernando Lacerda Júnior


Universidade Federal de Goiás, GO, Brasil. Universidade Federal de Goiás, GO, Brasil.

Resumo: Este artigo discute como a luta insurgente contra o terrorismo de Estado no Brasil e
na América Latina resultou na produção de novas ideias na Psicologia e como transformou as
formas de participação política dos sujeitos que aderiram a práticas radicais de luta política.
Os procedimentos de investigação foram revisão bibliográfica e entrevistas semidiretivas com
quatro ex-guerrilheiros brasileiros e um colombiano. Na revisão, foram consultadas obras sobre
Psicologia da Libertação, ditadura militar e guerrilha armada. Na análise das entrevistas, foram
selecionados conteúdos que se referem ao processo de conscientização dos entrevistados.
Constata-se que a atividade insurgente possibilitou a emergência de ideias e práticas na
Psicologia que buscam a construção de relações sociais justas. A insurgência também foi a
condição de possibilidade para a criação de novas experiências e reflexões sobre a atividade
política dos participantes da luta armada contra a ditadura. Tomar a perspectiva da insurgência
nos faz compreender os momentos de crise pelo seu potencial de transformação e emancipação.
Seja no âmbito da Psicologia como ciência e profissão, que se desloca de uma posição adaptativa
e normalizadora, para uma crítica e transformadora, ou nas experiências de militantes expressas
como “subjetividades insurgentes” que buscam transformação e revolução.
Palavras-chave: Ditadura, Psicologia Social, Política, Psicologia Política, América Latina.

Dictatorship and Insurgence in Latin America:


Liberation Psychology and Armed Resistance

Abstract: This paper discusses how insurgent struggles against Brazilian and Latin American
State terrorism produced new ideas in Psychology and changed the means of political
participation of subjects who upheld radical practices of political conflicts. The method was
developed through bibliographical review and semi-structured interviews with four ex-guerilla
members from Brazil and one from Colombia. Books and articles about: Liberation Psychology,
Military Dictatorship and Armed Guerilla were selected for the bibliographical review . Content
analysis aimed to identify narratives related to the process of conscientization. It was perceived
that insurgent activity turned possible the emergence of psychological ideas and practices
aimed at the creation of just social relations. Insurgency was also the condition of possibility
to the creation of new experiences and discussions about political activity in the experiences of
those who participated in the armed struggle against military dictatorship. Insurgency can turn
periods of social crisis into something that drives change and emancipation. This is possible
in Psychology, which can move from a normative position to a critical one and also in the
experiences of political militants that constituted themselves as insurgent subjectivities striving
for social change and revolution. Financial support: CNPq and CAPES.
Keywords: Dictatorship, Social Psychology, Politics, Political Psychology, Latin America.

1
Apoio: CNPq e Capes.

28
Hur, D. U.; Lacerda Júnior, F. (2017). Ditadura e insurgência na América Latina.

Dictadura e Insurgencia en Latinoamérica: Psicología


de la Liberación y Resistencia Armada

Resumen: Este artículo discute cómo la lucha insurgente contra el terrorismo del Estado
en Brasil y América Latina resultó en la producción de nuevas ideas en la psicología y cómo
transformó las formas de participación política de los sujetos que ejercieron prácticas radicales
de lucha política. Los procedimientos de investigación fueron revisión bibliográfica y entrevistas
con cuatro exguerrilleros brasileños y un colombiano. En la revisión fueron consultadas obras
sobre Psicología de la Liberación, dictadura militar y guerrilla armada. En el análisis de las
entrevistas fueron seleccionados contenidos que se refieren al proceso de concientización de
los entrevistados. Se constata que la actividad insurgente posibilitó la emergencia de ideas y
prácticas en la psicología que buscan la construcción de relaciones sociales justas. La insurgencia
también fue la condición de posibilidad para la creación de nuevas experiencias y reflexiones
sobre la actividad política de los participantes de la lucha armada contra la dictadura. Tomar la
perspectiva de la insurgencia nos hace comprender los momentos de crisis por su potencial de
transformación y emancipación, sea en el ámbito de la Psicología como ciencia y profesión, que
se desplaza de una posición adaptativa y normalizadora, para una crítica y transformadora, o en
el de las experiencias de los militantes expresadas como subjetividades insurgentes que buscan
la transformación y la revolución.
Palabras claves: Dictadura, Psicología Social, Política, Psicología Política, América Latina.

Introdução e “educação” (Pessotti, 1998). Neste cenário, houve


A História oficial afirma que a América Latina foi uma série de conflitos diretos e guerras entre raças e
“descoberta” no fim do século XV, quando espanhóis povos, lutas insurgentes contra o Estado, dentre estes:
e portugueses chegaram à costa e iniciaram a coloni- os movimentos de resistência escrava no período
zação da população indígena e do seu território. Dus- colonial, como a Guerra dos Palmares, movimentos
sel (1994) afirma que não houve “des-cobrimento” da independentistas no período imperial, como a Incon-
América Latina, mas sim “en-cobrimento” do Outro, fidência Mineira de Tiradentes, movimentos insurre-
da alteridade indígena. Abordagem parecida é a da cionais religiosos no período imperial e republicano,
Teoria da Dependência, que afirma que a América movimentos pela terra e dos trabalhadores no período
Latina só passa a existir enquanto tal, quando é incor- republicano, entre muitos outros. Lutas que acirraram
porada de maneira subordinada a um sistema capita- a tensão entre Estado e movimentos sociais, expres-
lista em formação e expansão (Marini, 2000). sando, assim, a violência sempre presente na consti-
A história do continente latino-americano foi tuição do Estado brasileiro.
marcada por diversos processos correlatos: a proxi- As ditaduras civis-militares na América Latina
midade temporal dos movimentos de independência e no Brasil surgiram para garantir a subordinação
no século XIX, a industrialização tardia, os regimes dos países latino-americanos ao sistema imperia-
populistas no século XX e os golpes que instaura- lista e para reprimir toda mobilização popular que
ram ditaduras em muitas nações (Castañeda, 1995). almejasse reversão dos padrões de superexploração
Quanto ao Brasil, sua invenção ocorre com a invasão (Marini, 2000). Portanto, os golpes militares repetiram
portuguesa sobre o território e sua população autóc- a violência histórica latino-americana. Ocorreram
tone. Incontáveis combates se travaram entre portu- quando segmentos das elites civis aliados aos mili-
gueses e índios. A captura destes não foi feita apenas tares pretenderam manter as relações instituídas de
por mercenários (bandeirantes), mas também pela dominação pelo uso da força direta para a tomada do
catequização jesuíta, a qual instrumentalizou conhe- poder do Estado, infringindo o regime democrático
cimentos psicológicos em um processo de dominação e constituindo um Estado de exceção. Perseguições,

29
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 28-43.

prisões arbitrárias, tortura e assassinatos tornaram-se especial sobre a ditadura brasileira. Em seguida,
algo comum. Centenas de mortos e desaparecidos no é analisada a constituição da PL de Ignácio Martín-Baró
Brasil, milhares no Chile, na Argentina, dezenas de como uma Psicologia crítica decorrente da aliança com
milhares em El Salvador. lutas insurgentes na América Latina. Finalmente é dis-
A sociedade não se manteve passiva com a violên- cutido o processo de participação política de ex-guer-
cia de Estado, emergiram movimentos insurgentes con- rilheiros com o fim de se refletir sobre subjetividades
tra a repressão, ditaduras ou governos aliados de uma insurgentes no contexto de repressão.
burguesia articulada às políticas norte-americanas e
que mantinham a população em condições miserá-
América Latina: da repressão à
veis. Desde as lutas por independência até rebeliões de insurgência
massas sufocadas por ditaduras indicam que a insur- Nos países latino-americanos impera enorme
gência das massas latino-americanas é um produto pobreza, concentração de renda e intensas contra-
das realidades de injustiça estrutural e expressão de dições sociais. Seu aprofundamento entre os anos
sua potência de vida. Na luta contra a ditadura, o ide- 1950 e 1980 se expressou na elevação da intensidade
ário da transformação ocupava o imaginário social, de das lutas em curso no continente. Ditaduras milita-
um devir-revolucionário atualizando-se em distintos res com o apoio do imperialismo norte-americano
movimentos sociais. A transformação era possível, pois assolaram o continente desde 1931, com o golpe
ocorreram acontecimentos importantes no âmbito militar em El Salvador. Em resposta ao golpe, o Par-
da esquerda mundial: em 1949, a Revolução Chinesa; tido Comunista do país, liderou uma insurreição
em 1959, a Revolução chegou à América Latina, na camponesa em 1932 que terminou com o violento
pequena ilha de Cuba; em 1962, a Argélia conseguiu massacre de dezenas de milhares de campone-
sua independência, após intensa luta armada contra o ses, indígenas e trabalhadores (Dalton, 1963/2010;
exército francês. Montgomery, 1995). A derrota deste levante popular
Este trabalho analisa duas implicações dos pro- representou uma mudança na relação dos partidos
cessos de insurgência no período de ditadura mili- comunistas (PCs) com as massas latino-americanas.
tar no Brasil e América Latina. Investiga como a luta Nas décadas seguintes, os PCs, além de serem violen-
insurgente contra o terrorismo de Estado na América tamente reprimidos, estagnaram com a hegemonia
Latina mudou a Psicologia e as formas de participação de práticas stalinistas, demonstrada pela incapaci-
política. Assim, em primeiro lugar, destaca-se como a dade de analisar as realidades da América Latina em
aliança com a luta insurgente criou uma Psicologia sua especificidade e por posturas políticas defen-
da Libertação (PL). Em seguida, analisa-se, a partir de sivas. Nos anos 1960, há uma mudança provocada
relatos de sujeitos envolvidos em lutas armadas guer- pela vitória da Revolução Cubana: a construção das
rilheiras, a conscientização e a mudança dos atores revoluções sociais a partir de lutas inspiradas pelas
sociais engajados com atividades insurgentes. táticas guerrilheiras se torna uma política influente
O trabalho utiliza dois procedimentos de inves- entre amplos setores de esquerda (Portantiero, 1989).
tigação: a revisão bibliográfica e entrevistas com qua- A Revolução Cubana foi um marco político para
tro ex-guerrilheiros brasileiros e um ex-guerrilheiro o continente. Na luta contra a ditadura de Batista e o
colombiano. Na revisão, foram consultados livros e imperialismo norte-americano, o Movimento 26 de
artigos sobre a constituição e principais características Julho adotou a luta armada como forma radical de
da PL e sobre a ditadura militar e a guerrilha armada. ação. Da exitosa guerra de guerrilhas de Sierra Maes-
Privilegiou-se textos clássicos de ambas as temáticas. tra, que tomou o poder em 1959, passou-se à instaura-
Realizou-se análise de conteúdo das entrevistas (Bar- ção de um regime socialista. Devido ao êxito da estra-
din, 1977; Vázquez, 1997), em que foram selecionados tégia de guerra de guerrilhas em Cuba e no Vietnã,
conteúdos que se referem ao processo de conscien- contra a invasão norte-americana, ela foi amplamente
tização política do ator social, de quando resolve ter utilizada pela esquerda política na América Latina nas
participação política e pegar em armas para a luta e décadas de 1960 a 1980, como forma de luta contra
resistência contra a ditadura. regimes ditatoriais e a favor de um projeto socialista.
O texto começa discutindo o contexto de ditadu- As emergentes organizações da esquerda tornavam-se
ras civis-militares na América Latina com uma ênfase partidárias das estratégias armadas castro-guevaris-

30
Hur, D. U.; Lacerda Júnior, F. (2017). Ditadura e insurgência na América Latina.

tas, que consistiam em fomentar a luta revolucionária nômico estava turbulento, a inflação anual beirava os
a partir de focos guerrilheiros de mobilização armada 100% e Jango radicalizou suas práticas com decretos
(Debray, 1967). Para Che Guevara (1960), o sucesso que “incluíam desapropriação de terras e a naciona-
da Revolução Cubana nos traz três aportes: (1) de lização de todas as refinarias de petróleo privadas”
que as forças populares organizadas podem vencer (Skidmore, 1998, p.215). Como Goulart e os movimen-
uma guerra contra o exército; (2) que nem sempre se tos de esquerda visavam a aceleração das reformas
precisa esperar que se dêem todas as condições para sociais, dirigentes militares, aliados a grupos conser-
a revolução, pois o foco insurrecional pode criá-las; vadores da elite civil executaram o Golpe de Estado
(3) na América Latina caracterizada pelo subdesen- em 1º de abril de 19642. Depuseram Jango do poder
volvimento, o terreno da luta armada deve ser funda- com a justificativa de ser um golpe preventivo contra
mentalmente o campo. uma suposta tomada de poder sua ou dos comunis-
Neste período, praticamente ao mesmo tempo, tas (Gaspari, 2002). Um “golpe” da esquerda naquela
sucederam-se ditaduras em vários países da América conjuntura era bastante improvável, pois o Partido
Latina, multiplicando-se também organizações de Comunista Brasileiro (PCB) estava otimista com sua
guerrilhas para combatê-las: aliança com os populistas e focava em sua legalização.
Houve uma intrincada articulação do golpe.
A Frente Sandinista na Nicarágua, criada em O governo dos EUA monitorou a operação e interviria
1961 por Carlos Fonseca Amador, proclamou com armamentos e apoio aos golpistas. Entretanto,
sua lealdade à guerra de guerrilhas de Augusto a ajuda bélica não foi necessária, não houve resistên-
César Sandino contra os marines norte-ameri- cia (Gaspari, 2002). Com a tomada do poder, as Forças
canos nos anos 1920; o MR-13 na Guatemala, Armadas iniciaram 21 anos de governo militar no país,
fundado em 1962 por jovens oficiais do exército, contando com o apoio de segmentos sociais, como
foi leal à memória do regime de Arbenz, derru- empresários e a Igreja. O Golpe instaurou um modo
bado em 1954. Criaram-se focos na Argentina, na de gestão da sociedade pautado mais em relações de
Colômbia (seguindo o exemplo de Camilo Tor- guerra do que de diálogo e negociação. Tal aconteci-
res, o sacerdote guerrilheiro aristocrata), no Peru mento surpreendeu toda a esquerda, que não esbo-
(a APRA rebelde de Luis de la Puente e o MIR, çou nenhum tipo de resistência, pois não levou em
a rebelião campesina de Hugo Blanco) e na região consideração sua iminência (Gorender, 1998).
boliviana de Ñancahuazú, onde o Che Guevara No poder, os militares instauraram o estado de
viveria seus últimos dias em 1967 (Castañeda, exceção através do dispositivo dos atos institucionais
1995, p. 91, tradução nossa). (AI). O primeiro conferiu poderes extraordinários ao
Executivo, a reforma de militares, a cassação de man-
No fim da década também surgiram grupos como datos eletivos e a suspensão dos direitos políticos de
o Movimento de Libertação Nacional –Tupamaros no qualquer cidadão. O AI-2 extinguiu todos os parti-
Uruguai, que elaborou teoricamente a possibilidade dos, reabriu as cassações políticas e criou um sistema
da realização da guerrilha urbana (Huidobro, 1988; bipartidário, com um partido do governo, Aliança
Pereyra, 1997), o Movimento da Esquerda Revolu- Renovadora Nacional, e um da oposição, Movimento
cionária no Chile (García, 2010), a Ação Libertadora Democrático Brasileiro. A manobra do governo era
Nacional (ALN), Vanguarda Popular Revolucionária de manter maioria permanente. A repressão atingiu
(VPR), Movimento Revolucionário Oito de Outubro seu apogeu com o decreto do AI-5, conhecido como o
(MR-8), entre outros no Brasil. “Golpe dentro do golpe”:
No Brasil, a ditadura se instaurou com o intuito
da manutenção do controle pelas elites (Gorender, O Congresso foi fechado (embora não abolido)
1998). O populismo do presidente João Goulart pre- e todos os crimes contra a ‘Segurança Nacio-
ocupava elites e segmentos das Forças Armadas que nal’ passaram a ser da alçada da Justiça Militar.
temiam o crescimento da esquerda. O cenário eco- A censura foi introduzida, visando especialmente

2
Para uma discussão mais aprofundada sobre as razões do golpe de 1964 e suas controvérsias, sugerimos a leitura do artigo de Fico
(2004), que discute as principais versões sobre a realização do Golpe de Estado.

31
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 28-43.

à televisão e ao rádio [...] Escuta telefônica, vio- A constituição de uma Psicologia


lação de correspondência e denúncias por infor- militante e revolucionária: a Psicologia
mante tornaram-se lugar comum. As aulas nas da Libertação
Universidades eram controladas e uma onda Não foi natural o movimento de a Psicologia assu-
de expurgos atingiu os principais docentes. [...] mir uma postura crítica frente à ditadura. Pelo contrá-
As forças de segurança puseram na mira espe- rio, houve uma tendência hegemônica de se adaptar ao
cialmente clérigos e estudantes da oposição regime instituído. É importante relembrar a contribuição
(Skidmore, 1998, p. 232). de Coimbra (1995) sobre como, após o golpe de 1964 e a
intensificação do terrorismo de Estado, a psicologização
A posição da direção do PCB de não pegar em operou no Brasil. Entre as classes médias, fortaleceram-
armas para combater a ditadura gerou desconten- -se o intimismo e o familismo: “O privado, o familiar, tor-
tamentos, cisões internas e busca por novas refe- na-se o refúgio contra os terrores da sociedade, nega-se
rências para a luta contra a ditadura militar. Surgi- o que acontece fora e volta-se para o que acontece den-
ram posições que romperam com a via institucional tro de si, de sua família” (p. 32). A Psicologia respondia
e pacífica do “Partidão”. Muitos militantes radicali- às necessidades dessa subjetividade dominante e do
zaram sua participação e pegaram em armas para regime vigente no país de quatro maneiras: (a) natura-
lutar pela revolução, deixando o PCB e constituindo lizando o esvaziamento da esfera pública e a “tirania da
organizações guerrilheiras. Dessa forma, os par- intimidade”; (b) oferecendo contribuições “científicas”
tidos de esquerda perderam parte significativa de para aprimorar o aparato de repressão do terrorismo de
seus quadros políticos. Com o recrudescimento estado identificando, por exemplo, o perfil psicológico
da repressão pelo Estado, as organizações da luta do “terrorista”; (c) psicologizando o comportamento de
armada também intensificaram suas práticas. Entre militantes, que passam a ser tratados como “desviantes”
1968 e 1972 houve uma série de ações armadas dos com problemas familiares; (d) por fim, mantendo-se
guerrilheiros como assaltos a bancos, expropria- silenciosa em relação aos problemas vivenciados das
ções de armas, sequestros de embaixadores e côn- maiorias populares. Soma-se também as práticas das
sules, ataques aos militares, atentados gerais, fugas entidades dos psicólogos, como o Conselho Federal de
etc. (Gorender, 1998). Psicologia (CFP), que homenageou figuras importantes
Dentre as distintas organizações, cita-se a ALN do regime civil-militar (Jacó-Vilela, & Braghini, 2015;
e a VPR. A ALN foi uma frente ampliada formada por Conselho Regional de Psicologia 6ª Região, 1994) e o Sin-
diversos segmentos sociais e teve como fim combater dicato dos Psicólogos de São Paulo que se negou a parti-
a ditadura por meio da luta armada, sendo uma das cipar dos movimentos humanitários que denunciavam
organizações guerrilheiras mais expressivas do país o assassinato do jornalista Wladimir Herzog nos porões
(Silva Junior, 2009). Carlos Marighella, comandante do Departamento de Operações Políticas e Sociais,
da ALN, estipula três princípios para a organização: por serem movimentos que iam contra a ideologia do
(1) o dever de todo revolucionário é fazer a revolução; Estado (Hur, 2007).
(2) não se pede licença para praticar atos revolucioná- No entanto, também é importante resgatarmos
rios; e (3) só existe um compromisso – com a revolu- aquilo que foi anunciado pela luta insurgente. Pois, tal
ção. Dessa forma, não há uma submissão à hierarquia como afirmam Jacó-Vilela e Braghini (2015), a coni-
da organização, pois o compromisso maior sempre é vência de representantes com a ditadura, não signi-
com os atos revolucionários. Já a VPR, fruto da junção fica que toda a Psicologia capitulara à ordem autocrá-
de dissidentes da Política Operária com o Movimento tica. A rebelião é uma atividade de criação: de novas
Nacionalista Revolucionário, foi uma das organiza- ideias, práticas e possibilidades para a vida humana.
ções guerrilheiras mais atuantes e congregou intelec- Da luta insurgente surgiram novas formas de relação
tuais, estudantes, ex-militares e operários. Também do sujeito com o mundo, assim como novas formas
teve como um dos seus quadros o ex-capitão do Exér- de se pensar e fazer Psicologia surgiram no contexto
cito Carlos Lamarca. de lutas revolucionárias3. A radicalização de teorias

3
“A revolução abala as categorias que usamos para dar sentido à experiência; mostra o quão artificial, ainda que convincente, é a sepa-
ração entre o ‘individual’ e o ‘social’ sob o capitalismo [...] É neste momento que disciplinas como a Psicologia, que fazem do isolamento
uma virtude, são abaladas em seu âmago” (Parker, 2007, p. 147-148).

32
Hur, D. U.; Lacerda Júnior, F. (2017). Ditadura e insurgência na América Latina.

sociais latino-americanas foi um contraponto da sociedade e de um novo ser humano no núcleo da Psi-
intensificação das lutas sociais. As estratégias de luta cologia (Dobles, 2016; Martín-Baró, 1989/2011).
contra a ditadura na América Latina se dividiam em A PL foi delineada especialmente após a intensi-
dois tipos, o “militarista”, que se refere ao combate ficação das lutas sociais em El Salvador. Com a rea-
direto do regime pela luta armada, e o “massista”, que lização de um novo golpe de estado em 1979, houve
se refere ao trabalho de conscientização popular e das uma unificação dos grupos de esquerda de El Salva-
massas (Lungaretti, 2004; Hur, 2012). dor na Frente Farabundo Martí de Liberación Nacio-
O segundo contribuiu para o fortalecimento de nal (FMLN) e, com isso, um acirramento da luta entre
teorias sociais críticas na América Latina em diversas dominadores e dominados (Montgomery, 1995).
áreas: teoria da dependência, teologia da libertação, Foi nesse contexto, ao questionar o papel da Psicolo-
filosofia da libertação, educação popular, sociologia gia diante de uma realidade estruturalmente violenta,
militante, Psicologia da Libertação e Psicologia Comu- Martín-Baró escreveu alguns dos seus textos mais
nitária (Flores, 2009). A intensificação dos conflitos importantes e, em 1986, apresentou o termo “Psicolo-
sociais resultou em uma rejeição das ideias de uma gia da Libertação”. Simpático ao programa da FMLN,
Psicologia dominante que, por cumplicidade ou por Martín-Baró (1980/2017) afirma que, em um processo
omissão, era instrumento das ditaduras latino-ameri- revolucionário, cabe ao psicólogo se questionar sobre
canas. Neste sentido, a atividade insurgente mudou a qual é a sua contribuição para a edificação de uma
face da Psicologia. A seguir citaremos um expressivo nova sociedade. Neste sentido, o “psicólogo revolucio-
exemplo: a Psicologia da Libertação4. nário” deve, primeiro, ser um “bom psicólogo”, pois
A PL na América Latina surge nos trabalhos de não pode mais buscar sua autoridade em estruturas de
Martín-Baró5, quem propõe construir uma Psicolo- poder, mas sim em sua capacidade de responder aos
gia que critica a realidade latino-americana, enfrenta problemas decorrentes do processo revolucionário e
condições estruturais de injustiças e desigualdades dos desafios de edificação do homem novo. Segundo,
sociais e fomenta processos de libertação (Dobles, deve ser um “psicólogo do povo”, deve reconstruir os
2016; Martín-Baró, 1986/2011). “A Psicologia da Liber- modelos teóricos a partir da ótica popular e de acordo
tação busca revelar processos psicológicos com o com os fins populares (Martín-Baró, 1980/2017).
fim de descolonizar o povo oprimido; neste sentido, A PL é, portanto, uma Psicologia que assume
ela dirige sua práxis para problemas psicossociais radicalmente um horizonte de libertação e coloca
gerados em formações sociais existentes no Terceiro como aspecto central de seu ser e fazer os problemas
Mundo” (Flores, 2009, p. 30). Trata-se de um projeto vividos pelas camadas populares na América Latina
de reconstrução da Psicologia rompendo com o poder (Martín-Baró, 1986/2011; 1987/2017a). O seu ponto
instituído. Ao invés de tentar se definir como uma de partida é a realidade latino-americana: os temas
abordagem teórica específica (psicanálise, behavio- que aborda não são colocados por contendas abs-
rismo etc.) ou como uma nova área de especializa- tratas. A proposta do autor é a de que: “não sejam
ção (Psicologia Social, Psicologia Clínica etc.)6, a PL é os conceitos que convoquem a realidade, mas que
um programa ético-científico-político que introduz a a realidade busque os conceitos; que as teorias não
luta contra a opressão e pela edificação de uma nova definam os problemas de nossa situação; mas que os

4
Exemplos de como a atividade insurgente modificou a Psicologia podem ser identificados em toda a América Latina. Aqui, podem ser
relembrados três exemplos. Primeiro, no Chile, durante o governo da Unidad Popular derrubado pelo golpe militar em 1973, a Psicologia
foi transformada por debates sobre a determinação social do conhecimento e sobre a sua relevância social para a nova realidade do país
(Zúñiga, 1975). Segundo, o exemplo cubano. A Psicologia em Cuba, após a revolução, buscou responder aos problemas práticos coloca-
dos pela sociedade pós-revolucionária, isto é, se desenvolveu impulsionada pela necessidade de resolver problemas vividos pelas maio-
rias populares ou apresentados por campanhas propostas pelo governo revolucionário (Torre Molina, 2009; Lacerda Junior, 2015; Solé,
2007). Por fim, a Psicologia Social Comunitária, que teve, entre suas primeiras práticas, a estreita associação com movimentos populares
que combatiam as instituições dominantes (Freitas, 1996). Em trabalhos como o de Góis (2003), a finalidade da Psicologia Comunitária
é claramente a de promover a auto-organização e a luta reivindicatória do povo oprimido.
5
Esta ressalva é importante, porque o termo “Psicologia da Libertação” aparece antes dos trabalhos de Martín-Baró (ver Flores, 2009).
É interessante ressaltar que, na África, a ideia de libertação entre teóricos “psi” aparece associada com contextos em que lutas armadas
contra a dominação imperialista ameaçavam a manutenção do status quo (Bulhan, 1982).
6
Assim, Martín-Baró justifica a importância de se refletir sobre o conceito de libertação pelas “possibilidades que abre para os diversos
ramos do fazer psicológico em nossas circunstâncias latino-americanas” (1989/2011, p. 212).

33
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 28-43.

problemas as exijam e, por assim dizer, escolham sua armada de alguns militantes políticos. Conscientiza-
própria teorização” (Martín-Baró, 1987/2017a, p. 78). ção é compreendida a partir da definição freireana:
A incorporação do horizonte de libertação na processo de desvelar a realidade mediante uma inser-
Psicologia tem duas implicações. A primeira é a liber- ção crítica na sociedade, portanto, trata-se, de um lado,
tação da Psicologia, isto é, uma redefinição da Psi- de análise e compreensão do mundo e, de outro, da ati-
cologia latino-americana questionando os modelos vidade de fazer e refazer o mundo (Freire, 1968/2005).
teóricos predominantes. Não se trata de descartar o Martín-Baró (1996; 1986/2011) destaca que o processo
conhecimento existente, mas de reconstruir e rede- de conscientização se inicia com a decodificação dos
finir a Psicologia a partir da perspectiva popular. mecanismos de opressão e desumanização da reali-
A segunda implicação é o engajamento do saber e dade vivida, passa pela construção de um novo saber da
fazer da Psicologia com as lutas populares. A incor- pessoa sobre si e sobre o seu mundo e, por fim, resulta
poração da perspectiva popular não deve se dar ape- na abertura de novas possibilidades de ação transfor-
nas pela realização de análises teóricas – já que não madora para o sujeito. Neste sentido: “conscientização
há efetiva libertação sem intensificação da luta contra articula a dimensão psicológica da consciência pes-
a ordem instituída – mas por contribuições concretas soal com a sua dimensão social e política e explicita a
às organizações populares que almejam a libertação dialética histórica entre o saber e o fazer, o crescimento
(Martín-Baró, 1986/2011; 1987/2017a; 1989/2011)7. individual e a organização comunitária, a liberta-
A partir dessa segunda implicação, Martín-Baró ção pessoal e a transformação social” (Martín-Baró,
definiu diversas tarefas específicas para a PL. Em um 1986/2011, p. 187).
primeiro trabalho (Martín-Baró, 1986/2011), desta- A conscientização pode contribuir para a supe-
cou três tarefas: a recuperação da memória histó- ração do “torpor” latino-americano, mas somente se
rica, a desideologização da experiência cotidiana e articulada com a reapropriação da experiência coti-
a potencialização das virtudes populares. Em outro, diana, a organização coletiva e a prática de classe
(1987/2017a) destacou como tarefas urgentes o estudo (Martín-Baró, 1987/2017b). Por organização coletiva
sistemático das formas de consciência popular, o res- entende-se a busca de grupos sociais por formas coo-
gate das virtudes populares e a análise das organi- perativas de resolução dos problemas estruturais que
zações populares como instrumentos de libertação. são desvelados pela consciência crítica. Já a prática
Apesar das ligeiras diferenças, todas as tarefas tinham de classe é a busca por mudança revolucionária de
como centro a preocupação em intensificar a ativi- estruturas políticas, econômicas e psicossociais da
dade insurgente dos povos. Este seria o elemento mais ordem social capitalista, condição para que uma efe-
importante com o qual a Psicologia deve se preocupar: tiva autonomia exista na história de vida do sujeito.
“Somente a prática revolucionária permitirá aos povos Neste trabalho, a conscientização política foi
latino-americanos romperem a inflexibilidade de
analisada a partir de entrevistas semidiretivas reali-
estruturas sociais congeladas em função de interesses
zadas com cinco ex-guerrilheiros que relataram sua
minoritários” (Martín-Baró, 1987/2017b, p. 200).
participação política na guerrilha armada8. Os relatos
analisados foram de: Fotógrafo (Organização Revolu-
Discursos da insurgência: a transição cionária Marxista Política Operária – Polop, VPR e Van-
para a luta libertária guarda Armada Revolucionária-Palmares – VAR-P),
Neste tópico pretendemos discutir como se deu Jornalista (VPR), Economista (VPR), Deputado (Guer-
o processo de conscientização política e adesão à luta rilha do Araguaia, organizada pelo Partido Comunista

7
Martín-Baró (1987/2017a, p. 83) foi enfático quanto a este aspecto: “Enquanto os povos não contarem com poder social, suas necessi-
dades serão ignoradas e sua voz silenciada. Por isso, como psicólogos, devemos contribuir para fortalecer todas as mediações grupais
– comunidades ou cooperativas, sindicatos ou organizações populares – que buscam representar e promover os interesses das classes
majoritárias”. É preciso ressaltar que esta preocupação com a contribuição prática da Psicologia não passou despercebida. Para além do
assassinato que, de forma brutal, ilustra o incômodo da obra de Martín-Baró ao poder instituído, pode-se citar, como exemplo, o fato de
uma revista liberal estadunidense ter publicado um artigo destacando a importância das pesquisas de opinião realizadas por uma orga-
nização fundada em 1986 por Martín-Baró, o Instituto Universitario de Opinión Pública (Iudop), para revelar a falsidade das pesquisas
de opinião realizadas por uma agência utilizada pelo governo dos EUA – a Organização Gallup (Bollinger, & Lund, 1988).
8
As entrevistas com os ex-guerrilheiros brasileiros foram realizadas no ano de 2008 em São Paulo e a do ex-guerrilheiro das FARC no ano
de 2009 na cidade de Barcelona.

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Hur, D. U.; Lacerda Júnior, F. (2017). Ditadura e insurgência na América Latina.

do Brasil – PCdoB) e Colombiano (Forças Armadas Minha família é uma família pobre, de campo-
Revolucionárias da Colômbia – FARC). Como o foco neses [...]. Comecei a trabalhar com oito anos de
aqui se dá sobre a gênese de suas participações polí- idade, na roça. Eu era o filho mais velho e ajudava
ticas, são citadas apenas análises sobre o processo de meu pai. Então, eu praticamente não tive adoles-
conscientização política e adesão à luta armada. cência, minha infância foi na roça, trabalhando
diretamente na agricultura (Deputado, 42-46).
O início da conscientização política
Todos os entrevistados relataram a percepção Ao sair da roça para estudar, foi morar numa Igreja.
sobre as contradições sociais como um passo inicial Começou a participar de movimentos religiosos, tendo
para a tomada da consciência sobre os processos polí- uma militância inicial na Juventude Agrária Católica e
tico-sociais. A insurgência nascia da percepção de um na Juventude Estudantil Católica. Afirma que se enga-
cenário de injustiça social. Tal fato é correlato à afir- jou na militância política quando entrou na faculdade
mação de Carlos Fonseca, fundador da Frente Sandi- e no movimento estudantil. A influência do contexto
nista de Libertação Nacional, que entende que a ori- que vivia foi um fator importante de politização:
gem dos movimentos armados na América Latina se
deu mais por “vergonha” das situações político-sociais a Universidade naquela época era o centro polí-
desses países, do que propriamente por uma “consci- tico daquela efervescência cultural, ideológica e de
ência” (Martí, 2006, p. 15). oposição à ditadura [...] E dentro da Universidade
Para Economista, perceber as contradições sociais a gente tinha uma vida intensa, não só de estudar,
no Brasil foi importante para se indignar frente ao estado mas de fazer política, música, teatro, enfim a Uni-
de coisas e posteriormente lutar contra o que conside- versidade era o cenário propício para aquela efer-
rava injusto. Cita seu choque ao mudar para o Nordeste vescência política. [...] Depois veio as lutas pelos
e se deparar com situações extremas de pobreza: excedentes, as ocupações, o enfrentamento com a
polícia, aquilo ali foi um crescente. E era uma vida
Essa minha compreensão, digamos, política e muito libertária, no sentido do desprendimento,
minha indignação, ninguém se torna revolucio- da dedicação que a gente vivia dentro da Univer-
nário porque vê uma coisa bonitinha. Atitude sidade (Deputado, 164-172).
pessoal, que é uma atitude não só intelectual,
de conjunto, de visão de mundo, né, passa por, A Universidade era considerada como espaço
digamos, um “sentir” as coisas de determinada de vivência múltipla e que acolhia seus anseios de
maneira, tudo por um sentimento de solidarie- abertura ao mundo, tendo uma importância central
dade com pessoas obviamente esmagadas (Eco- para o engajamento e a politização. Nela, teve uma
nomista, 54-589). intensa atuação e rápida progressão nos espaços de
participação política:
Com seu relato pode-se entender que deter-
minada experiência concreta foi o ponto de partida E naquele clima de efervescência eu misturei com
de seu processo de conscientização. Ela se amplia a compreensão das minhas origens, da situação
quando estuda Economia e compreende os meca- da minha família e também com a consciência
nismos que geram a desigualdade social: “acabei me política. Aí eu fui escolhido para ser o presidente
vinculando ao curso de Economia Política da Universi- do Centro Acadêmico numa eleição direta. E fui
dade de Lausanne [...] Aí eu passei a entender os meca- eleito. Aí já foi rápido, no ano seguinte eu já estava
nismos econômicos que estão por trás dessa tragédia no DCE, liderando as passeatas, as mobilizações
que é latino-americana” (Economista, 83-87). de Fortaleza. No período de 68, já estava partici-
Deputado rememora a vivência que teve como pando dos encontros da UNE aqui em São Paulo,
família campesina para que compreendesse e vivesse que o DCE no Ceará se equiparava à UEE, por-
a aguda contradição social existente no Brasil. que só tinha uma Universidade. Aí eu já estava
Teve que trabalhar muito cedo: numa militância engajada muito rapidamente.

9
Os números entre parênteses referem-se às linhas em que a presente citação se localiza na entrevista integral.

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 28-43.

Foi um ano no Centro Acadêmico, um ano no DCE Monteiro Lobato, que era bem, assim, aberta, né,
e depois já na militância estudantil na UNE, foi o cara era anticapitalista, [...] então foi, digamos,
uma coisa relativamente rápida. Numa época em o começo de uma consciência; ler muito e as coisas
que as coisas aconteciam com muita intensidade que, ele, Monteiro Lobato, debochava dos podero-
(Deputado, 136-145). sos do mundo, gozava até da roupa dos capitalis-
tas, com as cartolas e tal, ele dava uma visão bem
Fotógrafo afirma que ser vizinho de famílias de irônica, bem sarcástica da sociedade estabelecida,
operários foi fator que gerou o início da compreensão dos poderes estabelecidos. Então isso, acho que
das contradições sociais. No seu processo de politi- pegou muito, porque ler uma coisa dessas com
zação, ocorre fenômeno correlato como o que ocor- nove-dez anos de idade marca (Jornalista, 48-57).
reu com Deputado, a vivência da contradição social
foi ressignificada quando ingressa na Universidade e Entende-se que para Jornalista, suas leituras
começa sua formação política. Portanto, na infância foram de grande valor para descobrir o mundo e para
a contradição social é sentida, mas apenas é “signi- sua politização, como ler e entrar em contato com as
ficada” depois do início da militância política. Mas, críticas ao capitalismo de Monteiro Lobato. Os amigos
diferente de Deputado, a contradição social é vista também foram fator importante para chegar ao movi-
na pobreza do outro, nos filhos dos operários, pois mento estudantil:
Fotógrafo sentia diferenças sociais entre sua família
judia, de classe média, e as famílias de operários. Tive um amigo que era mais velho [...]: participou
da luta armada comigo. Ele me trouxe esse appro-
Depois na adolescência, no ginásio, colegial, eu fui ach socialista, alguma coisa já embrionária de mar-
alienado, nas escolas que estudei não tinha movi- xismo, o anti-americanismo, tudo isso. E como ele
mento secundarista, não queria saber de nada. era mais velho, também me indicou livros, se inte-
Pior que eu era jogador de futebol, queria ser joga- ressou antes de mim por Kafka, Camus, Sartre [...]
dor profissional de futebol, eu era totalmente alie- Enfim, foram amizades que me tocavam para frente,
nado, só me salvei quando eu entrei na faculdade me tornava adulto mais cedo (Jornalista, 137-147).
de Física, que era na Faculdade de Filosofia aqui
da Maria Antônia (Fotógrafo, 40-44). A politização de Colombiano já se deu de outra
Na faculdade eu entrei, no vestibular, em 64, e logo forma, por influência de familiares que militavam em
tem o golpe. E foi aquela agitação na Maria Antô- organizações de esquerda:
nia, aí comecei a ver assembleia, o que nunca
tinha ouvido falar na minha vida. [...] Aí caiu a muchos de ellos pasaron a militar dentro de orga-
ficha, comecei a participar de assembleia, me nizaciones de izquierda [...] Había algunos que
manifestar, já fui doutrinado, já fiz cursinho polí- militaban en organizaciones de influencia mao-
tico... (Fotógrafo, 120-125). ísta, otros en el Partido Comunista. [...] Ellos, siendo
familiares, algunos vivían cerca a mi residencia,
Compreendia-se como um jovem despolitizado a la casa nuestra. A veces iban a casa, algunos de
que teve a sorte de conhecer o Grêmio da Faculdade, ellos dejaban algún periódico de izquierda, en este
pois assim se “salvou” da alienação. Tal participação caso me refiero a un periódico que ese entonces se
em assembleias foi a porta de entrada para sua mili- llamaba “La voz proletaria”, que era el semanario
tância política estudantil e depois, para a luta armada. del Partido Comunista Colombiano. Hasta que en
Já Jornalista, cita que a literatura foi o espaço poten- una oportunidad, ya finalizando mis estudios de
cial para a constituição de sua consciência política. bachillerato, uno de ellos mi invitó a una conferen-
Lia muito e desenvolveu uma consciência anticapita- cia sobre el tema de los chinos. En ese momento el
lista através da leitura precoce: PC Colombiano, alineado con la Unión Soviética,
tenía una lucha ideológica contra todas las vertien-
Era meio adoentado, tinha problemas respirató- tes maoístas. Recuerdo yo que asistí esa conferencia
rios, muita gripe, então de criança me habituei en la sede del Sindicato de trabajadores de trans-
a ler muito cedo [...] Li a obra inteira infantil do porte aéreo (Colombiano, 53-66).

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Hur, D. U.; Lacerda Júnior, F. (2017). Ditadura e insurgência na América Latina.

Com a participação nessas conferências e os dela, engajaram-se com o projeto da luta contra a
debates políticos em família, foi convidado a entrar ditadura e, posteriormente, com organizações de luta
para o PC colombiano, ingressando assim na Juven- armada. No discurso de Deputado aparece uma maior
tude Comunista. Ao entrar na Universidade passa a importância atribuída à atuação no movimento estu-
ter uma atuação no movimento estudantil, partici- dantil, tanto que chegou a participar da direção da
pando ativamente dos debates universitários. União Nacional dos Estudantes (UNE). Para exempli-
ficar o processo da transição à atuação armada, são
Y creo que dos, tres años después, yo ya era una per- citados trechos de falas dos entrevistados que justi-
sona reconocida en todo el ámbito de la Universidad. ficam a mudança de suas práticas políticas, muitas
Pero que además de eso dentro de la Juventud Comu- vezes devido às ações opressivas do Estado militar.
nista ya empecé a asumir mayores responsabilida- Para Fotógrafo, sua vivência de movimento
des, ya hacía parte de lo que se llamaba la Comisión estudantil foi potencializadora para seu processo de
Regional Estudiantil, hacía parte del Comité Eje- politização e entrada para a luta armada. Em pouco
cutivo Regional de la Juventud Comunista, es decir, tempo após o início de sua militância política, entrou
ya tenía unos roles cada vez más comprometidos em uma organização revolucionária, a Polop:
desde el punto de vista orgánico. [...] Realmente mi
hogar era la Juventud Comunista y era los proble- Era tudo muito rápido. Havia um golpe, que criou
mas estudiantiles. Y lo que caracteriza a los militan- uma ditadura, aí para participar, já havia uma
tes de la década de 70, es decir, un grado de sacrifi- luta que tinha que enfrentar a ditadura. Aí logo em
cio, en la que, los problemas familiares, académicos, seguida que comecei a participar e fazer pergunta, eu
de actitud individual eran irrelevantes con relación cheguei a falar em assembleia: “Mas por quê?” Aí me
a los problemas de la organización y la lucha polí- chamaram, fiz meu primeiro curso de marxismo-
tica revolucionaria (Colombiano, 131-141). -leninismo, nunca ouvi falar de comunismo, socia-
lismo, foi nos cursos elementares de doutrinação, né.
Depois do primeiro cursinho já comecei a partici-
Os relatos anteriores mostram que indignação e
par numa organização de tendência trotskista. Nós
organização são dimensões associadas ao processo
éramos propagandistas da luta armada, já éramos
de conscientização política. Os relatos de Economista,
contra a posição política do PCB. Foi assim, me inte-
Deputado e Fotógrafo demonstram que todos viven-
ressei logo e me engajei (Fotógrafo, 129-137).
ciaram desigualdades ou viram a pobreza e a miséria.
Mas essas experiências só foram convertidas em indig-
Economista cita as injustiças sociais como
nação após a decodificação de mecanismos opressi-
motivo para ingressar na luta armada. Na medida em
vos e desumanizantes possibilitada por alguma forma
que se politiza e entende os mecanismos que mantém
de organização coletiva como, por exemplo, o movi-
o Brasil em seus grilhões econômicos, passa a ver que
mento estudantil universitário. Já Jornalista decodifica
a situação do país piora em virtude da ditadura mili-
o mundo pela literatura, mas suas ações dependem de
tar. A intensificação das grandes contradições sociais
experiências coletivas possibilitadas por amizades. Por
brasileiras o indignou mais ainda:
fim, o relato de Colombiano mostra que a organização
coletiva era parte constitutiva de sua vida. Assim, não
Esse para mim é o pano de fundo, digamos, de
somente a vivência das experiências de opressão, mas
uma transformação que me levou na época a con-
a sua análise crítica e a produção de novos posiciona-
tatar várias pessoas que estavam se organizando
mentos nas relações sociais em organizações coletivas
em Paris, para se articular [...] Então muita dessa
possibilitaram novas experiências, como a indignação,
gente exilada estava em Paris, estava se organi-
e o desdobramento de novas possibilidades de ação
zando para voltar ao Brasil e fomentar um movi-
que se expressaram na luta revolucionária.
mento de oposição, me chamaram e enfim, eu fui
(Economista, 150-154).
A entrada na luta armada
A participação estudantil foi um importante Portanto, é a partir desse repertório de valores
momento de politização dos entrevistados. Por meio e das redes de amizade que constituiu é que decide

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 28-43.

retornar ao Brasil e lutar pela Revolução Socialista A divisão no seu discurso fica clara, em que
no país. Deputado decide dedicar-se integralmente associa aos universitários a figura de “pessoas frou-
ao movimento estudantil e ao PCdoB. Abandonou xas”, com uma ação ineficaz e os guerrilheiros como
o movimento estudantil depois do decreto do AI-5. o “pessoal da pesada”, o “novo” modelo de atuação
Devido à perseguição, viveu clandestino em São política. Por isso seu grupo decidiu não se agregar à
Paulo durante um ano e meio, até que se disponi- Dissidência Universitária e tentou aliar-se a um grupo
bilizou ao PCdoB para a entrada na guerrilha rural que tivesse uma ação política considerada mais eficaz
que estava sendo organizada na região do Araguaia, e contundente. Então, após o “racha” com a Dissidên-
entrando assim para a luta armada. Abaixo, relata o cia, buscou contato com organizações de luta armada,
processo repressivo corrente, em que pessoas que pois queria integrar-se na luta radical pela revolução.
tiveram participação em movimentos de massa eram
bastante perseguidas: Então, nós oito, conforme o movimento de massa
que se tornava cada vez mais perigoso, impossí-
Quando veio o Ato Institucional número 5, foi vel, reprimido, CCC fazendo provocações, tiroteio
um emparedamento daquela geração toda. na Maria Antônia, conforme foram acontecendo
A vanguarda do Movimento Estudantil, ou ela era todas essas coisas, ocupação militar na Greve de
presa, ou ia para a clandestinidade, ou para o exí- Osasco, conforme a coisa radicalizava a gente foi
lio. Porque mesmo que as pessoas fossem cuidar vendo, sentia que aquilo ia estourar, que não ia ter
de suas vidas, eram presas e torturadas. Então foi mesmo mais chance de continuar no esquema de
um conjunto de fatores, consciência, opção, empa- movimento de massa. A gente começou a procurar,
redamento com o AI-5 e uma consciência de que lá para outubro de 68, a gente já estava fazendo
o caminho era fazer a resistência armada, ou da contato com as organizações, o pessoal vinha
forma da guerrilha urbana, como alguns compa- expor suas linhas, então veio o companheiro da
nheiros fizeram, ou na forma da guerrilha rural, ALN, do POC – Partido Operário Comunista – um
que foi a opção do PCdoB, no caso da Guerrilha do desdobramento da Polop, veio PCBR, veio Espi-
Araguaia (Deputado, 206-213). nosa da VPR (Jornalista, 257-265).

Deputado expressa o AI-5 como um marco da Nota-se que a opção pela luta armada resultava
extrema repressão. Os militantes estudantis tiveram da vontade de continuar na militância política, como
como destino a prisão, o exílio ou a militância clan- também da avaliação de que participar no modelo de
destina. Mesmo as pessoas que abandonavam a mili- movimento de massas já não se sustentava, pois esta-
tância política chegavam a ser perseguidas, presas vam sendo massacrados pela repressão e pela violên-
e torturadas pela repressão do Estado; houve cerca cia do Estado militar. Então uma saída possível para
de 20.000 torturados por motivos políticos no perí- alguns militantes foi aderir à luta armada para poder
odo da ditadura militar (Gorender, 1998). Jornalista se proteger. Nesses casos, a adesão à luta armada tor-
explica que quando atuava no movimento estudantil nou-se algo “compulsório” para o militante que que-
secundarista, a luta armada adquiria maior eficácia ria continuar sua atuação com “algum tipo de segu-
política em seu imaginário. Tinha contato direto com rança”, sem sair do país, ou para tentar se defender em
a Dissidência Universitária de São Paulo, organiza- caso de prisão. Portanto, entende-se que o fenômeno
ção ligada à ALN: do surgimento das organizações armadas teve uma
relação direta com o recrudescimento da violência do
[...] mas naquele instante o pessoal da Zona Leste Estado de Exceção. A intensa repressão do Estado foi
queria mesmo era se integrar com o pessoal da a gota d’água que produziu a participação dos atores
pesada, que estava assaltando banco, ia para a sociais na guerrilha. Fotógrafo e Economista nos con-
guerrilha; não gostávamos dos universitários, nos tam processos similares:
desprezavam e era mútuo. Eles viam a gente como
tarefeiro e a gente via eles como bundas-mole [...] Não que a luta armada tenha sido um erro. Eu acho
Então na hora que a Dissidência resolveu nos que havia todas as condições para começar a luta
admitir, nós ficamos fora (Jornalista, 228-234). armada. Não havia nada de democracia, não havia

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Hur, D. U.; Lacerda Júnior, F. (2017). Ditadura e insurgência na América Latina.

mais formas de vida democrática no país. Aquilo en septiembre del año de 1973, entonces hubo una
que existia era fachada, havia uma ditadura que discusión en el seno de la izquierda latinoameri-
reprimia tudo e a maneira para lutar contra a cana, unos, por ejemplo en el caso de los colombia-
ditadura, uma das formas, era fazer a luta armada nos, que hacíamos un planteamiento en el sentido
contra a ditadura. Que não pode esquecer, além da de que era necesario la combinación de toda las
luta contra a ditadura, a gente queria implantar o formas de lucha, es decir, priorizando no la lucha
socialismo. Para fazer a revolução no Brasil, nossa armada, sino la lucha política, la lucha callejera.
primeira coisa era combater a ditadura. Então, Pero también combinándola por la acción política
acho que foi primário porque nós abandonamos o abierta de carácter legal, a través de la búsqueda
trabalho político (Fotógrafo, 260-267). de representación en los organismos de elección
popular y también la expresión armada, entonces,
Fotógrafo relata que, com a proibição das prá- ese era el planteamiento de las células comunis-
ticas democráticas no período da ditadura, a opção tas en Colombia. Hubo algunos sectores en las que
adotada foi pegar em armas para lutar pelo sonho priorizaban, que daban solamente relevancia a la
revolucionário. E sua autocrítica, de considerá-la “pri- lucha armada y consideraban que participar de
mária”, refere-se ao fato de terem abandonado o tra- procesos electorales era revisionismo, era aceptar
balho político, ou seja, a adesão de sua organização las reglas del enemigo y que por tanto el cambio
à guerrilha fez com que abandonasse o trabalho de solamente se podía lograr a través de la acción del
mobilização popular. Economista (179-182) alega que fusil (Colombiano, 166-179).
a adesão à luta armada se justificou devido ao golpe
militar, ilegalmente perpetrado pelas elites sociais, Colombiano intensificou sua participação polí-
portanto, em seu relato, a ditadura militar produziu tica, organizando atos públicos e passou dez meses
as organizações de guerrilha. Após as organizações de estudando comunismo na União Soviética. Em seguida,
esquerda optarem pela luta armada, houve uma ins- e com a aprovação do partido, ingressa nas FARC, com-
titucionalização dessa prática, em que intensificaram preendendo a luta armada como uma modalidade de
seu caráter militarista e diminuíram seu caráter “polí- “luta superior”, a qual teria eficácia para transformar o
tico”. Houve uma estratificação desse viver: quadro de exploração social da América Latina.
Nos relatos agrupados neste tópico, é possível
E se no começo a gente nasce como luta armada, notar a importância da prática de classe como dimen-
com o tempo você anda armado pela própria são importante da conscientização (Martín-Baró,
repressão. Porque você tem que sobreviver como 1987/2017). A busca por autonomia que começa com
pessoa, está identificado, você está pronto para e que é parte do processo de conscientização implica
matar quem vem te prender, ou se não há outra em desenvolvimento de práticas sociais que resultem
alternativa, se matar para não ser preso e não ser em mudança revolucionária das estruturas existentes.
forçado a delatar as outras pessoas sob tortura. A decodificação do mundo existente e a organização
A tortura na época, você sabe, era generalizada coletiva só ganham sentido no interior da busca por
(Economista, 331-335). criar condições que possibilitem o desenvolvimento
e a manutenção de uma vida caracterizada pela luta
Colombiano, no início da década de 1980, tam- pela transformação social. Assim, a opção pela luta
bém adere à luta armada a partir de uma maior impli- armada relatada pelos entrevistados foi a opção por
cação na luta política que assumia. Cita o debate polí- uma prática de classe específica que parecia ser mais
tico que ocorria: efetiva ou a única alternativa viável de se alcançar
mudanças significativas. Deputado, Economista,
Va tomando fuerza el planteamiento dentro de la Fotógrafo, Jornalista e Colombiano apontam para
izquierda latinoamericana que la forma principal essa necessidade de se fazer algo que implicaria em
de lucha, y la única forma eficaz de lograr los cam- transformação revolucionária das relações sociais ins-
bios revolucionarios en America Latina es a través tituídas. Com esses fragmentos, buscou-se selecionar
de la lucha armada. Porque ya se tenia presente el relatos de pessoas que passaram por um processo de
derrocamiento del gobierno de Salvador Allende conscientização política e direcionaram suas vidas na

39
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 28-43.

luta contra o regime de opressão. A insurgência ori- Em segundo lugar, a atividade insurgente tam-
ginou-se na percepção das injustiças sociais vividas, bém foi condição de possibilidade para a criação de
constituiu novos grupos políticos e a adoção de uma novas experiências, subjetividades e reflexões sobre
nova postura: pegar em armas para lutar pela revolu- a atividade política. Os relatos destacados mostram,
ção. Esses militantes tomaram a responsabilidade do no âmbito da subjetividade e da luta política, que a
país, pagando o preço ao colocar as próprias vidas em conscientização não se relaciona apenas com a refle-
risco, através da atualização de um imaginário e de xividade, mas com a organização coletiva e a prática
uma ação radical pela transformação social. de classe que almejam a revolução. Indignação e ati-
vidade insurgente foram condições para a redefini-
Considerações finais ção dos horizontes, possibilidades e trajetórias dos
O presente trabalho, a partir de resgate histórico de entrevistados. Diante de uma situação de crise social,
um período de intensos conflitos no continente latino- a busca por autonomia não se reduziu à reflexão, mas
-americano, tentou apresentar duas das diversas pos- à ação que, por sua vez, possibilitou aprofundar a
sibilidades abertas pelas atividades insurgentes contra compreensão da sociedade brasileira e a criação de
as ditaduras civis-militares. Em primeiro lugar, a ati- novas formas de se tentar transformá-la.
vidade insurgente possibilitou a emergência de ideias A ditadura civil-militar aprofundou e intensi-
e práticas na Psicologia que buscam a construção de ficou a crise social que produziu o acirramento das
relações sociais justas, democráticas e emancipatórias. lutas sociais no Brasil. A sua consolidação explicitou
Resgatar e explorar o potencial dessas ideias e práticas as diversas contradições sociais que caracterizavam
é central para pensar como a Psicologia brasileira pode e ainda caracterizam a sociedade brasileira e, nesta
contribuir para a superação de situações estruturais de situação, a busca por uma pretensa normalidade que
injustiça e desigualdade social. só poderia ser alcançada pela imersão no intimismo
A emergência da PL demonstra que o desen- foi incentivada por diversas instâncias sociais, inclu-
volvimento de um pensamento crítico não depende sive a Psicologia. Ao mesmo tempo, contraditoria-
apenas da reflexividade. Diversas propostas de “Psi- mente, as ditaduras latino-americanas contribuíram
cologia Crítica” surgiram na Europa ou nos EUA com- para a radicalização das atividades insurgentes e,
batendo o positivismo, metodologias quantitativas e o portanto, das ações que buscavam transformação e
experimentalismo, resultando em infindáveis debates autonomia social. Da radicalização brotaram a PL e
reflexivos sobre realismo, construcionismo, discurso o desenvolvimento de uma nova postura política na
etc. (ver a compilação organizada por Parker, 1998). esquerda política brasileira. Tanto uma quanto a outra
Mas a hipertrofia da reflexividade ou a ênfase no cará- buscavam a produção de um novo mundo, de novas
ter social das relações humanas não são garantias possibilidades, mesmo que isso significasse a possibi-
para a construção de uma Psicologia que contribua lidade de perder a vida.
para a transformação social, pois podem conviver, Tomar a perspectiva da insurgência para a Psico-
sem qualquer contradição, com um sistema opressivo logia nos faz compreender os momentos de crise pelo
e explorador (Parker, 2007). A PL, que surgiu em perí- seu potencial de transformação e produção de auto-
odo de violência de Estado, também critica o positi- nomia. Seja no âmbito da Psicologia como ciência e
vismo e metodologias tradicionais, mas diferencia-se profissão, em que se pode autoanalisar suas práticas
por sua implicação com a atividade insurgente contra e posicionamentos políticos, saindo assim de uma
a opressão e as ditaduras militares, constituindo-se postura adaptativa e normalizadora, para uma crítica
como uma Psicologia Política Crítica (Hur, & Lacerda e transformadora. Ou no ponto de vista dos militantes
Junior, 2016). Problematiza as políticas da Psicologia, políticos, em que se constatou a emergência de “sub-
para refletir e elaborar possibilidades de intervenção jetividades insurgentes”, com um potencial de ação e
crítica e transformadora. Assim, explorar esta vertente pensamento que acedeu a organizações coletivas de
parece ser mais relevante do que reproduzir tendên- luta contra a ditadura instituída, numa postura em
cias dominantes provenientes do Norte, especial- que não se contentava em conformar-se às estruturas
mente se a meta da crítica é transformar estruturas políticas vigentes, mas sim em transformá-las, num
sociais de injustiça e desigualdade. devir e fazer revolucionário.

40
Hur, D. U.; Lacerda Júnior, F. (2017). Ditadura e insurgência na América Latina.

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Domenico Uhng Hur


Graduado, mestre e doutor em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo, São Paulo – SP. Brasil. Professor
adjunto de graduação e pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Goiás, Goiás – GO, Brasil. Editor
da Associação Ibero Latino-americana de Psicologia Política (2016–2018). Atualmente realiza pós-doutorado na
Universidade de Santiago de Compostela, Espanha.
E-mail: Domenico@ufg.br

42
Hur, D. U.; Lacerda Júnior, F. (2017). Ditadura e insurgência na América Latina.

Fernando Lacerda Júnior


Graduado e doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica, Campinas – SP. Brasil. Professor adjunto
de graduação e pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Goiás – GO, Brasil. Ex-presidente da
Associação Brasileira de Psicologia Política (2014–2016).
E-mail: fernando_lac@yahoo.com.br

Endereço para envio de correspondência:


Faculdade de Educação. Rua 235, s/nº. Setor Universitário. CEP: 74605-050.
Goiânia – GO. Brasil.

Recebido 20/06/2017
Aprovado 28/09/2017

Received 06/20/2017
Approved 09/28/2017

Recebido 20/06/2017
Aceptado 28/09/2017

Como citar: Hur, D.U., & Lacerda Júnior, F. (2017). Ditadura e insurgência na América Latina:
psicologia da libertação e resistência armada. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 28-43.
https://doi.org/10.1590/1982-10.1590/1982-3703020002017

How to cite: Hur, D.U., & Lacerda Júnior, F. (2017). Dictatorship and insurgence in Latin America:
liberation psychology and armed resistance. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 28-43.
https://doi.org/10.1590/1982-10.1590/1982-3703020002017

Cómo citar: Hur, D.U., & Lacerda Júnior, F. (2017). Dictadura e insurgencia en Latinoamérica:
psicología de la liberación y resistencia armada. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 28-43.
https://doi.org/10.1590/1982-10.1590/1982-3703020002017

43
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 44-56.
https://doi.org/10.1590/1982-3703030002017

Luta Armada na Psicologia: Prática de Classe contra o Terrorismo de Estado

Juberto Antonio Massud de Souza Ana Maria Jacó-Vilela


Universidade Estadual do Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Universidade Estadual do Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Resumo: Este artigo tem como objetivo retomar parte da historiografia sobre os psicólogos
e estudantes de Psicologia que integraram agrupamentos armados contra o golpe de classe
de 1964. Para tal, consideramos que o processo de desenvolvimento da Psicologia, enquanto
ciência e profissão, mostra-se interligado nas múltiplas contradições da formação da classe
trabalhadora brasileira. Partindo dos pressupostos teórico-metodológicos do materialismo
histórico-dialético, recompomos, no plano ideal, parte do movimento real produzido pela
ação daqueles sujeitos. Resgatamos as trajetórias das pessoas que participaram da luta armada
contra o terrorismo de estado a partir de casos ilustrativos que nos mostram suas presenças em
organizações políticas das quais fizeram parte. Para tal, reconstruímos este movimento a partir
das publicações existentes. Concluímos que existe um elo entre a vanguarda da luta armada, com
a presença de algumas frações da Psicologia, composta majoritariamente por sua juventude,
e a construção contraditória dentro da própria profissão no Brasil. Ambos são momentos da
totalidade da história da Psicologia, que mostra a maneira pela qual alguns importantes setores
posicionaram-se na luta contra a ditadura civil-militar.
Palavras-chave: História da Psicologia, Luta Armada, Ditadura Militar, Materialismo Histórico-
-dialético.

Armed Struggle in Psychology: Class Practice against State Terrorism

Abstract: This article aims to recapture part of the historiography about the psychologists and
students of psychology that integrated armed groups against the class coup of 1964. For this
purpose, we consider that the process of development of psychology, as science and profession,
shows itself interconnected in the multiple contradictions of the formation of the Brazilian
working class. Based on the theoretical and methodological assumptions of historical and
dialectical materialism, we recomposed, in the ideal plane, part of the real movement produced
by the action of those subjects, who opened cracks and enlarged the basis for discussions
that would be made, later, within psychology itself. Knowing this, we sought to recover some
illustrative cases of their presence in the organizations of which they were part, reconstructing
this movement from the existing publications. We conclude that there is a link between the
vanguard of the armed struggle, with the presence of some fractions of psychology, composed
mostly by its youth, and the contradictory construction within the profession itself in Brazil.
Both are moments in the totality of the history of psychology, which shows the way in which
some important sectors have positioned themselves in the struggle against the civil-military
dictatorship.
Keywords: History of Psychology, Armed Struggle, Military Dictatorship, Historical and Dialec-
tical Materialism.

44
Souza, J. A. M.; JACÓ-VILELA, A. M. (2017). Luta Armada e História da Psicologia.

Lucha Armada en la Psicología: Práctica de Clase contra el Terrorismo de Estado

Resumen: Este artículo tiene como objetivo retomar parte de la historiografía sobre los psicólogos
y estudiantes de psicología que integraron agrupaciones armadas contra el golpe de clase de 1964.
Para eso, consideramos que el proceso de desarrollo de la psicología, como ciencia y profesión, se
muestra interconectado en las múltiples contradicciones de la formación de la clase trabajadora
brasileña. A partir del materialismo histórico-dialéctico, recompusimos, en el plano ideal, parte
del movimiento real producido por la acción de aquellos sujetos, que abrieron grietas y ampliaron
la base para las discusiones que podrían ser hechas, posteriormente, en el interior de la propia
psicología. Sabiendo esto, buscamos recuperar algunos casos ilustrativos de sus presencias en
las organizaciones de las que han participado, reconstruyendo este movimiento a partir de las
publicaciones existentes. Concluimos que existe un eslabón entre la vanguardia de la lucha
armada, con la presencia de algunas fracciones de la psicología, compuesta mayoritariamente por
su juventud, y la construcción contradictoria dentro de la propia profesión en Brasil. Ambos son
momentos de la totalidad de la historia de la psicología, que muestra la manera en que algunos
importantes sectores se posicionaron en la lucha contra la dictadura civil-militar.
Palabras clave: Historia de la Psicología, Lucha Armada, Dictadura Militar, Materialismo Histó-
rico-dialéctico.

Introdução A formação do psicólogo enquanto


Este artigo tem como objetivo retomar parte da fração da classe trabalhadora brasileira
historiografia dos psicólogos e estudantes de Psico- Para compreendermos a maneira pela qual a Psi-
logia que integraram agrupamentos armados contra cologia brasileira é transformada em ciência e reco-
o golpe de classe de 1964. Partimos dos pressupostos nhecida como profissão, é necessário termos em vista
teórico-metodológicos do materialismo histórico- o movimento pelo qual um país de economia periférica
-dialético e recompusemos, no plano textual, parte do capital se liga aos seus centros econômicos, já que:
do movimento real produzido pela ação daqueles
sujeitos. Para tal, nos aprofundamos no estudo biblio- o estudo da história da ciência em países perifé-
gráfico do tema, buscando em nossa investigação a ricos passa necessariamente por colocar em cena
tomada daquilo que já foi produzido. questões políticas, de dependência, de autonomia
Iniciamos o artigo descrevendo como a particu- ou de colaboração e intercâmbio em relação ao
laridade societária brasileira constitui a Psicologia em centro, entendido como alguns países da Europa e
seu processo de reconhecimento enquanto ciência e os Estados Unidos (Jacó-Vilela, 2009, p. 125).
profissão engendrando as condições para a formação
do psicólogo enquanto fração da classe trabalhadora Isto mostra que existe um processo desigual e
no Brasil. Em seguida, consideramos como a politiza- combinado na sociabilidade do capital que, em sua
ção de estudantes de Psicologia da década de 1960 foi reprodução em escala ampliada, tende a se alas-
uma ruptura com o caminho institucional trilhado até trar pelos diferentes cantos do globo. Prado Junior
então pela Psicologia como profissão. A partir de casos (1988) afirmou: “o nosso enquadramento no sistema
ilustrativos, indicamos a participação daqueles sujeitos internacional do capitalismo, [...] vem a ser o impe-
em agrupamentos políticos caracterizados por espe- rialismo, na posição de simples dependência dele”
cificidades que indicavam a perspectiva ideológica a (p. 345). Aquilo que acontece no centro do capital é
qual se filiavam. No final, destacamos o processo que refratado na periferia que, com suas particularidades,
culminou com a transição da forma ditadura para a dá diferentes expressões para aquele movimento. Isto
forma democrática de Estado no Brasil, inaugurando também acontece no âmbito das próprias ciências
um novo pacto entre as elites econômicas no país. que se desenvolvem na modernidade.

45
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 44-56.

Neste sentido, a Psicologia se apresenta em um nalizou um verdadeiro “totalitarismo de classe” (p. 35).
dos complexos momentos pelo qual parte da classe A fratura da forma democrática de Estado serviu para
trabalhadora brasileira, em sua multiplicidade de con- colocar em primeiro plano novos problemas, fazendo
tradições estruturantes, se desenvolve. Inicialmente, com que existissem preocupações com questões que,
ainda que não institucionalizada como profissão, até o determinado momento, não foram considera-
emerge em diferentes setores e áreas que representa- das. Para alguns dos então psicólogos e estudantes de
vam os interesses de uma elite modernizadora que se Psicologia também foi exigido “[...] travar o mesmo
formava no Brasil1. Sodré (1990) afirmou: “a década de combate nas trevas da pior opressão que já se abateu
30 assinala novo período na acumulação de capitais sobre o povo brasileiro desde a conquista da Indepen-
aqui” (p. 100). É a partir deste momento que as novas dência” (Gorender, 2014, p. 181).
bases estruturais para o desenvolvimento institucio- Se, de um lado, parte da teorização da própria
nal de uma Psicologia começam a ser alargadas. Psicologia não oferecia subsídios para um enfren-
Em 1932 foi elaborado o primeiro projeto de tamento contra um regime ditatorial, por outro,
Curso de Formação de Psicólogos Profissionais (Cen- a prática de alguns psicólogos e estudantes, que
tofanti, 1982). Nas décadas seguintes, tivemos a fun- estava subordinada a sua ação militante, implicou
dação, em 1945, da Sociedade de Psicólogos de São a abertura de uma ampla gama de discussões que
Paulo e, em 1949, da Associação Brasileira de Psico- foram incorporadas, posteriormente, pela própria
técnica, no Rio de Janeiro (Angelini, 2011; Castro, & Psicologia.
Alcântara, 2011). Mas, somente em 1962, é reconhe-
cida nos marcos legais a profissão de psicólogo, pela O terrorismo de estado
Lei no 4.119, que regulamenta os cursos e a profissão Não existe formação de estados nacionais sem a
(Jacó-Vilela, 2002). Até a década de 1960, vemos que constituição de um exército armado para a sua prote-
a constituição da Psicologia, que buscava seu reco- ção e defesa contra ameaças internas e externas. Estas
nhecimento enquanto profissão, seguiu um caminho aparecem, simultaneamente, como a constituição
trilhado no interior da institucionalidade (Jacó-Vi- daquelas e justificam a sua existência e manutenção
lela, 2012). (Lenin, 2010). Neste sentido, as formações estatais são
Com o golpe de classe2 (Dreifuss, 1986, p. 146) expressão política do movimento pelo qual a ordem
de 1964, uma nova situação foi imposta na sociedade do capital internacionaliza seus interesses e constitui
brasileira. Fernandes (2015) afirmou que se institucio- a formação do mundo moderno3.

1
Esta foi uma tendência geral e global que caracterizou o desenvolvimento da própria Psicologia em diferentes lugares. Ao lado do de-
senvolvimento do capital, foi necessário um exército de trabalhadores especializados que pudessem extrair o máximo da eficiência do
trabalho da classe operária que se formava. Afinal, “desde su surgimiento, la psicologia se posiciono como una ciencia auxiliar de las elites,
para el dominio de los sujetos y grupos subalternos em todos los niveles” (Bravo, 2016, p. 11). No Brasil, o processo de desenvolvimento da
Psicologia ocorreu na segunda metade do século XIX, sendo de Ferreira França (1809–1857) a primeira publicação que levaria o título de
Psicologia. Já no início do século XX, a criação do laboratório de Psicologia Pedagógica, tendo como diretor Manuel Bomfim, marcaria
novo impulso em sua expansão. Durante as décadas de 1910 e 1920, a criação de laboratórios de Psicologia em hospícios e escolas ger-
minariam o solo para o interesse crescente da matéria. Mas somente com os processos sociais desencadeados na década de 1930, é que
a Psicologia ganharia um terreno cada vez mais fértil para a sua expansão.
2
Sobre a articulação internacional de uma ação coordenada em diversos países, em que o Brasil ocupava um lugar estratégico na Amé-
rica do Sul, recomenda-se os ótimos livros de Rene Dreifuss: “1964: a conquista do estado” e “A internacional capitalista”. Neles, são
mostrados em detalhes os diferentes movimentos arquitetados na construção de aparelhos de classe que serviram de modelo para a
atuação de elites orgânicas criadas para impor ideologicamente os interesses das corporações que estavam por trás do golpe. Não foi um
movimento autônomo das forças do exército, mas uma verdadeira coordenação de empresas de capital internacional, que conseguiam
contatos no interior do aparelho estatal e coordenavam suas ações com a criação de elites locais aparelhadas aos seus interesses. Todas
as peças foram milimetricamente planejadas em seus movimentos. Um dos exemplos desta coordenação é a “elite orgânica do Ipes/
Ibad [que] constitui-se num verdadeiro aparelho de classe [...] capaz de exercer uma ação planejada estratégica e de realizar manobras
táticas, através de uma cuidadosa e elaborada campanha, que contrapôs o seu poder organizado de classe ao poder do Estado e do bloco
histórico populista [...]” (Dreifuss, 1986, p. 141).
3
Marx (2014, p. 821) afirma: “Os diferentes momentos da acumulação primitiva [do capital] [...] foram combinados de modo sistêmico,
dando origem ao sistema colonial, ao sistema da dívida pública, ao moderno sistema tributário e ao sistema protecionista. Tais métodos,
como, por exemplo, o sistema colonial, baseiam-se, em parte, na violência mais brutal. Todos eles, porém, lançaram mão do poder do
Estado, da violência concentrada e organizada da sociedade, para impulsionar artificialmente o processo de transformação do modo de
produção feudal em capitalista e abreviar a transição de um para o outro”.

46
Souza, J. A. M.; JACÓ-VILELA, A. M. (2017). Luta Armada e História da Psicologia.

Parte considerável da formação societária lati- A politização estudantil e a Psicologia:


no-americana foi marcada pelo chamado terrorismo na vanguarda da luta armada e na
de estado. Esta categoria analítica, que significou um retaguarda da resistência
verdadeiro ganho teórico para a explicação do movi- O processo de politização e radicalização nas
mento do real, foi incorporada por alguns psicólogos fileiras da Psicologia levou alguns estudantes a
em suas análises. Basta lembrarmos que, em El Salva- romperem com o processo de institucionalização
dor, Martin-Baró (2017) avaliava que: que marcou a Psicologia brasileira. O exemplo das
estudantes encarceradas no Congresso da União
[...] a guerra suja utiliza-se da repressão aterrori- Nacional dos Estudantes (UNE) de 1968, em Ibiúna,
zante, isto é, a execução visível de atos cruéis que realizado de forma clandestina, nos mostra a parti-
desencadeiam na população um amplo e incon- cipação de estudantes de Psicologia enfrentando o
trolável medo. Assim, enquanto a repressão pro- regime dominante4.
duz a eliminação física de pessoas que são o alvo É importante notarmos o papel de vanguarda
direto de suas ações, o seu caráter aterrorizante que estes estudantes tiveram, pois levantaram ques-
tende a, ao mesmo tempo, paralisar todos que, tões relacionadas a ações contra a ditadura de classe
de uma forma ou de outra, se identificam com em seus cursos. Se parte da Psicologia estava presa
alguma característica da vítima; o terrorismo de na armadilha institucional que prendeu a atuação de
estado e, concretamente, a guerra psicológica têm profissionais, há, por outro lado, importante fratura
a necessidade de possibilitar que a população da ordem efetivada pela juventude e pelos estudantes
saiba dos fatos, ainda que a publicidade enquanto (Hur, 2012).
tal possa ser contraproducente [...] (p. 277-278. Parte destes estudantes já participava em esta-
Destaques no original). vam integrados a organizações políticas e o papel dos
congressos estudantis foi o de ajudar a ampliar a rede
Na particularidade sul-americana, o caso da de contato entre estes militantes. Contra o terrorismo
Colômbia é outro exemplo. Bravo (2016), trabalhando de estado, germinado e cultivado na constituição
com parentes das vítimas desaparecidas no confronto societária brasileira, estudantes e psicólogos utiliza-
entre grupos guerrilheiros armados e o estado colom- ram diferentes formas de luta e resistência. Aqui, nos
biano que se prolongou por décadas, afirmou: “La interessa uma em específico: a luta armada.
expresión terrorismo de Estado pasó a significar las Poderíamos defender que a viagem à luta armada
acciones descritas. El Estado podia operar diretamente, de psicólogos e estudantes estaria apartada da histó-
por médio de sus agentes, o inderectamente, por médio de ria da própria Psicologia? Ou, pelo contrário, são esses
grupos paramilitares” (p. 25-26. Destaques no original). sujeitos concretos, que vivem e transformam a reali-
O terrorismo de estado chileno, que resultou no assassi- dade em determinado período histórico, que abrem
nato de Salvador Allende no Palacio de la Moneda pelas frestas e alargam as bases de discussão para ativi-
tropas de Augusto Pinochet, serviu de base para a “expe- dades que naquele momento não são reconhecidas
riência psicoterapêutica no Chile pelo grupo liderado como parte das atribuições de sua própria categoria
por Elizabeth Lira [...]” (Martin-Baró, 2017, p.327). No profissional? Para qualquer tipo de resposta, é neces-
Brasil, Coimbra (2011), uma das psicólogas que ajudou sário o resgate da trajetória destes estudantes e mili-
a incorporar a discussão do terrorismo de estado dentro tantes de Psicologia. Aqui, defendemos a concepção
da própria Psicologia, afirmou: “silenciava-se e massa- de que a prática destes psicólogos e estudantes, ainda
crava-se toda e qualquer pessoa e/ou movimento que que não tivesse imediatamente uma relação identitá-
ousasse levantar a voz: era o terrorismo de Estado que se ria com a Psicologia de seu tempo, é parte inseparável
instalava; a ditadura sem disfarces” (p. 43). da história da Psicologia.

4
Na lista das prisioneiras do Congresso é possível identificara identificação de diversas estudantes de Psicologia, assim como o local
em que realizavam seu curso. Destas estudantes se destacam: Beatriz Helena Verschoore, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro; Josefa Mendes Trepode, da Faculdade de São Bento; Leda Maria Marques Soares, da Faculdade Santa Úrsula do Rio de Janeiro;
Maria Lia Iida, do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo; Sônia Coelho de Magalhães Comensoro, da Pontifícia Universidade Católica
(PUC); e Yamara Pinheiro da Silva, da então Faculdade de Filosofia Gama Filho do Rio de Janeiro.

47
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 44-56.

Se não houvessem psicólogos que assumissem a de Psicologia. As três foram mortas na luta contra a
vanguarda na luta contra a ditadura não existiria pos- ditadura. Primeiramente, será descrita a trajetória da
sibilidade alguma de discutir temas como as consequ- psicóloga Iara Iavelberg, que inicialmente foi mili-
ências psicossociais da ditadura, memória e história tante da Organização Revolucionária Marxista Polí-
social e lutas insurgentes na América Latina, temas tica Operária (Polop)7 e, posteriormente, integrou os
que constam na convocatória deste dossiê. Alguns quadros do MR-8.
pagaram com sua própria vida e foram essenciais para Ainda era estudante, quando, em 1964, prende-
desbravar caminhos que não poderiam ser abertos de ram o professor Florestan Fernandes na USP. Sua sol-
outra forma5. Portanto, podemos afirmar que a histó- tura “lotou de alunos e professores o saguão da Facul-
ria da Psicologia no Brasil, em um dos seus momen- dade, Iara no meio” (Patarra, 1992, p. 97). O ostensivo
tos, é atravessada pela história da luta armada. clima de repressão criava a atmosfera da época, em
A completa subordinação de estudantes e profis- que diferentes setores da classe trabalhadora, entre
sionais à prática militante nos indica que não é pos- eles professores e estudantes, eram gradativamente
sível a compreensão da história destes sujeitos sem a atingidos pelos conflitos sociais em curso.
consideração da mediação grupal6, já que o grupo é O depoimento da professora de Psicologia Ecléa
fundamental para compreender quais foram as teses Bosi, da USP, revela parte das atividades de Iara:
incorporadas em sua prática militante. Assim, com a
finalidade de resgatar as trajetórias destes militantes Eu me lembro da Iara já não como colega de
que participaram da luta armada contra o terrorismo classe, mas como colega de departamento naque-
de estado, faz-se necessário recorrer à história de suas les caracóis que hoje estão lá perto da FEA [Facul-
organizações, cada um processo de gênese, desenvol- dade de Economia, Administração e Contabili-
vimento e contradições internas, que ajudam a com- dade da Universidade de São Paulo], ali que era
preender a maneira pela qual estes militantes estavam a Psicologia Social, e a Iara estava fazendo uma
inseridos na luta. análise de conteúdo. Só que a Iara fazia a análise
de conteúdo dos discursos do Fidel Castro. Eu
Movimento Revolucionário me lembro muito bem disso. E ela não chegou a
8 de Outubro (MR-8) terminar esse trabalho porque ela desapareceu.
Inicialmente, um grupo de dissidentes do Par- Nessa época, entrou pra luta clandestina, num
tido Comunista Brasileiro (PCB) formou a Dissidência movimento chamado MR-8. Movimento Revo-
da Guanabara (DI-GB) a partir de quadros oriundos, lucionário 8 de outubro. E ela [...] depois nós
principalmente, do movimento estudantil. Após rea- soubemos, pelos jornais, pelos livros, que ela foi
lizar a opção pela guerrilha urbana e luta armada, o combater no Vale da Ribeira e foi assassinada na
grupo foi rebatizado com nome de Movimento Revo- Bahia em 1972. Ela foi companheira do célebre
lucionário 8 de outubro (MR-8), em uma homenagem guerrilheiro capitão Lamarca. E nós perdemos a
a Che Guevara, que havia morrido na Bolívia nesta Iara (Centro Acadêmico Iara Iavelberg, 2014).
data (Arquidiocese de São Paulo, 1985).
No interior desta organização, destaca-se a atua- Ao mesmo tempo em que Iara fez sua graduação
ção de, pelo menos, uma psicóloga e duas estudantes em Psicologia, foi professora no cursinho do grêmio da

5
“Todo começo é difícil, e isso vale para toda ciência” (Marx, 2014, p. 77). A ampliação de temas e preocupações na Psicologia também
foi marcada por dificuldades e obstáculos. A superação destes não depende de giros de paradigmas baseados em revoluções científicas,
mas de uma luta concreta com interesses de classes bastante nítidos.
6
A discussão sobre a mediação grupal é um dos elementos da Psicologia que dá base para a compreensão de como o grupo possibilita a
potencialização do próprio indivíduo. Basta lembrarmos que Ignácio Martin-Baró e Silvia Lane desenvolveriam, na América Central e na
América do Sul, esta ideia. A implicação política fica clara quando lembramos que o primeiro foi morto pela repressão em El Salvador,
quando tropas do exército invadiram a Universidad Centroamericana e o eliminaram fisicamente. A segunda foi investigada pelo Servi-
ço Nacional de Informação (SNI) no Brasil, infiltrando uma babá em sua residência, quem tirou fotos de sua biblioteca para repassar à
repressão (Ciampa, 2007).
7
Para compreender a particularidade da trajetória da Polop, antigos militantes criaram o Centro de Estudos Victor Meyer, que lançou
livros que contam a trajetória da organização, com seus documentos fundadores, artigos em jornais clandestinos da época, assim como
biografias de seus militantes, acessar http://centrovictormeyer.org.br/.

48
Souza, J. A. M.; JACÓ-VILELA, A. M. (2017). Luta Armada e História da Psicologia.

Faculdade de Filosofia, e se tornou, posteriormente, o MR-8 baiano estava nas mãos do DOI. Tinha-se
professora na Universidade de São Paulo (USP). Sobre conhecimento até mesmo da existência de um
sua curta atuação profissional na universidade, dizem- dispositivo rural, coordenado por um certo Dino,
-nos que: “Nas aulas que deu, poucas, Iara divertia-se ou João Lopes Salgado (Gaspari, 2002, p. 351).
em contestar a Psicologia behaviorista e a ciência ofi-
cial” (Patarra, 1992, p. 198). Por outro lado, quando já Com traumatismos psicológicos devido à situação
estava integrada na militância da luta armada, teve a pela qual passou, que incluía abusos sexuais, e sem
sensibilidade de considerar que o acompanhamento jamais ter se recuperado, Solange se matou em 1982.
psicológico de militantes poderia ser um dos papéis Outra vítima do terrorismo de estado brasi-
específicos que os psicólogos poderiam desempenhar leiro que pertenceu ao MR-8 foi a estudante de Psi-
em suas ações. As duras medidas impostas na clandes- cologia Marilene Villas-Boas Pinto. Era conhecida
tinidade impunham implicações para subjetividade. É como “a Índia do MR-8, [e] foi entregue ao DOI [...].
por isso que, em sua organização, “Iara insistiu no aten- Mataram-na com um tiro no pulmão” (Gaspari, 2002,
dimento psicológico aos militantes, seu nicho na luta p. 382). Sobre a sua trajetória e sua biografia
armada8” (Patarra, 1992, pp. 348-349).
Ficou conhecida por ter seu rosto estampado, ao Marilena era estudante de Psicologia na Uni-
lado de seu companheiro Carlos Lamarca, em diver- versidade Santa Úrsula, cursando até o 2º ano,
sos cartazes com a frase: “Terroristas Procurados. quando, em 1969, por sua participação no movi-
Ajude a proteger sua vida e a de seus familiares. Avise mento estudantil, foi obrigada a viver na clandes-
a polícia” (Gaspari, 2002). No Vale do Ribeira, lecionou tinidade. Inicialmente militou na ALN e, poste-
marxismo no campo de treinamento para militantes. riormente, ligou-se ao MR-8. Nasceu no Rio de
A relação de amor-camaradagem entre Iara Iavel- Janeiro e foi morta aos 22 anos (Miranda, & Tibúr-
berg e Carlos Lamarca, germinada e cultivada na cio, 2008, p. 481).
ação clandestina, terminou com a morte dos dois. Foi
morta quando membros da repressão pretendiam, na
ânsia de eliminar a guerrilha urbana e rural, destruir
fisicamente todos os quadros que poderiam se posi-
Vanguarda Popular Revolucionária
A Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) era
cionar contra a ditadura.
formada por militantes remanescentes do Movimento
Sobre a destruição do psiquismo e a desorgani-
Nacionalista Revolucionário (MNR) e da Polop. O pri-
zação mental em situações de extrema pressão, um
meiro contava em suas fileiras com ex-militares que
caso ligado ao MR-8 chama a atenção. A estudante de
foram cassados em 1964. Com o exílio de Leonel Bri-
Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
zola para o Uruguai, parte do auxílio financeiro e de
(UFRJ), Solange Lourenço Gomes, ficou dois anos
armamentos, vinha a partir dele. O MNR protagoni-
presa. Teve um surto psicótico enquanto estava na
zou a primeira experiência de guerrilha pós-golpe de
clandestinidade, se dirigindo a uma delegacia e entre-
1964 na área do Caparaó (Arbex, 2015). Com a derrota
gando parte de sua organização:
a partir do cerco da Polícia Militar, parte destes qua-
dros se dirigiu a outras organizações. Já a Polop, tinha
Solange Lourenço Gomes, a Emília, dirigente do
em sua base estudantes de diversas tendências mar-
MR-8, marcara um “ponto” na Fonte Nova e esti-
xistas e de diferentes agrupamentos espalhados pelo
vera na arquibancada enlouquecida. Em estado
Brasil (Miranda, & Falcón, 2010). Parte de seus mili-
de choque, entrou numa delegacia informando:
tantes se fundiria com o MNR, para formar a VPR.
“Eu sou uma subversiva, eu sou uma subver-
Na VPR, uma psicóloga que integrou seus qua-
siva”. Uma semana depois, tendo contado tudo o
dros foi Pauline Philipe Reichstul. Nascida na Tche-
que sabia a respeito do MR-8, levou a polícia ao
coslováquia, foi para a Suíça, onde “estudou com Jean
encontro do seu companheiro. No final de maio

8
Sobre este assunto, o depoimento de Inês Etienne é revelador: “Para ela, tão importante quanto as discussões sobre estratégia e tática de
luta, era a situação psicológica dos militantes, que desejava fosse a melhor dentro do possível. Sugeriu que a organização criasse condi-
ções para que os companheiros tivessem um local onde pudessem descansar das tensões a que eram submetidos” (Patarra, 1992, p. 349).

49
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 44-56.

Piaget” (Carvalho, 1998, p. 417)9. Depois, se mudou estudante. Luiz Celso Manço, professor da Universi-
para a França, onde viveu o maio de 1968 e travou dade Católica de Santos. Este foi preso e brutalmente
contatos sistemáticos com militantes sul-americanos torturado na prisão e relembra a armadilha que viti-
exilados. Vindo para o Brasil para integrar as fileiras mou uma das principais figuras da luta armada da
da luta armada, foi morta no massacre da Chácara seguinte maneira: “Nosso comandante, o Marighella,
São Bento10. Neste mesmo episódio também foi der- é traído e morto em São Paulo” (Conselho Federal de
rubada Soledad Barret, em um dos maiores casos de Psicologia, 2013, p. 542). O depoimento revela que o
infiltração e traição realizadas por Cabo Anselmo11. impacto da morte de uma das principais figuras da
luta revolucionária no Brasil se fez sentir, inclusive,
em meios estudantis da Psicologia.
Ação Libertadora Nacional
Quando foi preso, Manço teve que lidar com situ-
A Ação Libertadora Nacional (ALN) foi formada
ação em que seu carrasco, no domínio da situação,
por um grupo de dissidentes expulsos e desligados
começa a utilizar de jogos psicológicos para extrair
do PCB, liderados por Carlos Marighella e Joaquim
informações para prender outros membros de sua
Câmara Ferreira. Em 1965, Marighella (1994) afirmou:
organização. A utilização de tortura psicológica pelos
“fiz questão de tornar público que vivemos sob uma
agentes da repressão, inclusive com o envolvimento
ditadura militar fascista” (p. 115). Já em 1966, pres-
de elementos sádicos, era comum:
crevia: “sem o emprego da força, não há como derru-
bar a ditadura” (Marighella, 2013, p. 200). Aquilo que
Durante a tortura, uma das coisas que me pega-
chamou de “golpes militares antipovo” não poderia
ram muito... eles falaram: “Nós sabemos que
ser confrontado pelo voto, já que “Todos veem que o
você está com o casamento marcado [...] Só que
caminho da derrubada da ditadura não pode ser por
é o seguinte, você nunca mais vai ter ereção,
via eleitoral” (Marighella, 2013, p. 202). Em 1969, a
você se prepare, vou te amarrar pendurado no
análise da particularidade da situação brasileira em
pau de arara, nunca mais você pensa que vai ter
meio à crise estrutural se mostrava como importante
ereção, acabou, cara, tu sai daqui inútil, e você
termômetro para se avaliar a polarização de diferen-
sabe como é que nós vamos começar? Com
tes forças que decorria do golpe:
um pau de vassoura com uma mecha de tecido
embebido em gasolina, vamos te penetrar e por
A crise estrutural crônica característica do Brasil
aí vai começar a sua esterilização, sua impotên-
de hoje, e sua resultante instabilidade política,
cia (CFP, 2013, p. 549).
são as razões pelo abrupto surgimento da guerra
revolucionária no país. A guerra revolucionária
Aurora Maria Nascimento Furtado, estudante de
se manifesta na forma de guerra de guerrilha
Psicologia que pertenceu à ALN, foi morta aos seus
urbana, guerra psicológica, ou guerra guerri-
26 anos de idade, depois de ser presa e torturada. Fon
lheira rural. A guerra guerrilheira urbana ou a
(1980), que teve seu irmão mandado para a formação
guerra psicológica na cidade depende da guerri-
de guerrilheiros em Cuba diretamente por Marighella,
lha urbana (Marighella,1969, s/p).
lembra que:

No interior da ALN, encontramos, pelo menos,


foi o torniquete que matou Aurora Maria Nasci-
uma estudante de Psicologia e um psicólogo, à época
mento, 26 anos, no DOI-CODI do I Exército [...].

9
Outra referência nos diria ainda que: “Pauline abandonou o trabalho que fazia como educadora em Genebra, num grupo ligado a Jean
Piaget” (Patarra, 1992, p.242).
10
Em 8 de janeiro de 1973, Cabo Anselmo, agente infiltrado, entregou a localização de um grupo de militantes a uma equipe de policiais do
Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), chefiada por Sergio Paranhos Fleury. Na versão montada pelo Estado, existiu um confronto
armado que terminou com os militantes mortos. A versão reconstruída a partir de testemunhos e relatos, as seis vítimas foram sequestradas
em lugares diferentes de Recife, levados a Chácara São Bento, onde foram torturados e mortos, sem combate (Miranda, & Tibúrcio, 2008).
11
Cabo Anselmo consegue sintetizar os piores momentos da ditadura brasileira. Antigo marinheiro que se tornou um agente infiltrado em
organizações da luta armada, contribuiu para a morte dezenas de militantes, entre eles, Soledad Barret, sua companheira grávida de um filho
seu, que foi entregue a Sergio Paranhos Fleury, membro do Esquadrão da Morte. Como ainda está vivo, é possível ver a sua patética participa-
ção em programas de televisão e vídeos na internet com personagens da sua estatura moral, como Olavo de Carvalho e Lobão.

50
Souza, J. A. M.; JACÓ-VILELA, A. M. (2017). Luta Armada e História da Psicologia.

Seu atestado de óbito, feito pelo IML do Rio de sionista do Relatório de Khrushchev13, incorporou o
Janeiro, indica como causa da morte: “dilacera- maoismo herdado da Revolução Chinesa, de que parte
ção encefálica” [...] seu corpo apresentava um dos combates decisivos seriam decididos a partir da
afundamento de dois centímetros em volta de luta no campo, através de uma guerra popular prolon-
todo o crânio e, devido à pressão do torniquete, gada que faria o cerco a cidade. A Ação Popular (AP) foi
seu olho esquerdo saltara do globo ocular (p. 76). um grupo cristão que também se aproximou das teses
maoistas e, posteriormente, foi incorporado na estru-
Depois de sua morte, ganhou um romance, tura do PCdoB (Arquidiocese de São Paulo, 1985).
escrito por seu cunhado, Tapajós (1979), em sua No PCdoB, destaca-se a atuação de Idalísio Soa-
homenagem. “Em câmara lenta” é um livro que narra res Aranha Filho, estudante de Psicologia morto na
a guerrilha das décadas de 1960 e 1970 e Aurora da Guerrilha do Araguaia. A tragédia do Araguaia (a qual,
ALN é a protagonista de uma das lutas pela derrubada até hoje, não teve descobertas as ossaturas e o número
da ditadura. Em sua narrativa, os detalhes da morte de total de mortos, estimados em pelo menos 61) foi um
Aurora, que se negou a entregar seus companheiros dos momentos mais brutais e ferozes das forças de
enquanto estava sendo torturada, são aterrorizadores: repressão: “Pelo número de mortos, a guerrilha pagou
Furiosos, os policiais tiraram-na do pau-de-arara, caro. [...] Oito morreram em áreas de combate ou em
jogaram-na ao chão. Um deles enfiou na cabeça dela a emboscadas” (Gaspari, 2002, p. 424). Entre os mortos
coroa-de-cristo: um anel de metal com parafusos que na emboscada, estava Idalísio.
o faziam diminuir de diâmetro. Eles esperaram que A psicóloga Maria Auxiliadora de Almeida Cunha
ela voltasse a si e disseram-lhe que se não começasse Arantes14, que viveu 11 anos na clandestinidade, per-
a falar, iria morrer lentamente. Ela nada disse e seus tenceu aos quadros organizativos da AP. Fez parte da
olhos já estavam baços. O policial começou a apertar militância no momento em que a influência maoista
os parafusos e a dor a atravessou, uma dor que domi- traçou os caminhos táticos da organização, tendo a
nou tudo [...]. Ele continuou a apertar os parafusos e política de integração na produção sendo instituída.
um dos olhos dela saltou para fora da órbita devido à Na prática, isso significava que os militantes seriam
pressão no crânio. Quando os ossos do crânio estala- deslocados pela organização para ingressar em áreas
ram e afundaram, ela já havia perdido a consciência, geográficas distantes com o objetivo de se integrarem
deslizando para a morte com o cérebro esmagado len- a base social camponesa para: “comer junto, trabalhar
tamente (p. 172). junto, lutar junto. Os ensinamentos de Ho Chi-Min e
Mao Tsé-tung encontram um terreno receptivo entre
Partido Comunista do Brasil, Ação os militantes da AP” (Arantes, 1994, p. 32).
Popular e a Guerrilha do Araguaia Para desenvolverem tal tática de luta, a clandes-
O Partido Comunista do Brasil (PCdoB) foi for- tinidade era um momento fundamental para a luta
mado a partir de uma fratura do PCB em 1962, quando contra a ditadura: “o clandestino se esconde do ini-
parte de seus quadros organizativos, entre eles Pedro migo, que está no poder, para combatê-lo” (Arantes,
Pomar, Maurício Grabois, João Amazonas e Ângelo 1994, p. 129). Mas, com as opções de luta sendo sis-
Arroyo, rompeu com a linha preconizada pelo par- tematicamente estranguladas e os militantes sendo
tido12. O PCdoB, inicialmente recusando o caráter revi- fisicamente eliminados e brutalmente torturados, as

12
A política adotada pelo PCB a partir da “Declaração de Março de 1958” seria responsável por: “uma guinada à direita na política dos
comunistas – uma adesão ao reformismo burguês, ou seja, a sujeição dos interesses da classe operária aos da burguesia, uma ilusão de
que através de reformas do capitalismo seria possível alcançar a emancipação dos trabalhadores” (Prestes, 2013). Com esta “virada a
direita” do partido, diferentes grupos se oporiam em seu interior. Entre eles, o grupo que seria responsável pela criação do PCdoB seria
caracterizado por ser: “defensor da tática “esquerdista” [...] adotada, que, politicamente isolado, seria afastado do Comitê Central e pos-
teriormente romperia com o PCB, dando origem ao PCdoB” (Prestes, 2016).
13
O XX Congresso do Partido Comunista (PC) da União Soviética, realizado em 1956, seria o primeiro após da morte de Stálin, em 1953.
Nele, seu Secretário Geral, Nikita Khrushchev, afirmaria a existência de crimes de Stálin, assim como a existência do culto à personali-
dade. O resultado seria um abalo aos PCs de todo o mundo. Registra-se que brasileiros estavam na URSS naquele momento, entre eles
Jacob Gorender e Diógenes de Arruda.
14
Registra-se aqui que os 11 anos de vida clandestina de Maria Auxiliadora, no interior da AP serviriam de base para a problemática com
o qual trabalharia em sua dissertação de mestrado, culminando no livro “Pacto re-velado: psicanálise e clandestinidade política”.

51
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 44-56.

duras condições de luta na clandestinidade atuaram Brasil, atendimento de militantes que precisavam de
para transformá-la em peso no transcorrer do tempo: alguma intervenção psicológica depois de terem pas-
“o disfarce que era pra protegê-lo [...] vai se tornando sado por torturas e abertura das portas de suas casas
um fardo e se constituindo em um processo de mar- para servirem como aparelhos.
ginalização de suas relações pessoais e familiares tão A psicóloga Coimbra (1995)15, foi membro do
queridas” (Arantes, 1994, p. 130) PCB, presa e torturada, participou da criação, na
Maria Auxiliadora relata o momento em que década de 1970, do Grupo Tortura Nunca Mais
o coronel Brilhante Ustra coordenou a operação – (GTNM). Ela foi uma das responsáveis pela denún-
conhecida como Chacina da Lapa – que eliminou fisi- cia do famoso caso do médico psicanalista Amil-
camente parte do núcleo revolucionário do PCdoB, car Lobo, que agiu como colaborador dos agentes
assim como prendeu seu companheiro Aldo Arantes: repressivos do Estado:

Chacina da Lapa foi comandada pelo Brilhante Seu “trabalho” até 1974 é “atender” os presos
Ustra, uma operação casada entre o Exército, o políticos antes, durante e depois das sessões
DOPS de São Paulo e outros órgãos militares, e o de torturas. Com o codinome de Dr. Carneiro,
Brilhante Ustra era um dos “cabeças” dessa ope- Amilcar Lobo “acompanha” o terror que se
ração. Ele e o [Sérgio Fernando Paranhos] Fleury. abate sobre o país fazendo parte eficaz de sua
O Fleury passou a me procurar (CFP, 2013, p. 580). engrenagem. Antes, durante e depois! Antes
das torturas, executa um “trabalho preventivo”,
Não raro era o envolvimento de militantes em no sentido de torná-las mais eficazes, procu-
que parte da família estava presente como uma uni- rando saber se há alguma doença, se o preso é
dade dentro da luta. A presença de irmãos, pais e cardíaco, etc. (a primeira “entrevista” antes das
mães fizeram da luta contra a repressão algo que os torturas de muitos que são conduzidos para o
unisse. José Dalmo Ribeiro Ribas, formado em Psi- DOI-CODI/RJ é feita com o Dr. Carneiro, que
cologia pela Universidade São Marcos de São Paulo, vai às celas dos recém-chegados). Durante, exe-
militante do PCdoB, que teve um de seus irmãos cuta também um “trabalho de prevenção”, no
mais novos como um “combatente do Destacamento sentido de testar a resistência do torturado, e
B na Guerrilha do Araguaia, permanece como desa- avaliar até que ponto ele pode agüentar. Depois
parecido político” (CFP, 2013, p. 491). Tendo conhe- das torturas, faz “curativos” quando “cuida” dos
cido diversos membros da guerrilha do Araguaia, farrapos humanos em que o terror converte as
que foram exterminados, como Maurício Grabois, pessoas para que, se necessário, voltem a ser
Pedro Pomar e Osvaldão. torturadas (p. 99).
José Dalmo, em uma de suas ações, serviu
como guarda-costas de um conhecido membro O trabalho de atendimento psicológico a militan-
do movimento revolucionário latino-americano tes vítimas de torturas foi parte importante da atua-
em 1967: “Então, vi o [Che] Guevara chegando ção da Psicologia na retaguarda da luta, assim como
acompanhado por um guarda-costas. Sei que logo no período posterior, já que as marcas se mantiveram
depois foi noticiada a presença do Guevara na Bolí- por toda a vida dos torturados.
via e eu fiquei sabendo que ele havia sido morto”
Sobre a importância dos atendimentos de militan-
(CFP, 2013, p. 506).
tes no período pós-ditadura, um caso é bem sintomá-
tico. Carlos Eugênio Paz da ALN, sucessor no comando
A luta não armada na retaguarda militar de Joaquim Câmara Ferreira e Carlos Mari-
Além da ação armada de vanguarda, houve ghella que ficou conhecido por ter desferido os tiros
importante luta de resistência na retaguarda que foi que acabaram com a vida de Henning Boilesen – figura
caracterizada por atividades de denúncia de tortura- repudiada por sua participação no financiamento
dores, agitação e propaganda sobre o que ocorria no da repressão e em sessões de tortura no DOI-CODI16.

Coimbra (1995) faz um grande trabalho sobre a prática do psicólogo nos tempos da ditadura, sintetizado em seu importante livro:
15

Guardiães da Ordem: Uma viagem pelas práticas psi no Brasil do “Milagre”.

52
Souza, J. A. M.; JACÓ-VILELA, A. M. (2017). Luta Armada e História da Psicologia.

Depois da luta armada, do exílio e do retorno ao Bra- aos 93 anos, meses antes do envolvimento de
sil, o primeiro agradecimento de um de seus livros, que sua empresa nas investigações da Lava-Jato. Seu
carrega o singular título de Viagem à Luta Armada, vai neto Marcelo, que comandava o grupo, foi preso
à: “minha terapeuta Heloísa Abrantes, que me deu ins- em junho de 2015 (Gaspari, 2016, pp. 333-334.
trumentos para ser feliz” (Paz, 1996, p. 5). Destaques no original).

A ditadura de classe e o pacto das elites: a Por isso, pode-se afirmar que parte da corrupção
forma democrática assume o poder que existe atualmente no interior do aparelho estatal
A forma democrática de dominação de classe no brasileiro foi apenas fruto de um processo ampliado e
Brasil resultou de um processo lento, seguro e gradual, fomentado durante os anos 1964–1985. A corrupção
pelo qual se deu a passagem do poder executivo dos é a expressão nítida dos interesses de uma elite eco-
militares a um presidente civil que não foi eleito direta- nômica que não mediu esforços para articular a ins-
mente. Na verdade, a “transição” foi um acordo pactu- trumentalidade da repressão estatal e fazer valer seus
ado entre as elites econômicas para obter fins que a ins- interesses. A união entre capital internacional, capital
trumentalidade militar já não poderia mais conseguir. nacional e Estado brasileiro formaram a santíssima
Novos conglomerados econômicos se desen- trindade que constituiu o terrorismo como prática de
volveram e, com isso, a transição se deu de forma a estado. Contra eles, a insurgência dos de baixo e a luta
consolidar a elite que havia florescido no interior da das organizações, que tinham entre seus quadros, psi-
ditadura. Basta lembrarmos que grandes empreitei- cólogos e estudantes de Psicologia que não aceitaram
ras, que transnacionalizaram seu capital, só puderam o estado de terror.
se desenvolver com o apoio institucionalizado do ter- Se de um lado, houve o silenciamento e compla-
rorismo de Estado: cência de frações inteiras da Psicologia, por outro,
existiram aqueles que resistiram. A luta de classes,
As três grandes empreiteiras da ditadura sobre- com todas as suas complexas contradições, se mos-
viveram a ela até que, em 2014, foram apanhadas trou no interior da própria Psicologia. Sua história não
na Operação Lava-Jato. Sebastião Camargo, o seria mais a mesma17.
“China”, morreu em 1994, deixando seu império Recuperar a memória histórica, e a maneira pela
para três filhas. [...] A Camargo Corrêa foi a maior qual são lembrados determinados fatos em detri-
empreiteira do país de 1964 a 1985. Chegou a ser mento do velamento e ocultação de outros, passa pela
a maior do mundo. [...] Roberto Andrade, fun- disputa dos instrumentos mnemônicos que se tor-
dador da Andrade Gutierrez (Itaipu), morreu em nam disponíveis para as diferentes frações de classe
2006 e a empresa passou a ser dirigida por um na sociedade. Quem domina os instrumentos media-
de seus filhos. Seu presidente foi preso em 2015 dores mnemônicos, domina a maneira pela qual se
e meses depois a empresa passou a colaborar constrói a própria história. Não por acaso, Dom Paulo
com as autoridades. Norberto Odebrecht, fun- Evaristo, uma das incansáveis vozes de toda esta
dador e mola mestra da empreiteira que suplan- luta, com a sensibilidade que lhe era peculiar disse:
tou todas as demais, morreu em julho de 2014, “O “desaparecido” transforma-se numa sombra que

16
A ação conjunta da ALN e do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) compôs um comando revolucionário que terminou por
julgar e condenar Boilensen pelos crimes praticados, culminando com o justiçamento deste que fora um dos quadros desta ditadura de
classe. Ele era um dos elos que personificava os interesses dos industriais internacionais e brasileiros e servia como ligação no interior do
aparelho do Estado. Em suas reuniões ao lado de Delfim Neto, um dos signatários do AI-5, arrecadou dinheiro para o financiamento da
atividade repressiva. O panfleto, deixado ao lado do corpo de Boilesen, dizia o seguinte: “HENNING ARTHUR BOILESEN, foi justiçado,
não pode mais fiscalizar PESSOALMENTE as torturas e assassinatos na OBAN, nem oferecer banquetes aos altos oficiais das forças ar-
madas brasileira, que comandam o terror e a opressão de que é vítima o povo brasileiro desde 31 de março de 1964. Boilesen era apenas
um dos responsáveis por este terror e opressão. Como ele, existem muitos outros e sabemos quem são. Todos terão o mesmo fim, não
importa quanto tempo demore; o que importa é que todos eles sentirão o peso da JUSTIÇA REVOLUCIONÁRIA” (MRT, & ALN, 1971).
17
Ainda que nosso tema tenha sido a atividade prática de psicólogos e estudantes, a atividade teórica institucionalizada também seria
afetada pela ditadura, basta lembrarmos de que uma das discussões emblemáticas se deu entre cartas trocadas entre Aroldo Rodrigues e
Serge Moscovici. O primeiro, perguntado se não teria como intervir naquele determinado contexto, daria como resposta: “Nós temos como
princípio separar a política da ciência” (CFP, 2013, p. 306). Aroldo Rodrigues foi a personificação de como parte da Psicologia tratou o tema.

53
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 44-56.

ao escurecer-se vai encobrindo a última luminosi- uma sociedade de classes, a lembrança retomada sig-
dade da existência terrena” (Arquidiocese de São nifica a instrumentalização para o desenvolvimento
Paulo, 1985, p. 12). Contra o terrorismo de Estado em das novas gerações.

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Juberto Antonio Massud de Souza


Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, e doutorando em Psicologia Social pela
Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
E-mail:xjubertox@hotmail.com

Ana María Jacó Vilela


Pós-doutora em História e Historiografia da Psicologia na Universidade Autônoma de Barcelona. Professora
associada da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Coordena o Laboratório de História e Memória da Psicologia
- Clio-Psyché, na UERJ.
E-mail: jaco.ana@gmail.com

Recebido 30/06/2017
Reformulação 24/09/2017
Aprovado 01/10/2017

Received 06/30/2017
Reformulated 09/24/2017
Approved 10/01/2017

Recebido 30/06/2017
Reformulado 24/09/2017
Aceptado 01/10/2017

55
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 44-56.

Como citar: Souza, J. A. M., & Jacó-Vilela, A. M. (2017). Luta armada na Psicologia: prática
de classe contra o terrorismo de estado. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 44-56.
https://doi.org/ 10.1590/1982-3703030002017

How to cite: Souza, J. A. M., & Jacó-Vilela, A. M. (2017). Armed struggle in Psychology: class practice against state
terrorism. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 44-56. https://doi.org/ 10.1590/1982-3703030002017

Cómo citar: Souza, J. A. M., & Jacó-Vilela, A. M. (2017). Luta armada en la Psicología: práctica
de clase contra el terrorismo de estado. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 44-56.
https://doi.org/ 10.1590/1982-3703030002017

56
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 57-70.
https://doi.org/10.1590/1982-3703040002017

A Psicologia Brasileira nos Ciclos Democrático-Nacional e Democrático-Popular

Filipe Milagres Boechat


Universidade Federal de Goiás, GO, Brasil.

Resumo: Partindo do pressuposto da vinculação da Psicologia a determinados compromissos


de classe, buscaremos evidenciar como sua história articula-se à história da formação social
brasileira e às principais ideologias de dois de seus ciclos históricos: o ciclo democrático-
nacional e o ciclo democrático-popular. Como método, lançaremos mão dos pressupostos, da
lógica e dos conceitos provenientes da tradição marxista, especialmente aqueles oriundos das
reflexões do marxista sardo Antonio Gramsci. Procuraremos, ainda, apontar de que maneira
a Psicologia nascida durante o ciclo democrático-popular, em que pese a contribuição dada
à reflexão sobre o caráter ideológico e elitista da Psicologia brasileira, não necessariamente
deixou de cumprir, ela também, determinado papel ideológico, seja ao retirar do horizonte de
suas análises o núcleo central da teoria social marxista, seja ao promover algumas práticas que
pouco contribuem para fornecer às classes subalternas os elementos de que necessitam para
potencializar suas lutas radicalmente emancipatórias. Com esse objetivo, esperamos contribuir
com alguns apontamentos para a crítica da ideologia do compromisso social da qual esta
Psicologia é intimamente solidária, da mesma forma como a Psicologia do ciclo democrático-
nacional foi intimamente solidária à ideologia nacional-desenvolvimentista.
Palavras-chave: Psicologia crítica, História da Psicologia, Ciclo Democrático-Nacional, Ciclo
Democrático-Popular, Marxismo.

Brazilian Psychology during the Democratic and National


Cycle and the Democratic and Popular Cycle

Abstract: Based on the assumption of the relation between Psychology and certain class
commitments, we will seek to demonstrate how its history is connected with the history of
Brazilian society and with the main ideologies of two of its historical cycles: the Democratic and
National cycle and the Democratic and Popular cycle. As a method, we will adopt the premises,
logic and concepts deriving from Marxist tradition, especially those emanating from the works
of the Sardinian Marxist Antonio Gramsci. At the same time, we will seek to point out how the
Psychology born during the Democratic and Popular cycle, notwithstanding its contribution
to the reflection on the ideological and elitist character of Brazilian Psychology, not necessarily
stopped playing a certain ideological role too, either by wiping the core of the Marxist social
theory out of its analysis, or by promoting practices that contribute little to enhance the
struggles of the subordinated classes for its radical emancipation. With this purpose, we expect
to contribute with some observations to the critique of the ideology of the social compromise, to
which this Psychology is closely related, in the same way that Psychology was closely related to
the national-developmentalist ideology during the Democratic and National cycle.
Keywords: Critical Psychology, History of Psychology, National and Democratic Cycle, Demo-
cratic and Popular Cycle, Marxism.

Disponível em www.scielo.br/pcp
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 57-70.

La Psicología Brasileña en el Ciclo Democrático-


Nacional y en el Ciclo Democrático-Popular

Resumen: Partiendo del presupuesto de la vinculación de la psicología a determinados


compromisos de clase, buscaremos evidenciar cómo su historia se articula a la historia de
la formación social brasileña y a las principales ideologías de sus ciclos históricos: el ciclo
democrático-nacional y el ciclo democrático-popular. Como método, recorreremos a los
presupuestos, la lógica y los conceptos provenientes de la tradición marxista, especialmente
aquellos provenientes de las reflexiones del marxista sardo Antonio Gramsci. Buscaremos,
además, señalar cómo la psicología nacida durante el ciclo democrático-popular, no obstante
la contribución que dio a la reflexión sobre el carácter ideológico y elitista de la psicología
brasileña, no necesariamente dejó de cumplir, también, determinado papel ideológico, al retirar
del horizonte de sus análisis el núcleo central de la teoría social marxista, o al promover algunas
prácticas que poco contribuyen a proporcionar a las clases subalternas los elementos que
necesitan para potenciar sus luchas radicalmente emancipatorias. Con ese objetivo, esperamos
contribuir con algunas observaciones a la crítica de la ideología del compromiso social de la
cual esta psicología es íntimamente solidaria, de la misma forma que la psicología del ciclo
democrático-nacional fue íntimamente solidaria a la ideología nacional-desarrollista.
Palabras claves: Psicología Crítica, Historia de la Psicología, Ciclo Democrático-Nacional, Ciclo
Democrático-Popular, Marxismo.

Introdução projetos político-ideológicos e seus respectivos com-


Neste mesmo periódico, há exatos cinco anos, promissos de classe, partiam da convicção de que: 
por ocasião da comemoração dos 50 anos da regula-
mentação da profissão de psicólogo no Brasil, Antu- No caso da Psicologia brasileira, faz-se necessário
nes (2012) mostrou-nos algumas das contradições compreendê-la como construção histórica e social,
presentes no processo de desenvolvimento da Psi- síntese de múltiplas determinações, orientada por
cologia brasileira. Remetendo-nos às suas condições determinadas concepções de homem e de socie-
de produção e apontando suas principais afiliações dade e comprometida com posições de classe e,
ideológicas, a autora evidenciou a presença de ideias portanto, contraditória, sendo que o embate entre
e práticas psicológicas divergentes em relação às esses elementos que se opõem produz movimento
ideias e práticas dominantes em cada um dos perí- e possibilita superação (Antunes, 2012, p. 46).
odos considerados (dentre as quais se destacavam
aquelas de Manoel Bomfim, Ulysses Pernambucano Mais recentemente, realizando apontamentos
e Helena Antipoff ). Partindo da produção dos sabe- sobre a história e o desenvolvimento da Psicologia crí-
res psicológicos, no período colonial, e chegando ao tica no Brasil, Lacerda Junior (2013) fez, por sua vez, a
processo de regulamentação da profissão, na década seguinte observação:
de 1960, passando pelo processo de autonomização
da Psicologia, entre os séculos XIX e XX, e de sua con- Não é exagero dizer que a Psicologia emergiu asso-
solidação institucional, a partir da década de 1930, ciada às classes dominantes da formação social
Antunes também desvelou alguns dos vínculos mais brasileira. Da mesma forma como a Psicologia nos
ou menos imediatos que unem a história da Psico- EUA no início do século XX, na busca por legitimi-
logia brasileira ao quadro mais geral da história de dade social, se associou aos setores dominantes da
nossa formação social. sociedade norte-americana, a Psicologia brasileira
O recurso de Antunes às condições histórico-so- soube rapidamente se posicionar diante das lutas
ciais de produção das ideias e práticas psicológicas, aos de classes (Lacerda Junior, 2013, p. 219).

58
Boechat, F.. M. (2017). Psicologia Brasileira nos Ciclos Históricos.

Partindo do pressuposto dessa vinculação da Psi- de Psicologia de São Paulo (CRP-SP), o Programa de
cologia a determinadas posições de classe, indicada Estudos Pós-graduados em Psicologia Social da Ponti-
tanto por Antunes (2012) como por Lacerda Junior fícia Universidade Católica de São Paulo (PEPG-PSO/
(2013), buscamos evidenciar, dentro dos limites deste PUC-SP), a Associação Brasileira de Psicologia Social
ensaio, de que maneira a história da Psicologia brasi- (Abrapso); entrevistas com personagens que partici-
leira articula-se à história da formação social brasileira. param da criação desses espaços, entre outros.
Particularmente, tentamos mostrar de que maneira a O método que empregamos para a análise, inter-
história da Psicologia brasileira articula-se à história pretação e explicação das relações entre a história da
política brasileira e, consequentemente, às ideologias Psicologia brasileira e os referidos ciclos históricos fun-
hegemônicas de dois de seus últimos ciclos históricos: damentou-se nos pressupostos, na lógica e nos con-
o ciclo democrático-nacional e o ciclo democrático- ceitos provenientes da tradição marxista (Netto, 2006,
-popular. Procuramos, ainda, apontar de que maneira 2011). Como nos interessa deslindar os nexos entre
uma das variantes de Psicologia crítica nascida no ciclo estratégias de dominação de classe e seus correspon-
democrático-popular, em que pese a contribuição dentes agentes sociais em determinados ciclos históri-
dada à reflexão sobre o caráter ideológico e elitista da cos, recorremos a alguns dos conceitos desenvolvidos
Psicologia brasileira, não deixou de cumprir determi- por Gramsci (1891–1937). Isso porque a participação
nado papel ideológico ao retirar do horizonte de suas orgânica de intelectuais na conformação dos blocos
análises o núcleo central da teoria social marxista históricos, analisada por Gramsci (2000), parece-nos
(Carvalho, 2014) e ao promover algumas práticas que peça-chave para compreendermos como a Psicologia
pouco contribuem para fornecer às classes subalter- tem participado das estratégias de dominação postas
nas os elementos de que necessitam para potencializar em marcha na história da formação social brasileira,
suas lutas radicalmente emancipatórias. Esperamos, independentemente da consciência e das eventuais
assim, contribuir com alguns apontamentos para a boas intenções de seus principais agentes1.
crítica da ideologia do compromisso social (Silva, 2015, Dito isso, resta-nos dizer, nesta breve introdução,
2017), da qual esta forma particular de Psicologia crí-
que as análises, interpretações e explicações a que
tica é intimamente solidária, da mesma maneira como
chegamos não pretendem ser exaustivas ou definiti-
a Psicologia nascida no ciclo democrático-nacional foi
vas, mas apenas servir à tarefa de desvelamento das
intimamente solidária à ideologia nacional-desenvolvi-
contradições imanentes à história da Psicologia bra-
mentista (Paiva, 1980; Toledo, 1978).
sileira, para que possamos contribuir com a tarefa,
No que concerne, particularmente, às rela-
necessariamente coletiva, de compreensão da histó-
ções entre a história da Psicologia e o ciclo
ria social e política “como processos constitutivos de
democrático-popular, cumpre assinalar que os apon-
nosso objeto de estudo, a Psicologia no Brasil, com a
tamentos e as indicações a que chegamos resultam de
certeza de que muitos estudos e pesquisas são neces-
pesquisa ainda em curso que lança mão, de maneira
sários para que essa compreensão se aprofunde e se
exploratória, de materiais heterogêneos, como a pro-
amplie” (Antunes, 2012, p. 63).
dução bibliográfica (livros, teses, dissertações, artigos,
comunicações etc.) diretamente vinculada aos auto-
res dessa nova forma de Psicologia crítica; materiais Desenvolvimento
textuais e audiovisuais produzidos por associações Uma vez que o objetivo geral deste artigo consiste
e instituições do campo psicológico, como o Conse- em apreender algumas das relações entre a história da
lho Federal de Psicologia (CFP), o Conselho Regional Psicologia brasileira e os ciclos democrático-nacio-

1
Gramsci oferece uma compreensão mais nuançada das articulações entre as superestruturas e a estrutura social, dos nexos entre ide-
ologias e a conformação de “blocos históricos”. Não ignoramos, como salientou Portelli, que “Esse súbito interesse pelo autor dos Qua-
derni del Carcere e redator de Ordine Nuovo não está [...] isento de segundas intenções e frequentemente se presta a justificar tal ou qual
corrente marxista, ou mesmo a seguir um ‘novo’ teórico que bruscamente vira ‘moda’, depois de trinta anos de esquecimento” (1977,
p. 13). Também não desconhecemos, conforme observou Florestan Fernandes, que “O que se está fazendo com as ideias de Gramsci
exige de nós todos um repúdio frontal: as universidades norte-americanas e europeias tentam convertê-lo em um representante amorfo
do ‘socialismo democrático’” (in Ammann, 1980, p. 12-13). Mas achamos que seria grave erro descartarmos suas contribuições ao estu-
do das formas contemporâneas de dominação burguesa, sobretudo quando consideramos sua capacidade de articulá-las a uma opção
política radical pela emancipação humana das classes subalternas.

59
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 57-70.

nal e democrático-popular, convém definirmos o que O conjunto das transformações desse período
entendemos por cada um desses ciclos históricos. refletiu-se no pensamento social brasileiro sob a forma
Primeiramente, apresentaremos aquilo que enten- de uma ideologia particular: a ideologia do desenvolvi-
demos por ciclo democrático-nacional, indicando mento nacional, também conhecida como nacional-
alguns aparelhos privados de hegemonia nascidos -desenvolvimentismo ou, muito simplesmente, desen-
durante este ciclo que influíram decisivamente sobre a volvimentismo (Iasi, 2012a; Paiva, 1980; Toledo, 1978).
história da Psicologia brasileira. Futuramente, o exame De acordo a ideologia do desenvolvimento nacio-
desses aparelhos poderá contribuir para uma compre- nal, a chave para a superação do atraso econômico, polí-
ensão histórico-concreta da forma como se materiali- tico, social e cultural brasileiros encontrar-se-ia no pleno
zou a chamada ideologia do desenvolvimento nacional. desenvolvimento de relações capitalistas, desenvolvi-
Em seguida, passaremos à apresentação do que mento este que se encontraria entravado pelo latifúndio
entendemos ser o ciclo democrático-popular, seus e as oligarquias agrárias, de um lado, e pelos interesses
principais aparelhos privados de hegemonia e o movi- e pela atuação das potências imperialistas, por outro
mento de inflexão conservadora que descreveram, (Iasi, 2012a). A ideologia do desenvolvimento nacional,
acompanhando o recuo da consciência da classe tra- que orientou a atuação política de organizações à direita
balhadora no descenso do movimento operário, sin- e à esquerda, foi determinante, como veremos, para a
dical e popular. Criados pela classe trabalhadora ou forma assumida pela Psicologia brasileira no período.
por iniciativa de intelectuais ligados aos anseios e às
lutas das classes subalternas, alguns desses aparelhos
sofreram claro processo de transformismo (Gramsci, O ciclo democrático-nacional
2011), contribuindo para o apassivamento das clas- e seus aparelhos
ses subalternas e a consolidação do ciclo democráti- Como dissemos, o ciclo democrático-nacional
co-popular a partir do desenvolvimento e difusão da demandou, por parte das classes dominantes, reor-
ideologia do compromisso social. denamentos institucionais e produções ideológicas –
Como procuramos indicar, a história da forma- sobretudo a partir de 1950, como resultado do aprofun-
ção desses aparelhos cruza-se com a história da Psi- damento das contradições imanentes ao processo de
cologia brasileira, o que nos sugere a necessidade de industrialização capitalista, das quais o surgimento das
uma história social da Psicologia que considere a tota- Ligas Camponesas dava testemunho (Ammann, 1980).
lidade da vida social e as idiossincrasias da formação
social brasileira na riqueza de suas mediações, como A história do Brasil desenvolvimentista foi, nesse
forma de superar tanto o idealismo, que caracteriza sentido, a história da indução, por parte do Estado,
boa parte de sua historiografia, quanto o materia- do processo de modernização capitalista e do desen-
lismo mecânico e abstrato. volvimento de estratégias visando sua legitimação
social, ampliando de forma segmentada os direitos
O ciclo democrático-nacional de cidadania e impedindo a organização da classe
Por ciclo democrático-nacional, compreende- trabalhadora (Neves, s.d., p. 54, tradução livre).
mos o período da história brasileira situado entre
dois golpes de Estado: o golpe de 1930, que conduziu A implementação dessas estratégias de legitimação
Getúlio Vargas ao poder, e o golpe empresarial-militar social deu-se, em parte, através da criação de algumas ins-
de 1964, que pôs termo às mobilizações populares em tituições de âmbito nacional, algumas das quais por inicia-
torno das Reformas de Base. tiva do próprio Estado brasileiro. A dominação burguesa
Em que pese a natureza política desses dois mar- exigia a produção de aparelhos privados de hegemonia
cos, o que caracteriza fundamentalmente este ciclo é o com o papel de consolidação do bloco histórico nacio-
intenso e acelerado processo econômico de industriali- nal-desenvolvimentista. Tratava-se, portanto, daquele
zação e urbanização da sociedade brasileira (consequ- movimento em que a sociedade política se encarrega da
ência, em grande medida, dos impactos em nossa eco- formação de seus “funcionários” (Gramsci, 2011, p. 207).
nomia da crise mundial de 1929) e sua contrapartida O Estado brasileiro buscava legitimar-se for-
no plano da luta de classes: o ascenso e a organização mando não apenas seus próprios quadros, mas
político-revolucionária da classe trabalhadora. avançando ideologicamente sobre o conjunto da

60
Boechat, F.. M. (2017). Psicologia Brasileira nos Ciclos Históricos.

sociedade civil2. Historicamente autocrático e par- nização, moralização e disciplinarização sociais, forma-
ticularista, apresentava-se sob novas formas, como ção esta operada por profissionais liberais, membros da
garante da soberania popular e representante legí- pequena-burguesia sob direção das classes dominantes.
timo da vontade geral. Em termos gramscianos, a O ISOP, por sua vez, criado em 1947 pela Funda-
coerção buscava revestir-se de consenso. ção Getulio Vargas (FGV, criada em 1944), teve papel
Entre as instituições criadas no curso do ciclo demo- decisivo no desenvolvimento da Psicologia brasileira
crático-nacional, algumas determinaram sobremaneira o do período. Segundo Antunes (2012, p. 58), o ISOP
curso da história da Psicologia brasileira. Dentre essas ins- “foi base para o desenvolvimento de pesquisas, de
tituições, destacamos o Instituto Nacional de Pedagogia, diversas modalidades de intervenção psicológica e de
o Instituto de Seleção e Orientação Profissional (ISOP) e o formação de profissionais especialistas nas questões
Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). psicológicas relacionadas à organização do trabalho”.
Criado em 1937, o Instituto Nacional de Pedagogia Na primeira edição do periódico Arquivos Brasi-
transformou-se em Instituto Nacional de Estudos Peda- leiros de Psicotécnica, órgão de divulgação do instituto,
gógicos (INEP) pelo Decreto-Lei n° 580, de 30 de julho de lia-se que sua criação objetivava “contribuir para o ajus-
(Brasil, 1938), tendo Lourenço Filho como seu primeiro tamento entre o trabalhador e o trabalho, mediante o
diretor-geral. Durante o ciclo democrático-nacional, ao estudo científico das aptidões e vocações do primeiro e
Instituto competia, entre outras funções, o desenvolvi- dos requisitos psicofisiológicos do segundo” (Fundação
mento da Psicologia aplicada à educação e à orientação Getúlio Vargas, 1949, p. 7). Assentava-se sobre a convic-
e seleção profissionais, tendo papel destacado na difu- ção de que “a preponderância do fator humano entre as
são dos princípios da pedagogia escolanovista. questões ligadas à racionalização do trabalho constitui,
O Dicionário Histórico de Instituições de Psicolo- hoje em dia, ponto de aceitação pacífica” (FGV, 1949, p.
gia no Brasil (Jacó-Vilela, 2011) menciona o Instituto 7-16). Na apresentação do periódico, assim se expres-
como continuação do Pedagogium, instituição que sara o então presidente da FGV, Luiz Simões Lopes:
abrigou o primeiro laboratório de Psicologia experi-
mental do país (Antunes, 2017, p. 68 e ss.). A publicação destes Arquivos visa conclamar os
A importância do INEP para o desenvolvimento da que estudam o assunto do ponto de vista científico,
Psicologia brasileira não deve ser desprezada, sobretudo os profissionais da psicotécnica, os nossos admi-
se consideramos o peso conferido à ciência psicológica nistradores, empregadores, nas atividades públicas
na definição das diretrizes pedagógicas deste período ou privadas, “consumidores” do fator humano, que
da história da educação brasileira (Antunes, 2017). Sua tanto necessitam de mão de obra adequada, ence-
importância para a Psicologia não se limitou ao campo da tarmos, juntos, uma forte campanha de aumento
educação. Segundo nos mostrou Antunes, “a Psicologia da produção nacional, de maior rendimento, de
aplicada à educação e a psicologia aplicada às relações maior felicidade no trabalho, através da Seleção e
de trabalho constituem-se ambas em campos diversos, da Orientação Profissional (FGV, 1949, p. 2).
porém voltados, pelo menos, em última instância, para
objetivos comuns, num mesmo contexto histórico” (2017, O ISEB foi criado em 1955. Ao Instituto coube a
p. 110). Esses “objetivos comuns” consistiam na formação formulação da ideologia do desenvolvimento nacional
da força de trabalho adequada às novas condições de (Toledo, 1978). Segundo a ideologia nacional-desen-
produção da vida social, além da normalização, da higie- volvimentista isebiana3, as formações sociais perifé-

2
Como observou Gramsci, “As classes dominantes precedentes eram essencialmente conservadoras, no sentido de que não tendiam a assimilar
organicamente as outras classes, ou seja, a ampliar ‘técnica’ e ideologicamente sua esfera de classe: a concepção de casta fechada” (Gramsci, 2011,
p. 279). Com o desenvolvimento do capitalismo, no entanto, “A classe burguesa põe-se a si mesma como um organismo em contínuo movimento,
capaz de absorver toda a sociedade, assimilando-a assim a seu nível cultural e econômico; toda a função do Estado é transformada: o Estado
torna-se ‘educador” (Gramsci, 2011, p. 279).
3
Se é verdade que o nacional-desenvolvimentismo é gestado ao longo de toda a Era Vargas, seu nascimento data da década de 1950, impulsiona-
Como
do, no plano internacional, pelas vicissitudes do pós-guerra e, no plano nacional, pelo processo acelerado de industrialização. Esse processo de
desenvolvimento das relações capitalistas nos países da periferia do sistema mundial visava não apenas frear o avanço mundial do socialismo,
como baratear o valor da força de trabalho no centro do sistema e a ampliar suas reservas de “acumulação primitiva” (Oliveira, 2013, p. 109). Cabe- How t
ria lembrar que datam desse período a Conferência de Bretton Woods, em 1944, que resultou na criação do Fundo Monetário Internacional (FMI),
do Banco Mundial (BM), da Organização das Nações Unidas (ONU), bem como sua Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Ce-
pal), instituições que desempenharam papel crucial durante a “guerra fria”, sobretudo no que se refere à política dos EUA para a América Latina. Cómo

61
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 57-70.

ricas estariam marcadas por conflitos entre setores Entretanto, a partir do final da década de 1960,
“tradicionais”, “atrasados”, comprometidos com as como parte das agitações que sacudiram o mundo e
estruturas de dominação “coloniais ou semicoloniais”, como resposta à ofensiva do Estado ditatorial sobre
e setores “progressistas” ou “modernos”, empenhados as instituições universitárias, mas sobretudo em
na modernização, industrialização e emancipação consequência de mudanças do mercado de trabalho
nacionais (Toledo, 1978). brasileiro, da abertura de novos campos de atuação,
Vejamos, na seção seguinte, de que maneira a e da afluência de novos referenciais teórico-metodo-
ideologia do desenvolvimento nacional foi determi- lógicos, a Psicologia brasileira viu nascer uma forma
nante para a Psicologia brasileira deste período, deli- alternativa (Yamamoto, 1987, 2003, 2007).
mitando seus objetos, definindo suas prioridades e Como veremos adiante, essa Psicologia corres-
orientando suas ações. pondia a um movimento mais geral no seio da socie-
dade brasileira. Expressão de um ciclo histórico que
estava por nascer, ela assumiu a feição das demais
A Psicologia brasileira no ciclo
expressões do ciclo, compartilhando das linhas mais
democrático-nacional
gerais de seu desenvolvimento.
Como nos mostrou Antunes, a Psicologia bra-
sileira esteve empenhada, desde a chegada da corte
portuguesa, na higienização, moralização e normali- O ciclo democrático-popular
zação da sociedade brasileira. A partir de 1930, a Psi- Consideramos o ciclo democrático-popular,
cologia inicia seu processo de institucionalização. Daí grosso modo, como o período da história da brasileira
em diante, ela estará engajada na produção de “um aberto no final da década de 1970 com o ascenso das
novo homem, adequado aos novos tempos” (Antunes, lutas operárias, sindicais e populares contra as polí-
2012, p. 53), auxiliando as classes dominantes em seus ticas de arrocho salarial, o aumento do custo de vida
esforços de diferenciação e disciplinarização da força e o rebaixamento real dos salários reais pela inflação,
de trabalho, segundo uma “concepção política de lutas que ganharam destaque com as greves do ABC
‘colaboração de classe’, eliminando as contradições e paulista. Data do início deste ciclo o surgimento do
conflitos presentes na relação entre capital e trabalho” assim chamado novo sindicalismo, com seu “novo
(Antunes, 2017, p. 85). modo de condução das lutas”; das oposições sindi-
O psicólogo formado nos quadros deste ciclo cais, “organizações sindicais extraoficiais, fundadas
histórico era considerado como agente de moder- nas comissões de fábricas”; dos movimentos sociais
nização e desenvolvimento nacional. “Racionali- contra as restrições impostas pela forma autocrática
zando” as relações de trabalho, educação e assis- assumida pelo Estado burguês desde o golpe de 1964,
tência; empregando técnicas e procedimentos movimentos esses apoiados, em larga medida, por
cientificamente qualificados, o psicólogo contri- setores progressistas da Igreja Católica (Meneguello,
buiria não apenas para o progresso da Nação, como 1989; Rainho, & Bargas, 1983; Tumolo, 2002).
para a desalienação do povo brasileiro (Toledo, No plano internacional, vale lembrar que a
1978). A Psicologia brasileira, portanto, subordi- década de 1970 assistiu ao golpe no Chile, início do
nava-se à ideologia do desenvolvimento nacional, primeiro experimento neoliberal. A crise de acumu-
que influenciava setores tanto à esquerda quanto à lação impôs um conjunto de medidas que redunda-
direita do espectro político. ram na reestruturação dos processos produtivos e das
Essa subordinação não se limitou aos quadros relações de trabalho em escala planetária (Tumolo,
do ciclo democrático-nacional. Referindo-se ao 2002). No Brasil, a ofensiva do Capital sobre o Trabalho
momento da regulamentação da profissão, em 1962, não tardou em encontrar novas formas de expressão.
e às décadas que se seguiram ao golpe de 1964, Scar- Como resposta a essa ofensiva, na década de 1980,
paro e Guareschi (2007, p. 100) observaram que “as temos a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT),
práticas psicológicas se consolidaram sobre a influên- da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do Movi-
cia das ideologias desenvolvimentistas, pautadas pela mento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A
repressão política e pelo patrulhamento ideológico campanha pelas eleições diretas, que se encerra com a
que caracterizaram o Brasil ao longo de quase três promulgação da Constituição Cidadã, em 1988, marca
décadas de ditadura explícita”. o desfecho do grande ascenso de massas do período.

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Boechat, F.. M. (2017). Psicologia Brasileira nos Ciclos Históricos.

A queda do muro de Berlim, em 1989, a dissolução da assumiram a forma de aparelhos privados de hege-
URSS e o desmonte do bloco socialista, na década de monia da classe trabalhadora, responsáveis, como
1990, sugeriram o triunfo definitivo do capitalismo, tais, por contribuir para a formação e atuação de seus
dando lugar às ideologias sobre o fim da história, da intelectuais orgânicos na luta pela conquista da hege-
centralidade do trabalho, da luta de classes e, por fim, monia, isto é, pela direção intelectual e moral de seus
da própria ideologia. aliados no seio das demais classes subalternas.
Este ciclo histórico, que tem mostrado haver
alcançado seu limite (Demier, 2016; Iasi, 2017), carac-
O ciclo democrático-popular
terizou-se por haver desenvolvido, ele também, uma
e seus aparelhos
ideologia, assim como aparelhos voltados à sua ela-
Um dos aparelhos privados de hegemonia mais
boração e difusão. A essa ideologia, que apresenta
significativos desse novo ciclo é o PT. Nascido das
traços de ruptura e de continuidade com a ideologia
lutas do assim chamado “novo sindicalismo”, o par-
nacional-desenvolvimentista (Iasi, 2012b; Martins,
tido soube aglutinar em torno de si todo um conjunto
Prado, Figueiredo, Motta, & Souza, 2014), tem-se dado
de forças sociais. Enquanto polo aglutinador, as ban-
o nome de ideologia do compromisso social (Silva,
deiras empunhadas pelo “novo sindicalismo” foram
2015, 2017). Em torno da ideologia do compromisso
decisivas para a conformação do grande bloco de
social, cuja marca principal consiste em condicionar a
forças que pôs em xeque o regime ditatorial, inaugu-
emancipação humana à radicalização da democracia
rando o ciclo democrático-popular.
participativa e, progressivamente, em limitar a ideia
Analisando os principais documentos oficiais do
de emancipação aos quadros da emancipação política
partido, Iasi (2012b) mostrou o movimento que redun-
(Lacerda Junior, 2015; Marx, 2010), orbitam os concei-
dou na acomodação do PT aos limites da ordem bur-
tos de cidadania, democracia, inclusão social, justiça
social, participação social, bem como o clamor pela guesa e, segundo Figueiredo  (2014, p. 64), à retomada
defesa e ampliação de direitos através da organização de velhos “fetiches desenvolvimentistas e nacionais”.
e fortalecimento da sociedade civil e da conquista de Como sintetizou Musse,
políticas públicas e sociais.
Conforme Martins et al. (2014, p. 360), esse ciclo, Organizado a partir das lutas concretas, sindi-
a princípio, cais, como um movimento político de afirma-
ção da independência e autonomia da classe
pauta-se no processo de alargamento da demo- operária, o PT apresenta-se, inicialmente, como
cracia, compreendido como a ampliação progres- representante da “classe trabalhadora”; depois,
siva de um conjunto de direitos e de participação do conjunto dos “trabalhadores”; em seguida do
política, através da pressão dos movimentos “povo”; e, por fim, dos “cidadãos”. A passagem da
sociais e da ocupação dos espaços no Estado, “classe” à “nação” atesta a prevalência da estra-
que se chocariam contra os interesses de nossa tégia do “gradualismo reformista” e a subordina-
classe dominante. É desse choque que emergiria ção à tática eleitoral, que redefiniram o horizonte
a necessidade do socialismo. social, político e econômico do projeto partidário
(apud Iasi, 2012b, p. 10).
Ao longo do desenvolvimento deste ciclo, em
parte devido às derrotas do movimento operário e sin- A CUT é outra das expressões significativas do
dical brasileiro, em parte pela derrota do movimento ciclo democrático-popular. Criada em 1983, ela deu
comunista internacional, o horizonte socialista limi- forma institucional ao “novo sindicalismo”, servindo
tou-se cada vez mais à natureza de simples ideal. Não de braço sindical do PT desde então. Tumolo (2002)
nos ocuparemos aqui desse movimento de rebaixa- desvelou os momentos do movimento que levou a
mento da perspectiva revolucionária que esteve em formação sindical da maior central sindical do país a
sua origem, já examinado por Iasi (2012b), Martins transformar-se numa mescla de formação instrumen-
et al. (2014), entre outros (Demier, 2016; Figueiredo, tal e qualificação profissional. Esse movimento cor-
2014). Limitamo-nos à breve apresentação de algu- respondia à reorientação estratégica da Central, como
mas das objetivações deste ciclo, algumas das quais resposta política às transformações do mundo do tra-

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 57-70.

balho e das derrotas do movimento sindical. A CUT e Compromisso Social, essa nova forma de Psicologia
acabaria por sucumbir às exigências imediatas postas estaria marcada pelo rechaço à Psicologia “tradicio-
pela sociabilidade do capital, abandonando paulati- nal”, considerada elitista, individualista e positivista
namente uma perspectiva classista e anticapitalista, (Bock, 1999).
substituindo-a pela ideia do “sindicato cidadão”. Essa nova forma de Psicologia veio a ser siste-
O importante agora é destacar que uma das matizada com a criação do PEPG-PSO e, posterior-
variantes de Psicologia crítica nascida no ciclo demo- mente, da Abrapso. A criação desses dois espaços
crático-popular desempenhou papel de peso na ins- deu-se em contexto de franco acirramento da luta
trumentalização ideológica e na consolidação deste de classes, em que “a luta pelo acesso aos ganhos da
ciclo, acompanhando mais ou menos sincronica- produtividade por parte das classes menos privilegia-
mente o movimento de inflexão conservadora reali- das transforma-se necessariamente em contestação
zado pelas demais objetivações a que fizemos refe- ao regime, e a luta pela manutenção da perspectiva
rência. Referimo-nos à Psicologia crítica nascida nas da acumulação transforma-se necessariamente em
dependências da Pontifícia Universidade Católica de repressão” (Oliveira, 2013).
São Paulo (PUC-SP), aquela que veio a se desenvolver, O PEPG-PSO iniciou suas atividades num clima de
fundamentalmente, em torno dos trabalhos e da ati- intensa fermentação social, às vésperas da crise eco-
vidade político-pedagógica de Silvia Lane (1933–2006) nômica que acabaria por repercutir sobre os rumos
e que Carvalho (2014) analisou, recentemente, sob a do regime militar. O programa dava prosseguimento à
rubrica da “Escola de São Paulo de Psicologia Social”. experiência inovadora realizada, anos antes, no curso
de Psicologia, sob forte influência de Silvia Lane, com
a criação de núcleos que procuravam romper com a
A Psicologia no ciclo
rígida separação entre as disciplinas e propunham a
democrático popular
articulação entre teoria e prática. (Carvalho, 2014) Pro-
Do ciclo democrático-popular à “Psicologia curava-se enfrentar a contrarreforma universitária de
democrática e popular” 1968, resultado do acordo MEC-USAID, que buscava,
A participação ativa da PUC-SP no processo de entre outros objetivos, despolitizar o ensino brasileiro e
formação do PT e, consequentemente, na consoli- desarmar a resistência estudantil (Antunes, 2012; Bock,
dação do ciclo democrático-popular, é fato notório. 1999; Carvalho, 2014; Lacerda Junior, 2013).
Conforme observou Meneguello, A Abrapso, por sua vez, foi criada em 1980, como
parte dos esforços de ampliação dessa perspectiva
Fundamentalmente em São Paulo, a maioria “progressista” em Psicologia. De acordo com os apon-
dos intelectuais envolvidos nas discussões par- tamentos de Molón sobre o que veio a chamar de
tidárias eram elementos ligados ao CEBRAP “Psicologia abrapsiana”, “A criação da Abrapso é um
(Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), marco decisivo na orientação da Psicologia Social bra-
CEDEC, (Centro de Estudos de Cultura Contem- sileira em direção à problemática da nossa realidade
porânea), UNICAMP (Universidade Estadual de sócio-econômico-político-cultural (sic)” (2001, p. 53).
Campinas - SP), USP (Universidade de São Paulo) Mas essa nova forma de Psicologia brasileira,
e PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de desenvolvida nas dependências do PEPG-PSO e, pos-
São Paulo) (Meneguello, 1989, p. 61). teriormente, também nos encontros regionais e nacio-
nais da Abrapso, sofreu profunda inflexão, de forma
No que diz respeito à participação da Psicologia análoga ao que se passou com o PT e a CUT. Um dos
da PUC-SP, esta foi mediada, em grande parte, pelo traços mais marcantes dessa inflexão foi, sem dúvida,
PEPG-PSO. Criado no início da década de 1970, o a ampliação de seu referencial teórico-metodológico.
PEPG-PSO aglutinou professores de Psicologia e psi- Assim descreveu Carvalho (2014) essa inflexão:
cólogos avessos à Psicologia “tradicional”. Segundo
Bock, que fora orientanda de Lane, ex-diretora da Tendo substituído o paradigma do trabalho pelo
Faculdade de Psicologia da PUC-SP, ex-presidente mundo da vida, acatado a autonomização da
do Conselho Federal de Psicologia por três gestões e esfera das objetivações sociais, aberto mão da
atual presidente do Instituto Silvia Lane – Psicologia teoria do valor-trabalho para compreender a

64
Boechat, F.. M. (2017). Psicologia Brasileira nos Ciclos Históricos.

sociedade a partir das esferas da comunicação individualista e positivista, a Psicologia “progres-


(inversão idealista), das relações intersubjeti- sista” desenvolvida nas dependências do PEPG-PSO
vas e dos valores, anunciado o fim das lutas de e na Abrapso assumiu progressivamente um “histori-
classe ou o seu marasmo e abandonado qualquer cismo desenfreado” (Toledo, 1978, p. 56-57), deixando
referência à transformação revolucionária da ao segundo plano de suas preocupações a análise
sociedade por um socialismo ético (ou revolução concreta da formação social brasileira. Produzir um
ética), a Escola de São Paulo4 não figura como conhecimento que servisse “para o Brasil, ou seja,
uma alternativa marxista de psicologia social para todos os brasileiros” (Bock, 2010, p. 253), prescin-
(Carvalho, 2014, p. 260). dindo da referência à luta entre as classes sociais fun-
damentais e de uma clara posição de classe; desenvol-
Movimento semelhante de inflexão ocorreu no ver a democracia participativa e a consciência cidadã,
conjunto dos trabalhos apresentados nos encontros opondo os interesses das “elites” aos interesses da
nacionais e regionais da Abrapso, sobretudo a partir “maioria da população”, passaria a constituir seu hori-
da década de 1990. Segundo Molón, zonte político-estratégico.

A década de 1990 se caracteriza fundamental- Da Psicologia democrática e popular ao apassivamento


mente pela diversidade de temas e pela plurali- Mas, sendo expressão do ciclo democrático-popu-
dade e diferenciação de enfoques teórico-me- lar, seria natural que essa Psicologia expressasse suas
todológicos. Dentro disso, ocorre a proliferação determinações mais gerais. Acontece que essa relação
dos encontros nacionais e regionais, a intensifi- não foi uma relação unilateral. Conforme procurare-
cação das publicações, as quais oportunizam o mos indicar, a Psicologia formulada no seio do PEP-
surgimento de novas veredas e novos horizontes, G-PSO, desenvolvida e difundida a partir da Abrapso,
e, simultaneamente, constituem novos modos contribuiu ativamente para o desenvolvimento do ciclo
e espaços de atuação e pesquisa em Psicologia histórico do qual ela é uma das expressões. Sem des-
Social, norteados por pressupostos epistemoló- considerarmos divergências e dissidências no interior
gicos, ontológicos e metodológicos semelhantes, deste processo, nossa pesquisa tem indicado que a Psi-
orientados pela preocupação ética, ou seja, com- cologia nascida e desenvolvida no interior desses novos
prometidos social e politicamente com as trans- aparelhos, forjados por aliados da classe trabalhadora,
formações da sociedade e com uma vida mais cumpriu papel ativo no movimento de inflexão e capi-
digna para a maioria da população brasileira tulação tanto do PT quanto da CUT, contribuindo para
(Molón, 2001, p. 61). a consolidação do ciclo democrático-popular e, con-
sequentemente, para o fortalecimento de uma forma
Essa inflexão acompanhava o processo de rede- sutil de dominação burguesa no Brasil.
mocratização da sociedade brasileira. Como outras Tomemos, por exemplo, a entrevista com Pedro
objetivações do ciclo, a Psicologia desenvolvida no Pontual para o jornal do Conselho Regional de Psico-
interior do PEPG-PSO e da Abrapso sofreu um pro- logia de SP (Pontual, 2001). Nela, Pontual, que viria
cesso de transformação que se caracterizou por a se tornar diretor do Departamento de Participação
aquilo Lacerda Junior (2015) diagnosticou como uma Social da Secretaria-Geral da Presidência da Repú-
hegemonia da emancipação política em detrimento blica do governo Dilma Rousseff, e que, àquela altura,
da perspectiva marxista da emancipação humana. era apresentado como “Psicólogo e educador, discí-
Partindo de uma perspectiva classista e anticapita- pulo de Paulo Freire e atual secretário de Participação
lista, essa forma nova de Psicologia abandonou pro- e Cidadania da Prefeitura de Santo André, SP”, com
gressivamente o núcleo da teoria social marxiana. “uma trajetória extensa e marcada pelo compromisso
Contrapondo-se à Psicologia “tradicional”, elitista, social”, depois de confessar sua dívida intelectual para

4
Não ignoramos a diferença que separa a Psicologia desenvolvida originalmente por Lane, a “Psicologia sócio-histórica”, de proveniência
soviética, os trabalhos da “Escola de São Paulo de Psicologia Social” e os trabalhos de autores que, futuramente, nelas buscarão uma
referência e legitimidade. Suas continuidades e descontinuidades e a diferença entre suas intencionalidades políticas, algumas das quais
foram objeto de análise de Carvalho (2014), serão analisadas noutra ocasião.

65
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 57-70.

com a Psicologia da PUC-SP, responde o seguinte, ao os trabalhadores, para as classes populares. Tal
ser perguntado sobre o que é fazer política: compromisso representa apenas que precisamos
romper com uma psicologia que tem sido classista
Fazer política hoje é, para mim, colocar o instru- de uma outra forma (Furtado, 2000, p. 226-228).
mental profissional que construí, como psicólogo e
educador, a serviço do “empoderamento” das pes- No caderno de resumos da XXIX Reunião Anual
soas, como indivíduos e como coletividade. Para de Psicologia da Sociedade Brasileira de Psicologia, a
quê? Primeiro para ampliar, aprofundar e alargar os mesa-redonda n° 6, intitulada “Psicologia Social e do
estreitos limites de nossa democracia. Um país não trabalho – a alternativa popular”, é igualmente reve-
pode se contentar com o direito de votar nos seus ladora da hegemonia da emancipação política e o
representantes. Isso é importante, uma conquista compromisso com o desenvolvimento da democracia
fundamental, mas democracia é muito mais: sig- participativa, ao qual fizemos referência. Em “A quali-
nifica cidadãos participando das decisões que afe- ficação profissional e a organização dos trabalhadores
tam seu cotidiano, como atores-protagonistas do – o caso do Programa Integrar da CNM/CUT”, Furtado
espaço público. Há muito que se caminhar nesse diz-nos que
sentido. Construir esse espaço público, essa esfera
pública supõe construir cidadãos ativos, individual O Programa Integrar, da CNM/CUT de qualifica-
e coletivamente. Para mim, fazer política hoje é ção e requalificação de metalúrgicos desempre-
apostar nisso (Pontual, 2001, n. p.). gados, desenvolvido a partir do convênio com a
PUC-SP, foi a experiência piloto de uma política
A apresentação do entrevistado também nos da Confederação Nacional dos Metalúrgicos da
informa que Pontual “integrou a equipe do Instituto CUT para transformar os sindicatos filiados em
Cajamar, voltado para a formação de lideranças polí- ‘sindicatos cidadãos’” (Sociedade Brasileira de
ticas e populares” e “acompanhou Paulo Freire na Psicologia, 1999).
implantação do Projeto do Mova – Movimento de Alfa-
betização de Jovens e Adultos – durante o governo de Por último, tomemos um trecho do Relatório
Luíza Erundina na Prefeitura de SP” (Pontual, 2001). Final do I Encontro Nacional de Psicologia: Mediação
Tomemos agora o artigo de Odair Furtado, intitu- e Conciliação. No parecer da comissão ad hoc convi-
lado Psicologia e compromisso social – base epistemo- dada pelo Conselho Federal de Psicologia para reco-
lógica de uma psicologia crítica (1999), no qual o autor, mendações de posicionamento do Sistema Conselhos
formado nas dependências do PEPG-PSO, ao descrever acerca da temática, lemos que
sua participação no Programa Integrar, da Confederação
Nacional de Metalúrgicos da CUT, diz-nos o seguinte: A mediação permite acordos vantajosos para
todos, mas muito mais que isso, favorece o pro-
O curso tem como objetivo fornecer uma forma- tagonismo e a geração de mundos possíveis onde
ção de caráter geral, que amplie o horizonte cul- o confronto decorrente das diferenças – origem
tural do aluno e lhe dê condições de ampliar sua dos conflitos – seja conduzido sem gerar desi-
participação social ao mesmo tempo em que dis- gualdade e sustentar privilégios (Conselho Fede-
cute as condições sociais e históricas que geram o ral de Psicologia, 2006).
desemprego do trabalhador no Brasil de hoje. Em
resumo, trata-se de uma opção pedagógica que Na introdução do Relatório, a então presidente
se assenta sobre a noção de cidadania e de inclu- do Conselho, Ana Bock, “acreditando que haja, na Psi-
são social (Furtado, 2000, p. 226-227). cologia, competência acumulada para contribuir com
o desenvolvimento de uma cultura de conciliação”,
Concluindo seu artigo, Furtado ainda afirma o informa-nos de que
seguinte:
A mediação de conflitos – o mais popular dos
Evidentemente, não se trata de construirmos uma meios consensuais de resolução de controvérsias
psicologia classista, voltada exclusivamente para – é uma prática que valoriza e facilita a inovação e

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Boechat, F.. M. (2017). Psicologia Brasileira nos Ciclos Históricos.

provoca mudanças em procedimentos baseados contribuído para o fortalecimento da democracia


na autonomia da vontade (Conselho Federal de brasileira e de suas principais instituições. A afluên-
Psicologia, 2006, p. 9-10). cia dos psicólogos para o campo das políticas públicas
tem sido uma das marcas desse novo ciclo histórico,
Que nos sugerem esses dados? Sem ignorar que e não se pode negar que essa proletarização impôs
esses trechos não nos dão senão uma parte da rea- à Psicologia novos e desafiadores problemas. No
lidade, e sem desconsiderar a diversidade que se entanto, resta saber se, ao promover ativa e conscien-
abriga sob o guarda-chuva do “compromisso social”, temente os valores e os ideais democráticos, os psi-
os resultados mostram-nos que psicólogos declara- cólogos do compromisso social não desempenham,
damente comprometidos com “o social” na verdade à maneira dos psicólogos do desenvolvimento nacio-
comprometem-se pura e simplesmente com o desen- nal, o papel de intelectuais orgânicos da burguesia no
volvimento da democracia participativa e da cidada- estágio atual de sua supremacia; se a classe média,
nia. Implicitamente, contribuem para difundir ilusões ao assumir o leme das lutas e impor o lema do com-
sobre a possibilidade de emancipação no interior de promisso social, realmente o faz em nome da maioria
uma ordem social que se funda, precisamente, na da população brasileira: a classe trabalhadora. Pois
manutenção da contradição entre a igualdade formal o papel dos intelectuais em aliança com as classes
e a desigualdade real. subalternas não deve significar a deferência acrítica
Caberia perguntar se a Psicologia surgida no ciclo aos seus interesses, ideias, valores e temores imedia-
democrático-popular, declaradamente “progressista”, tos. Para um intelectual organicamente vinculado
ao buscar superar a Psicologia “tradicional” e “elitista”, com os interesses da classe trabalhadora, não se trata
não permanece refém das oposições e dualismos for- de colocar-se a serviço das classes subalternas, mas de
jados no ciclo histórico democrático-nacional. colocar-se a serviço da emancipação das classes subal-
Ao que nos parece, a ideologia do compromisso ternas, o que implica, mais do que um simples com-
social acaba reencontrando-se com a ideologia do promisso “social” ou “ético-político”, uma estratégia
desenvolvimento nacional, sugerindo a necessidade político-revolucionária que se comprometa declarada
de uma aliança nacional ou de toda a população para e conscientemente com a superação da sociedade de
a conquista progressiva dos direitos que caracterizam classes. Uma estratégia político-revolucionária que
a sociabilidade burguesa. não se comprometa com abstrações como “o social”,
Os aparelhos criados para sua elaboração e difu- “o Brasil” ou “a população brasileira”, mas com o con-
são, o PEPG-PSO e a Abrapso, em que pese haverem se junto daqueles sujeitos sociais concretos que, pelo
constituído, inicialmente, como aliados da classe tra- lugar que ocupam na produção social da vida, pos-
balhadora, comprometidos com a “maioria dos brasi- suem a possibilidade de romper as amarras que os
leiros”, acabam por se sobrepor aos interesses dessa afastam do caminho de sua própria emancipação.
classe. Posteriormente, ao ocuparem os espaços privi-
legiados de formação política da classe trabalhadora, Conclusão
especialmente o Instituto Cajamar e a CUT, esses inte- Procurando dar prosseguimento ao trabalho
lectuais, sempre imbuídos do “compromisso social”, desenvolvido por Antunes (2012), esperamos haver
de aliados da classe trabalhadora passam a dirigentes, mostrado que as contradições presentes na história
impondo os interesses de sua classe particular, que da Psicologia brasileira não se limitam ao campo das
não deixam de ser interesses de classes subalternas. divergências entre diferentes proposições teóricas e
Trata-se, no entanto, de interesses tipicamente peque- práticas, fazendo-se igualmente presentes no interior
no-burgueses, na medida em que buscam conciliar mesmo de cada uma dessas proposições. Ao apontar-
aquilo que é estruturalmente inconciliável: os interes- mos os vínculos orgânicos entre a Psicologia brasileira
ses do Capital aos interesses do Trabalho. Supõem a e os ciclos democrático-nacional e democrático-po-
possibilidade e, mais do que isso, a necessidade de um pular, buscamos mostrar de que maneira a Psicologia
pacto de classes como condição para a emancipação nascida no último ciclo histórico é solidária de uma
da maioria da população. ideologia bem determinada, a ideologia do compro-
Não pretendemos negar que a ideologia do com- misso social, funcional à dominação burguesa na
promisso social e seus aparelhos contribuíram e têm atual etapa do capitalismo no Brasil.

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 57-70.

Gostaríamos de encerrar este artigo, que apenas tín-Baró, 2002, p. 110). Mas não ignoramos a impor-
insinua todo um conjunto de reflexões que estão por tância do trabalho teórico e crítico na superação de
vir, com algumas palavras sobre como entendemos o algumas mistificações que afastam as classes subal-
significado desta nossa pesquisa. ternizadas, oprimidas e exploradas, do caminho de
Em tempos de forte ofensiva do capital sobre o sua emancipação.
trabalho, em que a classe trabalhadora se encontra Por último, gostaríamos de acrescentar que o
fragilizada e fragmentada, não apenas no Brasil, mas esforço teórico-crítico de compreensão das con-
em todo o mundo, convém não alimentarmos ilusões tradições de nossa história pouco tem a contri-
sobre as alternativas a esta ordem social que aliena, buir para a emancipação humana se não se presta
desumaniza, e que nos conduz incessantemente para a armar as classes dominadas e fornecer-lhes os
o precipício da barbárie. Desde nossa perspectiva instrumentos adequados às suas lutas cotidianas.
teórica e de nossa opção política, acreditamos que Uma consciência crítica que desafie as ideologias e
convém superarmos as ideologias que contribuem as instituições que se prestam à nossa dominação
para aumentar o fosso entre a Psicologia da classe tra- e uma teoria social que deslinde os obstáculos his-
balhadora e sua consciência de classe (Martín-Baró, tóricos interpostos à nossa emancipação são, sem
1985), isto é, entre as ideias, valores, atitudes e senti- sombra de dúvidas, elementos fundamentais para
mentos de nossa classe e a consciência de seus reais todos que lutam contra um inimigo de dimensões
interesses no sentido da emancipação humana. como o Capital; mas ainda são pouco se a essa cons-
Evidentemente, não esperamos que tais reflexões ciência crítica e a essa teoria não se vem somar uma
conduzam, por si só, à emancipação de nossa classe. clara opção política pela defesa dos interesses mate-
Mesmo porque, estamos de acordo, “A psicologia não riais das classes subalternizadas. Como sentenciou
desempenhará nenhum papel decisivo na resolução Fernandes, “Ser ‘intelectual orgânico das classes
dos grandes problemas que acometem os povos lati- trabalhadoras’ é uma opção política. Mas, não se
no-americanos”, uma vez que “os dilemas latino-a- pode fazer essa opção e ficar numa ‘prática teórica’
mericanos são fundamentalmente de natureza eco- crítica ou rebelde que se compõe com a reprodu-
nômica e política e dependem de forças objetivas que ção da ordem burguesa e com o Estado capitalista”
estão muito distantes do alcance do psicólogo” (Mar- (Ammann, 1980, p. 13).

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Filipe Milagres Boechat


Doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Programa de Pós-graduação em
Psicologia da Universidade Federal de Goiás. Membro da Rede Ibero-americana de Pesquisadores em História
da Psicologia, do GT de História Social da Psicologia da ANPEPP, do Núcleo de Educação Popular 13 de maio, do
Núcleo de Estudos e pesquisas Crítica, Insurgência e Emancipação (CRISE) e do Núcleo de Estudos e Pesquisas
Avançadas - Ética e Política Emancipatória.
E-mail: filipeboechat@ufg.br

Endereço para envio de correspondência:


Faculdade de Educação. Rua 235, s/n, Setor Leste Universitário, 74605-050

Recebido 30/06/2017
Reformulação 03/10/2017
Aprovado 06/10/2017

Received 06/30/2017
Reformulated 10/03/2017
Approved 10/06/2017

Recebido 30/06/2017
Reformulado 03/10/2017
Aceptado 06/10/2017

Como citar: Boechat, F. M. (2017). A Psicologia brasileira nos ciclos democrático-nacional e democrático-popular.
Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 57-70. https://doi.org/10.1590/1982-3703040002017

How to cite: Boechat, F. M. (2017). Brazilian Psychology during the democratic and national
cycle and the democratic and popular cycle. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 57-70.
https://doi.org/10.1590/1982-3703040002017

Cómo citar: Boechat, F. M. (2017). La Psicología brasileña en el ciclo democrático-


nacional y en el ciclo democrático-popular. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 57-70.
https://doi.org/10.1590/1982-3703040002017

70
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 71-81.
https://doi.org/10.1590/1982-3703050002017

O Fazer Psicológico na Ditadura Civil Militar

Ana Maria Batista Correia Carla Náyad Castelo Branco Dantas


Universidade Federal do Piauí, PI, Brasil. Universidade Paulista, SP, Brasil.

Resumo: O presente artigo apresenta discussão sobre o fazer psi na época da ditadura civil militar,
objetivando responder ao seguinte questionamento: a Psicologia brasileira esteve a serviço da
ditadura civil militar ou da sociedade?. Considerando que a regulamentação da profissão de
psicólogo em 1962 coincidiu com o período ditatorial vivenciado no Brasil entre os anos de 1964
a 1985, objetivamos discutir sobre o desenvolvimento da Psicologia como ciência e profissão
neste contexto turbulento para a sociedade brasileira. Para alcançar esse objetivo, utilizou-se
como metodologia a pesquisa bibliográfica. Nesse sentido, referenciamo-nos na discussão
sobre o papel do psicólogo, na perspectiva de Martín-Baró, para discutir o compromisso
do profissional com o processo de conscientização das pessoas. Conforme as discussões
empreendidas, foi possível descortinar os movimentos de atuação que corroboravam com a
manutenção do sistema, ou seja, que compactuavam com práticas repressivas, mas também,
os movimentos que buscavam promover a conscientização, ou mesmo dispor a Psicologia a
serviço dos menos favorecidos, mesmo que de modo clandestino.
Palavras-chave: Psicologia, Ditadura Civil Militar, Ignácio Martín-Baró, Atuação do psicólogo.

The Psychological practice during the Military Civilian Dictatorship

Abstract: This article presents a discussion about the psychological practice in the era of
the military civilian dictatorship, in order to answer the following question: Has Brazilian
Psychology been at the service of the civilian military dictatorship or of society? Considering
that the regulation of the profession of the psychologist in 1962 coincided with the dictatorial
period experienced in Brazil between 1964 and 1985, we aimed to discuss the development of
Psychology as a science and profession in this turbulent context for Brazilian society. To reach
this objective, the bibliographic research methodology was used as methodology. In this sense,
we refer to the discussion about the role of the psychologist in the perspective of Martín-Baró
to discuss the commitment of the professional with the process of awareness of the people.
According to the discussions, it was possible to reveal the psychological practices that supported
the maintenance of the system, that is, that compacted with repressive actions, but also, the
practices that sought to promote awareness, or even used psychology at the service of the less
favored, even if clandestinely.
Keywords: Psychology, Military Civilian Dictatorship, Ignácio Martín-Baró, Psychologist’s
Performance.

Disponível em www.scielo.br/pcp
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 71-81.

El Quehacer Psicológico de la Dictadura Civil Militar

Resumen: El presente artículo presenta una discusión sobre el quehacer psicológico en la


época de la dictadura civil militar, con el objetivo de responder al siguiente cuestionamiento:
¿La Psicología brasileña estuvo al servicio de la dictadura civil militar o de la sociedad?.
Considerando que la reglamentación de la profesión de psicólogo en 1962 coincidió con el
período dictatorial vivido en Brasil entre los años 1964 a 1985, tenemos el objetivo de discutir
sobre el desarrollo de la Psicología como ciencia y profesión en este contexto turbulento para
la sociedad brasileña. Para alcanzar ese objetivo, se utilizó como metodología la investigación
bibliográfica. En ese sentido, nos referimos a la discusión sobre el papel del psicólogo, en la
perspectiva de Martín-Baró para discutir el compromiso del profesional con el proceso de
concientización de las personas. Conforme a las discusiones emprendidas, fue posible desvendar
las prácticas que apoyaban el mantenimiento del sistema, o sea, que eran complacientes con
prácticas represivas, y también, los movimientos que buscaban promover la concientización,
o incluso poner la psicología al servicio de los menos favorecidos aunque de forma clandestina.
Palabras clave: Psicología, Dictadura Civil Militar, Ignacio Martín-Baró, Actuación del Psicólogo.

Introdução dade salvadorenha vivenciava, bem como as contri-


O presente artigo originou-se a partir das discus- buições dos seus estudos sobre o papel do psicólogo
sões em um grupo de estudo, bem como pela relevân- que suscitaram reflexões acerca do papel do psicólogo
cia em compreender os impactos da ditadura civil- brasileiro no período da ditadura civil-militar.
-militar sobre a Psicologia como ciência e profissão. De acordo com Oliveira e Guzzo (2013), Ignácio
A partir das discussões sobre o papel do psicólogo, Martín-Baró nasceu na Espanha em 1942 e estudou
na perspectiva de Martín-Baró (1997), questionou-se: na Escola Jesuíta de São José, onde desde cedo se
a Psicologia brasileira esteve a serviço da ditadura ou identificou com os ideais religiosos e, posteriormente,
da sociedade? Considerando que a regulamentação aderiu à Companhia de Jesus aos 17 anos.
da profissão de psicólogo ocorreu com a Lei no 4.119, Nos anos 1960, ele foi para a América Latina em
em 27 de agosto de 1962 (Brasil, 1962), e menos de dois missão jesuíta e cursou Psicologia em El Salvador na
anos depois ocorreu, em 31 de março de 1964, o golpe Universidade Centro-Americana (UCA) que, con-
forme problematizam Mendonça e Lacerda Júnior
e a instauração do regime militar que vigorou no Bra-
(2015), é uma instituição criada em 1965, como
sil entre os anos de 1964 a 1985, objetivamos discutir
demanda da elite nacional.
sobre o desenvolvimento da Psicologia como ciência
Em 1979 tornou-se doutor em Psicologia Social e
e profissão neste contexto turbulento para a socie-
Organizacional, ao defender sua tese na Universidade
dade brasileira. Para alcance desse objetivo, utilizou-se
de Chicago, EUA. Ao retornar do doutorado assumiu
como metodologia a pesquisa bibliográfica. O artigo
vários cargos na UCA, inclusive como de vice-reitor
está divido nos tópicos: o papel do psicólogo de acordo
e editor da revista Estudios Centro-americanos
com Martín-Baró; a Psicologia no período da ditadura
(Oliveira, & Guzzo, 2013).
civil militar (lado A e lado B) e considerações finais.
O compromisso de Martín-Baró foi com a popula-
ção salvadorenha, mas seu legado ultrapassou os limi-
O papel do psicólogo de acordo com tes geográficos e culminou com a reconhecida Psicolo-
Ignácio Martín-Baró (1942–1989) gia da Libertação que: “se coloca como uma concepção
A escolha do referido autor, para subsidiar o pre- diferenciada dentro do campo teórico da Psicologia,
sente artigo, deve-se às particularidades encontradas pelo seu compromisso epistemológico, ético e político
em sua história como psicólogo atuante na área socio- com as maiorias populares” (Oliveira, & Guzzo, 2013,
comunitária em El Salvador, na América Central. Vale p. 2). Essa dimensão da atuação do psicólogo funda-
ressaltar o contexto de exceção política que a socie- menta o entendimento sobre qual deve ser o papel do

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Correia, A.M.B., & Dantas, C.N.C.B. (2017). Fazer Psi e Período Militar.

psicólogo como profissional que trabalha para possi- educador e escritor brasileiro Paulo Freire, sobretudo
bilitar o empoderamento, a emancipação, a desaliena- com sua proposta de alfabetização conscientizadora
ção, seja em que área de atuação ele estiver. (Martín-Baró, 1997, 2006). Esse conceito de conscien-
O trabalho compromissado de Ignácio tização articula: “[...] la dimensión psicológica de la
Martín-Baró teve um preço alto, pois custou sua vida. consciência personal com su dimensión social y polí-
Em 1989 foi emitida uma ordem do alto escalão mili- tica, y pone de manifesto la dialéctica histórica entre
tar e dos assessores norte-americanos para assassinar el saber y el hacer” (Martín-Baró, 2006, p. 7). Essa par-
os intelectuais jesuítas da Universidade, que eram ceria revela a necessidade de repensarmos o papel da
acusados de serem comunistas, terroristas e de apoia- Psicologia como uma profissão que pode e deve levar
rem as guerrilhas de resistência. Martín-Baró, o rei- as pessoas a tomarem conhecimento da realidade, afi-
tor Ignácio Ellacuria, também jesuíta, além de outros nal, qual a melhor forma de conhecermos o mundo a
jesuítas foram alvejados em sua moradia dentro da nossa volta, senão, pela leitura e escrita? Obviamente
Universidade (Oliveira, & Guzzo, 2013). os psicólogos não são os profissionais que alfabeti-
Para Martín-Baró (1997), antes de pensarmos zam, mas o que se sugere é que sejam conhecidos os
sobre o papel do psicólogo, precisamos refletir sobre o mecanismos pelos quais é possível conscientizar as
contexto social no qual ele atua, entendendo que esse pessoas de sua realidade. Nesse ponto, Martín-Baró
profissional faz parte dele. Todas as profissões encon- (2006) é taxativo ao afirmar que é dada pouca impor-
tram-se a serviço de uma estrutura social mais ampla tância ao estudo crítico da obra de Paulo Freire.
e, assim, é a Psicologia. Sobre o papel do psicólogo o Essa discussão, embora haja sido iniciada em
autor afirma que: 2013, durante o Concurso de Artigos “Psicologia e
Direitos Humanos”, como uma das ações do Conselho
trabalhar não é apenas aplicar uma série de Federal de Psicologia, juntamente com a publicação
conhecimentos e habilidades para a satisfação do livro “A verdade é revolucionária: testemunhos de
das próprias necessidades; trabalhar é, antes e psicólogas e psicólogos sobre a ditadura civil-militar
fundamentalmente, fazer-se a si mesmo, trans- brasileira”, nunca foi tão atual, à medida que identifi-
formando a realidade, encontrando-se ou alie- camos uma sociedade cada vez mais carente de cons-
nando-se nesse quefazer sobre a rede das relações cientização, alienada pelos meios de comunicação e
interpessoais e intergrupais. [...] A luz desta visão que se satisfaz com o entretenimento por meio das
da psicologia, pode-se afirmar que a conscienti- redes sociais, tem ficado mais doente com transtor-
zação constitui-se no horizonte primordial do nos de ansiedade e de depressão (Conselho Federal de
quefazer psicológico (Martín-Baró, 1997, p. 15). Psicologia, 2013). Mas essa é uma polêmica que ficará
para outros artigos.
Diante do exposto, o papel do psicólogo trans- O que urge, neste momento, é discutirmos ampla-
cende a simples aplicação de técnicas psicológicas mente o que significa resgatar a obra de Martín-Baró
e desenvolvimento de posturas estereotipadas. Para para entender o papel do psicólogo. Segundo Moreira
isso, o profissional deve conhecer a realidade em e Guzzo (2015, p. 570), o resgate da obra desse autor
que vive, não se satisfazendo em apenas executar um constitui a recuperação “da práxis constituída na,
trabalho, mas visando construir uma Psicologia que para e com a América Latina”, o que significa pensar
transforme a realidade, promovendo mudanças. em uma Psicologia latino-americana que percebe os
Independente das abordagens ou dos locais de problemas e dilemas desse “povo marcado, povo feliz”
atuação, o que deve importar ao psicólogo é a promo- (alusão à música de Zé Ramalho, “Admirável gado
ção da conscientização, corroborando com os proces- novo”, gravada em 1979 [Ramalho, 1979]).
sos de rompimento das alienações, questionando os De acordo com Cecília Santiago (Fachin, 2009),
paradigmas dominantes. Baró acreditava em fazer uma Psicologia política
Nosso psicólogo “salvadorenho” (já que adotou que considere o poder social na configuração do psi-
o país centro-americano) acreditava que a Psicolo- quismo humano, contribuindo para construção do
gia poderia tornar-se uma Psicologia da Libertação poder histórico como requisito de uma nova iden-
por meio da parceria com outras áreas das ciências tidade psicossocial dos povos oprimidos. Para isso,
sociais. Assim, sua obra recebeu grande influência do estabeleceu três tarefas libertadoras para a Psicologia

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 71-81.

social latino-americana: o estudo das formas de cons- às pessoas, como indivíduos e como parte do povo. Para
ciência popular, o resgate e a potenciação das virtu- Martín-Baró (1997, p. 20), essa clínica precisa “apontar
des populares e a análise das organizações populares diretamente para o desaparecimento de uma identi-
como instrumento de libertação histórica. dade social cultivada sobre os protótipos do opressor
Martín-Baró nos convida a desvendar um dos e do oprimido, e a configurar uma nova identidade
motivadores para o início da Psicologia científica, das pessoas enquanto membros de uma comunidade
a consciência. Esse é o caminho para examinar criti- humana, responsáveis por uma história”. Em síntese,
camente o papel do psicólogo. Essa consciência que esse olhar deve ser o mesmo em todas as outras áreas
não se limita ao âmbito privado do saber das pessoas, de atuação, seja a escola, a organização, ou o hospital.
mas ao âmbito em que cada ser humano encontra o A ideia de Martín-Baró vai além de atribuir ao psi-
impacto refletido de seu ser e seu fazer na sociedade. cólogo um papel de agente transformador, mas de um
A consciência é o saber sobre si e sobre o mundo a agente revolucionário. Em uma exposição em 1980,
sua volta, que “só condicionada parcialmente se torna o autor expressa que o psicólogo deve fazer parte do
saber reflexivo” (Martín-Baró, 1997, p. 14). processo revolucionário, entendendo que uma revo-
O processo de conscientização possui três aspec- lução é mais que enfrentar situações difíceis em uma
tos. O primeiro é que o homem se transforma ao dada ordem social, mas é um processo que visa modi-
modificar sua realidade, por um processo dialético, ficar a ordem social. Para isso, o psicólogo deve ser um
que somente será possível mediante o diálogo, e não bom psicólogo e, também, ser um psicólogo do povo,
a imposição. O segundo é que à medida que o homem que atue e acompanhe a nova ordem social almejada.
vai decodificando seu mundo, ele apreende os meca- Para essa nova ordem estão questões como: satisfa-
nismos que o oprimem e desumanizam, deixando de zer as necessidades do povo, mudar a mentalidade da
entender a situação opressora como natural. E o ter- sociedade (com valores de solidariedade e responsa-
ceiro aspecto relatado pelo autor é que o novo saber bilidade) e atacar os vícios da sociedade capitalista,
desse homem acerca de sua realidade o leva a um sobretudo a corrupção (Martín-Baró, 2017).
novo saber sobre si mesmo e sua identidade social e É possível afirmar que o legado teórico de
“assim, a recuperação de sua memória histórica ofe- Martín-Baró nunca foi tão atual e provocador, em um
rece a base para uma determinação mais autônoma momento em que o Brasil e outros países no mundo
do seu futuro” (Martín-Baró, 1997, p. 16). vivem assolados por pobreza, guerras e turbulências
Mas, afinal, como é possível colocar em prática políticas, sociais e econômicas. É preciso que os psi-
esse processo de conscientização? A obra de Baró foi cólogos comecem a se inteirar dessas discussões e
escrita em meados de 1980, mas, mesmo hoje, a mino- busquem apoio do entendimento sobre os processos
ria dos psicólogos se detém a estudar sistematicamente de conscientização, começando a conscientizarem a
seus ensinamentos. Fato é que os psicólogos brasileiros si mesmos sobre seu papel na sociedade como agente
passaram por uma reviravolta sobre seu papel antes político ou transformador, que atua para mudar as
elitizado para um papel profissional mais aliado às formas de pensar e fazer, de si e do outro, o povo.
necessidades da população. Sobretudo com a inser- De acordo com Furtado (2000), toda Psicologia é
ção dos psicólogos no corpo técnico das equipes dos política. O que não significa que a Psicologia deve ser
Centros de Referência da Assistência Social, mediante classista e unicamente a serviço da classe de trabalha-
a democratização do país e sua inserção nos concur- dores explorados, mas que deve parar de olhar apenas
sos públicos (Silva, & Corgozinho, 2011). Mesmo assim, para o lado daqueles que podem pagar. Deve reinven-
essa ainda parece uma tarefa difícil para o psicólogo. tar-se e compreender o processo de conscientização
A partir de sua realidade de guerra, Baró oferece sob o ponto de vista da grande plasticidade da cons-
alguns apontamentos sobre como pode ser o chamado ciência psicológica que leva o sujeito para autonomia
“quefazer” do psicólogo a fim de buscar a desaliena- de si no mundo (Furtado, 2000).
ção de pessoas e grupos. Seu exemplo remete ao caso Ter o psicólogo como agente do processo revo-
das vítimas de guerra, que devem receber uma atenção lucionário implica visitarmos a história profissional,
especial por meio da extensão de atendimento clínico a verificando os momentos de atuação que fortalece-
grupos majoritários. Porém, a seu ver, esse atendimento ram a alienação da classe e do povo, mas também os
deve promover a conscientização e devolver a palavra momentos de atuação que de alguma forma rompe-

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Correia, A.M.B., & Dantas, C.N.C.B. (2017). Fazer Psi e Período Militar.

ram com o status quo estabelecido. Então, a seguir, (clínica, escolar e organizacional), a regulamenta-
discutiremos o desenvolvimento da Psicologia no ção como profissão se deu apenas em 1962. Segundo
contexto da Ditadura civil militar no Brasil, iniciando Bernardes (2004), algumas conquistas da Psicologia
pelo momento em que o psicólogo esteve em parceria teriam sido retardadas com o Golpe Militar de 1964.
com o sistema ditatorial e, posteriormente, apresen- A partir desse acontecimento, pode-se afirmar que,
tando os movimentos em que psicólogos buscaram em seu desenvolvimento, a Psicologia caracterizou-se
romper com as práticas de atuação dominantes. pelo “obscurantismo, pelas delações, pelos rompi-
mentos com compromissos éticos, políticos e sociais
fundamentais para o convívio com a sociedade”
A Psicologia no período da ditadura
(Bernardes, 2004, p. 95). Ou seja, a atuação dos profis-
civil-militar: dois recortes históricos
sionais, em sua maioria, esteve aliada aos interesses
O presente artigo está dividido em dois lados da
da minoria no poder.
história da Psicologia durante o período da ditadura
De acordo com Scarparo e Ozorio (2009),
civil-militar. Não se pretende extenuar todos os acon-
no período da exceção política, lacunas e silêncios
tecimentos documentados sobre as duas versões,
marcaram os fazeres psi. As autoras esclarecem que
mas problematizar o papel do psicólogo que, nesse
existiu nesse período um processo de assimilação
momento da história, ora atua calado e calando e ora
do sistema que impulsionava os estudantes e psi-
atua para transformar a realidade a sua volta. Por isso,
cólogos a não se envolverem no regime opressor
convencionou-se denominar lado A e lado B, esta-
“no caso do Brasil, nos anos da ditadura, as práti-
belecendo que o objetivo não é a crítica pela crítica
cas psicológicas contribuíram para calar o grito dos
aos que atenderam a interesses governamentais, mas
injuriados, a indignação dos desrespeitados e o livre
registrar fazeres psi, instigando a refletir sobre o que
pensar” (Scarparo, & Ozório, 2009, p. 1). Assim, desse
aconteceu e como “devemos” acontecer.
entendimento incorre pensar que a atuação do psi-
Para isso, inicialmente, recorremos à canção de Zé
cólogo se restringia a manter as aparências, fingindo
Ramalho, “Admirável gado novo” (Ramalho, 1979), ins-
que nada estava acontecendo ou ainda endossando
pirada na obra de Aldous Huxley, “Admirável Mundo
práticas arbitrárias, o que corresponde a um papel
Novo”. Há um trecho que diz: “Lá fora faz um tempo
profissional bem divergente da proposta de Martín-
confortável, a vigilância cuida do normal”. Esse lado da
-Baró, que enfatiza uma atuação promotora de cons-
canção nos lembra a postura acomodada e, ao mesmo
cientização e livre de padrões preconcebidos.
tempo, conivente dos profissionais psicólogos. E anali-
Nesse período, o Brasil teve sua economia dire-
sando o contexto social, veremos que mesmo as entida-
cionada pela lógica do neoliberalismo, o que influen-
des da época estavam dominadas pela política do medo.
ciou significativamente a Psicologia como ciência e
Em outro trecho: “E ter que demonstrar sua cora-
profissão. Conforme essa lógica, deve haver o mínimo
gem, à margem do que possa parecer”, inspirados pela
de intervenção do estado na economia, marcada
mesma canção, vemos que, ante um cenário opressor
pelo livre comércio e, tal como vivemos atualmente,
e punitivo, pessoas se revelaram corajosas o suficiente
a constante privatização de instituições estatais. Para
para agir, fosse como opositores ao sistema, fosse
Bernardes (2004), antes mesmo da profissão ser regu-
como profissionais agindo na clandestinidade junto às
lamentada, o psicólogo já era visto como profissional
comunidades, mesmo que exercendo trabalhos volun-
liberal e sem vinculações hierárquicas.
tários. Assim como o psicólogo Martín-Baró, cuja obra
Esse panorama favorecia a atuação do psicólogo
proporciona o entendimento sobre o papel do psicó-
na área clínica e passou a ser um modelo de atuação
logo como agente que leva o outro a pensar além.
hegemônico, também denominado como “modelo
Ante os dois lados, será possível responder a
médico” (Antunes, 2012). O chamado milagre econô-
questão norteadora da pesquisa: a Psicologia brasi-
mico favoreceu a classe média, que passou a procu-
leira esteve a serviço da ditadura ou da sociedade?
rar mais o psicólogo, como o clínico. Porém, as outras
atuações, como escolas e organizações também cres-
Lado A: a Psicologia em favor do Estado ceram. A atividade do psicólogo nesses setores era
Embora já existisse a atuação da Psicologia há movida pela lógica neoliberal, centrada no indivíduo
cerca de 30 anos nas áreas consideradas tradicionais e no mercado (Bernardes, 2004).

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 71-81.

Nesse sentido, Batitucci (1978, p. 141) afirmou que a desestruturados ou desajustados. Esse entendimento
formação do psicólogo empresarial: “para ser válida deve advém da pesquisa do “Perfil Psicológico do Terrorista
necessariamente atender às necessidades e demandas Brasileiro”, realizada por uma entidade de Psicologia
da empresa, por isso, nunca pode ser dirigida a Psico- que buscou explicar as causas que levaram os militares
logia em si mesma, mas sim a Psicologia que a empresa presos na época a participarem da luta armada.
precisa para resolver seus problemas humanos e organi- O período de exceção política e democrática pelo
zacionais”. Essa assertiva evidencia que, nesse período, qual o Brasil passou durou 21 anos, e isso foi decor-
a atuação do psicólogo estaria distante dos interesses da rente das práticas de diversos profissionais que permi-
maioria da população, ou seja, dos menos favorecidos tiram, através de suas explicações teóricas e exercícios
da sociedade. O que prevalece é a lógica mercadológica, profissionais que o terrorismo de Estado continuasse
contribuindo para uma Psicologia elitizada. operando (Coimbra, 2001).
Neste recorte da história da Psicologia brasileira, Sobre as entidades de Psicologia da época, vale
não vemos uma profissão para o povo pobre e vulne- ressaltar que foi em meio à ditadura civil-militar que
rável, mas aliada aos interesses de uma minoria rica e foram criados o Conselho Federal e sete Conselhos
no poder, como esclarece Hur (2013, p. 2), ao afirmar Regionais de Psicologia. Segundo a psicóloga Coim-
que a “psicologia brasileira manteve-se elitista e assu- bra (2011), a criação dos conselhos se deu: “no auge
miu a matriz cientificista e positivista importada dos do terrorismo de Estado, quando as perseguições se
Estados Unidos com fortes traços normalizadores e davam de uma forma totalmente naturalizada”. Para
adaptativos”. Assim, como em uma brincadeira infantil ela, todos aqueles que estivessem contra o regime
de encaixe, as teorias advindas de outras nações eram eram inimigos internos e, inclusive, a Lei no 5.766,
traduzidas e utilizadas pelos profissionais, na realidade de 20 de dezembro de 1971 (Brasil, 1971), que criou
brasileira, sem haver uma preocupação com o contexto os Conselhos (Federal e Regionais), é considerada
cultural do povo, que deveria encaixar-se nos padrões autoritária e centralizadora, pois não possibilitava a
esperados. Essa realidade configura uma Psicologia discussão com a categoria. Pode-se imaginar o cená-
que prima pela adaptação do homem ao seu meio. rio preocupante que se apresentava aos formandos de
Nesse cenário neoliberalista, com atos de vio- Psicologia, visto que os órgãos regulamentadores da
lência e intensa censura do livre pensar e agir, surge o profissão estariam também contaminados por ideias
fenômeno “cultura psi” (Bernardes, 2004; Dimenstein, autoritárias e alienantes.
2000; Figueiredo, 1993), que corresponde a um movi- Aliás, causa estranhamento o fato de os Conse-
mento de disseminação das ideias advindas da Psico- lhos serem criados durante o período da ditadura civil
logia, psiquiatria e psicanálise, tornando-as acessíveis militar. Sobre isso, Hur (2012) esclarece o receio do
à população e divulgando uma lógica intimista, que Estado quanto à organização da sociedade civil. Por
culpabiliza o sujeito pelo problema que apresenta, des- esse motivo, foi criada a lei que instituía a profissão de
considerando o entorno social no qual ele está inserido. psicólogo e, apenas anos depois, foram criados órgãos
Assim, a Psicologia, nesse recorte, esteve atrelada para fiscalizar e regulamentar a categoria.
ao militarismo e Bernardes (2004, p. 96-97) é incisivo
ao afirmar que “o universo psi sobrevive nos porões No entanto, contraditoriamente é nesse período
da ditadura, alimentando o terrorismo de Estado, tor- ditatorial que os psicólogos se organizam para
turando e silenciando”. O autor discorre sobre a atua- criar os conselhos; os psicólogos voltam a se
ção de profissionais da Psicologia compactuando com reorganizar justamente quando há um refluxo e
a repressão. Pode-se inferir uma Psicologia antiética e uma intensa repressão aos movimentos sociais.
vergonhosa, pois sugere ir contra os direitos humanos A organização dos psicólogos não foi feita como
hoje tão discutidos, embora ainda não tão respeitados. um movimento social, reivindicador, e sim numa
Coimbra (2011) esclarece que os psicólogos atuan- ação institucionalizada, direta, com os represen-
tes em parceria com o Regime Militar exerciam práticas tantes do Estado da ditadura (Hur, 2012, p. 74).
caracterizadas pelo uso de ferramentas psicológicas
como a aplicação de anamneses ou de testes psicoló- Isso nos revela que os profissionais da época
gicos (de personalidade, de inteligência etc.) que clas- precisaram entrar em acordo com os governos a fim
sificavam e rotulavam os sujeitos da oposição, como de institucionalizarem a organização da categoria.

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Correia, A.M.B., & Dantas, C.N.C.B. (2017). Fazer Psi e Período Militar.

A organização da classe dos profissionais de Psicolo- queimaduras. Seu rosto ficou deformado devido à utili-
gia, conforme Hur (2012), emerge como ação institu- zação do instrumento “coroa de cristo”, que apertava o
cionalizada, atrelada ao Estado, sem caracterização crânio do torturado. A fim de encobrir seu assassinato,
de movimento social e reivindicador. Institui-se, ini- seu corpo foi jogado em uma rua no Rio de Janeiro e
cialmente, as Associações como protótipo de Sindi- os órgãos da Repressão divulgaram na imprensa que
cado, ligadas a questões técnicas para a consolidação a jovem morreu em uma troca de tiros com a polícia
das práticas. Com a associação de um terço dos pro- (Arantes, 2012). A história dessas mulheres revela que
fissionais de Psicologia do estado de São Paulo, no ano haviam ações de militância por parte de psicólogas em
de 1973, cria-se o Sindicato do referido estado, insta- favor dos direitos humanos brasileiros.
lando-se o Conselho Federal no mesmo ano. Além das histórias particulares de pessoas que
De acordo com Bernardes (2004), os documentos individualmente se opuseram ao Estado, fato que
encontrados nesse período foram todos produzidos pouco ou nada se fala no ambiente acadêmico, sobre-
pelo Estado e apresentam forte caráter normativo e tudo nas aulas de história da Psicologia, cabe resgatar
regulador e, em seu entender, isso justifica a escassa a criação de uma revista carioca muito importante
produção científica das entidades de Psicologia. para revelar um movimento social dos psicólogos.
Ante o exposto, a Psicologia como ciência e profis- No período compreendido ente 1976 e 1981, paralelo
são sofreu grandes consequências do contexto político ao surgimento de uma Psicologia Crítica no Brasil,
e econômico brasileiro com atividades que são consi- dá-se à trajetória da “Rádice”, uma revista de Psicologia
deradas antiéticas e que impactavam as subjetividades que possuía como público-alvo o universo psi, pessoas
humanas no sentido de calar os opositores ao Estado. interessadas em Psicologia, psicanálise e psiquiatria.
A revista lançava o olhar a vários assuntos como
Lado B: a Psicologia em as lutas travadas no âmbito da saúde mental, discus-
favor da Democracia sões sobre o currículo da formação, as novas regula-
Sobre as discussões do papel do psicólogo até mentações da profissão e, até, as denúncias de tortu-
aqui, tem-se uma visão de que a Psicologia como ras e desaparecimentos daqueles que lutavam contra o
ciência e profissão esteve aliada aos interesses do regime militar tanto no Brasil, como em outros países
Estado. Contudo, faz-se necessário pontuar a existên- da América Latina. Em seu primeiro número, trouxe
cia de pequenos movimentos que agiam no sentido um artigo do psicólogo Carlos Ralph, que fez uma crí-
de tentar romper as práticas psicológicas alienantes tica às práticas hegemônicas da época. A revista, que
favorecedoras do Regime Militar. se tornou posteriormente um jornal, é considerada
Um exemplo disso foi o fato de ter havido psicó- pelos autores Santos e Jacó-Vilela (2005, p. 26) “um dos
logos e estudantes de Psicologia perseguidos pelos poucos dispositivos de divulgação do pensamento de
militares por se envolverem diretamente nos atos outras formas de se fazer psicologia”.
revolucionários e de resistência ao regime militar, Outro exemplo pode ser verificado no texto de
como citado por Arantes (2012) no artigo intitulado Freitas (2008), em que a autora sistematiza os períodos
“Em nome da memória”. O estudo apresenta cinco de atuação do psicólogo na comunidade, no Brasil, nas
histórias de jovens mulheres, estudantes e profissio- décadas de 1960 a 1990. Assim, o trabalho do psicólogo
nais de Psicologia, que foram torturadas e assassina- comunitário na década de 1960 se caracterizava por
das durante a ditadura civil militar. Essa talvez seja ser voluntário, não remunerado, no qual o psicólogo
parte da história que ninguém vê ou discute na aca- era convicto do papel político junto aos setores menos
demia e que constitui um aspecto fundamental, para favorecidos da população. Entretanto, Freitas (2008)
que situações como essas não mais se repitam. explica que era uma atividade “tímida”. Já na década de
Como o caso de Aurora Maria Nascimento Furtado, 1970, os profissionais de Psicologia passaram a atuar
estudante de Psicologia na Universidade de São Paulo. em novos espaços, fora das clínicas, escolas e empre-
Em 1968, a jovem respondia pelo setor de imprensa da sas, inserindo-se em associações de bairro, comunida-
União Estadual dos Estudantes de São Paulo. Em 1972, des eclesiais ou favelas por meio de práticas diferentes
foi presa por policiais no Rio de Janeiro, com 26 anos de das que estavam acostumados a exercer. Os psicólogos
idade. Aurora foi torturada no pau de arara, com ses- desse período chegaram a se envolver em atividades
sões de eletrochoque, espancamentos, afogamento e como de assistência psicológica gratuita à população,

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 71-81.

promoção de reuniões, discussões e levantamentos Pois o destino de quem se opusesse ao Estado ou


descritivos sobre as necessidades da população, parti- atuasse em favor da conscientização das massas era
cipação em abaixo-assinados e passeatas. torturas e assassínios. Sem chance de defesa, sem jul-
Em meados de 1980, devido ao movimento de aber- gamento justo e sem a divulgação e esclarecimento
tura democrática, a atividade do psicólogo comunitário, sobre a verdade por trás das histórias das psicólogas
que era clandestina e não remunerada, passou a ser ou das estudantes de Psicologia. Não nos esquecendo
repensada. A atividade começou a receber mais atenção ainda da revista “Rádice” como meio de conscientiza-
e ser mais discutida, inclusive nos cursos de formação, ção dos profissionais psicólogos ou as ações de profis-
nas conferências e em artigos, haja vista que muitos dos sionais na comunidade.
psicólogos comunitários eram também professores. Esses “lados” precisam ser mais revelados, mais
Considera-se que esse movimento de atuação era discutidos, desde a formação universitária, bem como
semelhante à proposta de Martín-Baró (1997) para precisa vir à reflexão de profissionais psicólogos para
o “quefazer” psicológico. Assim, conclui-se a outra nortear sua atuação, em qualquer espaço que ele estiver
parte da pergunta sobre a quem serviu a Psicologia. (clínica, escola, organizações, entre outros), indepen-
Esse lado B apresenta a outra face da história, tantas dentemente de abordagens de mundo, pois vê-se mui-
vezes esquecida na formação do psicólogo, pois revela tas discussões improdutivas na Psicologia, no campo
a possibilidade de exercer uma Psicologia política ou filosófico, que muito atrapalham o crescimento da pro-
uma Psicologia da libertação. Dessa forma, destaca-se a fissão como categoria. Essa discussão pode promover
impossibilidade de separação entre Psicologia e política: maior sentimento de união à classe, e evitar que práticas
inadequadas sejam desenvolvidas novamente.
[...] pois a psicologia trabalha com sujeitos habi-
tantes de um lugar em determinado momento his- Considerações finais
tórico da sociedade. Diante disso, qualquer inter- O presente artigo buscou responder à questão: a Psi-
venção realizada com os sujeitos produz efeito no cologia brasileira esteve a serviço da ditadura civil militar
coletivo, sempre havendo uma implicação política, ou da sociedade? Para responder tal questionamento, foi
pois essa prática é sempre uma ação sobre a vida realizado um levantamento bibliográfico acerca das prá-
desses sujeitos. Estar atento a isso é o que vai dife- ticas desenvolvidas na época do governo militar.
renciar os profissionais que se colocam em uma Diante das discussões construídas até aqui, verifi-
postura ético-política, ou seja, que se comprome- cou-se que a atuação do psicólogo esteve majoritaria-
tem com o cuidado relativo à vida dos sujeitos que mente atrelada aos interesses do Estado. Essa postura
afetam (Reis, & Guareschi, 2010, p. 857). contribuiu para a construção de uma Psicologia elitizada
e distante das classes menos favorecidas, evidenciando
Tal como Reis e Guareschi (2010) discorrem, Psicolo- uma prática normalizadora, adaptativa ao sistema, com
gia e política se inter-relacionam e o que precisamos é de técnicas estereotipadas, restringindo-se as aparências e
posturas mais democráticas, pois cada prática psi é capaz endossando práticas arbitrarias. O que responde parcial-
de alterar de algum modo a vida das pessoas. Entender a mente ao questionamento que norteou as discussões,
profundidade dessas ações é o que corrobora para uma considerando que a Psicologia como ciência e profissão
atuação ética e compromissada com a sociedade. esteve a serviço da ditadura civil militar, ponto bastante
Sobre as situações ora relatadas (Arantes, 2012; divergente das propostas de Martín-Baró.
Freitas, 2008; Santos, & Jacó-Vilela, 2005), podemos inferir Paralelamente às práticas alienadas e alienantes,
que retratam fazeres psi mais parecidos com a proposta emergiram, no bojo das inquietações do período dita-
de Martín-Baró (1997), que visava refletir sobre as pro- torial, tímidas atuações de grupos isolados que lutaram
blemáticas sociais, aproximando a Psicologia das classes para romper os paradigmas dominantes. Verificou-se a
menos favorecidas e majoritárias da população, passando existência de estudantes e psicólogos que se envolve-
a se inserir em situações novas, porém diversas. ram diretamente no movimento opositor, que foram
Assim, cabe discutir sobre até que ponto, delimi- duramente torturados e executados. Além disso, encon-
tar a Psicologia como uma ciência e profissão aliadas trou-se registros da participação de psicólogos em área
apenas aos interesses elitistas e ditatoriais pode ser pouco explorada até a década de 1960: a Psicologia
uma análise reducionista. comunitária, que nasceu com o propósito de colocar

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Correia, A.M.B., & Dantas, C.N.C.B. (2017). Fazer Psi e Período Militar.

a Psicologia a serviço dos setores menos favorecidos da considerando os contextos vivenciados e os impactos
sociedade. Como vimos, eram atuações clandestinas, da sua atuação profissional frente aos sujeitos.
voluntárias e não remuneradas, mas já vislumbravam As discussões até aqui empreendidas possuem
as preocupações com o contexto social em que o psi- caráter preventivo, pois podem evitar práticas elitistas e
cólogo estava inserido e, poderia se inserir, refletindo normalizadoras, mas também caráter interventivo, por
sobre as necessidades da população, buscando romper vislumbrar caminhos a seguir, sugerindo aos psicólogos
as práticas alienantes que favoreciam o Regime Militar. que mantenham uma postura crítica frente a sua reali-
Considera-se que esse movimento de atuação era dade. Ainda assim, frente a uma realidade opressora e
semelhante à proposta de Martín-Baró (1997) para paradigmática, que esse profissional conscientize-se
o “quefazer” psicológico. Assim, conclui-se a outra sobre seu papel, que não aceite também ser violentado
parte da pergunta sobre a quem serviu a Psicologia. com cenários de desvalorização e que transforme a si
Destarte, convém responder que a dicotomia mesmo, para transformar o outro em sua jornada. Por
proposta no questionamento norteador foi superada tanto, que seja um “quefazer” baseado nos aspectos da
à medida que identificamos mais movimentos profis- conscientização de transformação de si, decodificação
sionais coniventes com o regime opressor da época. da realidade e transformação da realidade.
Contudo, entende-se que o clima era de tensão e medo, Nesse contexto, as ideias de Baró serviram de
assim, não podemos simplesmente culpabilizar os pro- inspiração para compreender que o papel do psicó-
fissionais por entendermos que os processos de coer- logo remete à possibilidade de transformação de si e
ção foram estendidos a todos, inclusive aos psicólogos do outro, por meio do processo de conscientização
que partilharam práticas aliadas ao governo. Devemos, que deve ser o objetivo principal do fazer psicológico.
sim, utilizar os conhecimentos adquiridos com essas Será mais produtivo, para a Psicologia como ciência
experiências para seguir na construção de uma Psi- e profissão, bem como para a constituição da iden-
cologia a serviço da sociedade, negando-nos a agir de tidade desse profissional, discutir nas universidades
forma a transgredir a ética profissional que nos rege. formadoras o papel do psicólogo, ao invés de grupos
Refletir e pesquisar sobre essa realidade viven- se digladiarem discutindo questões frívolas como: a
ciada nas práticas dos profissionais da Psicologia em melhor opção de abordagens para atuação na área
meio à ditadura possibilita profundos questionamen- clínica ou mesmo sobre as áreas de atuação que mais
tos e reflexões para a construção do fazer da Psicolo- promovam retorno financeiro para o profissional.
gia na contemporaneidade. Todas as provocações aqui Infelizmente, o que vemos hoje são mais pessoas
apresentadas oportunizam recordar e concluir que buscando o destaque pessoal em detrimento do grupo,
somos uma geração (de psicólogas e psicólogos) mar- quando o melhor seria vivenciar essa atuação de modo
cada por experiências de silenciamento, perdas e dores, reflexivo e questionador, buscando o compromisso
ao tempo que também recebemos como herança práti- social e, sobretudo, ético, sempre. Enquanto esse sen-
cas de lutas pelos rompimentos de vivências alienadas. timento de grupo não for internalizado, a começar pela
Isso corresponde à possibilidade de um resgate graduação, dificilmente será possível que o papel do
histórico que contribui para ressignificar nossas iden- psicólogo seja realmente exercido em conformidade
tidades sociais e pessoais como parte do, ainda, “povo com o que Ignácio Martín-Baró propôs anos atrás.
marcado”, mas “povo feliz” que continua, mesmo após Se fosse possível considerar o período do governo
mais de 50 anos de criação dessa profissão, buscando militar como uma canção, entende-se que, para o
entender: qual o nosso papel nessa sociedade? Como desenvolvimento da própria Psicologia como ciência
podemos de fato agir com compromisso social e ético? e profissão, seria necessário que a Psicologia dançasse
Discutir o papel do psicólogo revela a necessi- conforme o ritmo. Contudo, não é possível desconsi-
dade contínua de uma prática que não se esquive de derar que houve psicólogos e estudantes de Psicologia
seus princípios fundamentais, tão claros no Código de que buscaram criar novos passos.
Ética Profissional. É construir um hoje com atitudes Olhar para todo esse passado é entender como
que atendam às necessidades das pessoas, ou seja, se produziu o momento presente, é oportunizar um
como prestadores de serviço para o social e coletivo, senso crítico capaz de fortalecer as categorias profis-
contribuindo para a ampliação de consciências, aju- sionais, neutralizando processos capazes de produzi-
dando as pessoas a superarem situações alienantes, rem alienação e dominação subjetiva das pessoas.

79
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 71-81.

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Ana Maria Batista Correia


Mestre em Educação – UFPI. Psicóloga do campus Amílcar Ferreira Sobral – UFPI
E-mail: ana_songs@yahoo.com.br

Carla Náyad Castelo Branco Dantas


Especialista em Psicopatologia Clínica e Institucional – UNIP. Psicóloga do Instituto Dom Barreto – IDB
E-mail: nayad_carla@hotmail.com

Endereço para envio de correspondência:


Universidade Federal do Piauí. BR 343, sem número, B Meladao,Floriano, PI. CEP 64808 - 605

Recebido: 30/06/2017
Reformulado: 04/09/2017
Aprovado: 15/09/2017

Received: 06/30/2017
Reformulated: 09/04/2017
Approved: 09/15/2017

Recebido: 30/06/2017
Reformulado: 04/09/2017
Aceptado: 15/09/2017

Como citar: Correia, A. M. B., & Dantas, C. N. C. B. (2017). O fazer psicológico no período da ditadura militar.
Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 71-81. https://doi.org/10.1590/1982-3703050002017

How to cite: Correia, A. M. B., & Dantas, C. N. C. B. (2017). The psychological practice during the period of the
military dictatorship. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 71-81. https://doi.org/10.1590/1982-3703050002017

Cómo citar: Correia, A. M. B., & Dantas, C. N. C. B. (2017). El quehacer psicológico de la época de la dictadura
militar. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 71-81. https://doi.org/10.1590/1982-3703050002017

81
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 82-90.
https://doi.org/10.1590/1982-3703060002017

Psicologia no Contexto da Ditadura Civil-militar e


Ressonâncias na Contemporaneidade

Fabíola Figueirêdo da Silva


Universidade Federal de São Paulo, SP, Brasil.

Resumo: Este trabalho tem por objetivo versar sobre as relações da Psicologia com a sociedade
no contexto da ditadura civil-militar, considerando o papel das entidades de Psicologia nesse
período. Há algumas considerações sobre as características deste contexto histórico e os
seus efeitos na subjetividade dos indivíduos que vivenciaram tal momento. O artigo propõe
também uma reflexão acerca dos desafios da Psicologia no cenário brasileiro contemporâneo.
Foi adotado o tipo de pesquisa bibliográfica, e os dados obtidos foram analisados de forma
qualitativa, utilizando-se livros e artigos científicos de língua portuguesa. A ditadura nos remete
a um período violento e triste na história brasileira, que teve a característica da violação dos
direitos humanos, sendo comum as práticas de tortura, prisões ilegais e mortes. Inicialmente,
as associações profissionais dos psicólogos priorizavam questões organizativas e técnicas da
profissão, evitando entrar em conflito com a ideologia do Estado ditatorial; e é justamente
neste período que a profissão foi consolidada, com a atuação destas entidades que tinham por
finalidade defender e representar a categoria dos psicólogos. Contudo, tais associações possuíam
postura ambígua frente à violência de Estado: não se pronunciavam contra o regime, ao mesmo
tempo em que eram coniventes com esse sistema repressivo. Atualmente, em que se reconhece
o compromisso da Psicologia com a realidade em que está inserida, a produção de memória
sobre este período da história é fundamental para se compreender as relações complexas que
existiram durante a ditadura militar, e que repercutem até os dias atuais.
Palavras-chave: História da Psicologia, Ditadura, Direitos Humanos.

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Silva, F. F. (2017). Relações entre Psicologia e Ditadura Civil-Militar e Reflexões Atuais.

Psychology in the Context of the Military Civil Dictatorship


and Resonances in the Contemporaneity

Abstract: The purpose of this paper is to study the relationship between psychology and society in the
context of civil-military dictatorship, considering the role of Psychology entities in this period. There
are some considerations about the characteristics of this historical context and its effects on the
subjectivity of individuals who experienced such a moment. The article also proposes a reflection on
the challenges of Psychology in the contemporary Brazilian scenario. A bibliographic research was
conducted, and data obtained were qualitatively analyzed, being used scientific books and articles
in Portuguese language. The dictatorship refers to a violent and sad period in Brazilian history, which
had the characteristic of violations of human rights, being common practices of torture, illegal
prisons and deaths. Initially, professional associations of psychologists prioritized organizational
and technical issues of the profession, avoiding conflict with the ideology of the dictatorial state;
and it was precisely in this period that the profession was consolidated, with the performance of
these entities whose purpose was to defend and represent the category of psychologists. However,
such associations had an ambiguous stance against state violence: they did not speak out against
the regime, being conniving at the same time with this repressive system. Nowadays, recognizing
the commitment of Psychology to the reality in which it is inserted, and the production of memory
about this period of history are fundamental to understand the complex relationships that existed
during the military dictatorship, which have repercussions until the present day.
Keywords: History of Psychology, Dictatorship, Human Rights.

Psicología en el Contexto de la Dictadura Civil Militar


y Resonancias en la Contemporaneidad

Resumen: Este trabajo tiene por objetivo versar sobre las relaciones de la Psicología con la
sociedad en el contexto de la dictadura civil-militar, considerando el papel de las entidades
de Psicología en ese período. Hay algunas consideraciones sobre las características de este
contexto histórico y sus efectos en la subjetividad de los individuos que han vivido tal momento.
El artículo propone también una reflexión acerca de los desafíos de la Psicología en el escenario
brasileño contemporáneo. Se adoptó el tipo de investigación bibliográfica, y los datos obtenidos
fueron analizados de forma cualitativa; y se utilizaron libros y artículos científicos de lengua
portuguesa. La dictadura nos remite a un período violento y triste en la historia brasileña, que
tuvo como característica la violación de los derechos humanos, siendo comunes las prácticas
de tortura, prisiones ilegales y muertes. Inicialmente, las asociaciones profesionales de los
psicólogos priorizaban cuestiones organizativas y técnicas de la profesión, evitando entrar en
conflicto con la ideología del Estado dictatorial; y es justamente en este período que la profesión
fue consolidada, con la actuación de estas entidades que tenían por finalidad defender y
representar la categoría de los psicólogos. Sin embargo, tales asociaciones poseían postura
ambigua frente a la violencia de Estado: no se pronunciaban contra el régimen, al mismo
tiempo siendo conniventes con ese sistema represivo. Actualmente, cuando se reconoce el
compromiso de la Psicología con la realidad en la que está incluida, la producción de memoria
sobre este período de la historia es fundamental para comprender las relaciones complejas que
existieron durante la dictadura militar, y que repercuten hasta los días actuales.
Palabras claves: Historia de la Psicología, Dictadura, Derechos Humanos.

83
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 82-90.

Introdução por ser uma prática social, o processo de pesquisa é


vinculado às condições históricas do contexto em que
O compromisso da Psicologia com se vive, visando sua compreensão, entendimento e
o resgate de sua própria história proposta de soluções para a transformação da reali-
Um dos sentidos do trabalho do psicólogo con- dade (Zanella, & Sais, 2008).
siste em promover a saúde e a qualidade de vida de Com base nisso, para a compreensão dos primór-
indivíduos e de coletividades, o que está relacionado dios da Psicologia brasileira, é fundamental o estudo
com a dimensão ética de sua profissão (Conselho das intensas mudanças no cenário político-social que
Federal de Psicologia, 2005). Em sua atuação, faz-se repercutiram sobre a sua existência. Desta forma, estu-
importante também conhecer e resgatar a história do dar as histórias da Psicologia durante o período da dita-
próprio contexto social, para que se possa analisar, de dura militar envolve a sua apreensão enquanto criação
forma crítica, os múltiplos determinantes que com- humana, e como tal, relacionada com este período
põem a realidade que vivencia. sócio-histórico (Cambaúva, Silva, & Ferreira, 1998).
Tais pressupostos estão em conformidade com o Este trabalho visa uma reflexão sobre as relações
Código de Ética Profissional do Psicólogo (CFP, 2005) entre a Psicologia e a ditadura civil-militar, considerando
e podem contribuir para o desenvolvimento da Psi- o papel das entidades de Psicologia nesse contexto. Este
cologia, tendo em vista que refletem um interesse na estudo tece algumas considerações sobre as característi-
vida e nos valores humanos, bem como no enriqueci- cas deste período e os seus efeitos na subjetividade dos
mento da construção de sentidos de seu saber e con- indivíduos que vivenciaram tal momento histórico. Por
junto de práticas. fim, tem-se uma reflexão acerca dos desafios da Psicolo-
O trabalho de Antunes (2012) tece considerações gia no cenário brasileiro contemporâneo.
sobre a história da Psicologia brasileira, abarcando suas
características e as produções teóricas e práticas em
cada período de tempo. Em sua análise, considera as Método
construções históricas, sociais, poíticas, econômicas – Para a realização deste trabalho, foi adotado
para citar alguns aspectos - que influenciaram os modos o tipo de pesquisa bibliográfica, que consiste no
da Psicologia em produzir conhecimentos, de compre- “exame, levantamento e análise do material existente
ender o homem, atingindo assim suas próprias práticas. sobre determinado assunto”. (Di Domenico, & Casse-
Inicialmente, a Psicologia se preocupou com os tari, 2010, p. 69). Os materiais utilizados foram livros
discursos sobre a subjetividade presentes em diver- e artigos científicos, principalmente da área da Psi-
sas áreas do saber, especialmente atrelada à filosofia, cologia, datados de 1985 até o presente ano. Como
medicina e educação. Ao longo da história de sua con- critério de inclusão, foram levantados textos que se
solidação no Brasil, alguns cursos e laboratórios foram relacionassem com a temática do estudo, que fossem
criados de forma a se debater as questões psicológi- de língua portuguesa, e excluídos materiais que não
cas. No avanço do reconhecimento desta área, foram tivessem relação com o objetivo da pesquisa. Os des-
critores utilizados na seleção de artigos foram: Histó-
marcos consideráveis a regulamentação da profissão
ria da Psicologia; Ditadura; Direitos Humanos.
pela Lei nº 4.119, em 27 de agosto de 1962, e a criação
de dispositivos formais mediante a Lei n° 5.766, como
os Conselhos Federal e Regionais de Psicologia, em 20 Características da ditadura
de dezembro de 1971 (Pereira, & Pereira Neto, 2003). civil-militar brasileira
Cabe salientar que pesquisar em Psicologia e A ditadura civil-militar brasileira, que com-
resgatar sua própria história envolve aspectos éticos, preende o período de 1964 a 1985, nos remete a um
estéticos e políticos. Deve-se reconhecer a comple- momento triste e violento na nossa própria história,
xidade do fenômeno que está sendo estudado, bem caracterizado pela violação dos direitos humanos,
como os valores e a atuação do pesquisador neste pro- sendo comum as práticas de tortura, prisões ilegais e
cesso de pesquisa. Trata-se de um processo de criação mortes. Quando os militares tomaram o poder, com a
e intervenção na própria realidade, posto que implica ideologia de segurança nacional, desprezaram o sis-
em relações entre sujeitos e a sociedade, que são tema político instituído e as suas instituições (como
mutuamente constitutivos. Ainda, considera-se que, Congresso, Judiciário, dentre outros), criando suas

84
Silva, F. F. (2017). Relações entre Psicologia e Ditadura Civil-Militar e Reflexões Atuais.

próprias regras de funcionamento (Scarparo, Torres tortura foi apoiada e respaldada por muitos profissio-
& Ecker, 2014). Para justificar as suas ações, criaram nais da saúde, como psicólogos, psiquiatras, médicos,
os Atos Institucionais, compreendidos como um con- e de outras áreas do conhecimento, que por meio de
junto de normas que concediam plenos poderes aos seus saberes e práticas fortaleceram ações de violên-
militares, além da criação de vários dispositivos e cia e de exclusão. Poderiam argumentar que estavam
órgãos secretos de informações e de segurança. O país cumprindo ordens, no entanto, tais práticas apoiaram
atravessava um período turbulento, caracterizado por e fortaleceram os terrorismos do Estado, numa des-
manifestações da população contrários ao este regime sensibilização frente à violência (Coimbra, 2001). Tais
ditatorial, e ainda agravado pela alta concentração de atos podem ser caracterizados pela negação do pró-
renda, inflação e dívida externa (Chiavenato, 1994). prio desenvolvimento humano (Santos, 1994).
Houve uma verdadeira agressão ao público, de Como consequência, as sequelas psicológicas
forma geral. Por exemplo, ocorreu diminuição de ver- podem afetar vários aspectos da existência humana:
bas na saúde; agressão à educação, pelo desprezo ao destruição da pessoa e de seus valores, desorganização
ensino básico, tendo como consequência milhões de da relação que o indivíduo tem consigo mesmo e com
crianças sem estudos; ataque à Universidade, consi- a sociedade em que vive, havendo a possibilidade de se
derando a invasão de seus estabelecimentos, com a ter uma conduta que está em maior ou menor conso-
apreensão de documentos e livros, demissão de rei- nância com os valores cruéis da ditadura. Embora não
tores, professores e funcionários e expulsão de estu- haja um quadro sintomatológico único, as sequelas
dantes que não se alinhavam aos valores da ditadura; psicológicas de quem vivenciou tais situações podem
agressão à cultura, com a proibição e censura de ser graves e permanentes, considerando a alta por-
inúmeras peças, filmes e músicas; agressão ao traba- centagem de suicídios, os problemas identitários, a
lho, pela perda de direito do trabalhador, que sequer angústia crônica, os lutos não elaborados, alterações
podiam se reivindicar por seus direitos, e se rebelar de hábitos alimentares, sexuais dentre outros aspectos,
em greves, além dos baixos salários fornecidos, para ocorrência de sentimento de culpa e vergonha, de per-
qual a capacidade de consumo era pouca. O país tam- seguição e de dano, isolamento, dificuldades relacio-
bém experimentou uma brutal censura à imprensa: nais e de inserção laboral; apenas para citar algumas
qualquer ação que pudesse ofender o governo não consequências. Para tais pessoas que sofreram esses
poderia ser veiculada (Chiavenato, 1994). horrores, foram negados o direito à vida e o de realizar
Nesse momento histórico, tem-se relatos e provas os seus projetos pessoais (Martín, 2005).
de cidadãos que foram cruelmente torturados e mortos, Outras mudanças estruturais ocorreram, por
sendo que, em muitos casos, houve contradições em exemplo, na educação, como a ênfase no ensino tecni-
documentos oficiais falseados ou inexistentes. Ocorriam cista, conforme a lógica de interesses político-econô-
detenções sem mandato judicial, com desrespeito às leis micos; no controle da mídia e fortalecimento de ins-
que garantem direitos aos cidadãos. Eram comuns tor- tituições de segurança pública (Scarparo et al., 2014).
turas de várias formas, sessões de eletrochoque, quei- O cenário econômico e atual é de fato, herança e con-
maduras, afogamentos, cadeiras e camas eletrificadas, sequência do período militar. Considerando as princi-
utilização de insetos e animais perigosos durante inter- pais mudanças que ocorreram no período da ditadura
rogações, utilização de produtos químicos, cadáveres militar e que deixaram heranças, marcas, resquícios,
dos opositores políticos eram largados em terrenos bal- cabe o estudo dos efeitos deste período nos processos
dios ou sepultados anonimamente. Mendigos nas ruas e subjetivos da população brasileira atualmente.
cidadãos comuns eram utilizados como cobaias, e assim Por se tratar de um tema complexo, várias pro-
torturados em aulas de militares nos quartéis. Inclusive, duções artísticas e projetos políticos foram criados, e
a tortura foi incluída como disciplina nos currículos de que visam a um esclarecimento acerca deste período.
formação de militares. Nem mesmo crianças, mulheres, Nesse sentido, alguns grupos e instituições tem se
gestantes e idosos eram poupados (Arantes, 2012; Arqui- esforçado em resgatar essas histórias que foram ocul-
diocese, 1985; Chiavenato, 1994). tadas, de forma a denunciar as diferentes violações
E ainda houve indivíduos que foram torturados dos direitos humanos, tanto as do passado, quanto
com a assistência de agentes da saúde, o que tornam as existentes atualmente; e há também, por parte do
ainda mais graves tais abusos (Martín, 2005). Assim, a Estado, alguns mecanismos de reparação.

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 82-90.

Psicologia no contexto da retamente, um posicionamento político de cumplici-


ditadura civil-militar dade, evidenciado por homenagens feitas a presidentes
O período da ditadura civil-militar, sem dúvida, e ministros que tinham aliança com o regime militar, e
marcou a história da formação da Psicologia. Inclu- considerando que as instituições não se manifestavam
sive, foi nesse período que aconteceu a criação das publicamente contra o Estado (Hur, 2012).
entidades regulamentadoras do exercício profissional Por outro lado, consideramos que tal posiciona-
do psicólogo, para defender e organizar a categoria. mento de omissão política diante da ditadura civil-
Foi quando houve um crescimento considerável do -militar até favoreceu a expansão da profissão, tendo
número de profissionais que se formaram nesta área, em vista que as práticas em Psicologia foram conside-
devido à criação dos cursos universitários particula- radas pouco ameaçadoras. Ao privilegiar as questões
res, e do aumento da demanda da população que pre- técnicas da profissão e íntimas e particulares de cada
cisava de serviços psicológicos (Pereira & Neto, 2003). paciente, as questões sociais e políticas ficaram em
O trabalho de Hur (2012) detalha com maestria a segundo plano, ou seja, camufladas (Coimbra, 1995).
criação da profissão e as principais entidades de cunho O espaço psicoterapêutico tornava-se atraente, tendo
acadêmico – científico que se organizaram e realizaram em vista que a palavra de ordem, na sociedade, era o
intensos debates e articulações políticas. A regulamen- silêncio (Langenback, 1988 citado por Pereira, & Pereira
tação da profissão pela Lei nº 4.119 de 27 de agosto de Neto, 2003). As normas disciplinares psicológicas tam-
1962 ocorreu a partir da atuação de entidades como a bém puderam ser utilizadas a favor do Estado, em que
Sociedade de Psicologia de São Paulo (SPSP) e a Asso- se patologizava o opositor político. Utilizou-se a falá-
ciação Brasileira dos Psicólogos (ABP). Antes da criação cia de que “os culpados são os indivíduos anormais, de
dos conselhos de Psicologia, foi necessária a autori- psiquismo patológico, e não o Estado e o regime que os
zação do Estado, que recomendou a organização de criou e sustentou” (Coimbra, 2001, p. 14).
sindicato para obter um reconhecimento legal. As Assim, de início, a Psicologia brasileira foi orien-
associações supracitadas fundaram então a Associa- tada predominantemente pelo modelo biológico,
ção Profissional dos Psicólogos do Estado de São Paulo numa lógica em que o homem era responsável pelo
(APPESP), que foi o projeto do sindicato. seu próprio sofrimento, e que tinha que se ajustar à
Numa retrospectiva histórica, em 20 de dezem- normalização social. Conforme já explicitado, o espaço
bro de 1971, foi aprovada a Lei no 5.766, sobre a cria- da clínica foi enfatizado e ganhou status. Deste modo,
ção dos Conselhos Profissionais de Psicologia e do como o paciente era tratado no consultório particular,
Conselho Federal de Psicologia. Em 1973 foi criado preocupado com suas próprias questões emocionais,
oficialmente o Sindicato dos Psicólogos no Estado de as reflexões coletivas eram deixadas de lado. Conse-
São Paulo (Spesp) e foi instalado o Conselho Federal quentemente, a relação do homem com a sociedade
de Psicologia. Apenas em 1974 é que foram criados os não era articulada claramente (Cambaúva et al., 1998).
Conselhos Regionais de Psicologia (Hur, 2007). Portanto, as práticas psicológicas da época bus-
De forma geral, estas instituições citadas tiveram cavam uma suposta neutralidade, afastada de refle-
uma atuação corporativista na década de 1970, na qual xões sobre os efeitos políticos de suas práticas. Tinham
a ênfase de discussão era o campo profissional, e não uma função normalizadora, por meio da qual busca-
no campo político. Desta forma, as reivindicações dos vam adaptar os indivíduos a uma sociedade desajus-
psicólogos discutidas em reunião centravam-se em tada e opressora, e uma postura ambígua frente à vio-
temas operacionais, como ética, fiscalização, testes lência de Estado: não se pronunciava contra o regime,
psicotécnicos, piso salarial, dentre outros (Hur, 2012). mas, ao mesmo tempo, era conivente com esse sis-
As entidades temiam que um questionamento tema repressivo (Scarparo et al., 2014).
frente à sociedade pudesse trazer prejuízos para a Na década de 1980 já se percebe uma ruptura
categoria, num momento em que estavam focados na com tais ideologias, havendo assim, uma determi-
defesa da profissão (Hur, 2012). De certa forma, evi- nada abertura política, por meio de um questiona-
tava-se questionar as políticas do Estado ditatorial, mento da realidade social e ao próprio caráter norma-
denotando assim uma ausência de crítica para com a tizador das entidades de Psicologia, que participaram
violência, a repressão e a perda de direitos humanos, de forma mais clara em movimentos como o direito
característicos deste momento histórico. Havia, indi- ao voto direto e o fim da ditadura militar (Hur, 2009).

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Silva, F. F. (2017). Relações entre Psicologia e Ditadura Civil-Militar e Reflexões Atuais.

As temáticas tratadas pelos psicólogos voltavam-se repercussões disso na própria sociedade. Nas palavras
a questões relacionadas à formação profissional e de (Antunes, 2012):
às políticas públicas, sendo questões emergentes na
sociedade. Os Conselhos e Sindicatos de Psicologia no caso da Psicologia no Brasil, faz-se necessá-
passam a sustentar um posicionamento político claro rio compreendê-la como construção histórica e
pela democratização do país e contra as opressões. social, síntese de múltiplas determinações, orien-
Nas décadas seguintes, segue-se o mesmo mote, com tada por determinadas concepções de homem e
uma postura crítica da realidade, que é difundida de sociedade e comprometida com posições de
e discutida na realização de vários eventos na área, classe e, portanto, contraditória, sendo que o
como os Congressos Nacionais de Psicologia (Hur, embate entre esses elementos que se opõem pro-
2012). As entidades regulamentadoras do exercício do duz movimento e possibilita superação.
psicólogo tiveram uma importante função ao discutir
qual é o compromisso social da Psicologia. Ainda há poucos estudos sobre a problematização
Assim, compreende-se que, no período da dis- da prática psicológica em tempos de ditadura civil-mi-
tensão política da ditadura civil-militar, é que res- litar. Estudar este passado é entender que os saberes
surgiram movimentos sociais em prol da luta pelos estão em contínua transformação e que não são conhe-
direitos humanos, por meio dos quais se buscava cimentos neutros, considerando que estão relaciona-
melhores condições de vida, em todas as esferas, dos com as relações de poder existentes. Desta forma,
além de esforços para a democratização da socie- “olhar para a ditadura é entender como foi engendrado
dade. Desta forma, a partir da emergência desses o presente, evitando que a categoria profissional venha
movimentos que questionavam as lógicas de poder a ser utilizada – por determinados grupos ou sabe-
instaladas, as mudanças efetivamente surgiram a res/poderes – na produção de processos de captura e
partir de mudança de paradigmas, e pelos esforços dominação subjetiva” (Scarparo et al., 2014, p. 71).
por uma sociedade ética e transparente (Coimbra, Ao voltar-se neste período da história brasileira,
Lobo, & Nascimento, 2008). uma das indagações que podem ser feitas é com rela-
Há de se ressaltar que as lutas pela democratiza- ção aos abusos cometidos, e eis que surge um sen-
ção empreendidas pelos movimentos sociais a partir timento de incompreensão à primeira vista: Como
da segunda metade da década de 1970 e pelas entida- entender todas as torturas, as prisões, desapareci-
des de Psicologia no início da década de 1980 tratam mentos e mortes? Como entender tais atrocidades
de “uma luta de todos, e de todas as sociedades [...] cometidas contra as pessoas que viveram naquele
uma luta geral, coletiva, por uma nova concepção de contexto histórico-social? Quais as repercussões e
mundo, de homem e de humanidade: por uma socie- marcas deste período na atualidade, e como isso tem
dade sem torturas” (Coimbra, 2001, p. 19). Portanto, influenciado os modos de relação entre o indivíduo,
consideramos que conhecer o passado é fundamen- sociedade e Estado?
tal para que os acontecimentos esvaziados de valores O Código de Ética Profissional do Psicólogo (CFP,
humanos não sejam repetidos pela sociedade e pelo 2005) é bem claro no tocante aos direitos humanos.
Estado. Este olhar é fundamental para que os fatos O psicólogo não deve ser conivente com práticas que
não sejam esquecidos, também por consideração e caracterizem violência, opressão, negligência, discri-
memória pelos que lutaram por um país mais justo. minação e práticas desse tipo, nem mesmo com o
uso de conhecimentos e práticas psicológicas para tal
finalidade. Há pesquisas na área psicológica que indi-
Considerações finais
cam a violência manifestada sob diversas formas e
Reflexões acerca dos desafios da que atinge vários setores da sociedade. Enfim, o psicó-
Psicologia contemporânea logo não deve consentir com qualquer demonstração
Considera-se que se fazem necessários mais estu- de violação de direitos humanos e faltas éticas, aliás,
dos acerca da história da Psicologia e de suas relações deve contribuir para eliminar estas formas opressivas.
com os múltiplos determinantes sociopolíticos que Ignorar tais palavras prescritas no código implica
a influencia, para que possamos compreender quais no desrespeito a princípios e direitos inalienáveis ao
conhecimentos estamos produzindo, a finalidade e as ser humano. As declarações, códigos e resoluções são

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 82-90.

legitimados quando postos em prática. Por isso que culação com a realidade que vivencia, considerando
se faz importante a reflexão acerca das questões da as relações de poder existentes de sua realidade e o
sociedade que afetam a população, que interferem impacto desses fenômenos em seu cenário de atua-
nos modos de vida, percebendo as consequências ção. O resgate da própria história permite a apropria-
disso, para que se possa analisar e propor alternativas ção do senso crítico, culminando no compromisso
de mudanças. E considera-se que, desde o período de social do indivíduo desde o momento de sua forma-
reabertura política, os Conselhos de Psicologia vêm ção (Cambaúva et al., 1998). Deste modo, a Psicologia
adotando um papel importante neste processo de deve privilegiar um processo formativo contextuali-
democratização da sociedade. zado e formalizar a participação como estratégia de
Os obstáculos podem ser superados se a Psico- trabalho ou, em outras palavras, levar em considera-
logia focalizar a sua atenção aos avanços coletivos na ção as teorias existentes, refleti-las e articulá-las com
direção da implementação do processo democrático, a realidade social vivida (Carrara,1996).
com a questão da igualdade e aceitação das diferen- Nesse sentido, as reminiscências e os relatos das
ças que o tema abrange. Lembrando-se que mudan- pessoas que passaram por esse período turbulento são
ças podem ser propostas a partir da demanda pela imprescindíveis para que se propicie o resgate de nar-
cidadania. O que reanima é saber da potencialidade rativas e histórias que, além de serem únicas, são cole-
existente na categoria dos psicólogos para a transfor- tivas, por representarem este período turbulento, e que
mação da realidade (Carrara,1996). consequentemente, fazem parte da história brasileira.
Nas palavras de Scarparo et al. (2014, p. 71), Por isso a produção de memória deste período
é essencial, para o entendimento de questões sociais
refletir sobre as práticas psicológicas em época que enfrentamos hoje. Só pode se pensar acerca da
de ditadura possibilita colocarmos nossas produ- realidade e dos direitos humanos se olharmos e com-
ções contemporânea em análise. Neste sentido, preendermos as relações complexas que existiram
apontamos algumas questões que emergem: que durante o passado, percebermos as lógicas que opera-
lugar a psicologia tem ocupado nessa sociedade ram e que ainda são produzidas atualmente. Quando
desigual? Para que e para quem nossos conhe- se conhece os fatos do passado, por meio das narrati-
cimentos têm servido? Que violações de direito vas de quem vivenciou tais acontecimentos, abrem-
estamos praticando, mesmo sob a pretensa jus- -se possibilidades de se compreender as repercussões
tificativa de neutralidade científica? disto que acontece no presente, e também, de preve-
nir tais experiências no futuro (CFP, 2012). São histó-
Nota-se que a Psicologia vem conquistando maior rias que, embora silenciadas por décadas, não foram
visibilidade, sendo inserida e legitimada em diversos esquecidas. O problema recai não somente sobre as
contextos sociais. Compreende-se que atualmente há vítimas, mas por toda a sociedade que luta por uma
uma pluralidade de teorias e técnicas psicológicas em sociedade mais digna e democrática (CFP, 2012).
seu escopo. Porém, mais do que o conhecimento de É neste cenário que nos encontramos hoje: entre
disciplinas técnicas e científicas, o psicólogo deve ter sombras do passado e reminiscências que repercutem
uma atuação comprometida com a realidade e com as no presente, silêncio, esquecimentos e repetições;
necessidades da população. omissão e conivência; repressão e resistência, dores
Reafirma-se, novamente, que a Psicologia precisa do passado que persistem, traumas... É preciso falar
estar articulada com o projeto coletivo, de forma a sobre tais questões. Há um passado sombrio e obs-
apreender os diversos significados compartilhados na curo querendo ser enterrado à força, como se, ao sim-
relação entre os indivíduos. Isto faz parte de sua tenta- ples virar das páginas do tempo, os acontecimentos
tiva de compreensão dos fenômenos humanos. Nesse desaparecessem, fossem apagados com a névoa do
sentido, a formação profissional do psicólogo envolve suposto esquecimento.
o compromisso individual, bem como o compromisso Se faz necessária a tomada de medidas corajosas
coletivo, tendo em vista que tornar-se um profissional que viabilizem a consolidação de um país mais justo
em Psicologia envolve assumir o seu papel de cida- e democrático e, também, aprender com as lições do
dão (Santos, 1994). Portanto, urge pensar a Psicologia passado recente pode fortalecer ainda mais a convic-
em seu projeto social e histórico, em sua devida arti- ção pela defesa dos direitos humanos, pela defesa da

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Silva, F. F. (2017). Relações entre Psicologia e Ditadura Civil-Militar e Reflexões Atuais.

ética, pela defesa da cidadania (Arquidiocese, 1985). profissão, de forma a contribuir para a melhoria de
Além disso, as pesquisas em Psicologia são de suma diversos setores da sociedade; que possa sempre
importância para o avanço da área e para a compre- refletir acerca de sua realidade, resgatando, também
ensão dos fenômenos psicológicos, de forma que os sua história, de forma a participar de mudanças que
conhecimentos sejam utilizados para o bem comum. beneficiem toda a população; que, além de estudar a
Que a Psicologia não se esqueça de suas memó- existência humana com sensibilidade e rigor, possa
rias e que se fortaleça ainda mais como ciência e contribuir em sua dignidade, respeito e valorização.

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Fabíola Figueirêdo da Silva


Psicóloga, graduada em Psicologia pela Universidade Braz Cubas, São Paulo – SP. Brasil. Psicóloga residente em
Aleitamento Materno e Banco de Leite Humano pela Universidade Federal de São Paulo, São Paulo – SP. Brasil.
E-mail: fabiolafigueiredos@gmail.com

Endereço para envio de correspondência:


Unifesp – Universidade Federal de São Paulo
Rua Botucatu, 740 - Vila Clementino. CEP: 04023-062.
São Paulo – SP. Brasil.

Recebido 28/06/2017
Reformulação 07/10/2017
Aprovado 09/10/2017

Received 06/28/2017
Reformulated 10/07/2017
Approved 10/09/2017

Recebido 28/06/2017
Reformulado 07/10/2017
Aceptado 09/10/2017

Como citar: Silva, F. F. (2017 ). Psicologia no contexto da ditadura civil-militar e ressonâncias na


contemporaneidade. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 82-90. https://doi.org/10.1590/1982-3703060002017

How to cite: Silva, F. F. (2017). Psychology in the context of the military civil dictatorship and resonances in the
contemporaneity. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 82-90. https://doi.org/10.1590/1982-3703060002017

Cómo citar: Silva, F. F. (2017). Psicología en el contexto de la dictadura civil militar y resonancias en la
contemporaneidad. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 82-90. https://doi.org/10.1590/1982-3703060002017

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 91-102.
https://doi.org/10.1590/1982-3703070002017

Psicologia e a Política de Direitos: Percursos de uma Relação

Vinicius Furlan
Pontifícia Universidade Católica, SP, Brasil.

Resumo: Este é um ensaio que visou recuperar os percursos da relação da Psicologia com a
Política de Direitos no período da ditadura civil-militar e da atualidade. Para tanto, recorremos
à pesquisa bibliográfica e à pesquisa documental. A primeira busca recuperar os processos
históricos desta relação, fazendo um resgate das práticas da Psicologia durante o período da
ditadura até o atual momento. A segunda objetiva encontrar elementos deste percurso e
que revelam como tem se dado a relação da Psicologia com a Política de Direitos em nosso
tempo. A partir das investigações, observa-se que a Psicologia serviu e andou de mãos dadas
com a ditadura militar, contribuindo com a aplicação de testes e práticas de tortura aos presos
políticos. Apesar de esta prática ter sido hegemônica nesse período, a Psicologia conformava-se
enquanto um campo conflituoso de saberes, fazeres e posicionamentos político-ideológicos
e, com os processos de democratização do país, ela também se reorientou e se reinventou,
assumindo como norte um compromisso ético e político com a construção de uma sociedade
mais justa e igualitária e com a Política de Direitos. Não obstante este compromisso ter tomado
conta da Psicologia, a partir de articulações da atuação da Psicologia durante a ditadura e em
nosso tempo, identificam-se heranças em seu seio que foram deixadas pela ditadura, como
as violações de direitos em instituições e entidades em que o profissional da Psicologia atua e
contribui para tais violações, bem como quando apoiam projetos que estão na contramão da
Política de Direitos, como do suposto projeto da “cura gay”.
Palavras-chave: Psicologia, Direitos Humanos, Ditadura Civil-militar.

Psychology and the Rights Policy: Paths of a Relationship

Abstract: This essay intends to recover the paths of the relationship between Psychology and
the Rights Policy, through a bibliographical and documentary research. The first one seeks to
recover the historical processes of this relationship, rescuing the practices of Psychology during
the period of the dictatorship up to know. The second aims to find elements of this course and
to reveal how the relationship between Psychology and the Rights Policy in our time has been
given. From the investigations, it is observed that Psychology served and went hand in hand
with the military dictatorship, contributing with the application of tests and practices of torture
to the political prisoners. Although this practice was hegemonic in that period, Psychology was a
conflictive field of political-ideological knowledge, actions and positions, and, with the country’s
democratization processes, it also reoriented and reinvented itself, assuming as a guide an
ethical and political commitment with the construction of a more just and egalitarian society and
with the Rights Policy. Despite Psychology preserves this ethical and political commitment, it is
possible to identify inheritances left by the dictatorship, such as rights violations in institutions
and entities in which Psychology professionals act and contribute to such violations, as well as
the support by some psychologists to projects that are divergent from the Rights Policy, such as
the supposed “gay conversion therapy”.
Keywords: Psychology, Human Rights, Civil-Military Dictatorship.

Disponível em www.scielo.br/pcp
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 91-102.

Psicología y Política de Derechos: Caminos de una Relación

Resumen: Este es un ensayo que pretende recuperar los caminos de la relación de la Psicología con
la Política de Derechos. Para ello, recurrimos a la investigación bibliográfica y a la investigación
documental. La primera busca recuperar los procesos históricos de esta relación, haciendo un
rescate de las prácticas de la Psicología durante el período de la dictadura hasta el momento
actual. La segunda tiene el objetivo de encontrar elementos de este camino que revelan cómo
se ha dado la relación de la Psicología con la Política de Derechos en nuestro tiempo. A partir
de las investigaciones, se observa que la Psicología sirvió y anduvo de la mano de la dictadura
militar, contribuyendo con la aplicación de pruebas y prácticas de tortura a los presos políticos.
A pesar de que esta práctica fue hegemónica en ese período, la Psicología se conformaba como
un campo conflictivo de saberes, prácticas y posicionamientos político-ideológicos, y, con los
procesos de democratización del país, ella también se reorientó y se reinventó, asumiendo
como orientador un compromiso ético y político con la construcción de una sociedad más justa
e igualitaria y con la Política de Derechos. A pesar de que este compromiso ha tomado cuenta
de la Psicología, a partir de articulaciones de la actuación de la Psicología durante la dictadura
y en nuestro tiempo, se identifican herencias que fueron dejadas por la dictadura en su seno,
como las violaciones de derechos en instituciones y entidades en las que el profesional de la
Psicología actúa y contribuye a tales violaciones, así como el apoyo a proyectos que están en
contra de la Política de Derechos, como del supuesto proyecto de la “curación gay”.
Palabras clave: Psicología, Derechos Humanos, Dictadura Cívico-Militar.

Introdução da coletividade e do bem comum. Esta política, por sua


Depois de um longo histórico da Psicologia no vez, não se dá apenas enquanto aparato instituciona-
país, a instância representativa da categoria, Con- lizado do Estado, mas implica na busca constante de
selho Federal de Psicologia, propôs a premiação de constituir e efetivar uma política institucional dos direi-
trabalhos que abordassem a temática da relação da tos humanos: que recubra todas as populações, tanto
Psicologia com os Direitos Humanos, bem como os por parte dos interesses do Estado como por meio de
impactos do drástico período histórico do país viven- mobilizações e posicionamentos incansáveis da socie-
ciado sob a égide da ditadura-civil militar (1964–1985) dade civil, e que se efetive nas relações de sociabilidade
sobre a Psicologia na atualidade1. intersubjetivas em que se forjam as subjetividades por
Neste sentido, este ensaio teórico tem como obje- vias das dimensões do reconhecimento.
tivo discutir passagens acerca da relação da Psicologia Para tanto, como método para nossa reflexão,
com a Política dos Direitos nos períodos da ditadura recorremos a dois caminhos: o da pesquisa bibliográ-
civil-militar e da atualidade. Visou-se discorrer sobre fica e o da pesquisa documental (Gil, 1987). O primeiro
algumas práticas da Psicologia enquanto profissão e busca recuperar, a partir de fontes secundárias já traba-
de suas entidades representativas, como o Sistema lhadas por outros autores, os processos históricos desta
Conselhos de Psicologia e o Sindicato dos Psicólogos. relação, fazendo um resgate desde as práticas da Psicolo-
Por políticas de direitos compreendemos, gia durante o período da ditadura até o atual momento.
de acordo com o sociólogo Santos (2012; 2013), uma O segundo objetiva encontrar elementos deste percurso,
política orientada para a garantia e efetivação dos direi- a partir de materiais ainda não trabalhados por outros
tos humanos sustentada na concepção de que todos os autores como sites, jornais, anais de congressos etc. –
humanos são cidadãos, portanto, sujeitos de diretos e, que citamos à guisa de ilustração – e que revelam como
assim, busca a construção de uma sociedade mais justa tem se dado a relação da Psicologia com a Política de
e igualitária para todos, respaldando-se nos interesses Direitos em nosso tempo.

1
Este texto foi elaborado, portanto, no ano de 2013, para concorrer a tal premiação, momento em que ainda cursava a graduação.

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Furlan, V. (2017) Psicologia e Política de Direitos.

Assim, a partir destes objetivos e investigações, e submissos frente as injustiças da estrutura sociopo-
o texto comporta uma discussão que busca recupe- lítica, legitimadoras do poder e da exclusão social.
rar os percursos históricos das práticas hegemônicas Assim, com o golpe militar, “a nova profissão não
da Psicologia desde o tempo da ditadura civil-militar buscava apenas legitimidade social, mas pretendia
bem como de nosso tempo, buscando elencar, por mostrar para as classes dominantes atuantes no Brasil
meio da bibliografia e recursos documentais, os ele- que a psicologia não era uma ameaça à ordem social”
mentos que indicam os modos com que a Psicologia (Lacerda Junior, 2013, p. 220).
tem se articulado com a Política e os Direitos. De acordo com Patto (2003, p. 14), foi “assim que
a Psicologia fez-se discurso ideológico que justifica
a desigualdade social transformando-a em desigual-
“Num tempo, página infeliz dade psíquica individual”.
da nossa história”2 Cabia, pois, à Psicologia realizar diagnósticos psico-
A Psicologia se configura como uma imensa lógicos, a fim de identificar as dificuldades e problemas
pluralidade e heterogeneidade de vertentes teóricas de ajustamento dos indivíduos e colaborar para a sua
e epistemológicas que constituem o que tem se cos- solução, ajustando-os aos seus respectivos contextos.
tumado a chamar de psicologias. Cada uma destas Uma característica marcante da Psicologia era a
psicologias possui construtos teóricos e perspectivas sua restrição e isolamento à prática do contexto clínico.
epistemológicas que orientam a prática (ou práxis) Em que pese os ambientes da escola e da indústria tam-
a qual a(o) psicóloga(o) está vinculada(o), o que, por bém sejam característicos dessa época, sendo a Psico-
sua vez, a conforma enquanto um campo conflituoso logia, nestes contextos, um instrumento de exclusão.
de saberes e fazeres, que se norteiam por diferentes Outra marca forte da Psicologia era sua vincula-
posicionamentos ideológicos e políticos intercambia- ção com a elite da sociedade, já que a classe excluída
dos por grupos, associações e instituições. dos bens culturais e econômicos era privada de seus
Neste sentido, as relações da Psicologia com a serviços. Tinha-se, assim, uma Psicologia elitizada e
Política, por meio de suas práticas e saberes, são atra- elitista, contribuindo para a perpetuação da explora-
vessadas por estes diferentes posicionamentos, o que ção desta classe social sobre as demais.
implica reconhecer que, embora os conflitos inerentes A Psicologia, portanto, era utilizada como um
instrumento de dominação social para docilizar e
a seu campo por conta de tais diferenças ideológicas e
domesticar os sujeitos humanos.
políticas, de tempos em tempos, a relação entre Psico-
Esta prática da Psicologia estava orientada por
logia e Política se transforma e isto reverbera em pro-
uma compreensão epistemológica e metodológica da
cessos de ressignificação de seus construtos teóricos,
ciência sustentada pela filosofia positivista; tinha-se
seus fazeres e posicionamentos político-ideológicos.
então uma compreensão naturalizante e biologizante
Assim, recuperar a memória dos meados das
do homem, de uma ciência humana pautada na neu-
décadas de 1960 e 1970 no Brasil é, sobremaneira, uma
tralidade e objetividade, num tecnicismo científico
forma de resgatar um período de nossa história que
controlador e reducionismo psicológico, reificante das
muito tem se tentado esquecer, por conta de questões questões sociais e humanas tidas como a-históricas.
políticas e ideológicas. Situar o lugar da Psicologia no Conforme destaca Coimbra (1995), nessa época,
seio dessa história permite, portanto, trazer à memó-
ria uma “outra” narrativa histórica da Psicologia que [...] a formação “psi”, em geral, traz certas carac-
tem ficado ocultada ou silenciada. terísticas modelares instituídas e tão bem mar-
Nos tempos de ditadura, Coimbra (1995) destaca cadas; como, em nossa formação, predomina o
que a prática hegemônica da Psicologia junto à socie- viés positivista, onde se tornam hegemônicos os
dade foi a de adaptar os indivíduos à ordem vigente, conceitos de neutralidade, objetividade, cientifi-
ao status quo da sociedade, com vistas a contribuir cidade e tecnicismo; onde, nos diferentes discur-
para o controle dos indivíduos, tornando-os passivos sos e práticas, o homem e a sociedade são apre-

2
O texto está estruturado em três tópicos, cada um leva como título versos de letras de músicas que estão relacionadas com a discussão e
a história a qual se narra. No caso, os dois primeiros títulos foram retirados de músicas de Chico Buarque, a saber, “Vai passar” e “Cálice”;
o último foi retirado da música “Latinoamérica” do grupo porto-riquenho Calle 13.

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 91-102.

sentados como “coisas em si”, abstratos, naturais dade se trataria de “posicionamento político” e a eles
e não produzidos historicamente (p. 9). cabiam apenas discutir questões técnicas, corrobo-
rando, assim, a lógica corporativista e de subserviên-
Oliveira (2013) destaca que a ditadura foi condi- cia ao Estado, como previa o Estatuto de sua fundação.
cionante para a configuração da prática liberal da Psi- Não obstante, é importante demarcar que esta
cologia e que esta configuração era resultante tanto é uma parcela da representatividade da Psicologia e
de um “cerceamento à liberdade de expressão, como estamos tratando aqui da sua prática hegemônica,
censura a todos os aspectos relativos ao social e à pois muitos psicólogos, psicólogas, estudantes de Psi-
dimensão política de vida em sociedade” (p. 74). Isto, cologia, professores e professoras, militaram e opuse-
por sua vez, marcava uma Psicologia que não podia ram-se ao regime, sendo até presos e torturados.
fazer leitura crítica da realidade social. De modo enfático, Coimbra (2009) ressalta que
Foi neste contexto que a Lei no 5.766/71 (Brasil, também serviram o regime, mesmo que indireta-
1971) que cria o Conselho Federal de Psicologia (CFP) mente, aquelas(es) psicólogas(os) que ignoravam as
e os Conselhos Regionais foi instaurada. Durante o condições sociopolíticas do país e exerciam práticas
momento que o país passava pela ditadura declarada, extremamente fascistas e conservadoras.
sem disfarces, tido como o pior período do regime Coimbra destaca ainda que, durante o regime,
militar (1971–1974), em que se utilizava a tortura a Psicologia criou um projeto chamado de “Perfil psi-
e a violência como instrumento oficial da política, cológico do terrorista brasileiro”, para dizer que aque-
os Conselhos Regionais receberam um papel policia- les que se opunham ao regime militar eram pessoas
lesco e autoritário de fiscalizadores com relação à prá- desestruturadas, desajustadas e vinham de famílias
tica profissional dos psicólogos (Coimbra, 2009). problemáticas: “Os psicólogos aplicavam anamnese,
Coimbra (2009) destaca que a Psicologia serviu testes de nível mental, um teste de frustração, testes
e andou de mãos dadas com a ditadura, tanto que o de personalidade, testes projetivos etc., e traçavam o
CFP homenageou Emílio Garrastazu Médici dando- perfil do opositor político” (Coimbra, 2009, p. 4).
-lhe diploma de psicólogo honorário e, não por acaso,
seu grande boom no Brasil se deu neste período. Vale [...] houve profissionais “psi” que apoiaram e res-
lembrar que Médici, após o Ato Institucional no 5 paldaram a patologização dos que lutavam con-
comandou o período mais repressivo do Regime Mili- tra a ditadura, classificando-os como “carentes”,
tar, marcado por perseguições, prisões e assassinatos “desestruturados”, ou seja, “doentes”, por meio de
de pessoas que faziam parte da oposição. uma pesquisa, “O Perfil Psicológico do Terrorista
Por outro lado, parte das(os) profissionais de Psi- Brasileiro”, que usou uma série de testes psicoló-
cologia que não estavam de mãos dadas com o regime gicos aplicados a presos políticos. Alguns desses
implicava em opôr-se a ele. Em estudo realizado por profissionais forneceram laudos psiquiátricos e
Scarparo e Ozorio (2009) acerca do Conselho Regional psicológicos de militantes presos, entre 1964 e
de Psicologia (CRP) da 7a região no período da ditadura, 1978, também patologizando-os. Uma prática
os participantes da pesquisa, que atuaram neste Conse- mais indigna ainda foi a dos profissionais que
lho durante 1981 a 1984, afirmaram que em suas práti- davam suporte às torturas, orientando os tortu-
cas e pautas não era dada ênfase nas questões políticas. radores acerca dos limites dos presos, para conti-
Nos estudos de Hur (2007; 2012) fica evidente nuarem sendo torturados ou não, como foi o caso
que o modus operandi das Associações e do Sindicato de Amílcar Lobo, que, à época, fazia formação psi-
de Psicologia se orientava apenas por preocupações canalítica. Muitos profissionais, como psicólogos,
técnicas da profissão e não “políticas”. O pesquisa- psiquiatras, médicos, legistas, advogados colabo-
dor relata um episódio do sindicato dos psicólogos raram para que a tortura e o terrorismo de Estado
em que lhe foi solicitado um posicionamento diante funcionassem de forma eficiente e produtiva;
do assassinato de Vladimir Herzog, acompanhando ainda hoje, continuam respaldando processos de
Sindicatos de outras categorias e movimentos que se exclusão e estigmatização, com os seus saberes e
solidarizaram. O Sindicato de Psicologia decidiu por suas práticas, no Brasil e em outros países. [...] Não
não se manifestar, alegando que, por Herzog não ser por acaso, foi nos anos de 1970 que ocorreu, em
psicólogo, qualquer manifestação em sua solidarie- nosso país, o “boom” das práticas psi, em especial

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Furlan, V. (2017) Psicologia e Política de Direitos.

da Psicologia e da Psicanálise; práticas que afir- contribuiu para as violações dos direitos humanos tendo
mavam uma Psicologia assistencialista, cientifi- posicionamentos políticos como sendo “não políticos”.
cista, objetiva e neutra. Tais práticas fortaleceram, Iremos a partir de agora refletir acerca de cons-
além do essencialismo e do individualismo, uma trutos psicológicos que buscaram produzir posicio-
psicologização do cotidiano: tudo o que ocorria no namentos críticos e políticos e práticas diferenciadas
mundo era remetido para explicações psicológi- frente às que configuravam a prática hegemônica da
co-existenciais. E, ainda, através de intimidação e Psicologia daquele período, e como estes constru-
do familiarismo, as práticas psi andaram de mãos tos e posicionamentos foram determinantes para a
dadas com a ditadura, ao deixar de considerarem reorientação e reinvenção de seu panorama atual,
o contexto histórico, político e social na análise embora sequelas da atuação da Psicologia que serviu
das situações “psi” (Coimbra, s.d., p.p. 15-16). a ditadura ainda estejam imbricadas em determina-
das práticas e saberes.
Assim a Psicologia teve participação direta no
aparato repressivo da ditadura militar brasileira. Essa “Esse pileque homérico no mundo”3
participação assemelhava-se àquela que vários médi- Como destaca Lacerda Junior (2013), durante a
cos tiveram, em que não só acompanhavam os presos ditadura, houve diversos setores da sociedade civil
políticos torturados, mas também ministravam trei- que se organizaram em lutas contra o capital e o
namentos a torturadores e elaboravam laudos psico- regime militar. Este processo, por sua vez, também
lógicos de presos políticos, sem fazer qualquer men- atingiu a Psicologia, criando cisões, crises e transfor-
ção às inúmeras sessões de torturas às quais eles eram mações. Assim, surgiram novos construtos teóricos e
submetidos (Coimbra, 2011). práticas na Psicologia brasileira e na América Latina.
Para a autora, as práticas psicológicas realizadas É importante demarcar, neste sentido, o papel da
junto ao governo militar tinham objetivos contrários a Psicologia Social e da Psicologia Política neste processo,
qualquer possibilidade de se pensar nas condições sub- que naquele período, em toda a América Latina, come-
jetivas dos prisioneiros e torturados por militares e, com çaram a apontar para a necessidade de se construir uma
argumentos de defesa da ordem proporcionada pelo Psicologia de orientação crítica e com compromisso éti-
regime militar, acreditavam na necessidade de traçar um co-político demarcado com a transformação dos pro-
perfil daqueles que se mostravam contrários ao regime. blemas sociais vividos pelas classes populares (Hur &
Vemos assim que analogamente ao aparato jurí- Lacerda Jr, 2016; Lima, Ciampa & Almeida, 2009).
dico que, de acordo com Agamben (2004), possuía uma Neste sentido, tal proposição se orientou (a) por
relação instituída com um sistema de estado de exceção uma compreensão ontológica do homem enquanto ser
– representado na figura de uma ditadura –, o governo histórico e social, tendo a práxis como orientadora de
ditatorial do nosso país também teve, disposto a seus suas ações, e assumiu, naquele momento, um caráter
serviços, o aparato da categoria da Psicologia. político com a redemocratização da sociedade durante
Isto ratifica, por sua vez, conforme assinala a ditadura. Esta proposição política e crítica teve papel
Oliveira (2013), que o clima político de seu tempo é essencial para a reorientação do olhar e compreensão da
determinante direto daquilo que resulta nas práticas Psicologia acerca das questões sociais, do compromisso
e orientações do aparato da categoria da Psicologia. ético e político com a construção do bem comum e com
Nossa reflexão até aqui permite observar o modo a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
como a Psicologia se relacionava, em sua prática hege- Não obstante, é importante lembrar que não
mônica, com as questões políticas e os direitos durante o apenas a Psicologia Social e Política tiveram papel na
período da ditadura, ficando evidente que nalguns casos reorientação da compreensão de homem, sociedade

3
O título deste tópico, como já exposto, foi retirado de um trecho da música de Chico Buarque “Cálice”; canção que foi produzida nos
tempos de ditadura e que foi censurada, devido aos compositores Chico Buarque e Gilberto Gil, metaforicamente, fazerem alusão à si-
tuação que sociedade vivenciava durante o regime. O “pileque homérico” trata das inquietações, indagações e contestações do homem
sobre a vida e outras possibilidades de formas de vida e, especificamente na música, se refere ao desejo de liberdade dos cidadãos do
regime ditatorial. Recuperamos este trecho para ser um dos títulos do artigo por conta de estarmos tratando desta história e das inquie-
tações que mobilizaram os cidadãos a se posicionarem frente as injustiças daquele governo, bem como por fazermos analogia com as
indagações de certas vertentes da Psicologia que possibilitaram a construção de outros posicionamentos políticos e éticos em seu seio.

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 91-102.

e compromisso ético-político da Psicologia, mas tam- da igualdade e da integridade do ser humano,


bém outras. Todavia, elas foram pioneiras e trouxeram apoiado nos valores que embasam a Declaração
contribuições importantíssimas neste sentido. Universal dos Direitos Humanos.
Assim, esta emergência de posicionamentos críti-
cos em relação à situação da população vivida naquela II. O psicólogo trabalhará visando promover a
época culminou também no desenvolvimento da Psi- saúde e a qualidade de vida das pessoas e das
cologia Social Comunitária, por meio da qual profis- coletividades e contribuirá para a eliminação de
sionais vinculados a movimentos contrários do regime quaisquer formas de negligência, discriminação,
ditatorial, preocupados com a construção de novas exploração, violência, crueldade e opressão.
práticas críticas às instituições sociais conservadoras,
iniciaram uma nova relação com as populações subal- Além deste fator temos observado que está havendo
ternas, buscando criar estratégias para a garantia de (e isto tem sido um processo gradativo) um grande
direitos humanos e do exercício de cidadania. interesse por parte das(os) profissionais de Psicologia
Estas novas proposições e práticas marcaram em participar e adentrar espaços em que se discute e
profundamente a orientação da política da Psicologia luta pela promoção, proteção e garantia dos direitos
que, em seu panorama atual, tem se implicado e assu- humanos (Furlan, & Pelissari, 2013). Espaços como:
mido sérios compromissos com a construção do bem movimentos sociais, fóruns de discussões, conselhos
comum, com os direitos humanos, com as políticas de controle social, centros de referências, espaços de
públicas e com o político. construção de políticas públicas etc., bem como espa-
Como um dos fatos reveladores deste interesse e ços em que se pautam temáticas como saúde, direitos
preocupação da Psicologia, podemos citar a criação das crianças e adolescentes, direitos do idoso, direitos
da Comissão dos Direitos Humanos do CFP (oficia- da mulher, da família, medicalização da sociedade e da
lizada na Resolução CFP no 11/1998), cujas funções, educação, antimanicomialismo, saúde do trabalhador,
conforme o artigo 2º da Resolução, demarcam que: direito à política, direito à cidadania, entre outros.
Isto é observado não apenas nos contextos de
Art. 2º - São atribuições da Comissão de Direi- inserção prática do profissional da Psicologia, mas
tos Humanos do Conselho Federal de Psicologia: também na Psicologia produzida e ensinada no meio
I – incentivar a reflexão sobre os direitos huma- acadêmico-universitário, onde se vê uma grande
nos inerentes à formação, à prática profissional quantidade de núcleos e grupos de estudos e pesqui-
e à pesquisa em psicologia; II – intervir em todas sas que se debruçam acerca das temáticas expostas
as situações em que existam violações dos direi- acima, em que tais pesquisas não apenas têm esses
tos humanos que produzem sofrimento mental; campos de forças e contradições como meros objetos
III – participar de todas as iniciativas que pre- de estudo para coleta de dados e produção de conhe-
servem os direitos humanos na sociedade brasi- cimento, mas como um campo para o exercício da
leira; IV – apoiar o movimento internacional dos participação política e transformação social.
direitos humanos; V – estudar todas as formas de Yamamoto (2012) destaca que na pesquisa nacional
exclusão que violem os direitos humanos e pro- acerca da profissão do psicólogo realizada pela Anpepp
voquem sofrimento mental. (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Psicologia), publicada em 2010, foi constatado que apro-
Isto também está previsto pelo Código de Ética ximadamente 40% dos psicólogos que participaram do
Profissional do Psicólogo (Resolução CFP nº 10/2005), estudo trabalham no campo das políticas sociais.
logo no início de seus Princípios Fundamentais, Este interesse ainda é notado quando na “2ª Mos-
ao orientar que às(aos) psicólogas(os) cabe respaldar tra Nacional de Práticas em Psicologia”, ocorrido em
suas ações nos valores da Declaração Universal dos 2012, após 12 anos do acontecimento da primeira,
Direitos Humanos e trabalhar no sentido de eliminar tivemos como tema “Compromisso com a Construção
todas as formas de violência da sociedade. do Bem Comum”, e para discutir como fazermos isso
contamos com a presença de: Pedro Pontual, ligado
I. O psicólogo baseará o seu trabalho no res- à Secretaria-geral da Presidência da República no
peito e na promoção da liberdade, da dignidade, Departamento de Participação Social; Paulo Vanuchi,

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Furlan, V. (2017) Psicologia e Política de Direitos.

principal responsável pelo Plano Nacional de Direi- Essas reorientação e transformação da Psicolo-
tos Humanos; Pedro Paulo Gastalho de Bicalho, atual gia, de acordo com Antunes (2012), têm a ver parti-
coordenador da Comissão Nacional de Direitos Huma- cularmente com o processo de organização da cate-
nos do CFP; Marcus Vinícius de Oliveira, discutindo a goria, em que
posição do Sistema Conselhos de Psicologia acerca do
Direito a Verdade; e outras figuras importantes que par- Muitas das entidades representativas da Psico-
tilham e lutam pela conquista de um país mais justo, logia assumiram papéis de grande relevância na
além de outros temas que compuseram as mesas e transformação da Psicologia no Brasil, fomen-
as diversas discussões que tratavam do bem comum, tando a crítica e proporcionando condições para
da conquista de direitos humanos e outros direitos, o debate e para a busca de soluções e possibili-
de controle social, de gestão pública e outros. Em uma dades de superação daquela Psicologia limitada e
das salas foi apresentado um vídeo sobre os direi- elitista, em direção à constituição de uma ciência
tos humanos, organizado pela Comissão Nacional de e de uma profissão radicada em sua realidade e
Direitos Humanos do CFP e intitulado “Direitos Huma- com ela comprometida (p. 62).
nos, Nossos Direitos”, que fazia uma homenagem a Vla-
dimir Herzog. Aqueles que por ela passaram não saí- Observa-se, portanto, como já vimos no pri-
ram sem ter despertado uma inquietação e indignação meiro tópico, conforme Oliveira (2013), o clima polí-
frente as injustiças e violências cometidas nesse país. tico de seu tempo é determinante direto das práti-
A “2ª Mostra Nacional de Práticas em Psicologia” cas e orientações de uma categoria profissional,
revelou, portanto, o imprescindível e necessário com- em nosso caso da categoria das(os) psicólogas(os).
promisso que a Psicologia, em seu panorama atual, Assim, como as mobilizações dos movimentos,
tem assumido com as políticas públicas, os projetos associações etc., que possibilitaram os processos
sociais, os direitos humanos, ou seja, o compromisso de democratização do país e novos rumos a política
com o bem comum para a construção uma sociedade institucional, no seio da Psicologia também houve
mais justa e igualitária. mobilizações, conflitos internos e posicionamentos
Temos ainda a criação de outras instâncias e crítico e políticos que possibilitaram com que este
eventos que se orientam neste sentido. Podemos campo de saberes e fazeres pudesse se reinventar
citar: a criação do Crepop (Centro de Referência Téc- e reorientar, embora não em sua totalidade, seu
nica em Psicologia e Políticas Públicas) em 2006, que compromisso social e político eticamente voltados
revela o interesse e a demanda que tem sido apresen- a Políticas dos Direitos, em que se devem basear os
tada à Psicologia para atuar no âmbito das Políticas valores democráticos.
Públicas, principalmente no que se refere à redução
da desigualdade social; a criação dos Seminários de “Aquí se respira lucha”?
Psicologia e Políticas Públicas e de Psicologia e Direi- Apesar da preocupação e do interesse da Psico-
tos Humanos; além de tantos outros exemplos. logia em discutir, colaborar e ocupar espaços em que
Isto mostra como a Psicologia tem se orientado se luta por direitos, se discute e se constroem políticas
pelo compromisso com os direitos dos cidadãos e com públicas, em livro de publicação do CRP-SP, a coorde-
a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, nadora da Comissão de Direitos Humanos (de 2009 a
travando uma resistência com os drásticos impactos 2010) do mesmo Conselho destaca que ainda
gerados pelo capital sobre a vida das pessoas e uma
luta com a falta de investimento em políticas públicas [...] emerge das práticas profissionais e das
para a garantia de uma vida digna para os cidadãos. denúncias do movimento de defesa dos direitos
Para Pereira (2007), o fato de a Psicologia adentrar humanos, uma série de situações que revelam
o campo do público é uma forma contra-hegemônica a ausência da garantia dos direitos humanos
de se fazer Psicologia. De acordo com Carmo (2001), em diversas instituições ou entidades em que o
o compromisso dos psicólogos com as políticas públi- profissional da psicologia atua, particularmente
cas tem a ver com sua inserção social enquanto exer- aquelas em que há privação de liberdade (sis-
cício de sua cidadania. tema prisional, hospitais psiquiátricos, abrigos

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 91-102.

para crianças e idosos, Fundação CASA, entre Em outro exemplo, podemos citar o estudo de
outras). [...] através da interlocução com várias Costa, Oliveira e Ferraza (2014), que demonstra o
dessas entidades acusadas de realizar violações distanciamento político ou os posicionamentos
de direitos humanos pode-se observar que os políticos não ligados aos direitos humanos de mui-
profissionais da psicologia em algumas situações tos profissionais “psi” ao tomarem as polêmicas
manifestaram conivência com as violações e que envolveram as propostas do antigo presidente
violências propagadas na instituição. Em alguns da Comissão de Direitos Humanos na Câmara dos
casos, inclusive defendendo o uso de práticas Deputados, que ficaram conhecidas como “cura gay”,
como a tortura, castigo e humilhações para coibir e que afetariam diretamente as práticas e discursos
determinados comportamentos incompatíveis das(os) profissionais da Psicologia. As(os) psicólo-
com as regras da entidade (Sposito, 2011, p. 17). gas(os), assegurados pela Resolução do CFP, publi-
cada em 1999, não podem colaborar com eventos
Este tipo de prática dos profissionais da Psicolo- e com a divulgação de serviços que ofereçam trata-
gia nestas instituições, sejam elas filantrópicas, priva- mento para a suposta “cura” da homossexualidade,
das, ou públicas, em que se viola os direitos humanos além de serem vedados de participar de manifesta-
e se contribui para o sofrimento e adoecimento psí- ções que reforcem preconceitos sociais em relação às
quico, herdamos dos tempos de ditadura. práticas homoafetivas. Tal projeto visava derrubar a
A atuação dos profissionais da Psicologia em ins- resolução do CFP com o intuito de assegurar a prá-
tituições que têm como objetivo lucrar com aquilo tica de profissionais “psi” que divulgam a possibili-
que é sofrimento humano e que camufla esse objetivo dade de “tratarem” homossexuais e que alegam pro-
por trás de um discurso altruísta nos remete às práti- moverem o suposto bem-estar para a família e para
cas da Psicologia durante o regime militar. a nação brasileira. Diante da polêmica causada pelo
Geralmente as práticas cometidas que violam os referido projeto, inúmeros profissionais se posicio-
direitos humanos, sejam de agressão, contenção cor- naram como contrários às propostas do presidente
poral, xingamento, ofensas, intimidações, humilha- da Comissão de Direitos Humanos; no entanto,
ções e outras, ocorrem por conta da não submissão muitas(os) psicólogas(os) também saíram em apoio
à norma institucional ou a “àquele que manda” etc. ao projeto, alegando que sofriam perseguições do
E os profissionais da Psicologia têm contribuído com conselho de classe devido ao posicionamento em
este tipo de prática, muitas vezes sendo os responsá- relação às relações homoafetivas. O distanciamento
veis por fazer com que os sujeitos institucionalizados desses profissionais em relação às noções de direi-
sejam cada vez mais domesticados à ordem institu- tos humanos e cidadania ficam evidentes ao descon-
cional e por gerar sofrimento psíquico. Quando isso siderarem as possibilidades de que projetos como
não ocorre, o profissional da Psicologia que está na aqueles poderiam provocar mais atos homofóbicos,
instituição acaba por se institucionalizar e tal prática agressões, torturas e mortes apenas pela orientação
passa a ser entendida como natural. sexual de diversos indivíduos no país, bem como
Vemos ainda práticas do período ditatorial que revela ainda concepções de homem naturalizantes
perduram dentro dos contextos clássicos da Psicolo- e biologizantes e ideais moralistas de família e das
gia (clínica, escola e indústria), como: o isolamento relações afetivas.
de alguns profissionais da Psicologia no consultó- Esta contradição das práticas no seio da Psicologia
rio clínico, atendendo apenas a elite da sociedade;
a atuação dentro da escola a partir de uma perspectiva Trata-se da coexistência de uma Psicologia que
clínica, realizando diagnósticos e contribuindo para a avançou para uma ampliação em seu espectro de
produção de deficiências e crianças “problemas”, cul- ação e que se consolidou como instância social
pabilizando a criança e a família e, com isso, obscu- comprometida com a construção de uma socie-
recendo as contradições intraescolares e sociais; e a dade mais justa e igualitária e uma psicologia
atuação do psicólogo dentro da indústria como mero que ainda se submete a concepções tradicionais
aplicador de testes para seleção de pessoal e assim e ultrapassadas, que não se atualiza e que atua
contribuindo para excluir o trabalhador do mercado com base em modelos que já foram analisados,
do trabalho, entendo-o como não capacitado. criticados e superados há décadas. O movimento

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Furlan, V. (2017) Psicologia e Política de Direitos.

histórico é, pois, heterogêneo, e há segmentos As contra-hegemônicas buscam oferecer concepções


que tomam a dianteira do processo, outros que alternativas, potencialmente orientadas para a constru-
respondem mais tardiamente e outros que resis- ção de uma sociedade mais justa e igualitária, se respal-
tem (Antunes, 2012, p. 62). dando nos interesses da coletividade e do bem comum.
Assim, Teles (2012) se indaga em que medida uma
Vemos, portanto, que ainda se faz importante, em política de inclusão social é compatível com a lógica
nossa prática, se orientar pela indagação levantada do mercado determinada pelas elites do sistema finan-
por Bicalho, Kinoshita, Castilho e Carvalho (2013) ceiro, já que o Estado tem exercido um papel de admi-
e assumida como campanha pela Comissão Nacional nistrador dos interesses do capital e dos mais ricos, pro-
dos Direitos Humanos do CFP: “Em nome da proteção vocando, consequentemente, um crescente constante
e do cuidado, que formas de sofrimento e exclusão da desigualdade econômica que contribui para minar
temos produzido?”. sistematicamente a democracia (Peschanski, 2012).
Conforme o artigo primeiro da Declaração de 1948,
Frente a esta realidade, o psicólogo
“todos os homens nascem livres e iguais em dignidade
e direitos”. Todavia, destaca Coimbra (2000), que “sem-
será o estrito avaliador da intimidade, aperfeiço-
pre estiveram fora desses direitos à vida e à dignidade
ando seus métodos de exame? Ou lembrar-se-á
os segmentos pauperizados e percebidos como ‘margi-
que este sujeito também é sujeito-cidadão,
nais’: os ‘deficientes’ de todos os tipos, os ‘desviantes’,
cujos direitos e deveres se constituem no espaço
os miseráveis, dentre muitos outros” (p. 142).
público, território onde perpassam outros dis-
Isto é reflexo, como afirma o sociólogo San-
cursos e práticas que não o exclusivamente psi-
tos (2013), da não efetividade da Política de Direitos
Humanos e, apesar de incontestável na linguagem cológico? (Jacó-Vilela, 1999, p. 17).
de dignidade humana na hegemonia global, a grande
maioria da população é apenas objeto desse discurso Esta autoconscientização ética, portanto, que
e não sujeitos de direitos humanos de fato. vem transformando a Psicologia é por demasiado
Como comenta Teles (2012), os segmentos menos necessária, para inscrevê-la num movimento histó-
favorecidos socialmente e desprovidos de recursos rico enquanto uma ciência e profissão que pode con-
estão, na mesma medida, desprovidos de direitos, tribuir com a dimensão humano-genérica da huma-
e isto pode ser observado por meio da violência pro- nidade (Heller, 2008), ou seja, ela pode e tem buscado
vocada contra os moradores de Pinheirinho e das se elevar enquanto consciência de “nós” comunidade
“cracolândias”, sustentada por uma lógica espúria dos humana e se inserir na dimensão ética coletiva de
interesses do mercado e do capital. colaboração com o bem comum de todos os homens.
Podemos, nesta perspectiva, observar que a A Psicologia que busca, assim, ter um compro-
lógica da Política de Direitos se orienta por dois con- misso com a Política dos Direitos pode ter um papel
trapontos: de um lado, visa atender aos interesses do tanto analítico como de intervenção para sua cons-
mercado e aos interesses individuais dos donos de trução, afirmação ou negação, na medida em que
capital, de outro, busca garantir uma vida mais digna pode criar um campo de tensão para planejar estra-
para toda a população. tégias que contribuam para o movimento histórico do
Neste sentido, como enfatiza Santos (2012), é pre- humano-genérico (Souza, 2015).
ciso cuidado para não cair na armadilha que sustenta
os diferentes discursos acerca dos direitos, tendo em
vista que eles se orientam por ideologias hegemônicas Considerações finais
e contra hegemônicas. As hegemônicas prezam pelo A partir de nossas investigações, podemos ver
individualismo proprietário, por reproduzir as rela- que a Psicologia dos tempos ditatoriais foi determi-
ções capitalistas, colonialistas e patriarcais; os casos da nada pela política de seu tempo, tendo colaborado
comunidade de Pinheirinho, a política higienista das com aquele sistema de governo, com a criação e apli-
“cracolândias” e o genocídio dos povos indígenas se cação de testes psicológicos, práticas de tortura a
prestam bem como exemplos desta forma ideológica, presos políticos e silenciamentos frente as formas de
que se valem pelos interesses individuais e econômicos. injustiças. Isto, por sua vez, revela que, assim como

99
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 91-102.

outros aparatos, a ditadura teve uma relação institu- Não obstante este compromisso ter tomado
ída com o aparato da categoria da Psicologia. conta da Psicologia, ainda se identificam heranças
Em que pese esta forma de fazer Psicologia tenha das práticas psicológicas ditatoriais que foram dei-
sido hegemônica naquele período, ela conforma-se xadas em seu seio, como as violações de direitos em
enquanto um campo conflituoso de saberes, fazeres instituições e entidades em que o profissional da
e posicionamentos político-ideológicos e, como as Psicologia atua e contribui para tais violações, bem
mobilizações populares pela democratização do país, como quando apoiam projetos que estão na contra-
parte dos atores ligados à Psicologia – estudantes, pro- mão da Política de Direitos, como no suposto projeto
fissionais, pesquisadoras (es), docentes etc. – buscou da “cura gay”.
produzir um campo implicado com tais mobilizações Como podemos ver, a partir das tensões produzi-
e com os processos de democratização, forjando suas das no seio da Psicologia por conta dos diferentes posi-
práticas psicológicas como formas de resistência, cionamentos políticos e ideológicos, ela caminhou no
tendo como orientador um compromisso ético-po- sentido a um processo de autoconscientização ética de
lítico com as classes populares e com as transforma- compromisso com a política de direitos, embora não
ções da realidade social. em sua totalidade. Temos construído, portanto, em
Assim, com os processos de democratização do seu panorama atual, um campo que, por um lado, res-
país e os impactos que a política institucional tem guarda heranças das práticas do período ditatorial, na
sobre as categorias profissionais, a Psicologia também medida em que pactua ou contribui com as formas de
se reorientou e se reinventou, buscando assumir em violações de direitos humanos em instituições e enti-
seus saberes e fazeres um compromisso ético e político dades, quando se silencia e colabora com a perpetua-
com a construção de uma sociedade mais justa e igua- ção das injustiças sociais e comunga de projetos ideo-
litária e com a política de direitos, como podemos ver lógicos que estão na contramão dos direitos humanos,
com os temas de pesquisas e congressos, as preocupa- e que, por outro lado, busca lutar e ter um compro-
ções do Sistema Conselhos, os trabalhos em projetos misso ético-político com a política de direitos, com as
sociais e nas políticas públicas, a criação do Crepop e políticas públicas, visando colaborar com a construção
de Comissões de Direitos Humanos em associações e do bem comum e de uma sociedade mais justa e igua-
entidades da Psicologia, dentre outros exemplos. litária, na dimensão ética coletiva do “nós” humanos.

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Vinicius Furlan
Doutorando em Psicologia Social – PUC-SP. Mestre em Psicologia – UFC.
E-mail: vc_furlan@hotmail.com

Endereço para envio de correspondência:


Francisco Jorge de Moraes, 153, Santa Helena,
Charqueada – SP, Brasil.
CEP: 13515-000.

Recebido 30/06/2017
Reformulado 06/09/2017
Aprovado 20/09/2017

Received 06/30/2017
Reformulated 06/30/2017
Approved 06/30/2017

Recebido 30/06/2017
Reformulado 06/09/2017
Aceptado 20/09/2017

Como citar: Furlan, V. (2017). Psicologia e a política de direitos: percursos de uma relação. Psicologia: Ciência e
Profissão, 37(n. spe), 91-102. https://doi.org/10.1590/1982-3703070002017

How to cite: Furlan, V. (2017). Psychology and the rights policy: paths of a relationship. Psicologia: Ciência e
Profissão, 37(n. spe), 91-102. https://doi.org/10.1590/1982-3703070002017

Cómo citar: Furlan, V. (2017). Psicología y política de derechos: caminos de una relación. Psicologia: Ciência e
Profissão, 37(n. spe), 91-102. https://doi.org/10.1590/1982-3703070002017

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 103-115.
https://doi.org/10.1590/1982-3703080002017

Psicologia Social e Pesquisa com Memória: Método e


Reparação de Danos da Ditadura Civil-Militar

Luis Eduardo Franção Jardim


Universidade de São Paulo, SP, Brasil.

Resumo: As marcas profundas deixadas pela ditadura civil-militar atingiram não somente os
perseguidos políticos e seus familiares, mas todos cidadãos, pois seu legado permanece vivo ainda
hoje na memória individual e memória social de todos. O fim da ditadura impôs silenciamento e
esquecimento forçados, que impedem o direito à memória, verdade e justiça, bem como a elaboração
dos danos produzidos. O enfrentamento de um problema político deve necessariamente atuar em
seu caráter político, e não apenas no aspecto psicológico. Depois da Abertura, as possibilidades
de reparação dos danos ficaram restritas a organizações sociais que prestaram assistência e
atendimento psicológico em grupo. Recentemente, a criação das Clínicas do Testemunho e da
Comissão da Verdade foi uma importante iniciativa do Estado em direção à averiguação dos crimes,
ao reconhecimento público de suas responsabilidades, à politização do dano e a sua elaboração.
Inicialmente, apresentaremos as Clínicas do Testemunho e a Comissão da Verdade como alternativas
de reparação psíquica e política dos danos provocados pela ditadura civil-militar. Para, em seguida,
discutirmos uma possibilidade metodológica de pesquisa com memória em Psicologia Social e
possíveis contribuições dessa atuação para a reparação destes danos. A Psicologia Social atua na
fronteira entre o indivíduo e o social, entre o psicológico e político, e é importante para a reparação
dos danos da ditadura. O trabalho do psicólogo social com a evocação da memória pode contribuir
tanto para elaboração e reflexão da experiência do depoente, quanto para a tarefa política de pensar
seus fundamentos, para que esta experiência não se repita.
Palavras-chave: Memória, Elaboração, Ditadura, Psicologia Social.

Social Psychology and Memory Research: Method and Repair


for Damages of the Civil-Military Dictatorship

Abstract: The deep marks left by the civil-military dictatorship reached not only the politically
persecuted and their families, but also every citizen. Its legacy remains alive today in individual memory
and social memory of citizens. The end of the dictatorship imposed forced silence and forgetfulness,
avoiding the right to memory, truth and justice, as well as the elaboration of the damage produced.
Facing a political problem must necessarily involve its political aspect, and not only its psychological
one. After the Opening, the possibilities for repair for damage were restricted to social organizations
that provided assistance and group psychotherapy. Recently, the creation of the Clinics of Testimony
and Truth Commission were important initiatives of the State towards the investigation of crimes,
public recognition of their responsibilities, politicization of the damage and its elaboration. Initially, we
intend to present the Clinics of Testimony and Truth Commission as psychic and political reparations
of the damages caused by the civil-military dictatorship. Then, we discuss a methodological possibility
of research involving memory in Social Psychology and possible contributions of this action for the
repair of damages. Social psychology works at the boundary between the individual and the social
spheres, between the psychological and political aspects, important for repairing the damage caused
by dictatorship. The work of the social psychologist with the evocation of memory can contribute to
both elaboration and reflection of the experience of the person who produces testimony, as to the
political task of thinking its foundations, so that this experience is not repeated.
Keywords: Memory, Elaboration, Dictatorship, Social Psychology.

Disponível em www.scielo.br/pcp
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 103-115.

Psicología Social e Investigación con Memoria: Método y


Reparación de los Daños de la Dictadura Cívico-Militar

Resumen: Las profundas cicatrices dejadas por la dictadura cívico-militar llegaron no solo a
los perseguidos políticos y sus familias, sino también para todos los ciudadanos. Su legado
sigue vivo hoy en día en la memoria individual y la memoria social de los ciudadanos. El fin
de la dictadura impuso el silencio y el olvido forzado, evitando el derecho a la memoria, la
verdad y la justicia, así como la elaboración de los daños producidos. El enfrentamiento de un
problema político necesariamente debe actuar en su carácter político, y no solo en el aspecto
psicológico. Después de la Apertura, las posibilidades de reparación de daños se limitaron a las
organizaciones sociales que proporcionan asistencia y psicoterapia de grupo. Recientemente, la
creación de la Clínica del Testimonio y Comisión de la Verdad fueron iniciativas importantes del
Estado hacia la investigación de los delitos, el reconocimiento público de su responsabilidad,
la politización de los daños y su elaboración. Inicialmente, presentaremos las Clínicas del
Testimonio y la Comisión de la Verdad como alternativas de reparación psíquica y política
de los daños provocados por la dictadura civil-militar. Luego discutiremos una posibilidad
metodológica de investigación con memoria en Psicología Social y posibles contribuciones de
esa actuación para la reparación de estos daños. La psicología social opera en el límite entre lo
individual y lo social, entre lo psicológico y lo político, importante para la reparación del daño
de la dictadura. El trabajo del psicólogo social con la evocación de la memoria puede contribuir
tanto a la elaboración y reflexión de la experiencia del quien da testimonio, como a la tarea
política de pensar sus fundamentos, por lo que esta experiencia no se repite.
Palabras clave: Memoria, Elaboración, Dictadura, Psicología Social.

La memoria que me persigue a mí gia Social e possíveis contribuições dessa atuação para
no está en el Olimpo, sino en los a reparação destes danos. Trata-se de uma articulação
rincones más sórdidos y tristes, y en la entre um método de pesquisa baseado na memória
esperanza más obstinada del drama humano. de depoentes e o contexto psicossocial que a ditadura
Ignacio Dobles Oropeza (2009) civil-militar estabeleceu no Brasil. Nas palavras de
Bosi (2009), pode-se dizer que a articulação proposta
neste trabalho “situa-se na fronteira em que cruzam-
Introdução -se os modos de ser do indivíduo e da sua cultura
Este artigo foi desenvolvido com base no legado (política): fronteira que é um dos temas centrais da
dos 21 anos de ditadura civil-militar no Brasil e seus psicologia social” (p. 37), fundamento principal deste
impactos no cotidiano do brasileiro e naqueles que texto. Em outras palavras, esta disciplina de fronteira
lutaram contra o regime autoritário. O objetivo deste caracteriza-se não pela focalização da subjetividade
escrito é apresentar uma possibilidade metodológica no homem separado, mas pela exigência de encontrar
de pesquisa com memória com base na Psicologia o homem na cidade, o homem no meio dos homens,
Social e levantar possibilidades de reparação e elabo- a subjetividade como aparição singular, vertical, no
ração que este trabalho com a memória possa oferecer. campo intersubjetivo e horizontal das experiências
Inicialmente, pretende-se: apresentar breve- (Gonçalves Filho, 1998a).
mente as Clínicas do Testemunho e as Comissões da Passadas mais de três décadas do fim da ditadura
Verdade como alternativas de reparação psíquica e no país, uma nebulosidade ainda obscurece a ver-
política dos danos provocados pela ditadura civil- dade sobre os acontecimentos do regime e reluta abrir
-militar. Para, em seguida, discutir uma possibilidade espaço para a justiça, memória e reparação. Esse fundo
metodológica de pesquisa com memória em Psicolo- lodoso contribuiu para que a ditadura brasileira encon-

104
Jardim, L. E. F. (2017 ).Psicologia Social e Pesquisa com Memória.

trasse diversas maneiras “de não passar, de permanecer viveu aquela época, e também aos que hoje, sem saber,
em nossa estrutura jurídica, em nossas práticas políti- transitam por entre os emaranhados ocultos da malha
cas, em nossa violência cotidiana, em nossos traumas política tecida pelo regime. Para o historiador Coggiola
sociais que se fazem sentir mesmo depois de reconci- (2001), “as consequências desse período são sentidas até
liações extorquidas” (Safatle, & Teles, 2010, p. 09). hoje, não se tratando de algo superado” (p. 9).
De nossa história recente, ainda identificamos Seja pelas marcas pessoais que carregam, seja
hoje o legado disciplinar do regime de intensa repres- pelas mudanças nas condições de vida e de trabalho,
são militar que impôs, também durante a transição, muitos dos que sobreviveram à repressão tiveram suas
um registro de silenciamento que, embora não pro- vidas alteradas para sempre: perseguições, carreiras
íba dizer, incita a calar (e esquecer), muitas vezes em interrompidas, vocações abandonadas, exílios (Cog-
meio a uma ofuscante prolixidade aparente (Kolker, & giola, 2001; Jardim, 2016). A ausência de uma Justiça
Mourão, 2002; Rodrigues, & Mourão, 2002). As estraté- de Transição e de uma reparação dos danos da dita-
gias de silenciamento e acobertamento dos crimes da dura contribuíram para que o impacto da violência
ditadura impostas nos anos de redemocratização (e na população se estendesse após a redemocratização,
ainda hoje) relegam nossa história recente ao caráter presente ainda hoje também pelas marcas impostas
de esquecimento institucionalizado. nas relações cotidianas na cidade, no trabalho e nas
Durante o regime, a política repressiva do Estado relações sociais.
dirigiu-se não apenas ao opositor político, conside- A ideologia dominante e os anos de negação desta
rado inimigo interno, mas sua maquinaria de terror violência pelo Estado ocultam o caráter político dessa
atingiu o campo social como um todo. A abrangência violência e individualizam o sofrimento das vítimas
da violência se deu de modo que “a cultura da violên- diretas e indiretas. Sofrimentos políticos não são
cia e do terror penetra dos espaços mais íntimos aos enfrentados apenas psicologicamente, uma vez que
mais coletivos da vida social” (Almeida, 2002, p. 46), são políticos. Mas enfrentá-los politicamente inclui
atravessando as instituições e instaurando a vigilância enfrentá-los psicologicamente (Gonçalves Filho,
e o medo no cotidiano do brasileiro (Jardim, 2016). 2004; 2007). Deste modo, qualquer possibilidade de
Para além da obtenção de informação, o objetivo elaboração deste tipo de dano deve, necessariamente,
da tortura era fundamentalmente a quebra de toda e também perpassar a dimensão do político, da poli-
qualquer resistência e iniciativa do opositor e da popu- tização do dano (Brasil, 2012; Kolker, 2009; Kolker, &
lação. A experiência clínica com atendimento às vítimas Mourão, 2002).
da ditadura, de Kolker e Mourão (2002), revelou que “os Até muito recentemente, todas as iniciativas
métodos utilizados tanto podiam ser físicos como psi- de elaboração dos danos decorrentes da ditadura
cológicos. Os últimos tinham a vantagem de não deixar estavam concentradas nas mãos de associações e/
marcas visíveis e seus efeitos serem mais duradouros” (p. ou organizações sociais1, muitas vezes apoiadas por
241). É fundamental entender que o impacto de toda entidades internacionais. Dentre diversas outras ati-
tortura, necessariamente, resulta em marcas físicas e vidades voltadas à elaboração de danos, essas orga-
psicológicas. Não há tortura física que não tenha um nizações prestaram e prestam atendimento psicoló-
impacto psicológico que não se desfaz (Arantes, 2013). gico em grupo às vítimas da ditadura. Em 2013, com
A violência não atingiu apenas aqueles que foram a instalação das Clínicas do Testemunho2 por meio da
presos e torturados ou as mães que ainda hoje choram Comissão da Anistia vinculada ao Ministério da Jus-
“a dor de quem viu um ente querido desaparecer atrás tiça, pela primeira vez, o Governo Federal financia um
das grades da cadeia, sem mesmo poder adivinhar o que projeto de atendimento psicológico a sua população
lhe aconteceu”, de acordo com o relatório Brasil Nunca atingida pelas marcas da ditadura.
Mais – BNM (Arns, 2009, p. 12). Sua amplitude esten- Outra importante contribuição para verdade e
de-se, por vezes, velada e insidiosa, a todo cidadão que recuperação da memória são as comissões da ver-

1
Os Grupos Tortura Nunca Mais por todo o Brasil foram responsáveis por parte significativa dos atendimentos psicológicos às vítimas
do regime civil-militar nos anos pós-democratização. Até a década de 2010, as principais publicações sobre clínica nessa área proviam
da experiência do GTNM/RJ.
2
Ao longo dos dois editais das Clínicas do Testemunho, em 2012 e 2015, o projeto foi conduzido em São Paulo pelo Instituto Sedes Sa-
pientiae, Instituto Projetos Terapêuticos e Margens Clínicas.

105
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 103-115.

dade ao redor de todo o país, especialmente a Comis- Sobre a especificidade do dano


são Nacional da Verdade (Lei no 12.528/2011, Brasil, produzido pela ditadura
2011), instalada em 2012 e concluída em 10 de dezem- Para que se possa pensar as possibilidades de
bro de 2014. reparação dos danos decorrentes da violação dos
Essas medidas de reparação são fundamentais direitos humanos durante a ditadura, é fundamental
nesse processo, no entanto, não esgotam as possi- que se faça algumas considerações sobre a especifi-
bilidades de reparação desses danos irreversíveis. cidade do dano produzido por este tipo de violência.
Neste sentido, o psicólogo social, por atuar na fron- O Estado tem como função principal proteger os
teira entre psicológico e político, pode oferecer uma cidadãos e garantir seus direitos e integridade física.
importante contribuição por meio da pesquisa com a Para este fim, é o único órgão que detém o poder de
memória. De modo complementar às outras iniciati- uso da violência. Quando esta violência se volta con-
vas – e não substitutivo –, a pesquisa com a memória tra a mesma população que deveria ser protegida, o
de pessoas que viveram o período da ditadura e/ou Estado transgride sua própria norma. Portanto, o que
sofreram em decorrência da força do Estado autori- distingue um dano produzido por violência de Estado
tário atua na articulação entre o privado e o político. de outras formas de violência é seu caráter político,
O tempo da memória é social. Descrever a substância agravado pela relação com o momento histórico de
social da memória – a matéria lembrada – revela que a gestão da ditadura, que repercutiu em exclusão social
lembrança é tanto individual quanto social. E, princi- e destruição (Vital Brasil, 2009).
palmente, esse trabalho deve prestar-se à reflexão e ao As ações do Estado durante a ditadura possuem
pensamento sobre os elementos sociais que fundam abrangência para além do sofrimento individual dos
esta violência em sua especificidade. perseguidos, e revelam seu fundamento político. Na
A relevância do resgate da memória e reflexão medida em que se tratava de uma violência de um
sobre o esquecimento relativo a este período som- grupo ideológico contra outro, a repressão aos oposi-
brio, não está apenas na elaboração individual daque- tores do regime mostra-se como um processo político.
les que experienciaram diretamente a violência de Para Gonçalves Filho (1998a; 2004; 2007), os proces-
Estado, mas também por seu caráter político, em dire- sos políticos informam a subjetividade, desdobram-
ção à verdade e esclarecimento sobre a abrangência se internamente, desdobram-se “para dentro”, mas
do impacto da barbárie da ditadura. Trata-se de um um tal desdobramento sofre metabolismo pessoal
esforço visando não mais permitir que as ressonân- e assume figura singular – metabolismo e figura que
cias autoritário-ditatoriais permaneçam na silencio- exigem detida consideração e consideração diferen-
sidade obscura do esquecimento, para romper com ciada. Sobre esse processo, Kolker (2009) entende que
a proibição e clandestinidade de uma memória que todos somos afetados por esta violência, mas não se
ocupa a cena cotidiana e para que as memórias sub- pode ignorar que aqueles atingidos diretamente pela
terrâneas (Pollak, 1989) da ditadura possam invadir os violência carregam marcas distintas daquelas que afe-
espaços públicos. tam o conjunto da sociedade.
A partir das reflexões deste possível papel do Um dano que possua, ao mesmo tempo, um
psicólogo social no trabalho com a memória daque- caráter político e psicológico, não pode ser enfrentado
les que viveram a ditadura, pretende-se que este apenas psicologicamente, uma vez que também é
artigo seja um pequeno eco para a voz das pessoas político. Mas enfrentá-lo politicamente inclui enfren-
que lutaram e lutam quase solitárias pela memó- tá-los psicologicamente (Gonçalves Filho, 2004; 2007).
ria, justiça e verdade em no Brasil. Concordamos O reconhecimento público do dano é uma parte
com Coggiola (2001) que “lutar pela memória, como essencial do processo de reparação e elaboração.
arma de recusa ao atual estado de impunidade que A elaboração de um acontecimento histórico-político
perpassa aqueles anos, é transformar a capacidade necessariamente perpassa o reconhecimento público
de lembrar em instrumento político de mudança e do acontecido e devida punição dos atores. O reconhe-
justiça” (p. 62). Eis aqui um esforço para que a lem- cimento pelo Estado da própria responsabilidade pelo
brança do passado ajude a compreender o presente uso da violência durante a ditadura é um dos primeiros
e contribua para que a história não se repita e a vio- passos para a legitimação do sofrimento das vítimas e
lência de Estado não se perpetue. politização do dano. A memória não se constitui como

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um encapsulamento solitário, mas, com base na expe- dano. No grupo, o absolutamente esquecido, aquilo
riência, que é sempre experiência com o outro em meio que permanece obscuro, espalhando suas raízes sub-
a um determinado contexto histórico, delineiam-se as terrâneas que alimentam o existir com a seiva da vio-
possibilidades e os modos de se estar em sociedade. lência sofrida, pode ganhar certa voz e atingir alguma
elaboração (Jardim, 2014).
O grupo é lugar de pensar junto, o que se apro-
Atendimento psicológico e Clínicas do
Testemunho xima do que Arendt (2000) chamou de ato de jul-
Com o fim da ditadura em 1985, algumas políti- gar. No entendimento de Gonçalves Filho (2004),
cas públicas e o autoperdão impostos pelos próprios com base no pensamento de Arendt, o julgamento é
torturadores instalaram uma atmosfera de silencia- uma experiência que acontece em meio aos outros e
mento e obscurecimento que, pela negação, inibiu implica o pensar e também o conversar; é o pensa-
a possibilidade de elaboração da memória coletiva mento que conversa com o pensamento dos outros:
da ditadura. A tortura, o silenciamento e a impuni- “as visões parecem desembaçar, porque vão passando
dade, juntamente com a aprovação da violência por por vários olhos que tocaram seus pontos de vista.
uma parcela significativa da população, relegaram o Começo respondendo pelo que vejo e passo para o
sofrimento dessa violência à dimensão somente indi- que vêem os outros” (p. 14).
vidual. O silenciamento e a desresponsabilização do O pensamento que conversa com o pensamento
Estado pelas próprias ações repressivas estabelece- do outro é um elemento da politização do dano. A
ram uma espécie de legitimação pública desta violên- politização do dano retira-o da esfera isolada do “eu”
cia e de deslegitimização do sofrimento, mantendo-o para olhá-lo em suas irradiações na coexistência. Em
no âmbito privado, no isolamento e desamparo. um grupo de psicoterapia, conseguindo-se estabele-
Esta privatização dos danos e desamparo às víti- cer um espaço de acolhimento e confiança entre os
mas repercutiu também nas parcas possibilidades de membros daquele microcosmo, abre-se também para
elaboração existentes no período de redemocratiza- que cada um seja tal como ele é na relação de um com
ção. Desde o fim do regime autoritário, as possibili- o outro (Jardim, 2012). Ser tal como se é em grupo,
dades de elaboração desse sofrimento concentraram- a partir do dano, abre a possibilidade inicial de lidar
se em organizações sociais mantidas por doações e com o dano em seu caráter político e não apenas
recursos de entidades internacionais, na maioria das individualizado. No que concerne à elaboração psico-
vezes, sem apoio algum do Governos Federal. Dentre lógica do sofrimento de cada participante do grupo,
estas organizações sociais, os Grupos Tortura Nunca cada um processará esses danos em diferentes graus
Mais em todo o Brasil têm grande importância na luta e modos, de acordo com as possibilidades ao seu
pelo direito à memória e verdade e prestação de aten- alcance. Contudo, é importante ressaltar que, para
dimento psicológico às vítimas do regime. Os mem- os danos produzidos pela violência de Estado com a
bros do Rio de Janeiro (GTNM-RJ) merecem destaque tortura, perseguição, extermínio, desaparecimento de
pela ampla gama de atividades psicológicas promo- corpos, não existe reparação e elaboração plenas. A
vidas com este propósito e pelas publicações de seus experiência como ex-presa política e como psicóloga
trabalhos (CINTRAS, EATIP, GTNM/RJ, SERSOC, 2009; de Arantes (2013) nos alerta que “as consequências do
Mourão, 2009; Rauter, Passos & Benevides, 2002) nas excesso e da crueldade produzidas pela tortura não
primeiras décadas após o fim do regime. se extinguem e nada do que uma vez se formou pode
Para o GTNM-RJ, a clínica tem um caráter político. perecer” (p. 386). A reparação e elaboração serão sem-
Isto significa entender sua implicação com as políticas pre parciais e, prioritariamente, simbólicas.
de subjetivação, seja em sentido da reprodução como da Outra importante inciativa nesse âmbito são
desconstrução da subjetividade instituída (Kolker, 2009; as Clínicas do Testemunho, via Comissão de Anistia
Mourão, 2009; Rauter et al., 2002; Vital Brasil, 2009). do Ministério da Justiça. No ano de 2013, passados
No que se refere ao atendimento psicológico às quase 30 anos do fim da ditadura, entrou em vigor a
vítimas da ditadura, a modalidade grupal tem uma primeira iniciativa do Governo Federal com o intuito
importância significativa pelo compartilhamento de promover a elaboração psicológica dos danos das
com outros que viveram sofrimento semelhante. vítimas do regime autoritário. O projeto oferece aten-
A modalidade em grupo já é um grau de politização do dimento psicológico de grupo às vítimas da ditadura

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numa parceria do Estado com a iniciativa privada, cia imposta no passado, na maioria das vezes, ocultas
visando reparações coletivas, projetos de memória pelas forças hegemônicas do país. Sua ação repercute
e ações para a não repetição com o claro objetivo de no âmbito coletivo da memória social. A relevância
permitir a toda a sociedade conhecer, compreender e, da luta pelo direito à memória e o enfrentamento dos
então, repudiar tais erros (Brasil, 2012). danos políticos permanentes provocados em nosso
As Clínicas do Testemunho têm um caráter polí- passado recente estão em “lembrar de onde vem o
tico. O grupo de psicoterapia é parte de um processo que impede nossa experiência democrática de avan-
de elaboração de um dano, que, muito antes, é um çar” (Safatle, & Telles, 2010, p. 11).
dano a um povo, não circunscrito “apenas” aos afeta- Por se tratar de uma iniciativa do Estado para
dos diretamente. Neste sentido, para que a psicotera- investigação de suas próprias ações e pelo caráter de
pia de grupo não “saia pela culatra” e, ingenuamente, garantia do direito à memória e verdade, as comissões
reforce ainda mais o caráter de dominação reforçado da verdade são um primeiro reconhecimento da pró-
pelo regime, é de fundamental importância que o pria responsabilidade do Estado nos crimes da dita-
psicólogo de um grupo de vítimas com essa especi- dura e reparação de danos. Reparação não significa
ficidade tenha profundo conhecimento e crítica em aceitar o dano, tampouco adequar ou apaziguar a dor.
relação à história e aos acontecimentos políticos em Não há aceitação cabível para a violência. Muito pelo
jogo na ditadura civil-militar brasileira. É fundamen- contrário, antes de tudo, reparar é dar voz e reconhe-
tal que o terapeuta esteja intimamente implicado com cimento ao sofrimento. Dar um lugar ao sofrimento e
a questão e com os participantes do grupo, cuidando escutá-lo. A partir deste lugar, podem surgir o questio-
para que esta prática, em hipótese alguma, se preste namento e a crítica e, talvez, novas ações.
a reproduzir o discurso do opressor e a individuali- Apesar da inegável importância dos trabalhos das
zar ainda mais o sofrimento daqueles que foram mais comissões da verdade, enquanto recuperação de uma
diretamente afetados3. memória dos acontecimentos da ditadura e da res-
ponsabilização do Estado, o trabalho com a memória
pode ainda ir além destas possibilidades.
Memória, comissões da verdade e
Bosi (2003) indica que “nos depoimentos biográfi-
reparação política
cos é evidente o processo de re-conhecimento e de eluci-
A partir do ano 2012 no Brasil, dezenas de comis-
dação” (p. 33). No entanto, o trabalho amplo das comis-
sões da verdade – municipais, estaduais, em univer-
sões não consegue acolher suficientemente o sofrimento
sidades e entidades de classe – atuaram em parceria
do depoente, que rememora experiências dolorosas, e
com a Comissão Nacional da Verdade. As comissões
em sua evocação da lembrança, pode acessar zonas obs-
são órgãos oficias de investigação e apuração de abu-
curas que há muito permaneciam esquecidas.
sos e violações dos direitos humanos com importân-
cia fundamental para a reelaboração da memória his-
tórica do país. Sobre método de pesquisa com memória
O artigo 1o da Lei no 12.528 de 2011, que cria a e a possibilidade de reparação de danos
Comissão Nacional da Verdade no Brasil, estabelece a A pesquisa com a memória não se resume à trans-
necessidade “de efetivar o direito à memória e à ver- crição do relato do depoente. Bosi (2009) ressalta que
dade histórica e promover a reconciliação nacional” “uma lembrança é diamante bruto que precisa ser
(Brasil, 2011). Seu principal objetivo é possibilitar o lapidado pelo espírito. Sem o trabalho da reflexão e da
estabelecimento de um registro apurado do passado localização, seria uma imagem fugidia” (p. 81). A escuta
histórico e dar voz às vítimas caladas pelo terror e da memória exige que se debruce sobre sua história,
relegadas ao esquecimento, para assim, “descobrir, visões de mundo, os sentimentos e esquecimentos,
esclarecer e reconhecer abusos do passado” (Núcleo sobre aquilo que foi escolhido ser contado, no modo
de Preservação da Memória Política, s.d., p. 8). como foi contado. A atuação do psicólogo social busca
As comissões da verdade pretendem estabelecer abrir a possibilidade de realizar um trabalho, ao mesmo
o direito à memória e buscar respostas sobre a violên- tempo que ampliado e social, também aprofundado e

3
Em 2016, com o impeachment da Presidenta eleita, as verbas para a Comissão da Anistia foram cortadas e as Clínicas do Testemunho
somente puderam manter-se, reduzidamente, com financiamento britânico do Fundo Newton.

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íntimo com o depoente e a memória. “Uma pesquisa é militante penetrado de consciência histórica e a
um compromisso afetivo, um trabalho ombro a ombro dos que apenas buscam sobreviver” (p. 19).
com o sujeito da pesquisa” (Bosi, 2009, p. 38).
O trabalho de pesquisar a memória das vítimas O esforço na escuta da memória perpassa tam-
dos crimes da ditadura perpassa a realização de entre- bém a lapidação da memória do militante para
vistas que permitam a aproximação mais livre e a recu- encontrar, em um relato mais consciente, traços psi-
peração da memória dos depoentes. A interrogação cossociais pertinentes à vida cotidiana de muitos
pela memória garante a permanência na questão, ao outros brasileiros (Jardim, 2016). Traços que desvelem
mesmo tempo em que, quando posta em movimento, a experiência de cidadania interrompida, de vigilân-
traz consigo todas as outras funções psicológicas do cia constante, medo, censura e autocensura, mesmo
pensamento, sentimento e elaboração. que muitos nem se apercebessem disso.
Na entrevista, um aspecto fundamental a ser A possibilidade de que a pesquisa com a memó-
considerado é a escolha das perguntas e a postura na ria contribua, em algum grau, com a reparação de
condução do encontro, de modo que o roteiro deve danos ganha corpo na própria relação do depoente
suscitar a narrativa sobre uma experiência, a expres- com sua memória (e esquecimento) e no convite à
são informada pela memória do depoente (Gonçalves reflexão, próprio da pesquisa. A lembrança remete ao
Filho, 2005). A elaboração do roteiro das entrevistas- modo como entendemos a nós mesmos em determi-
depoimentos visa superar a cristalização da opinião e nada situação, remete à significação e aos sentidos
evitar a possibilidade de o depoimento decair em uma do recordado e, inevitavelmente, aos afetos e emo-
articulação de conceitos ou um punhado de ideias ções da experiência. Entendemos que a recuperação
abstratas, sem conteúdo. Ao mesmo tempo, deve per- da memória é um modo de registro de como “a pes-
mitir reflexão, discussão e, possivelmente, alguma soa sofre e habita a experiência comum: em alguma
elaboração do sofrimento. As perguntas devem servir medida, sofrendo-a, vem afetá-la por traços originais,
de iscas para a lembrança que não deve sofrer inter- por qualidades surpreendentes que tornam irredutí-
rupções inconvenientes e abruptas que busquem vel a fisionomia de cada homem” (Gonçalves Filho,
adequar a narrativa a uma sequência esperada pelo 1998a, p. 3).
entrevistador. Sobre o roteiro e a condução da entre- No processo de entrevista, o cuidado deve levar
vista, Svartman (2010) sintetiza: “o entrevistador deve em conta a complexidade da experiência pessoal do
acompanhar o depoente pelas regiões apresentadas, depoente, considerar que a memória remete também
jamais tentar reduzir a complexidade do que observa a áreas densas e sombrias da biografia de cada um
ou forçar a passagem por espaços em que não foi con- e a obstáculos e/ou regiões abandonadas ou claras
vidado” (pp. 42-3). da história de cada um (Bosi, 2003; 2009). A própria
A atuação do psicólogo social na interrogação extensão do encontro admite que a entrevista possa
pela memória é uma tarefa a ser realizada como cami- tornar-se, assim, um valoroso momento de elabora-
nho de enfrentamento político e psicológico. A evoca- ção da experiência, podendo conduzir a consciência
ção da lembrança da experiência das vítimas da dita- por veredas ainda mais longe nos depoimentos.
dura pretende alcançar elementos que permitam uma No curso da pesquisa, a transcrição das entre-
atenção concreta, e não abstrata, sobre o que se pas- vistas para revisão do seu conteúdo pelos depoentes
sou com todos os cidadãos. Os depoentes são pessoas também pode favorecer a oportunidade de apropria-
que têm a possibilidade de se pronunciar sobre uma ção de suas memórias e de aspectos esquecidos, que
experiência própria de sofrimento, a respeito da qual possam vir ou ter vindo à tona e, talvez abrir para
muitos brasileiros estão implicados politicamente e alguma elaboração.
também são afetados. O acesso à memória a partir da interrogação da
Sobre os depoimentos, ouçamos as palavras de experiência na ditadura pode trazer elementos con-
Bosi (2003): “ cretos que contribuam tanto para alguma reparação
de danos individualmente aos depoentes, quanto
grande mérito dos depoimentos é a revelação para futuras análises sobre as marcas deixadas pelo
do desnível assustador de experiência vivida nos regime autoritário na experiência coletiva do brasi-
seres que compartilham a mesma época; a do leiro, enfrentando um aspecto político da questão.

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Uma análise qualitativa das entrevistas, bus- exacerbou as tendências perversas do nosso desen-
cando discutir as dimensões psicossociais da ação volvimento mimético” (p. 32). O autor analisa que
política ditatorial sobre o cidadão, possibilita identi- esse processo “abriu espaço para a concentração do
ficar e articular impactos do regime militar na vida do poder econômico e para a emergência das estruturas
cidadão brasileiro. Trata-se de uma análise que leva transnacionais” (p. 10).
em conta os elementos concretos que emergem da O crescimento do setor industrial no Brasil na
memória dos depoentes sobre a experiência cotidiana segunda metade do século XX e, posteriormente, o
na ditadura. Aprendemos com Gonçalves Filho (2004) chamado “milagre econômico” no início dos anos
que “a luta por cancelar a dominação passa por tam- 1970, somados ao aumento de renda per capita do
bém pensar o seu fundamento” (p. 18). De modo que a conjunto da população “não são suficientes para pro-
análise proposta para o trabalho com a memória tor- vocar modificações significativas da estrutura ocupa-
na-se relevante na medida em que possibilite pensar cional do país” (Furtado, 2002, p. 31), não refletindo
o fundamento desta violência, e contribua para a luta ganhos e benefícios proporcionais à população. Pelo
contra as heranças do regime autoritário. contrário, esse crescimento foi absorvido por uma
pequena parcela dominante, ampliou o abismo social
Reparação coletiva na pesquisa e reforçou “tendências atávicas da sociedade ao eli-
com memória tismo e à exclusão social” (Furtado, 2002, p. 27).
Como sugestão de caminho metodológico para Levar em conta a formação econômica e social
análise da memória dos depoentes – que permita a do Brasil, anterior ao Golpe Civil-militar, é um impor-
reflexão sobre fundamentos da ditadura e sua vio- tante passo para que, na análise e reflexão da memó-
lência –, recomenda-se uma pesquisa histórica que ria dos depoentes, seja possível refinar a compreen-
retome as origens e o desenvolvimento das estrutu- são da experiência das vítimas, bem como identificar
ras sociais e econômicas de dominação no Brasil. O e pensar as peculiaridades desse acontecimento em
amplo conhecimento das raízes históricas brasileiras um âmbito político.
– assim como o aprofundamento nas características O aspecto da elaboração política dos danos da
constitutivas próprias do regime civil-militar brasi- ditadura a partir da análise e reflexão sobre a memória
leiro – permite alcançar maior clareza na compreen- não parte de uma proposta de amostragem, tampouco
são da inserção da ditadura e suas ações no percurso busca apurar o caráter de veracidade das informa-
deste processo histórico. Mas, sobretudo, é essa rela- ções fornecidas, mas busca ter acesso à experiência de
ção que permitirá pensar as condições que funda- quem viveu durante o período da ditadura militar, com
mentam a possibilidade de um fenômeno como a as afetividades e emoções que os dados e relatórios de
ditadura e a intensa repressão que se passou. Pensar época não podem transmitir. Recorrendo às palavras
o fundamento da dominação é essencial como repa- de Bosi (2009), concordamos que “este registro alcança
ração coletiva dos danos da ditadura e para que essa uma memória pessoal que, como se buscará mostrar, é
violência estanque e não se repita. também uma memória social, familiar e grupal” (p. 37).
A desigualdade corresponde a um fato históri- Para Arendt (2003), somente o homem é capaz
co-político anterior ao capitalismo e nele renovado. de se relacionar e exprimir a igualdade e a diferença.
Fomos precedidos por sociedades que admitiam solu- E somente o homem, por meio da ação e discurso,
ções pela monarquia, oligarquia, escravismo e servi- pode comunicar a si próprio, e não apenas comunicar
dão. O poder ficou confundido com a força de alguns, alguma coisa ou necessidade:
a força de comandar e coagir, a força que se tornou
força econômica e força armada (Gonçalves Filho, “Na ação e no discurso, os homens mostram
2004). As ações do regime autoritário aprofundaram quem são, revelam ativamente suas identidades
as marcas da concentração de renda e desigualdade pessoais e singulares, e assim apresentam-se ao
social, contribuindo para a intensificação da concen- mundo, [...] na conformação singular do corpo e
tração econômica e de poder nas mãos de uma elite no som singular da voz” (Arendt, 2003, p. 192).
minoritária. Para Furtado (2002), “o autoritarismo
político, que a partir de 1964 neutralizou por duas No discurso, o homem não revela apenas quem é
décadas todas as formas de resistência dos excluídos, e a constituição de suas relações, mas também o con-

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texto no qual está inserido e sua compreensão deste. novos modos de ser e reorganizar a cultura. Enquanto
Em outras palavras, na fala, o mundo se revela em conversa que se mantém viva, reparar os danos possi-
sua rede de significações compartilhadas. Nos depoi- bilita que uma ditadura como a que vivemos e golpes
mentos das vítimas, portanto, deve-se explicitar não antidemocráticos não se repitam mais.
somente a constituição deste imaginário da socie- O direito à verdade é o direito à democracia.
dade, todo o contexto político e social no qual a expe- É direito ao diálogo, à escuta e à voz do cidadão. É
riência lembrada aconteceu, como também revelar o poder construído na pluralidade do humano, na
quem são estes cidadãos. convivência entre diferentes, é o poder que surge da
Uma análise desta base material, que emerge da igualdade de direitos entre os homens e da liberdade.
memória dos depoentes, é o substrato para que os Com base no pensamento de Hannah Arendt, ouça-
fundamentos das relações de dominação na ditadura mos Gonçalves Filho (2004) sobre a verdade, em seu
e a violência do período possam ser pensados e elabo- entendimento político:
rados. Mas pensar estes fundamentos não é um pen-
sar isolado, é imprescindível que este pensar seja uma “resultado crescente e nunca terminado do diá-
conversa. A conversa, no sentido pensado por Arendt logo entre cidadãos. [...] A verdade imanta acordos
(2000), é a troca entre o pensamento de um com o ou desacordos entre as primeiras opiniões cru-
pensamento do outro. Na conversa cada um é tocado zadas. Conduz, sem parar, a um ponto cada vez
e transformado pelo pensamento e opinião do outro. maior e mais complexo, porque alcança, reúne e
A conversa coloca a alternância dos interlocutores, os supera pontos de vista particulares” (p. 26).
sentidos e novos sentidos vão e vêm e se constroem no
respeito às opiniões alheias (Gonçalves Filho, 2004). Lutar pelo direito à memória, verdade e justiça é
O exercício do pensar e a troca pela conversa lutar contra o esquecimento. É tarefa de todo cidadão
possibilita um deslocamento do lugar familiar. Abre a brasileiro. As marcas produzidas pela ditadura afeta-
possibilidade de se fazer uma experiência, isto é, ser ram e afetam toda população: os que foram persegui-
tocado por algo que nos vem ao encontro, ser atra- dos pelo regime, os que se calaram, os que seguiram
vessado e transformado por uma outra compreensão. sua vida como se nada acontecesse e também aque-
A conversa põe em movimento a essência do pensar les que, muito depois, já nasceram em uma história
compartilhado e rompe com o instituído, podendo obscurecida pelos véus do silenciamento, sobre as tra-
inaugurar novos sentidos e visões de mundo, alargar mas ocultas que continuam à espreita, exercendo sua
as compreensões sobre a cidade, sobre as relações de força e violência.
uns com os outros e inaugurar novos modos de ser. Aprendemos com Bosi (2003) que
O direito à memória e à verdade são peças cen-
trais no processo de reparação e elaboração das marcas “quando as relações, as leis do sistema, não
deixadas pelos vinte e um anos de regime autoritário. são evidentes, ficam em nosso conhecimento
Reparação nunca pode ser entendida como um ponto lacunas entre a ação e a consequência. Com-
final que reinstala um esquecimento, mas como pro- preender a ação social nos torna participantes
cesso, conversa perene, algo que mantém viva a lem- inteligentes desse campo mutuamente compar-
brança de uma história que não pode ser esquecida. É a tilhado” (p. 118).
conversa pensante e constante sobre os fenômenos que
marcaram a ditadura e a violência do regime, que não O esquecimento obscurece o campo social, o
permite que a história de dominação e violência caia no campo da experiência compartilhada e política. As
esquecimento e impeça que, mais uma vez, os mesmos memórias esquecidas e tamponadas pela história
fundamentos atuem cegamente na população. dominante continuam a atuar silenciosamente no
Reparação é ponto de partida para um outro subterrâneo (Pollak, 1989). O esquecimento é a maior
modo de pensar a sociedade, um início de novos arma a favor da manutenção do status quo e da per-
modos de relações, uma vez que ficaram explícitos os manência das marcas produzidas pelas diversas vio-
desdobramentos do modelo antigo. Significa manter lências perpetradas à sociedade durante a ditadura.
politicamente viva a memória daquilo que somos e Lutar pelo direito à memória, verdade e justiça é lutar
do que podemos fazer uns com os outros, possibilitar contra o esquecimento!

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 103-115.

Considerações finais Apesar da atmosfera de obscurecimento, alguns


As ações do Estado durante ditadura civil-militar núcleos da Psicologia e algumas organizações sociais
imprimiram marcas profundas na história do Brasil. ativas nunca adormeceram ou silenciaram sua luta
Marcas estas que permanecem arraigadas na estrutura pelo direito à memória, verdade e justiça. Estes
social, econômica e trabalhista do país, não restrin- núcleos, nunca deixaram de lado os esforços pela ela-
gindo seu impacto à vida daqueles que foram presos, boração dos danos produzidos pelo regime autoritário.
perseguidos, torturados ou tiveram familiares nestas Elaborar é antes de tudo dar voz e reconhecimento ao
condições, mas atingindo também a todos brasileiros. sofrimento. Dar um lugar ao sofrimento e escutá-lo. A
As marcas da ditadura permanecem na memória partir deste lugar pode surgir questionamento, crítica
individual de quem foi vítima da força autoritária do e ações. Mas a elaboração não pode circunscrever sua
Estado e daqueles que, em algum momento, sentiram ação “apenas” ao caráter psicológico das vítimas dire-
medo, sufocamento, impotência ou revolta com o que tas do regime. A violência da ditadura é um problema
se passou; e permanecem também na memória cole- político, e como tal, uma elaboração dos danos deve
tiva de uma sociedade que foi forçada a silenciar mais necessariamente ser enfrentada psicologicamente,
uma vez, mesmo terminada a ditadura. mas também politicamente. É importante ressaltar que
O fim do regime militar foi caracterizado por mais nenhuma das possibilidades de elaboração é completa
uma violência social. A imposição do autoperdão aos e se esgota em si, mas devem complementar suas ações
torturadores e assassinos do regime, o não reconheci- nos aspectos políticos e psicológicos.
mento pelo Estado da tortura e de sua responsabilidade Iniciativas como as Clínicas do Testemunho
nos crimes, bem como as barreiras para averiguação (2013–2016) e a Comissão Nacional da Verdade (2012–
das violências cometidas e silenciamento das vítimas 2014) são de significativa importância na tarefa de ela-
criaram uma atmosfera de obscurecimento e esqueci- boração individual e coletiva dos danos produzidos
mento forçado. O processo de Abertura “lenta, gradual pela ditadura. Além da importância na apuração dos
e segura” promovido pelo regime impediu que o Estado crimes da ditadura, as comissões da verdade também
democrático se consolidasse, conservando até hoje são parte do reconhecimento público do Estado da
marcas do autoritarismo em sua estrutura debilitada. sua responsabilidade nas ações do regime autoritário.
Apesar do longo atraso e de haver ainda extenso Outra possibilidade apresentada, a pesquisa com
caminho pela frente em diversos âmbitos, pela primeira memória em Psicologia Social, por ser uma prática que
vez o Estado financiou ações visando a apuração (mesmo atua numa região fronteiriça entre os modos de ser
que parcial) dos crimes da ditadura, ações de reparação individuais e sociais (políticos), também tem um papel
financeira (desde 1995) e psicológica às vítimas e fami- importante na possibilidade de elaboração dos danos
liares (2013–2016). Pela primeira vez houve um esforço da ditadura. O trabalho ombro a ombro com a memó-
real do Estado em direção ao direito à memória e ver- ria das experiências das vítimas da ditadura pode abrir
dade, em direção ao combate do esquecimento institu- a possibilidade de elaboração dos danos no caráter
cionalizado imposto com a redemocratização – exceto individual do depoente, como também a memória
no campo da justiça, onde os avanços foram ínfimos. pode trazer uma base concreta de material para refle-
Hoje, o Brasil é o país da América Latina que mais abriu xão compartilhada e elaboração em seu caráter polí-
seus arquivos à população4, sendo que boa parte já está tico e social. A evocação da memória traz à tona toda
disponível para consulta na internet. No entanto, com o rede de significado na qual se constituiu a experiência
impeachment de 2016, estas medidas de reparação e ela- e abre à rearticulação de sentidos. No desvelamento
boração dos danos da ditadura sustentadas pelo Estado dessa significância, desvela-se também o fundamento
foram extintas, voltando às mãos das poucas organiza- no qual se assentam e determinam a compreensão de
ções sociais capazes de levantar recursos privados para si e as possibilidades cotidianas. O trabalho do psicó-
a manutenção parcial de seus trabalhos. logo social a partir da memória da ditadura visa trazer

4
Informação amplamente debatida por historiadores de todo o Brasil na III Jornada de Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos
(2015), organizada pelo Arquivo Público do Rio Grande do Sul (Apers) em Porto Alegre-RS. Parte dos arquivos considerados mais impor-
tantes para averiguação da ditadura ainda permanecem fechados ao acesso: arquivos das Forças Armadas e os documentos secretos e
ultra-secretos do Governo. Episódios e personagens significativos da história do golpe de 1964 e do regime civil-militar no Brasil vieram
ao conhecimento público graças à liberação de documentos oficiais dos EUA e da CIA relativos ao período.

112
Jardim, L. E. F. (2017 ).Psicologia Social e Pesquisa com Memória.

ao diálogo pensante os fundamentos da barbárie. Uma dura. Lutar pelo direito à memória, verdade e justiça é
escuta à voz do cidadão. E assim, contribuir democra- lutar contra o esquecimento. Elaboração é o ponto de
ticamente para a constituição do poder construído na partida para um outro modo de pensar a sociedade,
pluralidade do humano, na convivência entre diferen- a inauguração da possibilidade de não repetição.
tes, é o poder que surge da igualdade de direitos entre A memória mantém politicamente vivo aquilo que
os homens e da liberdade. somos e o que podemos fazer uns com os outros, pos-
O direito à memória, verdade e justiça são ele- sibilitando novos modos de ser, mas, sobretudo, que
mentos centrais para que haja uma elaboração polí- novos golpes e uma ditadura como a que vivemos não
tica e psicológica dos danos produzidos pela dita- se repitam mais.

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Luis Eduardo Franção Jardim


Doutor em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo, São Paulo – SP. Brasil. Professor de Gestão de Políticas
Públicas na Universidade de São Paulo.
E-mail: luisfjardim@yahoo.com.br

Endereço para envio de correspondência:


Rua Capote Valente, 1394. CEP: 05409-003.
São Paulo – SP. Brasil.

Recebido 30/06/2017
Reformulado 02/10/2017
Aprovado 04/10/2017

Received 06/30/2017
Reformulated 10/02/2017
Approved 10/04/2017

Recebido 30/06/2017
Reformulado 02/10/2017
Aceptado 04/10/2017

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Jardim, L. E. F. (2017 ).Psicologia Social e Pesquisa com Memória.

Como citar: Jardim, L. E. F. (2017 ). Psicologia social e pesquisa com memória: método e
reparação de danos da ditadura civil-militar. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 103-115.
https://doi.org/10.1590/1982-3703080002017

How to cite: Jardim, L. E. F. (2017). Social psychology and memory research: method and repair
for damages of the civil-military dictatorship. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 103-115.
https://doi.org/10.1590/1982-3703080002017

Cómo citar: Jardim, L. E. F. (2017). Psicología social e investigación con memoria: método y
reparación de los daños de la dictadura cívico-militar. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 103-115.
https://doi.org/10.1590/1982-3703080002017

115
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 116-132.
https://doi.org/10.1590/1982-3703090002017

Análise Reparável e Irreparável: o Conceito Psicanalítico


de Reparação na Agenda da Transição Brasileira

Rafael Alves Lima


Universidade de São Paulo, SP, Brasil.

Resumo: O presente trabalho visa estabelecer uma reflexão crítica acerca do emprego do
conceito psicanalítico de reparação pela agenda da Justiça de Transição no Brasil. Por meio
de uma recuperação da gênese do conceito de reparação em psicanálise, primeiramente é
retomado o princípio norteador da reparação em referência ao conceito do trauma em Freud e
em Ferenczi, para então lançar luz sobre Klein e a tradição do pós-kleinismo que consagrariam
o conceito de reparação em psicanálise, matizando diferenças em relação à perspectiva da
irreparabilidade em Lacan. Posteriormente, discute-se os modos pelos quais a dimensão
reparatória se destina à história, na medida em que o reconhecimento social da experiência
traumática se torna possível pela função do testemunho, expediente por excelência de crítica ao
revisionismo. Por fim, conclui-se dispondo elementos para a proposta de reparação psíquica na
Justiça de Transição brasileira segundo o legado psicanalítico, tendo em vista a importância da
assimilação do papel do objeto em psicanálise nas diferentes matrizes que esta reflexão inspira
no que diz respeito à compreensão do tratamento analítico.
Palavras-chave: Reparação, Psicanálise, Transição, História, Brasil.

Reparable and Irreparable Analysis: The Psychoanalytic Concept


of Reparation in the Agenda of the Brazilian Transition

Abstract: This paper aims to establish a critical reflection on the use of the psychoanalytic
concept of reparation by the Transitional Justice agenda in Brazil. Through a recovery of the
genesis of the concept of reparation in psychoanalysis, the guiding principle of reparation in
relation to the concept of trauma in Freud and in Ferenczi is first taken up, to shed light on
Klein and the tradition of post-Kleinism that would consecrate the concept of reparation in
psychoanalysis, making a difference in relation to the perspective of irreparability in Lacan.
Subsequently, it discusses the ways in which the reparatory dimension is intended for history,
insofar as the social recognition of the traumatic experience is made possible by the function
of testimony, the expedient par excellence of criticism of revisionism. Finally, it is concluded by
ordaining elements for the proposal of psychic reparation in the Brazilian Transitional Justice
according to the psychoanalytic legacy, considering the importance of the assimilation of the
role of the object in psychoanalysis in the different matrices that this reflection inspires with
regard to the understanding of the analytical treatment.
Keywords: Reparation, Psychoanalysis, Transition, History, Brazil.

116
Alves Lima, R. (2017). Análise Reparável e Irreparável.

Análisis Reparable e Irreparable: el Concepto Psicoanalítico


de Reparación en la Agenda de la Transición Brasileña

Resumen: El presente trabajo busca establecer una reflexión crítica acerca del empleo del
concepto psicoanalítico de reparación por la agenda de la Justicia de Transición en Brasil.
Por medio de una recuperación de la génesis del concepto de reparación en psicoanálisis,
primero se reanuda el principio orientador de la reparación en referencia al concepto del trauma
en Freud y en Ferenczi, para entonces arrojar luz sobre Klein y la tradición del post-kleinismo
que consagrarían el concepto de reparación en psicoanálisis, matizando diferencias en relación
a la perspectiva de la irreparabilidad en Lacan. Posteriormente, se discuten los modos por los
cuales la dimensión reparadora se destina a la historia, en la medida en que el reconocimiento
social de la experiencia traumática se torna posible por la función del testimonio, expediente
por excelencia de crítica al revisionismo. Por último, se concluye disponiendo elementos
para la propuesta de reparación psíquica en la Justicia de Transición brasileña según el
legado psicoanalítico, teniendo en vista la importancia de la asimilación del papel del objeto
en psicoanálisis en las diferentes matrices que esta reflexión inspira en lo que se refiere a la
comprensión del tratamiento analítico.
Palabras clave: Reparación, Psicoanálisis, Transición, Historia, Brasil.

Introdução de sustentação da estratégia de saída do regime


As Clínicas do Testemunho, da Comissão de Anis- (a negação da existência de vítimas e a imposição
tia do Ministério da Justiça do Governo Federal, têm o do esquecimento) (Abrão, & Torelly, 2012, p. 192).
objetivo de promover a reparação psíquica das vítimas
de violações de direitos humanos ocorridas durante a Vale notar que a ênfase conferida ao caráter
ditadura civil-militar brasileira (1964–1985). Graças a estruturante e central do processo de reparação se
esta iniciativa desbravadora e pioneira na história do desdobra em duas constatações capitais: 1) a de que
nosso país, familiares de mortos e desaparecidos políti- era imprescindível reconhecer que as violações con-
cos, torturados, presos e exilados receberiam assim um tra os direitos humanos promovidas pelo Estado dita-
inédito tratamento psicológico no Brasil, com a finali- torial não eram ficções inventadas por um ou outro
dade de tratar os danos psíquicos causados pela violên- setor de nossa sociedade, mas sim que elas existiram
cia de Estado promovida no período histórico referido. concretamente; e 2) a de que as condições para con-
Tais medidas têm o nome de reparação psíquica. ferir realidade a essas existências seriam dadas pelas
Promovidas desde o interior do Estado, elas são baliza- categorias da memória e do reconhecimento.
das desde complexas zonas de fronteira entre o campo Será preciso, destarte, introduzir a interface
social, histórico e político e o campo clínico, no que se psicanalítica desta discussão desde ao menos duas
refere ao tratamento psicológico individual ou em grupo. ordens. Uma primeira é instaurar a reflexão em que
De acordo com o Presidente da Comissão da Anistia, o conceito psicanalítico de reparação vem a informar
Paulo Abraão, e com o Coordenador-Geral de Memória sobre a proposta de reparação psíquica na Justiça de
Histórica desta mesma Comissão, Marcelo Torelly, Transição. Uma segunda ordem é buscar compreen-
der como os dois conceitos, diferentes em suas ori-
o processo de reparação às vítimas foi o  eixo gens epistêmicas, convergem em uma proposta de
estruturante da justiça de transição no Brasil. [...] manifestação das experiências subjetivas na superfí-
Seu fluxo de seguimento nunca cessou e desen- cie da história. Por fim, levantaremos a tese de como a
volveu-se gradualmente, com o somatório de história, sendo então o receptáculo final dos testemu-
forças ocorrendo justamente à medida que o nhos individuais do sofrimento, acaba por ser o solo
processo de reparação corroía dois dos pilares do reconhecimento social da incidência do trauma, lá

117
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 116-132.

onde a reflexão deve se direcionar à não repetição das ência intelectual de Freud; consequentemente, é pre-
graves violações de direitos humanos do período dita- ciso compreender que, em termos da direção da cura
torial na transição para a democracia. psicanalítica, a reparação aponta para uma dimensão
intersubjetiva, uma vez que reparar-se-ia por meio do
outro, ou com o outro. Isso por si só pauta os diferen-
Raízes e ramificações do conceito de
tes programas clínicos da psicanálise e suas respec-
reparação em psicanálise
tivas concepções de transferência – ou seja, da qua-
Para qualquer psicanalista, é quase imediata a
lidade do laço entre analista e analisando. A aposta
constatação de que o conceito de reparação se tor-
transferencial, comum a todo e qualquer tratamento
nará consagrado pela psicanalista Melanie Klein, que
psicanalítico, se dá e se confirma na medida em que o
o formula com o objetivo de delinear a relação que
analista ocupa a posição de objeto para o analisando
a criança estabelece com os objetos na constituição
na condução de uma análise. No entanto, cada qual
subjetiva. A origem do conceito de reparação em psi-
dará um destino a essa premissa geral; serão as dife-
canálise remete a dois termos presentes no alemão de
rentes matrizes metapsicológicas, teóricas e epistêmi-
Freud: Wiederherstellung (restauração ou restabele-
cas que darão curso a diferentes concepções de trata-
cimento) e Wiedergutmachung (restituição ou repa-
mento e de cura, a depender da tradição psicanalítica
ração). Wiederherstellung  refere-se tanto ao sentido
a qual se está inclinado. Ou seja: muito rapidamente
médico de se restabelecer de uma doença quanto no
chega-se à constatação de que, no limite, problemati-
sentido técnico (restabelecer uma conexão perdida,
zar o conceito de reparação em psicanálise implica em
por exemplo);  Stellen no alemão remete a “lugar”,
compreender o que cada autor chama de objeto.
“posição”, enquanto a forma Herstellung significa
fabricação, produção, construção. Assim, Wiederhers-
tellung aponta para o reconstruir enquanto um pro- Método
cesso, para um “deixar em ordem novamente”. Já Wie- Sem recuar diante deste impasse, impõe-se aqui
dergutmachung significa, literalmente, “fazer de novo o desafio de apresentar minimamente este largo
o bom”: ung é a partícula, também presente no pri- panorama sob o ângulo do conceito de reparação.
meiro termo, que designa o devir, a “fazência”; mach Não obstante, todo e qualquer empenho para ope-
é “fazer”, gut é “bem” ou “bom”, enquanto Wieder é o rar distinções, promover agrupamentos e sistemati-
“de novo”. Há um sentido transitivo de “fazer o bem” zar categorias conceituais do campo psicanalítico é e
(gutmachung) que o primeiro não tem, além do sen- será, tão somente, (mais) um modo de fazê-lo. Há no
tido de restituir uma perda. Este último termo ficou campo da história e da historiografia da psicanálise
bem marcado depois da II Guerra Mundial, porque é inúmeros esforços nesse sentido com o objetivo de
como ficou conhecida a ação com a qual o governo estabelecer linhas gerais de diferenciação entre as
alemão teve de se comprometer para indenizar ditas escolas psicanalíticas, ou seja, naquilo que se
aqueles que foram atingidos severamente pelo Holo- refere ao entendimento dos motivos pelos quais uma
causto1. Ou seja, enquanto Wiederherstellen aponta determinada escola toma um certo rumo em seu pro-
para o tornar ao que era antes, ou tomar o processo cesso de teorização, enquanto outra escola escolhe
de restabelecimento como construção, Wiedergut- outro caminho. Uma vez tomados os tensionamentos
machen designa a reparação propriamente dita, no em torno do conceito de reparação como nosso eixo
que se refere a restituir algo perdido, mas levando em central – portanto, em detrimento de outros eixos
conta o que há nisso de irreparável. possíveis –, opta-se aqui pelo método da genealogia
Ou seja, já no início do presente artigo nos vemos conceitual, que busca recuperar a gênese do conceito
diante de um impasse absolutamente nobre no que percorrendo os movimentos de sua evolução em seus
se refere à conceitografia psicanalítica: primeira- diferentes usos e atributos na história da disciplina,
mente, não é possível compreender o mecanismo de bem como a serviço de que ele se presta em sua ter-
reparação sem compreender a natureza e a função do minação clínica e prática. Um exemplo que pode ser
objeto referido neste processo – contendo aqui toda recuperado na esteira deste método é O tronco e os
a variedade do uso do objeto que compõe a experi- ramos de Mezan (2014). Nele são apresentadas algu-

1
A este respeito, conferir Ludi, 2012.

118
Alves Lima, R. (2017). Análise Reparável e Irreparável.

mas hipóteses que decompõem o modelo das “rela- um acontecimento real, dentro da perspectiva deno-
ções objetais” e o modelo “estrutural-pulsional”. É a minada “teoria da sedução” – na qual o abuso sexual
chamada escola inglesa da psicanálise capitaneada cometido pelo adulto contra a criança seria deter-
pelo kleinismo, destacada nos anos 1940 do anna- minante para as afecções neuróticas –, Freud poste-
freudismo e que contempla ainda o chamado Middle- riormente abandona esta perspectiva para aceder
group, aquela ficou também conhecida como a escola a uma teorização sobre a fantasia. Assim, o trauma
das “relações de objeto”. Sob esta denominação se passa a ser concebido como um excesso de excitação
incluem movimentos díspares, desde aqueles que se subjetivamente insuportável, lá onde a experiência
colocam ao lado de uma finalidade adaptacionista do libidinal extrapola as condições de compreensão do
tratamento psicanalítico, cujas possibilidades de inte- aparelho psíquico. É justamente o caráter quantita-
gração dos elementos estranhos ao psiquismo encon- tivo que acompanha a ideia de excesso traumático
trem seu recinto no alargamento das funções do eu, que leva Freud a justificá-lo em termos da economia
até aqueles que se dedicaram à compreensão do itine- libidinal (Freud, 1917/2014). A vivência traumática se
rário do desenvolvimento emocional, da maturação torna intolerável para o repertório representacional
subjetiva e do crescimento. A experiência francesa, de que o sujeito dispõe; no momento em que ocorre,
cuja expressão maior se concentra no ensino de Jac- esta vivência do excesso não é passível de uma expe-
ques Lacan, por sua vez, se mostrou crítica em relação riência no campo do sentido, permanecendo na vida
às finalidades clínicas contidas na ideia de reparação. psíquica como uma “presença adiada” (uma criança
Analisaremos adiante como serão mobilizados sob abuso não tem condições psíquicas de entender o
conceitos diversos nestas linhagens, referidos a Freud que lhe acontece, por exemplo) –, ou seja, uma vivên-
cada qual de uma maneira, incutindo-lhe uma deter- cia intervalar no que se refere aos requisitos próprios
minada leitura, sem que uma seja “mais correta” ou do processo de significação. Será somente quando for
“mais verdadeira” do que outra, mas nos posicio- possível conferir significado e sentido à experiência
nando em relação a elas. Parte-se aqui da premissa de do excesso – em termos freudianos, quando for possí-
que o conceito de reparação não pode ser pensado, vel representá-la – que a condição traumática rigoro-
primeiro, sem mobilizar diferenças de natureza e fun- samente se instalará (lá onde tardiamente a criança é
ção do objeto, diferenças das matrizes epistêmicas capaz de reconhecer retroativamente o que enfim lhe
que dão ensejo a uma ou outra leitura do texto freu- ocorrera na situação do abuso). É por isso que, para
diano, diferenças da concepção de intersubjetividade, compreender a condição traumática no que ela tem
diferenças de programas clínicos. Ou seja, reparação de transformacional desde esse segundo momento
é um conceito tão polifônico quanto são estes que que se sobrepõe ao primeiro, Freud necessita de um
necessariamente o acompanham na diversidade da esquema com ao menos duas cenas em dois tempos
psicanálise. Não é sequer possível falar, já apontando distintos para a sua teorização do trauma: é lá quando
um paradoxo em nosso próprio título: não há um con- há recursos psíquicos para a subjetivação do trauma
ceito de reparação unívoco e contínuo na psicanálise; que ele se instala, a posteriori (Nachträglichkeit)2.
dever-se-ia, de início, ou falar no plural (“nas psicaná- Obviamente, o abuso sexual infantil não é a única
lises”), ou se perguntar com a devida franqueza: “em figura do trauma que Freud tem em vista. É deveras
qual psicanálise?”. conhecida sua experiência com as neuroses traumá-
ticas em decorrência da guerra. O choque abrupto
pelo qual passaram os soldados na Primeira Guerra
Trauma, reparação e fim de análise: de
Mundial, das neuroses de guerra. Entre 1915 (Freud,
Freud a Ferenczi, de Ferenczi a Freud
1915/2010) e 1920 (Freud, 1920/2010), Freud recon-
A concepção freudiana de trauma é tão central
figurará seu programa metapsicológico, propondo
para a psicanálise que ela se confunde com o seu
ao fim deste período sua segunda teoria pulsional,
próprio nascimento. É de Charcot que Freud retira a
pautada pela dualidade entre pulsão de vida e pulsão
ideia de “origem traumática” para pensar na causali-
de morte. Esta nova concepção do conflito pulsional
dade dos sintomas histéricos a partir da vivência do
possibilitou ao pai da psicanálise compreender como
abuso sexual infantil. Inicialmente concebido como

2
Um roteiro detalhado deste percurso no pensamento freudiano pode ser encontrado em Celes, 1999.

119
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 116-132.

o sonho traumático dos soldados de guerra insistia elemento não metabolizável pelo sujeito no reper-
em uma repetição surpreendentemente incapaz de tório representacional. Coube a ele descrever de que
dar ensejo à função onírica de elaboração. É como se, maneira a clivagem do Eu aparece como um esforço
ao retificar em partes o postulado de sua Interpreta- de sobrevivência psíquica. Dizendo de outro modo,
ção dos sonhos em que o sonho realiza um desejo e, a autotomia narcísica aparece como a descrição do
não obstante, ao desigualar o trauma do protótipo processo de clivagem: analogamente à lagartixa que
do abuso sexual tal como concebido até então, nem abandona sua própria cauda para sobreviver em uma
mesmo a condição de significação a posteriori fosse situação de perigo, o Eu se dissocia dos elementos que
possível, permanecendo o sujeito traumatizado em o compõem para permanecer subsistindo. Ferenczi
um estado de repetição contínua, na eternização do dirá: “Um novo Eu não pode ser formado a partir do
intervalo entre os dois tempos do trauma. Logo, é jus- Eu precedente, mas a partir de fragmentos, produtos
tamente porque Freud não se restringiu ao problema mais ou menos elementares de decomposição deste
do abuso sexual infantil (posto que soube extrair dele último” (Ferenczi, 1932/1990, p. 227).
as principais consequências teóricas e clínicas) que A experiência do trauma é aquela que pulveriza,
lhe foi possível expandir o horizonte da condição trau- fragmenta, estilhaça as condições integrativas da vida
mática mantendo a temporalidade que lhe é própria, psíquica. A solução somática se apresenta no retorno
mas destinando-a ao campo do que pode permanecer da sensação física angustiante que acompanha a
no campo da irrepresentabilidade (na ordem das pul- lembrança traumática. Para Ferenczi, a simbolização
sões de morte) e do que resiste à elaboração psíquica. parte dos fenômenos do corpo, posto que este é a sede
Ou seja, com a segunda teoria pulsional freudiana, e o destino do símbolo (Ferenczi, 1913/2011), como
a dinâmica das pulsões é inteiramente reformulada na conhecida alusão à criança que se põe à frente do
desde uma perspectiva no qual a pulsão de vida é Rio Sena e se espanta dizendo “Nossa, quanto cuspe!”.
representável e a pulsão de morte é irrepresentável. As possibilidades de simbolização do trauma passam
Se a pulsão de morte passa a designar a partir de 1920 pelo corpo, enquanto sede da experiência da angús-
as experiências subjetivas que se dissociam da dimen- tia, sendo a própria relação entre o corpo e o símbolo
são da representação em um vórtice que tende a um determinante para os impasses e os encaminhamen-
retorno ao estado inorgânico livre do conflito, é pre- tos da vivência traumática no psiquismo. A angús-
ciso que haja uma maneira de elaboração (e também tia traumática sinaliza o medo da loucura (Ferenczi,
reparação) do irrepresentável. 1934/2011): a clivagem constitui, portanto, uma
Ora, se é verdade que Freud nunca recuou diante defesa que, se não analisada, pode levar o sujeito ao
da pergunta: “Como então esquecer aquilo de que não que o psicanalista húngaro chamará de “progressão
dá pra não lembrar?”, desde as suas primeiras impres- traumática”, um estado constante de repetição dos
sões sobre o trauma sexual até as decisivas impressões mecanismos de fragmentação da vida psíquica.
sobre as neuroses de guerra e à segunda teoria pul- Há ainda uma restituição da temática do aconte-
sional, cria-se na tradição psicanalítica uma discus- cimento real do trauma em Ferenczi; ele não retorna
são a respeito do que se realiza e do que não se realiza à teoria da sedução, certamente, mas imprime em
em um percurso de análise. É acompanhando Freud sua teorização do trauma a reatualização própria do
que seu discípulo e analisando Sandor Ferenczi – cer- acontecimento real do trauma na relação entre crian-
tamente um dos autores mais brilhantes da história ças e adultos, lida sob a chave de uma “confusão de
da psicanálise – dispõe ao longo de sua obra discus- línguas” entre eles em seu ponto último de teorização
sões muito versáteis, estabelecidas ao longo de toda a do trauma. Neste texto, Ferenczi versa sobre o fenô-
sua experiência intelectual, que se debruçam sobre a meno em que a língua da ternura da criança é atra-
dimensão do trauma, suas implicações e consequên- vessada pela língua da paixão3 do adulto. Nota-se
cias. O psicanalista húngaro pôde abrir outras pers- aqui que não há uma recuperação simples e inadver-
pectivas para a compreensão da condição traumática tida do protótipo do abuso sexual infantil para todo
que levarão às últimas consequências a dimensão do e qualquer pensamento sobre o trauma em psicaná-
não integrável ao psiquismo, sendo o trauma aquele lise. Há sobretudo uma forma de alçar a dissimetria

3
Paixão aqui compreendida enquanto excesso. A este respeito, conferir Osmo e Kupermann (2012).

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Alves Lima, R. (2017). Análise Reparável e Irreparável.

da experiência traumática definitivamente para além zir a questão do fim da análise na história da psica-
da realidade material ordinária (a ocorrência real do nálise, mas o faz com alguma reserva. Não seria jus-
abuso) em direção à realidade psíquica, na materia- tamente esta finalidade da cura analítica proposta
lidade própria do campo da linguagem. Dizendo de por Ferenczi uma espécie de “protoconceituação” da
outro modo: Confusão de língua entre os adultos e a noção de reparação ou, ao menos, a primeira grande
criança (Ferenczi, 1933/2011) é provavelmente o texto aposta em sua positivação? Aquela que consagrará
que satisfatoriamente “quita a dívida” do protótipo definitivamente o conceito de reparação em psica-
do abuso sexual infantil na concepção do trauma em nálise será, como já anunciamos anteriormente, sua
psicanálise para, enfim no campo da linguagem, pen- analisante, Melanie Klein. A ela nos caberá perguntar:
sa-lo em sua dimensão intersubjetiva – tão necessá- o que repara, afinal, uma análise?
ria para as inquietações próprias à clínica do trauma.
Não será por outro motivo que este autor é hoje con- Reparação e sublimação: Melanie Klein e
siderado como “pai” da atenção conferida pela psica- a tradição inglesa da psicanálise
nálise às dimensões da intersubjetividade; graças às Ao longo de três décadas de experiência intelectual
suas inflexões teóricas, a partir de Ferenczi tornou-se e clínica, Melanie Klein foi a responsável por tornar fac-
imprescindível a necessidade de tornar a técnica psi- tível a clínica psicanalítica com crianças. Coube a ela,
canalítica mais “elástica”. analisada por Ferenczi e encorajada por ele a prosse-
Uma análise, portanto, estaria a serviço de uma guir nas investigações clínicas do tratamento de crian-
tentativa de reunificação dos fragmentos clivados ças, desbravar este campo fértil e promover as técnicas
do eu. A aposta nesta possível reunificação em uma adequadas para tal. Antes mesmo de nos debruçarmos
síntese psíquica é assegurada pela simbolização par- sobre a especificidade do conceito de reparação na obra
tilhada na experiência analítica, que depende funda- kleiniana, será preciso apresenta-la ao lado de uma
mentalmente da disposição do analista à empatia, noção que lhe é suplementar, que é a de restauração.
ao tato e ao sentir-com (Einfuhlung). A importância Na segunda parte de A Psicanálise de crianças
da empatia reside fundamentalmente no fato de que (Klein, 1932/1997), restaurar e reparar acompanha o
a análise deve não se esgotar na repetição eterna da movimento da criança em direção ao seio materno em
experiência traumática. Logo, será a técnica psica- termos de ataques sádicos e destrutivos. Levada pela
nalítica que será interpelada a partir dos impasses ansiedade que caracteriza a experiência subjetiva do
de uma paradoxalidade radical: se a repetição, cujo bebê pela exigência implacável de dar destino à pulsão
motor desde Freud é a pulsão de morte, é convo- de morte, inicia-se o intrincado processo de constitui-
cada a se reatualizar na situação transferencial, então ção das relações objetais: “podemos talvez dizer que
como a transferência ela mesma não estará fadada a a relação do sujeito com a realidade externa exprimi-
um giro infinito e indissolúvel em torno do impossí- ria, em última instância, sua constituição pulsional
vel simbolizar, do impossível integrar? Torok afirma: agressiva” (Caropreso, 2015, p. 395). A agressividade
“se seus tormentos não relaxam, apesar dos sofrimen- gera um curto-circuito em que a ameaça de destrui-
tos causados, é que neles revive o desejo com relação ção do objeto se reverte em ameaça de autodestrui-
ao objeto e que, neles, ele se satisfaz” (Torok, 1995, ção, caracterizando o tom persecutório da fantasia
p. 231); saciado em uma “regressão alucinatória”, o primitiva da criança. Segundo ela, a possibilidade de a
encontro entre o desejo e o objeto pode estar fadado criança restaurar o objeto danificado ou retalhado em
à repetição. Ora, o antídoto contra este curto-circuito sua fantasia destrutiva é aquilo que poderá oferecer
da repetição do trauma na transferência é a presença uma relação mais integrada com o objeto. Ao longo da
empática do analista: é a capacidade de sentir-com década de 1930 e nos anos seguintes, em que a psica-
que se apresenta como determinante para garantir a nalista receberia em seu consultório casos em que o
sobrevivência de um psiquismo estilhaçado. Ferenczi, comprometimento psíquico era crescentemente mais
em sua Questão de fim de análise, não deixa de ser oti- grave, ela centralizará em sua teorização o processo
mista: não deveria, ao fim e ao cabo de um processo de reparação. Em textos centrais para a compreen-
de análise, haver restos no fim da análise. Freud, por são dos desenvolvimentos do pensamento kleiniano
sua vez, em Análise terminável e interminável, rende como Uma contribuição à psicogênese dos estados
homenagem ao pioneirismo de Ferenczi de introdu- maníaco-depressivos de 1935 (Klein, 1935/1996) e

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 116-132.

O luto e suas relações com os estados maníaco-depres- Wiederherstellung e Wiedergutmachung em sua lín-
sivos de 1940 (Klein, 1940/1996), o conceito de repa- gua mãe. É deste modo que a condição de “fazer de
ração passará a se tornar proeminente para sinalar “o novo o bom” na reparação é que a criança esteja na
reconhecimento de responsabilidade pelas depreda- posição depressiva, na qual a criança após os 6 meses
ções da agressão fantasiada: o portão para o mundo de idade configura um tipo particular de melanco-
das relações interpessoais maduras” (Dews, 2008, lia – não equivalente à definida por Freud em Luto e
p. 26). É neste sentido que reparar se coloca ao lado melancolia (Freud, 1917/2010), mas uma melancolia
do amar e do (se) culpar. Efetua-se assim a passagem “em status nascendi” (Klein, 1940/1996, p. 388). Have-
da “lei da selva” característica do primeiro semestre de ria, deste modo, um elemento obsessivo6 no processo
vida do bebê para a “lei da cultura e do social” (Cintra, reparatório, uma vez posta “a necessidade de contro-
& Figueiredo, 2004): a atividade reparatória busca inte- lar outras pessoas [...] até certo ponto explicada por
grar aquilo que ela crê estar ainda despedaçado por um impulso defletido de controlar partes do self”
conta de seus ataques destrutivos iniciais contra o seio (Klein, 1946/1991, p. 32). Ao mesmo tempo em que
materno fragmentado – objeto originário a que todo e designa um mecanismo de defesa próprio da posição
qualquer processo de reparação está necessariamente depressiva, a reparação institui a capacidade criativa
dirigido. Por um lado, a reparação decorre da restau- própria do procedimento artístico. Não será por acaso
ração no que tange o processo de constituição de uma que, em textos tardios como Inveja e gratidão, lemos
experiência de constância de objeto; enquanto pro- que “a criatividade é a causa mais profunda da inveja”
gressivamente o bebê se exonera do estado de controle (Klein, 1957/1991, p. 234): é a maneira que a psicana-
onipotente próprio da posição4 esquizoparanoide, nas lista encontra para reafirmar, à maneira de Freud, que
relações objetais totais5 ele cria condições para vir a mesmo os processos criativos são impelidos pela pul-
assumir a condição própria da posição depressiva, são de morte. Não obstante, se aquilo que ela chama
em que seio bom e seio mau se tornam, na verdade, de inveja primária implicaria uma fantasia sádica
um objeto integrado, capaz de ser simultaneamente vivenciada como profundamente perturbadora, na
amado e odiado de modo suportável. Por outro, a experiência tardia da reparação será a gratidão que
reparação é condição para a subjetivação da experiên- se apresentará como o seu correlato necessário, no
cia de culpa, uma vez que a expectativa persecutória qual a capacidade de amar é motivada pelas pulsões
de retaliação ou ataque sádico do objeto destruído não de vida; sem que a inveja da criatividade impeça mais
se confirma; sem a chancela desta espécie de vingança a própria criação, o sentimento de gratidão configura
do objeto que acossava o bebê nos períodos rudimen- o estado último de permanência e sobrevivência do
tares da vida, a conquista da distinção entre fantasia objeto bom na vida psíquica.
e realidade em termos de equilíbrio subjetivo entre Dito isso, vale ao menos apontar que o conceito
mundo interno e mundo externo imprime ao processo kleiniano de reparação ecoará em autores como Wilfred
reparatório um estado madurado de integração. Bion e Donald Winnicott. Ainda que faça pouco uso da
Esta incursão na obra kleiniana se faz necessá- recuperação do conceito de reparação kleiniano (Jun-
ria para que se possa inferir uma diferença sensível queira Filho, 2014), Bion promove o conceito de at-o-
entre restauração e reparação na obra da psicana- ne-ment (redenção, reconciliação, concórdia, também
lista. Não seria arriscado deduzir que a psicanalista, traduzido por reparação) em seu livro clássico Atenção
vienense de nascimento, tinha conhecimento da sutil e interpretação (Bion, 1991). A raiz da palavra remente à
dessemelhança que evocamos inicialmente entre religião: atonement é reparação no sentido de expiação,

4
“Posição” não se confunde com a estratégia freudiana de definição de fases do desenvolvimento psicossexual. Para Freud, a organi-
zação libidinal se dá em torno da eleição de diferentes zonas erógenas na infância para a obtenção de prazer e satisfação das pulsões
sexuais. As estratégias da criança para a obtenção do prazer se transformam de acordo com as zonas erógenas priorizadas, que por sua
vez determinam as fases pelas quais ela passa – oral, sádico-anal, fálica e genital. Já Melanie Klein define duas posições no curso da cons-
tituição subjetiva: a posição esquizoparanoide (Klein, 1946/1991) – do nascimento até seis meses em média – e a depressiva – após seis
meses de idade; sem encerrá-las em um “etapismo” em que cada estágio se obsoletaria pelo simples surgimento do estágio seguinte, a
estratégia kleiniana abre espaço para pensar a posição enquanto matriz do funcionamento psíquico, interessando mais as modalidades
de relação de objeto do que a compreensão da via direta de satisfação pulsional pela fase em que a criança se encontra.
5
A distinção entre objeto parcial e objeto total é uma das principais contribuições à psicanálise de Karl Abraham, que viria a ser o segun-
do analista de Melanie Klein. Conferir Mezan, 1999.
6
A respeito da concepção kleiniana de neurose obsessiva, conferir Klipan e Mello Neto (2012).

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sacrifício, com vistas à compensação. O jogo de palavra tituição subjetiva é encaminhado no processo analítico
que permite a Bion conceber at-one-ment – termo de de modo a ser tolerado, suficientemente suportado,
difícil tradução: unificação ou unicidade, mas também mas não solucionado, resolvido ou dissolvido.
“com-união”, “ser-um-com”, “estar em uníssono com” Obviamente, cada autor do pós-kleinismo mere-
(Bianchedi, & Bianchedi, 1998, p. 193) – indica uma ceria uma exposição de conceitos mais profunda.
reconciliação para consigo mesmo por meio da capaci- Em suma, há uma linha (um tanto tortuosa, por vezes
dade de rêverie, conceito-chave que destaca e ilumina descontínua, mas verificável) da história da psicaná-
a relação de objeto, indicando ideias como tolerância lise7, que se estende de Melanie Klein a Bion e Winnicott,
ou harmonia. bordejando outros autores do chamado middlegroup
Winnicott por sua vez, rende homenagem ao (como Michael Balint e Ronald Fairbain), até autores
conceito kleineano de reparação em A reparação em mais contemporâneos como Thomas Ogden, Chris-
função da defesa materna contra a depressão, de 1958 topher Bollas e outros. Mas, na evidente impossibili-
(Winnicott, 1958/2000), e, posteriormente, revisita-o dade de fazer isso ao menos agora, cabe retomar nosso
em Agressão, culpa e reparação, de 1960 (Winnicott, objetivo para já afirmar que na conceitografia kleineana
1960/1999). Já antes destes, o psicanalista inglês toma (e na tradição que esta instala no pós-kleinismo) o con-
distância do kleinismo para desenvolver um pensa- ceito de reparação descende não do conceito de trauma,
mento original, especialmente a partir da publicação como se poderia supor inadvertidamente, mas sim é
de Objetos transicionais e fenômenos transicionais, em formulado a serviço do reposicionamento do conceito
1951 (Winnicott, 1951/2000). É a partir deste texto que psicanalítico de sublimação. Reparação, neste sentido,
o autor inglês coloca a questão da transicionalidade, caminha lado a lado na conceitografia kleineana com
estranha ao kleinismo clássico, cujo objetivo principal a ideia de gratidão, postas as duas no horizonte da cura
é o de propiciar, por meio de um complexo processo de psicanalítica enquanto competência de ampliação do
subjetivação do par presença-ausência materna, um psiquismo no que diz respeito à capacidade de suportar
ambiente facilitador, um espaço potencial criativo para a angústia e exercer a criatividade em sua forma subli-
as relações do sujeito com o mundo. O objetivo do tra- mada. Este aspecto, para os nossos fins, é central.
tamento psicanalítico consistiria assim na restituição É possível afirmar deste modo que, ainda que
da confiabilidade no ambiente, que aqui se inscreve consagrado por Melanie Klein, o conceito de repara-
como um espaço intermediário da experiência entre ção para esta autora nos informa menos a respeito da
sujeito e objeto. O estatuto intersubjetivo da transicio- herança psicanalítica do conceito de trauma oriundo
nalidade permite que o trauma seja reconciliado com o de Freud e Ferenczi – e, portanto, menos sobre a repa-
largo espectro compreendido entre os polos da depen- ração que visa uma cura para a condição traumá-
dência e da independência subjetiva, nuançado pelas tica – do que parecem sugerir os próprios autores do
ideias de dependência absoluta e dependência relativa. pós-kleinismo, Winnicott em destaque. No entanto,
Em síntese, para Winnicott, “o trauma é um fracasso aquilo que aqui foi chamado de reticência em relação
relativo à dependência” (Winnicott, 1965/1994, p. 113). à reparação não foi alçado ao seu ponto mais radical
O que acompanha assim a experiência traumática é o na experiência inglesa. Foi preciso atravessar o Canal
que ele denomina de medo do colapso: “o medo clínico da Mancha para que a desconfiança crítica em relação
do colapso é o medo de um colapso que já foi experien- à reparação pudesse se instalar na história da psica-
ciado” (Winnicott, 1974/1994, p. 72). nálise em termos de discussão clínica e teórica, para
A significativa transformação que sofre o conceito enfim informar sobre a sua dimensão ética e política.
de reparação em Winnicott refere-se ao que ele chama
de função do paradoxo. Há uma reticência razoavel-
Lacan, o objeto a e a ética da psicanálise:
mente maior do autor quando comparada à gratidão
que clínica para uma irreparabilidade
kleiniana quanto à possibilidade de integração total do
inexorável?
objeto; por mais que o programa clínico winnicottiano
Controverso, de originalidade ímpar, Jacques
seja pautado pela ideia da regressão à dependência para
Lacan é autor indispensável e imprescindível em qual-
a restituição das falhas ambientais, o paradoxo na cons-

7
Uma apresentação coesa sobre o pós-freudismo relacionando a matriz inglesa com o cenário psicanalítico do pós-guerra pode ser lida
em Dunker, 2006a. Para uma análise mais demorada, recomenda-se o supracitado Mezan, 2014.

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quer discussão que recupere os debates mais relevantes modalidade de sua falta, o que o inscreve fun-
da história da psicanálise. Sua formação em psiquiatra damentalmente como objeto perdido; é por
marcaria desde o início a distinção de sua experiência causa de sua perda que podemos falar de objeto.
intelectual: no caso do psicanalista francês, não estava Seu estatuto é fundado retroativamente sobre o
na gênese de seus trabalhos de escuta a clínica com objeto a (Chatelard, 2005, p. 199).
crianças, mas a clínica das psicoses – em especial, a
paranoia (Lacan, 1932/1987). Isso não impedirá Lacan Não é por acaso que, em sua ontologia negativa, o
de ser em vida um “diagnosticador do presente”, para psicanalista francês pôde sublinhar ainda mais o cará-
usar uma expressão de Michel Foucault. Colocando-se ter da falta, radicalmente estabelecida, pela insusten-
na dianteira das discussões sobre a psicanálise de seu tabilidade de qualquer proposta clínica de restituí-la,
tempo, este leitor ávido dos principais periódicos de restaurá-la ou mesmo repará-la. Ou seja, Lacan recusa
psicanálise de então (e, talvez, até hoje), principal- radicalmente um programa clínico que patine indefini-
mente do International journal of psychoanalysis, mas damente nas promessas nunca cumpridas da comple-
também do The Psychoanalytic quarterly, da Revue tude e da plenitude, de unificação de um suposto objeto
française de psychanalyse e de tantos outros, Lacan dilacerado: a falta é condição implacável com a qual
esteve sempre apoiado em uma série de autores, reper- o sujeito terá que lidar pelo resto da vida, não sendo
cutindo criticamente seus pressupostos, comentando nunca e de nenhum modo tamponável. Assim sendo,
seus casos clínicos, discutindo e dedicando lições de o objeto faltante é uma espécie de pressuposto para o
seus seminários àqueles que criticava. O fôlego largo de suporte da pulsão, esvaziado de sentido em si mesmo,
suas estratégias argumentativas se deve a isso e neces- a serviço da promoção do curto-circuito desejante.
sariamente exige um caminho de reconstrução. Fala-se Na tradição lacaniana está mais em jogo a possibili-
aqui em reconstrução porque o psicanalista francês era dade de ler a relação de objeto desde a castração sim-
notadamente avesso a “revisões” da obra freudiana: a bólica, ou seja, aquela que instaura a falta fundante,
ele interessava mais o “retorno a Freud” e, conforme do que desde a frustração, imaginária, que pressupõe
suas próprias palavras, dele se fará arauto. Com sua a possibilidade de completude alienada, ou mesmo a
paradoxal “ortodoxia renovada”, ele levará ao pé da privação cuja natureza é real, o “furo”, segundo a con-
letra freudiana as condições de suas possíveis releitu- ceitografia lacaniana (Lacan, 1956-57/1995).
ras e de seus próprios reposicionamentos. A “revisão”, Logo, existe todo um programa clínico pautado
portanto, era para ele uma estratégia de esquecimento nas dimensões dos registros do Real, Simbólico e Ima-
proposital do sentido da experiência freudiana e seu ginário, que se entrelaçam nas perspectivas nuança-
motor. Assim, é possível entender por que o a-histori- das da concepção lacaniana de transferência e incu-
cismo, segundo ele, estava na América do Norte, mais tem a ideia da falta inerente ao objeto nestes registros
precisamente, nos Estados Unidos. Texto exemplar é –cada qual referido a uma espécie de falta: a frustra-
A coisa freudiana, de 1955: ao mesmo tempo em que ção, a castração e a privação. O modelo “estrutural-
criticava o neofreudismo culturalista de Karen Horney, -pulsional” de que fala Mezan se apresenta na ideia
criticava também uma preocupação hipostasiada pela de que o alvo da pulsão é a negação do objeto (Safatle,
teoria das relações objetais kleinianas e pós-kleinianas 2006). Lacan dirá: “se Freud nos faz esta observação de
sobre “o pré-verbal, o gesto e a mímica, o tom, a ária que o objeto na pulsão não tem nenhuma importân-
da canção, o humor e o con-ta-to a-fe-ti-vo” (Lacan, cia, é provavelmente porque o seio deve ser revisado
1955/1998, p. 414). por inteiro quanto à sua função de objeto” (Lacan,
Posto isso, cabe aqui apenas indicar que a pers- 1964/1995, p. 160); ou seja, a ele interessa menos o
pectiva do objeto perdido inaugura uma real diferença objeto em sua materialidade ordinária, mas sim a sua
entre Lacan e os psicanalistas das relações objetais, função, que é a de ser suporte para a circulação e cau-
sendo isso o mínimo suficiente para a nossa discus- sação do desejo em sua rotatividade.
são a respeito do conceito de reparação. Como bem Sendo deste modo o desejo fundado na falta, a
resume Chatelard, reparação do seio primevo despedaçado pelas injun-
ções sádicas destrutivas tal como a concebia Melanie
Lacan, em seu ensino, ressalta que só se pode Klein seria uma proposição de completude imaginá-
conceber o objeto se ele for apreendido sob a ria, alienada por definição, impossível de se realizar.

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Um engodo, portanto: não haveria assim uma suplan- pode-se minimamente inferir que a desconfiança e a
tação da falta; pelo contrário, há uma radicalização do hesitação de Lacan em relação a um programa clínico
confronto com a falta fundante que se apresenta como que prometa reparações plenas serve como uma adver-
projeto clínico fundamental para Lacan. O objeto por tência de ordem ética. Pois as consequências de se pen-
excelência, segundo Lacan, é o chamado objeto a, sar a reparação na finalidade da cura psicanalítica não
causa do desejo. O objeto a é o resto que escapa à sig- como um projeto adaptacionista, mas sim (e sobre-
nificação fálica; ele cria um curto-circuito no campo do tudo) desalienante, inclui o desafio ético de não recair
desejo lá onde ele se apresenta como o objeto perdido na tentação do Bem, que só conduz ao Pior (Koltai,
desde sempre. Pois é pela função de objeto que o ana- 2002). Não será por outro motivo que a heroína da ética
lista se posiciona em uma análise: é desde esta posição lacanina é Antígona. Filha do casamento incestuoso
que ele faz operar uma análise. Indo além, na propo- entre Édipo e Jocasta, na tragédia de Sófocles, Antígona
sição dos quatro discursos, o objeto a ocupa a posição é a representante do desejo levado às últimas consequ-
de agente no discurso do analista; é por “não pretender ências, na medida em que, ao tentar sepultar o cadáver
nenhuma solução” (Lacan, 1969-70/1992, p. 66), por do irmão, cujo corpo em decomposição é abandonado
não se permitir ser conduzida pelas imperícias do furor à mesma animalidade dos detritívoros que o devoram,
curandis, por não antecipar seu expediente segundo indigno aos olhos da Lei de Creonte seu tio, acaba presa
tal ou qual cartilha técnica do proceder analítico, que a e enterrada viva. Antígona para Lacan é “braba – Ela é
análise leva a cabo sua função de tratamento. Logo, não omos. Traduz-se isso como se pode, por inflexível. Quer
seria arriscado dizer que a psicanálise, segundo Lacan, dizer literalmente algo de não civilizado, de cru. [...]”
comporta algo da ordem da irreparabilidade do objeto: (Lacan, 1959-60/1988, p. 319). O que está no centro do
há de se criar uma nova relação com o desejo, despida drama de Antígona é a Até ('Aτη), que na tragédia grega,
dos anseios do “fazer-Um”, para que, se ainda quiser- que designa categorias múltiplas como a “desgraça”,
mos falar em reparação, que esta seja substancialmente a “fatalidade”, a “ruína”, mas também a “cegueira da
motivada pelo desejo, e não que tenha em suas preten- razão”, a “insensatez”. Cabe a longa citação:
sões de cura uma ortopedia do Eu. Não obstante, como
adverte Dunker, Não há ninguém para assumir o crime e a validade
do crime senão Antígona. Entre os dois, Antígona
tal conclusão não é exclusiva nem original em escolhe ser pura e simplesmente a guardiã do ser
Lacan; já a psicanálise do eu, com uma versão criminoso como tal. As coisas certamente pode-
sociológica da realidade, Winnicott, com uma revi- riam ter tido um término se o corpo social tivesse
são própria da “realidade da ilusão”, e Klein, com aceitado perdoar, esquecer e cobrir tudo com as
sua teoria da ‘realidade das relações de objeto” mesmas honras funerárias. É na medida em que
(interna e externa), conduziram-se, teoricamente, a comunidade se recusa a isso que Antígona deve
de maneira semelhante. No fundo, são todas elas fazer o sacrifício de seu ser para a manutenção
concepções que giram em torno da realidade pre- desse ser essencial que é a Até familiar – motivo,
cária do objeto (Dunker, 2007, p. 237). eixo verdadeiro, em torno do qual gira toda essa
tragédia. Antígona perpetua, eterniza, imortaliza
Aqui já parece inegável que o ponto crítico radical essa Até (Lacan, 1959-60/1988, p. 342).
quanto à colocação da reparação no horizonte de cura
se deve ao lacanismo. Ainda que se possa guardar mais Aqui a leitura lacaniana da tragédia de Antígona,
afinidade com a escola francesa, como é o caso deste cuja ética se fundamenta no não ceder do desejo lá
que aqui escreve, não se deve fazer aqui, como é de onde este exige do sujeito a violação e transposição dos
costume em tantos espaços lacanianos ortodoxos, da limites da Lei, parece encontrar a nossa temática da
conjectura do objeto uma profissão de fé antikleineana demanda por reconhecimento dos crimes perpetrados
(ou anti-inglesa), tecendo juízo de valores sobre qual pelo Estado. Não é raro que os pacientes que procuram
escola deve se sobrepujar em relação à outra – declino a reparação psíquica se encontrem em um estado de
com absoluta segurança o convite ao juízo de valores, luto interrompido em seu curso esperado, cuja incapa-
pois não é da velha e inócua “briga entre escolas” que se cidade de enterrar seus mortos esteja chancelada pela
trata aqui. Ratificando os propósitos do presente artigo, ausência sistemática do reconhecimento por parte

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do Estado. Ao restituir ao resto que não se inscreve na zir à privatização do sofrimento psíquico, elas estão
simbolização possível o lugar que lhe coube na devida no cerne da possibilidade de produzir condições de
herança freudiana, o psicanalista francês nos deixa escuta de um sofrimento que não é chancelado ou
a lição de que o ato ético é, em última instância, da legitimado enquanto tal no campo social. Ou seja,
ordem do irreparável. No entanto, irreparável não é o
mesmo que impossível. Lacan, ele mesmo costumava o desmentido do fato real [...] inviabiliza a introje-
dizer as melhores compreensões sobre a dimensão do ção, a inscrição psíquica de todo evento traumá-
impossível não se dão ao tomá-las pela negação que tico, restando somente para o sujeito ferido uma
lhe é própria. Logo, compreender o que é possível res- vivência sensorial, inacessível à memória e à pala-
peitando a inexorabilidade do impossível reparar nos vra, porém existente. O desmentido, que impede
leva à discussão sobre a inscrição do acontecimento na a representação do acontecido, é a causa primor-
rede de reconhecimento socialmente partilhada a que dial para que o trauma se torne desestruturante,
podemos chamar História. atenta contra o eu do sujeito, colocando em ques-
tão o jogo das identificações (Uchitel, 2001, p. 87).
Permeabilidades da História ao caso:
o testemunho enquanto combate Ou seja, aquilo que permanece como desmentido
ao revisionismo (Verleugnung) e que não se inscreve simbolicamente
Parte-se aqui do pressuposto de que a historio- em um sistema representacional por meio do qual os
grafia da psicanálise deve se haver com a permeabi- indivíduos de uma determinada sociedade podem se
lidade ao caso clínico enquanto um acontecimento fazer reconhecer uns pelos outros retorna sistemati-
singular. Há uma dimensão na qual a reunião de casos camente como sintoma, não apenas no corpo e no
faz arquivo, justamente por poder potencialmente psiquismo individual, mas também no sofrimento
produzir verdades desde sua permanência e consoli- compartilhado de uma história denegada.
dação na cultura e na sociedade por uma política de Há algumas passagens que precisam ser traba-
memória. Ora, é esta a situação que tensiona, de um lhadas para a formação deste arquivo. Uma primeira
lado, aquilo que é próprio do exercício clínico, cujas passagem fundamental é a da escuta, incumbência
bases residem na possibilidade de o paciente presenti- propriamente clínica do psicanalista, para a escrita,
ficar uma experiência passada – no tempo ulterior por função dramática na qual, como afirma o psicana-
definição do trauma em sua radical singularidade –, lista André Green, “qualquer que seja ele [o objetivo],
a fim de abrir, pela fala e pela palavra, novas formas o autor analista está diante da folha em branco” (Green,
de significação da experiência; e, de outro lado, aquilo 1992, p. 168). A escrita, outro conceito nobre em psi-
que é próprio da história, que, desafiada pela expe- canálise, é compreendida aqui como uma tradução
riência singular, deve se prestar a contínuos reposi- narrativa à luz da teoria de uma determinada experi-
cionamentos e transformações diante dos aconteci- ência de atendimento que se deu em um número de
dos relatados. A história a longo prazo é interpelada sessões dispostas ao longo dos anos. Por conseguinte,
pelos acontecimentos; são estes que podem de fato essa escrita se transformará em relato de caso, capaz
remodelar a compreensão geral de  como nos torna- de expor os avanços ocorridos durante o tratamento;
mos o que hoje somos. Logo, “o trabalho de exumação as diversas escritas de caso, no plural, serializadas e
de arquivos capaz de conceder privilégio à dimensão sequencializadas, dão origem a um acervo ou um catá-
do acontecimento tem por objetivo possibilitar uma logo, reunindo assim um trabalho comunitário à dispo-
história com sujeitos falantes” (Lima, 2015, p. 115). sição pública de quem vier a consultá-lo em pesquisas
Uma história de violações sistemáticas de direitos universitárias, exercícios de reflexão clínica e formação
humanos, como a que ocorreu em nosso país, acaba de políticas públicas de saúde, para promover o avanço
por se tornar o solo do silêncio de nossa história não qualitativo de uma práxis. Portanto, do curso da escuta
contada. Por mais contra intuitivo que possa parecer à constituição de um arquivo sensível que se anseie ou
a princípio demandar tamanha responsabilidade das que se almeje patrimônio público, há uma apreciação
terapêuticas “psi” (em especial as de orientação psica- que se dá graças a um processo minucioso de elabo-
nalítica, como é o caso das Clínicas do Testemunho), ração, no qual a experiência possa vir a ser posterior-
a aposta é mantida porque, muito longe de se redu- mente replicada em instâncias diversas.

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Alves Lima, R. (2017). Análise Reparável e Irreparável.

No horizonte destas instâncias, deve-se ter per- Testemunho, é indispensável fecundar a sua correlata
manentemente em vista a criação de políticas públi- instalação na pólis. Sublinhar que “é a pressão social
cas em saúde mental que sejam apropriadas para que alimenta a agenda da justiça transicional” (Abrão,
cumprir e executar esse ofício. Penso assim que a 2011, p. 196) é sublinhar o modo pelo qual se infor-
composição de tal arquivo sensível é uma das tarefas mam mutuamente as Clínicas do Testemunho, com
fundamentais do exame a ser realizado pelas Clínicas o seu louvável pioneirismo de reconstruir a posteriori
do Testemunho nesse período atual – algo próximo os não ditos intersubjetivamente partilhados, e as exi-
dos Livros dos votos da Comissão de Anistia, exemplo gências de uma Justiça de Transição, agenda política
bem-sucedido do que deve ser a montagem de um responsável pela consolidação decisiva de um estado
arquivo, compilando os processos jurídicos de retra- democrático de direito.
tação promovidas pelo Estado entremeados a um Quero crer que a reforma das instituições perpe-
“mosaico de casos individuais” (Abrão, 2013, p. 18). tradoras das violações contra os direitos humanos, um
Todavia, é preciso ir além e indagar como imprimir dos pilares fundamentais da Justiça de Transição, tam-
a tonalidade de testemunho analítico a um arquivo bém há de ser pautada pelo trabalho realizado pelas
sucedâneo a este. Tal justificação só será possível se Clínicas do Testemunho. O desencontro entre a expe-
considerarmos que as ações de políticas reparatórias riência do trauma vivenciado por aquele que sofreu
promovidas pelo Estado estão situadas em uma zona violações fundamentais de seus direitos humanos e a
de compromissos entre urgências sociais, históricas, chance de seu recolhimento em uma política que preze
políticas e clínicas. Uma terapêutica capaz de promo- pelo direito à Memória, à Verdade e à Justiça se dá em
ver uma reparação psíquica à altura do sofrimento uma complexa gramática do reconhecimento. Não ter
que lhe é demandada deve ser um exercício ético não a sua história reconhecida pelo Estado é entrar em
conivente com as práticas de tortura e de violações permanente estado de repetição social da experiência
de direitos humanos constitucionais, como o é, por traumática, que, do lado do sujeito, gira em torno de
exemplo, o direito à palavra – que, não por acaso, é um sofrimento que não circula pelo Outro, e, do lado
também instituinte última da regra fundamental da do Estado, mantém seus pontos cegos à custa de tan-
psicanálise, a chamada associação livre. Se é necessá- tas outras vidas traumatizadas, sofridas e silenciadas,
rio manter o estado de liberdade indispensável para mesmo quando em continuidade com o nosso período
que o paciente diga o que lhe vier à cabeça e ressigni- democrático. Sabe-se que as estratégias de manuten-
fique sua trajetória de vida, essa liberdade não pode ção do silenciamento do sofrimento, seja individual
ser de outra ordem que não aquela garantida pela ou coletivo, são mantidas ao longo da história de um
política. Ademais, não seria arriscado afirmar que, país pela sua negação sistemática. O custo psíquico e
estando suspenso o direito político à palavra, o pilar social desta manutenção pode ser aproximado em um
ético fundamental da psicanálise se encontra amea- plano geral ao que Axel Honneth chama de “patologia
çado de extinção (Roudinesco, 1995). do social”: “Eu descrevo como patologias sociais as
É bem verdade que partimos aqui da tese de que deficiências sociais no seio de uma sociedade, as quais
o estado democrático de direito garante (de algum não decorrem de uma violação dos princípios de jus-
modo, mas nem em todos os casos) a sobrevivência tiça comumente aceitos, mas de danos às condições
da psicanálise – e isso é a própria história da psica- sociais de auto-realização individual” (Honneth, 2006,
nálise quem prova. Não obstante, só se pode falar em p. 35). É ainda nessa mesma esteira, ainda que com
reparação psíquica na medida em que o que está em expedientes epistêmicos dessemelhantes, que se pode
jogo no horizonte da cura psicanalítica é o inverso à falar em “sintoma social”: “se a tortura separa corpo e
adaptação do sujeito ao meio social. Em outras pala- sujeito, cabe a nós assumir o lugar de sujeito em nome
vras, o compromisso mais substancial da política da daqueles que já não têm direito a uma palavra que os
escuta analítica é com a suspensão da perspectiva represente” (Kehl, 2010, p. 131). Deve-se pensar assim
de ajuste dos desviantes à norma. Permanece assim na dupla função que exerce o trabalho propriamente
o desafio de manter unidos o dever ético de alavan- psicanalítico do testemunhar: a dupla função, entre o
car a palavra testemunhal no interior do trabalho de público e o privado, de fazer valer o que há de comu-
escuta para além do espaço supostamente privado em nitário no trauma singular bem como o que há de sin-
que ela ocorre; ou seja, no expediente das Clínicas do gular no trauma comunitário. Serão estas articulações

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que justificam a presença da escuta analítica na fun- uma tese), serve-nos aqui para demonstrar a nobreza
ção do testemunhar: “a aniquilação do testemunho, dos desdobramentos conceituais aqui envolvidos.
da palavra em busca de si, que persegue a própria dor Sem o objetivo de tê-los esgotado, mas pensando
quando seria plausível fugir dela, não é a ausência sobretudo em produções e desenvolvimentos futuros,
do que dizer, mas não ter quem escute o que se pode parece-nos já possível concluir sobre quão ingênuo
dizer” (Endo, 2009, p. 55). do ponto de vista do rigor epistemológico poderia
Longe de ser um procedimento de enunciação de ser sobrepor concepções de reparação tão díspares já
caráter utilitário, fiel e restrito à ordem dos aconteci- dentro da própria psicanálise – o que dizer então de
mentos, o testemunho fratura o chão duro da história incluir, mais ainda, a proposta da reparação psíquica
estritamente factual, traumatizando-o. O efeito que a vinda de fora de seu campo conceitual de origem?
palavra testemunhal provoca em termos de aparição Para que haja efetivamente uma clínica psicana-
da experiência subjetiva subjacente à violência polí- lítica voltada ao atendimento das vítimas de violência
tica é de denúncia e de revelação. Contumaz por voca- de Estado (de ontem e de hoje), é preciso informar ao
ção, articulador de regimes de verdade por definição, Estado a conjuntura da discussão sobre reparação no
o testemunho é capaz de exceder as catástrofes políti- campo psicanalítico. Nele – espero que a esta altura do
cas por ser, ele próprio, a resistência ao aniquilamento texto isso esteja minimamente claro – não há uma posi-
lá onde estas se determinaram enquanto tal. A potên- ção consensual, nem mesmo entre os autores canônicos
cia do dito do testemunho é, nesse sentido, vertical- mais “semelhantes” entre si, sobre o que é reparação.
mente (no que se refere à experiência individual) e Não obstante, quisemos demonstrar como,
horizontalmente (os efeitos desta na história longitu- desde Freud, quando se trata de clínica psicanalítica,
dinal) desobjetificante. Neste sentido, o testemunho o método deve ser interpelado pelo objeto. Ou seja, a
propicia uma forma de combate ao revisionismo. psicanálise, longe de se encerrar em um mero dis-
Que ecoem aqui as palavras do filósofo alemão Walter positivo técnico replicável nas mais diversas situa-
Benjamin: “nunca houve um documento da cultura ções clínicas, tem o mérito de se reinventar a partir
que não fosse também um documento da barbárie” da particularidade de uma experiência de escuta. Ela
(Benjamin, 1940/1987, p. 225). Superar os períodos de não é imune às demandas que lhe são impostas no
violência política da história do Brasil é mais do que campo social; pelo contrário, uma psicanálise que
aplainar as camadas sucessivas do devir temporal em não se afeta por estas demandas, ou que se crê fora
uma ininterrupta retificação do passado até que nos delas, não pode ser outra coisa que não a reprodução
esqueçamos dele ao fim do processo. Pelo contrário, alienada de um suposto a-historicismo de sua práxis
a função do testemunho é, no limite, não admitir ser que não se confirma enquanto tal. Ora, penso que isso
soterrado. Não há como apagar as manchas da violên- não se dá por acaso: há uma exigência deste tipo espe-
cia, e penso que a estratégia não poderia ser essa, pois cífico de experiência de escuta nas Clínicas do Teste-
é a psicanálise mesma que ensina que a catástrofe car- munho que leva aqueles que se mostram disponíveis
rega em si a ameaça de sua repetição. Para reconhecer a pensá-las e problematizá-las à luz desta pauta.
a barbárie do passado para que ela não se reproduza Se parece claro que hoje há uma rede complexa de
no presente, é absolutamente imprescindível manter
reconhecimento, que se estende do reconhecimento
a olhos nus os vestígios do sangue espirrado pelas
do outro (psicanalista) ao Outro (simbólico, estrutu-
feridas traumáticas de nossa história, para, enfim,
ral, social, histórico), é preciso trabalhar para entender
projetar futuros outros desde as nossas cicatrizes.
como, pela via contrária, tal reconhecimento retorna
à psicanálise, com vistas à interpelação de sua práxis.
Discussão: que reparação para a Não caberia repetir o argumento datado de que a clí-
reparação psíquica? nica da reparação psíquica enquanto clínica do trauma
Essa brevíssima incursão nesses autores notáveis não deve se reduzir a uma clínica da interpretação.
para a compreensão da ordem dos conceitos psica- Temos ótimos exemplos em nossa literatura psicanalí-
nalíticos lidos sob o ângulo da noção de reparação, tica vigente sobre a reabilitação da interpretação para a
atravessada pelas diferenças metapsicológicas e clíni- clínica do trauma; Dunker (2006b), por exemplo, dife-
cas entre a tradição inglesa e a tradição francesa da rencia o trauma como desencontro do trauma como
psicanálise (que, verdade seja dita, por si só já dariam reencontro, expondo como uma clínica do trauma

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Alves Lima, R. (2017). Análise Reparável e Irreparável.

torna indispensável a tarefa interpretativa. Há nessa fundamental de perguntar de que objeto se trata na
mesma literatura vigente uma série de desenvolvimen- reparação promovida pelo processo da Justiça de Tran-
tos a respeito do estabelecimento de diferenças entre sição que se serve da psicanálise. Por exemplo, quando
uma “clínica do recalcamento” e uma “clínica da disso- se quer implantar a possibilidade de que a violência de
ciação” (Gurfinkel, 2001), que pautaria diferentes pro- Estado não se repita, é preciso reconhecer as diferen-
gramas clínicos na diferença que lhe é correlata, entre ças entre os violentados da época da ditadura e os que
“ética do cuidado” e “ética da castração” (Souza, 1998). são hoje violentados pelos agentes do Estado. Quanto à
Ora, sendo devidamente rigoroso, por mais didá- natureza e função do objeto, é preciso ao menos indicar
ticas e interessantes que possam ser, estas últimas que deve-se ir com mais cautela quanto à ideia de conti-
distinções entre clínica do recalcamento e clínica da nuidade entre “o Amarildo de hoje” e “o Rubens Paiva de
dissociação, ou entre ética do cuidado e ética da cas- ontem”. Estamos falando do mesmo objeto? Por exem-
tração, costumam recair em caricaturizações profun- plo, não é comum que de um jovem negro e periférico,
damente inconvenientes. Parece-nos urgente sair do alvo primordial da violência de Estado promovida pela
internalismo psicanalítico para compreender os efei- nossa Polícia Militar, carregue consigo uma cápsula de
tos de quando a psicanálise deve responder ao cha- cianureto no bolso para não denunciar seus pares, para
mado do Estado por ser este próprio chamado uma ter ao menos a opção de pôr fim à própria vida antes de
convocação de ordem ética e política, ao passo em revelar qualquer informação aos seus algozes. A tortura
que também não há porque não pensar que o Estado tem finalidade confessional nos dois casos? O desapare-
também não deva ouvir o que a psicanálise tem a cimento cumpre qual finalidade? Que condições para se
dizer sobre a violência de Estado. Isso exigirá uma boa inscrever simbolicamente em um laço com seus pares
vontade de ambas as partes que, no que tange à histó- tem o jovem negro periférico, de tal modo que consiga
ria da psicanálise, nem sempre houve. contemplar sua vulnerabilidade social?
Em que medida a nossa longa história de racismo,
Conclusão: reparar o irreparável? de exclusão dos negros da vida social e de criminaliza-
Ora, dificilmente qualquer psicanalista, pela expe- ção da pobreza atravessa o processo de consolidação
riência de sua clínica, advogaria em favor de uma tese e sustentação da democracia hoje? Em termos psica-
nominalista do conceito de reparação. Não há como nalíticos, poderíamos perguntar: que objeto aqui per-
não dimensionar o caráter transformacional pelo qual manece sendo denegado?
o psiquismo passa no processo reparatório. O problema Pois se há algo que possa fazer pender o irreparável
é quando o reconhecimento do processo reparatório em direção ao reparável, é o reconhecimento, aspecto
passa a ser traduzido em termos normativos ou adapta- crucial para o tratamento psíquico ou para uma cura
tivos, cujo sofrimento individual passa a ser generalizado social digna deste nome. Neste sentido, há, por fim,
ou dissolvido em uma experiência coletiva, para não uma lição positiva que a noção psicanalítica de repa-
dizer do Pior que seria silenciá-lo. Advoga-se aqui que o ração oferece à nossa Justiça de Transição: a de sempre
antídoto contra tal tradução errática é resgatar o aspecto lembrar de perguntar, afinal, de que objeto se trata.

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Rafael Alves Lima


Psicanalista, graduado em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – IP-USP. Mestre e
doutorando em Psicologia Clínica pelo IP-USP. E-mail: rafael.alves.lima@usp.br

Endereço para envio de correspondência:


Rua Capote Valente, 1229 apto 73 – Pinheiros. CEP: 05409-003.
São Paulo – SP. Brasil.

Recebido 30/06/2017
Reformulação 10/09/2017
Aprovado 18/09/2017

Received 06/30/2017
Reformulated 09/10/2017
Approved 09/18/2017

Recebido 30/06/2017
Reformulado 10/09/2017
Aceptado 18/09/2017

Como citar: Alves Lima, R. (2017). Análise reparável e irreparável: o conceito psicanalítico de
reparação na agenda da transição brasileira. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 116-132.
https://doi.org/10.1590/1982-3703090002017

How to cite: Alves Lima, R. (2017). Reparable and irreparable analysis: the psychoanalytic concept of
reparation in the agenda of the brazilian transition. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 116-132.
https://doi.org/10.1590/1982-3703090002017

Cómo citar: Alves Lima, R. (2017). Análisis reparable e irreparable: el concepto psicoanalítico de
reparación en la agenda de la transición brasileña. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 116-132.
https://doi.org/10.1590/1982-3703090002017

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 133-148.
https://doi.org/10.1590/1982-3703100002017

Reminiscências da Violência Estatal: A Reparação


Psíquica Através de uma Clínica Política

Natália Centeno Rodrigues Francisco Quintanilha Véras Neto


Universidade Federal do Rio Grande, RS, Brasil. Universidade Federal do Paraná, PR, Brasil.
Rodrigo Fernandes Teixeira
Universidade Federal do Rio Grande, RS, Brasil.

Resumo: O artigo se propõe a abordar o caminho escolhido pelo Estado brasileiro ao realizar
a transição política da ditadura civil-militar (1964–1985) para uma democracia constitucional,
focando nas práticas reparatórias adotadas até constituir o projeto responsável por fornecer
a reparação psíquica, o Clínicas do Testemunho. O caminho metodológico escolhido foi o
dialético, pois nos permite a compreensão do processo histórico em questão. Para realizarmos a
pesquisa, adotamos os seguimentos procedimentos técnicos: a pesquisa de cunho bibliográfico
e documental. Nossa abordagem se compõe de quatro momentos: inicialmente traçamos
reflexões sobre a repressão ditatorial construindo o cenário. Depois passamos a abordar como
o governo militar começou o processo transicional e quais foram os caminhos percorridos, as
possibilidades e os espaços desenvolvidos para que os afetados e a sociedade tivessem direitos
humanos respeitados e efetivados. Enfim, passamos a abordar o Clínicas do Testemunho, sede
Porto Alegre, como projeto reparatório que visa satisfazer demandas, essas de cunho individual
– centradas nas figuras dos afetados, e coletiva, que diz respeito a toda sociedade, que recalcou
esse passado autoritário. Aqui abordamos o trauma socioindividual como algo que impacta
essa clínica política realizada após um longo lapso temporal, nos propomos pensar como isso
afeta e qual a importância desse projeto centrado nos indivíduos, em suas vivências e seus
testemunhos. Assim, concluímos que o Clínicas atua como um dispositivo de reparação que
problematiza as heranças autoritárias e possibilita para os afetados um paradigma de cuidado,
no qual o acolhimento e a escuta, são peças chaves para respeitarmos a alteridade.
Palavras-chave: Ditadura Civil-Militar, Testemunho, Memória, Reparação Psíquica, Clínica Política.

Disponível em www.scielo.br/pcp
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 133-148.

Reminiscences of State Violence: The Psychological


Repair Through a Political Clinic

Abstract: The article proposes to approach the path chosen by the Brazilian state when making the
transition from the civil - military dictatorship (1964–1985) to a constitutional democracy, focusing
on the reparative practices adopted until it constituted the project responsible for providing psychic
reparation, the Clínicas do Testemunho. The methodological path chosen was the dialectic, since it
allows us to understand the historical process in question. To carry out the research we adopt the
following technical procedures: bibliographical and documentary research. Our approach is composed
of four moments. Initially we drew reflections on the dictatorial repression constructing the scenario.
Then we began to address how the military government began the transitional process and what
paths, possibilities and spaces were taken, so those affected and the society have their effective human
rights respected. Finally, we went to address the Clínicas do Testemunho, Porto Alegre headquarters,
as a reparatory project that seeks to meet individual – centered on the figures of the affected-, and
collective – related to the society as a whole, which emphasized this authoritarian past- demands. Here
we approach socio-individual trauma as something that impacts this political clinic performed after
a long time, and we propose to think how this affects and how important this project that focuses on
individuals, their experiences and their testimonies is. Thus, we conclude that Clínicas acts as a device
of reparation that problematizes authoritarian inheritances and offers a paradigm of care for those
affected, in which the reception and listening are key pieces to respect otherness.
Keywords: Civil-Military Dictatorship, Witness, Memory, Psychic Reparation, Political Clinic.

Reminiscencias de la Violencia Estatal: La Reparación


Psíquica a Través de una Clínica Política

Resumen: El artículo se propone abordar el camino escogido por el estado brasileño al realizar la
transición política - de la dictadura civil-militar (1964–1985) hacia una democracia constitucional,
enfocándose en las prácticas de reparación adoptadas hasta constituir el proyecto responsable de
proporcionar la reparación psíquica, el Clínicas do Testemunho. El camino metodológico escogido
fue el dialéctico, pues nos permite la comprensión del proceso histórico en cuestión. Para realizar
la investigación adoptamos los siguientes procedimientos técnicos: la investigación de cuño
bibliográfico y documental. Nuestro enfoque se compone de cuatro momentos. Inicialmente
trazamos reflexiones sobre la represión dictatorial construyendo el escenario. Después pasamos
a abordar cómo el gobierno militar comenzó el proceso transicional y cuáles fueron los caminos
recorridos, las posibilidades y los espacios desarrollados para que los afectados y la sociedad
tuvieran derechos humanos respetados y efectivos. Finalmente, pasamos a abordar las Clínicas do
Testemunho, sede Porto Alegre, como proyecto de reparación que busca satisfacer demandas, esas
de cuño individual - centrado en las figuras de los afectados, y colectivo, que concierne a toda la
sociedad, que recalcó ese pasado autoritario. Aquí abordamos el trauma socio-individual como algo
que impacta esa clínica política realizada después de un largo lapso temporal, y nos proponemos
pensar cómo afecta y cuál es la importancia de ese proyecto centrado en los individuos, en sus
vivencias y sus testimonios. Así, concluimos que el Clínicas actúa como un dispositivo de reparación
que problematiza las herencias autoritarias y posibilita para los afectados un paradigma de cuidado,
en la que la acogida y la escucha son piezas claves para respectar la alteridad.
Palabras clave: Dictadura Civil-Militar, Testimonio, Memoria, Reparación Psíquica, Clínica Política.

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Rodrigues, N. C., Verás Neto, F. Q., Teixeira, R. (2017). Reminiscências da Violência Estatal.

O passado ditatorial, das denúncias sobre as violações de direitos humanos


algumas reflexões introdutórias que lhe eram atribuídas, que somente na segunda
A violência aparece como matriz do pensamento metade da década de 1970 tornaram-se públicas.
autoritário brasileiro, e nos constitui antes mesmo de A tortura foi um método de aniquilação indivi-
existirmos como país. Somos sujeitos históricos mar- dual que gerou uma pedagogia baseada no medo.
cados por processos de assujeitamento e subordina- O ato de torturar nada mais é do que um exercício de
ção, um tecido social composto pelo genocídio dos poder. Poder que reflete em toda sociedade em forma
povos originários, pela herança escravocrata, pelos de medo, silêncio e indiferença em relação ao outro
arbítrios da ditadura varguista e por um passado auto- torturado. Dessa forma, vemos que a tortura é uma
ritário civil-militar, passado esse ainda recalcado pelo prática social que “é encenada a três: o poder que
corpo social. Entendemos que é necessário problema- tortura, o torturado e a sociedade” (Keil, 2004, p. 59).
tizar não só o passado ditatorial, mas principalmente No imaginário social é fácil relacionar os dois primei-
as sequelas, os entulhos e as reminiscências autoritá- ros elementos com o ato da tortura, pois estão imbri-
rias que ainda seguem afetando nossa sociedade. cados diretamente, já que vivenciam em loco o ato.
Durante a ditadura civil-militar brasileira (1964– Entretanto, a sociedade assumiu um papel – de
1985), a atuação estatal foi utilizada como um meca- telespectadora dessas atrocidades, não demons-
nismo articulado com o intuito de dizimar os oposi- trando algum tipo de afetação com os sujeitos ani-
tores, os “inimigos internos”, o aparato repressivo foi quilados e, muitas vezes, legitimando o governo ile-
estruturado de acordo com os princípios da Doutrina gítimo e dizendo que tal fato ocorrera pois havia um
de Segurança Nacional (DSN). Em síntese, Enrique motivo. Cabe uma ressalva ao falarmos do papel da
Padrós (2005) nos diz que o terrorismo de estado con- sociedade como conivente: não estamos nos esque-
siste na violência estatal, que viola o direito e extra- cendo dos movimentos que lutaram pelas liberdades
pola a legalidade constitucional. Além das vias repres- e direitos humanos durante a ditadura civil-militar,
sivas diretas, marcadas pela violação física, outros nos referimos à parcela da população que não se
mecanismos foram utilizados, como o aparelho pro- envolveu politicamente.
pagandístico, o aparato jurídico-legal, o aporte admi- Em vista do exposto, o corpo torturado sofre
nistrativo-estatal e a estrutura psicológica, todos esses marcas atrozes, inscritas pela violência, pelo medo
foram utilizados para dar suporte a atividades clan- e pelos traumas da tortura. Conforme Kehl (2004,
destinas ou não, que visavam conseguir o controle p. 11), essa vivência tem a capacidade de separar o
daqueles que o questionaram. Para isso, utilizando-se corpo e o sujeito (sujeito de vontade e ação), já que
do “medo como uma das estratégias de dominação a relação entre torturador e torturado é permeada
política” (Bauer, 2006, p. 122), o terrorismo estatal se pela linguagem, indissociável do corpo, e que man-
estendeu e atingiu toda a sociedade brasileira (Padrós, tém a relação do sujeito com o mundo das represen-
2005, p. 122-123). tações, logo, o sujeito é aniquilado integralmente
Ao tratarmos da ditadura civil-militar brasileira, perante ao laço social, ou seja, a violência ditatorial
é fundamental destacarmos o apoio dos setores civis deixa uma escritura no sujeito. Assim nos surge a
e de entidades empresariais, estes setores tornaram seguinte questão: há necessidade de o governo bra-
o terrorismo de Estado, um amplo modo repressivo, sileiro promover um projeto de reparação psíquica
similar a um sistema estatal, que não se resumiu a destinado aos sujeitos que foram afetados pela vio-
conter corpos, repreender fisicamente seus inimi- lência estatal ditatorial, mesmo passado mais de 20
gos, o que já é algo horrível e devastador. As torturas, anos do seu fim?
as perseguições deixam amplas marcas nos corpos dos Esse escrito possui como objetivos compreender
que foram violados, e foram além, marcaram integral- de que modo um projeto governamental de reparação
mente o tecido social. O medo da clandestinidade e psíquica pode e serve para atender demandas das pes-
da violência estatal funcionou como um amortecedor soas afetadas (direta e indiretamente) e do laço social;
da resistência e auxiliou a neutralizar algumas respos- analisar o modo como a sede de Porto Alegre do Pro-
tas da sociedade civil. Tais posturas colaboraram para jeto Clínicas do Testemunho realizou suas atividades
que o efeito psicológico da violência do Estado se tor- e de que forma essas sinalizam ou não a importância
nasse onipresente e anônimo, preservando o governo da existência de um projeto de reparação psíquica;

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 133-148.

rascunhar um traço sobre a herança autoritária que Psicanalítica no qual apresentou os resultados do
permanece em nossa sociedade e representa muitos projeto-piloto (2013–2015).
silêncios que não foram (re)significados. Assim, o caminho percorrido nesse escrito parte
de uma breve compreensão do contexto repressivo.
Para assim caracterizarmos como a transição polí-
O percurso metodológico
tica foi negociada, como passamos de uma ditadura
Para esse artigo, adotamos o método dialético,
civil-militar para uma democracia constitucional.
pois esse nos permite a compreensão do processo his-
Após isso, nos dedicamos a demonstrar como o pro-
tórico das mudanças e dos conflitos sociais (Gil, 1987,
cesso de reparação política ocorreu em nosso país
p. 31). Essa abordagem metodológica se mostra como
até a criação do projeto Clínicas do Testemunho que
forma pertinente de investigar a realidade e, desse
estabeleceu uma ruptura dentro de tais práticas, pois
modo, nos possibilita compreender como, passadas
possibilita romper com a figura do sujeito silenciado
quase três décadas do fim da ditadura civil-militar,
ao abordar as vivências individuais frente ao terro-
o Estado brasileiro estabelece parceiras com socieda-
rismo estatal. Ao fim, nos debruçamos a pensar o
des civis, com o intuito de fornecer a reparação psí-
trauma e como esse impacta nessa clínica política
quica, através da implementação dos dispositivos de
desenvolvida pelo projeto, para assim refletimos
apoio e atenção aos indivíduos, os quais foram afeta-
como o Projeto Clínicas do Testemunho se apresenta
dos pelos efeitos da violência estatal.
como uma potência significativa.
Nossa escolha teórica justifica-se, na medida
em que o referido método nos permite abordar o
fenômeno estudado por diversos aspectos, bus- A transição à brasileira,
cando compreender e estudar as suas relações e o papel da lei de anistia
conexões, mantendo a complexidade do objeto pes- Em nosso escrito, para abordamos a transição
quisado (Gil, 1987, p. 32), ou seja, nos permite com- política, partimos da lei de anistia, remontamos a sua
preender como as permanências autoritárias ainda promulgação no ano 1979, pois a referida lei até hoje
afetam a nossa sociedade e como a atuação do segue configurando o cenário transicional brasileiro.
Projeto Clínicas do Testemunho. Para desenvolver Entendemos que a transição política “trata-se, pois, de
a pesquisa adotamos os seguintes procedimentos um processo de negociação que conduz à substituição
técnicos: de nível exploratório realizamos pesquisa no poder e à instauração de certas regras pelas quais,
de cunho bibliográfico e documental. tal poder será exercido no futuro” (Carrillo, 2009, p.
A seleção bibliográfica para pensar o processo 32). Desta forma, mesmo sobre o regime democrático,
transicional brasileiro foi multidisciplinar, elencamos observamos as permanências do legado autoritário,
referências da área da história, do direito, da ciência que são configurações institucionais que “sobrevivem
política e da psicanálise com o intuito de dialogarmos à transição democrática e intervêm na qualidade e na
e respeitarmos a complexidade do processo social prática das democráticas pós-autoritárias” (Pereira,
abordado. Já a escolha bibliográfica em relação ao 2010, p. 239). A aparência de legalidade e a institucio-
Projeto Clínicas do Testemunho, partiu de uma base nalidade serviram para que a ditadura se perdurasse
teórica encontrada nos materiais produzidos pelos por muitos anos e suas raízes se fazem presentes no
núcleos do projeto, consistem esses essencialmente contexto atual.
em livros. O aporte psicanalítico foi a opção teórica Em agosto, dois projetos legislativos foram
por nós elencada devido ao fato de compreender- discutidos no Congresso Nacional sobre a anistia.
mos que o mesmo dá conta das questões relativas a O projeto defendido pela oposição tinha como ban-
reparação psíquica, o testemunho, o falar, o ato de deira “anistia ampla, geral e irrestrita” a todos que
escutar, a sociedade, o sujeito e o trauma. Além disso, opuseram o governo e exerceram o direito de resis-
as sedes do Projeto seguem orientação psicanalí- tência. Já o projeto governista propunha uma anis-
tica, fator que balizou nossa escolha teórica. A base tia parcial e restrita, pois não visava conceder liber-
documental analisada consiste no relatório produ- dade a todos os presos políticos. Ao longo do mês, os
zido pela sede de Porto Alegre do Projeto Clínicas do projetos foram discutidos e, no dia 28 de agosto de
Testemunho, no qual a Sigmund Freud Associação 1979, o General ditador Figueiredo sancionou a lei de

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Rodrigues, N. C., Verás Neto, F. Q., Teixeira, R. (2017). Reminiscências da Violência Estatal.

anistia, que correspondia aos interesses governistas, tes constitucionais de quem pode requerê-la: pode
relata Mezzaroba (2006, p. 50). requerer toda e qualquer pessoa que foi afetada pela
A anistia simbolizou um avanço político, já que perseguição estatal, por motivação exclusivamente
mais de cinco mil brasileiros foram beneficiados com política. Assim, demarcou que somente as pessoas
a sua aprovação. Também constituiu uma barreira, que foram perseguidas/afetadas pela atuação estatal
devido à interpretação judicial cunhada na época atri- repressiva do governo ditatorial poderiam requerer.
buiu à lacuna legal o sentido de que aqueles que agi- A Comissão de Anistia tornou-se órgão-chave na
ram abarcados pelo manto estatal estavam anistiados transição e, em 2008, estabeleceu um procedimento
por terem cometidos tais violações aos direitos huma- móvel de julgamento dos pedidos de anistia, criando
nos de modo conexo aos crimes políticos. Essa inter- as Caravanas de Anistia com o objetivo tornar público
pretação até hoje veda a instauração de processos os julgamentos e assim difundir as histórias sobre o
judiciais que buscam responsabilizar os perpetrado- nosso passado. Além disso, criou um espaço de fala
res de direitos humanos. Dessa forma, a anistia ainda pública destinado aos sujeitos que foram persegui-
hoje representa um impeditivo transicional, ao vedar dos, constituindo o primeiro espaço no qual o papel
a responsabilização judicial dos agentes violadores de ativo ao afetado, concedendo voz, e ao fim de tudo,
direitos humanos. Como exposto acima, entendemos o representante estatal assume o espaço e pede des-
que a anistia no Brasil representou uma “conciliação culpa em nome do estado brasileiro pelas violações
quase (im)posta” (Cunha, 2010, p. 35), tendo em vista que foram cometidas.
que os governantes lograram êxito ao aprovar o seu Ainda no cenário transicional a lei de anistia
projeto e conseguiram escapar da responsabilização foi questionada judicialmente, o Conselho Federal
pelos atos cometidos durante o período ditatorial. da Ordem dos Advogados do Brasil ajuizou junto ao
Dessa forma, percebemos que a nossa transição polí- Supremo Tribunal Federal (STF) uma Ação de Des-
tica foi caracterizada por (re)configuração, transfor- cumprimento de Preceito Fundamental (ADPF).
mação e não ruptura, assenta Abrão (2012). A ADPF no 153 buscava que o judiciário realizasse uma
nova interpretação legal, pedia que fossem julgados
O que fica da ditadura na transição? individualmente os pedidos de anistia, a fim de veri-
As práticas pelo governo brasileiro ficarmos se era cabível ou não a concessão da anistia
até implementar o projeto de aos agentes violadores, e buscava revestir de materia-
reparação política lidade a questão da conexão dos crimes prevista na
A anistia exerceu centralidade na transição e lei. Os ministros do STF julgaram em abril de 2010 a
outros mecanismos transicionais foram instaurados ação proposta como improcedente, pois entenderam
com o intuito de efetivarem direitos transicionais, que uma revisão agora era inconcebível e compreen-
como o direito à verdade, à memória, à justiça e as deram a anistia como um pacto de pacificação social.
instituições democráticas. A primeira medida repara- Em novembro de 2010 foi proferida uma sen-
tória proposta pelo governo brasileiro foi o reconhe- tença condenatória pela Corte Interamericana de
cimento oficial do óbito daqueles que desapareceram Direitos Humanos (Corte IDH) que julgou o Bra-
em decorrência da participação ou acusação de parti- sil responsável pela violação de direitos humanos
cipação em atividades políticas, concedido através da ocorridas durante a Guerrilha do Araguaia, no “Caso
Lei nº 9.140 de 1995 (Brasil, 1995). Gomes Lund e Outros versus Brasil”. A sentença se
Já em 2002, com a promulgação da Lei no 10.559 compôs de inúmeros dispositivos, dois deles foram
(Brasil, 2002), foi instaurada a Comissão de Anistia, tornaram-se lei pelo governo brasileiro, a Lei no
órgão vinculado ao Ministério da Justiça, ao qual foi 12.527 (Brasil, 2011a) e a Lei no 12.528 (Brasil, 2011b),
atribuída a função de julgar os pedidos de anistia ambas de 2011. A primeira regulamentava o acesso
política e de estabelecer se haverá ou não a conces- público aos documentos, modificou o acesso, a sis-
são de reparação de cunho pecuniária. Tal dispositivo tematização e a publicação dos documentos e infor-
legal, regulamentou o artigo 8º do Ato das Disposi- mações públicas. Já a segunda lei criou a Comissão
ções Constitucionais Transitórias, assim, estabeleceu Nacional da Verdade (CNV) no âmbito da Casa Civil
qual o procedimento necessário para que alguém da Presidência da República, que atuou de maio de
seja declarado anistiado político e instituiu os limi- 2012 até dezembro de 2014, quando publicou o seu

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 133-148.

relatório final, composto por três volumes, no qual dos depoimentos junto a Comissão Nacional da Ver-
foram explicitadas as investigações e as apurações dade, tais espaços que modificaram o protagonismo
feitas sobre o contexto repressivo, as violações de e exercem um papel simbólico, apesar de não esta-
direitos humanos e a investigação dos mortos e desa- rem em conformidade com o paradigma da recep-
parecidos políticos. Essas informações foram siste- ção, a escuta e o acolhimento. O Projeto Clínicas do
matizadas com a intenção de que fossem conhecidas Testemunho surge e assume como objetivo para si a
pela população, evidenciando que o governo ditato- criação de espaços públicos alicerçados no acolhi-
rial cometeu crimes lesa humanidade, tais como o mento e na escuta daqueles que se entendem afeta-
desaparecimento forçado, ocultação de cadáveres, dos pelas violências estatais e utiliza o testemunho,
torturas e execuções. como seu dispositivo central, para que os mesmos
A sentença condenatória da Corte IDH, em seu possam repassar e escovar a história de suas vidas a
11 ponto resolutivo, atribui ao Brasil a obrigação
o
contrapelo (Benjamin, 2012, p. 245).
de criar mecanismos de atenção médico e psicoló- Tomamos os testemunhos dessas vivências por
gica voltados a atender aqueles que foram afetados parte de quem as sofreu direta ou indiretamente,
(direta e indiretamente) pela ditadura civil-militar. como base desse trabalho clínico-político. Elegemos
Atendendo esse aspecto o país, criou o Projeto Clíni- os testemunhos e não depoimentos, pois, ao pen-
cas do Testemunho vinculado à Comissão de Anis- sarmos na ideia de um depoimento, fechamos as
tia. O edital que visava à criação do projeto-piloto possibilidades de fala e instauramos uma busca por
foi publicado em 2012, e sua atuação iniciou no ano fatos e verdades que necessitam ser comprovadas ou
seguinte. O referido projeto buscava criar espaços refutadas em seu caráter jurídico. Ao escolhermos os
destinados a atenção e apoio psicológico, aos afe- testemunhos se abre uma possibilidade de constru-
tados pela violência estatal. Dessa forma, em res- ção de subjetividade e de descontinuar uma história
posta ao primeiro edital tivemos a criação de quatro hermética e criar um lugar para o sujeito, já que para
sedes, duas situadas em São Paulo, uma no Rio de testemunhar, não há apenas a necessidade de fala,
Janeiro e outra em Porto Alegre. Integrou-se a rede mas também tem que haver uma escuta (papel aqui
uma clínica que foi criada em Recife, subsidiada considerado como do terapeuta) para conferir voz aos
pelo governo estadual, e se vinculou ao projeto, sentimentos mudos, para assim conseguir compor
para atuar na mesma perspectiva. novas tramas de sentido para as memórias traumáti-
Fazendo uma análise sintética compreendermos cas (Indursky, & Szuchman, 2014, p. 58).
que a nossa justiça de transição assenta-se em meca- O testemunho se instaura em outro lugar.
nismos jurídicos que concedem direitos aos afetados A linguagem do testemunho cria uma realidade, que
políticos – como a reparação política, econômica vai além da palavra proferida e torna-se um acon-
e moral. Esse processo parte da lei de anistia, que tecimento, enuncia “uma verdade que só a vítima
se constitui como um impeditivo transicional, pois pode produzir porque pertence à sua experiência da
impossibilita a responsabilização penal dos agentes violência” (Ruiz, 2014, p. 64). Assim, o testemunho,
violadores dos direitos humanos. Evidenciando-a “se tornou a forma privilegiada de narrar uma expe-
como um entulho autoritário, que representa a nossa riência qualificada de in-transmissível justamente
cultura jurídica “conciliadora” (Baggio, & Miranda, por aqueles que tentaram transmiti-la” (Koltai, 2016,
2010, p. 162) e naturalizadora das violações que a p. 24), buscando uma forma de transformar o excesso
sociedade brasileira foi (e ainda é) submetida. do real em jogo traumático, tendo sempre em mente
Nos últimos anos, observamos que finalmente o uma posição ética, na transmissão daquilo que é
protagonismo começou a ser concedido aos afetados indizível. “Os testemunhos realizam a passagem de
pela ditadura civil-militar. Modificação representa- uma memória que era individual para o coletivo,
tiva, pois são os afetados que podem contar o que o ato de testemunhar evita o esquecimento histórico
lhes ocorreu e transmitir suas vivências, tornando-as e se constitui como elemento de suma importância
experiências comunicáveis, evidenciando as marcas para aqueles que vivenciaram as experiências trau-
que esse passado autoritário deixou em suas vidas. máticas” (Rodrigues, & Véras Neto, 2016, p. 151). Não
Surgiram espaços como o dispositivo final da Cara- só os indivíduos necessitam desse testemunho, mas
vana de Anistia, e o espaço instalado para a oitiva sim o tecido social carece de tais narrativas porque

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Rodrigues, N. C., Verás Neto, F. Q., Teixeira, R. (2017). Reminiscências da Violência Estatal.

suas vivências são permeadas pela matriz autoritá- vel para aqueles em quem essa experiência consegue
ria, sua institucionalidade é marcada por tais pro- ativar o traço mnêmico de um trauma da infância”
cessos. As narrativas testemunhais possibilitam a (Freud, 1997, p. 98). O trauma então é fundamental
construção de uma memória pública, assentada em para o estudo psicanalítico acerca do sujeito e suas
valores democráticos e antiautoritários, na medida vivências no mundo.
em que elas abrem fissuras na política de silencia- Após alguns anos essa teoria teve desdobramen-
mento, que ainda vige no Brasil. tos na obra freudiana, porém, estes não são pertinen-
Assim compreendemos que o Projeto Clínicas do tes ao nosso trabalho. Ferenczi (2011a), um dos psica-
Testemunho surge como um quarto eixo de reparação, nalistas da geração de Freud, agrega a experiência de
complementando as reparações econômicas (conces- ter vivenciado os horrores da primeira grande guerra
são de reparação financeira), coletiva (marcada pelas (1914–1918) em seus escritos sobre o trauma, o que
iniciativas de memória) e a moral (que é composta permitiu lançar um outro olhar as questões relativas
pelo pedido de desculpa em nome do Estado brasi- ao traumatismo psíquico. O autor propõe que a con-
leiro). A atuação do projeto visa conceder a atenção sequência imediata do trauma é a angústia, que con-
terapêutica, sua prática consiste em múltiplas fren- siste em um sentimento de incapacidade de adapta-
tes, e objetiva capacitar profissionais para lidar com ção a essa situação.
as violências institucionais, a fim de reparar os danos,
aqui compreendidos como transicionais, pois se O desprazer cresce e exige uma válvula de escape.
mantêm presentes em nosso tecido social. Os danos Tal possibilidade é oferecida é oferecida auto-
sociais são transgeracionais, que perpassam as gera- destruição, a qual, enquanto fator que liberta da
ções, a cultura institucional e também permanecem e angústia, será preferida ao sofrimento mudo.
se (re)configuram de modo autoritário. O mais fácil de destruir em nós é a consciência,
O projeto atribui uma potência ao testemunho, a coesão das formações psíquicas numa enti-
como disparador coletivo e por entender que sem dade: é assim que nasce a desorientação psíquica
uma construção de uma narrativa pública sobre a (Ferenczi, 2011b, p. 127).
violência autoritária ditatorial, não conseguiremos
alicerçar uma sociedade democrática. E essas narra- A partir do tratamento de 200 combatentes,
tivas devem ser construídas a partir do paradigma do Ferenczi percebeu um quadro sintomatológico inespe-
cuidado, da escuta e da não (re)traumatização. cífico e tardio e que havia sequelas da guerra que não
eram apenas provocadas por lesões físicas no tecido
Como pensar o trauma na realização do cerebral, no entanto, eram formadas por traumatismos
projeto Clínicas do Testemunho oriundos dessas vivências. Nesse estudo, o autor per-
Para trabalharmos a noção de trauma, pensa- cebe que um dos sintomas mais comuns eram os pesa-
remos a partir da noção que a psicanálise fornece delos que remontavam as situações trágicas vividas
sobre o tema. Breuer e Freud (1995, p. 42) percebem no fronte de batalha, ideia que modifica um pouco o
o evento traumático em uma impossibilidade de parâmetro Freudiano dado anteriormente, pois a pes-
lembrar, entretanto, com a capacidade de inscrever soa, mesmo que por vias inconscientes, se lembra do
sintomas físicos que estão em desacordo com a reali- acontecimento (Ferenczi, 2011a, p. 299).
dade anterior ao trauma. Os autores pensaram que a Ainda sobre a Primeira Guerra Mundial, é con-
maneira de tratar a histeria estaria de acordo com um veniente lembrar a constatação de Walter Benjamin
processo, nos qual as pacientes conseguiriam lembrar que percebe que os “combatentes voltavam silen-
do evento causador liberar o afeto que acompanha a ciosos do campo de batalha, mais pobres em expe-
experiência traumática. riências comunicáveis, e não mais ricos” (Benjamin,
Percebemos, então, que essa noção permeia a 2012, p. 124). Tal afirmação ganha mais sentido se
obra de Freud desde o início como algo que consti- relacionarmos com a ideia trazida por Ferenczi sobre
tui a realidade, que tem poder de modificar e afetar o mesmo período:
de diversas maneiras o aparelho psíquico “O ‘recal-
camento’ da lembrança de uma experiência sexual Esses pacientes ainda não se refizeram de seu
aflitiva, que ocorre em idade mais madura, só é possí- pavor, mesmo que já não pensem consciente-

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 133-148.

mente no transe por que passaram e até se mos- A história desse período autoritário é muito con-
trem, por vezes, alegres e de bom humor, como troversa, pois o silenciamento fez com que a história
se seu espírito não estivesse torturado, de forma oficial ocultasse as barbáries promovidas pelo estado
alguma, por tão horríveis lembranças (Ferenczi, durante 21 anos. Porém, sabe-se que todo o aparato
2011a, p. 297). institucional disponível foi utilizado para fins de con-
trole e de punição social para os que resistiram, isso
O que impera, ao fim, é o silenciamento, que não furta o papel das instituições de saúde. É sabido
relega aos sujeitos traumatizados uma espécie de his- que médicos e psicólogos acompanhavam alguns cen-
tória impossível de ser contada. Após o holocausto, tros de tortura no Brasil, vide o que denuncia Vianna
o problema apenas tomou proporções mais comple- (1994) que conta os absurdos promovidos pelo psica-
xas, um exemplo clássico, porém ainda pertinente, nalista Amilcar Lobo, que trabalhou junto as forças do
diz respeito ao sonho de Primo Levi, no qual ele exército na tortura de civis.
volta do campo de concentração onde esteve preso Dessa forma, a atuação da Psicologia junto aos
e, ao começar a narrar as suas experiências em face afetados pela ditadura brasileira tem um papel bas-
ao horror, as pessoas ao seu redor passam a deixar o tante complexo, pois, embora haja alguns caracteres
recinto, demonstrando o desinteresse em ouvir aquela de resistência, sua prática também foi utilizada como
narrativa (Levi, 1988, p. 60). aliada do braço do estado. O trabalho de escuta a par-
Todos esses fatores históricos colaboram para tir daí necessita de uma construção muito elaborada,
entendermos o fenômeno da tortura e das ditadu- pensar não somente as técnicas, mas as condições de
ras civis-militares na América Latina sob a ótica do escuta e intervenção possíveis para que se possa (re)
trauma e sobre os efeitos sociais das mesmas. A tor- contar a história brasileira a partir da fala silenciada.
tura, ou demolição do sujeito, ocorre em três etapas Retomando Keil (2004, p. 59), ela lança luz sobre o
para Viñar (1993) que diz que há uma fase de aniqui- fato de que toda e qualquer tortura ou violência come-
lação do indivíduo, seguido por uma desordem pro- tida durante a ditadura foi vista por, no mínimo, três
funda de convicções, a terceira etapa é de reenlace, forças, o estado torturador, aqueles que foram vítimas
a reorganização do sujeito com aquela situação indi- e a sociedade que permitiu que tais episódios acon-
zível. Há, por fim, os caracteres individuais que se tecessem. Essa consideração coloca esses eventos em
colocarão acerca do sujeito que sofreu com a violên- outro eixo, no qual a sociedade participa ativamente
cia. A sintomatologia será um reflexo de um impacto de todo o processo, tanto de causa como de reparação
em nível pessoal, aspectos múltiplos partilhados e a da violência.
situação de repressão mais especificada (Lira, Weins- Além disso, pensamos, por meio de Maria Rita
tein, 1984). Normalmente essa situação não tem uma Kehl, que as sevícias do corpo deixam marcas no
elaboração fácil, ainda mais nos casos onde o estado sujeito como todo, principalmente pela palavra que
que deveria proteger o sujeito acaba por destruí-lo. o torturador deseja ouvir, que nada tem a ver com a
Devemos observar esse sofrimento humano a que o outro, subjugado por sua violência, tem a dizer.
partir de uma ideia de sociedade. Kehl (2010, p. 125- Como diz a autora: “Resta ao sujeito que se identifica
126) propõe que socialmente temos um universo de com o corpo que sofre nas mãos do outro o silêncio,
experiências compartilhadas por todos por intermé- como última forma do domínio de si” (Kehl, 2004,
dio da linguagem. Porém, as pessoas afetadas pelos p. 10). Como conceituação geral dentro desse escrito
regimes de exceção, mais diretamente o caso bra- entendemos o trauma, assim:
sileiro da ditadura civil-militar, tem uma gama de
experiências violentas não compartilháveis pela fala, A intensidade excessiva do trauma calcina o sen-
fazendo com que vivam em uma espécie de “universo tido e a palavra não consegue organizar o relato e
paralelo”. Consequentemente, ainda de acordo com a nada amarra o elemento temporal, instalando-se
autora, essas experiências não fazem parte da memó- uma descontinuidade que a psicanálise chamou
ria coletiva, memória que institucionalmente serviu de a posteriori. O que se pode dizer, o que se
para aterrar o terror dos torturados, resultado de um pode lembrar, apresenta-se como falho, tem uma
estado que não reconhece que atuou (através de seus intensidade que não pode ser dita, algo se ins-
agentes) na aniquilação da vida. creve e escapa (Perrone, & Moraes, 2014, p. 32).

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Rodrigues, N. C., Verás Neto, F. Q., Teixeira, R. (2017). Reminiscências da Violência Estatal.

A partir da instauração do Clínicas do Testemu- silêncio, a clínica ganha uma outra dimensão, já que
nho, observamos algumas mudanças no que tange retira o passado da esfera privada individual, e lança
a reparação psíquica em nosso país. Sobre o tempo para o coletivo a experiência traumática que foi sub-
que levou para essa reparação ser efetivada, obser- metido, sendo assim o testemunho se torna “um cha-
vamos um enorme hiato, um espaço geracional que mado à responsabilidade do Estado e uma convoca-
determinou a formação psíquica das futuras gera- ção ao reposicionamento ético de quem se torna uma
ções (Trachtenberg, 2013 p. 83). No entanto, apesar ‘testemunha do testemunhado’” (Kolker, 2015, p. 62).
do longo tempo, isso não configura uma impossibili- Ao pensar o projeto, nos cabe trazer alguns dos
dade do trabalho. Conforme pontua Altounian (2012, desafios que foram enfrentados pelo projeto Clíni-
p. 109) sobre o genocídio armeniano, há um traba- cas, sede Porto Alegre. Quando a equipe começou a
lho gestacional dessa potência de testemunhar, que execução do projeto, não havia um levantamento
implica em um trabalho feito não por quem fala, mas prévio de demanda, ou seja, criou-se o projeto sem
por quem escuta, um trabalho que pode levar gera- saber se haveria pessoas interessadas no mesmo,
ções para poder existir. Uma atividade que inverte um assim foi necessário realizar a aproximação e divul-
pouco da demanda, ou seja, a demanda de falar tam- gação do projeto para que os primeiros interessados
bém depende da demanda de escutar, bem como dito se aproximassem. Outra questão enfrentada foi que
anteriormente nas impressões de Primo Levi. no primeiro momento as pessoas compreendiam a
proposta do Clínicas como mero dispositivo clínico
A potência do testemunho e a individual, e não compreendiam como uma potên-
experiência do Clínicas do Testemunho cia clínica política. Além disso, houve pessoas que
em Porto Alegre resistiram e não realizaram a aproximação por se
O Clínicas do Testemunho se instaura como uma tratar de um projeto financiado pelo governo bra-
medida que faltava no país, dentro do cenário transi- sileiro, o mesmo agente violador de outros tempos.
cional brasileiro, necessitava de um espaço destinado Se fez necessário pensar “a significância do Estado, ele
a problematizar os efeitos psíquicos, deixados no mesmo ofertar um projeto de reparação psíquica, pois
tecido social e nos sujeitos que foram afetados. O Clí- a possibilidade de ocorrer um tratamento, seja indi-
nicas “parte do acolhimento das dores, dos afetos, dos vidual ou grupal, é investida desde então pelo reco-
signos, das palavras isoladas, e acompanha as inten- nhecimento do Estado de que ele é responsável pelo
ções e os movimentos que podem promover a pas- dano feito” (Sigmund Freud Associação Psicanalítica,
sagem daquilo que aparece cravado na carne como 2015). Compreendemos que é necessário que a repa-
um signo, a um saber mais subjetivado” (Vannuchi, ração parta do ente violador para que possamos falar
2014, p. 03). Nesse espaço, o acolhimento é a ferra- em reparação psíquica. Todas essas questões foram
menta fundamental. O papel dos terapeutas “é de desenvolvidas no intuito que a equipe conseguisse
testemunha da história familiar” (Ocariz et al., 2014), construir uma base para desenvolverem o trabalho,
como um espaço transferencial, se constitui como um as questões por nós aqui levantadas foram extraídas
espaço de reconhecimento da dor. do Relatório Final Rede Clínicas do Testemunho Sig-
A equipe do Clínicas, sede Porto Alegre, é com- mund Freud Associação Psicanalítica – Clínicas do
posta por profissionais capacitados, que estão prepa- Testemunho do Rio Grande do Sul, documento por
rados para lidar com os traumas oriundos da violên- nós consultado e utilizado como fonte de análise.
cia de Estado, esses se destinam a acolher e escutar A equipe que começou a desenvolver o projeto
tais narrativas, evitando a naturalização do “silencia- junto ao primeiro edital (2013–2015) estava vinculada
mento – capaz de atravessar gerações – e assim perde- a Sigmund Freud Associação Psicanalítica. Porém,
-se o elo de responsabilidade entre os acontecimentos no segundo edital, a entidade que foi contemplada
fundantes do devir histórico” (Losicer, 2015, p. 32). a firmar o convênio com a Comissão de Anistia foi o
O projeto permite o deslocamento das histórias que Instituto Appoa – Clínica, Intervenção e Pesquisa em
antes eram apenas individuais para o coletivo, para o Psicanálise, sede Porto Alegre. Essa modificação de
tecido social, através de alguns de seus dispositivos. instituição se deu por questões de cunho burocrático.
E vai além, seu formato potencializa “o ato de teste- Após a modificação institucional, a equipe do projeto
munhar” (Vital Brasil, 2015, p. 43), pois, ao quebrar o seguiu e novos membros foram agregados ao grupo.

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A reparação dentro do Clínicas ocorre através zado junto ao grupo de testemunho, muitos sentiram
de múltiplos dispositivos. Dentre os dispositivos necessidade de aprofundar o seu processo de elabora-
adotados pelo projeto na sede de Porto Alegre estão ção e alguns sentiram necessidade após seus parentes
os atendimentos individuais, os grupos de testemu- ingressarem no projeto e se permitiram a pensar sobre
nhos, os grupos temáticos, as conversas públicas e as vivências familiares, conforme consta no relatório
as capacitações. Cabe ressaltar que tais dispositivos da Sigmund Freud.
terão suas funções explicitadas quando abordamos Outro dispositivo fundamental dentro do projeto
a atuação do Clínicas. Conceitualmente entende- são os grupos de testemunhos, esses se constituem
mos que “todo dispositivo se define pelo que detém como um espaço misto, essencialmente coletivo e
em novidade e criatividade, e que ao mesmo tempo público, mas que possibilita momentos de elaboração
marca a sua capacidade de se transformar, ou de individual, para (re)significar suas vivências.
desde logo se fender em proveito de um dispositivo No projeto-piloto foram constituídos dois grupos
futuro” (Deleuze citado em Boettcher, & Pellanda, de testemunhos, um com encontros na quarta-feira e
2010, p. 98/99). Os dispositivos nos ajudam a pensar o outro se reunia na quinta-feira. O grupo de quarta
as sequelas e as reminiscências deixadas pela violên- possuía encontros semanais, e durou de setembro de
cia dos agentes estatais. Este processo objetiva viabi- 2013 e até junho de 2015. Sua constituição era múlti-
lizar que o projeto realize atendimentos individuais e pla, ou seja, tinham filhos de afetados e uma pessoa
coletivos, nos quais a atenção se centrasse na escuta, que havia sido afetado diretamente. Teve, ao longo do
em quem narra e no que é narrado, nas histórias que transcurso, número variado de membros e, ao seu fim,
são enunciadas. havia oito integrantes. Uma integrante do grupo ficou
Os atendimentos individuais se constituem enferma e, desde então, esteve ausente por um perí-
como espaços de psicoterapia. Esse espaço signi- odo. Essa situação alterou a dinâmica grupal, fazendo
fica potências, pois é através da palavra, do ato de com que os testemunhos se focassem na memória,
falar que tais possibilidades são construídas, por isso no “que foi silenciado pelos pais e também por reco-
o terapeuta tem um papel fundamental que é o de nhecerem lacunas importantes na história da família”
escutar, de suportar aquilo que está sendo dito. Essa (Sigmund Freud Associação Psicanalítica, 2015).
escuta contribui para que a pessoa recupere a sua Já o grupo de quinta tinha periodicidade quin-
dignidade que havia sido suspensa e possibilita que zenal. Sua constituição ocorreu em agosto de 2014 e
seja realizada a elaboração psíquica, conforme nos durou até junho 2015 e, em seu encerramento, havia
ensina Vital Brasil (2015). nove membros. Os compuseram afetados diretos,
Conforme a equipe clínica, a busca de atendi- filhos e parentes de segunda geração. E as principais
mento individual foi motivada principalmente pelos questões do grupo pontuavam a narrativa, a memó-
seguintes fatores: o sofrimento direito ocasionado ria e como essas atuam como um gatilho de compar-
pelo silenciamento e não reconhecimento estatal; tilhamento de histórias. Ainda das experiências dos
a ausência de espaços (sociais e familiares) destinados grupos de testemunhos foi produzido um insumo,
a receber e escutar as suas narrativas traumáticas sem um livro intitulado “Os Arquivos da Vó Alda” com-
as colocá-las em cheque; a manifestação de doenças posto de narrativas e memórias, o que demonstra um
psicossomáticas e repetições compulsórias até não trabalho de composição, caracterizado pela aquisi-
passíveis de elaboração; experiências de (re)trauma- ção de voz dos integrantes do projeto. Além do livro,
tizações propiciadas junto aos órgãos oficiais que através dos grupos foi gestada a criação do Coletivo
buscavam aferir uma nova verdade sobre o ocorrido de Filhos e Neto do Rio Grande do Sul, por Memó-
durante a ditadura civil-militar e ausência de acom- ria, Verdade e Justiça, criação formalizada através de
panhamento para depor nesses espaços; a necessi- uma Audiência Pública realizada no dia vinte quatro
dade de reiniciar o acompanhamento terapêutico, de abril de 2015, em Porto Alegre. Esse espaço foi
tendo em vista a existência de um espaço especiali- marcado pelo compartilhamento de testemunhos,
zado; procuraram devido aos eventos que abordavam os quais foram previamente confeccionados dentro
a temática do cinquentenário do golpe civil-militar, dos grupos, demonstrando um preparo e um cui-
fator que desencadeou (re)atualizações e despertou dado antes que as vivências fossem coletivizadas, ou
o devir de memória; consequência do trabalho reali- seja, devolvidas ao laço social.

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Rodrigues, N. C., Verás Neto, F. Q., Teixeira, R. (2017). Reminiscências da Violência Estatal.

Durante a execução do projeto-piloto, foi detec- para além dos afetados, direta ou indiretamente, que
tada uma necessidade de interiorização do projeto, toda sociedade foi impactada pela violência estatal.
devido à dificuldade de acesso dos residentes no Ao investirmos esforços no projeto de reparação
interior do Estado. Nesse sentido, ficou registrada a psíquica através de uma política estatal, investimos
necessidade de criação de grupo de testemunhos e também na potência reparatória do testemunho –
de realização de conversas públicas no interior, para, reparação simbólica e psíquica, isso se justifica por
assim, levar a cabo a função de interiorizar o projeto. não acreditarmos na possibilidade de conciliação
O rumar ao interior surgiu devido ao desconheci- com o passado, acharmos necessário revisitarmos um
mento das histórias da repressão fora da capital e da dos capítulos mais bárbaros da história dos brasilei-
dificuldade de permanente deslocamento à capital ros, como pontua Kolker (2015).
por aqueles que gostariam de ingressar no projeto, Cabem algumas observações metodológicas
tais constam no relatório do projeto. sobre o conceito de reparação psíquica: primeira-
Já a proposta do grupo temático consiste em um mente, a reparação psíquica não busca a paz através
espaço para trabalhar sobre questões específicas, a do esquecimento do vivido, o que se busca é recom-
partir de um tema gerador, com o número máximo por individual e coletivamente o episódio traumático.
de dez sessões para abordá-las. Até o fim de 2016, não A Clínica do testemunho é “uma clínica do laço social,
existia nenhum grupo temático na sede de Porto Ale- ao criar condições de possibilidade para que se escu-
gre. Esse dispositivo surge apenas no segundo edital. tem e se criem novos testemunhos, conectando inter-
Outro dispositivo importante na articulação do geracionalmente a atualidade do horror que ainda
projeto são as Conversas Públicas. Elas se constituem marca nosso tecido social” (Indursky, & Piccinini,
como um espaço de troca, compartilhamentos sobre 2015, p. 9). Interessa-nos, possibilitar esses espaços
o que ocorreu durante a ditadura civil-militar. Aspecto públicos de fala e escuta, mantidos pelo Estado bra-
fundamental é que as conversas articulam a equipe sileiro, onde as narrativas testemunhais se tornam
do projeto, a sociedade civil, a comunidade acadê- possíveis, são preparadas, sustentadas e escutadas, na
mica e todos os nichos sociais que possuem interesse perspectiva do cuidado e do acolhimento.
em participar. As conversas públicas possuem meto- A reparação psíquica não é dirigida apenas aos
dologia diversa. Em algumas é utilizada uma fala cen- sujeitos que foram afetados, se direciona também
tral para conduzir o espaço, em outras, os gatilhos a sociedade civil como um todo, pois, ao repensar
disparadores são manifestações artísticas, portanto, esse passado autoritário, possibilita (re)signifi-
não há uma rigidez quanto à forma. Há por parte da car toda violência estatal, desde a ditatorial até a
equipe uma preocupação em descentralizar tais ati- atual, que nos constitui enquanto sociedade. Para
vidades, levando-as para o interior do Rio Grande do os que foram afetados diretamente, a reparação psí-
Sul. No primeiro edital apenas a cidade de Pelotas foi quica não significa curar as sequelas geradas pela
contemplada com a conversa, já no segundo edital, violência estatal, significa criar possibilidades de
o dispositivo ocorreu em diversas cidades, tais como reelaborar, de recompor sua vida. Podemos dizer
Rio Grande, São Leopoldo e Caxias do Sul, conforme que a reparação por via do testemunho possibilita
consta no site institucional. A descentralização do recompor aspectos de sua identidade, e diz respeito
projeto objetiva que as pessoas conheçam mais sobre as estratégias e as possibilidades de resistência. Ela-
o contexto repressivo que ocorreu no interior do borar a vivência traumática não significa apagá-la,
estado e busca também ouvir histórias sobre as vivên- e sim reforçar a coragem, a memória, a resistência,
cias frente ao terror estatal. conforme Pereira (2015).
Por fim, temos as capacitações que possuem o Além disso, a reparação psíquica instaura outra
objetivo de instrumentalizar a maneira de atuação lógica na perspectiva reparatória, as demais medidas
das pessoas que lidam com sujeitos que foram e são se configuram como procedimentos pontuais, buro-
vítimas da violência de Estado. Além disso, busca cráticos, nas quais há uma previsibilidade racional,
estimular o compartilhamento de experiência entre pois há requisitos que necessitam ser preenchidos
os elaboradores dos serviços públicos, com a inten- para que a pessoa receba a respectiva reparação. Esses
ção de traçar e elaborar estratégias de intervenção. As processos não contemplam a subjetividade daqueles
capacitações são fundamentais, já que demonstram que foram afetados pela violência estatal. A reparação

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 133-148.

psíquica, através do Clínicas, instaura um espaço que o Estado cometeu consigo, pois promoveu tal
onde a fala, a escuta e a alteridade tornam-se cen- violência e posteriormente, a silenciou. O testemu-
trais, cabendo as verdades subjetivas, as narrativas, nho situa-se entre “o dito e o não dito” (Conte, 2014,
as vivências, tudo que não pode ser quantificado, ou p. 87). Como já dito anteriormente, a escuta, é o ele-
racionalizado. Pois, o testemunho é sempre um ato mento fundamental, ou seja, devolve a palavra e res-
de cocriação, por assim ser, não é estanque, não nos peita o tempo e respeita aquilo que ainda não pode
diz uma verdade pontual, já que o testemunho é sem- ser dito, revelado. Dessa forma, a abertura entre o
pre fabricado “à medida que as condições sociais de vivenciado e o não dito, estabelece um elo simbólico
recepção de seu relato são possibilitadas” (Indursky, que possibilita a elaboração psíquica.
& Szuchman, 2014, p. 51). Aqui o paradigma não é a Como nos afirma Martín-Baró (1997), o psicólogo
verdade absoluta, pontual, factual e científica, e sim não deve se omitir frente ao terrorismo do estado,
uma verdade subjetiva e histórica na qual cada vivên- e sim deve colocar seu saber em uma oposição crítica
cia seja importante para construirmos uma narra- a esses fenômenos de autoritários. É isso que o Clíni-
tiva pública sobre passado autoritário, para, assim, cas se propõe ao realizar uma clínica política que pro-
recompormos o caleidoscópio da história. blematiza as arbitrariedades de ontem e as violências
Dentro da lógica da reparação psíquica e dos de hoje, a partir dos sujeitos que foram afetados e sem
testemunhos, o aspecto do cuidado é fundamental, perder de vista o impacto que esses arbítrios causam
pois não queremos que ocorram reflexos danosos no tecido social.
àqueles(as) que foram afetados pelo terrorismo de
estado. Esse passado permeado por violência e injus- Considerações finais
tiças foi brutalmente silenciado, conforme assenta Ao longo desse percurso evidenciamos o tra-
Mate (2005). A violência estatal tocou a pele de mui- balho social que é necessário fazer para se nar-
tos e impactou o laço social, mas a experiência da rar o trauma, este como experiência coletiva e não
violência tem seu lado oculto, que só a testemunha somente individual, algo que afeta o corpo social,
pode narrar, só ela pode revelar. Por isso, a teste- desde a maneira de vivenciar até o ato de narrar.
munha “tem uma perspectiva da verdade que só ela Assim firmamos um compromisso ético dentro desse
poderá dizer na forma de testemunho” (Ruiz, 2014, p. escrito e atribuímos ao testemunho uma potência,
59), já que ela teve a experiência do toque, e o teste- pois os testemunhos atuam como relâmpagos, como
munho significa o oposto dessa violência, aquilo que feixes e realizam uma ruptura com o passado amor-
antes era silêncio, torna-se agora “linguagem com- tecido e marcado pelo silenciamento.
partilhada, vivida, sentida diferente, mas não ressen- O Projeto Clínicas do Testemunho cria uma
tida” (Oliveira, 2012, p.245). atmosfera de cuidado, pois propicia o acolhimento e
Através da escuta, do acolhimento, esse sujeito a escuta, visando a não (re)traumatização. Para isso,
reescreve a sua história, nesse contexto sua narração tece um espaço social destinado a enunciação dos
não é (e nem será) questionada, pois, a temporali- testemunhos, sendo essas construções narrativas que
dade do trauma e do testemunho é outra, e não res- possibilitam múltiplas perspectivas sobre o passado
ponde as verdades científicas cartesianas, não se ins- autoritário, suas presentificações e as reminiscências.
crevem em uma linearidade temporal. Assim, como Os testemunhos possibilitam outras fontes e narrati-
o tempo do trauma, o tempo do testemunho não é vas para comporem a nossa história, passando a con-
linear, a testemunha tem a autoridade de narrar a trapelo a história oficial, que se alicerça nos grandes
sua experiência. Os testemunhos possibilitam o des- feitos, nos grandes homens. Ao lançarmos luz ao Clí-
locamento, uma experiência que era dimensionada nicas, mostramos que a nossa sociedade ainda não
como privada/individual, após a sua enunciação e reconhece seu passado e não compreende que as rela-
recebimento, passa a figurar na ordem do coletivo, ções estabelecidas na ditadura civil-militar dificultam
pois essa vivência partilhada trouxe elementos que a efetivação dos direitos humanos, dos limites insti-
compõe a memória social, algo que é importante tucionais e democráticos, e dificulta pensarmos os
para a coletividade. Além disso, ao partilhar com o direitos transicionais – a memória, a verdade e justiça.
laço social, torna-se público os efeitos da ação esta- Conforme demonstrado ao longo do escrito,
tal, fora que o laço social é responsável por aquilo há prejuízo no afastamento temporal que ocorreu

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Rodrigues, N. C., Verás Neto, F. Q., Teixeira, R. (2017). Reminiscências da Violência Estatal.

dos danos causados pela violência estatal e a imple- Grande do Sul. Os dispositivos clínicos elencados pela
mentação do projeto de reparação psíquica bancado sede de Porto Alegre demonstram as potencialidades
pelo estado brasileiro. O principal prejuízo por nós do projeto, que atribui a centralidade aos sujeitos que
verificado foi o silenciamento social que fez com foram afetados pela violência de estado, pois o pro-
essas vivências ficassem resguardadas no âmbito tagonismo do Clínicas consiste na enunciação das
individual e quando socializadas eram postas em vivências, tornando-as experiências. Enfim, o Projeto
cheque. Esse lapso temporal em nenhum momento Clínicas busca interrogar nosso passado, objetivando
se constitui como um impeditivo para o trabalho de que o tecido social o compreenda e (re)signifique,
elaboração psíquica, pois o tempo do trauma, a sua com a intenção de cessar os repliques. A atuação do
atualização e elaboração, não responde a uma line- Clínicas nos permite tensionar as instituições e suas
aridade cronológica. A Clínica do Testemunho, por atuações, para repensarmos os limites dessas. Os tes-
se constituir como uma clínica política, não focaliza temunhos como dispositivos de verdades, propiciam
na ideia de cura e se estrutura na potência do teste- deslocamento dos sujeitos. Antes eram afetados e
munho e no ato de transmitir, em devolver a expe- agora com a mudança discursiva tornam-se sujeitos
riência traumática (re)elaborada para a coletividade históricos, pois, através da narração de suas experiên-
no intuito de compreender que a história individual cias, esses auxiliam a construir uma narrativa pública
constitui e se reflete no coletivo. sobre o passado e suas atualizações. As enunciações
A experiência clínica vivenciada em Porto Alegre testemunhais são atos que gritam por verdade, memó-
se constituiu frutífera, pois dela renderam insumos ria, justiça social e justiça procedimental, para assim
e uma meta de interiorização do projeto, buscando permitirmos a construção de uma memória histórica,
ampliar os núcleos e as possibilidades de recontar permeada por múltiplas histórias, que focalizam nos
as histórias vivenciadas no interior do estado do Rio direitos humanos e na alteridade.

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Natália Centeno Rodrigues


Mestre em Direito e Justiça Social pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG, Rio Grande – RS. Brasil.
Bacharel em História e Direito pela FURG. Professora tutora do curso de história modalidade EaD da FURG/UAB.
Pesquisadora do Grupo Transdisciplinar de Pesquisa Jurídica para a Sustentabilidade (CNPQ/FURG). Coordenadora
da linha de pesquisa Justiça de Transição no Brasil e os processos latino-americanos no pós-ditatoriais. Advogada
voluntária junto ao Defensa (projeto de extensão) da Universidade Federal de Pelotas – UFPel.
E-mail: naticenteno@gmail.com

Francisco Quintanilha Véras Neto


Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, Curitiba – PR. Brasil. Mestre em Direito pela Universidade
Federal de Santa Catarina – UFSC, Florianópolis – SC. Brasil. Professor associado IV da Universidade Federal do Rio
Grande – FURG, Rio Grande – RS. Brasil. Professor vinculado ao Programa de Pós-graduação em Direito da FURG.
Professor coordenador do Grupo Transdisciplinar de Pesquisa Jurídica para a Sustentabilidade (CNPQ/FURG).
E-mail: quintaveras@gmail.com

147
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 133-148.

Rodrigo Fernandes Teixeira


Acadêmico do curso de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande – FURG, Rio Grande – RS. Brasil. Bolsista
do Centro Regional de Estudos, Prevenção e Tratamento de Dependentes Químicos da FURG. Integrante do Grupo
Transdisciplinar de Pesquisa Jurídica para a Sustentabilidade (CNPQ/FURG) vinculado à linha de pesquisa Justiça
de Transição no Brasil e os processos latino-americanos no pós-ditatoriais.
E-mail: rodrigo.fds.t@gmail.com

Endereço para envio de correspondência:


Rio Solimões, 44, Parque Marinha
Rio Grande, RS.
CEP: 96215610.

Recebido 30/06/2017
Reformulação 17/09/2017
Aprovado 20/09/2017

Received 06/30/2017
Reformulated 09/17/2017
Approved 09/20/2017

Recebido 30/06/2017
Reformulado 17/09/2017
Aceptado 20/09/2017

Como citar: Rodrigues, N. C., Véras Neto, F. Q., & Teixeira, R. F. (2017). Reminiscências da violência estatal:
a reparação psíquica através de uma clínica política. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 133-148.
https://doi.org/10.1590/1982-3703100002017

How to cite: Rodrigues, N. C., Véras Neto, F. Q., & Teixeira, R. F. (2017). Reminiscences of state violence:
the psychological repair through a political clinic. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 133-148.
https://doi.org/10.1590/1982-3703100002017

Cómo citar: Rodrigues, N. C., Véras Neto, F. Q., & Teixeira, R. F. (2017). Reminiscencias de la violencia estatal:
la reparación psíquica a través de una clínica política. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 133-148.
https://doi.org/10.1590/1982-3703100002017

148
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 149-160.
https://doi.org/10.1590/1982-3703110002017

Reparação Psíquica e Testemunho

Alexei Conte Indursky Bárbara de Souza Conte


Universidade Paris VII, Sorbonne, Denis-Diderot, Universidade Autônoma de Madrid, Espanha.
França.

Resumo: O presente artigo propõe-se a pensar a implementação do Projeto Clínicas do


Testemunho, enquanto política pública pioneira no campo da reparação psíquica aos afetados
pela ditadura civil-militar brasileira. Inicialmente, procuramos justificar a pertinência da
metodologia clínico e política empregada ao longo do projeto, a partir de uma revisão crítica
sobre os efeitos sintomáticos da reconciliação extorquida, veiculada através da noção de
anistia no Brasil. Para tanto, apostamos que, para além da terapêutica oferecida, uma política
de reparação psíquica pressupõe um contexto sociopolítico desde o qual são moduladas as
próprias bases normativas e os sentidos do que significa ser vítima da violência de Estado.
Desta feita, realizaremos uma revisão de operadores psicanalíticos e seus usos políticos em dois
contextos diferentes: a política de reparação alemã da Shoah e dos veteranos norte-americanos
da guerra do Vietnã. Por fim, debruçaremo-nos sobre a experiência do dispositivo clínico Grupo
do Testemunho, enquanto uma via clínico-política na esfera das políticas de reparação.
Palavras-chave: Testemunho, Reparação Psíquica, Trabalho de Luto, Trauma.

Psychic Reparation and Testimony

Abstract: This article proposes to think the implementation of the Clinic of Testimony project
as a pioneering public policy in the field of psychic reparation to those affected by the Brazilian
civil-military dictatorship. Initially, we sought to justify the pertinence of the clinical / political
methodology employed throughout the project, based on a critical review of the symptomatic
effects of the extorted reconciliation, conveyed through the notion of amnesty in Brazil.
To that end, we propose that, in addition to the therapy offered, a policy of psychic reparation
presupposes a socio-political context from which the normative bases themselves and the
meanings of what it means to be a victim of State violence are modulated. In this sense, we will
perform a review of psychoanalytic operators and their political uses in two different contexts:
the German reparation policy of the Shoah and the American veterans of the Vietnam War.
Finally, we will look at the experience of the clinical device witness group as a clinical-political
pathway in the sphere of reparation policies.
Keywords: Testimony, Psychic Reparation, Mourning, Trauma.

Disponível em www.scielo.br/pcp
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 149-160.

Reparación Psíquica y Testimonio

Resumen: El presente artículo se propone pensar en la implementación del Proyecto Clínicas del
Testimonio, como política pública pionera en el campo de la reparación psíquica a los afectados
por la dictadura civil-militar brasileña. Inicialmente, procuramos justificar la pertinencia de la
metodología clínica / política empleada a lo largo del proyecto, a partir de una revisión crítica
sobre los efectos sintomáticos de la reconciliación extorsionada, transmitida a través de la
noción de amnistía en Brasil. Para tanto, apostamos que, además de la terapéutica ofrecida, una
política de reparación psíquica presupone un contexto socio-político desde el cual se modulan
las propias bases normativas y los sentidos de lo que significa ser víctima de la violencia de
Estado. De esta manera, realizaremos una revisión de operadores psicoanalíticos y sus usos
políticos en dos contextos diferentes: la política de reparación alemana de la Shoah y de los
veteranos norteamericanos de la guerra de Vietnam. Por último, nos referimos a la experiencia
del dispositivo clínico Grupo de testimonio, como una vía clínico-política en la esfera de las
políticas de reparación.
Palabras clave: Testimonio, Reparación Psíquica, Trabajo de Luto, Trauma.

Introdução Como lembra Ricœur (1995), “nesse sentido, a anistia


é o contrário do perdão, o qual [...] requer a memória”
Não foi só a terra: ocuparam-nos a nós, acampa- (pp. 205-206). Ou seja, não há perdão sem a identifica-
ram no meio de nossas cabeças. Somos madeira ção de “quem” perdoa “o que” e a “quem”.
que apanhou chuva. Agora não acendemos nem Ora, se a mais ingênua das tentativas de elabo-
damos sombra. Temos que secar à luz de um sol rar o passado pressupõe uma gramática de reconhe-
que ainda não há. Esse sol só pode nascer dentro cimento e identificação dos atores envolvidos nos
de nós. Está-me seguindo completo? crimes cometidos, damo-nos conta de que a anistia
Mia Couto (2005) política no Brasil não serviu senão para uma “reconci-
liação extorquida” (Gagnebin, 2010) entre os interes-
Em sua etimologia grega, anistia (amnestia) ses da oligarquia brasileira e a cepa militar que falira
é composta por duas expressões, reminiscências em atende-los: não se produziu um remédio demo-
(anamnesis) e esquecimento (amnesia), que sugerem crático à sociedade civil, mas uma gramática de reco-
a ideia de apaziguar o passado através de seu esque- nhecimento sintomática que falha propositalmente
cimento. Enquanto psicanalistas, sabemos que o pas- “na possibilidade de dar, de inscrever, de chamar e de
sado sempre retorna, seja nas dimensões simbólica, lembrar nomes” (Derrida, 2007, p. 140), associando-se
imaginária e real ou, segundo Faulkner (2012/1951), a uma ideologia da “página virada”, do esquecimento
“que o passado nem sequer passou”. A noção de e da não responsabilização.
anistia é, assim, insuficiente para “fazer algo com” A partir de 2007, a Comissão de Anistia propõe
os restos insepultos do arbítrio e da exceção no Bra- um conjunto de políticas que visam modificar os sen-
sil. Sua associação deliberada à ideia de “perdão” – tidos da Anistia no Brasil. São criados três projetos,
ausente em sua etimologia – serviu para realizar uma Caravanas da Anistia, Memorial da Anistia e Marcas da
captura semântica das reivindicações da sociedade Memória, que ampliam a noção reparação, para além
civil, cujo apelo por uma anistia Ampla, Geral e Irres- da dimensão pecuniária, tomando-a igualmente em
trita – visando atingir os exilados e desaparecidos suas dimensões simbólica e psíquica. Nesse sentido,
– foi transformado durante o mandato do ditador vale destacar que a noção de reparação psíquica que
general João Figueiredo em anistia Lenta, Gradual e emerge no campo da justiça de transição possui uma
Segura – que garantiu a anistia a agentes do Estado, equivocidade importante, tanto em suas concepções
sob a rubrica dos crimes do conexos (Indursky, 2014). teóricas, quanto em suas experiências de intervenção.

150
Indursky, A.; Conte, B. (2017). Reparação Psíquica .

No campo da psicanálise a noção de reparação quais os próprios sentidos de ser vítima de violência do
foi inicialmente empregada por Melanie Klein para Estado parecem estar em jogo. Desta feita, toda experi-
designar a superação da fase esquizoparanoide de ência de reparação psíquica passa inevitavelmente pela
constituição do sujeito psíquico, em que o sujeito con- necessidade de nomear e reconhecer o sujeito e o dano
segue integrar (Wiedergutmachung) o objeto outrora sofrido. Uma questão de suma importância e repleta de
cindido entre “mau” e “bom”. A noção de reparação perigos, visto que articula a passagem da experiência
a partir de Klein permanecerá, assim, regida sob a individual de sofrimento às condições sociais e políti-
lógica da fase depressiva em que o sujeito defronta-se cas de seu reconhecimento e legitimação, nas quais o
com os efeitos destruidores do seu próprio sadismo saber e práticas médicas, psicológicas e jurídicas são
projetados contra o corpo materno, que doravante convocados a atestar o dano sofrido.
será tomado como objeto total pela criança (Laplan- O objetivo do presente artigo é discutir a cons-
che, & Pontalis, 2009). trução da metodologia de intervenção e seus efeitos
O Clínicas do Testemunho, enquanto política clínicos e políticos. Sendo esta uma política pioneira
pública inédita de reparação psíquica promovida pela no Brasil, procuraremos demonstrar como se deu a
Comissão de Anistia/Ministério da Justiça, é com- criação dos dispositivos clínicos, a partir do encontro
posto em sua segunda edição por cinco núcleos de entre o projeto, os afetados direta e indiretamente pela
atendimento psicológico, dois em São Paulo (execu- violência ditatorial e a sociedade de uma forma geral.
tados pelo Instituto Sedes/Margens Clínicas-ISER), Em seguida, procuraremos discutir como as próprias
um no Rio de Janeiro (Coletivo Clínico Político-ISER), políticas de reparação psíquica, quando investidas de
um em Florianópolis e em Porto Alegre (ambos execu- um lugar de especialista, reatualizam o sofrimento
tados pelo Instituto Appoa e Sigmund Freud Associa- causado pela vivência de horror, individualizando o
ção Psicanalítica). Sua execução organiza-se em três sofrimento e privatizando os danos. Para tanto, rea-
eixos de atuação: atendimento psicológico aos afeta- lizaremos uma revisão dos usos políticos do conceito
dos pela violência de Estado da ditadura (1946–1985); de trauma em dois contextos diferentes: a política de
capacitação de servidores públicos; e produção de reparação alemã da Shoah e dos veteranos norte-a-
insumos para políticas públicas. mericanos da guerra do Vietnam. Por fim, debruçare-
A noção de reparação psíquica com a qual todos os mo-nos sobre a experiência do dispositivo alcunhado
Núcleos de Atendimento do Clínicas do Testemunho se
Grupo de Testemunho e seus efeitos na esfera das
propõem a trabalhar afasta-se da concepção kleiniana,
políticas de reparação.
na qual intenta-se integrar os fragmentos de um objeto
dispersos por uma ruptura, como se tal ato de restituir-
-lhes em um mesmo contorno pudesse lhes devolver o Ali onde reina o silenciamento,
seu status quo ante, isto é, sua situação anterior. Assim um testemunho há de advir
como a experiência traumática, certamente, não pode Apesar dos recentes avanços na agenda da justiça
ser restringida a um irrevogável evento de ruptura, uma de transição no Brasil, pode-se afirmar que a experi-
política de reparação deve necessariamente apostar na ência de reconhecimento dos afetados pela ditadura
articulação entre a impossibilidade de tudo represen- civil-militar organiza-se ainda hoje majoritariamente
tar do horror vivido e a necessidade de criar condições em torno da noção de anistia. A Comissão de Anistia,
sociais de recepção e transmissão das memórias silen- enquanto órgão administrativo de reparação pecuni-
ciadas dessa história. Visto que os destinos do trauma ária, não apenas foi a única política de reparação do
projetam-se em nosso horizonte social em uma dis- Estado até 19951, como também fez recair sobre os
puta constante sobre os sentidos de nossa memória requerentes de anistia o ônus da prova, colocando-os
individual, coletiva e histórica, o projeto Clínicas do na condição paradoxal de serem julgados pelos atos de
Testemunho impõe-se a nossa prática e pensamento violência aos quais foram submetidos. Não por acaso,
enquanto forma de articular modalidades de narrati- o próprio valor das indenizações e seus critérios vira-
vas, de recepção e de transmissão destas, no seio das ram terreno de disputa entre os requerentes, ao acu-

1
Com a criação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos (Lei no 9.140/1995), que, embora tenha a atribuição de investigar as
circunstâncias das mortes e desaparecimento, não consideramos aqui que ela provoque uma mudança substancial nos sentidos da
reparação no Brasil. A Lei nº 9.140 não é a que cria a comissão.

151
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 149-160.

sarem a relação direta entre a notoriedade pública dos os dispositivos liberando aquilo que foi separado
requerentes e o montante de suas reparações. O que dos sujeitos, e restituí-lo a um possível uso comum
essa querela encobria, para além da mercantilização da (Agamben, 2014, p. 44). Perguntávamo-nos, assim,
anistia, é que a primazia da reparação pecuniária como como acolher os efeitos psíquicos e sociais de ter-se
única política de reparação impingia na própria noção encontrado numa posição de sujeição ao Outro tota-
de justiça uma inflexão grave, a saber, não pode haver litário para, após anos de silenciamento e desmentida
perdão sem reconhecermos “quem” perdoa o “que” e estatal, passar a ser investido pelo Estado numa posi-
a “quem”. O resultado disso expressou-se no silencia- ção ambivalente de sujeito de direitos e alvo de cons-
mento de muitos afetados e na falsa-dicotomia de que tantes suspeitas? Posição na qual a palavra do sujeito
a disputa pelos sentidos da anistia no Brasil travava-se afetado é capturada por uma série de dispositivos que
entre “militares versus comunistas”, endossando espe- colocam o sujeito ora no lugar do herói da resistência
cularmente a teoria dos crimes conexos presente em e militância, ora no lugar daquele que precisa provar
filigrana na Lei de Anistia de 1979. Em outras pala- sua sevícia, a fim de ser julgado pelos crimes que o
vras, o afetado pela violência ditatorial foi nomeado Estado cometeu.
às avessas em um efeito rebote da política pecuniária, Frente a essas questões, a metodológica de inter-
estigmatizando e invisibilizando milhares de outros venção de todos os núcleos do Clínicas do Testemu-
afetados que, sem provas ou legitimidade social para nho propôs-se a criar estratégias que agenciassem
falarem e serem escutados, passaram anos simples- encontros nos quais os próprios sentidos de uma
mente ausentes à discussão que se travava nos basti- política de reparação pudessem ser explicitados,
dores dos governos FHC e Lula2. debatidos e construídos coletivamente. A tais encon-
Ao iniciar-se o projeto-piloto do Clínicas do Teste- tros alcunhou-se os nomes de Conversas e Audiências
munho em 2013 no Rio Grande do Sul, deparamo-nos Públicas. Tratavam-se de encontros públicos em que a
com diversas falas que nos interrogavam sobre a temática dos efeitos da violência de Estado era deba-
pertinência e a ética do projeto a ser desenvolvido: tida e aos quais sempre convidávamos representantes
“Para quê falar depois de tanto tempo?”; “Depois que do poder público a ocupar o lugar de debatedores e,
a justiça for feita, poderei falar”. Pronunciadas por sobretudo, receptores das falas ali proferidas. Não por
ex-presos políticos, familiares de mortos e desapare- acaso, a criação de um espaço de acolhimento, inves-
cidos, dentre eles profissionais de Psicologia, tomá- tido pelo próprio Estado enquanto reconhecimento
vamos essas enunciações como interrogantes coleti- das marcas de sofrimento, provocou um efeito con-
vos da atualidade dos efeitos da violência de Estado, vocatório de compartilhamento de testemunhos que,
assim como importantes bússolas sobre como com- não raro, reproduziam em seus discursos os efeitos
por as estratégias de implementação do projeto. dos dispositivos de silenciamento e do desapareci-
O filósofo italiano Agamben (2014), ao retomar a mento forçado como políticas de Estado.
noção de dispositivo empregada por Michel Foucault Por um lado, alguns se perguntavam, “para
ao longo de suas investigações, convida-nos a pensar que vivenciar tudo isso novamente?”, “a minha parte
a apropriação do capitalismo tardio junto às estraté- já foi feita, meu depoimento já foi dado” ou, ainda:
gias disciplinares e de controle analisadas por Fou- “Já fiz minha terapia individual e não preciso mais
cault. Se para o pensador francês o dispositivo implica falar disso. Minha questão é política”. Descobríamos,
um processo de subjetivação, sem o qual não há efeito para além do silenciamento outros efeitos, tais como
de governamentalidade, Agamben sugere que os dis- a individualização do dano, a produção de subjetivi-
positivos em seu conjunto de práticas, discursos, leis dades amedrontadas e notadamente a despolitização
e racionalidades passam a operar igualmente uma e instrumentalização das práticas de cuidado e saúde
espécie de dessubjetivação do sujeito, a partir do qual (Coimbra, 1995). Tudo se passava como se a inter-
a potência do desejo e da política permanecem sepa- venção clínica não se prestasse a pensar e articular a
radas do sujeito, seu corpo e suas práticas. Desta feita, dimensão política imbricada num processo de repa-
segundo o filósofo italiano, a única estratégia possí- ração, separando assim a dimensão do cuidado da
vel frente a tal efeito biopolítico seria a de desarmar esfera política em que ela se dá.

2
Para uma discussão mais detalhada da agenda de justiça de transição no Brasil, ver Mezzaroba (2010).

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Indursky, A.; Conte, B. (2017). Reparação Psíquica .

Por outro lado, o imperativo de Verdade, Memó- via certificados médicos/psicológicos, o dano que
ria e Justiça parecia igualmente modular a forma que alegavam ter sofrido, levou com que muitos rejeitas-
alguns sujeitos narravam suas histórias, não se cons- sem tal política, inicialmente centrada, tal como no
tituindo necessariamente em uma transmissão das Brasil, na reparação pecuniária (Niederland, 1968).
experiências, mas na exigência incessante de denun- Acontece que a psiquiatria ocidental, assim como
ciar o Estado e sua transição democrática incompleta e sua sociedade civil, não estava pronta para ouvir o
comprometedora. A essa modulação testemunhal, que relato do inimaginável vindo da boca de pessoas que
chamamos aqui “militante”, apostávamos igualmente se sentiam culpadas por terem sobrevivido ao inferno
que outras formas narrativas ainda poderiam brotar. na terra (Fassin, & Rechtman, 2007). A meio caminho
A postura do “só aceito prestar testemunho, depois que entre concidadãos e juízes, a recepção dos testemu-
a Justiça seja feita” demonstra a cisão que sofremos em nhos dos sobreviventes demorou ao menos duas
nossa coletividade, na medida em que a construção da décadas para que passasse a ser reconhecida desde
Verdade, Memória e Justiça só pode dar-se de forma um lugar de verdade, sem ser necessariamente pato-
conjunta, uma dimensão implicada com a outra. logizada (vide o termo criado, Síndrome do Sobrevi-
Sustentamos que tais efeitos respondem à imbri- vente). Dificuldade que só começou a ser transposta
cação entre as dimensões do psíquico e do político, anos mais tarde através do julgamento de Eichmann,
não podendo ser limitados a uma psicopatologia no qual os testemunhos das vítimas foram tomados
universal, sob os moldes do transtorno do stress pós- em seu conjunto enquanto prova da promotoria do
-traumático (TSPT). Muito antes elas testemunham Estado de Israel (Rousso, 2011). O caráter exemplar
dos destinos sociais do trauma, no qual cada sujeito do julgamento de Eichmann repousou assim, menos
apropria-se da vivência de ter sido afetado pelo ter- na punição de um dos arquitetos da deportação e da
ror do Estado de exceção. Ademais, tais falas (d)enun- solução final da questão judia, mas na possibilidade
ciavam heranças dos anos de chumbo presentes nas de se reconhecer na fala dos sobreviventes um esta-
práticas “psi”, nas quais a patologização, a disciplina- tuto de verdade. Ainda que não tenha sido o governo
ridade e a despolitização são marcas visíveis até hoje. de Israel o perpetrador das violências contra os judeus
Nessa perspectiva, julgamos ser importante apresen- e demais etnias, a dimensão da Justiça e do reconhe-
tar não somente o campo teórico que orientou nossa cimento estatal revela-se inseparável dos efeitos de
prática, mas igualmente a interpenetração deste atra- verdade e transmissão das histórias até então silen-
ciadas, sob o selo da culpa e do inimaginável.
vés do social (Fassin, & Rechtman, 2007).
Passados alguns anos, no contexto das políticas
de indenização da guerra do Vietnã, o mesmo pro-
Gramáticas do reconhecimento social blema foi reatualizado sob novas roupagens. Em meio
Na presente sessão procuraremos apresentar à reformulação que consagraria a disseminação do
alguns interrogantes produzidos por experiências The diagnostic and statistical manual of mental disor-
internacionais de reparação e suas consonâncias e ders, third edition (DSM III) enquanto manual de sín-
dissonâncias no contexto brasileiro. Há aí o campo dromes e transtornos mentais – universal e ateórico,
importante em que a noção de traumatismo foi tra- em contraposição ao modelo psicanalítico até então
balhada e modificada ao longo do século XX˚, não reinante –, a pressão das organizações e hospitais
apenas como operador teórico, mas como formas de de veteranos de guerra, levou Robert Spitzer e seu
legitimação, negociação e disputas do que significa grupo de trabalho a dar nascimento à noção do TSPT,
ser vítima de violência de Estado. que passaria a nomear e legitimar socialmente, não
De forma sucinta, salientamos que a política de somente os veteranos vítimas do horror da guerra,
reparação alemã aos sobreviventes da Shoah (Wie- mas igualmente os perpetradores do horror3 (Young,
dergutmachung, literalmente, “fazer o bem de novo”), 1995). Doravante, a comprovação dos traumas vivi-
foi extremamente criticada por seus assistidos (Wain- dos ficaria em segundo plano e este seria definido a
tranter, 2003). A necessidade imposta de comprovar, princípio como uma resposta normal a uma situação

3
Referimos sobretudo ao debate engendrado após o massacre de Mai Lay, evento no qual mulheres, crianças e idosos foram friamente
assassinados pelo exército norte-americano, ao mesmo tempo que essas cenas eram transmitidas aos lares de milhares de concidadãos.
Donde a expressão Self-traumatized perpetrator. Ver Young, (1995).

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anormal, enquadrada dentro dos critérios universais tizante é essa espécie de irradiação que não coloca,
da sintomatologia observada. em nenhum momento, em questão a dimensão cole-
No entanto, uma anulação da disparidade da tiva do trauma e a posição subjetiva do traumatizado.
dimensão moral entre vítima e perpetrador instau- Ainda que a noção do TSPT se ampare na dimensão
ra-se; um mesmo transtorno, socialmente legítimo do testemunho como porta de acesso à reparação, é a
e ainda não estigmatizante, passa a ser empregado, consagração do dano individual e sem distinção entre
a fim de que estes soldados vitimados por seus pró- vítima e algoz que dará legitimidade ao sofrimento.
prios atos de violência, passem a receber reparação O resultado disso é a privatização do dano que, ainda
pecuniária. Parêntese importante: dos oito sintomas que calcado numa compreensão exógena e dinâmica
descritos no TSPT no DSM III, apenas dois fazem do trauma, não é trabalhado pela coletividade na qual
menção ao sujeito que participou diretamente, ativa se insere, nem na subjetividade de seus atores. Toda e
ou passivamente, dos atos de violência; os outros qualquer semelhança com a Anistia de 1979 e a teo-
seis referem à dimensão do testemunhar da violência ria dos dois demônios na Argentina, certamente, não
enquanto fator potencialmente estressor e reatualiza- é mera coincidência. A equivalência entre torturador
dor de um trauma já experimentado. Fato que justifi- e vítima, enquanto duas faces de uma mesma moeda,
caria um veterano ser indenizado mesmo não tendo carece de contornos clínicos e sociais. A possibilidade
realizado ou sofrido diretamente uma violência. de um torturador perder algo de sua humanidade ao
Ora, essa questão nos interessa sobremaneira, seviciar o outro, não o desresponsabiliza de ocupar
na medida em que ela articula a noção do traumatismo uma posição de enunciação e de testemunhar seus
com as gramáticas de reconhecimento social do dano crimes. Caso contrário, sentir-se-ão os efeitos disso
sofrido, e ainda, sua legitimidade social. Se na experi- nas gerações posteriores4.
ência de reparação dos sobreviventes da Shoah são as Em oposição a essa proposta de um reconheci-
dimensões do inimaginável/irrepresentável e do senti- mento sem sujeito – pois calcado no dano traumático –,
mento de culpa que marcam o encontro entre os sobre- o projeto Clínicas do Testemunho trabalha a possibi-
viventes, sociedade e suas instituições, a gramática de lidade do testemunhar como horizonte clínico e polí-
reconhecimento que vai ser veiculada então é a de um tico do processo de reparação. Isto é, diferentemente
procedimento que procure reenquadrar essa culpa de do reconhecimento agenciado pelos processos de
sobreviver com as noções correntes da psicanálise de
Anistia, para que um sujeito possa ser atendido pelo
então. A revitimização é grande e repele os assistidos
Clínicas do Testemunho ele não precisa passar por um
que não estão interessados no rótulo de sindrômicos
dispositivo de veridicção administrativo do Estado, a
e nas indenizações do governo alemão. No contexto
fim de reconhecê-lo. Ou seja, aposta-se numa torção
norte-americano, para que o sofrimento dos veteranos
da posição do testemunho enquanto prova do fato
de guerra fosse socialmente legitimado, reconhecido e
narrado, promovendo uma rearticulação deste com
indenizado foi necessário que a TSPT anulasse a distin-
uma comunidade disposta a acolher e articular uma
ção moral e ética entre vítima e agressor, ao reformular
malha de testemunhos que devolvam à história sua
a noção do traumático como uma resposta normal a
dimensão coletiva.
uma situação anormal. Para tanto, as noções de irra-
diação e de reatualização traumática foram empre-
gadas na grande maioria dos critérios diagnósticos, Políticas do testemunho
indicando que o trauma seria transmitido às pessoas A prática do testemunho emerge ao longo do
testemunhas da barbárie, sem fazer referência alguma século XX como uma noção-limite que tenciona as
às diferentes implicações éticas dos afetados. fronteiras entre o individual e o coletivo, o jurídico e
Se outrora eram a suspeita e a prova do dano que o literário, a verdade e a ficção. Essa noção-limite do
pareciam organizar a porta de entrada à reparação, testemunho abre-nos um limiar ético para pensar
agora é uma gramática universal de reconhecimento como se articulam diferentes narrativas testemunhais,
do traumático que nomeará o sofrimento do sujeito, no seio das quais os próprios sentidos da experiência
cujo vínculo com o evento potencialmente trauma- do excesso, da exceção e do reconhecimento parecem

4
Atualmente a figura ambivalente dos veteranos de guerra norte-americanos tornou-se motivo tanto de chacota, quanto de angustiante
preocupação, frente às recorrentes e desastrosas passagens ao ato destes.

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estar em constante construção. Esse limiar ético é pre- igualmente, é um gesto que se oferece aos fluxos
cisamente formulado por Levi (1989) quando nos diz que tecem o político, em que se tramam as disputas
que o sobrevivente endereça-se a suas comunidades sobre os sentidos da história e da memória coletiva.
imbuído da responsabilidade de fazer falar aqueles que Nesse sentido, apostamos no efeito de transformação
fitaram o “rosto da Górgona”, tocaram o fundo e não que a recepção social de um testemunho possui sobre
retornaram. Enquanto superstes, testemunho da teste- o sujeito. O testemunho é sempre uma cocriação,
munha, o sujeito narra daquilo que lhe escapa à vivên- em que a posição do sujeito frente ao vivido é cons-
cia, colocando em causa o seu próprio acesso ao real tantemente refabricada na medida em que condições
do acontecimento. Furo do trauma que se constitui, ao sociais de recepção de seu relato são possibilitadas.
mesmo tempo, como causa e efeito da transmissão. Em seu terceiro livro, Os visitantes, Bernardo
Dada a impossibilidade de narrar integralmente Kucinski (2016) opera uma virada narrativa curiosa
o horror concentracionário ou ditatorial, a emergên- frente a suas primeiras obras testemunhais: K, Rela-
cia do testemunho no século XX irá colocar em xeque tos de uma busca e Você voltará para mim. Nele não
a própria capacidade da linguagem de dar conta do encontramos mais a tentativa kafkiana de descrever
horror vivido. O testemunho opera, assim, uma infle- o labirinto fabricado pelos agentes da ditadura na
xão nos campos jurídicos e historiográficos. No lugar procura de um pai por sua filha desaparecida, nem os
da objetividade e neutralidade do depoimento imutá- contos que buscam materializar a memória coletiva
vel, a ser repetido à exaustão – em nome da verdade e de uma época; muito antes, a narrativa versa sobre o
nada mais que a verdade – impõem-se novas formas isolacionismo do personagem que anseia pelo reco-
de aproximar-se da cena, costeando o irrepresentável nhecimento social de seu primeiro livro. Um por um,
do vivido. A narrativa testemunhal trará consigo, por- os visitantes vêm bater a sua porta, confrontar-lhe
tanto, a marca de uma insuficiência de tudo represen- com as imprecisões de seus escritos, demandar retra-
tar: será sempre através de um resto que o testemunho tações, esclarecer fatos insólitos e, por fim, proclamar
irá se constituir. Donde o apelo ficcional lançado por seus vereditos. As reiteradas justificativas de tratar-se
Antelme (1957): “Ficou claro então que seria apenas de um escrito ficcional, até então utilizadas pelo
por meio da escolha, ou seja, ainda pela imaginação, autor, passam gradualmente a dar lugar à disputa,
que poderíamos tentar dizer algo” (p. 9). ao confronto, anunciando uma reconciliação impos-
O espaço ficcional do testemunho revela-se, sível entre história e memória, ficção e verdade, entre
em nossa experiência, como uma dimensão impres- justiça e responsabilidade.
cindível para a elaboração e a transformação psíquica No entanto, a importante virada apresentada na
e política do traumático ao “abrir as imagens” da vio- obra não parece repousar na constatação desse diag-
lência totalitária. Imagens fragmentárias, lacunares, nóstico, mas se anuncia como um efeito deste: frente
mas imagens que, apesar de tudo, sobrevivem à vio- à suspeita de seus concidadãos ou mesmo à crença
lência que procura desmentir a existência do inima- obediente de alguns, o autor vê-se levado não apenas
ginável para fazer falar aqueles que sucumbiram, para a confessar suas ficções literárias, mas a recontar as
constituírem-se como resistência ao apagamento histórias sobre sua irmã e pai, e, sobretudo, pensar
(Didi-Huberman, 2012). Daí a importância do outro a sua posição frente ao seu escrito. Isto é, a reposi-
que esteja disponível a acolher e escutar o testemu- cionar-se na cena que outrora conferia-lhe um lugar
nho. Segundo Gagnebin (2006): “testemunha também indeterminado, senão de espectador, para implicar-se
seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir em sua história e sofrimento. A passagem do testemu-
a narração insuportável do outro e que aceita que nho pela ficcionalização revela-se, por conseguinte,
suas palavras levem adiante, como num revezamento, não como um embuste, mas antes como a criação de
a história do outro” (p. 57). uma outra cena que, permitirá em um outro tempo a
Gesto de restituição a um possível comum, transformação daquilo que não podia ser ainda colo-
diria Agamben (2014); de profanação do mutismo e cado em palavra. Vale notar igualmente a dimensão
desmentido estatal de histórias às quais quisera-se transitiva e processual do testemunho: tal como para
restringir à sacralidade do silêncio e da solicitude. Primo Levi, Bernardo Kucinski toma para si a tarefa
O testemunho enquanto ato público, por excelência, de pensar sobre seu processo testemunhal somente
devolve à história sua dimensão coletiva. No entanto, depois de escritos os primeiros relatos de horror.

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Grupo de Testemunho: testemunhar de tualização das cenas vividas. É sempre num segundo
si através do reconhecimento do outro tempo que o sujeito pode significar tais cenas, dan-
A partir das Conversas Públicas, constatamos a do-lhe novos contornos e sentidos. Segundo Mala-
importância de um outro dispositivo clínico e polí- bou (1996), é o próprio acontecimento que não
tico, que pudesse engendrar a fabricação de teste- adquire a dimensão da negatividade, uma vez que
munhos. Para tanto, constituíram-se os Grupos de não é recalcado. Trata-se de um “corpo estranho” que
Testemunho como uma espécie de formação inter- nem se introjeta nem se rejeita, ele invade e destrói
mediária entre o público e o privado, cuja porosi- todo sistema desde dentro.
dade permitiu que pessoas aproximassem-se, sem O grupo inicia-se com o silêncio, passa ao cochi-
necessariamente sentirem-se expostas ou obrigadas cho, ao grito, ao choro, até alcançar a fala. “Como tra-
a falar publicamente. Composto heterogeneamente balhar com as memórias?”, tal é a pergunta que marca
por sujeitos de três gerações distintas (afetados dire- a pré-tarefa grupal. Supõe-se que todos participantes
tamente e indiretamente, filhos e netos), o “comum” do projeto têm em comum serem afetados pela vio-
desses grupos reside no fato de todos serem afetados lência de Estado, no entanto, suas ancoragens trans-
pela violência de Estado e procurarem espaços de ferenciais no grupo são diferentes. Há inicialmente o
fala e compartilhamento. participante que é investido na posição do líder, cujo
Este trabalho grupal é concebido inicialmente fato de ter sido torturado e ser o mais experiente ali,
através do referencial proposto por Pichon-Rivière, de coloca-o como um ideal frente aos demais partici-
Grupos Operativos. Desta feita, o grupo organiza-se pantes de outra geração. O grupo está ali para ouvi-lo.
em torno de uma tarefa, que é explicitada pelos coor- O seu testemunho é o mais importante, pois imagina-
denadores quando dos encontros iniciais, a saber, cada riamente é o que carrega maior proximidade dos fatos.
sujeito ali presente poder constituir seu testemunho O grupo só pode tomar para si a tarefa de testemu-
ao longo dos encontros. Como ressalta Pichon-Rivière nhar na medida em que esse líder não dê conta – ou
(2000), “[o grupo] centrado na tarefa, que tem como se dê conta – desse investimento; que sua palavra não
finalidade aprender a pensar em termos da resolução esteja ali para tamponar o medo que os outros sen-
das dificuldades criadas e manifestadas pelo grupo tem em ter de contar suas histórias. Fato que, quando
[...] que enuncia um acontecimento como porta-voz finalmente ocorre, não se dá sem os efeitos mortíferos
de si mesmo e das fantasias inconscientes do grupo” da reatualização do traumático.
(p. 105). Cabe ressaltar, no entanto, os diferentes Na medida em que se pode compartilhar grupal-
enquadres e estratégias de abordar os emergentes que mente os sentimentos de medo e vergonha que habi-
circulam no grupo, notadamente devido ao fator de tam o sujeito de forma clandestina, mas que dizem de
reatualização traumática ali implicado. Se o objetivo algo coletivo que também habita os outros, pode-se
do grupo não é terapêutico, ele não deixa de suscitar romper gradualmente as lógicas de terror que os
efeitos terapêuticos. Isto é, a entrada na tarefa ou as dispositivos de silenciamento engendram. O que se
muitas resistências que ela suscita devem sempre ser modifica é a posição subjetiva desde a qual o sujeito
pensadas sob a ótica da construção de um repertório se coloca na cena de terror, bem como as condições
psíquico e coletivo capaz de dar sustentação à tarefa. de recepção do relato que, ao passar pelo campo gru-
Dar figurabilidade e um espaço de representa- pal, oferece uma nova espacialidade para o sujeito
ção às cenas despedaçadas – à espera de significa- traduzir o terror em uma experiência de resistência,
ção – passa muitas vezes pelo retorno de eventos ainda que esta possa falar sobre a cena na qual ele não
que enclausuram o sujeito em sentimentos de culpa pode resistir.
e vergonha frente a vivência do terror. Verificamos Há aqueles que nunca falaram porque nunca
em nossa experiência, aquilo que alcunhamos como se sentiram afetados ou porque nunca tiveram um
o “perdido de si”: vazios de sentido que geram dor, receptor que lhes acolhesse em seu sofrimento e ver-
medo, silêncio, a destituição da condição de sujeito dade; cuja emergência era marca de patologia, de
por efeito da paralisação do processo psíquico de impertinência ou de contágio. É na atribuição de sen-
simbolização. Concebemos os momentos de silêncio tido do outro, que se inscreve o espaço da alteridade,
e tentativas de fala a partir de uma espiral da tempo- que o “perdido de si” passa a ser comum ao grupo,
ralidade psíquica, na qual cada volta implica a rea- que o evento no qual ele é destituído de humanidade

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passa a reenquadrá-lo na cena; não mais como exclu- A ficção como dispositivo de reparação e
ído, mas testemunha dela. Ao testemunhar ao outro, transmissão
testemunho a mim mesmo e também minha posição O Grupo de Testemunho torna-se um processo
na cena. Ao ressignificar a posição na cena, o sujeito que, não por acaso, clama por uma materialização.
emerge e doravante “as ligações psíquicas se retra- No grupo referido, tal necessidade denominou-se:
duzem em uma temporalidade que não é linear, nem “caixa de memória”. Passou-se a resgatar, ordenar e
literal” (Conte, 2014). Nunca mais serão as mesmas. dar uma continência as histórias que circularam no
Aquilo que fora marcado pela paralisia põe-se agora grupo, mas pareciam sempre destinadas ao esqueci-
num movimento cujos destinos não deixam de pro- mento ao vazio. No entanto, como nos lembra Antelme
vocar um sentimento paradoxal de perda. Ocorre que (1957), frente ao trabalho infindável de representar o
esta não será da mesma ordem do que o “perdido de vazio de sentido do trauma, a imaginação impõe-se
si” de outrora, visto que traz consigo uma espécie de como dimensão incontornável ao testemunhar. Tal
marca de proveniência: a experiência compartilhada. qual o escudo de Perseu utilizado para matar a Gór-
Ao unir o vivido à palavra e apresentá-la como gona, cujo real do olhar congela a todos que a olha-
objeto para a reflexividade de um estar na história rem diretamente, a dimensão da imaginação entra
do outro, sem destruí-la ou destruir-se, constitui-se em cena como abertura de sentidos do trauma. Da
o testemunho. Há o evento de um participante que, literalidade da cena do horror é possível derivarem-se
ainda menino, teve que queimar os livros do pai e não imagens que permitam diluir a sideração.
sabia o porquê. Conta que “o meu medo e a minha Frente a isso, o grupo decide reunir suas histó-
luta é para não repetir-se”. Repetir não é o mesmo rias em um relato ficcional intitulado Arquivos da
que repetir-se. Seu ato falho revela as duas dimen- vó Alda. Trata-se de um livro aberto que apresenta
sões implicadas no processo testemunhal: a cena de uma metáfora do silenciamento e não transmissão:
repetição de que, tal como o pai, ele tenha que quei- vó Alda sofre subitamente um mal e é diagnosticada
mar seus livros e perder parte de si; mas evidencia com Alzheimer. Passa a falar de estórias e pessoas até
igualmente o movimento de fazer circular entre seus então nunca escutadas pelos filhos e netos. Do alarme
pares no grupo o efeito de sua vivência mortífera e à curiosidade, do disparate senil à possibilidade de
reconhecer-se em suas escolhas posteriores, como um tesouro (qual a fábula de Esopo), deixam-se serem
seu amor pelos livros. levados pelo enigmático da fala da avó.
Importante sublinhar, no entanto, que o dis- As falas de vó Alda são precisamente as colagens
positivo grupal passa igualmente a reproduzir as dos vários testemunhos, até então inclassificáveis,
tramas e disputas de memória presentes em nosso produzidos ao longo de mais de um ano de grupo.
laço social. Por exemplo, não raro, certos membros Sob a pena de Maria Luiza Castilhos Cruz, elas pas-
passam a insistir sobre fatos, datas, nomes quando sam por um rearranjo, cuja escrita permite novos
do testemunho de um participante – assim como destinos. O livro apresenta, no suposto momento de
relatado no livro de Kucinski (2016). A virtualidade revelação, uma escansão. A narrativa finda e o leitor
do falso testemunho ou de sentimentos de fracasso vê-se frente a um convite, cujo poder convocatório
passam a invadir o grupo que se acaba por fugir e não deixa de se fazer presente. Estórias sem final
defender-se da tarefa. Desta feita, serão os porta- para que outros leitores continuem contando como
-vozes grupais que anunciam essas formas sinto- teria sido a vida da vó Alda. Aquilo que precisou
máticas de escutar o testemunho de cada um. Essas passar pela metaforização para conhecer a luz do
enunciações têm por efeito criar possibilidades para dia, somente encontrará um destino na imaginação
que cada sujeito possa tecer sua narrativa, na qual do receptor. É somente aí que a frase de Mia Couto,
a indeterminação e a transição são imprescindíveis empregada como epígrafe deste trabalho, parece
para a constituição do testemunho. A travessia gru- ganhar seu sentido pleno. O sol a nascer dentro de
pal é constituída por essa passagem de uma sobre- nós: a dimensão ficcional que permite que o olhar
determinação das vivências de horror a um processo novamente para a cena do horror não seja de uma
indeterminado, em que os sentidos e as modulações cegueira, mas reparação através da criação.
dos testemunhos são conhecidos somente a partir A partir dessa experiência grupal, o dispositivo
do efeito de compartilhamento. de Conversas Públicas passou a ser reinventado pelos

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participantes do projeto. Ao constituírem seus teste- sujeito, na qual não é a comprovação do dano ou da
munhos a partir da experiência grupal, muitos dos prova jurídico/histórica (ou seja, de uma positivação
participantes demonstraram seu desejo de prestar de seus predicados) que garante exclusivamente o
pública e coletivamente seu testemunho, de forma reconhecimento. Entendemos o exercício testemu-
inédita. Do silenciamento ao protagonismo, o teste- nhal como um processo de transição e indetermi-
munho desses sujeitos foi marcado pela potência do nação em que o sujeito pode, não somente operar
contágio. Isto é, a medida em que as condições sociais a transmissão das experiências limites de horror e
de recepção e reconhecimento dos testemunhos eram resistência, mas igualmente ressignificar seu sofri-
possibilitadas, passamos a testemunhar a quebra de mento no seio de uma coletividade, na qual efeitos
pactos de silêncio instituídos dentro de famílias, gru- de reconhecimento são operados vertical (Estado)
pos e amigos. Em uma Audiência Pública de Filhos e e horizontalmente (social).
Netos de afetados, por exemplo, netos puderam con- Isso implica em desconfiar de um “percurso nor-
tar a história de avós que nunca falaram: “quarenta matizador”, tanto psicologizante – que desaguaria na
anos depois sentei com minha avó e pedi que ela me suposta “elaboração do trauma” –, quanto macropolí-
contasse a história de meu tio desaparecido, pela pri- tico – em que se supõe que a reparação psíquica pro-
meira vez eu estava realmente disposta a ouvir e ela duziria uma identificação à militância por verdade,
finalmente teria alguém que escutasse”. memória e justiça ou uma pré-condição para a luta
O efeito de contágio de escutar essas histórias por direitos. Nesse sentido, o Clínicas do Testemu-
narradas de forma inédita junto aos participantes que nho mantém suas reservas frente a um ideal de cura
já haviam prestado seu testemunho anteriormente foi terapêutica ou político-ideológico específico, apro-
o de dar-se conta de que seus processos testemunhais ximando-se de uma dimensão ética em que o reco-
não haviam terminado. Não apenas pela constatação nhecimento é o efeito do lugar de fala desde o qual a
de que se pode narrar uma mesma história de mui- verdade do sujeito pode emergir. A ideia não é despo-
tas formas, ou de que há coisas que não se conseguirá litizar a reparação psíquica, afirmando que se possa
nunca narrar, mas que quando endereçados às comu- prescindir do Estado enquanto agente da reparação
nidades, famílias e ao poder público esses testemu- ou abdicar da luta pela responsabilização dos agentes
nhos possuem a potência indestrutível do desejo de do Estado; mas, antes, não perder de vista os efeitos
restituir a um comum aquilo que havia sido captu- de reconhecimento, enquanto dimensão de justiça,
rado pelo poder. que são operados no Clínicas do Testemunho aquém
e além da esfera estatal. Desta feita, os efeitos dessa
Considerações finais clínica podem ser lidos por sua terapêutica, e igual-
A Clínica do Testemunho não possui como hori- mente pelas transformações que o reconhecimento
zonte terapêutico o relato de um conteúdo pré-deter- opera na experiência subjetiva dos afetados.
minado, a partir do qual o sujeito supostamente pode- Até hoje, os teóricos da justiça de transição
ria aspirar ao reconhecimento de seus pares; antes, demonstram certa dificuldade em absorver esses efei-
o testemunho veicula uma travessia do processo de tos na agenda da transição, sobretudo por ainda man-
sobredeterminação do sujeito provocado pela violên- terem um horizonte normativo que toma as políticas
cia de Estado que transborda sobre o social. Ao invés de reconhecimento por uma esfera compensatória,
da privatização do dano e da passivização política isto é, desprovida de um potencial transformador de
dos sujeitos que só podiam ser reconhecidos indi- justiça, memória e verdade – limitando-se à noção
vidualmente, o processo veiculado pelo Clínicas do afirmativa de suas reivindicações (Fraser, 1995).
Testemunho propõe o resgate da dimensão coletiva É necessário ressaltar, outrossim, que esse problema
da experiência e incide sobre formas sintomáticas de também diz respeito aos psicólogos e aos psicanalis-
reconhecer-se como vítima da violência de Estado. tas, que nem sempre logram demonstrar a dimensão
No âmbito das políticas públicas, sustentamos política do trabalho clínico. Destacamos, portanto,
que, sendo a porta de entrada do Clínicas do Teste- a potência da esfera do reconhecimento enquanto
munho a possibilidade do testemunho, o processo dimensão de justiça, uma vez que a coletivização da
de reparação psíquica aí operado coaduna-se a história vivida fortalece às políticas de memória, ver-
uma postura antipredicativa de reconhecimento do dade e justiça.

158
Indursky, A.; Conte, B. (2017). Reparação Psíquica .

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Alexei Conte Indursky


Doutor em Psicanálise e Psicopatologia pela Universidade Paris VII, Sorbonne, Denis-Diderot, França. Coordenador
técnico do Projeto Clínicas do Testemunho/ Instituto Appoa-RS/Comissão de Anistia/Ministério da Justiça (2016–2017).
E-mail: alexei.indursky@gmail.com

159
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 149-160.

Bárbara de Souza Conte


Psicanalista. Doutora em Psicologia pela Universidade Autônoma de Madrid, Espanha. Membro pleno da Sigmund
Freud Associação Psicanalítica. Coordenadora da Clínica do Testemunho/Comissão de Anistia/Ministério da Justiça
(2013–2015) e integrante do projeto Clínicas do Testemunho/Instituto Appoa (2016–2017). Membro da Comissão de
Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia (2013–2016).
E-mail: barbara.conte@globo.com

Endereço para envio de correspondência:


Rua Correa Lima, 1421, Casa 02, Santa Tereza. CEP: 90850-250.
POA – RS. Brasil.

Recebido 18/06/2017
Reformulação 15/09/2017
Aprovado 20/09/2017

Received 06/18/2017
Reformulated 09/15/2017
Approved 09/20/2017

Recebido 18/06/2017
Reformulado 15/09/2017
Aceptado 20/09/2017

Como citar: Indursky, A., & Conte, B. (2017). Reparação psíquica e testemunho. Psicologia: Ciência e Profissão,
37(n. spe), 149-160. https://doi.org/10.1590/1982-3703110002017

How to cite: Indursky, A., & Conte, B. (2017). Psychic reparation and testimony. Psicologia: Ciência e Profissão,
37(n. spe), 149-160. https://doi.org/10.1590/1982-3703110002017

Cómo citar: Indursky, A., & Conte, B. (2017). Reparación psíquica y testimonio. Psicologia: Ciência e Profissão,
37(n. spe), 149-160. https://doi.org/10.1590/1982-3703110002017

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 161-171.
https://doi.org/10.1590/1982-3703120002017

O Ensino Testemunhal entre os Restos da Ditadura:


uma Metodologia Ético-política

Helena Pillar Kessler Daniel Boianovsky Kveller


Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS, Brasil. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS, Brasil.
Marina da Rocha Rodrigues Karine Shamash Szuchman
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS, Brasil. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS, Brasil.

Resumo: O presente artigo tem por objetivo principal apresentar o exercício testemunhal como
um potente método de ensino ético-político, por meio do relato de uma experiência de docência
em um curso de graduação de Psicologia do Rio Grande do Sul. Propusemos uma disciplina
chamada “O que resta da ditadura: estudos clínico-políticos sobre violência”, que teve como
finalidade estudar os efeitos traumáticos da violência, a função testemunhal como possibilidade
de transmissão e elaboração e as implicações desses temas para o trabalho de psicólogos(as) no
Brasil. Iniciamos nosso relato descrevendo como tornamos as noções de trauma e testemunho
ferramentas de ensino. Situamos, assim, a origem e a importância desses conceitos para os campos
da psicanálise, da literatura e da história, propondo também uma maneira de utilizá-los como
recursos pedagógicos. A seguir, narramos alguns episódios que levaram à emergência de uma
“crise” em sala de aula. Discutimos essa crise como uma soma de fatores, destacando-a como um
processo próprio da experiência de ensino e justificando, desta feita, que todo ensino testemunhal
deve passar por uma crise. Por fim, resumimos os principais aspectos que caracterizam o ensino
testemunhal, tal como o entendemos, e analisamos por que ele é uma ferramenta potente na
formação de psicólogos(as) na atual conjuntura social e política.
Palavras-chave: Testemunho, Educação, Ditadura Civil-militar, Psicanálise.

Testimonial Teaching among the Remains of the


Dictatorship: An Ethical-political Methodology

Abstract: The main purpose of this article is to present testimonial exercise as a powerful
method of ethico-political teaching, by reporting of a teaching experience in a psychology
undergraduate course in Rio Grande do Sul. We proposed a course called “What remains of
dictatorship: clinical-political studies of violence” to study the traumatic effects of violence, the
role of testimony as a possibility of transmission and working-through, and the implications of
these themes for the work of psychologists in Brazil. We begin our account by describing made
the notions of trauma and testimony can be incorporated as teaching tools. We thus locate the
origin and importance of these concepts for the fields of psychoanalysis, literature and history;
also proposing a way of using them as pedagogical tools. After that, we narrate some episodes
that led to the emergence of a “crisis” in the classroom. We discuss this crisis as a sum of factors,
highlighting it as an inherent process of the teaching experience and justifying, therefore, that
all testimonial education must go through a crisis. Finally, we summarize the main aspects that
characterize testimonial teaching, as we understand it, and analyze why it is a powerful tool in
the education of psychologists in the current social and political conjuncture.
Keywords: Testimony, Education, Civil-military Dictatorship, Psychoanalysis.

Disponível em www.scielo.br/pcp
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 161-171.

La Enseñanza Testimonial entre los Restos de la


Dictadura: una Metodología Ético-política

Resumen: El presente artículo tiene por objetivo principal presentar el ejercicio testimonial
como un potente método de enseñanza ético-político, a través del relato de una experiencia de
docencia en un curso de pregrado de psicología de Rio Grande do Sul. Propusimos una disciplina
llamada “Lo que queda de la dictadura: estudios clínico-políticos sobre la violencia”, que tuvo
como finalidad estudiar los efectos traumáticos de la violencia, la función testimonial como
posibilidad de transmisión y elaboración, y las implicaciones de esos temas para el trabajo de
psicólogos(as) en Brasil. Iniciamos nuestro relato describiendo cómo hicimos las nociones de
trauma y testimonio herramientas de enseñanza. Situamos así el origen y la importancia de
estos conceptos para los campos del psicoanálisis, de la literatura y de la historia; proponiendo
también una manera de utilizarlos como recursos pedagógicos. A continuación, relatamos
algunos episodios que llevaron a la emergencia de una “crisis” en el aula. Discutimos esa
crisis como una suma de factores, destacándola como un proceso propio de la experiencia
de enseñanza y justificando, así, que toda educación testimonial debe pasar por una crisis.
Finalmente, resumimos los principales aspectos que caracterizan la enseñanza testimonial, tal
como la entendemos, y analizamos por qué es una herramienta potente en la formación de
psicólogos(as) en la actual coyuntura social y política.
Palabras claves: Testimonio, Educación, Dictadura Civil-militar, Psicoanálisis.

Engana-se e priva-se do melhor quem se limitar mente como uma técnica disciplinar, dedicada vigi-
a fazer o inventário dos achados, e não for capaz lante das fronteiras biopolíticas a dividir o normal do
de assinalar, no terreno do presente, o lugar patológico, o adequado do impróprio e o promissor
exato em que guarda as coisas do passado. do intratável (Nardi, & Silva, 2004).
Walter Benjamin (2014) Não é de se espantar, portanto, que a Psicologia
tenha sido também uma confiável aliada de alguns
dos regimes totalitários que marcaram os últimos
Introdução cem anos. No caso brasileiro, como afirma Coimbra
Ao longo do século XX, a Psicologia não apenas
(2009), é notória a cumplicidade de psicólogas e psi-
consolidou-se como um campo específico de conhe-
cólogos com práticas de violência de Estado durante
cimento, mas, também, simultaneamente, ajudou a ditadura civil-militar (1964–1985), sendo um dos
a construir o mundo em que vivemos e os sujeitos exemplos paradigmáticos da colaboração da catego-
que nos tornamos. De acordo com Rose (2008), con- ria a elaboração de um “perfil psicológico do terrorista
vém situarmos tal processo como resposta a uma brasileiro”. A própria regulamentação da profissão1 e
crescente demanda por regulação institucional: nas a abertura dos primeiros cursos de graduação se deu
fábricas, escolas e prisões, por exemplo, a Psicologia nesse período, fatos que de forma alguma podem ser
foi cada vez mais convocada a constituir saberes cien- tratados como mera coincidência. É igualmente opor-
tíficos que permitissem administrar, regular e classi- tuno notar que foi justamente a Psicologia dita “ofi-
ficar pessoas com maior eficiência, produtividade e cial” – aquela que se arroga a prerrogativa de enunciar
menor custo. É atendendo a esses pedidos, disfarçada a última verdade, uma vez que se diz “mais científica”,
sob as vestes da neutralidade e da objetividade, que “mais neutra” e “mais objetiva” – a corrente que mais
a Psicologia ganha espaço e se constitui majoritaria- intensamente se submeteu ao aparelho repressivo do

1
O Conselho Federal de Psicologia e os Conselhos Regionais foram criados pela Lei nº 5.766, de 20 de dezembro de 1971, regulamentada
pelo Decreto no 79.822, de 17 de junho de 1977 (Brasil, 1977).

162
Kessler, H. P.; Kveller, D. B.; Rodrigues, M. R.; Szuchman, K. S. (2017). O Ensino Testemunhal entre os Restos da Ditadura.

Estado, oferecendo-se como ferramenta de normali- canálise, da literatura e da história, propondo também
zação social (Scarparo, Torres, & Ecker, 2014, p. 73). uma maneira de utilizá-los como recursos pedagógi-
Nesse sentido, levando em consideração os acon- cos. A seguir, narraremos alguns episódios que leva-
tecimentos políticos que têm novamente colocado ram à emergência do que chamamos de uma crise em
em xeque o estatuto democrático de nossa república sala de aula, um momento em que a nossa proposta
nos últimos anos, bem como a importância das uni- de ensino foi posta em questão pela dinâmica que nós
versidades na formação de psicólogas e psicólogos, mesmos havíamos sugerido. Discutiremos como essa
perguntamo-nos: como pensar uma formação acadê- crise foi, na verdade, um processo necessário nessa
mica crítica do fazer psi? Como pensar uma formação experiência, e arriscaremos afirmar que todo ensino
que se contraponha à primazia da técnica e da pre- testemunhal deve, por sua própria singularidade, pas-
tensa “neutralidade” para valorizar também a análise sar por uma crise. Por fim, resumiremos os principais
de implicação com a conjuntura social de nosso país? aspectos que caracterizam o ensino testemunhal, tal
Como formar psicólogas e psicólogos capazes de tra- como o entendemos, e analisaremos por que ele é
balhar a memória das décadas vividas sob Estado de uma ferramenta potente na formação de psicólogas e
exceção a partir de um outro referencial ético-polí- psicólogos na atual conjuntura social brasileira.
tico? Partindo de tais questionamentos, o presente
artigo indica uma possível direção de trabalho ao O testemunho como metodologia
apontar o testemunho como uma potente metodolo- A disciplina “O que resta da ditadura: estudos clí-
gia de ensino. Para tanto, realizaremos um relato de nico-políticos sobre violência” foi oferecida como ele-
nossa experiência como docentes em um curso de tiva no currículo do curso de graduação em Psicologia
graduação em Psicologia do Rio Grande do Sul. e fez parte do estágio de docência de três mestrandas e
A docência em questão aconteceu durante o pri- um mestrando. Destacamos os “restos” como questão
meiro semestre do ano de 2016. Propusemos uma central por entender que a transição brasileira para a
disciplina chamada “O que resta da ditadura: estudos nossa nova democracia foi, acima de tudo, um acordo
clínico-políticos sobre violência”, que teria como obje- entre as elites – “uma reconciliação extorquida” (Gag-
tivo estudar as lógicas de reprodução da violência esta- nebin, 2010, p. 177) – que privilegiou a manutenção
tal, seus efeitos traumáticos e suas implicações para a do poder e negligenciou diversas obrigações institu-
formação de psicólogas e psicólogos no Brasil. Como cionais próprias à justiça de transição, à construção
será detalhado nas próximas seções, dividimos o cro- da memória e à reparação dos danos causados pela
nograma em módulos temáticos, destacamos alguns violência de Estado. Sublinhamos a importância de
conceitos centrais a serem trabalhados e definimos levar essas discussões para a universidade e para a
nossa metodologia como um “ensino testemunhal”, formação em Psicologia dentro de um permanente
tomando de empréstimo a expressão cunhada por Fel- exercício ético e crítico diante da posição que ocupa-
man (2000, p. 68). Propusemos olhar para os “restos” de mos. Assim, o objetivo principal da disciplina foi estu-
um passado pouco elaborado para pensar os desafios dar o impacto daquilo que permaneceu, os efeitos
do tempo presente e, assim, refletir sobre as implica- traumáticos da violência, a função testemunhal como
ções profissionais e éticas do nosso trabalho como possibilidade de transmissão e elaboração e a impli-
psicólogas e psicólogos frente às diversas violências cação desses temas para o trabalho de psicólogas e
de Estado. Não poderíamos ter imaginado, entretanto, psicólogos no Brasil.
que a nossa proposta, os acontecimentos políticos que Para compor esse diálogo, pareceu-nos interes-
tomavam conta das ruas do país na época e as próprias sante lançar mão das noções de “trauma” e “testemu-
vivências das alunas e dos alunos fariam emergir uma nho” como guias conceituais no percurso de ensino
inusitada “crise” em sala de aula; e que essa crise, por ao longo do semestre. A noção de trauma ganhou
sua vez, se revelaria a própria condição de um ensino importância inicialmente no campo da psicanálise,
testemunhal tal como o pensamos. relacionada à vivência de um ou mais acontecimen-
Iniciaremos nosso relato descrevendo como tos aterrorizantes, inesperados e incontroláveis que
tornamos as noções de trauma e testemunho ferra- adquirem um caráter de excesso para o sujeito. De
mentas de ensino. Situaremos, assim, a origem e a acordo com Freud (1920/2010), a intempestividade
importância desses conceitos para os campos da psi- e a violência da situação traumática impedem que o

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 161-171.

aparelho psíquico organize suas defesas, o que gera Desde essa perspectiva, o exercício testemunhal
uma “invasão” de estímulos desconectados. A tenta- distancia-se da esfera jurídica, em que é utilizado
tiva de “ligação” desse excesso ao sistema de repre- como ferramenta para a obtenção de uma verdade
sentações psíquico se daria mediante ações repetiti- que precisaria ser verificada através de provas, e de
vas que se apresentam na forma de compulsão, tais um modelo positivista de historiografia, que deve
como pesadelos, flashbacks, e outros tipos de revivên- basear-se exclusivamente em documentos e fatos
cias. Levando o sujeito a reviver a situação traumática, cientificamente verificáveis. O entendimento que res-
essas seriam formas de tentar apreender aquilo que gatamos sublinha a importância de situar o testemu-
ficou sem significação, de tramar sentidos possíveis nho em sua estrutura processual (Laub, 1995), lacunar
a posteriori (nachträglich) ou, como diria Endo (2005), (Agamben, 2008) e ficcional (Gagnebin, 2006), visto
de “refazer o caminho desconhecido do trauma [...], que, desde sua inerente incompletude, apresenta-se
agora com o ego de prontidão” (p. 146). como uma versão sempre singular, subjetiva e limi-
Vale lembrar que a raiz indo-europeia do termo tada que tenta dar conta do que ficou sem sentido.
indica que a palavra trauma pode significar “friccio- No caso dos países latino-americanos que vive-
nar”, “triturar”, “perfurar”, mas também “suplantar”, ram sob ditaduras no contexto da guerra fria, é pre-
“passar através”. Essa proposição acentua o cará- ciso considerar ainda a recusa deliberada dos regimes
ter paradoxal da experiência traumática, que pode ditatoriais em reconhecer as suas próprias práticas
se referir tanto ao evento “perfurante” e inesperado de violência, como a tortura e os desaparecimentos
que se torna inassimilável ou incompreensível para o forçados. Nesses casos, evidencia-se o teor eminente-
sujeito que o vivencia, quanto para delinear a forma mente político do exercício testemunhal, que se con-
através da qual esta “incompreensão” segue acom- figura como a própria possibilidade de narração da
panhando-o ao longo de sua história, reproduzindo- história das vítimas (Seligmann-Silva, 2005).
-se enigmaticamente (Nestrovski, & Seligmann-Silva, Apoiados em Felman (2000), podemos dizer que
2000). Nesse sentido, mais do que as especificidades há uma dimensão de crise inerente ao ato testemu-
do evento em si, quando se fala em trauma, a ênfase nhal. Por uma via, o traumático desafia a linearidade
está colocada nas possibilidades singulares de cada da história, a capacidade representativa da linguagem
sujeito habitar um limiar oblíquo entre o representá- e confere ao testemunho, portanto, uma potência
vel e o irrepresentável, entre a tentativa da lembrança desestabilizadora. Ao mesmo tempo, como possibili-
e a necessidade do esquecimento, entre a colocação dade de narração de uma “história dos vencidos” (Ben-
em palavras e a passagem ao ato. jamin, 1996), o testemunho desvela a história como um
A noção de trauma também tem sido utilizada campo de disputas hermenêuticas onde a verdade ofi-
para refletir sobre o legado dos grandes episódios cial sobre o passado deve estar permanentemente em
violentos que se abateram sobre grupos, povos ou suspensão. Segundo a autora (Felman, 2000), “o tes-
nações inteiras, especialmente aqueles que marcaram temunho não é autêntico sem essa ‘crise’, que tem de,
o século XX e o início do século XXI, episódios muitas precisamente, quebrar e reavaliar categorias e pontos
vezes denominados “catástrofes” (Ortega, 2011). Espe- de referência precedentes” (p. 68, grifo nosso). Desde
cialmente após Auschwitz, intensificou-se um enigma essa perspectiva, pensamos que todo testemunho
para a escrita da história: como narrar episódios que implica uma surpresa, uma vez que perturba o que até
desafiam as possibilidades conceituais de representa- então entendia-se univocamente como o “passado” e
ção por seu próprio caráter traumático? Como trans- faz emergir o impensado e o imprevisto.
mitir a história desses eventos que excedem o que Destacamos que estão em jogo as condições de
conseguimos dizer deles? Ao mesmo tempo, como recepção de testemunhos, visto que se tratam de nar-
não silenciar diante disso que é impossível de dizer, rativas que não possuem reconhecimento oficial e que,
e como impedir o esquecimento do que se passou? A por conseguinte, não raro acabam encapsuladas em
partir dessa necessidade e de sua simultânea impos- zonas de silêncio e compartilhamentos impossíveis
sibilidade, a noção de testemunho, como a narração (Kupferberg, 2009). Distanciando-nos novamente da
possível de um evento traumático, ganha especial esfera jurídica, compreendemos essas condições não
relevância nos estudos interdisciplinares sobre histó- mais como uma técnica para extrair provas, e sim como
ria, memória e literatura (Seligmann-Silva, 2000). princípios que norteiam uma construção conjunta,

164
Kessler, H. P.; Kveller, D. B.; Rodrigues, M. R.; Szuchman, K. S. (2017). O Ensino Testemunhal entre os Restos da Ditadura.

simbólica e desafiadora entre aquele que fala e aquele objetivo introduzir as questões que orientariam os
que escuta. Afinal, se por um lado o testemunho diz trabalhos durante o semestre, ou seja, “o que são os
dos limites do que se consegue narrar, por outro aponta restos da ditadura?” e, mais especificamente, “quais as
para os limites do que suportamos escutar. Sublinha- relações desses restos com a formação em Psicologia?”.
mos, portanto, a necessidade de acolher o relato do O segundo módulo seria focado nas aproximações
outro, tomando a escuta como aposta no exercício da entre clínica, trauma e testemunho e o terceiro, por
palavra em seu esforço pela transmissão simbólica. sua vez, na díade clínica e memória. Ao final de cada
Podemos dizer, em resumo, que o exercício do um, alunas e alunos deveriam entregar uma narrativa
testemunho compreende sustentar a importância de sobre as relações que percebiam entre suas práticas
que histórias de violência sejam recordadas, tanto de estágio, pesquisa ou extensão e o que vínhamos
pelo indivíduo que as viveu como por aqueles a sua estudando sobre os restos da ditadura. A ideia era que
volta, e que não sejam simplesmente esquecidas ou as narrativas estabelecessem entre si uma sequência,
negadas. Trata-se de uma recusa do emudecimento, de modo que pudessem, ao longo do semestre, com-
do esforço da enunciação de algo que pode não estar por um testemunho próprio do percurso. Tais narrati-
ainda recoberto de sentido. O exercício narrativo ins- vas poderiam ser feitas de modo livre, utilizando texto
creve-se, assim, como possibilidade de construção do escrito, gravação de filmes, canções ou até mesmo
presente ao romper ciclos de repetição, silenciamento a construção de objetos. Tentamos ao máximo não
e violência e insistir na tessitura de uma história sobre restringir a criatividade das alunas e dos alunos con-
o que se passou. Uma necessidade que diz menos de quanto permanecessem fiéis a uma única condição: a
uma tarefa técnica e mais de um dever ético-político: narrativa deveria explicitar, além de reflexões teóricas
escutar aquilo que sobreviveu à violência, implicar-se sobre os conteúdos estudados, suas próprias percep-
na história e apropriar-se dela. ções e afetos.
Aproximando os conceitos de trauma e testemu- Para disparar as discussões, contamos com a
nho da história brasileira, encontramos no campo de presença de convidados que compartilharam com o
discussões sobre os restos da ditadura civil-militar um grupo suas vivências ligadas a movimentos sociais;
terreno fértil para reflexões e desdobramentos, consi- em outros momentos, utilizamos recursos audiovisu-
derando que esse episódio se inscreve como um dos ais, como curtas-metragens e filmes, ou ainda teste-
mais recentes de uma série de brutais repetições. Por munhos literários. Além disso, as alunas e os alunos
restos entendemos não apenas as sequelas da violência foram convidados a falar, participando ativamente
daquele período, mas sobretudo os corpos estranhos dos debates, dando seus próprios testemunhos sobre
que resistem à passagem do tempo, as lacunas que dis- o processo, trazendo questões e discutindo suas
tanciam a linguagem historiográfica tradicional da lin- implicações com o tema de aula, compartilhando-os
guagem testemunhal estilhaçada pelo trauma, a tensão com a turma e docentes.
que habita a construção da memória no contrafluxo da Assim, ao longo do semestre, por meio da meto-
negação e da obliteração (Teles, & Safatle, 2010). dologia adotada para os seminários e para as avalia-
Ainda hoje, em nossa formação e atuação pro- ções – o ensino testemunhal –, a turma foi convocada
fissional, quando nos dispomos a escutar sujeitos a se colocar na posição de quem fala e de quem escuta.
que são continuamente violentados e violados pelo Ao propor um alargamento da noção de testemunho,
Estado, testemunhamos a presença desses restos, Felman (2000) sugere que, para além dos tradicionais
fragmentos de barbárie que resistem à passagem do campos da clínica, ou até mesmo do direito e da his-
tempo. Em se tratando de nosso exercício ético-pro- tória, possa-se pensar a prática do testemunho como
fissional, apostamos no ensino como espaço para parte também dos processos de ensino. No campo da
reflexões críticas que possam gerar novos posiciona- educação, quando se trata da transmissão de ques-
mentos frente a esse contexto. Nasceu assim a pro- tões ligadas a traumas coletivos, a catástrofes histó-
posta de uma disciplina de graduação que visou à ricas ou a tudo aquilo que resiste à representação, o
construção de contornos possíveis frente aos desafios ensino deve ser pensado dentro dos mesmos opera-
que o campo nos coloca. dores de possibilidades e impossibilidades inerentes à
Para estruturar a disciplina, propusemos dividi-la transmissão dessas questões. A disciplina aconteceu,
em alguns módulos temáticos. O primeiro teria como então, por meio do diálogo e da contínua reinvenção,

165
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 161-171.

levando em conta os efeitos e reverberações que as rando entre um período do passado e o presente; pro-
questões trabalhadas em aula foram produzindo nos pondo, em contrapartida, que levássemos em conta
estudantes e em nós, docentes. uma série de outros fatores para pensar a violência
estatal incrustada entre os frágeis alicerces de nossa
atual democracia. “Não haveria outros momentos
A crise em sala de aula
pouco elaborados de nossa história igualmente impor-
Para entendermos a crise que veio a tomar
tantes para pensarmos as violências dos dias atuais?”,
conta da sala de aula é preciso situarmos, antes de
interrogavam; “deveríamos olhar para os restos da dita-
mais nada, o modo como o próprio planejamento
dura ou para os efeitos de uma violência de origens
do semestre foi pensado. Ao optarmos por privilegiar
ainda mais remotas?”. Entendemos que, ao levantarem
referências bibliográficas e artísticas de cunho tes-
tais questões, não colocavam em jogo a relevância de
temunhal, acabamos construindo um cronograma
denso, tanto no sentido teórico quanto emocional. nos debruçarmos sobre esse período específico do
Decidimos, por exemplo, passar o documentário “15 nosso passado, mas sugeriam que essa discussão ofus-
Filhos”, de Maria Oliveira e Marta Nehring (1996), e cava outros eventos que também são silenciados e, por
alguns capítulos do livro “K.”, de Bernardo Kucinski sua vez, menos visibilizados.
(2014), obras que lidam diretamente com as feridas Dessa forma, começava a se desenhar o que mais
ainda abertas da época da ditadura. Sabíamos, até tarde viemos a nomear como uma crise em nosso pro-
certo ponto, que a forma como havíamos planejado cesso de ensino. Algo emergiu nessas interrogações
a disciplina traria desafios. Contávamos que as dis- dos estudantes e permaneceu durante o semestre,
cussões sobre os restos da ditadura civil-militar e suas ecoando questionamentos que ressoaram de maneira
marcas clínicas e políticas poderiam afetar as alunas intensa entre nós, professores. Em busca de hipóte-
e os alunos de diferentes maneiras. Não poderíamos ses para compreender os desafios do tempo presente,
ter imaginado, contudo, que o processo se desenro- começamos a nos perguntar sobre as escolhas de tex-
laria com tanta intensidade e, acima de tudo, que o tos para conduzir as discussões, pondo em xeque, gra-
momento de turbulência política vivido no país faria dualmente, as próprias direções do nosso olhar.
disparar em sala de aula um processo testemunhal Em meio a tais indagações, chegamos ao fim
intenso dos próprios estudantes. do segundo módulo e algumas alunas pediram para
No domingo que antecedeu o nosso terceiro compartilhar suas produções narrativas com a turma.
encontro com a turma, aconteceu o primeiro dos gran- Uma delas havia feito um trabalho de colagens sobre
des protestos civis que tomaram conta das ruas nas um cartaz. Ela deixou-o no meio da sala e convidou
principais capitais brasileiras durante o ano de 2016. o grupo a observar. De um lado haviam sido coladas
Acompanhados pelos grandes veículos de comunica- fotografias que mostravam a repressão e a violência
ção do país, manifestantes exigiam, entre outras coi- de Estado na época da ditadura. O outro lado estava
sas, a saída imediata da Presidenta Dilma Rousseff. completamente coberto com imagens de diversos
Alguns chegavam a pedir por uma intervenção militar acontecimentos anteriores, também violentos, da his-
para solucionar os conflitos políticos do país. Na aula tória brasileira: repressões, revoltas, revoluções, mas-
seguinte, que tinha como tema justamente “os restos sacres. Cada uma dessas imagens vinha acompanhada
da ditadura entre os esforços democráticos”, a discus- de uma legenda indicando a situação, o local e a data
são sobre o protesto envolveu o tempo e o espaço. onde ocorreu. Porém, devido à grande quantidade de
Diante de um discurso que afirmava que o pro- material retratado, as legendas eram pequenas, o que
cesso de impeachment seria um novo “golpe em curso”, demandava que o grupo chegasse bem perto do car-
a discussão da disciplina inevitavelmente transitava taz para poder ler as informações. Quem se aproxi-
pela relação entre o que estávamos vivendo e os con- mava sentia um forte odor que o cartaz exalava devido
ceitos trabalhados; isto é, como uma possível repetição ao sangue seco que atravessava as imagens.
de algo que ainda não foi elaborado, algo especifica- O compartilhamento do trabalho gerou um
mente relacionado aos escuros porões onde boa parte tumulto. Como foi apresentado no fim de uma aula,
da memória da ditadura civil-militar ainda se encontra o horário de saída foi ultrapassado e muitos já esta-
silenciada. As alunas e os alunos, no entanto, pareciam vam se retirando. Seguiu-se uma discussão enérgica
desconfiar da ligação tão simples que estava se costu- na classe, já que a saída de alguns foi interpretada por

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Kessler, H. P.; Kveller, D. B.; Rodrigues, M. R.; Szuchman, K. S. (2017). O Ensino Testemunhal entre os Restos da Ditadura.

outros como um desrespeito ao trabalho da colega, outro lado do cartaz: genocídio da população jovem e
bem como às vidas que estavam sendo retratadas no negra, dificuldades dos estudantes cotistas dentro da
cartaz. Supostamente, assim se estaria ratificando o universidade, criminalização dos movimentos sociais,
esquecimento e a violência aos quais essas vidas esti- entre outros. Não seriam esses também os restos que
veram submetidas. O clima tenso durou alguns minu- tínhamos nos proposto a estudar? Reminiscências do
tos. Aos poucos, a turma conseguiu debater sobre nosso passado pouco democrático?
como o incômodo relacionado à imposição de um Instalou-se em nosso processo de ensino uma crise
olhar se relacionava aos próprios paradoxos do exer- que nos fez questionar nossas próprias escolhas como
cício testemunhal. docentes. Entendemos que a modalidade de ensino
Na aula seguinte, saindo do roteiro inicialmente testemunhal – que justamente se dispõe a acolher o
previsto, propusemos à turma fazer uso dos conceitos que os alunos pensam e sentem – acabou oferecendo
que vínhamos estudando para refletir sobre o recente um lugar para que todas essas outras interrogações,
acontecimento, baseando-nos na hipótese de que o atravessadas por narrativas traumáticas, emergissem
cartaz teria trazido à tona a aporia intrínseca à memó- no debate em sala de aula e viessem a perturbar a expe-
ria traumática. Por um lado, sua forma não permitia riência de ensino. Podemos dizer que o choque, a soma
entender o conteúdo escrito em pequenas letras, a e as sobreposições entre os textos, as questões trazidas
menos que nos aproximássemos. Por outro, o sangue pelos estudantes e os acontecimentos políticos do país,
seco exalava um odor desagradável que incomodava não poderiam senão produzir uma crise em nossa pro-
muito quando chegávamos perto. O trabalho pro- posta inicial, tornando as aulas e discussões eferves-
duzia um efeito angustiante ao sugerir que o sangue centes, imprevisíveis e intensas.
vinha dos próprios cadáveres insepultos, dos tantos Diante do que se desenhou em sala de aula,
mortos atravessados pela história de desigualdade e nossa intervenção como docentes foi de sustentar
injustiça que nos havia trazido até o Brasil de 2016. e acolher a crise ao invés de suprimi-la. Tal como a
Também atualizava o próprio paradoxo que vínhamos própria clínica psicanalítica se orienta em relação ao
tentando pensar: como se aproximar das histórias de trauma, nossa intervenção se deu por meio da tenta-
violência? Como estudar o horror que carrega cada tiva de escuta do que a turma enunciava; garantimos,
uma dessas imagens? Como escutar aquilo que desa- assim, um tempo que desse suporte à iminente não
fia os limites do suportável? Parecia que estávamos resolução do que surgiu em aula, produzindo pau-
vivendo em ato, nas nossas relações enquanto turma, sas no cronograma previsto e emprestando palavras
as contradições inerentes ao testemunhar: entre a e significações para os acontecimentos que pareciam
necessidade de falar e a impossibilidade de dizer, sem sentido. Ao nos depararmos com críticas e pro-
entre precisar lembrar e querer esquecer, entre tudo blematizações, resolvemos viver o processo junto
calar e algo falar, entre se aproximar e se distanciar. com os estudantes, percorrê-lo em seus movimentos,
Outrossim, uma vez que entendemos que a pró- rupturas e imprevisibilidades. A importância de sus-
pria dinâmica da sala de aula poderia tornar-se palco de tentar esse momento de inquietação, tensão, dúvidas
uma revivência da experiência traumática, tornou-se e contestação de saberes pôde ser melhor observada à
importante considerar o teor testemunhal do conflito medida que percebemos que foi precisamente a crise
instaurado. Entendemos que, em seus diversos ques- o que recheou de sentidos nossos encontros seguin-
tionamentos, as alunas e os alunos tentavam endere- tes. Ao propor à turma e a nós, docentes, que tentás-
çar algo a nós professores. Na nossa leitura, estaria se semos traduzir em palavras o que havia aparecido em
formando aí também, entre os infinitos obstáculos do ato, críticas e apontamentos, acabamos produzindo
traumático, uma narrativa sobre suas próprias vivên- uma mudança nas relações ali postas, a partir da qual
cias. Em resposta a nossa sugestão de lançar o olhar a turma passou a se relacionar de outra forma com as
sobre os restos da ditadura em seus estágios, projetos questões estudadas.
de pesquisa e extensão, os estudantes pareciam con- Os trabalhos seguintes escritos pela classe, refe-
vocar nossa atenção para outras diversas violências às rentes aos últimos módulos, adquiriram outro tom:
quais eles próprios estavam submetidos no dia-a-dia. os estudantes passaram a falar sobre as temáticas das
Com seus testemunhos, levaram-nos a enxergar os aulas desde sua própria posição, de um modo mais
restos dos demais episódios violentos retratados no implicado. Os conteúdos teóricos e testemunhos

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 161-171.

estudados foram relacionados com suas vivências compreendida como a emergência do traumático em
pessoais e profissionais, ora buscando estabelecer sala de aula e, portanto, como a forma pela qual essa
relações com experiências atuais, ora ressignificando metodologia pôde, de fato, se desenrolar.
episódios anteriores, articulando, de toda forma, as Nesse sentido, compreendemos que, muitas
discussões de aula com seus percursos de formação. vezes, não há possibilidade de estudo que não seja a
De certo modo, podemos dizer que esses escritos própria “vivência” dos conteúdos, uma vivência que
finais foram produzidos na forma de testemunhos dos extrapola planejamentos e preparações acadêmi-
percursos singulares de cada estudante, no encontro cas. Concordamos com Felman (2000): “se o ensinar
com os desafios e adversidades inerentes à formação. não se depara com uma espécie de crise, se ele não
encontra nem a vulnerabilidade nem a explosividade
Considerações finais: de uma dimensão crítica e imprevisível […] , ele pro-
a crise como ensino vavelmente não ensinou verdadeiramente” (p. 67).
O presente relato teve por objetivo apresentar o A tarefa do professor em um ensino na dependência
exercício testemunhal como um método de ensino do processo testemunhal não é, portanto, simples-
que tem na experiência vivida e compartilhada seu mente passar adiante informações preconcebidas;
principal alicerce. A partir desse entendimento, ensi- mas, ao ensinar, fazer algo acontecer. De acordo com
nar e estudar não implicam somente ler teorias, mas a autora, trata-se de um ensino que é performativo,
sobretudo colocá-las em exercício, seja escutando e e não apenas cognitivo, na medida em que convoca
acolhendo o outro, seja construindo uma narrativa de seus receptores a se transformarem em função da
sua própria história. Examinando a nossa experiência novidade da informação transmitida.
em retrospecto, podemos destacar três outras parti- A segunda particularidade a ser destacada sobre o
cularidades fundamentais e indissociáveis dessa pro- ensino testemunhal é sua dimensão clínica. Se enten-
posta: seu caráter processual, sua dimensão clínica e dermos que, em muitas experiências de violência há
seu estatuto ético-político. uma impossibilidade de narrar – tanto pelo caráter trau-
Dizemos que é processual, pois o ensino testemu- mático quanto pela ausência de reconhecimento e legi-
nhal não está centrado em conteúdos pré-determinados timidade –, a criação de um espaço que garanta a circu-
a serem conduzidos de maneira unidirecional dos pro- lação da palavra e o endereçamento a um outro permite
fessores aos alunos, mas, acima de tudo, em discutir os que seja possível a construção de alguma história sobre
próprios paradoxos inerentes ao exercício de transmis- o que se passou. No testemunho há sempre uma aposta:
são. A ênfase não está no cumprimento do cronograma de que olhar para o passado, em uma postura crítica,
ou em metas a serem alcançadas, mas no próprio cami- pode instaurar um outro porvir. Uma aposta não neces-
nho percorrido, nos incômodos, percalços e incertezas sariamente na capacidade do sujeito de representar
atinentes às tarefas de narrar e escutar. Assim, por mais aquilo que foi vivido como excesso, mas na transforma-
que se possa estruturar aulas, um quadro de referências ção da relação que os sujeitos e que a própria sociedade
bibliográficas e temas específicos a serem discutidos, estabelece com aquilo que nunca poderá ser totalmente
acidentes e imprevistos fazem parte do percurso. Essa recoberto de sentido. O ensino testemunhal comprome-
metodologia se propõe a acolher os efeitos gerados a te-se, assim, com uma tentativa de interrupção de uma
partir dos encontros, fortuitos e intempestivos, promo- cadeia de repetições de violência e com a definição de
vidos pela dinâmica da sala de aula. alguns princípios que possam nortear a tarefa de recep-
Em resumo, podemos dizer que o ensino na ção do testemunho e de costuras possíveis, mesmo que
dependência de um processo testemunhal exige que se imperfeitas, com o laço social.
esteja aberto a encarar o imprevisível. No nosso caso, Chegamos ao terceiro aspecto fundamental
não contávamos com o que se apresentou como um do ensino testemunhal: seu estatuto ético-político.
choque entre a densidade emocional dos testemunhos Devido ao caráter subjetivo e fragmentário, o teste-
estudados, as vivências dos alunos e um momento munho ocupa um espaço marginal na escrita oficial
de turbulência política que explicitava as frágeis fun- da história, que é baseada em documentos, provas
dações de nossa democracia. Uma crise, conforme a verificáveis e métodos científicos. Como diria Ben-
denominamos, que no início apresentou-se como um jamin (1996), a história oficial, no entanto, reflete
questionamento à proposta de ensino, aos poucos foi invariavelmente a duvidosa versão dos vencedores.

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E a história oficial brasileira, ainda falha em reconhe- memória da ditadura civil-militar no Brasil e, como
cer e dar a devida importância aos abusos cometidos apontado pelos estudantes, de toda nossa história
pelo Estado durante a ditadura civil-militar, opta rei- de violência. A tessitura de uma narrativa sobre esses
teradamente por condenar ao esquecimento os efei- períodos – uma que nos permita recordar, elaborar e
tos dessas violências em favor da manutenção do não apenas repetir – demanda mais do que apenas
poder de uma mesma elite, que antigamente patroci- “informações históricas”. Precisamos, é claro, que
nava a ditadura e que ainda hoje colhe frutos às custas se tenha acesso a um sem número de documentos
do silêncio (Endo, 2015). de cujo paradeiro até hoje não se tem notícia; assim
A modalidade do ensino testemunhal possibilita como é necessário que haja um reconhecimento ofi-
uma formação crítica, pois desconstrói a ideia de uma cial das atrocidades cometidas durante os anos vivi-
história neutra e torna visível que ela é, sobretudo, dos sob Estado de exceção e a responsabilização dos
uma construção feita no presente e imanente a dispu- agentes perpetradores dessas violências. Mas existe
tas políticas. Uma formação crítica do fazer psi – que algo além da “história objetiva” e da “justiça oficial”,
se contraponha à primazia da técnica e da pretensa algo do traumático que se repete e que apenas o tes-
“neutralidade” e que forme profissionais capazes de temunho, sob a aporia de sua própria impossibilidade
trabalhar memórias de violências e de desigualdades e imprevisibilidade, tem condições de fazer emergir.
de nosso país – talvez só possa acontecer por meio de Para que a sociedade brasileira possa realmente se
um exercício ético em que coloquemos em análise ocupar dos “restos da ditadura”, portanto, deve tam-
nossas implicações. bém escutar a si mesma ainda que isso implique uma
Por fim, sublinhamos que essas três particula- crise, pois é apenas a partir desse ato ético e político
ridades do ensino testemunhal se relacionam for- que algo realmente pode se transformar. Ao menos
temente aos próprios desafios da construção da essa foi a lição que aprendemos com nossos alunos.

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Teles, E., & Safatle, V. (2010). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo, SP: Boitempo.

Helena Pillar Kessler


Mestre em Psicanálise: Clínica e Cultura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre – RS. Brasil.
E-mail: helenapkessler@gmail.com

Daniel Boianovsky Kveller


Doutorando em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre – RS.
Brasil.
E-mail: dkveller@gmail.com

Marina da Rocha Rodrigues


Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre – RS.
Brasil.
E-mail: marinarocharodrigues@gmail.com

Karine Shamash Szuchman


Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre – RS.
Brasil.
E-mail: karineszuchman@gmail.com

Endereço para envio de correspondência:


Rua Anita Garibaldi, 1199/701. Bairro Mont’ Serrat. CEP: 90450-001.
Porto Alegre – RS. Brasil.

170
Kessler, H. P.; Kveller, D. B.; Rodrigues, M. R.; Szuchman, K. S. (2017). O Ensino Testemunhal entre os Restos da Ditadura.

Recebido 30/06/2017
Reformulação 30/09/2017.
Aprovado 02/10/2017.

Received 06/30/2017
Reformulated 30/09/2017
Approved 10/02/2017

Recebido 30/06/2017
Reformulado 30/09/2017
Aceptado 02/10/2017

Como citar: Kessler, H. P., Kveller, D. B., Rodrigues, M. R., Szuchman, K. S. (2017). O ensino testemunhal
entre os restos da ditadura: uma metodologia ético-política. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 161-171.
https://doi.org/10.1590/1982-3703120002017

How to cite: Kessler, H. P., Kveller, D. B., Rodrigues, M. R., Szuchman, K. S. (2017). Testimonial teaching among
the remains of the dictatorship: an ethical-political methodology. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 161-171.
https://doi.org/10.1590/1982-3703120002017

Cómo citar: Kessler, H. P., Kveller, D. B., Rodrigues, M. R., Szuchman, K. S. (2017). La enseñanza testimonial
entre los restos de la dictadura: una metodología ético-política. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 161-171.
https://doi.org/10.1590/1982-3703120002017

171
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 172-185.
https://doi.org/10.1590/1982-3703130002017

A Psicologia e o Discurso Racial sobre o Negro: do


“Objeto da Ciência” ao Sujeito Político

Lia Vainer Schucman Hildeberto Vieira Martins


Universidade de São Paulo, SP, Brasil. Universidade Federal Fluminense, RJ, Brasil.

Resumo: O presente artigo descreve os principais elementos que constituíram o pensamento,


a história e os posicionamentos éticos e políticos da Psicologia brasileira no que se refere às
relações raciais. Estes elementos são alinhados e comentados da seguinte maneira: a) um
primeiro debate que se inicia no fim do século XIX, no qual o pensamento psicológico sobre
o problema racial descreve o negro como “objeto da ciência”; a ideia de raça é, neste ponto
da história, determinada biologicamente; b) o período compreendido entre 1930 e 1960,
caracterizado pelo impacto da obra de Gilberto Freyre, em que o conceito de raça aparece
como determinante cultural e posteriormente foi marcado pela crítica ao mito da “democracia
racial”; c) um momento que se inicia no fim da década de 1970, sob influência de estudos de
desigualdades raciais, da abertura política e do processo de redemocratização do país, quando
os movimentos sociais negros, através de seus atores, ativistas e intelectuais, produzem a ideia
de raça como constructo social e pautam uma agenda política redefinindo o debate racial, e
na qual a Psicologia passa a discutir o negro não mais como “objeto da ciência”, mas sim como
agente produtor de sua própria história.
Palavras-chave: Psicologia, História da Psicologia, Raça, Racismo.

Psychology and Racial Discourse on Black People:


from “Object of Science” to Political Subject

Abstract: This article describes the main elements that constituted the thought, history, and
ethical and political positions in Brazilian psychology in relation to race relations. These elements
are aligned and commented as follows: a) a first debate that begins in the late nineteenth century,
in which psychological thought about the racial problem describes black people as an “object
of science”; the idea of race is, at this point in history, determined biologically b) the period
between 1930 and 1960, characterized by the impact of the work of Gilberto Freyre, in which the
concept of race appears as a cultural determinant and was later marked by criticism of the myth
of “racial democracy”; c) a moment that began in the late 1970s under the influence of studies
of racial inequalities, political opening, and the process of re-democratization of the country
where black social movements through their actors, activists, and intellectuals produce the idea
of race as a social construct and guide a political agenda redefining the racial debate, and in
which psychology begins to discuss black people no longer as “objects of science” but as agents
of their own history.
Keywords: Psychology, History of Psychology, Race, Racism.

172
Schucman, L. V.; Martins H. V. (2017).Psicologia e o Discurso Racial.

Psicología y Discurso Racial acerca del Negro: de


“Objeto de la Ciencia” a Sujeto Político

Resumen: En este artículo se describen los principales elementos que constituyen el pensamiento,
la historia y las posiciones éticas y políticas de la psicología brasileña con respecto a las relaciones
raciales. Tales elementos están alineados y comentados de la siguiente forma: a) un primer debate
que se inicia a finales del siglo XIX, en que el pensamiento psicológico sobre el problema racial
describe el negro como “objeto de la ciencia”; la idea de raza es, en este momento de la historia,
determinada biológicamente; b) el período entre 1930 y 1960, caracterizado por el impacto de la obra
de Gilberto Freyre, donde el concepto de raza aparece como un determinante cultural y que más
tarde se caracterizó por la crítica del mito de la “democracia racial”; c) un momento que comienza a
finales de la década de 1970, bajo la influencia de los estudios de desigualdades raciales, la apertura
política y el proceso de redemocratización del país en que los movimientos sociales negros, a través
de sus actores, activistas e intelectuales, producen la idea de raza como una construcción social y
engendran una agenda política redefiniendo el debate racial, en la que la psicología va a discutir el
negro ya no como “objeto de la ciencia”, sino más bien como agente productor de su propia historia.
Palabras claves: Psicología, Historia de la Psicología, Raza, Racismo.

tão importantes para esse livre trânsito social, que não


Introdução
ter relações pode implicar em um maior risco pessoal
Para se discutir a questão da igualdade social e ou mesmo a produção de uma nulidade identitária
política nas sociedades modernas, é preciso correla- enquanto agente portador de direitos, já que o que
cioná-la obrigatoriamente à questão da cidadania e importa é saber “quem está falando” (DaMatta, 1997).
às conquistas de certos direitos jurídico-políticos, já E como a lógica hierárquica brasileira parece estar
que o modelo de cidadania e a ideia de democracia baseada na “intimidade social”, ela acaba se tornando
moderna são pensados como resultantes da estreita um dos fatores que têm maior peso na construção das
articulação entre a liberdade política, que é a capa- relações sociais (DaMatta, 1997). O que pretendemos,
cidade de exercer tais direitos, e a igualdade social, a rigor, com esta presente reflexão, é discutir algumas
que é a capacidade de gozar de tais direitos. Se nossa dessas questões no campo das relações raciais no Bra-
análise partir dessa perspectiva, podemos considerar sil e destacar, neste cenário, o papel da Psicologia na
que a cidadania – e o consequente processo democrá- tentativa de compreender como são produzidas for-
tico advindo de tal norte ideológico – foi estabelecida mas de inclusão ou exclusão sociais garantidores (ou
como uma resposta desenvolvida em decorrência da não) de direitos considerados balizadores de um certo
formação e consolidação de uma visão liberal da/na ideário democrático (individual, social e político).
sociedade, presente já em finais do século XVIII. Esse Nas últimas décadas, a produção científica da
fenômeno é o resultado mais evidente dos embates Psicologia despertou um novo interesse sobre a ques-
políticos produzidos como consequência das recon- tão do racismo e das práticas ligadas ao preconceito e
figurações do espaço social que, a partir daquele discriminação. Sem entrar no mérito ou na pertinên-
momento, seria visto também como campo de con- cia da retomada deste debate, é possível constatar que
flito e cenário de evidenciação das dicotomizações de os psicólogos estão interessados na questão racial, em
classe, que teve como consequência principal a sepa- seus efeitos subjetivos e em seus respectivos impac-
ração produzida entre o Estado e a sociedade, entre o tos na produção do sofrimento psíquico (Costa, 2015;
público e o privado (Sennet, 1988). Quando pensamos Martins, 2014; Nunes, 2006; Schucman, 2012; Tavares,
na sociedade brasileira, o que nos interessa são as liga- Oliveira, & Lages, 2013).
ções/relações pessoais, que acabam servindo como O objetivo desse artigo é discutir como um con-
filtro para o acesso a direitos. As relações pessoais são junto de ideias e práticas acadêmicas, institucionais e

173
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 172-185.

sociais foram elaboradas na imbricação entre a temá- Elegendo três momentos nodais como emblemá-
tica racial brasileira e a constituição de investigações e ticos e aglutinadores na elaboração de modos de pen-
explicações psicológicas1 sobre a sociedade brasileira sar e dizer sobre “raça”, a partir da retomada da Psicolo-
e seu funcionamento racializado. Essa tarefa começa gia acima descrita, que serão mais bem aprofundados
com uma revisão da literatura que consideramos his- ao longo desse texto, o nosso propósito principal é con-
tórica e tematicamente relevantes para esse debate e tribuir para a ampliação de uma reflexão histórica, crí-
finaliza com entrevistas e relatos de ações de atores tica e política para possíveis e bem-vindas articulações
sociais envolvidos nesta produção. Aqui não pretende- entre os saberes psi e o conceito de raça.
mos uma revisão exaustiva, mas uma revisão da pro- No campo das ciências sociais, biológicas e
dução bibliográfica que indique a eclosão de “viradas humanas, o conceito de raça é visto hoje como um
analíticas” ou de novas maneiras de discutir a questão constructo, ou seja: a raça não é considerada como
racial brasileira e de como essas rupturas alcançaram uma existência concreta, mas sim o resultado de cer-
resultados importantes no debate nacional e interna- tos modelos e práticas vigentes em um determinado
cional. O recurso metodológico que propomos nesse momento histórico. O mesmo ocorre com o conceito
artigo fundamentar-se-á em um levantamento histó- de “cor”, que, apesar de ter uma forte conotação física
rico, bibliográfico e documental de material relevante (características fenotípicas), está sujeito a usos e defi-
para o seu desenvolvimento e elaboração teórico-crí- nições ambíguas e subjetivas. Segundo Guimarães,
tico. Analisaremos certos textos e documentos e as isso ocorre por “falta de uma regra precisa de descen-
respostas apresentadas por determinados autores e dência racial” no Brasil, tal como ocorre nos Estados
aparelhos institucionais que versam sobre o campo Unidos (Guimarães, 2005). Ainda segundo este mesmo
dos discursos psicológicos (fontes primárias e secun- autor, a “cor” é “mais que pigmentação da pele”, vin-
dárias). A seleção desse material documental foi defi- culada fortemente ao processo de hierarquização
nida a partir de marcos cronológicos que serão mais social (Guimarães, 2005). O conceito de “raça” usado
bem explicitados abaixo. Tal escolha levou em consi- nesse trabalho, portanto, é o de “raça social”, con-
deração a relevância histórica que essa documenta- forme teorizou Guimarães (1999), isto é, não se trata
ção teve para a produção de estudos étnico-raciais no de um dado biológico, mas de “construtos sociais,
campo dos saberes psicológicos e sua imbricação com formas de identidade baseadas numa ideia bioló-
a sociedade brasileira. Contudo, a tarefa de arrolar gica errônea, mas eficaz socialmente, para construir,
toda a produção bibliográfica em Psicologia sobre o manter e reproduzir diferenças e privilégios” (p. 153).
fenômeno racial e suas manifestações correlatas, vale Para esse autor, se a existência de raças humanas não
dizer, não seria alcançada no escopo de um artigo. encontra qualquer comprovação no bojo das ciências
Não deixa de ser relevante afirmar também que tal biológicas, elas são, contudo, “plenamente existentes
inventário referencial venha sendo buscado cada vez no mundo social, produtos de formas de classificar e
mais nos últimos anos no âmbito da Psicologia (Bento, de identificar que orientam as ações dos seres huma-
Silveira, & Nogueira, 2014; Carone, & Bento, 2002; Fer- nos” (p. 153). Nessa perspectiva, consideramos a raça
reira, 2000; Martins, & Silva, 2013, 2014; Schucman, como resultante de uma série de práticas discursivas
2010, 2012; Santos, & Schucman, 2015), e que esses produtoras de um “solo fértil” de significações – como
trabalhos tenham revelado o quanto é importante o o discurso racializado – e que resultam na produção
estudo da questão racial pela Psicologia para a com- de campos não-discursivos – ações, comportamentos
preensão do processo de democratização do nosso explícitos ou implícitos – geradoras de sua permanên-
país e das concepções de cidadania desenvolvidos na cia e insistência como definidora de um sujeito e de
consolidação da sociedade brasileira. uma história.

1
A utilização dessa expressão segue o entendimento já realizado por uma série de trabalhos em história da Psicologia. Esse termo tem
sido utilizado para definir o campo discursivo que abarca as práticas produzidas pela psiquiatria, Psicologia e psicanálise no que tange
ao entendimento e funcionamento daquilo que se convencionou chamar de “alma”, comportamento, mente, “espírito”, ou seja, o polo de
oposição do que se convencionou chamar de uma “corporalidade estrita” (cf. Duarte, 1997; Duarte, Russo, & Venâncio, 2005; Jacó-Vilela,
Jabur, & Rodrigues, 1999). Considera-se, portanto, os saberes psicológicos o conjunto de disciplinas que estudam os fatores psíquicos,
à luz de uma concepção científica ou de caráter cientificizante, assim como suas relações estreitas com a descrição das categorias de
normal e patológico.

174
Schucman, L. V.; Martins H. V. (2017).Psicologia e o Discurso Racial.

O propósito desse artigo é apresentar, em linhas acaso esse momento histórico foi caracterizado pelos
gerais, três diferentes etapas históricas nas quais ten- primeiros movimentos sociais de redemocratização
taremos demonstrar um enfoque psicologizante em em nossa sociedade. Ao que parece, a revisão científica
torno da questão racial. Os critérios dessas escolhas no campo da Psicologia, em especial o da Psicologia
se basearam na relevância e impacto histórico-so- Social, e a luta democrática pela ampliação dos direi-
cial de personagens e de fatos para a constituição de tos sociais e políticos ganham força ao mesmo tempo
um debate psicológico sobre a temática racial e para em nossa sociedade. Essa “crise” científica favoreceu a
o engendramento de formas de inclusão/exclusão ampliação dos seus campos de estudo, incluindo aí o
do lugar político e social de determinada parcela da tema do racismo.
nossa sociedade (exercícios de cidadania). Definidos os marcos cronológicos, passemos para
Definimos como estratégia de análise a demarca- a elaboração de um quadro de análise dessas etapas.
ção de fronteiras operativas, que seguem delimitações
histórico-cronológicas, capazes de nos auxiliar nessa
discussão. Consideramos que as questões levantadas
O debate inicial sobre o problema racial:
e as respostas produzidas em torno da interface entre
o negro como “objeto da ciência”
Na literatura sobre a questão racial brasileira
os saberes psicológicos e a questão racial, que vão pro-
(Antunes, 1999; Corrêa, 1982; 1998; Engel, 2001; Leite,
duzir uma mudança na forma de pensar o papel e o
2002; Oda, 2003; Schwarcz, 1993; Skidmore, 1976),
lugar social de determinados agentes sociais, podem
é bastante comum definir como marco inicial os
ser divididas da seguinte maneira: a) um primeiro
trabalhos médico-psicológicos de Raimundo Nina
debate que se inicia entre o fim do século XIX e o iní-
Rodrigues (1862–1906). Seus estudos tomavam como
cio do século XX (1890–1920) no qual o pensamento
médico-psicológico sobre o problema racial descreve questão principal uma maior compreensão do papel
o “negro”2 como “objeto da ciência”, ao mesmo tempo da população negra, africana ou afro-brasileira, na
em que a ideia de raça é compreendida como conceito constituição da sociedade brasileira a partir do con-
biológico e o racismo é naturalizado. Esse período foi ceito-chave de “degeneração da raça”. Os trabalhos de
marcado pelos estudos médico-psicológicos iniciados Rodrigues (1894, 1935, 1939, 2006) foram fundamen-
pela “Escola Baiana de Antropologia” (Raimundo Nina tais para a consolidação de um modelo psicofísico
Rodrigues e seus discípulos); b) o período de 1930 até capaz de nomear e descrever as “deficiências” do negro
1960, caracterizado pelo impacto da obra de Gilberto brasileiro, tendo como efeito mais imediato o reco-
Freyre, em que o conceito de raça aparece como deter- nhecimento das consequências sociais “perversas”
minante cultural onde o racismo se justifica através da que a manutenção do convívio com essa raça poderia
falsa ideia de hierarquias culturais que posteriormente acarretar para a sociedade brasileira. Tal chave inter-
foi marcado pela crítica ao mito da “democracia racial”, pretativa teve continuidade no início do século XX a
e por último, c) um momento que se inicia na década partir da retomada de suas ideias feita por alguns dos
de 1970, sob influência de estudos de desigualdades seus “discípulos”, como Ramos (1934, 1937, 1939)
raciais, quando a raça é compreendida como cons- e Peixoto (1898, 1938a, 1938b), por exemplo, e que
tructo social que determina as desigualdades simbóli- consolidaram o que passou a ser chamada de “Escola
cas e materiais da população negra. Esse é o momento Baiana”. Arthur Ramos foi um autor bastante atento
em que trabalhos em torno do conceito de branquea- e interessado nas questões raciais e nos problemas
mento/branquitude, de debates voltados para a criação que supostamente seriam gerados pela cultura negra
de ações de promoção da igualdade étnico-racial no (Ramos, 1934, 1937). Segundo Fernando Sales, res-
Brasil e também sobre a questão da identidade, come- ponsável pelas notas bibliográficas de Nina Rodrigues
çam a ocupar espaço nas pesquisas em Psicologia. em seu livro Os africanos no Brasil, essa “Escola” teve
A partir desse momento, o papel da Psicologia de seu ainda como discípulos ilustres Heitor Carrilho, Dióge-
compromisso social é revisado através da “crise” pela nes Sampaio, Oscar Freire, Alcântara Machado, Flamí-
qual passará enquanto área de conhecimento. Não por nio Fávero, Estácio de Lima, Ulysses Pernambucano,

2
No período aqui comentado, a questão racial relacionada à população negra e ao seu papel social era circunscrita de maneira genérica
pela expressão “problema negro”, como presente em Rodrigues (1935) e outros autores da época. Nesse sentido, a questão de gênero não
era enfatizada e, portanto, as particularidades relacionadas a essa questão não ocupava significativo espaço nesse debate.

175
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 172-185.

entre outros (Sales, 1988). As pesquisas e ações insti- sos intelectuais (cientistas, literatos etc.) começam
tucionais realizadas por esses atores foram de grande a criticar o modelo do determinismo racial e pensar
importância para a formação de um saber e de uma uma alternativa para se pensar o Brasil e seus impas-
prática médico-psicológica sobre a questão racial no ses. As décadas iniciais do século XX foram marcadas
Brasil nas primeiras décadas republicanas. O “negro” pelo projeto político-social de um Brasil moderno,
seria “capturado” nessa rede de significações como projeto construído na confluência de várias disputas e
elemento portador de certas características patologi- embates e que culminariam naquilo que ficou conhe-
záveis e, portanto, passível de ser “objeto da ciência”. cido como a “Revolução de 1930”, processo histórico
Nina Rodrigues e a sua “Escola”, portanto, contribu- gerador do período denominado posteriormente de
íram significativamente para a incrementação de Estado Novo. A partir dessa nova ordem republicana,
determinadas áreas de saber, como a psiquiatria e a foi sendo fomentada a tentativa de um novo modelo
medicina legal (Antunes, 1999; Oda, 2003; Schwarcz, de Brasil (Herschmann, & Pereira, 1994). Vemos surgir
1993), a psicanálise (Costa, 2007) e a antropologia bra- um outro olhar que gira em torno da questão da mis-
sileiras (Corrêa, 1982, 1998). Além disso, esses intelec- cigenação racial brasileira, mas agora com uma rou-
tuais contribuíram para a difusão de certas temáticas pagem positiva. Nesse período, certos autores passam
ligadas ao racismo científico (Leite, 2002; Skidmore, a discutir como essa “positividade” afetava a nossa
1976) ou do estudo das manifestações culturais afri- identidade nacional e o nosso futuro enquanto nação.
canas (Fry, & Maggie, 2006; Ramos, 2007). Gilberto Freyre (1900–1987) é considerado o principal
O discurso racial presente na obra de Nina Rodri- representante desse modelo (1933; 2000). Contudo,
gues, definidor de um padrão de normalização da outras análises surgiram com o mesmo propósito de
sociedade – a manutenção das hierarquias –, seria sinalizar para a nossa mistura racial e seu impacto
substituído por um modelo de mestiçagem menos em nossa identidade nacional. Os trabalhos de Arthur
pessimista e mais viável para um país ainda em cons- Ramos de Araújo Pereira (1903–1949) seguem essa
trução, cujo propósito era produzir um discurso mais perspectiva (Ramos, 1934; 1937; 1939).
eficaz, de controle, sobre esse “elemento negro”. O que Nas primeiras décadas do século passado,
vai se produzir é uma espécie de transliteração: a pas- Arthur Ramos analisou e observou a reconfiguração
sagem de um modelo racial para um modelo cultu- das tradições africanas que, em contato com o ele-
ralista. Isso marca, no entanto, menos a mudança do mento português e com os nossos grupos autócto-
“objeto” de análise que a continuidade de práticas de nes, influenciaram os hábitos de vida, instituições
controle social, isto é, a determinação das positivida- e folclore da sociedade brasileira (1934, 1937, 2007).
des e/ou negatividades desse “objeto”. Um exemplo Nos seus trabalhos voltados para essa temática, perce-
desse exercício foi a tentativa empreendida por Arthur be-se que o autor ainda seguia os passos do “mestre”
Ramos em “atualizar” o discurso de Nina Rodrigues a Nina Rodrigues. Esse período também é o cenário da
partir de seu projeto culturalista, tomado emprestado realização dos primeiros cursos universitários em que a
do campo da antropologia. Psicologia Social é discutida, como os ministrados pelo
próprio Arthur Ramos, por Raul Briquet (1887–1953) e
Uma mudança de perspectiva? Pensando Donald Pierson (1900–1995). Os trabalhos de Elisabeth
a cultura como salvação Bomfim (2003, 2004) afirmam que Raul Briquet minis-
Podemos afirmar que a década de 1930 e as trou o primeiro curso superior de Psicologia Social
seguintes foram caracterizadas pela difusão do na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo,
modelo sociocultural de cunho freyriano – e pos- ligada à Universidade de São Paulo (USP), no segundo
teriormente por sua revisão crítica. Esse período semestre de 1933. Já o segundo curso foi de autoria de
também foi determinado pelas tentativas iniciais de Arthur Ramos, este acontecido na Escola de Economia
formalização da Psicologia como disciplina indepen- e Direito, na Universidade do Distrito Federal (UDF),
dente no ensino superior (Lourenço Filho, 1994; Bro- em 1935. Segundo o próprio autor, a sua extinção deu-
zek, & Massimi, 1998) e da produção concomitante -se no mesmo momento do fechamento dessa Univer-
do que poderíamos chamar de uma ainda incipiente sidade, em 1937 (Ramos, 1939).
“Psicologia Social”, como afirmam alguns autores O projeto de divulgação e de tentativa de conso-
(Bonfim, 2003; 2004; Sá, 2007). Percebe-se que os nos- lidação de um debate psicológico no Brasil avançou

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Schucman, L. V.; Martins H. V. (2017).Psicologia e o Discurso Racial.

com a publicação de livros com títulos que fazem alu- tos e mulatos em São Paulo), recentemente publicada
são ao campo. Foram publicados, respectivamente, o (Bicudo, 2010). Ginsberg (1955) realizou a investiga-
livro Psicologia Social, de autoria de Briquet, editado ção que teve como título Pesquisa sobre as atitudes de
em 1935, e o livro de Ramos de Araújo, Introdução um grupo de escolares em São Paulo em relação com
à Psicologia Social, editado em 1936. Esse livro con- as crianças de cor. Já Otto Klineberg foi um pioneiro
tou com uma reedição organizada pelo Conselho no campo da Psicologia Social nos Estados Unidos,
Federal de Psicologia (CFP) em 2003 (Ramos, 2003). inclusive participando de pesquisas sobre relações
E o terceiro curso de Psicologia Social foi realizado por raciais nesse país na década de 1940. Logo depois de
Donald Pierson na década de 1940, na Escola Livre de seus primeiros trabalhos nesse campo ele foi convi-
Sociologia e Política de São Paulo. Esse autor consi- dado a lecionar na USP como professor da disciplina
derava que o principal fator que impedia o processo de Psicologia nessa Universidade entre os anos de
de integração do negro à sociedade brasileira era o 1945 e 1947, publicando livros sobre Psicologia Social
preconceito racial (Guimarães, 2005). A década de e relações raciais. Herdeiro e seguidor dessa tradição
1950 foi marcada pelos estudos sobre relações raciais crítica dos estudos raciais e importante personagem
patrocinados pelo ciclo de pesquisas comparativas do campo da Psicologia Social, Dante Moreira Leite
organizado pela Organização das Nações Unidas para (1927–1976) – que foi assistente de Annita Cabral na
a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) em dife- cadeira dessa área na USP – publicou livros que tra-
rentes regiões brasileiras, ocorridos nos anos de 1951 tavam do problema racial (Leite, 2002; 2008). O seu
e 1952. O objetivo de tais pesquisas era demonstrar principal trabalho, intitulado O caráter nacional bra-
a existência de experiências exitosas de coopera- sileiro, foi escrito em 1954 e contou com algumas ree-
ção racial no mundo. O projeto da Unesco marcou a dições em decorrência do impacto e da abrangência
ruptura de uma visão idílica sobre as relações raciais de sua influência (Paiva, 2000). O livro é importante
no Brasil e colocou em xeque a ideia de democracia porque sua questão principal é demonstrar o quanto
racial brasileira. Os estudos iniciados a partir do pro- o projeto nacional brasileiro foi marcado por uma
jeto Unesco são aqui pensados como fatores definido- ideologia racial. A década de 1950 marcou o declínio
res de uma nova maneira de discutir a questão racial do que chamamos anteriormente de uma perspectiva
brasileira. Não por acaso, para alguns autores, esses positiva sobre a questão racial, produto de uma revi-
estudos determinaram uma outra forma de enten- são pensada por certos intelectuais sobre as possíveis
der a questão das relações raciais, permitindo uma saídas para os impasses que a questão racial brasi-
outra nomeação para essa problemática, ou seja, já leira tinha gerado em nossa sociedade. Contudo, as
não mais tratar-se-ia de “democracia racial” mas sim pesquisas realizadas pelo projeto Unesco romperam
de “racismo à brasileira” (Telles, 2003) ou o “mito da com essa perspectiva ao formularem outra leitura
democracia racial” (Guimarães, 2002). (mais crítica) sobre o mesmo problema (Maio, 2000).
A pesquisa financiada pela Unesco, realizada Para esses novos atores, é a desigualdade social brasi-
na Bahia, Pernambuco, Amazonas, Rio de Janeiro e leira que fomenta uma desigualdade racial, e produz
São Paulo deslocou a discussão racial brasileira do o preconceito racial em nosso país. Essa década ainda
paradigma cultural freyriano para o paradigma socio- seria marcada pelo surgimento dos primeiros cursos
lógico construído por Florestan Fernandes (Maio, de Psicologia – ainda um misto de sociologia, Psicolo-
2000). A etapa realizada em São Paulo foi coorde- gia, educação e outros ingredientes misturados a esse
nada por Roger Bastide e Florestan Fernandes, tinha processo alquímico –, e de um debate ora positivo, ora
o intuito investigar como se constituíam as relações negativo sobre as relações raciais no Brasil.
raciais entre brancos e negros (Bastide, & Fernandes,
1955) e contou com a participação de três profissionais Nem sangue, nem cultura:
ligados ao campo psicológico: Virgínia Leone Bicudo redemocratização política e raça como
(1915–2003), Aniela Meyer Ginsberg (1902–1986) e construção social
Otto Klineberg (1899–1992). Virginia Leone Bicudo, A década de 1970 começa com a conquista brasi-
sob a orientação de Donald Pierson, defendeu sua dis- leira de mais uma Copa do Mundo e a certeza de que
sertação de mestrado também voltada para o estudo um “milagre” econômico brasileiro (1968–1973) estava
das relações raciais (Estudo de atitudes raciais de pre- em curso. O final dessa mesma década já aponta para

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 172-185.

o desgaste e a fragilidade de suas garantias e ideias, cultural e biológico, ou seja, essencialista, das popula-
verificado pelo aumento da participação popular e ções racializadas. Neste sentido, os estudos do campo
política que buscava construir um verdadeiro projeto da Psicologia também passam a compreender a raça
democrático no Brasil. Isso pode ser constatado pela como categoria social, que constitui, diferencia, hie-
ação dos movimentos sindicais do ABC paulista e pelo rarquiza e localiza os sujeitos em nossa sociedade.
movimento pela anistia dos presos e exilados políti- Portanto, a partir daí as produções da Psicologia e
cos que conseguiu aprovação da Lei de Anistia - Lei principalmente da Psicologia Social, passam a pensar
no 6.683/1979 (Brasil, 1979). Não parece ser por acaso o fenômeno do racismo do ponto de vista psicossocial
que, em 1979, os estudos de raça e racismo no Brasil e não psicologizante, pois não localizam no sujeito
mudam radicalmente a forma de compreender as discriminado a responsabilidade pela discriminação
relações sociais entre negros e brancos. O trabalho do racial que vive cotidianamente, e sim nas relações de
sociólogo Hasenbalg (1979) aparece como um marco poder entre diferentes grupos, evidenciando a força
dentro dos estudos sobre relações raciais no país. dessa categoria como fator de diferenciação e de
Assim como os trabalhos da Unesco, o autor desvela hierarquização social. Nesse momento a Psicologia
a ideia falaciosa de democracia racial e aponta para as Social brasileira é chamada a responder a esse pro-
desigualdades raciais não apenas como produto do sis- blema, principalmente por agentes dos movimentos
tema escravocrata, mas sim produto de uma sociedade sociais negros, e a prestar contas da lacuna em sua
racista e discriminatória naquele momento. Ou seja, produção no que se refere aos estudos das relações
Hasenbalg foi o primeiro teórico dentro da tradição dos raciais. A partir da década de 80 do século passado,
estudos raciais brasileiros que apontou o racismo para surge um movimento em que o enfoque dos traba-
além da função de estruturas e privilégios de classe. lhos tanto teóricos como de intervenção do psicólogo
A tese central do autor, e que é também oposta à é concentrado nos efeitos psicossociais do racismo.
tese da escola paulista de sociologia, é que a raça é com- Marco desta nova geração para a Psicologia é o livro
ponente importante nas estruturas sociais, ou seja, a Tornar-se negro: As vicissitudes da Identidade do
exploração de classe e a opressão racial se articularam Negro Brasileiro em Ascensão Social da psicóloga e
como mecanismos de exploração do povo negro, e este psicanalista Neusa Santos Souza, publicado em 1983
processo resulta nas desigualdades de bens materiais e e prefaciado pelo psicanalista Jurandir Freire Costa.
simbólicos da população negra. Hasenbalg demonstra Tornar-se negro traz um olhar analítico para os efei-
como, através de mecanismos racistas, negros nascidos tos da ideologia do embranquecimento e do racismo
na mesma condição social que brancos tem menores na construção da subjetividade do negro brasileiro. E
possibilidades de ascensão social, além de sofrerem através de análises minuciosas o racismo é compre-
uma desvantagem competitiva em todas as fases da endido como uma violência no corpo e na subjetivi-
sequência de transmissão de status. Hasenbalg demons- dade negra, já que nossa sociedade construiu a noção
tra como a opressão racial beneficia não só capitalistas de belo, harmônico, e por fim de humano a partir dos
brancos como também brancos não capitalistas. Desta parâmetros brancos. Ainda, este é o momento em que
forma, a maioria dos brancos tem vantagens tanto com temos no Brasil a chamada “crise da Psicologia Social”,
a opressão racial, quanto com o racismo, pois são os em que os psicólogos, que podem ser aqui representa-
mecanismos racistas que fazem com que a população dos pela figura de Silvia Lane, denunciam os usos ideo-
branca tenha vantagem no preenchimento das posi- lógicos da Psicologia Social (de orientação norte-ame-
ções da estrutura de classes que comportam privilé- ricana), essencialmente de base experimental, e que
gios matérias e simbólicos mais desejados. Além disso, foi reproduzida no Brasil como uma ciência alinhada
os brancos têm privilégios menos concretos, mas que, com os interesses adaptativos, alinhados ao modelo
no entanto, são fundamentais no que se refere ao sen- liberal e capitalista, uma ciência individualizante e
timento e a constituição da identidade dos indivíduos, sem compromisso social com a realidade brasileira e
tais como honra, status, dignidade e direito à autodeter- latino-americana. Um dos resultados dessa crise foi
minação (Hasenbalg, 1979). o surgimento da Associação Brasileira de Psicologia
A partir deste estudo, a categoria raça passa a ser Social (Abrapso), que procurou integrar as demandas
compreendida pelos estudiosos do tema como cons- oriundas dos movimentos sociais e de certos setores
tructo social, retirando qualquer caráter de cunho da própria Psicologia para construir uma Psicologia

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Schucman, L. V.; Martins H. V. (2017).Psicologia e o Discurso Racial.

comprometida com as comunidades locais. Aqui a educação, assistência social, justiça, clínica, entre
Psicologia é convocada a pensar nas desigualdades outros. Desse modo, com o propósito de atuar dire-
sociais, políticas e raciais de nosso país e com isso tamente na interface da Psicologia com as vítimas do
promover sua desnaturalização. Para nós, não parece racismo, surge em São Paulo na década de 1990 duas
ser por acaso que as discussões sobre uma “virada” organizações não governamentais (ONG) que são
na Psicologia ocorram no momento em que no Brasil até hoje referências para o campo da Psicologia no
estávamos reivindicando uma sociedade mais justa e combate ao racismo. O Centro de Estudos das Rela-
democrática, que lutávamos pelo reestabelecimento ções de Trabalho e Desigualdades (Ceert) foi criado
dos direitos democráticos e pelo fim de uma ditadura
em fevereiro de 1990. Uma de suas fundadoras e hoje
militar, ou seja, os debates que ocorriam na Psicologia
atual diretora executiva é a psicóloga social Maria
podem ser vistos como reverberações de questões que
Aparecida Silva Bento. A importância deste centro
estavam na “ordem do dia”.
no âmbito da Psicologia social e sua interface com
Nesta mesma perspectiva, já passadas algu-
a promoção de igualdade racial é ampla, pois o cen-
mas décadas e consolidado o processo de retomada
tro, na figura das psicólogas Maria Aparecida Silva
democrática no país, com o intuito de retirar o olhar
Bento e Edna Muniz foi fundamental para interpelar
das pesquisas do negro e recolocar o problema nas
relações de poder é publicado no ano de 2002 o livro e apoiar diferentes ações no combate ao racismo nas
Psicologia Social do Racismo: estudos sobre bran- relações de trabalho e saúde, e principalmente arti-
quitude e branqueamento no Brasil. Os capítulos cular junto a categoria de psicólogos publicações,
são de autoria de diversos pesquisadores, e o tra- seminários, congressos, mesas redondas e projetos
balho foi organizado pelas psicólogas Iray Carone e sociais referentes à Psicologia das relações raciais.
Maria Aparecida Silva Bento. É neste livro que Maria Dentre estas diferentes ações podemos destacar a
Aparecida Silva Bento traz pela primeira vez o con- publicação do Ceert no ano de 2014 em parceria com
ceito de branquitude para a compreensão das desi- a Casa do Psicólogo do livro Identidade, branquitude
gualdades raciais brasileiras e demonstra os privilé- e negritude – contribuições para a Psicologia Social
gios simbólicos e materiais que os brancos obtêm no Brasil: novos ensaios, relatos de experiência e de
na sociedade brasileira, por sua vez estruturada pesquisa. Logo após, foi fundado em 1995 por um
pelo racismo. Nesta mesma obra Fúlvia Rosenberg grupo de quatro psicólogas negras, Silvia de Souza,
e Edith Piza publicam o artigo Cor nos censos bra- Marilsa de Souza Martins, Ana Maria Silva e Maria
sileiros, trabalho fundamental para a compreensão Lucia da Silva, o Instituto AMMA Psique e Negritude.
da dimensão histórica e social das classificações A criação do instituto partiu do pressuposto de que,
raciais e seus efeitos nas construções das identida-
para além da via política, era necessário, para des-
des raciais brasileiras. A partir de então, diferentes
mantelar o racismo, também desconstruir os efeitos
pesquisas na área da Psicologia são produzidas com
psicossociais gerados por ele. Neste momento, as
o intuito de denunciar as desigualdades raciais,
produções da Psicologia como o trabalho de Neusa
compreender os modos de subjetivação do racismo
Souza Santos Tornar-se Negro e o clássico livro de
nos brancos e nos negros e, por último, propor inter-
Frantz Fanon Peles Negras, Máscaras Brancas já
venções possíveis em diferentes áreas de atuação
haviam demonstrado que o racismo prejudica a
dos psicólogos (Schucman, Nunes, & Costa 2017).
Dentro deste espectro de pensar a atuação do psi-
cólogo no combate ao racismo, as diferentes pro- saúde psíquica dos indivíduos, podendo fazê-los
duções acadêmicas surgidas a partir da década de desenvolver sintomas psicossomáticos, inibi-
80 do século passado apontaram que a Psicologia ções, impedimentos (de acesso, de participação),
tem um papel fundamental no combate ao racismo, especialmente na experiência de negritude e/
já que o psicólogo está presente em diferentes cam- ou desenvolver uma autoimagem distorcida,
pos da vida social onde as desigualdades raciais se descolada da própria realidade e racialidades
ancoram, tais como: trabalho, setor organizacional, (Silva, 2016)3.

3
Citação da fala da atual diretora presidente da ONG Maria Lucia Silva no dia 11 de maio em conversa com autor do texto.

179
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 172-185.

Desde então, o instituto tem buscado, por meio relações raciais e racismo dentro da categoria. E, desta
de formação e práticas clínicas, identificar, elaborar forma e aos poucos, uma maior adesão de estudantes
e desconstruir o racismo e seus efeitos psicossociais4. e profissionais de Psicologia em sua maioria negros e
O instituto AMMA Psique e Negritude ao lado do negras começam a estudar, escrever, pesquisar e inter-
Ceert tem sido, nos últimos 20 anos, um dos maio- vir na e para a promoção de igualdade racial na saúde,
res interlocutores entre movimento social organi- educação, mundo do trabalho, assistência social, entre
zado e a categoria de psicólogos e, desde então, tem outros. Pode-se dizer que estas articulações entre
promovido intervenções através de debate, ciclos movimentos sociais, categoria e universidade foram
formativos, e uma clínica psicológica com atendi- os fatores que culminaram na realização do I Encontro
mentos individuais e grupais. É quando, com a arti- Nacional de Psicólogos(as) Negros(as) e Pesquisadores
culação destas duas organizações representadas por sobre Relações Raciais e Subjetividade no Brasil – I Psi-
Maria Lucia da Silva e Maria Aparecida Silva Bento nep, ocorrido durante três dias, em outubro de 2010,
juntamente com a psicóloga recifense Maria de Jesus no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Moura do Observatório Negro, a categoria de psicó- (IPUSP) e que contou com aproximadamente 200 par-
logos, a partir dos sistemas conselhos, é pressionada ticipantes presentes, nacionais e internacionais, e mais
a se posicionar politicamente com a luta antirracista, de 500 ouvintes a distância que acessaram a transmis-
fruto desta articulação entre movimentos sociais e são ao vivo. Aqui é importante ressaltar que apesar de
categoria – através das comissões de direitos huma- ter sido um evento científico-acadêmico, com apoio do
nos do CFP coordenada na época pelo psicólogo Departamento de Psicologia Social e do Trabalho da
social Marcus Vinícius de Oliveira Silva. Em janeiro USP e do Sistemas Conselhos, a Comissão Organiza-
de 2002, o Sistema Conselhos lança uma campanha dora foi composta pelas próprias organizações negras
nacional com o slogan “preconceito racial humilha, em conjunto com um instituto de Psicologia; são elas:
a humilhação faz sofrer”5 divulgada em todas as sedes Ceert, São Paulo – SP; Centro de Estudos e Defesa do
regionais. No mesmo ano, a psicóloga Maria de Jesus Negro do Pará (Cedenpa), Belém – PA; Instituto AMMA
Moura, também integrante da Comissão de Direitos Psique e Negritude, São Paulo – SP; Instituto Silvia
Humanos do CFP, propõe a elaboração de algumas Lane de Psicologia e Compromisso Social, Salvador –
normas de atuação para orientar os psicólogos relati- BA; Maria Mulher – Organização de Mulheres Negras,
vas ao preconceito e à discriminação racial. Essas nor- Porto Alegre – RS; Observatório Negro (ONEG), Recife –
mas deram origem à Resolução nº 018/2002 (Conse- PE; Rede de Mulheres Negras do Paraná, Curitiba – PR.
lho Federal de Psicologia, 2002), assinada pelo então Dentre os diversos resultados do I Psineo destacamos
presidente Odair Furtado. primeiramente a criação da Articulação Nacional de
Os principais artigos desta resolução são: (i) os Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(es) (ANPSI-
psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça NEP) – que tem como principal objetivo garantir que
a discriminação ou preconceito de raça ou etnia; (ii) os o tema das relações raciais apareça de fato na agenda
psicólogos, no exercício profissional, não serão coni- da Psicologia brasileira – e a redação de um documento
ventes e nem se omitirão perante o crime do racismo; final do encontro intitulado Carta de São Paulo (2011),
(iii) os psicólogos não se utilizarão de instrumentos assinado por todos os presentes que apontou cami-
ou técnicas psicológicas para criar, manter ou refor- nhos teóricos, metodológicos e ético-políticos para os
çar preconceitos, estigmas, estereótipos ou discrimi- psicólogos. Citamos um trecho:
nação racial e (iv) os psicólogos não se pronunciarão
nem participarão de pronunciamentos públicos nos [...] O racismo à moda brasileira constitui um
meios de comunicação de massa de modo a reforçar o dos mais sofisticados e enigmáticos mecanismos
preconceito racial. que operando por meio da violência sistemá-
Estas duas ações foram o pontapé inicial para uma tica e silenciada, produz e torna cada vez mais
série de eventos, criações de grupos de trabalho e ati- agudas as desigualdades sociais, que no Brasil,
vidades de formação e sensibilização para o tema das tem também um viés eminentemente racial [...].

4
Informações obtidas em conversa com a atual diretora presidente da ONG Maria Lucia Silva no dia 11 de maio de 2016 e no site
http://www.ammapsique.org.br/.
5
Para maiores informações, ver em http://site.cfp.org.br/campanhas/preconceito-racial/.

180
Schucman, L. V.; Martins H. V. (2017).Psicologia e o Discurso Racial.

Dessa forma, as propostas aqui elencadas [...] em uma discussão introdutória sobre as relações
apontam decisivamente para um compromisso entre determinada produção em Psicologia Social e
de todas(os) as(os) presentes com a construção de a questão racial. Retratou-se, portanto, os principais
uma psicologia efetivamente comprometida com eventos, ideias e atores que possibilitam a compre-
a superação do racismo brasileiro apontando as ensão de como se deu a construção de projeto da
especificidades da contribuição da psicologia em sociedade brasileira marcado por um “credo racial”.
relação a este tema (Carta de São Paulo, 2011). E se nós apontamos como início desse processo os
estudos de Raimundo Nina Rodrigues sobre a popu-
É, portanto, através da pressão e articulação lação africana e afro-brasileira já em finais do século
das organizações negras e de diferentes psicólogas, XIX, fechamos esse périplo afirmando que os estudos
mulheres negras, como Neusa Santos Souza, Edna de branquitude e branqueamento (Carone, & Bento,
Roland, Edna Muniz, Maria Jesus Moura, Maria 2002), juntamente com a participação e pressão dos
Aparecida Silva Bento, Isildinha Baptista Nogueira, movimentos sociais negros, foram respectivamente
entre outras, que a temática das relações raciais e do fundamentais para a mudança de olhar da Psicolo-
racismo começa desde a década de 1980 até os dias gia sobre as relações raciais. Expor como o racismo
atuais a tomar corpo na produção de conhecimento constrói as identidades raciais brancas a partir de
dentro da área da Psicologia, nos debates com a cate- privilégios simbólicos e materiais demonstrou que
goria e também na atuação dos psicólogos. E nesse estes privilégios, intencionalmente ou não, têm um
sentido, vale dizer que os temas do racismo, do pre- papel importante na manutenção e legitimação das
conceito, dos estereótipos e da discriminação, como desigualdades raciais (Schucman, 2012). Apontamos
já demonstrado neste texto, sempre fizeram parte das ainda que a Psicologia se torna cada vez mais compro-
grades curriculares dos cursos de Psicologia social metida com a formação de uma sociedade mais justa e
(Santos, Schucman, & Martins, 2012). No entanto, igualitária por conta de uma maior aproximação com
é somente depois da década de 1980 que o tema passa os movimentos sociais, inclusive o movimento negro.
a ser compreendido dentro da Psicologia não ape- Aqui é importante realçar que não consideramos mera
nas como um fenômeno social a ser estudado, mas coincidência que perspectivas mais progressistas na
Psicologia relacionadas às questões raciais surjam no
sim como um fenômeno ligado às relações de poder
fim da década de 1970 e início de 1980, no período da
estruturais de nossa sociedade e, portanto, uma
luta pela anistia, das comunidades eclesiais de base,
temática que demanda comprometimento ético-po-
do movimento trabalhista do ABC, e, no caso da Psico-
lítico ligado aos direitos humanos e a luta antirracista.
logia, como já apontado anteriormente, o surgimento
Podemos, assim, dizer que é a partir do olhar do negro
da Abrapso e gestões no Sistema Conselhos de Psico-
para a Psicologia, e não mais da Psicologia em relação
logia que incorporam paulatinamente as demandas
ao negro como objeto, que a Psicologia Social brasi-
levantadas e reivindicadas pelos movimentos sociais
leira passa a se comprometer de fato com o combate
e intelectuais negros.
ao racismo.
Para isso, a Psicologia construiu novos espaços
na academia e em nossa categoria profissional para
Considerações finais que o tema do racismo seja debatido como um dos
Pudemos ver aqui, em linhas gerais, como a ques- fenômenos estruturais da nossa sociedade e para a
tão racial esteve presente na construção histórica dos compreensão das desigualdades sociais produzidas.
saberes psicológicos no Brasil e, consequentemente, Apesar de a Psicologia hoje já ter construído uma
do brasileiro ao longo de sua história. Também vimos variedade de trabalhos sobre esse assunto e, portanto,
como os saberes psicológicos se somaram a esse de conhecimento sobre a temática aqui discutida,
debate desde muito cedo, propondo maneiras de pen- encontramos ainda pouca atenção da categoria como
sar e intervir sobre a questão do negro já a partir de um todo – principalmente no que diz respeito aos cur-
finais do século XIX. Como afirmado anteriormente, sos de formação de psicólogos – para a compreensão e
nosso objetivo não foi produzir um estudo definitivo engajamento na temática e também para a produção
sobre o assunto. O foco aqui é apresentar o que con- de respostas adequadas ao que tange à redução do
sideramos como pontos capitais que podem auxiliar racismo e seus efeitos.

181
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 172-185.

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Lia Vainer Schucman


Graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis – SC. Brasil. Mestrado em
Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutorado e pós-doutorado em Psicologia Social pela
Universidade de São Paulo, São Paulo – SP. Brasil.
E-mail: liavainers@gmail.com

Hildeberto Vieira Martins


Professor Doutor do Departamento de Psicologia Social da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro – RJ. Brasil.
E-mail: betohvm@vm.uff.br

Endereço para envio de correspondência:


Rua: Ernesto Meyer Filho 368. Porto da Lagoa.
Florianópolis – SC. Brasil.
Rua Conde De Baependi, 124/604 - Flamengo. CEP: 22231-140.
Rio de Janeiro – RJ. Brasil.

184
Schucman, L. V.; Martins H. V. (2017).Psicologia e o Discurso Racial.

Recebido 29/06/2017
Reformulação 29/09/2017
Aprovado 02/102017

Received 06/29/2017
Reformulated 09/29/2017
Approved 10/02/2017

Recebido 29/06/2017
Reformulado 29/09/2017
Aceptado 02/10/2017

Como citar: Schucman, L. V., Martins H. V. (2017). A Psicologia e o discurso racial sobre o
negro: do “objeto da ciência” ao sujeito político. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 172-185.
https://doi.org/10.1590/1982-3703130002017

How to cite: Schucman, L. V., Martins H. V. (2017). Psychology and racial discourse on black people:
from “object of science” to political subject. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 172-185.
https://doi.org/10.1590/1982-3703130002017

Cómo citar: Schucman, L. V., Martins H. V. (2017). Psicología y discurso racial acerca del negro:
de “objeto de la ciencia” a sujeto político. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 172-185.
https://doi.org/10.1590/1982-3703130002017

185
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 186-196.
https://doi.org/10.1590/1982-3703140002017

Parecer Psicossocial da Violência contra os Povos Indígenas


Brasileiros: o Caso Reformatório Krenak

Bruno Simões Gonçalves


Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Resumo: A violência política contra diferentes populações indígenas durante o período da


ditadura militar brasileira ainda é muito desconhecida e pouco difundida. O caso conhecido
como Reformatório Krenak é um marco no processo de superação dessa invisibilidade.
O presente artigo é a apresentação e análise do parecer técnico psicológico realizado para
averiguar os efeitos psicossociais da violência política contra a população Krenak nesse
episódio. Ele foi parte constituinte da ação do Ministério Público de Minas Gerais que pede que
o Estado Brasileiro reconheça as graves violações de direito coletivo desse povo indígena e adote
ações de reparação histórica. Construída dentro da terra indígena entre os anos de 1969 e 1973,
o reformatório Krenak foi um centro de detenção direcionado exclusivamente para as indígenas
em confronto com a lei. A partir do conjunto de entrevistas, observações de campo e pesquisa
bibliográfica foi realizado o parecer que evidenciou tanto os impactos da violência política em
nível individual como em nível coletivo na população Krenak. Conclui-se que esse conjunto de
impactos produziu uma traumatização psicossocial coletiva nessa população. A constatação de
que há um processo continuado de violência contra os Krenak enseja não só o exame de desses
efeitos como abre para possibilidade de uma reparação psicossocial coletiva nessa população.
Palavras-chave: Violência, Ditadura, Indígenas, Direitos Humanos, Parecer Psicossocial.

The Psychosocial Report of Violence against the Indigenous


Brazilian People: The Case of the Krenak Correctional Facility

Abstract: The political violence against different indigenous populations during the Brazilian
dictatorship is still very unknown and little publicized. The well-known case of the Krenak
Correctional Facility is a milestone in the process of overcoming this invisibility. The present
article is a presentation and analysis of the psychological technical input carried out to ascertain
the psychosocial effects of the political violence against the Krenak population in this episode.
It was an integral part of the action of the Public Ministry from Minas Gerais, which requires that
the Brazilian State recognize the extreme violations of the collective rights of these indigenous
people and also the adoption of actions of historical amends. Built within indigenous land from
1969 to 1973, the Krenak Correctional Facility was a detention center intended exclusively to
indigenous people who did not abide by the law. Based on the collection of interviews, field
observations and bibliographical research, a report that highlighted the impacts of the political
violence in individual levels as well as in collective levels in the Krenak population was carried
out. Findings that suggest that there is an ongoing process of violence against the Krenak
demand not only the examination of these effects but also the possibility of psychosocial
collective amendments for this population.
Keywords: Violence, Dictatorship, Indigenous, Human Rights, Psychosocial Reports.

186
Gonçalves, B. S. (2017). Parecer Psicossocial: Caso Reformatório Krenak.

Informe Psicosocial de la Violencia contra los Pueblos


Indígenas Brasileños: el Caso Reformatorio Krenak

Resumen: La violencia política contra diferentes poblaciones indígenas durante el periodo de la


dictadura militar brasileña es aún muy desconocida y poco difundida. El caso conocido como
Reformatorio Krenak es un hito en el proceso de superación de esa invisibilidad. El presente
artículo es la presentación y análisis del informe técnico psicológico realizado para averiguar
los efectos psicosociales de la violencia política contra la población Krenak en este episodio.
Él fue parte constituyente de la acción del Ministerio Público de Minas Gerais que pide que el
Estado Brasileño reconozca las graves violaciones del derecho colectivo de este pueblo indígena
y adopte acciones de reparación histórica. Construido dentro de tierra indígena entre los años
1969 y 1973, el reformatorio Krenak fue un centro de detención dirigido exclusivamente a
indígenas en conflicto con la ley. A partir del conjunto de entrevistas, observaciones de campo
e investigación bibliográfica, fue realizado el informe que evidenció tanto el impacto de la
violencia política a nivel individual como a nivel colectivo en la población Krenak. Se concluye
que este conjunto de impactos produjo un trauma psicosocial colectivo en dicha población. La
constatación de que hay un proceso continuado de violencia contra los Krenak implica no solo
el examen de estos efectos sino que abre la posibilidad de una reparación psicosocial colectiva
en esta población.
Palabras claves: Violencia, Dictadura, Indígenas, Derechos Humanos, Informe Psicosocial.

Introdução gena desse povo entre os anos de 1969 e 1973, o Refor-


A violência de Estado contra diferentes populações matório foi um centro de detenção direcionado exclu-
indígenas durante o período da ditadura militar brasileira sivamente para os indígenas em confronto com a lei.
ainda é muito desconhecida e pouco difundida. No capí- Ao longo de quatro anos de funcionamento, recebeu
tulo dedicado às populações indígenas do relatório final indígenas de mais de 15 etnias e vindos de mais de 11
da Comissão Nacional da Verdade são relatados dezenas estados. Segundo o relatório da Comissão Nacional da
de casos em que houve violação dos direitos humanos Verdade em seu capítulo sobre os indígenas, as vio-
desses povos. Sobre a violência do Estado Brasileiro contra lações de direitos humanos coletivos dos indígenas
os indígenas, o Ministério Público Federal (MPF) escreve: se dividem em duas ordens de ação: usurpação do
trabalho indígena, confinamento e abuso de poder;
Dois importantes desafios a serem enfrentados expulsão, remoção e intrusão de terra indígenas;
pelo Estado Brasileiro são o reconhecimento e a desagregação social e extermínio. Além dessa descri-
reparação das graves violações de direitos huma- ção mais geral das modalidades de violação, o docu-
nos dos povos indígenas ocorridas durante a mento de detém mais pormenorizadamente em nove
ditadura militar (1964-1985), que por décadas casos considerados emblemáticos: Kaiowá, Krenak,
permaneceram ocultas e que ainda não foram Nambikwara, Aikewara, Avá-Canoeiro, Sateré-Mawé,
suficientemente reveladas. O pouco que já se sabe Xavante, Xokleng e Cinta Larga. São citados ainda
não deixa margem a dúvidas: o período autoritá- mais 21 povos e é indicado que “muitos outros” pas-
rio foi marcado pelo extermínio, trabalho, tortura, saram por semelhantes processos (MPF, 2015, p. 16).
remoções forçadas e intensa desagregação social O presente artigo é a apresentação e análise do
de várias etnias, provocadas pela omissão e pela parecer técnico psicológico realizado para averiguar
ação direta do Estado (MPF, 2015, p. 3). os efeitos psicossociais da violência política contra a
população Krenak nesse episódio. Ele foi parte cons-
O caso conhecido como Reformatório Krenak é tituinte da ação do Ministério Público Federal em
um desses episódios. Construído dentro da terra indí- Minas Gerais que pede que o Estado Brasileiro reco-

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 186-196.

nheça as graves violações de direito coletivo desse logias psíquicas individuais. Ou seja, são os casos em
povo. Dado importante a ser ressaltado, segundo o que o impacto psicossocial da violência política se
Ministério Público Federal, o caso Reformatório Kre- singulariza e se manifesta através de adoecimento
nak se caracteriza por ser um crime “contra toda a psíquico individual.
humanidade” Afirma o MPF: Já no caso dos efeitos psicossociais coletivos se
expressam através do impacto causado na vida do
Embora a presente ação seja estritamente de grupo. Para tal análise, dividiu-se essa dimensão em
natureza cível, é relevante destacar que os atos dois momentos. O primeiro refere-se a fatos, persona-
ilícitos aqui analisados constituem crime contra gens ou sentimentos coletivos oriundos da vida social
a humanidade. Daí porque merecem o máximo recente do Krenak. O segundo, refere-se aos efeitos
repúdio pela Justiça Federal como forma não só sobre conjunto de práticas socioculturais e nos valo-
de reparação de vítimas, mas acima de tudo para res ético-espirituais Krenak, sua cultura tradicional.
impedir que episódios tais se repitam no futuro. A traumatização psicossocial coletiva é um pro-
Outra consequência dessa qualificação é a de cesso que se estrutura a partir de alguns marcos:
que os crimes contra a humanidade não estão
sujeitos ao instituto da prescrição [...]A expressa Trauma psicossocial
punição dos crimes contra a humanidade foi pre- Partindo do pressuposto de saúde mental como
vista, pela primeira vez no artigo 6.c do Estatuto um problema de relações sociais, Martín-Baró (1984b)
do Tribunal de Nuremberg. Foram qualificados apresenta a categoria de trauma psicossocial. Para
como crimes dessa gravidade o extermínio, a esse autor, a prática da violência política gera um con-
escravização, a perseguição por motivos raciais junto de prejuízos individuais e coletivos em diferen-
e a deportação, entre outros (MPF, 2015 p. 80). tes dimensões, que se caracterizam como sintomas
psicossociais, que são a “cristalização traumática nas
Com base nos estudos realizados pela Psicologia pessoas e nos grupos das relações desumanizadas”
Social sobre os impactos psicossociais da violência (Martín-Baró, 1984b, p. 123).
política, em suas diferentes expressões, nas popula-
ções e nos indivíduos atingidos, foi desenvolvida a
noção de traumatização psicossocial coletiva. Para Heterogeneidade
o desenvolvimento dessa categoria, utilizamos os Outro aspecto importante para a caracterização
do trauma psicossocial levantada por Martín-Baró
seguintes estudos: impactos psicossociais da violên-
(1984b) é seu caráter heterogêneo. Segundo o autor,
cia política em suas diferentes expressões: impactos
o trauma psicossocial não pode ser compreendido
psicossociais da violência política em comunidades
como uma expressão mecânica e uniforme. Dado seu
rurais tradicionais, camponesas e indígenas (Arantes,
caráter histórico e multideterminado, ele se manifesta
2006; Dias, 2015; Oliveira 1998; Paraíso, 1989; Reis,
de maneira diversa no universo das relações sociais,
2011; Silva, 1992); impactos psicossociais das práti-
tornando também diversa a intensidade de suas
cas políticas próprias das ditaduras latino-america-
expressões e de seus efeitos.
nas, em especial trabalhos do psicólogo Martín-Baró
(Beristain, 2007; Dobles, 2009; Madriaga, 2002; Mar-
tín-Baró, 1984a; Pedersen, 2006;). Sequencialidade do trauma
A traumatização psicossocial coletiva é um con- Juntamente com a noção de trauma psicossocial
junto de sintomas psicossociais gerados em uma cole- levantada por Martín-Baró (1984b), uma importante
tividade a partir de um processo histórico caracteri- contribuição para a compreensão de processos trau-
zado por intensa violência política. máticos é seu caráter sequencial (Keilson, 1992). Isso
A manifestação desses sintomas pode ser de significa que ele pode se realizar como um processo
ordem individual e coletiva. No caso dos sintomas histórico no qual diferentes experiências traumáticas
individuais, é importante ressaltar que o psiquismo podem ir se acumulando em sequência, intensifi-
individual é personalização do sujeito social. São cando e tornando mais complexo o mesmo processo
demonstrados casos nos quais a traumatização psi- de traumatização psicossocial coletiva. No caso em
cossocial coletiva se cristalizou em sintomas e pato- tela, há uma remoção da população Krenak para a

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Gonçalves, B. S. (2017). Parecer Psicossocial: Caso Reformatório Krenak.

Fazenda Guarani em Carmésia (MG), que ocorre como as modalidades foi utilizada a forma de entrevistas
consequência da criação do reformatório. O retorno semiestruturada. No total, foram entrevistadas 21
e permanência em situação extremamente precárias pessoas, sendo 15 homens e seis mulheres. As idades
até a devolução oficial de suas terras também são con- variaram de 20 a 105 anos. O critério para a escolha
siderados momentos sequenciais da traumatização. dos entrevistados foi: proximidade com o Reformató-
rio, notório saber e idade.
As entrevistas seguiram os seguintes marcos
Transgeneracionalidade
temáticos: enfoque biográfico com ênfase em aconte-
Um último aspecto a ser levantado para a carac-
cimentos relativos ao Reformatório; narração de acon-
terização do processo de traumatização psicosso-
tecimentos relevantes; descrição do cotidiano e de ati-
cial coletiva é sua transgeneracionalidade, ou seja,
vidades de trabalho. As entrevistas foram realizadas em
a expressão dos efeitos do trauma psicossocial nas
sua quase totalidade na casa dos entrevistados.
gerações seguintes àquelas que sofreram diretamente
com a violência política (Brinkman, 2009; Espinoza, &
Rodriguez, 2006; Faúndez, & Cornejo, 2010, Iosa et al., Contexto socioafetivo das entrevistas
2013; Scapuzio, 2002). Um aspecto importante a ser destacado foi a
Essas diferentes características dos processos trau- afetividade presente no momento das entrevistas.
máticos até aqui elencadas formam, em seu conjunto, Pode-se afirmar que houve um contexto socioafetivo
a estrutura da traumatização psicossocial coletiva. comum que envolveu as entrevistas. As características
gerais apresentadas foram:
Método
Para obter informações e dados necessários ao Grande intensidade emocional
presente trabalho, realizamos as seguintes atividades: De maneira geral, a atmosfera das entrevistas
a) Exame do processo judicial como um todo, iden- sempre esteve envolvida por grande intensidade
tificando a presença de elementos que apontem emocional. Expressões como choro, voz embargada,
para os impactos psicossociais nos indivíduos e expressões corporais de retraimento, olhar vago ou
no conjunto do povo Krenak. assustado e quebra na continuidade do discurso
b) Levantamento de literatura científica: estudos foram algumas expressões de afetividade intensa que
sobre impactos psicossociais da violência políti- apareceram com frequência. Em alguns momentos,
ca em suas diferentes expressões, com ênfase em essas expressões se tornaram ainda mais intensas.
comunidades rurais tradicionais, camponesas e
indígenas e nos efeitos da violência própria das
Tensionamento socioafetivo
ditaduras latino-americanas.
Outra característica que se evidenciou foi a con-
c) Duas viagens de campo à Terra Indígena Krenak,
tradição no posicionamento dos entrevistados no
local onde funcionou o Reformatório. No total,
momento das entrevistas. Por um lado, os entrevista-
as viagens somaram dez dias em campo. Nas via-
dos pareciam estar cientes da importância de contri-
gens foram utilizadas técnicas de base etnográfi-
buir para o trabalho, por outro havia uma resistência
ca (Souza, 2014).
persistente ao longo dos depoimentos. Ou seja, havia
Foram realizadas 23 entrevistas ao longo das
um tensionamento entre a vontade e a dificuldade de
duas viagens de campo. O conjunto de entrevistas rea-
falar dessas memórias.
lizadas nas duas viagens de campo soma aproximada-
mente 20 horas.
Também foi examinado o conjunto de entre- Resultados
vistas realizadas pela Procuradoria Regional dos Com base na consulta à literatura científica,
Direitos do Cidadão em Minas Gerais como parte do nas observações de campo e na análise das entre-
processo. O conjunto das entrevistas soma aproxi- vistas realizadas, é possível afirmar que a violência
madamente 8 horas. política do Reformatório Krenak e sua sequenciali-
As entrevistas seguiram duas modalidades: entre- dade produziram um intenso impacto psicossocial
vistas individuais e entrevistas em grupo. Em ambas na população Krenak.

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 186-196.

Esse impacto desencadeou um conjunto de efei- zação – que se estendeu por anos – e à subtração de
tos psicossociais, que se expressam tanto na dimensão elementos centrais da cultura Krenak, somou-se a
individual como na dimensão coletiva do modo de vida ausência de perspectiva de retorno à terra tradicional
Krenak. Na dimensão individual, quatro casos emble- após a expulsão. Ao que tudo indica, esse conjunto de
máticos explicitaram os danos psicológicos da violência determinações foi responsável pelo gradativo preju-
sofrida. São casos de grave desintegração psicofísica, ízo psicoafetivo de José, desencadeando um possível
que explicitam a singularização dos efeitos da violência. quadro de depressão, que culminou no aparecimento
Na dimensão coletiva, foram encontrados efeitos em de distúrbios orgânicos que o levaram à morte´
duas dimensões: vida social recente e cultura tradicional. Como explica um depoente:
No caso da vida social recente, foram elencados
marcos sociais que evidenciam o efeito psicossocial Tem parente nosso que morreu aí em outras aldeias
da violência. Esses marcos sociais são fatos, dinâmicas sem ter problema de saúde, sem nada, morreu depres-
e histórias pessoais que estão presentes na memória sivo mesmo. Vocês usam falar depressão, né? Morreu
do grupo como um todo e que remetem diretamente assim, apaixonado mesmo, por causa de uma coisa
à experiência da violência sofrida. que atrapalhou toda a vida. Nos Guarani [Fazenda
No caso da cultura, foi possível identificar o Guarani], por exemplo, tem o José que morreu assim.
impacto psicossocial do Reformatório no conjunto
de práticas socioculturais e nos valores ético-espiritu-
O segundo caso – construído a partir de depoi-
ais – cosmovisão – Krenak, elementos fundamentais
mentos – é o de João, liderança Krenak que se opunha
para esse povo se reproduzir socialmente e se afirmar
fortemente às forças militares-policiais responsáveis
como povo diferenciado.
pela extrema diminuição populacional dos Krenak ao
Esse conjunto de efeitos encontrados é respon-
longo de todo o século passado. Esse enfrentamento
sável por humilhação social, rebaixamento na socia-
ocasionou intensa violência militar-policial contra João
bilidade comunitária e diminuição aguda de práticas
durante os anos do Reformatório. Como elemento agra-
da cultura tradicional. Tais sintomas são responsáveis
vante, João teve três filhas que serviram no Reformató-
por graves prejuízos psicológicos ao povo Krenak,
rio, trabalhando em serviços gerais, principalmente na
constituindo um processo de traumatização psicos-
cozinha. São lembradas constantemente como impor-
social coletiva extrema que afeta todos os âmbitos da
tantes testemunhas da vida no interior do Reformatório.
vida social dessa população.
Vivendo na Fazenda Guarani, em Carmésia, João
passa a apresentar severo delírio paranoico de per-
Discussão seguição. Assim sendo, é evidente o grave impacto
psicossocial da violência política na saúde mental de
Impactos na dimensão individual
A partir das entrevistas e da observação de campo, João, deflagrado na forma de um transtorno psíquico
foi possível recolher informações que apontaram para que comprometeu gravemente sua vida.
prejuízos psicológicos individuais na vida e na estru-
tura socioafetiva familiar de pessoas pertencentes ao João – muita gente falava que era louco. Isso foi
grupo Krenak. Foram relatados quatro casos que evi- uma doença da polícia que passou pra ele [...].
denciam o impacto psicossocial da violência política. O Joaquim Grande dormia às quatro hora da
O primeiro caso se refere a José1, importante lide- manhã. Isso eu vi. Eu vi isso. Depois que os passari-
rança dos Krenak na época do Reformatório. Segundo nho começava aquele canto do dia amanhecendo.
depoimentos que contam o trajeto de vida de José, é
evidente a manifestação de uma gradativa desintegra- Ele ficava na beira do fogão desse jeito aqui [coloca
ção psíquica devido à presença de militares em sua a mão entre as pernas, arregala os olhos e começa
terra, em um primeiro momento, e ao deslocamento a balançar], ficava sentado. Em toda casa que ele
compulsório dos Krenak para a fazenda Guarani, em ia morar, ele reforçava as fechadura. Ele não dor-
um segundo momento. A essa constante inferiori- mia e ficava com a lança do lado.

1
Os nomes são fictícios.

190
Gonçalves, B. S. (2017). Parecer Psicossocial: Caso Reformatório Krenak.

O terceiro caso é o de Luís, indígena que apre- O sofrimento extremo de Paulo com essa situação
senta elementos evidentes de adoecimento psíquico também é evidente. Paulo foi internado devido ao
relacionado à violência sofrida na infância e na ado- desgaste mental ocasionado pela morte dos filhos.
lescência, como consequência da presença militar no O conjunto de ocorrências de violência extrema
território Krenak e na Fazenda Guarani. Os diferentes entre os filhos do casal, evidencia a transgeneracio-
relatos de castigos, trabalho forçado, “treinamento” nalidade da traumatização psicossocial coletiva. O
forçado, proibições e tortura psicológica durante a caso de Paula e Ana contou com o depoimento do
infância levaram ao gradativo agravo da saúde men- próprio Paulo – e outros – assim como observação
tal de Luís. Os episódios de agressividade com as de campo.
mulheres e com os filhos, além de episódios isolados
de violência contra crianças da aldeia, evidenciaram Ela ficou ruim da cabeça. Ela chegou [na Fazenda
seu sofrimento psicoafetivo agudo. Com base no con- Guarani] vendo peixe, vendo marimbondo assim
teúdo dos delírios persecutórios de Luís – soldados e no corpo. Perdeu até o resguardo dela. Via pena
elementos relacionados à guerra como movimentos agarrado na roupa, marimbondo mordendo nela.
estratégicos, gritos de ordem e armas –, é possível Isso já está com muitos anos que ela ficou assim.
afirmar que a perda da integridade mental está dire- Ela é ruim até hoje. [...] Fica falando que quer
tamente ligada ao episódio do Reformatório e sua morrer no rio.
sequencialidade. O caso de Luis foi recolhido através
de depoimentos. Meus três filhos mais velho faleceram aqui mesmo.
Eu fiquei muito tempo em tratamento, me tratei
Contava que um batia assim [faz sinal de agressão muito tempo na Funai. Eu fiquei fora do juízo. Me
na área lateral do abdome] e outro assim [mostra levaram até Valadares, eu fui sem saber.
o rosto]. Ele [Nadil] pequeno e Zezinho Eles eram
os dois que levavam a turma, tipo lideranças,
toda comunidade tem, né? Até em comunidade
Impactos na dimensão coletiva
de brancos tem, né, pessoas que se sobressaem das
outras também, né, então isso de levar eles pra Impacto psicossocial na vida
ver bater [nos presos]. Ele tinha oito anos nessa social recente dos Krenak
época [...] Além de bater, eles levavam no outro dia Com base nas entrevistas e na observação de
pra ver como que fica. Diz ele que o homem tava campo, foi possível identificar alguns marcos sociais
com o olho todo esbogaiado pra fora. Diz que esse da vida social recente do grupo que remetem à época
homem sumiu. Esse índio sumiu depois. O Zezi- da violência política do Reformatório.
nho também viu tudo isso, que eram os dois que
eles botavam pra ver. Todos eles viram, todos eles Seu Antônio
foram perseguido. Seu Antônio é o Krenak mais velho da aldeia
e relata em suas memórias a violência política
O quarto caso é o de Paulo e Ana e demonstra ainda anterior ao período do Reformatório. Já nesse
de maneira evidente o grave impacto psicossocial momento, Antônio relata episódios de tortura, humi-
na saúde mental e na estrutura socioafetiva fami- lhação e expulsão da terra. Os relatos de Seu Antônio
liar de ambos. Desencadeado como consequência durante a entrevista realizada desencadearam uma
direta da expulsão do território tradicional, o surto série de reações emocionais em seus parentes: choro,
psicótico de Ana manifestou-se claramente a par- silêncio compenetrado e algumas reações psicofísi-
tir de sintomas como delírios e alucinações, assim cas, como intensas dores de cabeça e relatos de ador-
como episódios de intensa agressividade (tentativa mecimento de mãos e pés. A trajetória dele é uma
de suicídio e ameaça à vida de outros), até culminar experiência que toca fundo na experiência coletiva
com o assassinato do próprio filho. Após esse episó- dos Krenak e é claramente vivenciada pelas pessoas
dio inicia-se um período de muita violência intrafa- como uma violência que atingiu a todos os Krenak.
miliar, culminando na morte de mais um filho por A vida de Seu Antônio é lembrada como um símbolo
assassinato, dessa vez praticado por outro irmão. desse conjunto de variadas vivências de humilhação

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 186-196.

social, dor física e dor psicoafetiva extrema a que Pode-se afirmar que é essa história que se cristali-
foi sujeitado todo povo, sendo um marco da memó- zou na memória coletiva dos Krenak, operando como
ria coletiva Krenak. Segundo Gonçalves Filho (1998) símbolo maior dessa modalidade de violência. O fato
a humilhação social é “a humilhação crônica, longa- evidencia o alto nível de brutalidade e tortura contra
mente sofrida pelos pobres e seus ancestrais, é efeito a infância na memória coletiva dessa população O
da desigualdade política, [...]. Como tal, trata-se de trabalho análogo à escravidão, a proibição de brincar
um fenômeno ao mesmo tempo psicológico e polí- no rio e o constrangimento de testemunhar espanca-
tico. O humilhado atravessa uma situação de impedi- mentos também são lembrados como momentos de
mento para sua humanidade”. violência dirigida contra as crianças. Nesse sentido, a
história do menino amarrado ao cavalo se estabelece
Seu José como um marco que representa o conjunto dos atos
A trajetória de vida de José, por sua experiência de violência contra a infância Krenak.
de liderança e pela relação intensa com a cultura e a
religiosidade Krenak, é outro marco social importante Capitão Pinheiro e violência policial
na memória coletiva desse povo. A presença da violência policial é, sem dúvida,
A história de vida de José é apontada com frequ- o fenômeno que mais fortemente aparece como
ência como um exemplo da singularização da humi- marco da memória coletiva do povo Krenak. Uma das
lhação social produzida pela violência política a todo formas em que se cristaliza a imagem dessa violên-
o povo Krenak. A trajetória de José é lembrada como cia é na figura do capitão Pinheiro (Manoel dos San-
um símbolo da gradativa violência contra o povo, tos Pinheiro, capitão da Polícia Militar do estado de
desde suas prisões por motivos banais, passando por Minas Gerais), lembrado como o comandante oficial,
sua expulsão algemado e culminando em sua morte e o mandante das ações de controle e ordem que regiam
no sepultamento longe de sua terra de origem. Conhe- o funcionamento do Reformatório. A figura do capitão
cido pela sua capacidade guerreira e altiva, pode-se Pinheiro torna-se, assim, um emblema que simboliza
afirmar que José é um marco que simboliza a humi- a totalidade da humilhação social que atingiu o povo
lhação social dos Krenak, concretizando um impacto Krenak. Ele representa a síntese tanto da violência
psicossocial que está presente nas relações interpes- cotidiana imposta à população na época do Reforma-
soais até hoje e que modula a relação dos Krenak com tório como da violência em seu sentido mais amplo,
a sociedade não indígena. ou seja, das forças do Estado impondo-se sobre os
Krenak, expulsando-os de seu território, apoiando os
A violência contra a infância fazendeiros que invadiam a terra e organizando uma
Um fato emblemático muito importante em instituição de repressão política no interior de seu ter-
relação à violência militar-policial sofrida é a histó- ritório tradicional.
ria do menino que foi amarrado ao cavalo para ser Pode-se afirmar que a violência policial não é
arrastado. Segundo variados relatos, após descum- uma marca presente apenas em algum aspecto espe-
prir uma das regras estabelecidas sobre os horários cífico da memória coletiva do povo Krenak. Pelo con-
escolares, amarraram uma criança a um cavalo que trário, é um fenômeno que está presente em toda a
foi estimulado a sair correndo. Lembrada inúmeras memória recente do povo Krenak, podendo-se afir-
vezes nas entrevistas, essa história é uma das marcas mar que, após o episódio do Reformatório, Krenak
sociais mais presentes na memória coletiva recente passou a ser indissociável do período de violência que
do povo Krenak: marca de forma central a existência social desse povo.

Esse meu primo, até hoje eu lembro dele e fico Impacto psicossocial na cultura
muito triste. O menino ficava jogando aquela coi- tradicional
sinha, pelota, aí ele foi pescar. Ele [o militar] que- A partir da realização de entrevistas e da obser-
ria porque queria que ele fosse pra escola. Mas ele vação de campo, foi possível identificar os impactos
foi pescar pra fazer mistura, né. Essa polícia foi lá psicossociais da violência política na cultura tradi-
atrás dele, buscar ele. Ele vinha correndo na frente cional Krenak. Identificada pelos entrevistados como
do cavalo. Não foi só uma vez não. “cultura Krenak”, a cultura tradicional refere-se ao

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Gonçalves, B. S. (2017). Parecer Psicossocial: Caso Reformatório Krenak.

conjunto de práticas sociais e valores ético-espirituais principais fundamentos – artesanato, língua, espiritu-
– sua cosmovisão e concepção de humanidade – que alidade – está intimamente ligada ao território tradi-
se formaram ao longo da história do povo Krenak. cional e ao uso de seus recursos.
Com a invasão de suas terras tradicionais por
Língua fazendeiros, há uma devastação acentuada do ecos-
As ações violentas com o objetivo de extinguir a sistema local com a retirada de boa parte da cober-
língua Krenak e a tentativa de que os indígenas pas- tura vegetal para criação de pastos para gado. Além
sassem a falar exclusivamente português apresentam disso, a ausência de árvores diminuiu drasticamente
as características próprias da estratégia de violência o volume do rio e de animais silvestres.
de Estado com objetivo de integração de uma deter- Essa transformação no ecossistema da terra
minada população etnicamente diferenciada. Estraté- indígena acarreta, uma diminuição no universo que
gias como proibição do uso cotidiano da língua-mãe, ancora o repertório cultural e psicossocial dos Krenak.
aulas forçadas da língua nacional, castigos de diver- Isso implica em graves consequências para a repro-
sas ordens para forçar o abandono da língua-mãe e dução de seus valores e costumes tradicionais. Dessa
repressão de práticas da cultura tradicional nas quais forma, é possível afirmar que a impossibilidade de dar
a língua é um elemento importante evidenciam esse continuidade à cultura tradicional – expressa no ter-
objetivo de integração. ritório – está diretamente relacionada ao sofrimento
A língua é um elemento fundamental da cul- psicossocial coletivo dessa população.
tura tradicional Krenak, sendo o veículo privilegiado,
quando não o único, de uma fração importante de sua Religião
cultura tradicional. Outro aspecto fundamental da cultura tradicio-
Ao proibir a língua, as forças militares-policiais nal Krenak é a religião tradicional. Pode-se afirmar
causaram um enfraquecimento agudo de práticas que a cosmovisão Krenak e seus valores ético-espiri-
socioculturais centrais, sua cosmovisão e concepção tuais são os princípios que estão no centro da iden-
de humanidade. Sem a língua, principal elemento tidade Krenak e de sua concepção de humanidade.
mediador das práticas tradicionais, há uma redução A partir da prática religiosa central de comunicação
na frequência dessas práticas, que já não podem ser com os maret – espíritos protetores –, são realizados
realizadas pela ausência desse elemento constituinte os casamentos, os rituais fúnebres e os momentos de
e fundamental. Dessa forma, a perda forçada das prá- celebração próprios do modo de vida Krenak.
ticas e dos valores tradicionais pode ser considerada A espiritualidade centrada na existência dos
como resultado do impacto psicossocial da violência maret é tão forte para os Krenak que a própria noção de
política no período do Reformatório e sua sequencia- humanidade é concebida a partir da existência deles.
lidade, contribuindo significativamente para a trau- Segundo relatos ouvidos, a humanidade Krenak se
matização psicossocial coletiva. iniciou quando um grupo de indígenas, ao caminhar
pela mata de maneira desordenada e sem encontrar
Território nenhuma comida, parou na beira do rio e pediu ajuda
Outro aspecto central da cultura tradicional Kre- aos espíritos dos maret, que ensinaram os indígenas a
nak é a relação dos indígenas com seu território tradi- plantar e pescar. Desde então, desse primeiro contato
cional. Considerado como espaço formado por proces- com os maret, os Krenak se tornam humanos.
sos sociais que incluem a natureza em suas dinâmicas, Os relatos deixam evidente a proibição de qual-
o território e formado por processos históricos. A cul- quer expressão que remetesse à religiosidade tradicio-
tura tradicional Krenak se expressa através de saberes e nal. Os Krenak foram impedidos de realizar seus ritu-
práticas que estão guardadas na memória ancestral do ais na beira do rio e do fogo, realizar suas incursões
grupo. Essa memória, produto da trama histórica, está pela mata com objetivos religiosos e de transmitir
expressa nos diferentes elementos da biodiversidade seus valores ético-espirituais para os mais novos.
do território: as matas, as grutas, os rios, o peixe, a caça. Com base nesses elementos, é possível afirmar
É facilmente notada a relação dos Krenak com a que o impedimento das práticas religiosas atinge o
mata, com o rio e com os demais elementos que for- epicentro da cultura tradicional Krenak, sua concep-
mam o território. A cultura tradicional Krenak em seus ção de ser humano. Para os Krenak, a própria con-

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 186-196.

dição humana, a própria cultura humana depende dos efeitos oriundos da violência política. Nesse sentido,
dessa relação entre homens e maret. com base na realização do parecer psicossocial, é pos-
sível apontar algumas diretrizes fundamentais em um
processo de reparação psicossocial coletiva:
Conclusão
• O conjunto de ações deve ser estabelecido a partir
A realização do parecer psicossocial sobre o Refor-
do reconhecimento dos diferentes níveis que os
matório Krenak é um trabalho que concretiza a par-
efeitos psicossociais podem tomar: individual,
ticipação da ciência psicológica no campo dos direi-
familiar, intergrupal e da comunidade como um
tos humanos coletivos. O Ministério Público Federal,
todo. As ações devem ser realizadas tendo como
ao solicitar a averiguação dos impactos psicossociais
foco as distintas dimensões dos efeitos coletivos.
da violência de Estado contra as populações Krenak,
reconhece a importância da dimensão psicossocial • As ações devem levar em consideração o conjunto
coletiva para o campo dos direitos humanos. de saberes da população atingida. O repertório de
O reconhecimento da dimensão psicossocial do caso práticas terapêuticas – individuais e coletivas –
Reformatório Krenak abre a possibilidade para o reconhe- mantidas e desenvolvidas pela comunidade para
cimento dessa dimensão em outros casos de violência do sua coesão socioafetiva e saúde coletiva deve ser
Estado brasileiro contra as populações indígenas. Dados incorporado e articulado às ações da Psicologia.
da Comissão Nacional da Verdade (Brasil, 2014) indicam • As ações da Psicologia devem buscar interlocução
que a violência do estado atingiu inúmeros povos em todo com outras áreas de conhecimento que estão
o país. Ou seja, há muitos casos de violação de direitos em presentes em trabalhos com a população que teve
que a Psicologia pode contribuir apontando os efeitos psi- seus direitos violados.
cossociais sobre as populações atingidas. • A traumatização psicossocial coletiva das
Outra possibilidade aberta a partir da realização populações por violência de Estado é um
do parecer são estudos sobre o impacto psicossocial fenômeno que produz efeitos que ainda não foram
de ações do Estado em distintas populações. Campo- reconhecidos. À medida que a dimensão coletiva
neses, povos tradicionais e populações atingidas por dos direitos humanos passa a ser identificada,
barragens e por desastres ambientais também foram os aspectos psicossociais desses processos
vítimas de violência de Estado. traumáticos também ganham maior visibilidade.
Um aspecto importante a ser ressaltado como des- A Psicologia pode contribuir apontando como
dobramento da realização desse documento é a possi- esses fenômenos se constituem e indicando como,
bilidade de construção de uma ação profissional da Psi- para além da dimensão individual, se desenvolvem
cologia que aponte caminhos de superação e reparação processos coletivos de traumatização.

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Bruno Simões Gonçalves


Pós-doutor em Psicologia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica – RJ. Brasil.
E-mail: brunosim7@yahoo.com.br

Recebido 30/06/2017
Reformulação 30/09/2017
Aprovado 02/10/2017

Received 06/30/2017
Reformulated 09/30/2017
Approved 10/02/2017

Recebido 30/06/2017
Reformulado 30/09/2017
Aceptado 02/10/2017

195
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 186-196.

Como citar: Gonçalves, B. S. (2017). Parecer Psicossocial da Violência contra os Povos Indígenas
Brasileiros: o Caso Reformatório Krenak. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 186-196.
https://doi.org/10.1590/1982-3703140002017

How to cite: Gonçalves, B. S. (2017). The Psychosocial Report of Violence against the Indigenous Brazilian
People: The Case of the Krenak Correctional Facility. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 186-196.
https://doi.org/10.1590/1982-3703140002017

Cómo citar: Gonçalves, B. S. (2017). Informe Psicosocial de la Violencia contra los Pueblos
Indígenas Brasileños: el Caso Reformatorio Krenak. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 186-196.
https://doi.org/10.1590/1982-3703140002017

196
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 197-207.
https://doi.org/10.1590/1982-3703150002017

Práticas Discursivas sobre a Luta pela Terra


na Transição Democrática Brasileira

Jáder Ferreira Leite Magda Dimenstein


Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
RN, Brasil. RN, Brasil.
Candida Maria Bezerra Dantas
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, RN, Brasil.

Resumo: Dois agentes de mediação na luta pela terra se destacaram no período de democratização
da sociedade brasileira: a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Movimento de Trabalhadores e
Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST). O presente texto discute a atuação do MST, tomando
como base de diálogo o Construcionismo Social, a fim de reconhecer como as práticas discursivas
veiculadas por ele foram capazes de se converter em práticas sociais geradoras de sentidos
junto aos trabalhadores e trabalhadoras do campo. As reflexões apontam que o MST investiu na
unidade identitária de sua base social, produzindo a figura discursiva do sem-terra e avançando
politicamente enquanto destacado movimento social no processo de democratização.
Palavras-chave: Construcionismo Social, Práticas Discursivas, Movimento de Trabalhadores e
Trabalhadoras Rurais Sem Terra.

Discursive Practices in the Struggle for Land in the


Transition to Democracy in Brazil

Abstract: Two mediating agents in the struggle for land during the democratization of Brazilian
society stand out as particularly relevant: the Pastoral Land Commission (CPT) and the Landless
Rural Workers’ Movement (MST). This article discusses the actions taken by the MST, dialoguing
with a Social Constructionist view, aiming to recognize how the discursive practices presented
were converted into social practices that generated meanings among the workers in general
and rural workers in particular. These reflections suggest that the MST invested in the unified
identity of its social base, producing the Landless subject as a discursive figure, and advancing
politically as a noteworthy social movement in the process of democratization.
Keywords: Social Constructionism, Discursive Practices, Landless Rural Worker’s Movement.

Disponível em www.scielo.br/pcp
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 197-207.

Prácticas Discursivas sobre la Lucha por la Tierra


en la Transición Democrática Brasileña

Resumen: Dos agentes de mediación en la lucha por la tierra se destacaron en el período


de democratización de la sociedad brasileña: la Comisión Pastoral de la Tierra (CPT) y el
Movimiento de Trabajadores y Trabajadoras Rurales Sin Tierra (MST). El presente texto discute
la actuación del MST, tomando como base de diálogo el Construccionismo Social, a fin de
reconocer cómo las prácticas discursivas vehiculadas por él fueron capaces de convertirse en
prácticas sociales generadoras de sentidos junto a trabajadores y trabajadoras del campo. Las
reflexiones apuntan que el MST invirtió en la unidad identitaria de su base social, produciendo
la figura discursiva del Sin Tierra y avanzando políticamente como destacado movimiento
social en el proceso de democratización.
Palabras claves: Construccionismo Social, Prácticas Discursivas, Movimiento de Trabajadores y
Trabajadoras Rurales Sin Tierra.

Introdução dificuldades em tornar a reforma agrária um projeto


O projeto de desenvolvimento adotado pelos político a ser efetivado, com a ditadura civil-militar de
governos militares brasileiros (1964–1985) teve um 1964, tal pleito mergulhou num desmonte das entida-
profundo impacto no meio rural. Tal projeto, que des de luta, perseguição, prisões e assassinato de suas
objetivava promover a abertura ao capital estrangeiro, lideranças e levou os militares a conduzir, sob seus ter-
diminuir a ação do Estado e desencadear crescimento mos, um plano de desenvolvimento para o meio rural
econômico, aliava-se a uma política de arrocho sala- que combinava uma maior concentração fundiária ao
rial, quebra de alguns direitos trabalhistas e profunda investir na aliança terra e capital (Martins, 2000), bem
repressão a entidades sindicais (Schawarcz, & Starling, como em projetos de colonização que visavam mini-
2015) no campo e na cidade. mizar os conflitos no campo e promover a ocupação
Nesse sentido, os projetos desenvolvimentistas do território nacional1.
governamentais e particulares de empresas agropecu- Das investidas iniciais do regime militar que pro-
árias a fim de atender o mercado externo, a construção duziram o “milagre econômico”, com os fortes inves-
de grandes obras, a exemplo da rodovia Transamazô- timentos de capital estrangeiro, seguiram-se difíceis
nica e de hidrelétricas, bem como as práticas de grila- momentos de recessão, oriunda do cenário de crise
gem de terras de áreas devolutas geraram a expulsão de internacional por conta do preço de petróleo, atin-
inúmeros habitantes de seus territórios de vida e tra- gindo fortemente os segmentos médios brasileiros
balho: áreas de posseiros, reservas indígenas, comuni- e grande parcela da população assalariada, fatores
dades ribeirinhas, áreas rurais em que os trabalhadores que passaram a tornar o regime bastante impopular
mantinham acordo com seus proprietários para morar (Schwarcz, & Starling, 2015). Aliado a isso, a impopu-
e trabalhar (Silva, 1997). Tal fato agravou ainda mais a laridade dos militares avançava em meio aos inúme-
situação de inúmeros trabalhadores do campo, levan- ros casos de assassinato cometidos contra jornalistas,
do-os a processos de mobilização e de luta por terra. estudantes e lideranças, de modo a se produzir uma
No entanto, se os inúmeros atores envolvidos mobilização pelo fim do regime e pressão em favor da
nas ações de luta no campo brasileiro encontravam abertura política.

1
Outra iniciativa relativa à questão agrária do período militar foi a edição, em novembro de 1964, do Estatuto da Terra, mas que, segundo
Martins (2000), não chegou a ser efetivado.

198
Leite, J. F.; Dimenstein, M.; Dantas, C. M. B. (2017). Práticas Discursivas sobre a Luta pela Terra.

Dois agentes de mediação na luta pela terra se política (Spink, & Frezza, 2013), foi no campo da Psi-
destacaram no período de democratização da socie- cologia Social que deixou uma importante marca, tal-
dade brasileira: a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o vez por sua força de questionamento a esse campo,
Movimento de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais na medida em que elaborando uma crítica contun-
Sem Terra (MST). A primeira surge ainda em meio ao dente ao mito da interioridade psicológica, “rompe
regime ditatorial, no ano de 1975, no âmbito de uma com a naturalização das taxonomias estáticas que
linha marcadamente progressista da Igreja Católica caracterizaram a produção do conhecimento psicoló-
e o segundo, a partir da CPT, se organiza em torno da gico e que o influenciam até hoje” (Rey, 2004, p. 114).
busca de uma unidade de luta marcadamente política Há, com o projeto construcionista, um desloca-
em torno do clima gerado pelas mobilizações em torno mento da mente para a interação como marco para
da democratização do país (Leite, & Dimenstein, 2011). a construção de formas de ação social (Oliveira Filho,
Desse modo, o presente texto objetiva discutir 2011), de modo que as categorias psicológicas são
a atuação do MST no período de democratização, criadas como ações sociais conjuntas em contextos
tomando como base de diálogo o Construcionismo relacionais (Gergen, 2009). Para este autor: “A pes-
Social, a fim de reconhecer como as práticas discur- quisa construcionista social ocupa-se principalmente
sivas veiculadas por esse agente foram capazes de se de explicar os processos pelos quais as pessoas des-
converter em práticas sociais geradoras de sentidos crevem, explicam, ou, de alguma forma, dão conta
junto aos seus integrantes: trabalhadores e trabalha- do mundo em que vivem (incluindo-se a si mesmas)”
doras em luta no campo. (Gergen, 2009, p. 301). Nessa proposição, os sujeitos
Inicialmente, apresentamos algumas observa- passam a ser reconhecidos enquanto parte de uma
ções acerca do Construcionismo Social enquanto trama discursiva, uma vez que a linguagem é enten-
importante movimento que impactou o campo da dida como uma prática social com poder de constitui-
Psicologia Social, especialmente por sua dimensão ção de objetos, deixando de ocupar um lugar de repre-
crítica no processo de produção de conhecimento, sentação à ação no mundo (Ibáñez, 2005). Com isso,
bem como do lugar de destaque dado à linguagem os discursos produzidos em meio às interações sociais
enquanto prática social capaz de promover novos sen- se constituem em poderosas formas de geração de
tidos e efeitos de subjetivação. Nessa seção, apresenta- sentidos sobre o mundo e de posicionamento das pes-
mos ainda os aspectos metodológicos do presente tra- soas e coletivos em relações sociais contextualizadas e
balho pela eleição de um documento público (Spink, culturalmente localizadas (Spink, & Medrado, 2013).
2013), qual seja, o Jornal dos Trabalhadores Sem Terra, Nesses termos, passa a ser importante fonte
de fevereiro de 1985, que trata de uma edição especial de análise para a pesquisa construcionista a lingua-
sobre o I Congresso Nacional dos Trabalhadores Sem gem em uso, ou seja, as práticas discursivas (Spink,
Terra, ocorrido na cidade de Curitiba-PR, de 29 a 31 & Medrado, 2013) geradas nas interações cotidianas
de janeiro de 1985, e que nos permite uma aproxima- em que tanto se pode reconhecer a presença de reper-
ção aos contextos discursivos em voga no tocante à tórios cristalizados como também da emergência de
questão da terra. novos repertórios.
Num segundo momento, tratamos de situar o MST Spink (2013, p. 102) chama a atenção para o fato
como um movimento que, oriundo da CPT, ampliou de que, uma vez sendo linguagem em ação, as prá-
sua forma de luta política, incrementou sua estratégia ticas discursivas podem ser identificadas “[...] tanto
discursiva para além das singularidades dos atores do nas imagens e artefatos quanto nas palavras”. Assim,
meio rural com vistas à produção de uma unidade no o autor destaca os documentos de domínio público
tocante ao enfrentamento da questão agrária. como importantes práticas discursivas que podem
ser tomadas como possibilidade de material de aná-
O Construcionismo Social como lise. Para o autor:
perspectiva crítica no campo da
Psicologia Social Os documentos de domínio público, enquanto
Embora o Construcionismo Social se refira a registros, são documentos tornados públicos,
um movimento de algumas áreas do conhecimento, sua intersubjetividade é produto da interação
a saber, a filosofia, a sociologia do conhecimento e a com um outro desconhecido, porém significativo

199
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 197-207.

e frequentemente coletivo. São documentos que que foi abordado no evento, as principais diretrizes
estão à disposição, simultaneamente traços de do movimento naquele contexto. A criação do corpus
ação social e a própria ação social (Spink, 2013, seguiu uma leitura cuidadosa do documento, de modo
p. 102-103). a conhecer sua estrutura, identificar as seções e as
permanências e mudanças em torno dos temas abor-
Assim entendidos como capazes de gerar ação dados nessas seções. A análise, seguindo a etapa ante-
social, tais documentos podem concorrer na elabo- rior, buscou conhecer as práticas discursivas em torno
ração de sentidos sobre os variados fenômenos em da luta pela terra a partir de uma categorização que
nossa volta, inaugurar justificativas e explicações permitiu mapear três linhas discursivas dominantes:
sobre a realidade, bem como instaurar por meio de diversidade de participantes do evento, participação
interanimações dialógicas (Spink, & Medrado, 2013), das mulheres trabalhadoras rurais no MST e enfrenta-
efeitos de subjetivação e posicionamentos em torno mento às instâncias governamentais.
dessa mesma realidade. De acordo com Spink (2013,
p. 112) tais documentos
O MST e a inauguração de práticas
discursivas em torno da luta pela terra
Podem refletir as transformações lentas em posi-
Ao retomar o debate em torno da abertura
ções e posturas institucionais assumidas pelos
política brasileira, Silva (2014) destaca haver uma
aparelhos simbólicos que permeiam o dia a dia
visão relativamente forte de que tal abertura ocorreu
ou, no âmbito das redes sociais, pelos agrupa-
principalmente pelas mãos dos próprios militares na
mentos e coletivos que dão forma ao informal,
tentativa de resolver tensões oriundas das disputas
refletindo o ir e vir de versões circulantes assumi-
internas enquanto governo que, de um lado, condu-
das ou advogadas.
zia as decisões políticas e, de outro, marchava com
suas fortes ações de repressão, abrindo espaço para
Desse modo, o presente trabalho tomou como
disputas entre grupos militares e perda do princípio
fonte geradora de sentidos em torno da luta pela terra
no espaço de abertura política, as práticas discursivas de hierarquia. A ideia pensada pelos militares para
constituídas no documento Jornal dos Trabalhadores a abertura política, segundo a autora, cumpria dois
Sem Terra, número especial de fevereiro de 1985, que objetivos: retomar o papel de corporação unificada e
relata os principais aspectos discutidos e registrados de detentora do comando da soberania nacional para
no I Congresso Nacional dos Trabalhadores Sem Terra, as Forças Armadas e de garantir a manutenção dos
marco para o que posteriormente foi se configurando privilégios de uma elite civil que agia com vistas a não
o movimento e suas ações no âmbito do processo de alterar os padrões de dominação capitalista implanta-
democratização brasileira. dos pelo regime.
No que se refere aos procedimentos metodoló- O que Silva (2014) alerta é que em muitos desses
gicos adotados, seguimos alguns apontamentos de argumentos de compreensão da abertura política
Borges e Ribeiro (2014) em relação à pesquisa socio- como iniciativa dos próprios militares, corre-se o risco
construcionista com mídia escrita: escolha da fonte, de negligenciar o papel dado aos movimentos sociais
temporalidade, criação do corpus de análise e análise. que se insurgiram contra o regime:
A escolha do jornal em questão2 deu-se no intuito de
evidenciar os repertórios interpretativos circulantes a É fato que embora seja inegável que a crise
partir do próprio MST como ator central do presente interna na composição do governo autoritário
estudo e de modo a conhecer como este se posicionava impactou decisivamente na abertura política,
no tocante à luta pela terra no contexto de democra- também não podemos desconsiderar a pressão
tização. A definição do número do jornal em termos social de setores populares e dos manifestan-
temporais visou circunscrever um documento público tes de esquerda, incluindo a guerrilha armada
lançado após o primeiro congresso do MST, pouco urbana e rural, pela retomada da democracia no
depois de sua criação, de modo a resumir, a partir do Brasil (Silva, 2014, p. 252).

2
O referido jornal encontra-se disponível em versão digital no sítio do MST: http://www.mstemdados.org/biblioteca/jornal.

200
Leite, J. F.; Dimenstein, M.; Dantas, C. M. B. (2017). Práticas Discursivas sobre a Luta pela Terra.

De fato, o clima gestado pela pressão popular auto-organizativos e de fortalecimento de um modo


dirigida à abertura política impulsionou uma varie- de luta via ocupação de terras que conseguia provocar
dade de atores políticos a entrarem em cena e esta- o Estado no sentido de dar uma resposta às demandas
belecer nova relação com o Estado. Entidades sin- dos trabalhadores sem-terra.
dicais, partidos políticos, movimentos sociais nas Dentre os apoiadores e mediadores dessas lutas,
cidades e no meio rural, movimentos de bairros de estavam integrantes do trabalho pastoral da Igreja
periferia passaram a ter visibilidade ou mesmo se for- católica o que a identifica como um importante ator
marem diante da possibilidade de redemocratização na gênese do MST. A referida instituição, mesmo
e o espaço das ruas passou a conviver com intensas antes do regime autoritário, já participava ativamente
mobilizações, greves de trabalhadores e a campanha na disputa ideológica no campo da reforma agrária,
pelas eleições diretas para presidência da república notadamente com o Partido Comunista Brasileiro,
(Schwarcz, & Starling, 2015). no receio de perder seus fiéis para o ideário comu-
Foi nesse contexto que deu o surgimento do MST. nista defendido pelo partido. No entanto, seguindo
Em um dos trabalhados mais completos sobre a forma- uma linha progressista que se desenhava na América
ção do movimento, Fernandes (2000) situa o período Latina nos anos 1960 – a Teologia da Libertação –,
de 1979 a 1985 como sendo a gestação e nascimento do a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
MST, por meio de um conjunto de lutas e movimentos fundou em 1975 a CPT. Sua criação teve por finali-
de resistência de trabalhadores rurais que passaram a dade a luta contra a violência e perseguição de pos-
ocupar latifúndios improdutivos e áreas devolutas, seiros e indígenas, principalmente das regiões Norte e
especialmente no Sul do país, prática inspirada no Centro-oeste do país (Fernandes, 2000).
Movimento de Agricultores Sem Terra (Master). O trabalho pastoral da CPT imprimiu elementos
Na mesma linha, Silva (2004) destaca um elemento de reflexão pautados em “[...] uma igreja que fazia sua
fundamental para o surgimento do MST: o modelo de escolha pelos pobres e explorados, pelos injustiçados
internacionalização agrícola e pecuário que passou a e, por meio dessa escolha, a palavra de Deus – o Evan-
ser adotado no país pelo regime militar, intensificando gelho – passou a ser lido, escutado e aproximado aos
a exploração dos trabalhadores do campo que, por sua dilemas das pessoas simples” (Leite, & Dimenstein,
vez, passaram a se organizar no enfrentamento dos 2011, p. 33).
efeitos desse modelo, levando à criação de um movi- Dentre as ações da Igreja católica que tiveram
mento social que se coloca “[...] no conflito político grande penetração nos grupos populares do campo,
com o Estado e latifundiários, em que o modelo agrário estavam as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)
dos militares, que exacerbava a problemática social do que se configuravam em espaços de reflexão junto aos
campo, foi questionado pelos sem-terra” (p. 32). trabalhadores rurais sobre a importância de se organi-
As lutas dos trabalhadores sem-terra se espalha- zarem para a conquista da terra e para a aquisição de
ram por várias regiões do Brasil, na medida em que uma consciência coletiva. Para Silva (2004):
os efeitos perversos da aliança terra-capital se mate-
rializavam no cotidiano de suas relações de trabalho, No trabalho de base realizado com os sem-terra
moradia e de vida. O Sul do país conheceu importantes pelos agentes de pastoral, era chamada a aten-
e efetivas mobilizações de trabalhadores sem-terra que ção para dois conceitos, até então estranhos à
enfrentaram o governo ditatorial ao se negaram parti- realidade do camponês brasileiro: democracia e
cipar da política de transferência de agricultores fami- participação. Em geral, nos encontros, os sem-
liares para projetos de colonização, estabelecendo a -terra discutiam coletivamente e decidiam quais
prática de ocupação de latifúndios ou terras devolutas encaminhamentos a serem tomados pelo grupo.
a fim de serem desapropriadas para reforma agrária. Assim, era rompida, nas CEBs, a lógica de depen-
Fernandes (2000) e Silva (2004) argumentam dência política do camponês à medida que con-
que esses processos de mobilização e constituição quistavam sua cidadania, ou seja, exercitavam a
de acampamentos, bem como de enfrentamento das democracia direta e a ampla participação, fato
forças repressivas do governo militar, ao final dos que determinou o surgimento de uma organiza-
anos 1970, foram decisivos para o delineamento do ção sem-terra imbuída do compromisso de resis-
MST, pois já se ensaiavam nesses espaços princípios tir à conjuntura desfavorável (p. 49-50).

201
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 197-207.

Nesses termos, é perceptível o legado do traba- Sem Terra, ocorrido entre 29 e 31 de janeiro desse ano
lho pastoral junto aos militantes do MST, por meio em Curitiba. Nele, o MST lança um conjunto de ele-
dos princípios advindos da Teologia da libertação e de mentos norteadores para sua ação unificada e incor-
outras correntes de pensamento, a exemplo da Educa- pora uma dimensão política no enfrentamento com o
ção popular, como importantes matrizes orientadoras Estado. O Jornal dos Trabalhadores Sem Terra, em sua
da ação do MST junto à sua base social num contexto edição alusiva ao congresso (fevereiro de 1985), traz
ainda de ditadura e de como a tentativa de materiali- alguns desses aspectos importantes para situar e
zação dessas matrizes gerou não só conquistas para os posicionar discursivamente o MST no processo de
trabalhadores sem-terra (áreas desapropriadas para abertura política.
reforma agrária), como ensejou experiências de resis-
tência democrática em meio a um governo repressor,
Jornal dos Trabalhadores Sem Terra:
tornando-o seu principal opositor no período de for- práticas discursivas em jogo
mação do movimento. O documento, com 19 páginas, apresenta um
Como o trabalho pastoral tinha uma caracterís- conjunto de registros do I Congresso Nacional dos
tica descentralizada, já que as decisões seguiam as Trabalhadores Sem Terra (ver figura 1) que reuniu
especificidades das dioceses locais (Martins, 2000) 1.500 pessoas vindas de 23 estados do país: momento
e tinha um profundo diálogo com as diversidades de chegada de trabalhadores e trabalhadoras rurais ao
de atores do campo, segmentos da esquerda passa- evento, abertura do congresso, imagens, entrevistas,
ram a ver dificuldades no seguimento de uma luta artigo de opinião, relatos de luta pela terra nas cinco
política que necessitava avançar na sua relação com regiões do país, encerramento do evento, documento
as forças dominantes (latifundiários, capitalistas do de registro da violência no campo, participação de
campo e seus representantes que se realinhavam no
campo da política institucional). A vinculação reli-
giosa da CPT passou a ser vista como um limite para
a ação política. Nesse sentido, é defendida a ideia de
criação de um movimento social que atuasse com
mais autonomia e com um caráter político mais
circunscrito, unificador das lutas do campo e de
amplitude nacional (Fernandes, 2000). A ideia em
voga dizia, portanto, da superação do caráter regio-
nal e local das lutas e suas especificidades sociais,
culturais para a aquisição de uma unificação nacio-
nal que agregaria mais vigor em suas ações (Silva,
2004). Em outros termos, adentrando num novo
momento de luta em função do processo de aber-
tura política em curso, o MST assumiu uma narra-
tiva com vistas à produção de um sujeito coletivo
(o sem-terra), capaz de unificar atores com varia-
das formas de relação com a terra e se colocar como
uma classe do campo que, em articulação como a
classe operária urbana, poderia promover a trans-
formação social prevista em seu ideário.
Desse modo, no ano de 1984 e com o apoio de
setores da esquerda, de alguns movimentos de luta
por terra do campo e da CPT, foi realizado o I Encon-
tro Nacional do MST, no Paraná. O passo seguinte
seria o avanço do movimento para outras regiões do Figura 1
país, feito relativamente alcançado no início de 1985 Capa da edição especial do Jornal Sem Terra
a partir do I Congresso Nacional dos Trabalhadores (fevereiro de 1985).

202
Leite, J. F.; Dimenstein, M.; Dantas, C. M. B. (2017). Práticas Discursivas sobre a Luta pela Terra.

mulheres sem-terra no congresso, atividades cultu- lação da luta pela terra”. Lembremos que essa busca
rais, documento final e homenagem especial. de unificação das lutas no país configurou-se como
Dos elementos apresentados no documento, três um importante argumento para a criação do MST
linhas discursivas merecem destaque: como aglutinador das demandas sociais do campo
em meio ao cenário de abertura política.

Apresentação da diversidade
de participantes do evento A participação das mulheres
No conjunto de matérias apresentadas no jor- trabalhadoras rurais no MST
nal, há uma indicação da variedade de atores sociais Em três partes distintas do jornal aparece referên-
do campo e seus modos de relação com a terra, como cia às mulheres em luta pela terra. A primeira, com o
é o caso dos relatos de lutas das regiões brasileiras: título “Ao lado dos homens, sem medo da luta” (Jornal
Nordeste (luta contra as grilagens de terras, latifún- Sem Terra, 1985, p. 5), faz alusão à participação das
dios e o dilema da seca), Sudeste (as condições pre- mulheres no congresso, destacando um debate com
cárias vividas pelos boias-frias e assalariados rurais), a imprensa, discussões em grupos de trabalho e uma
Sul (a necessidade de organização da luta sindical reunião exclusiva de trabalhadoras que culminou na
entre os trabalhadores rurais e os conflitos com as elaboração de um documento indicando maior par-
grandes empresas rurais), Centro-oeste e Norte (vio- ticipação e articulação das mulheres em âmbito local,
lência no campo, invasão da floresta por multinacio- regional e nacional de modo a garantir mais espaços
nais). Há outra seção em que se apresenta a situação de participação política na luta pela terra.
e as lutas dos índios por terra e condições dignas de Na seção “As mulheres vão à luta” (Jornal Sem
vida e trabalho. Terra, 1985, p. 12), está registrado um debate pro-
Na leitura dessas matérias que destacam as sin- movido por alguns jornais que faziam cobertura
gularidades desses atores em luta no campo, pode- do evento com cinco mulheres lideranças em seus
mos vislumbrar uma marca importante acolhida pelo estados. No debate, são narradas as experiências de
MST em sua metodologia de ação: as experiências da luta, assassinatos de seus companheiros e perse-
CPT na lida com as particularidades socioculturais guições. Nos depoimentos, as mulheres fazem uma
desses atores. Por outro lado, as matérias também vão convocação para que as trabalhadoras se unam aos
construindo em meio a essa diversidade os pontos de seus companheiros para realizar conjuntamente
união e de produção discursiva em torno de uma uni- a luta pela reforma agrária, formalizando assim
dade entre esses atores, no sentido de uma articula- junto ao movimento a urgência de sua inserção nas
ção para fortalecer o movimento. Veja-se, a exemplo, instâncias de decisão política. É o que pontua Lina,
o trecho sobre a participação de um grupo de índios uma das lideranças:
no congresso:
Chegamos aqui no congresso e constatamos que
Por defender sua gente e sua terra, o índio sofre as não havia nenhuma mulher na mesa. Achamos
mesmas consequências que sofrem os agriculto- que era injusto. Discutimos bastante e acabamos
res sem terra [...] Um grupo de índios participou com duas mulheres ocupando a mesa e a Coor-
do nosso Congresso levando a seguinte proposta: denação Nacional do Movimento. É assim que
a união de índios e sem terra para a conquista da deve ser feito. Porque nós, mulheres, acreditamos
reforma agrária (Jornal Sem Terra, 1985, p. 15). que qualquer vitória no campo, seja a conquista
de um pedaço de terra, seja a Reforma Agrária,
Também no artigo de opinião, ao elencar os só será alcançada quando a mulher e o homem
objetivos do congresso, dois se destacam no sentido estiverem juntos na luta, em igualdade de condi-
de promoção de práticas discursivas geradoras de ções (Jornal Sem Terra, 1985, p. 12)
um sentido de unidade identitária que conformará,
de acordo com Leite e Dimenstein (2011), numa A seção “Vale a pena a mulher buscar a liber-
modalidade subjetiva Sem-terra: “unificar e ampliar o tação” (p. 18) discorre sobre a entrevista realizada
Movimento em todos os estados” e “estimular articu- com uma das mulheres integrantes da Coordenação

203
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 197-207.

Nacional do Movimento de Trabalhadores Sem Terra, forme Scherer-Warren (2014), uma vez que o caráter
Santina Gracielle, dando depoimento sobre sua traje- repressivo se fazia presente no combate a essas lutas.
tória de luta. O compartilhamento das experiências Uma provocação repetida no jornal diz res-
de luta, a narração dos episódios limites, os enfren- peito à ausência do então presidente eleito por voto
tamentos, as adversidades e as conquistas são marcas indireto, mas não empossado, Tancredo Neves, que
recorrentes e exploradas nos eventos do movimento a teria sido convidado e confirmou sua participação
fim de se resgatar a memória de suas lideranças, como no evento. Na seção do jornal que relata o encerra-
também parece apresentar um importante efeito dis- mento do congresso, o texto se intitula: “Só faltou o
cursivo que convoca os demais integrantes a tomarem presidente” (Jornal Sem Terra, 1985, p. 08) e comenta
tais depoimentos como exemplos a seguir. O depoi- sobre cadeira vazia a ele reservada para a mesa de
mento, portanto, como uma prática discursiva que encerramento: “Os sem terra esperam que Tancredo,
convoca os sujeitos a um posicionamento dentro de quando assumir em 15 de março, leve mais a sério
um contexto argumentativo, ou como assinala Spink
suas promessas. Afinal, não se pode brincar com
e Medrado (2013), é identidade em negociação, atra-
problemas tão sérios como estes que enfrentam
vessada por efeitos de poder.
os trabalhadores rurais brasileiros” (p. 08). Finali-
Nesse contexto de negociação, a participação de
zando o evento com uma convocatória aos presen-
mulheres junto ao MST configurou-se um elemento
tes, o jornal sintetiza: “na volta aos nossos locais
já em sua gestação, como apontam Oliveira e Leite
de luta, vamos ampliar nossa organização, tendo
(2016, p. 182): “O tema das relações de gênero no inte-
como ideal a certeza de que a Reforma Agrária será
rior do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras
obra dos próprios trabalhadores e sairá na lei ou na
Rurais Sem Terra (MST) marca significativa presença
marra” (p. 08). Os momentos posteriores de ação do
no conjunto dos seus discursos e práticas cotidianas”.
MST serão bastante conhecidos no país justamente
Na estruturação interna do movimento por meio de
setores, o de gênero foi um dos primeiros com vistas a por uma descrença antecipada de que os governos
garantir a inserção das mulheres nas ações do MST e, teriam interesse em assumir a reforma agrária. Suas
com isso, fortalecer suas ações (Fernandes, 2000). Não ações de confronto, como ocupações de latifúndios
à toa que o jornal faz alusão recorrente à necessidade improdutivos e prédios públicos dariam, adiante,
de engajamento das mulheres do campo nas ações do o tom na relação do movimento com o Estado.
movimento, criando uma discursividade em torno do O documento final elaborado pelo MST (ver
seu protagonismo e da necessidade de se buscar con- figura 2) aponta as suas reivindicações, resumindo
dições de igualdade com os homens. os principais problemas vividos pelos trabalhado-
res sem-terra em seis pontos: distribuição e uso
da terra, colonização, os órgãos governamentais
O enfrentamento às instâncias
responsáveis pela política fundiária, violência
governamentais
no campo, as multinacionais, Estatuto da Terra.
Já em sua primeira página, no editorial, o jornal
O conjunto de reivindicações para cada ponto
traz uma articulação entre terra e democracia a par-
coloca a esfera governamental como principal inter-
tir do lema do congresso: “Sem terra não há demo-
cracia”. A palavra democracia aparece contextuali- locutor, posicionando o movimento numa relação
zada do processo de abertura política em curso, na de confronto possível, em certa medida, pela aber-
medida em que, para o movimento, uma efetivação tura política, mas não sem a reiterada força repres-
dessa abertura passava também pela democratização siva agindo para fazer o movimento recuar.
do acesso à terra por meio de realização da reforma Desse posicionamento político, emerge uma
agrária, tema recorrente no jornal. No entanto, a efe- versão de luta pela terra unificada com presença em
tivação da reforma não viria por decisão política do quase todos os estados brasileiros, uma relação de
governo, mas por pressão dirigida a este pelos movi- autonomia diante dos aparatos partidários e estatais,
mentos sociais em articulação. Esse posicionamento diferentemente das instâncias sindicais em grande
de enfrentamento e de forte oposição ao Estado, no medida cooptadas, e a emergência de um ator cole-
final dos anos 1970 e início dos anos 1980, foi uma tivo, capaz de empreender importantes modalidades
marca de muitos movimentos sociais do campo, con- de luta e de ação coletiva em nome da reforma agrária.

204
Leite, J. F.; Dimenstein, M.; Dantas, C. M. B. (2017). Práticas Discursivas sobre a Luta pela Terra.

nossa sociedade. Seu projeto político alinhado a


um ideário de esquerda reuniu aliados, parceiros,
entidades e partidos que visualizaram na abertura
política, a chance de construção de uma sociedade
mais justa, democrática e mais igualitária expressa,
em certa medida, nos princípios defendidos para a
Constituição de 1988.
As análises discursivas propostas mostraram
que o MST inaugura ou atualiza práticas discursivas
em torno da luta pela terra que terão um importante
impacto em sua sustentação e o consagra como um
dos mais importantes movimentos sociais da atuali-
dade. Tais práticas em torno da construção de uma
unidade em meio à diversidade, da participação de
mulheres como importantes agentes de luta e das
ações de confronto, desencadearão importantes e
efetivos sentidos entre seus integrantes que, não raro,
são capazes de uma profunda mobilização em torno
de ações com grande envergadura, como tem sido as
ocupações de terras, as marchas, a implantação de
projetos educacionais e de produção vinculados à
realidade dos contextos rurais.
O cenário de crise política que gerou o recente
golpe contra o mandato da presidenta Dilma Rousseff,
Figura 2
em 2016, alerta-nos para a fragilidade com que se deu
Documento final do I Congresso Nacional dos
Trabalhadores Sem Terra. o processo de construção democrática no país após
a ditadura civil-militar. Mais uma vez, o MST se faz
presente articulando e participando da Frende Brasil
Considerações finais Popular, com vistas a reunir força política e social para
Não resta dúvidas do importante papel lan- restabelecer os elementos que possam figurar uma
çado pelo MST no processo de democratização da sociedade emancipada e socialmente justa.

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diano (pp. 22-41). São Paulo, SP: Cortez.

Jáder Ferreira Leite


Doutor em Psicologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal – RN. Brasil. É
Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da UFRN, atuando na graduação e na pós-graduação.
E-mail: jaderfleite@gmail.com

Magda Dimenstein
Doutora em Saúde Mental pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro
– RJ. Brasil. É Professora Titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN), Natal – RN. Brasil. Atua na graduação e na pós-graduação.
E-mail: magda@ufrnet.br

Candida Maria Bezerra Dantas


Doutora em Psicologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal – RN. Brasil.
É Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da UFRN, atuando na graduação e na pós-graduação.
E-mail: candida.dantas@gmail.com

Endereço para envio de correspondência:


Jáder Ferreira Leite
Alameda das Mansões, 218 – Torre São Paulo, apto. 802. Bairro Candelária. CEP: 59064-740.
Natal – RN. Brasil.

Recebido 30/06/2017
Reformulação 01/10/2017
Aprovado 04/10/2017

206
Leite, J. F.; Dimenstein, M.; Dantas, C. M. B. (2017). Práticas Discursivas sobre a Luta pela Terra.

Received 06/30/2017
Reformulated 10/01/2017
Approved 10/04/2017

Recebido 30/06/2017
Reformulado 01/10/2017
Aceptado 04/10/2017

Como citar: Leite, J. F., Dimenstein, M., & Dantas, C. M. B. (2017). (2017). Práticas discursivas sobre
a luta pela terra na transição democrática brasileira. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 197-207.
https://doi.org/10.1590/1982-3703150002017

How to cite: Leite, J. F., Dimenstein, M., & Dantas, C. M. B. (2017). Discursive practices in the struggle
for land in the transition to democracy in Brazil. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 197-207.
https://doi.org/10.1590/1982-3703150002017

Cómo citar: Leite, J. F., Dimenstein, M., & Dantas, C. M. B. (2017). Prácticas discursivas sobre la lucha
por la tierra en la transición democrática brasileña. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 197-207.
https://doi.org/10.1590/1982-3703150002017

207
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 208-223.
https://doi.org/10.1590/1982-3703160002017

Psicologia, Democracia e Laicidade em Tempos de


Fundamentalismo Religioso no Brasil

Tatiana Lionço
Universidade de Brasília, DF, Brasil.

Resumo: A laicidade é um princípio fundamental para a garantia da ética democrática, pois


promove o reconhecimento e proteção da diversidade social, moral, cultural e religiosa de
uma sociedade. As liberdades individuais são direitos modernos relativos à dissociação entre
poder estatal e dogma religioso, de modo a garantir liberdade de consciência e de expressão,
fundamentais à dignidade humana. A Psicologia afirmou historicamente compromisso com a
ética democrática e com os direitos humanos, sendo um importante ator político e social pois
participa do processo de redemocratização brasileiro por meio de sua inserção em diversas
políticas públicas de garantia de direitos sociais. Diante da incidência do discurso religioso de viés
fundamentalista e antidemocrático no atual cenário político brasileiro, a Psicologia se encontra
na posição de alvo de ofensivas fundamentalistas contemporâneas contra normativas éticas da
profissão, em tempo em que também sofre tensionamentos internos na lógica da reivindicação
de uma “Psicologia cristã”. Em meio a este cenário complexo, o sistema conselhos de Psicologia
tem produzido marcos de referência para a defesa da laicidade e recusa de fundamentalismos,
sendo atualmente um ator estratégico na defesa da democracia brasileira.
Palavras-chave: Laicidade, Fundamentalismo Religioso, Ética Democrática, Psicologia Política.

Psychology, Democracy and Laicity in Times of


Religious Fundamentalism in Brazil

Abstract: Laicity is a fundamental principle for the guarantee of democratic ethics, since it
promotes the recognition and protection of the social, moral, cultural and religious diversity
of a society. Individual freedoms are modern rights concerning the dissociation between state
power and religious dogma, in order to guarantee freedom of conscience and expression,
fundamental to human dignity. Psychology has historically affirmed a commitment to
democratic ethics and human rights, being an important political and social actor because it
participates in the Brazilian redemocratization process through its insertion in several public
policies guaranteeing social rights. Confronted by the incidence of religious discourse of
fundamentalist and antidemocratic bias in the current Brazilian political scene, Psychology is
a target of contemporary fundamentalist offensives against the ethical norms of the profession,
and it also suffers internal tensions in the logic of claiming a “Christian psychology “. Challenged
by this complex scenario, the system of Psychology Councils has produced benchmarks for the
defense of secularism and the rejection of fundamentalisms, and is currently a strategic actor in
the defense of Brazilian democracy.
Keywords: Religious Fundamentalism, Laicity, Democracy, Political Psychology.

208
Lionço, T. (2017). Psicologia, Democracia e Laicidade.

Psicología, Democracia y Laicidad en Tiempos de


Fundamentalismo Religioso en Brasil

Resumen: La laicidad es un principio fundamental para la garantía de la ética democrática,


pues promueve el reconocimiento y protección de la diversidad social, moral, cultural y religiosa
de una sociedad. Las libertades individuales son derechos modernos relativos a la disociación
entre poder estatal y dogma religioso, para garantizar la libertad de conciencia y de expresión,
fundamentales a la dignidad humana. La Psicología afirmó históricamente compromiso con la
ética democrática y con los derechos humanos, siendo un importante actor político y social pues
participa del proceso de redemocratización brasileño por medio de su inserción en diversas
políticas públicas de garantía de derechos sociales. Ante la incidencia del discurso religioso de
sesgo fundamentalista y antidemocrático en el actual escenario político brasileño, la Psicología
es blanco de ofensivas fundamentalistas contemporáneas contra normativas éticas de la
profesión, al tiempo que también sufre tensiones internas en la lógica de la reivindicación de
una “Psicología cristiana”. Ante este escenario complejo, el sistema de Consejos de Psicología ha
producido marcos de referencia para la defensa de la laicidad y rechazo de fundamentalismos,
siendo actualmente un actor estratégico en la defensa de la democracia brasileña.
Palabras clave: Laicidad, Fundamentalismo Religioso, Ética Democrática, Psicología Política.

Introdução tido, o fundamentalismo religioso em suas variadas


O processo de secularização característico da nuances contingenciais encontra como eixo estrutu-
Modernidade, em consonância com a laicização das rante a ofensiva contra direitos adquiridos pela luta
repúblicas democráticas, trouxe a emergência de política das mulheres e de minorias sexuais tais como
novos direitos decorrentes da ascensão do liberalismo, homossexuais, travestis, transexuais e profissionais
entre os quais a liberdade de consciência e de expres- do sexo (Boff, 2002; Santos, 2013a).
são. A proteção às liberdades individuais e o princípio O fundamentalismo religioso é uma ofensiva
democrático e consonante aos direitos humanos da contemporânea a preceitos da modernidade. Recusa
inviolabilidade da dignidade humana implica, neces- princípios democráticos seculares em uma era de
sariamente, o direito à livre expressão da consciên- instabilidade e dispersão das representações, reivin-
cia e das crenças. Os sujeitos na era secular passam a dicando o retorno de tradições como preceitos basi-
dispor da prerrogativa de enunciar, em seus próprios lares da vida social. O fundamentalismo religioso é
termos, o sentido que conferem a si próprios, à vida uma reação às novas contingências históricas e polí-
social e às proposições para a vida em coletividade ticas que prevêem o reconhecimento da diversidade
(Nussbaum, 2008; Schlegel, 2009). moral, cultural e das possibilidades diversas de subje-
Uma das forças de oposição contemporânea aos tivação da humanidade. “Os fundamentalismos acre-
ideais democráticos é o fundamentalismo religioso, ditam que estão combatendo forças que ameaçam
que alega que os ideais iluministas e a consequente seus valores mais sagrados” (Armstrong, 2009, p. 18).
secularização da sociedade decorreram em prejuízos É um movimento que se consolida no século XX con-
morais e afrontas a preceitos de fé que organizavam tra a hegemonia secular e uma “forma de recondu-
a vida social. Entre os prejuízos elencados, afirma-se zir Deus ao campo da política, do qual fora banido”
a necessidade de defender valores tradicionais relati- (Armstrong, 2009, p. 491).
vos à família heteronormativa e monogâmica presu- No contexto brasileiro, a incidência do discurso
mida sagrada, à concepção do papel social de homens religioso de viés fundamentalista na agenda política
e mulheres e à suposta decência das práticas sexuais tem sido debatida por vários autores (Cunha, Lopes e
restrita a ideais familistas de procriação. Neste sen- Lui, 2017; Lionço, 2015; Natividade, 2016; Natividade,

209
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 208-223.

& Oliveira, 2013; Vital, & Lopes, 2013), com ênfase para entre Psicologia e laicidade ao longo deste período.
o caráter antidemocrático da incidência dos discursos O levantamento preliminar de referências biblio-
religiosos na política, e mais especificamente decor- gráficas sobre o tema foi atualizado anualmente por
rendo em retrocessos na agenda de direitos humanos. meio das plataformas SciELO e Periódicos Eletrôni-
Neste contexto histórico e político, vale consi- cos em Psicologia, não existindo nenhum artigo sobre
derar a relação entre a laicidade, o fundamentalismo laicidade e Psicologia indexado nas referidas bases
religioso e a Psicologia. Considera-se aqui a Psicologia de dados até a finalização da participação no grupo
como ator político no atual cenário contemporâneo de trabalho. Apenas em 2017 surge o primeiro artigo
para refletir sobre sua posição diante da laicidade científico a partir do cruzamento das palavras-chave
bem como diante da incidência do fundamentalismo “psicologia” e “laicidade”, localizado por meio da pla-
religioso como ofensiva contemporânea antidemo- taforma SciELO. O cruzamento dos termos de busca
crática. O objetivo do artigo é evidenciar as contradi- “psicologia” e “religião”, “religiosidade” e “espirituali-
ções nas relações estabelecidas pela Psicologia com dade”, no entanto, permitiram a localização de artigos
a defesa da laicidade e também com o fundamenta- acadêmicos que discutem a relação entre saúde men-
lismo religioso. Para tanto será considerada a Psico- tal e religiosidade e/ou espiritualidade, a relação entre
logia em sua dimensão de profissão regulamentada religiosidade e subjetividade, percepções de acadêmi-
e referida a um sistema conselhos que tem como cos de Psicologia sobre o fenômeno religioso e a his-
atribuição a fiscalização e a orientação do exercício tória da Psicologia no Brasil, temas afeitos ao campo
profissional. A Psicologia como ciência é reconhe- da Psicologia da Religião, não sendo coincidente com
cida em sua diversidade epistemológica, cabendo o recorte do presente estudo.
considerações críticas sobre o processo histórico de A insipiência da produção de conhecimento
revisão de pressupostos éticos e epistemológicos das sobre as relações entre laicidade e Psicologia moveu
teorias psicológicas para o cumprimento do compro- o atual esforço de teorização e pesquisa. O desafio
misso social da Psicologia com a ética democrática e a enfrentado foi o da sistematização de um discurso
defesa e proteção dos direitos humanos e sociais. teórico que permitisse articular a laicidade à Psicolo-
Vale ressaltar que aqui se está contrapondo a um gia. Partindo de uma matriz interdisciplinar de refe-
modelo de Psicologia que serviu como ferramenta de rências, buscou-se articular a emergência histórica da
normalização em contextos de autoritarismo e vio- laicidade a princípios expressos no Código de Ética
lação de direitos tais como durante a ditadura civil Profissional do Psicólogo, a saber, a defesa da digni-
militar brasileira (Scarparo, Torres, & Ecker, 2014). dade, da liberdade de consciência e/ou de crença,
Espera-se, portanto, contribuir para a sedimentação a defesa dos direitos humanos e o compromisso com
de uma Psicologia crítica e aliada à defesa da demo- a ética democrática. Tais reflexões se apoiaram em
cracia brasileira diante de novo contexto histórico narrativas do campo da filosofia política e de análises
e político de ascensão conservadora e de abuso de sociológicas sobre o fenômeno contemporâneo do
autoridade na política nacional. Para tanto, serão rea- fundamentalismo religioso no Brasil, sem a pretensão
lizadas reflexões sobre a atual posição da Psicologia de esgotar o levantamento e a revisão de bibliografia
como profissão comprometida com o marco consti- de referência.
tucional democrático e sua participação na defesa da A fim de apresentar a complexidade da imersão
laicidade, por meio da consideração dos marcos nor- da Psicologia no embate entre a defesa da laicidade e a
mativos e posicionamentos institucionais dos conse- incidência do fundamentalismo religioso no contexto
lhos de Psicologia. político brasileiro contemporâneo, serão realizadas a
Este estudo teve como eixo condutor a participa- seguir reflexões teóricas. Primeiramente, será discutida
ção no Grupo de Trabalho de Laicidade e Psicologia a emergência da laicidade na Modernidade e sua rela-
vinculado à Assembleia de Políticas, da Administração ção com a ética democrática, considerando a emergên-
e Finanças do Sistema Conselhos de Psicologia (APAF) cia do direito à dignidade humana fundamental para
entre dezembro de 2013 e dezembro de 2016. Os cami- a consideração contemporânea dos direitos humanos
nhos de teorização sobre laicidade, democracia e Psi- em sociedades marcadas pela diversidade. Em seguida,
cologia sistematizados no presente artigo refletem o serão discutidas teoricamente as relações entre Psi-
esforço em produzir conhecimento sobre as relações cologia, democracia e direitos humanos. As proposi-

210
Lionço, T. (2017). Psicologia, Democracia e Laicidade.

ções legislativas e polêmicas em torno da Resolução ção mútua de interesses e necessidades. Ganhar uma
CFP no 01/1999 (Conselho Federal de Psicologia, 1999) guerra significava então adquirir o direito de impor a
serão então analisadas como amostra de conveniência uma dada região e sua população de referência um
para a reflexão sobre as relações entre Psicologia, laici- conjunto de crenças e práticas sociais não passíveis
dade e fundamentalismo religioso. de questionamento (Armstrong, 2016).
Isso mudou na transição para a Modernidade,
sendo uma das características da emergência da era
Laicidade, democracia e dignidade humana
moderna o surgimento de outra forma de produzir
A laicidade é um princípio de organização das
conhecimento válido. A racionalidade científica pro-
práticas do Estado e instituições que interfere na
põe outra lógica de validade para os discursos, não
organização social, defendendo incondicionalmente
consentindo mais com o absolutismo da verdade
a liberdade de consciência e a liberdade de expressão
(Nussbaum, 2008), ressalvados os interditos penais. transcendental. Na Modernidade secular, portanto,
O ponto cego da democracia laica é a possibilidade os discursos válidos passaram a se multiplicar, não
de proteção da existência de discursos avessos à pró- cabendo mais a destituição do dissenso com base na
pria laicidade e à ética democrática. No interior das presunção de inquestionabilidade de um discurso que
democracias laicas também podem surgir expressões estivesse imune ao escrutínio da avaliação pública e
de crenças de que a lógica democrática e laica deve ser coletiva, a partir de variados pontos de vista e paradig-
alterada, opondo-se à democracia e à laicidade. Este é mas diversos (Schwartzman, 2008).
o caso do fundamentalismo religioso (Schlegel, 2009). Isso muda a forma como o Estado passa a orga-
O princípio da laicidade emerge historicamente nizar suas práticas, tendo como fundamento a produ-
com a secularização e com o surgimento dos direitos ção discursiva que o próprio debate público legitima.
relativos à individualidade no liberalismo, tais como Todo e qualquer discurso se torna assim passível de
liberdade de consciência, liberdade de expressão e questionamento, incluindo a retórica religiosa. O pro-
consequentemente liberdade religiosa, política e de cesso incessante de questionar as próprias normas é
associação (Nussbaum, 2008; Schlegel, 2009). A secu- característico da sociedade democrática. Para Schle-
larização é um processo característico da transição gel (2009), a democracia moderna significa o fim do
para a era moderna em que a sociedade deixa de se regime teológico-político e do poder de autoridade
pautar em verdades unívocas transcendentais para sagrada e surgimento do poder de base popular. Com
considerar a multiplicidade discursiva como funda- a emergência da laicidade como operador das práti-
mento das práticas sociais. Seu desdobramento, nas cas de dissociação entre o poder do Estado e poder
práticas de governo, é a emergência do princípio da religioso, o dissenso passa a ser incontornável a partir
laicidade que se funda no reconhecimento da diver- da emergência histórica da liberdade de consciência e
sidade moral como fato social. O Estado laico na era de expressão.
secular, portanto, deixa de fundar suas práticas, atos Para que este processo de revisão permanente
normativos e retóricas orientadoras à verdade trans- ocorra, as pessoas e grupos sociais devem poder dis-
cendental da religião (Armstrong, 2009; Schlegel, cordar. Se não há possibilidade de dissenso também
2009), organizando suas práticas na lógica da prote- já não há possibilidade de crítica e revisão de normas.
ção da diversidade social. Emerge então historicamente o direito à oposição,
Durante longos períodos históricos, os Estados, sendo o direito ao protesto uma conquista consti-
a autoridade de seus governantes e suas formas de tucional fundamental para a manutenção da demo-
governar populações tinham como fundamento a ver- cracia. Por meio do debate público e do acolhimento
dade religiosa, não cabendo o dissenso ou oposição de proposições discordantes se busca qualificar os
sob pena de exclusão ou mesmo extermínio. As guer- processos por meio dos quais o próprio conjunto da
ras entre os povos pautadas na religiosidade se base- sociedade delibera o modo de regular a vida social.
aram, e ainda se baseiam, na afirmação de verdades A justiça social não é um princípio autoevidente: é por
que não se propõe objeto de questionamento ou crí- meio dos processos de participação social e de multi-
tica em processos de negociação entre grupos sociais plicação das vozes dissonantes que podemos avaliar
distintos. Muitos extermínios foram desencadeados a eficácia das práticas de governo e buscar alterá-las
sem que houvesse processo de diálogo e considera- por meio da crítica. Para alcançar modos mais justos

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 208-223.

de organização das práticas de governo e de organi- lizam as polarizações morais para fins de demarcação
zação da vida em sociedade devemos levar em consi- de nichos eleitorais. Primando por projetos políticos
deração a multiplicidade de interesses e o respeito às de enfraquecimento do Estado de direitos, legitimam a
liberdades de outrem (Sen, 2011). exclusão e/ou precarização de direitos a determinados
Na Modernidade surge historicamente o discurso segmentos populacionais em prol da manutenção de
razoável – e, portanto, sempre passível de questio- privilégios para grupos em situação de poder hegemô-
namento – como novo fundamento de organização nico em um contexto social desigual.
das instituições de poder. A razão do Estado é o que Para Facchini e Sívori (2017),
orienta a agência dos governos e instituições na pro-
posição, implementação e avaliação de estratégias Organizados como bancada no Congresso Nacio-
práticas de garantia de direitos para a população. nal, na sua atuação pública, parte importante des-
A laicidade é um dispositivo de proteção da dife- ses parlamentares evoca uma visão idealizada de
rença, sendo, assim, um princípio de promoção da unidade do “povo de Deus” como suposta maioria
valorização da diversidade social. A democracia pode nacional para agitar ansiedades morais com um
ser entendida como o compromisso com o reconheci- relato apocalíptico no qual os direitos e políticas
mento, consideração e respeito às diferenças entre indi- para as mulheres e LGBT, além de cercear a liber-
víduos e grupos sociais. Esta diferença pode remeter a dade religiosa, ameaçariam a integridade moral
diversos marcadores sociais, entre os quais a condição das crianças e da família brasileira (s.p.).
étnico-racial, de sexo, de religiosidade, de cultura, de
regionalidade, de orientação sexual, de identidade de Está em curso no Brasil a proliferação de polê-
gênero etc. É importante salientar que, na origem da micas que levam ao pânico moral associado à agenda
emergência histórica da laicidade como princípio de de direitos humanos e especialmente dos direitos
governabilidade que protegeria os direitos individuais sexuais e reprodutivos (Natividade, & Oliveira, 2009;
à liberdade de consciência e de expressão, os oponen- Vital, & Lopes, 2013), tendendo à criminalização dos
tes de tais propostas alegavam, no século XVIII, que a movimentos sociais e incitação do ódio contra ati-
perseguição moral e religiosa poderia se justificar eti- vistas feministas e LGBT (Lionço, 2015). Nussbaum
camente diante da necessidade de defender a ordem (2008) sugere que a dignidade como direito emerge
civil (Nussbaum, 2008). Da mesma forma, na contem- da premissa moderna de que todo ser humano tem
poraneidade brasileira os discursos conservadores ale- faculdade moral e espiritual, sendo um direito asso-
gam que o processo de democratização decorreria em ciado aos direitos individuais à livre consciência e à
risco social, requerendo coibição de direitos políticos livre expressão. Com a ascensão do liberalismo na
e sociais (Demier, 2016; Lionço, 2015) e de políticas de era secular não caberia mais a tomada de parâmetro
promoção da equidade tais como a educação demo- moral unívoco a partir do qual sujeitos passariam a ser
crática comprometida com o debate sobre gênero e medidos ou avaliados moralmente, mas cada pessoa
sexualidade nas escolas (Barbara, Cunha, & Bicalho, passaria a dispor do direito à dignidade ao enunciar
2017; Frigotto, 2017). em seus próprios termos morais e culturais o sentido
É neste sentido que se pode associar o fundamen- que conferiria a si mesmo e à vida social.
talismo religioso ao nacionalismo (Nussbaum, 2012; Todas as pessoas em uma dada sociedade, ainda
Schlegel, 2009). O fundamentalismo religioso não que vinculadas a diferentes religiões e tradições cultu-
necessariamente se associa ao nacionalismo, mas, con- rais, podem compartilhar perguntas sobre o sentido
siderando o fundamentalismo cristão e a emergência da da vida. Não é legítima a desqualificação a determi-
nova direita na América do Norte e mais recentemente nados grupos que, não estando necessariamente
no Brasil contemporâneo – ambos Estados marcados vinculados a determinada religião, também buscam
por ampla diversidade étnica e cultural –, o argumento em seus pertencimentos comunitários responder
da moralização da política associado à lógica salvacio- questões sobre o que seria o justo e sobre como agir
nista da nação por meio de valores religiosos tem sido da melhor forma na vida e nas relações sociais. Estas
uma das estratégias de tomada de poder que deve ser são questões que as religiões se colocam, assim como
considerada. O fundamentalismo religioso é expressão outras instituições da sociedade secular voltadas para
de forças políticas conservadoras extremistas que uti- o cumprimento da justiça e das boas condições de

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Lionço, T. (2017). Psicologia, Democracia e Laicidade.

vida. O direito à dignidade é fundamento primeiro entre as pessoas e grupos sociais em uma vida social
da secularização e emergência da laicidade, expressa compartilhada. Cada grupo pode ajudar a todo o
materialmente no direito consequente da liberdade conjunto da sociedade entender o que haveria de ser
de consciência e da liberdade de expressão. justo. Tanto mais justa será uma norma quanto mais
A laicidade como dispositivo de proteção da liber- estiver atenta às diferenças que integram o conjunto
dade de consciência e de expressão surge garantindo da sociedade. Se a norma for pensada a partir do que
que numa dada sociedade as pessoas não precisam apenas uma parte da sociedade pensa, esta norma
pensar e ser iguais. A Declaração Universal dos Direi- não será justa para outros grupos sociais que não tive-
tos Humanos foi uma tentativa histórica de afirmação ram suas próprias representações consideradas. É por
da inviolabilidade do direito à dignidade humana, isso que as leis e outras normas não devem impor
após uma Segunda Guerra Mundial que se desdobrou exatamente como as pessoas devem levar a vida, mas
no esforço de um conjunto de nações à oposição ao apresentar interditos sobre o que não seria legítimo
projeto político de extermínio. O horror ao extermínio fazer por acarretar danos a outrem, reservando às pes-
da diferença foi o que orientou a proposição histórica soas e grupos liberdade no modo como conduzem as
da Declaração Universal dos Direitos Humanos. próprias vidas em responsabilidade junto ao conjunto
O direito à dignidade humana, apesar de parecer sempre mais amplo da sociedade (Sen, 2011).
um conceito autoevidente e básico, se mostra extre-
mamente complexo. É um direito afirmado após lon- Psicologia, direitos humanos,
gos períodos em que nem sempre se concebeu todas democracia
as pessoas como humanas. A era das trevas ou Idade A Psicologia, tendo surgido historicamente como
Média foi um momento histórico de legitimação de ciência, também desde sua origem se coloca na posi-
intensa violência genocida por meio do processo ção laica de ser passível de questionamento em seus
inquisitorial. Operacionalizada por meio de tribu- discursos e práticas, de modo que, ao longo de pouco
nais de julgamento da heresia com base em verdades mais de um século de existência, a própria Psicologia
transcendentais inquestionáveis, não se dispunha do em suas variadas vertentes epistemológicas vem se
direito a ser reconhecido como sujeito que pudesse debruçando sobre a própria história para transformar
dizer em seus próprios termos quem é e o sentido do seus discursos e práticas a partir de críticas internas
que faz. Muitas pessoas foram não apenas mortas, mas e externas a ela mesma. Este é também o exercício
agredidas com requintes de crueldade, impondo uma próprio das ciências, pois a ciência pretende legiti-
marca bastante dramática de violência a períodos his- mar discursos válidos e não discursos pretensamente
tóricos em que a verdade religiosa cerceou a liberdade verdadeiros e inquestionáveis. O método próprio de
de crença das pessoas. Na mesma forma, o naciona- validação do conhecimento científico é colocar em
lismo autoritário na forma de regime de governo dita- dúvida por meio do acolhimento e consideração de
torial ecoa tais mecanismos sombrios em tempos his- proposições argumentativas contrárias, visando a
tóricos modernos, tais como os vividos pela sociedade ética da justificação como horizonte de sua validade
brasileira durante a ditadura civil-militar que decor- num dado momento histórico e contingencial.
reu em perseguições políticas, detenções arbitrárias e Rose (2011) propõe o revisionismo histórico
práticas de crueldade na forma de tortura, mesmo em da Psicologia em sua intencionalidade tecnoló-
uma era secular. gica, ou seja, considera a Psicologia como campo
O direito à dignidade implica que toda pessoa de conhecimento que agencia práticas e, portanto,
possa dizer, em seus próprios termos, quem entende promove determinadas formas de representar a vida
que é e como entende que leva a vida. Por isso, deve- social, a humanidade e um dado projeto de socie-
mos recusar discursos de determinados grupos sociais dade. É necessário recuperar as críticas sobre o cará-
que se referem a outros grupos sociais como não ter normalizador da ciência psicológica, bem como
humanos ou menos humanos, garantindo a palavra a da tecnologia individualizante que diversos saberes
esses próprios grupos para que digam por si mesmos psicológicos agenciaram historicamente, dificul-
como se reconhecem e como entendem o modo de tando a reflexão crítica sobre condicionantes sociais,
levar a vida e a ideia do justo. Tanto mais justa será econômicos, históricos e culturais dos processos de
a justiça quanto mais e melhor atender às diferenças subjetivação e de promoção/violação de direitos por

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 208-223.

meio das práticas psicológicas. Parte-se aqui da pre- políticas públicas nas quais profissionais de Psicolo-
missa de que a Psicologia pode afirmar seu compro- gia se inserem. Em linhas gerais, a proposta de Gesser
misso com um projeto democrático de sociedade, por (2013) é a de que a Psicologia precisa consolidar o revi-
meio da consideração crítica do viés individualizante sionismo histórico sobre sua identidade profissional
rumo ao reconhecimento e consideração dos fatores e seus discursos teóricos na lógica do enfrentamento
sociais, históricos e políticos em diversos contextos de ao essencialismo de padrões normativos que legiti-
desenvolvimento humano e de agenciamento de sub- mam opressões contra determinados indivíduos e/ou
jetividades e práticas institucionais. grupos sociais, garantindo-lhes direito à participação
Considerar o princípio da laicidade na Psicologia e proposição de caminhos de cuidado de acordo com
remete ao nosso desafio ético de respeito e proteção suas reais necessidades e demandas.
às diferenças entre sujeitos e grupos sociais. Por mais Vale destacar dois marcos normativos que revelam
que determinadas diferenças subjetivas e sociais se a direção revisionista da Psicologia em compromissos
afastem das moralidades hegemônicas em uma dada historicamente datados contra formas de opressão
sociedade, ainda assim integram uma lógica abran- passíveis de agenciamento pelos próprios discursos
gente de pertencimento social. Rorty (2010) nos pro- e práticas psicológicas. A Resolução CFP no 01/1999
voca a pensar sobre o necessário alargamento do (CFP, 1999) veda a patologização e tratamentos de
círculo que delineia uma dada representação de cole- reversão da orientação sexual, bem como a Resolução
tividade, de modo a abranger tanto quanto possível CFP no 018/2002 (CFP, 2002), que correlativamente
o dissenso e a diferença insuperável entre indivíduos afirma a proibição do racismo no exercício profissio-
e grupos sociais. Faz-se necessário afirmar o caráter nal, incluindo práticas de conivência com a veiculação
datado do compromisso da Psicologia com os direitos de representações de patologização e inferiorização de
humanos, sendo no Brasil decorrente sobretudo do pessoas negras, suas tradições e práticas culturais e/ou
alinhamento entre os princípios do Código de Ética religiosas. Quando alguém é desumanizado ou desqua-
Profissional do Psicólogo ao marco constitucional de lificado em sua humanidade, seja em função da orien-
redemocratização (CFP, 2005). tação sexual ou de expressão da fé, tais como homos-
A reflexão sobre direitos humanos implica neces- sexuais e adeptos de religiões de matriz africanas, se
sariamente a consideração sobre direitos sociais, eco- está destituindo estas pessoas de dignidade por meio
nômicos e políticos (Santos, 2013b; Sen, 2010), caso de desumanização e de atribuição de desvalor.
contrário corre o risco de não decorrer em garantia Outro marco relevante foi a proposição de
material de boas condições de vida para as pessoas. Código de Ética Profissional alinhado ao compro-
É neste sentido que Gesser (2013) propõe pensar o misso da Psicologia com um Estado democrático
desafio contemporâneo da Psicologia pós compro- de direitos sociais e afirmando o compromisso com
misso com a constituição democrática e com os direi- direitos humanos (CFP, 2005). Compromisso com a
tos humanos tais como expressos no código de ética democracia e com os direitos humanos, implicando
profissional e outras normativas de não discriminação. respeito à autonomia das pessoas, a proteção à invio-
Fundamentalmente a regulamentação da profissão labilidade da dignidade de pessoa humana, à conside-
implica na adesão da categoria profissional a marcos ração crítica do contexto sócio-histórico e institucio-
regulatórios estatais, o que se desdobrou na constru- nal no qual as práticas psicológicas se inserem, à não
ção, por exemplo, de amplos esforços da Psicologia na discriminação e ao veto ao uso do exercício profissio-
proposição de marcos éticos e técnicos para o exercício nal para “induzir a convicções políticas, filosóficas,
profissional em contextos de políticas públicas, com morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual
especial ênfase para a criação em 2006 do Centro de ou a qualquer tipo de preconceito” (CFP, 2005).
Referência em Psicologia e Políticas Públicas (Crepop)1, Rosato (2011) nos ajuda a refletir sobre a conivên-
que tem desenvolvido marcos de referência técnica cia histórica da Psicologia com interesses hegemônicos
para a atuação profissional em variadas estratégias e, portanto, avessos à lógica democrática e de garantia
de garantia de direitos humanos e sociais por meio de dos direitos humanos e sociais, ao explicitar que nas

1
Diversos materiais de referência têm sido desenvolvidos pelo Crepop e podem ser acessados por meio de sítio específico: http://cre-
pop.pol.org.br/novo/cat/publicacoes/referencias-tecnicas. Tais esforços denotam o compromisso concreto do sistema conselhos de
Psicologia com a proposição de serviços psicológicos voltados para a garantia de direitos sociais.

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Lionço, T. (2017). Psicologia, Democracia e Laicidade.

próprias legislações de regulamentação da profissão Método


(em 1962) e regulamentação da formação de habilitação Esta é uma pesquisa exploratória qualitativa, orga-
para o título de psicólogo (em 1964), estavam explicita- nizada em torno de uma amostra de conveniência.
dos os objetivos de adaptação e de adequação de indi- Optou-se pela realização de uma análise qualitativa de
víduos a diversos contextos institucionais, como educa- documentos públicos que aproximam a Psicologia do
ção e mercado de trabalho, reservando também à clínica fenômeno contemporâneo do fundamentalismo reli-
psicoterapêutica intencionalidade normalizadora e por- gioso e/ou da defesa da laicidade do Estado. Foi reali-
tanto cerceadora do reconhecimento da diversidade zada análise de documentos na lógica da metodologia de
subjetiva, moral e cultural. Para Rosato (2011), pesquisa qualitativa da Teoria Fundamentada (Strauss,
& Corbin, 2008), que tem como horizonte a produção de
a partir da (re) democratização do país, o campo teorização sobre determinado objeto fundamentada em
psicológico se ampliou e houve uma ruptura com o evidências empíricas. A Resolução do CFP no 01/1999
que inicialmente foi a proposta da profissão. Já não (CFP, 1999) orientou a amostra de conveniência para
era mais possível manter uma Psicologia indivi- análise das relações entre Psicologia e fundamentalismo
dualizante, descontextualizada e a-histórica. Esse religioso por consistir em uma normativa da categoria
momento político vivenciado no país apresenta-se de classe profissional que sofre ofensiva direta de parla-
como momento de ruptura para a Psicologia, ou mentares de bancadas religiosas. Para tanto se levantou
pelo menos, permite à profissão o começo de uma no Portal da Câmara dos Deputados proposições legisla-
longa e fértil revisão de suas propostas de inter- tivas a partir dos termos de busca “Resolução no 01/1999
venção. Pode-se dizer, inclusive, que esse novo do Conselho Federal de Psicologia” e “tratamento de
contexto reforçou a necessidade de uma avaliação homossexuais”, tendo alcançado três proposições apre-
da profissão e seus objetivos, enfim, de sua função sentadas entre os anos 2011 e 2016.
pública perante a sociedade brasileira (p. 16). No que se refere à construção de normativas do
sistema conselhos de Psicologia sobre laicidade e fun-
Os marcos éticos e técnicos da profissão res- damentalismo religioso, aproveitou-se a compilação
guardam a autonomia de profissionais de Psicologia realizada pelo Conselho Regional de Psicologia (CRP)
no uso de diferentes bases teóricas e técnicas, orien- de São Paulo publicada em seu sítio virtual na seção
tando a profissão a partir de posicionamentos que Áreas Temáticas, cujo tema é Diversidade Epistemoló-
abrangem um conjunto amplo de discursos e práticas gica não Hegemônica em Psicologia, Laicidade e Diá-
em Psicologia. Requer, no entanto, a consideração do logo com Saberes Tradicionais (Diverpsi)2. A atualiza-
caráter datado de vários discursos teóricos da Psicolo- ção dos dados foi realizada ao se verificar diretamente
gia, posto que, em momentos históricos anteriores ao o sítio virtual do Conselho Federal de Psicologia (CFP)
compromisso com a ética democrática e com os direi- e o Relatório Preliminar do IX Congresso Nacional da
tos humanos, a Psicologia produziu narrativas coni- Psicologia, documento de referência para conhecer as
ventes com a naturalização das desigualdades sociais deliberações democráticas da categoria sobre atuação
e atribuição de anormalidade a grupos sociais histori- do sistema conselhos de Psicologia.
camente estigmatizados e/ou minoritários diante de A partir dos documentos de referência levanta-
um contexto de hegemonia moral. dos tanto por meio do Portal da Câmara dos Deputa-
Reconhecendo que a Psicologia, seus discursos dos quanto aqueles concernentes ao Sistema Conse-
e práticas podem tanto agenciar tecnologias de pro- lhos de Psicologia, foram estabelecidas três categorias
moção ou de violação de direitos humanos, torna-se analíticas a partir das quais é possível discutir a com-
relevante considerar a importância da construção plexidade das relações entre Psicologia, laicidade e
de marcos normativos de referência que afirmem o fundamentalismo religioso: (1) ofensivas fundamen-
compromisso em construir “uma sociedade menos talistas contra a Psicologia; (2) uso da Psicologia por
injusta e que tenha como princípio norteador o res- fundamentalistas religiosos; e (3) compromisso da
peito à dignidade humana” (Rosato, 2011, p. 26). Psicologia na defesa da laicidade.

2
O Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP/SP) vem organizando Cadernos Temáticos que podem ser acessados na seção
“Áreas Temáticas” do sítio virtual. O Caderno Temático “Diversidade Epistemológica não-hegemônica em Psicologia, Laicidade e Diálo-
go com Saberes Tradicionais” pode ser recuperado por meio do link http://www.crpsp.org.br/diverpsi/.

215
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 208-223.

Resultados classe, não recorrendo à argumentação religiosa, mas


O fundamentalismo religioso no contexto bra- sim à retórica legalista.
sileiro se relaciona com a Psicologia em pelos menos Em 2016 a ofensiva foi atualizada por meio
três dimensões. A primeira é a da ofensiva fundamen- da proposição do Projeto de Decreto Legislativo
talista contra normativas éticas da profissão no cenário no 539/2016, de autoria do Deputado Federal Pastor
parlamentar, na lógica de proposições legislativas que Eurico. Enquanto o PDC no no 234/2011 se propu-
incidem sobre normativa ética da profissão, a saber a nha a sustar dois parágrafos da Resolução, a saber,
Resolução no CFP 01/1999 (CFP, 1999). A segunda é a do a destinada a vedar a manifestação pública de pro-
uso da Psicologia para os propósitos do fundamenta- fissionais de Psicologia no sentido de patologizar
lismo religioso. A incidência do viés religioso no seio da a homossexualidade e o veto aos tratamentos de
própria Psicologia também partilha de premissas fun- reversão da orientação sexual, o PDC no 539/2016
damentalistas ao propor a anterioridade da convicção se propõe a sustar o inteiro teor da Resolução, pro-
de fé sobre discursos científicos e práticas psicológicas, pondo que não haja mais normativa ética e técnica
subalternizando os consensos democráticos constru- da profissão específica sobre a homossexualidade.
ídos pela categoria de classe profissional em prol da O argumento adotado pelo deputado pastor é o do
imposição de irrevogabilidade de preceitos de fé em ultrapassamento das competências do conselho de
todas as dimensões da vida social, incluso o exercício classe, que teria incidido em censura de profissio-
profissional. É o caso da pretensa adjetivação cristã nais por meio da resolução, alegando que “não pode
o Estado estabelecer, a priori, o que pode e o que
para a Psicologia, desvirtuando a identidade profissio-
não pode ser dito pelos indivíduos, muito menos um
nal. A terceira é a da construção de marcos de referência
Conselho de entidade profissional regulamentar”
para a categoria profissional na afirmação da laicidade
(s.p.). As proposições foram apelidadas pela opinião
e do necessário enfrentamento do fundamentalismo
pública como projetos de “cura gay”, e o teor da argu-
religioso no cenário brasileiro contemporâneo.
mentação adotada já foi objeto de análise por parte
de Rios, Silva, Resadori e Vidor (2017), que reafirma-
Ofensivas fundamentalistas ram a autonomia do CFP como autarquia federal na
contra a Psicologia proposição de marcos normativos para o exercício
A principal ofensiva contra a Psicologia se refere profissional em consonância com o marco consti-
ao tratamento das homossexualidades, na forma de tucional democrático brasileiro. Ainda, o deputado
proposições legislativas que incidem sobre a pró- pastor argumenta que
pria autonomia da categoria de classe profissional
na regulação ética da profissão. O Projeto de Decreto não bastasse tal censura violar o direito fun-
Legislativo (PDC) no 234/2011, de autoria do Depu- damental da proteção ao desenvolvimento da
tado Federal João Campos decorreu em variadas audi- ciência, também violou o seu direito de regular
ências públicas antes de seu arquivamento, em 2013. a profissão, como já demonstrado acima, pois
A proposição visava sustar o parágrafo único do artigo ultrapassou sua margem em desrespeito a mais
segundo da resolução, bem como o seu artigo terceiro, um direito fundamental do artigo 5º, II, da CF,
que tratam respectivamente do veto às terapias de que dispositiva “ninguém será obrigado a fazer
reversão da orientação sexual e do impedimento do ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude
pronunciamento público por parte de profissionais de lei” (Pastor Eurico, 2016, s.p.)
que tendessem à patologização da homossexuali-
dade. O deputado alega, na justificação da proposição, Ambas as proposições de decretos legislativos
que “o Conselho Federal de Psicologia, ao restringir adotam a argumentação legalista, remetendo a argu-
o trabalho dos profissionais e o direito da pessoa de mentação para o direito constitucional. Curiosamente
receber orientação profissional, por intermédio do a ofensiva contra normativa da Psicologia propõe que
questionado ato normativo, extrapolou o seu poder interesses científicos estariam sendo cerceados por
regulamentar”. Note-se que o teor argumentativo da um mecanismo de censura contra profissionais de
proposição é o de que liberdades de profissionais Psicologia que viessem a desenvolver pesquisas sobre
teriam sido cerceadas pela resolução do conselho de métodos de tratamento de pessoas homossexuais que

216
Lionço, T. (2017). Psicologia, Democracia e Laicidade.

estivessem em conflito moral com a própria orien- Tais ofensivas fundamentalistas contra a Psicolo-
tação sexual, a chamada egodistonia na terminolo- gia adotam manto legalista e cientificista para forjar
gia médico psiquiátrica. Apesar da relação direta de interesse científico para a garantia da liberdade de
ambos os deputados com a Bancada Evangélica, não mudar a orientação do desejo sexual. Desconside-
se adota retórica religiosa nas proposições legislati- ram que a normativa da Psicologia se fundamenta
vas, o que leva à consideração do manto cientificista não apenas no marco político de compromisso da
e legalista como estratégia argumentativa dos funda- Psicologia com direitos humanos, mas também em
mentalistas religiosos na política. consensos científicos sobre a ineficácia das terapias
Ainda, foi apresentado o Projeto de Lei (PL) de reversão da orientação sexual, tais como siste-
no 4931/2016 pelo Deputado Federal Ezequiel Tei- matizados no documento produzido pela American
xeira, também integrante da Bancada Evangélica, que Psychological Association denominado Appropriate
propõe “assegurar o direito à modificação da orien- Therapeutic Responses to Sexual Orientation (Ameri-
tação sexual em atenção à dignidade humana”. O PL can Psychological Association, 2009). Tal documento
no 4931/2016 propõesugere suspender quaisquer de referência apresenta como principais resultados
sanções relativas a profissionais que praticassem tra- da revisão de estudos empíricos de reversão da orien-
tamentos “visando auxiliar a mudança da orientação tação sexual: a não garantia de mudança da orienta-
sexual, deixando o paciente de ser homossexual para ção sexual por meio de técnicas psicoterapêuticas;
ser heterossexual” (s.p.). De acordo com a proposi- o agravamento do sofrimento psíquico decorrente de
ção legislativa, tais práticas; e a ideação religiosa como principal jus-
tificativa para as demandas por terapias de reversão.
Art. 1º Fica facultado ao profissional de saúde Sinaliza, ainda, para a importância do manejo clínico
mental, atender e aplicar terapias e tratamen- psicoterapêutico entre as convicções de fé e a necessi-
tos científicos ao paciente diagnosticado com dade de manutenção de posição ética pela não pato-
os transtornos psicológicos da orientação sexual logização da homossexualidade. Isso leva à considera-
egodistônica, transtorno da maturação sexual, ção da importância do reconhecimento e respeito às
transtorno do relacionamento sexual e trans- convicções de fé das pessoas, o que não se confunde
torno do desenvolvimento sexual, visando auxi- com ser conivente com a patologização e orientação
liar a mudança da orientação sexual, deixando o dos esforços terapêuticos na lógica da reversão.
paciente de ser homossexual para ser heterosse-
xual, desde que corresponda ao seu desejo. O uso da Psicologia por
fundamentalistas religiosos
Art. 2º O profissional que atuar em atenção ao A problemática se complexifica quando se pode
artigo anterior, não poderá sofrer qualquer san- evidenciar que durante as audiências públicas rela-
ção pelos órgãos de classe. cionadas à matéria, especificamente em relação ao
PDC no 234/2011, a Psicologia tem sido acionada para
O argumento do Deputado Ezequiel Teixeira defender as proposições legislativas oriundas da inci-
vem confirmar a hipótese do manto de cientificismo dência do discurso religioso de viés fundamentalista
como estratégia fundamentalista, ao afirmar que “no na política nacional. Isso leva à necessidade de con-
entanto, visando não entrar, apenas, no campo reli- sideração da segunda forma de associar a Psicologia
gioso e para manter o debate no aspecto científico” à violação da laicidade: o uso da Psicologia para os
(s.p.), recupera algumas classificações disponíveis nos propósitos fundamentalistas. Durante as audiências
manuais diagnósticos da psiquiatria para se referir ao públicas realizadas para debater o PDC no 234/2011,
caráter doentio da homossexualidade, que não deixa uma profissional de Psicologia que se auto-intitulaau-
de explicitar como a concepção que fundamenta o tointitula “psicóloga cristã”3 participou na defesa do
Projeto de Lei: “penso que a homossexualidade causa projeto, assim como o pastor Silas Malafaia fez ques-
diversos transtornos psicológicos” (s.p.). tão de explicitar que tem formação em Psicologia em

3
Trata-se do caso da missionária Marisa Lobo, amplamente difundido na mídia nacional. A mesma tem participado de debates públicos
sobre drogas e gênero, com ênfase em narrativas moralistas e familistas e patologização das homossexualidades e usuários de drogas.

217
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 208-223.

suas argumentações favoráveis à proposição legisla- veis conflitos com este. De tal forma que reafirma:
tiva. Isso significa que mesmo nas ofensivas contra a a nomenclatura na identificação da(o) profissio-
Psicologia que tem sido desencadeadas por meio de nal deve referir-se à atuação deste e não a aspectos
projetos legislativos fundamentalistas, a Psicologia de foro íntimo, como sua confissão de fé (s.p.).5
tem sido usada como argumento de autoridade para
questionar a própria autonomia da Psicologia como Tal associação entre a fé e o exercício profissio-
profissão. Pode-se compreender que o manto de nal não deve ser entendida como caso isolado. Em
cientificidade é a principal estratégia argumentativa 2017, o CRP do Rio de Janeiro e o CFP emitiram posi-
adotada por fundamentalistas religiosos nas disputas
cionamentos públicos sobre as ofertas de formação
políticas, inclusive na ofensiva contra a Psicologia,
em “Psicologia Cristã” que tem se apresentado no
de modo a requerer compreensão do fundamenta-
país. Ambos os conselhos afirmam que a “Psicologia
lismo religioso como projeto político antidemocrá-
Cristã” não é uma das doze especialidades reconhe-
tico que não se assenta na afirmação literal do texto
cidas pela categoria de classe, remetendo a formação
sagrado, mas na autoatribuição de superioridade
em Psicologia para parâmetros normativos estabele-
moral à posição religiosa. No entanto, a posição moral
cidos por legislação específica e afirmando a laicidade
religiosa se apresenta pretensamente em linguagem
científica a fim de conquistar credibilidade nas dispu- da profissão6.
tas políticas em uma era secular.
Vale destacar a inoperância do sistema conselhos A Psicologia na defesa da laicidade
de Psicologia na coibição de tais práticas, pois a repre- A terceira forma de compreender o modo como
sentação ética contra profissional de Psicologia que a Psicologia estabelece relação com o fundamenta-
explicitamente viola preceitos do código de ética pro- lismo religioso no Brasil é a proposição de marcos
fissional e da Resolução CFP no 01/99 por meio de site de referência, no âmbito do sistema conselhos de
e comunicações públicas não decorreu na alteração do
Psicologia, para afirmação da defesa da laicidade e
teor público de seus pronunciamentos. . Além de nar-
necessidade de recusar o fundamentalismo religioso.
rativas publicadas na internet e/ou materiais impres-
A este respeito, além de compreender que o Código
sos, Marisa Lobo inclusive usou a polêmica pública em
de Ética Profissional e as Resoluções CFP no 01/1999
torno da representação ética sofrida como motor de
(CFP, 1999) e Resolução CFP no 018/2002 (CFP, 2002),
campanha política para candidatura à câmara legisla-
que respectivamente versam sobre coibição de dis-
tiva do seu estado de referência, em 20144.
criminação por orientação sexual e cor, são marcos
O CRP do Paraná emitiu Nota Técnica sobre a
confissão da fé e o exercício profissional em 2015, afir- relevantes de afirmação da laicidade por meio do
mando que reconhecimento e valorização da diversidade moral,
cultural, social e subjetiva, o sistema conselhos de Psi-
A(O) Psicóloga(o), assim como todo ser humano, cologia tem produzido outras referências mais expli-
pode ou não ter uma identificação religiosa, mís- citamente afirmativas na defesa da laicidade.
tica e/ou espiritual. Entretanto, trata-se aqui de É importante notar que a emergência histórica de
esclarecer a relação da expressão da identidade marcos éticos na profissão que explicitam a defesa da
religiosa, sobre a qual não há restrições, com a laicidade e a recusa do fundamentalismo religioso pas-
atividade profissional, essa sim regulamentada sam a integrar documentos de referência para a cate-
pelo código de ética da profissão, e evitar possí- goria profissional em 2013, o que leva à constatação de

4
Marisa Lobo foi candidata a Deputada Federal pelo Partido Social Cristão no Paraná em 2014, tendo registrado candidatura como
“Psicóloga Cristã Marisa Lobo”, de acordo com as informações públicas disponíveis em https://www.eleicoes2014.com.br/psicologa-
-crista-marisa-lobo/ .
5
Conselho Regional de Psicologia do Paraná, 2015, emite Nota Técnica sobre confissão de fé e exercício profissional. Recuperado de
http://portal.crppr.org.br/noticia/nota-tecnica-sobre-a-confissao-de-fe-e-a-atuacao-profissional.
6
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Nota
de posicionamento do CFP sobre formação em “Psicologia Cristã”. Recuperado de http://site.cfp.org.br/formacao-em-psicologia-
-crista-comunicado-do-cfp/

218
Lionço, T. (2017). Psicologia, Democracia e Laicidade.

que decorrem dos ataques sofridos pela Psicologia no aprovada na APAF do sistema conselhos de Psicolo-
Congresso Nacional por parte da Bancada Evangélica. gia a Nota Técnica Laicidade e Psicologia – Posicio-
Diante de tais ofensivas à própria autonomia da namento do Sistema Conselhos de Psicologia para a
classe profissional, em 2013 foram deliberadas quatro questão da Psicologia, religião e espiritualidade (GT
moções durante o VIII Congresso Nacional de Psicolo- Nacional Laicidade e Psicologia, 2013 apud Conselho
gia (CNP, 2013), que consiste na instância deliberativa Regional de Psicologia/SP, 2014). Tal documento de
de consensos democráticos da categoria profissional. referência afirma que a Psicologia não se funda em
A 11a Moção repudia as terapias de reversão da orien- verdade dogmática religiosa, o que não significa que
tação sexual, assim como a 12a Moção repudia explici- profissionais de Psicologia não possam ter religião. A
tamente o PDC no 234/2011. A 14a Moção consiste em Psicologia reconhece que no conjunto da sociedade
apoio à inclusão do diálogo com epistemologias não as pessoas apresentam diferentes vinculações a dou-
hegemônicas e os saberes tradicionais nos ambientes trinas e instituições religiosas, e também reconhece
de formação e pesquisa, complexificando a reflexão da que há pessoas que não expressam fé em nenhuma
categoria profissional sobre a necessidade de reconhe- religião ou mesmo afirmam que não acreditam na
cimento de epistemologias não científicas que tangen- existência de Deus, o que não significa que estas últi-
ciam valores tradicionais, na perspectiva da integra- mas não estejam comprometidas com o justo e com
lidade da atenção à saúde e das práticas integrativas a busca por melhores condições de vida em socie-
e complementares no âmbito do Sistema Único de dade. A Psicologia reconhece que a espiritualidade é
Saúde. Esta moção é relevante pois denota a abertura uma experiência subjetiva fundamental à condição
da Psicologia ao reconhecimento e valorização de prá- humana, se referindo à busca de sentido sobre as
ticas sociais e culturais que tangenciam crenças religio- origens e o destino da humanidade, condição básica
sas ou práticas de espiritualidade, sem discriminação a de produção de sentido sobre aquilo para o qual não
tais formas de compreender e intervir sobre os proces- temos respostas passíveis de verificação. Toda reli-
sos de sofrimento, adoecimento e cuidado em saúde, gião tem uma dimensão de espiritualidade, mas a
afirmando o caráter democrático do compromisso espiritualidade como condição humana não requer
social da Psicologia. vinculação às religiões, sendo a espiritualidade tam-
No entanto, no mesmo VIII Congresso Nacional bém uma dimensão subjetiva de pessoas que não
da Psicologia, foi também aprovada a 15a Moção, que tem religiosidade. Afirma, ainda, que a Psicologia
repudia ações reducionistas que atentem contra a como ciência não se baseia em verdades transcen-
liberdade de crença e de consciência, afirmando a lai- dentais, mas reconhece que nem todo o conjunto
cidade como valor a ser defendido contra da sociedade organiza suas práticas com base na
ciência. Afirma a importância dos saberes tradicio-
qualquer tentativa fundamentalista de quais- nais, que podem inclusive associar práticas de cura a
quer grupos, sejam eles religiosos, científicos ou verdades religiosas. Saberes tradicionais são práticas
de quaisquer naturezas que procurem cooptar de cura pré-científicas que inclusive parte da ciência
consciências, naturalizar as desigualdades, recu- se dedica a compreender os fundamentos de sua efi-
sar-se ao diálogo que desconsidere a construção cácia pois mesmo antes da emergência das ciências
histórica da realidade e que, portanto, queiram na Modernidade os grupos sociais organizaram seus
impor sobre a sociedade quaisquer formas de conhecimentos e práticas de modo a cuidar de seus
reducionismo dogmático proposto por projetos, povos. Por fim, afirma a recusa “qualquer tentativa
sejam de lei ou de outra natureza, regulamenta- fundamentalista de imposição de dogma religioso,
ções ou quaisquer formas de imposição totalitá- seja ele qual for, sobre o Estado, a Ciência e a profis-
rias que atentem sobre as liberdades instituídas e são” (GT Nacional Laicidade e Psicologia, 2013 apud
o Estado de Direito. (Congresso Nacional de Psi- CRP/SP, 2014).
cologia, 2013, pag. 65-66). Em 2014, ano eleitoral, foi apresentada a “Carta
dos Conselhos Regionais de Psicologia à População
Vale destacar que em 2013, ainda, o Grupo de Brasileira: Psicologia, laicidade e discurso religioso
Trabalho Laicidade e Psicologia, que envolve conse- nas eleições” (CRP/SP, 2014). O documento afirma
lheiros de diferentes Conselhos Regionais e CFP, teve que para a manutenção democrática do debate eleito-

219
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 208-223.

ral partidos deveriam apresentar propostas sem apelo de polarização moral e acirramento das desigualda-
a argumentos que promovem ideologias fundamen- des com prejuízo para grupos sociais historicamente
talistas, comprometendo a dignidade de diversos gru- marginalizados, tais como mulheres, minorias sexuais
pos sociais a partir de polarizações morais em torno e população negra.
da agenda de direitos humanos. A Psicologia como ciência e como profissão conta
O IX CNP, realizado em 2016, aprovou ainda pro- em sua história com marco necessário de afirmação
posta de construção de Política Nacional de Psicologia de compromisso com a ética democrática e com a
e Laicidade, defesa e promoção dos direitos humanos, tendo em
momento histórico anterior se demonstrado coni-
priorizando o compromisso da atuação do (a) vente com forças conservadoras hegemônicas de
psicólogo (a) com base na laicidade, reconhe- manutenção de desigualdades sociais e mesmo de
cendo e respeitando a pluralidade de manifesta- autoritarismo estatal. Torna-se extremamente impor-
ções religiosas e repudiando as construções ide- tante primar pela construção de uma identidade pro-
ológicas que ferem o Código de Ética Profissional fissional consciente de sua história de modo a impli-
e à Resolução CFP nº 001/1999, que estabelece car o compromisso da categoria profissional com a
normas de atuação para os psicólogos em relação defesa do Estado de Direito democrático.
à questão da Orientação Sexual, e Resolução CFP A laicidade da Psicologia deve ser afirmada como
nº 018/2002, que estabelece normas de atuação pilar de sua legitimidade científica, bem como de seu
para os psicólogos em relação a preconceito e compromisso histórico com a democracia e partici-
discriminação racial (CNP, 2016, pag. 27). pação nas políticas públicas e estratégias de garantia
de direitos sociais, econômicos, políticos e culturais.
A argumentação que segue a proposição de uma Dado o caráter paradoxal da relação entre Psicologia,
Política Nacional de Psicologia e Laicidade orienta laicidade e fundamentalismo religioso na contempo-
parâmetros a partir dos quais se deveriam guiar as raneidade, faz-se necessário ampliar os debates sobre
reflexões e deliberações a serem construídas pela ética profissional, primando pelo reconhecimento da
categoria de classe. A menção às Resoluções CFP no diversidade subjetiva, moral, social e cultural como
01/1999 (CFP, 1999) e no 018/2002 (CFP, 2002), que valor na sociedade brasileira.
tratam da homossexualidade e do racismo, levam ao Os esforços para aproximação entre o sistema
entendimento de que a consideração das interfaces conselhos de Psicologia, por um lado, e a Psicolo-
entre Psicologia e religiosidade não deveriam, por gia acadêmica, por outro, é fundamental para que a
um lado, decorrer em patologização ou violação da formação em Psicologia esteja comprometida com a
dignidade de homossexuais, e por outro, deveriam função histórica e social da Psicologia como ciência e
reconhecer especificidades culturais da população como profissão na luta pela construção de uma socie-
negra, possivelmente incluindo a questão das religio- dade democrática. Faz-se necessário acompanhar
sidades de matriz africanas sem discriminação. Ainda, reflexões críticas sobre o atual cenário político brasi-
pode-se compreender que o repúdio a construções leiro a partir da consideração do lugar da Psicologia
ideológicas que feririam o código de ética profissio- neste processo, de modo a promover mudança em
nal remete ao posicionamento da categoria de classe representações e discursos teóricos datados que não
pela reafirmação do reconhecimento da diversidade necessariamente correspondem aos desafios éticos
moral, cultural e religiosa da sociedade brasileira e para o exercício profissional na contemporaneidade.
contra o fundamentalismo religioso. Espera-se que profissionais de Psicologia inseridos
nos mais variados campos de atuação profissional aten-
Concluindo um esforço de tem para a importância da defesa da laicidade, da ética
sistematização: a Psicologia ontem, hoje democrática e da recusa a toda forma de discriminação
e amanhã. e intolerância, de modo a revisar historicamente a fun-
É importante considerar que a incidência do dis- ção da Psicologia no agenciamento de práticas e discur-
curso religioso na política nacional tem se revelado sos de normalização, primando pelo reconhecimento
uma ofensiva fundamentalista antidemocrática e dos direitos humanos e garantia de direitos sociais, eco-
usurpadora da agenda de direitos humanos para fins nômicos e políticos fundamentais à democracia.

220
Lionço, T. (2017). Psicologia, Democracia e Laicidade.

Este estudo exploratório permite sinalizar algumas ou dos povos de santo, mas a questão ética deve ser a de
direções de reflexões que podem ser importantes para como não estabelecer laços de associação da fé ao exercí-
o processo de construção de uma Política Nacional de cio profissional, assim como deve ser vedado em relação
Laicidade e Psicologia. Um dos caminhos a serem tri- à fé cristã afirmada majoritária em nosso país.
lhados é o da revisão sistemática e crítica do campo da Uma das direções interessantes para avançar
Psicologia da Religião, a fim de verificar se há tenden- no compromisso da Psicologia com a ética democrá-
ciosidade religiosa na produção de conhecimento em tica, a laicidade e contra fundamentalismos religiosos
Psicologia. A inexistência de estudos que tematizem a seria a retomada do Movimento Estratégico do Estado
laicidade como conceito estruturante da reflexão sobre Laico7. Tal iniciativa decorreu de articulação do próprio
as relações entre Psicologia e religiosidade e/ou espiri- Conselho Federal de Psicologia com a sociedade civil
tualidade pode ser um sinal de não garantia deste prin- organizada para a defesa da laicidade do Estado diante
cípio tão caro à proteção das diversidades. das ameaças do fundamentalismo religioso à democra-
Outro caminho a ser percorrido é o da reflexão crí- cia. O diálogo com diferentes movimentos sociais de
tica sobre como reconhecer saberes tradicionais e epis- defesa dos direitos humanos e também com comuni-
temologias não hegemônicas mantendo a neutralidade dades de fé de diferentes matizes religiosos é um cami-
laica da Psicologia. Pode parecer simples a reivindicação nho interessante para tecer diretrizes éticas e técnicas
da aproximação da Psicologia aos saberes tradicionais tais condizentes com a complexidade e diversidade moral,
como oriundos de comunidades indígenas e quilombolas cultural e religiosa da sociedade brasileira.

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7
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Tatiana Lionço
Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento do Instituto de Psicologia da Universidade de
Brasília, Brasília –DF. Brasil.
E-mail: tlionco@gmail.com

Endereço para envio de correspondência:


Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento, Campus Darcy Ribeiro – ICC Sul, Instituto de Psicolo-
gia. CEP: 72.910-000.
Brasília – DF. Brasil.

Recebido 30/06/2017
Reformulação 01/10/2017
Aprovado 02/10/2017

Received 06/30/2017
Reformulated 10/01/2017
Approved 10/02/2017

Recebido 30/06/2017
Reformulado 01/10/2017
Aceptado 02/10/2017

Como citar: Lionço, T. (2017 ). Psicologia, democracia e laicidade em tempos de fundamentalismo religioso no
Brasil. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 208-223. https://doi.org/10.1590/1982-3703160002017

How to cite: Lionço, T. (2017). Psychology, democracy and laicity in times of religious fundamentalism in Brazil.
Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 208-223. https://doi.org/10.1590/1982-3703160002017

Cómo citar: Lionço, T. (2017). Psicologia, democracia y laicidad en los tiempos de fundamentalismo religioso no
Brasil. Psicologia: Ciência e Profissão, 37((n. spe), 208-223. https://doi.org/10.1590/1982-3703160002017

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 224-238.
https://doi.org/10.1590/1982-3703170002017

Psicologia e Democracia em um Cenário de Cidade como Campo em Disputa

Elisa Martins Fhillipe Pereira


Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Gabriela Salem Lucas Gabriel de Matos Santos
Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Roberta Brasilino Barbosa
Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Resumo: No Rio de Janeiro, o planejamento urbano e o direito à cidade vêm sofrendo


contundentes interferências do modelo neoliberal, colocando em conflito os interesses de quem
habita o território e os das grandes corporações do capital financeiro. Tais interferências agravam
problemas já conhecidos dos cariocas, como negação de direitos básicos, criminalização da
pobreza e aumento do custo de vida. No presente texto, trabalhou-se com a ideia de cidade não
como palco de uma disputa sócio-histórica de classes ou como objeto dessa disputa, mas como
o emergir da própria disputa. Interessa-nos analisar e discutir os efeitos desse confronto, além
de elaborar formas de resistência e de superação das desigualdades que marcam a experiência
humana na realidade social brasileira. Nesse cenário, faz-se necessária a construção de outro
modo de fazer Psicologia, comprometido em reunir elementos de ação capazes de intervir na
realidade que vem sendo imposta a partir da perspectiva de cidade-negócio. Uma Psicologia
que tenha a luta e participação política como metas para uma experiência democrática de
sociedade, consolidando dessa forma o compromisso social como norteador da profissão.
Palavras-chave: Direito à Cidade, Psicologia, Participação Social.

Psychology and Democracy in a Scenario of the City as a Disputed Field

Abstract: In Rio de Janeiro, urban planning and the right to the city have been suffering neoliberal
model’s strong interference, putting into conflict the interests of those who dwell the territory
and the large corporations of the financial capital. That interference exacerbates problems
already known by cariocas, such as the denial of basic rights, the criminalization of poverty and
an increase in the cost of living. In the present text, we worked with the idea of ​​city not as the
stage of a historical social class dispute or as the object of this dispute, but as the emergence
of the dispute itself. We are interested in analyzing and discussing the effects of this dispute,
as well as in elaborating ways of resistance and overcoming the inequalities that mark human
experience in the Brazilian social reality. In this scenario, it is necessary to construct another
way of doing Psychology, committed to gathering elements of action capable of intervening in
the reality that has been imposed from the perspective of the entrepreneurial city. A Psychology
that has struggle and political participation as goals for a democratic experience of society, thus
consolidating social commitment as a guide to the profession.
Keywords: Right to City, Psychology, Social Participation.

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Martins, E.; Pereira, F.; Salem, G.; Santos, L. G. M.; Barbosa, R. B. (2017). Psicologia, Democracia e Cidade em Disputa.

Psicología y Democracia en un Escenario de Ciudad como Campo en Disputa

Resumen: En Río de Janeiro, la planificación urbana y el derecho a la ciudad vienen sufriendo


contundentes interferencias del modelo neoliberal, poniendo en conflicto los intereses de
quienes habitan el territorio y los de grandes corporaciones del capital financiero. Tales
interferencias agravan problemas ya conocidos por los cariocas, como negación de derechos
básicos, criminalización de la pobreza y aumento del costo de vida. En el presente texto,
vamos a trabajar con la idea de ciudad no como escenario de una disputa socio-histórica de
clases o como objeto de esa disputa, sino como el emerger de la propia disputa. Nos interesa
analizar y discutir los efectos de esa confrontación, además de elaborar formas de resistencia
y de superación de las desigualdades que marcan la experiencia humana en la realidad social
brasileña. En ese escenario se hace necesaria la construcción de otro modo de hacer Psicología,
comprometido con reunir elementos de acción capaces de intervenir en la realidad que viene
siendo impuesta desde la perspectiva de ciudad-negocio. Una Psicología que tenga la lucha y
participación política como metas para una experiencia democrática de sociedad, consolidando
de esa forma el compromiso social como orientador de la profesión.
Palabras clabe: Derecho a la Ciudad, Psicología, Participación Social.

Introdução cio, nega políticas que entendam a dimensão social


Os trabalhadores subalternizados (Silva, & Bar- da moradia e a compreensão dela mesma como um
bosa, 2005) da cidade do Rio de Janeiro sofreram diver- direito humano. Na lógica do mercado imobiliário, o
sas vezes com os despejos forçados ao longo da his- lucro importa mais que a vida das pessoas e o valor da
tória. Apesar de não ser novidade, recentemente, em terra é medido em dólares ou reais, em vez de memó-
razão de megaeventos esportivos e das transformações ria e história.
urbanísticas que impuseram à cidade, esse processo se Como já propôs Santos (1999), o espaço é um
intensificou, ao negar o direito à moradia de milhares importante elemento para a constituição do sujeito
de famílias cariocas. De acordo com dados do Dossiê e para a compreensão da dinâmica social, pois é no
do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de espaço da cidade que homens e mulheres impri-
Janeiro (2015), até novembro de 2015, 22.059 famílias mem sua marca, desenvolvem relações e sobrevi-
haviam sido removidas na cidade do Rio de Janeiro. vem. A história não se escreve fora do espaço. Neste
Moradores de diversas comunidades da cidade foram sentido, entendemos a grande importância de fazer
e continuam sendo forçados a sair de suas casas, seja uma reflexão sobre a relação espaço-subjetividade e
pela intervenção direta do Estado, para o desenvolvi- pensar sobre os impactos subjetivos da segregação
mento dos megaeventos ou por estarem em “áreas de espacial. É impossível dissociar a cidade do sujeito
risco”, seja devido às forças da especulação imobiliária que nela habita, da mesma forma que, para uma apre-
e da gentrificação. ensão da cidade, é preciso pensar em seus morado-
Entendemos que moradia está para muito além res. A Psicologia que tem como norte o compromisso
de quatro paredes. Ao negar esse direito, se está social precisa considerar o espaço urbano como ele-
negando também os direitos à saúde, à educação, ao mento imprescindível para a compreensão da dimen-
trabalho e ao lazer. As remoções obrigam os morado- são subjetiva, pois, ao passo que o sujeito transforma
res a mudarem-se para áreas periféricas, onde a terra a cidade, ele também é transformado por ela.
vale menos. Novas favelas são formadas e conjuntos Dessa maneira, é papel da Psicologia contribuir
residenciais de reassentamento são construídos. Esse com práticas que afirmam uma visão de cidade que não
processo se dá de forma antidemocrática, sem parti- privilegie o espaço urbano para especulação e obtenção
cipação da população, nem ao menos da comunidade de lucro, mas que considere, primeiramente, o bem-es-
que sofrerá diretamente essas transformações. O tar daqueles que a habitam. É preciso elaborar outro
modelo neoliberal, ao transformar moradia em negó- modo de fazer Psicologia, que tenha na luta e participa-

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 224-238.

ção política metas para uma experiência democrática de cendente na aparência, não é concebida fora das
sociedade, o que necessariamente passa pela experiên- ideologias (religiosas, políticas). Comporta prin-
cia de cidade. cípios morais e jurídicos. Esta ordem distante se
Nesse intuito desenvolvemos um projeto de trân- projeta na realidade prático-sensível. Torna-se
sito pela cidade, mencionado na segunda parte do visível ao se inscrever nela. Na ordem próxima,
texto, com jovens moradoras e moradores da região da e através dessa ordem, ela persuade, o que com-
Comunidade Indiana Tijuca e do Complexo do Borel. pleta seu poder coator. Ela se torna evidente atra-
Uma tentativa de problematizar questões que os afe- vés e na imediatez.
tam diretamente, no que se refere ao direito à cidade.
Apostamos na própria mobilização social do grupo Santos (2006) traz estas duas razões, global e
como estratégia metodológica de trabalho, enten- local, de uma maneira dialética, que não só se asso-
dendo que a articulação do coletivo pode ser um ins- ciam, mas se contradizem, se complementam, mas
trumento promotor de autonomia, capaz de estimu- também se confrontam. Interessa-nos analisar o que
lar uma participação política, social e democrática, é produzido e produz um desses confrontos, dessas
e contribuindo para a resistência às transformações contradições, trazendo o que chamamos de “disputa
que aquele espaço urbano tem sofrido e que afetam pela cidade”. Em tempos de globalização e neolibe-
as interações sociais das pessoas que ali habitam. ralismo, no qual a intervenção estatal em regimes de
bem-estar social se apequena frente às exigências de
um mercado especulativo em constante movimento,
Cidade como campo em disputa a discussão sobre cidade enquanto um campo em
Pensemos inicialmente na cidade enquanto uma
disputa é fundamental. É preciso entender os efeitos
sobreposição de lugares que acontecem, de hábitos,
e desdobramentos do sentido contemporâneo dado
de movimentos, de existências, de sistemas, ou, o que
ao espaço urbano, não mais como um lugar de condi-
sugere Santos (2006), um eixo de sucessões de acon- ções necessárias para acumulação do capital, mas que
tecimentos e um eixo de coexistências em um lugar, o reproduz diretamente o capital enquanto se é produ-
que faz com este lugar seja instável e não homogêneo. zido como espaço (Carlos, Volochko, & Alvarez, 2015).
As diversas linhas sobrepostas que existem na cidade Portanto, não traremos a cidade como palco de uma
nos ajudam a enxergá-la como um lugar de diversos disputa social e histórica entre classes, e nem como
eventos, como o espaço do acontecer, e que, a par- objeto dessa disputa, por entendermos que a cidade
tir das rupturas e linhas que se chocam, dão lugar a deixa de ser apenas o local onde ocorre acumulação
outros eventos (Santos, 2006). Cada acontecer é, ao de capital e passa a ser o próprio objeto/produto dessa
mesmo tempo, causa e efeito de outros eventos e essa transação. A cidade é produzida a partir da lógica do
influência, com a globalização, alcança uma univer- mercado, sendo produto e ao mesmo tempo espaço
salidade cada vez maior. O que acontece a nível glo- de produção. A cidade em si emerge da disputa.
bal pode fazer surgir ou alterar eventos locais, e um Para ilustrar a “disputa pela cidade”, colocaremos
evento local pode criar desvios a níveis globais. Temos em análise um dos critérios apresentados pela Secre-
então o local enquanto o lugar da interação da vizi- taria Nacional de Direitos Humanos para garantia
nhança, da intimidade, do que é marcado na medida de moradia adequada: a segurança de posse (Brasil,
em que marca o território, do morador, e que res- 2013). O tema foi recentemente discutido na Orga-
ponde, do seu modo, à racionalidade global; e o glo- nização das Nações Unidas (ONU) em meio à crise
bal, que busca impor uma única racionalidade, e que mundial de insegurança de posse, segundo a relatora
se apresenta como normas, métodos e padrões. Esses especial da ONU sobre direito à moradia adequada,
entendimentos de Santos (2006) se aproximam do Raquel Rolnik (ONUBR, 2013). Avila e Ferreira (2016)
que Lefebvre (2001, p. 52) traz como a ordem distante situam o tema na falta de precisão do domínio do
(global) e a ordem próxima (local): solo, no entanto Rolnik (2015) traz como a impossibi-
lidade de se permanecer no local onde mora. Segundo
A ordem distante, se institui em um nível supe- o caderno Direito à Moradia Adequada emitido pela
rior, isto é, neste nível dotado de poderes. Ela se Secretaria Nacional de Direitos Humanos, “a mora-
impõe, abstrata, formal, supra-sensível, e trans- dia não é adequada se os seus ocupantes não têm um

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Martins, E.; Pereira, F.; Salem, G.; Santos, L. G. M.; Barbosa, R. B. (2017). Psicologia, Democracia e Cidade em Disputa.

grau de segurança de posse que garanta a proteção urbano pelas exigências de um ideal de cidade e com
legal contra despejos forçados, perseguição e outras um “bom visual”, que sirva de marketing, ou um bom
ameaças” (Brasil, 2013, p. 14). São inúmeros os moti- lugar para receber investimentos do capital estran-
vos por trás da insegurança de posse, sejam conflitos geiro. Leis são alteradas e criadas, agências e con-
armados, desastres naturais, projetos de infraestru- selhos com poderes de decisão (sem representativi-
tura ou de exploração econômica. dade), políticas higienistas e de remoção, violadoras
de direitos (Rolnik, 2015).
Uma inundação, o avanço de uma hidroelétrica ou A autora pontua a emergência do que é chamado
um grande projeto de instalações esportivas sobre de “empreendedorismo municipal”: o governo deixa a
um território habitado, tem impactos mais agudos visão administrativista e passa a empreender a cidade,
quando ocorre sobre territórios cuja situação de posse a envolvê-la na especulação financeira, nas estraté-
pode ser contestada a qualquer momento por autori- gias globais de localização de multinacionais e trans-
dades ou agentes privados (Rolnik, 2015, p. 150). forma as políticas urbanas em promoção econômica
e megaprojetos globais. Um reflexo disso é o cresci-
Esses impactos podem ser vistos na fragilização ao mento de parcerias públicos-privadas (PPP), associa-
direito constitucional de moradia1, nos riscos de despe- ção vasta entre dois setores da economia distintos das
jos forçados e a invasões de terceiros, no desinteresse na concessões e das privatizações. As PPPs surgem sob
melhoria das condições de habitação e em problemas o pretexto do avanço de competências exigidas pelo
de ordem social e econômica (Avila, & Ferreira, 2016). mercado e não alcançadas pelos aparelhos estatais.
As estruturas de poder que servem a uma racio- Elas são em sua maioria relacionadas a megaprojetos
nalidade (global) de espaço incidem sobre os mora- de desenvolvimento urbano conduzidas e financiadas
dores da cidade e podem culminar, por fim, em pelo Estado que assume também os riscos de possí-
mecanismos de inclusão/exclusão (Rolnik, 2015). veis déficits. Como se deu na zona portuária do Rio de
Ao sugerir este processo, estamos tomando a espe- Janeiro, por exemplo, que virou um complexo imobi-
culação imobiliária, o planejamento urbano e o uso liário-financeiro, em execução por meio de uma PPP
da terra como estratégias dessas estruturas de poder encarregada de gerir os serviços por 15 anos e imple-
para possibilitar ou não o acesso a certos locais por mentar as obras, as quais foram realizadas sem diá-
determinado grupo de pessoas. Não estamos descre- logo com os moradores do local e dos arredores e que
vendo ainda os processos de remoções forçadas, mas geraram remoções de diversas famílias (Rolnik, 2015).
um processo mais sutil, que nega o direito à cidade Em “SMH 2016: Remoções no Rio de Janeiro
e à moradia quando, ao invés de suprir necessidades Olímpico”, Faulhaber e Azevedo (2015) evidenciam
básicas sociais, econômicas e de saneamento, investe os processos de exclusão na cidade do Rio de Janeiro
em novas estruturas, em um planejamento urbano compreendidos em um projeto de cidade para recep-
que não contempla os interesses locais, o que faz com ção dos megaeventos. Segundo esses autores, ini-
que o valor imobiliário aumente, assim como o custo cialmente a população carioca apoiou uma imagem
de vida. Famílias que, sem condições de se manterem valorizada de cidade, capaz de atrair público e capi-
com a nova configuração do local, precisam procurar tal estrangeiro, pois seriam beneficiários dos avanços
lugares mais acessíveis economicamente para morar, da cidade. No entanto, deparam-se com o alto custo
o que pode significar também lugares sem infraestru- para a construção de equipamentos esportivos subu-
tura e rede de serviços adequados, distante dos locais tilizados, o aumento expressivo no custo de vida que
de trabalho e com transporte precarizado, com pouca atinge não somente as faixas mais pobres, mas tam-
segurança e sem nenhuma ligação afetiva com o bém a classe média, e com processos de remoções
espaço. Esse é o processo de gentrificação do espaço. e desapropriações em favelas já consolidadas. Pro-
A cidade, habitada e habitável, com característi- cessos incentivados pelos interesses do Estado e das
cas históricas, sociais e culturais próprias do espaço, grandes construtoras em locais ocupados e que são
é sumariamente transformada em seu espaço alvos da especulação imobiliária, como os arredores

1
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (BRASIL, 1988).

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 224-238.

do estádio Maracanã, com as remoções de favelas O pluralismo jurídico pode nos ajudar a entender
como a Metrô Mangueira (Williamson, 2012), como como se dá essa negação de direitos, como o direito
o Parque Olímpico na Barra da Tijuca, com o caso da à moradia, por exemplo. Ao se tratar de territórios,
Vila Autódromo (Talbot, 2016), e como da Região Por- lugares, espaços, Rolnik (2015) aponta o pluralismo
tuária (Robertson, 2016), no centro do Rio de Janeiro. jurídico como “o encontro, coexistência e, muitas
vezes, conflitos entre diferentes ordens judiciais que
Foram mais de 20 mil casas removidas em cinco operam sobre o mesmo território” (p. 176). Interes-
anos de governo. E ao que parece, o processo de sa-nos discutir como esse pluralismo jurídico reflete
reestruturação em curso deve reforçar o padrão e reproduz desigualdades sociais. “Vivemos em um
centro-periferia com acentuação de uma des- mundo no qual os direitos de propriedade privada e a
centralização que se expressa no processo de taxa de lucro se sobrepõe a todas as outras noções de
segregação, sem garantia de manutenção das direitos em que se possa pensar” (Harvey, 2014, p. 27).
estruturas ocupacionais para os moradores Não é diferente tratando-se do direito à cidade. Har-
removidos, como resultado de uma série de vey (2014) traz, enquanto direito à cidade, algo muito
políticas, programas e intervenções (Faulhaber, maior do que um direito de acesso individual ou gru-
& Azevedo, 2015. p. 77). pal aos recursos que a cidade incorpora, mas é princi-
palmente um direito de mudar e reinventar a cidade
O dossiê sobre megaeventos e violações de de acordo com os nossos interesses. Dessa forma,
direitos humanos, lançado pelo Comitê Popular da quando o lucro e a especulação colocam-se como
Copa e das Olimpíadas no Rio de Janeiro em 2015, prioridade e o poder público não possibilita uma
sintetiza a atual política como uma política de exclu- democracia participativa, a reinvenção e mudança
são, a partir da subordinação da cidade ao capital e são extremamente desafiadoras.
não às pessoas. De acordo com o documento, as vio- Segundo Rolnik (2015), o sistema jurídico-bu-
lações de direitos se intensificaram com os megae- rocrático não é capaz de lidar com a transitoriedade
ventos, como o direito à moradia, à mobilidade, ao legal/ilegal permanente2 marcada pela constituição
meio ambiente e o direito das cidadãs e cidadãos de do espaço contemporâneo, pois quando se trata de
terem acesso à informação e participar da tomada de pluralismo jurídico, não consideramos apenas uma
decisões. O relatório diz dos processos de elitização plural legislação territorial ou ordens urbanísticas
e mercantilização da cidade e dos novos padrões de distintas que coexistem, mas também “das relações
relação entre o Estado e os agentes econômicos e de ordem, autoridade e poder presentes nos bairros
sociais, marcados pela negação das esferas públicas populares autoproduzidos” (Rolnik, 2015, p. 177). Com
democráticas de processos decisórios, falta de trans- isso, as soluções extrajudiciais aparecem como reso-
parência e intervenções autoritárias. De forma seme- luções possíveis, seja pela mediação, arbitragem ou
lhante, a ONG Internacional Justiça Global produziu pela discricionariedade3. No entanto, essas resoluções
um relatório acusando o desrespeito aos direitos das geralmente estão situadas no âmbito político, tendo o
moradoras e moradores das favelas e periferias da Estado como mediador. Rolnik (2015) chama a atenção
cidade do Rio de Janeiro, durante a preparação para para a necessidade de afastar a ideia de que a consoli-
os Jogos Olímpicos, na tentativa de tornar público o dação de bairros populares ou favelas são lugares em
lado que não é visto na televisão, como a violência que o Estado não está presente, assim como Magalhães
policial, o extermínio da população negra e pobre, (2013) que reafirma a necessidade em não entender a
o aprofundamento da segregação socioespacial e o favela como espaço composto por um vácuo jurídico,
controle e privatização do espaço público. uma terra sem lei. Marginalizada em sua estrutura, sis-

2
No contexto deste artigo, ao falarmos transitoriedade permanente estamos nos referindo transição legal/não-legal que envolve um ter-
ritório e sua constituição. Um exemplo de como isso está presente: quando se ocupa uma terra vazia, se possuir proprietário, a ocupação
é ilegal, no entanto se não possuir um proprietário formal, ou ser objeto de disputa, a ocupação pode não ser contestada de maneira
imediata e, por fim, consolidada (Rolnik, 2015).
3
Qualidade do poder conferido à administração pública; “A essência do poder discricionário está na liberdade de proceder, por meio de
apreciações subjetivas, à adoção de uma ou mais soluções possíveis, tomando decisões com valor igual à que teria podido dar o legisla-
dor” (Grotti, 2000, p. 71). Este poder assegura a supremacia da administração pública sobre a particular.

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Martins, E.; Pereira, F.; Salem, G.; Santos, L. G. M.; Barbosa, R. B. (2017). Psicologia, Democracia e Cidade em Disputa.

tematicamente considerada ilegal, tendo em vista as segundo censo do Instituto Brasileiro de Geografia e
constantes tentativas de regulação dos espaços ocupa- Estatística – IBGE de 2010, fica localizada no bairro da
dos e consequentemente afastada da ideia de “cidade Tijuca e é integrante do Complexo do Borel), somando
formal”, a favela acaba por ser desconsiderada quando esforços a outras iniciativas que visavam barrar o pro-
se trata de investimentos públicos ou em possíveis pla- cesso de remoção que ameaçava as famílias que lá
nejamentos de atendimento às populações que moram residiam4. A partir de 2016, os arquitetos urbanistas
nesses espaços. A não atuação do Estado nos espaços em formação entenderam que seria importante nessa
das favelas não pode ser entendida como uma ausên- empreitada a construção de um plano participativo
cia, mas sim como uma política específica, uma deter- de urbanização, para o qual convidaram a equipe de
minada forma de agir, com um fim outro que não é a Psicologia do Núcleo Interdisciplinar de Ações para
emancipação e a garantia de direitos. “As idas e vindas Cidadania da mesma universidade (NIAC-UFRJ)5 a
de processos de formação, consolidação e remoção contribuir. Um plano de urbanização participativo,
desses assentamentos têm sido fortemente constituí- que pudesse servir de instrumento técnico de luta
das e permanentemente mediadas pelo Estado” (Rol- política para a comunidade, enquanto uma ação de
nik, 2015, p. 180). enfrentamento aos recorrentes processos de remo-
O mesmo Estado possui interesses eleitoreiros ções e outras violações que vem acompanhadas.
e econômicos. Possibilita por meios legais a existên- Das ações interdisciplinares entre as áreas de Psi-
cia/permanência de assentamentos em troca de uma cologia e Arquitetura e Urbanismo em parceria com
moeda político-eleitoral (Rolnik, 2015), e também atua instituições e moradores da supracitada comunidade
segundo os interesses do mercado, influenciado pelas surgiu um projeto de intervenção, cuja atividade prin-
grandes empresas que figuram nos quadros de maiores cipal passamos agora a descrever. Trata-se da realização
financiadores de campanhas eleitorais. Neste sentido, de experiências recreativas de trânsito pela cidade do
o Estado neoliberal diminui suas atuações apenas em Rio de Janeiro, com jovens da comunidade, seguidas de
políticas sociais, pois, enquanto políticas econômi- rodas de conversa sobre temas relacionados ao direito
cas, ele somente se adequou às exigências do mercado à cidade, tendo como impulsionador a construção de
(Maricato, 2009). Rolnik (2015, p. 181) completa: “este subsídios para o plano participativo de urbanização.
mecanismo tem sido fundamental para manter a desi- As políticas públicas de planejamento urbano
gualdade e o controle da cidade pelas elites, ao mesmo têm promovido intensas transformações no espaço
tempo que reproduz mandatos políticos, constituindo da cidade do Rio de Janeiro, considerando majori-
vastas bases eleitorais para os partidos”. tariamente os interesses econômicos e políticos que
favorecem grupos mais abastados da sociedade, tal
Compromisso social da Psicologia frente qual discutiu-se em seção anterior. Tais mudanças
ao cenário atingem, na maioria das vezes de maneira violadora,
No ano de 2013, a equipe do Escritório Modelo comunidades de determinadas áreas da cidade. As
de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal mesmas ocasionam remoções e desapropriações que
do Rio de Janeiro (EMAU-UFRJ), Abricó, deu início resultam em transferências das famílias para áreas
à execução de um projeto de extensão numa favela distantes de onde são originárias, ferindo o direito
carioca chamada Indiana (que possui 887 habitantes, básico à moradia (Faulhaber, & Azevedo, 2015). Para

4
Em 2010, a Prefeitura do Rio anunciou a remoção de 119 comunidades, incluindo Indiana até o final de 2012 (Bastos, & Schmidt, 2011).
A partir de então, sobretudo em janeiro de 2012, a comunidade foi alvo de uma campanha de expulsão. Sob o argumento de que algu-
mas famílias moravam em áreas de risco, o então secretário de habitação, Jorge Bittar (PT-RJ), informou aos moradores que aqueles que
residiam às margens do rio Maracanã seriam removidos para Triagem, onde estava sendo construído o Bairro Carioca, com recursos
do programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal. Em resposta, os moradores se organizaram em uma comissão e procuraram
a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro para questionar a legalidade das ações da Prefeitura e montar um projeto judicial.
Enquanto isso, entre março e outubro de 2012, 110 famílias foram removidas. Em dezembro desse mesmo ano, ocorreu uma audiência
pública na qual a prefeitura não conseguiu justificar as remoções e uma ordem judicial foi emitida considerando as ações da prefeitura
violadoras e proibindo mais demolições (Clarke, 2014).
5
O NIAC, programa de extensão da UFRJ, foi criado em 2006 e integra projetos de pesquisa e extensão orientados para promoção do
acesso à justiça e à cidadania. Atuam nesse programa equipes formadas por integrantes dos cursos de Psicologia, Serviço Social e Direito
da UFRJ.

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 224-238.

além disso, é importante ressaltar que essas políticas acesso ao lazer, direito à educação e à moradia, remo-
frequentemente dificultam a mobilidade da popula- ções, saúde, saneamento básico e mobilidade urbana.
ção, bem como o acesso a equipamentos de saúde, Foi feito uso do dispositivo grupal (Barros, 2007),
cultura, de esporte e de lazer. Elas se preocupam de no qual utilizou-se outros dispositivos (como vídeos,
maneira diferenciada com os territórios urbanos, não jogos e brincadeiras), a fim de dar voz às multiplicida-
considerando em seus planejamentos determinadas des e possibilitar a desindividualização das questões
regiões da cidade. Isso ocasiona um desenvolvimento que surgiram no decorrer dos encontros. Também
desigual e perpetua lógicas de exclusão e estigmati- apostou-se na própria mobilização social do grupo
zação com impactos diretos na produção de subjeti- como estratégia metodológica do trabalho, enten-
vidades, especialmente na criminalização de formas dendo que a articulação do coletivo pode ser um ins-
contra hegemônicas de apropriação do espaço. trumento promotor de autonomia, capaz de estimular
Assim, a atividade surgiu como tentativa de pro- uma participação política e social, portanto democrá-
blematizar essas questões que afetam diretamente tica. “Lutar por novos projetos democráticos implica
também os jovens da região da Comunidade Indiana buscar espaços para intervir, potencializando no coti-
e do Complexo do Borel, bem como possibilitar diano as relações diferenciadas” (Scheinvar, 2009, p.
momentos de reflexão e lazer ao grupo. Entendemos 171). Sendo assim, compreendem-se democracia e
que a experiência que essa atividade proporcionou a participação não enquanto produções genéricas, mas
enquanto produções concretas quando discutidos os
seus participantes também auxiliou em um processo
direitos em espaços de exercícios de cidadania em
de desindividualização de muitos dos sofrimentos
que a sociedade civil pode (ou deveria poder) atuar na
que já experimentaram por serem moradores de
gestão pública (Scheinvar, 2009).
favelas. Sofrimentos com impactos amplos em várias
A Psicologia enquanto ciência e profissão tem se
dimensões de suas existências: pessoal, familiar,
questionado bastante nas últimas décadas sobre seu
escolar, profissional.
compromisso social, o que envolve também problema-
Tomamos como duplo objetivo proporcionar ao
tizar os espaços nos quais a(o) profissional pode e deve
grupo um espaço de troca de ideias e experiências
atuar para além das inserções clássicas na clínica, na
aliadas à possibilidade de acesso àquilo que a cidade
escola, no hospital. Não existem, muitas vezes, nesse
oferece, bem como fomentar a reflexão e participa-
campo profissional, nem práticas, nem espaços de atu-
ção desses jovens no que diz respeito às questões da
ação absolutamente engessados, cabendo constante-
comunidade, assim como da cidade como um todo,
mente à(ao) psicóloga(o) construí-los, sempre visando,
no âmbito do direito à cidade. Para tal, a metodologia
como orienta um dos princípios fundamentais do código
consistiu em excursões semanais a diferentes lugares
de ética profissional, a promoção de saúde e qualidade
da cidade do Rio de Janeiro, seguidas de rodas de con- de vida e a eliminação de possíveis formas de negligên-
versa sobre alguma temática cara à questão da cidade cia, discriminação, exploração, violência e opressão.
e que estivesse sendo visualizada nos espaços visi- As dificuldades encontradas por profissionais de
tados. Dessa forma, circulamos por cinco diferentes Psicologia na busca de exercer uma práxis que seja
pontos – o estádio de futebol Jornalista Mário Filho, norteada por tal compromisso, principalmente nos
internacionalmente conhecido como Maracanã; o campos de atuação que expandiram a gama de inser-
campus Fundão da Universidade Federal do Rio de ções psi (comunidade, organizações sociais, políticas
Janeiro; o museu da Maré, um dos poucos localiza- públicas etc.), mobilizou profissionais e programas de
dos dentro de uma favela e que traz as lutas histórica pesquisas universitárias a desenvolver novas teorias
e diária de moradores da região; a região portuária que superassem o viés intimista/biologicista que his-
da cidade, um local por onde desembarcaram milha- toricamente constituiu a Psicologia. Assim, especial-
res de africanos escravizados e que recentemente foi mente após a década de 1970, vão surgindo trabalhos
“revitalizado”; e o Aterro do Flamengo, às margens abordando temáticas relacionadas à exclusão social,
da baía de Guanabara, um dos maiores símbolos consciência/alienação, identidade, contexto comu-
dos problemas de saneamento básico enfrentados nitário, afetividade, compromisso ético em Psicologia
na cidade – abordando e, em alguma medida, expe- etc. Questões que precisavam ser consideradas nas
rimentando, temas importantes sobre cidade, como análises e intervenções psicológicas na América Latina.

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Martins, E.; Pereira, F.; Salem, G.; Santos, L. G. M.; Barbosa, R. B. (2017). Psicologia, Democracia e Cidade em Disputa.

Ao reforçar a importância do rompimento com a mos desempenhar em nossas sociedades enquanto


tradição elitista e da construção de uma nova concep- psicólogas(os) é importante examinar as circunstân-
ção de homem na Psicologia, Silvia Lane, professora cias concretas da população a que vamos atender, sua
pesquisadora pela Pontifícia Universidade Católica situação histórica e suas necessidades. Muitas das crí-
de São Paulo desde os anos 1960 até os anos 2000, foi ticas feitas às(aos) profissionais de Psicologia residem
uma das pioneiras a apontar as condições para um no fato de que a dedicação da sua atenção é dirigida
novo projeto profissional. Bock, Ferreira, Gonçalves e aos setores mais abastados da sociedade e a centrali-
Furtado (2007) afirmam que havia uma grande preo- dade da sua atenção às raízes pessoais dos problemas,
cupação por parte de Silvia para que pudesse ser extir- esquecendo-se ou menosprezando os fatores sociais.
pado o hábito de fazer da realidade um exemplo dos Com esse enfoque e essa clientela, acabam por ser-
conceitos teóricos. Em contraposição, seu “objetivo vir aos interesses da ordem social estabelecida, con-
era produzir conhecimento que possibilitasse uma vertendo-se em instrumento útil para a manutenção
compreensão da realidade que implicasse, neces- e reprodução do sistema, à medida que “continuam
sariamente, sua transformação” (p. 48). Em outras sonhando com o exercício liberal de uma profissão
palavras, as construções teóricas somente fazem que atende aos privilegiados e que considera os exclu-
sentido diante de um comprometimento social, que ídos como fontes de contaminação e violência patoló-
mais do que afirmar uma unidade entre saber e fazer gica” (Osorio, 2011, p. 69).
(não havendo, portanto, espaço para que a realidade Osorio (2011) pontua que, no contexto da filosofia
pudesse ser tomada enquanto mero exemplo de con- neoliberal, as(os) profissionais de Psicologia encon-
ceitos), tem como principal propósito o engajamento tram-se em conflito na sua prática: juraram que o fun-
na transformação daquilo que se apresenta. Afinal, os damento principal é o interesse de quem demanda sua
fenômenos sociais não são inatos. atenção, mas seu saber está “a serviço do capital, sob as
Conforme vai se desenvolvendo, esse já não tão premissas dogmáticas de que a ciência deve ser neu-
novo projeto profissional da Psicologia, a transforma- tra, asséptica e pragmática” (p. 66). Martín-Baró (1986)
ção adquire cada vez mais o sentido de superação da ressalta que nesse cenário tem influência a coloniza-
desigualdade social (produzida, e não inata, e mani- ção do saber psi latino-americano – cujo nascimento e
festada sob as formas de renda, mas também educa- desenvolvimento se deu a partir do lugar de imitadores
cionais, urbanísticas, de mobilidade urbana) e das e difusores da Psicologia estadunidense e europeia –
situações de opressão que nos constituem enquanto evidenciada a partir de três fatores: desejo de adquirir
sujeitos brasileiros, latino-americanos. E nesse intuito, um reconhecimento científico; carência de uma epis-
a produção teórica de Silvia Lane acerca do psiquismo, temologia adequada, que parta dos povos latino-ame-
como indissociado de um conteúdo histórico e social, ricanos; e preocupação com falsos problemas, especi-
é indispensável para situar a Psicologia enquanto um ficamente no que se referem a um alijamento quanto à
saber responsável por “compreender o indivíduo em realidade da América Latina.
sua relação dialética com a sociedade; a constituição Contudo, concordamos com Osorio (2011)
histórica e social do indivíduo e os elementos que quando afirma que estão aí igualmente em atuação
explicam os processos de consciência e alienação; e as as forças que sustentam o processo de globalização
possibilidades de ação do homem frente às determina- centrada no mercado, o qual necessita de indivíduos
ções sociais” (Bock et al., 2007, p. 50). para se sustentar. Sob o pretexto da “democratização”
Nada se pode afirmar sobre o sujeito sem consi- advinda com a formação de uma sociedade mundial
derar a realidade social da qual participa, o que impõe única, “a Psicologia converte-se em instrumento que
a nós, psicólogas(os), um lugar no processo de trans- mantém vivo o paradoxo da inclusão, por meio de
formação social em qualquer área na qual nos pro- modelos de ‘integração’ que excluem” (Osorio, 2011,
pomos a atuar. Bock et al. (2007) lembram que, para p. 71). O ser humano é destituído de sentido frente a
Lane, o mais importante não era o tema da pesquisa necessidade do melhor interesse do mercado; a ciên-
de seus orientandos, mas a resposta para “qual a reali- cia é reduzida à tecnocracia. O desenvolvimento do
dade que queriam contribuir para mudar” (p. 55). processo globalizador acarreta numa pressão sobre os
Caminhando na mesma direção, Martín-Baró governos para que criem espaços sociais a favor das
(1996) afirma que para assumirmos o papel que deve- empresas transnacionais e multinacionais. Eis o real

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significado da imposição democrática na América Psicologia um compromisso com a práxis, “teoria que
Latina, que “visava” a redução de sua pobreza. cria prática transformadora, prática que produz teo-
Em contrapartida a essa realidade de exercício ria, ambas refletidas” (Montero, 2011, p. 98).
profissional, Martín-Baró (1986) e outros praticantes
da Psicologia da Libertação, cansados de explicações Teoria, até mesmo em sua etimologia, é o que
individualizantes e psicologizantes para as causas ajuda a ver de cima, como uma luz sobre um
do subdesenvolvimento da América Latina, atenta- monte. Agora no momento em que fico apenas
ram-se para as relações de dependência e de explo- na teoria e não tenho uma prática, jamais poderei
ração aí vigentes, as quais deveriam ser suprimidas entender a realidade, porque não se pode ver a
ou transformadas para que de fato se pudesse ocorrer luz em si mesmo: o que se vê é sempre algo ilu-
o desenvolvimento regional. Eles assumiram a obri- minado (Guareschi, 2011, p. 57).
gação ética de trabalhar a favor dos excluídos, o que
implica negar o processo globalizador, tanto em vir- E dessa forma, uma tarefa importante que cabe
tude das condições de desigualdade e exclusão que à(ao) psicóloga(o), ao buscar os meios para assumir
ele é responsável por acirrar, quanto pela necessidade nossa responsabilidade social, diz respeito ao reconhe-
que essa obrigação impõe no sentido de afirmar as cimento objetivo dos problemas que afligem os povos
tradições e práticas dos oprimidos (Osorio, 2011). latino-americanos e a definição da contribuição espe-
Nesse contexto, é preciso lembrar que, para pra- cífica da Psicologia na resolução desses problemas. É
ticar uma Psicologia da Libertação, faz-se importante colocar o nosso saber a serviço de uma sociedade mais
uma libertação da própria Psicologia (Martín-Baró, justa e igualitária, em que o bem-estar de uma mino-
1986) e, de acordo com Martín-Baró (1996), a cons- ria favorecida não se faça sobre o mal-estar da maioria
cientização deve constituir o horizonte do fazer psi- desfavorecida, e que o interesse de poucos não exija a
cológico liberto e libertador. Esse processo busca a desumanização dos demais (Martín-Baró, 1996).
desalienação das pessoas e grupos e ajuda a chegar De que forma as provocações de Silvia Lane, Mar-
a um saber crítico sobre si mesmas e sobre sua rea- tin-Baró e os outros praticantes da Psicologia da Liber-
lidade, através da eliminação e controle dos meca- tação acerca do papel que cabe ao saber psi diante da
nismos que bloqueiam a consciência da identidade realidade social brasileira e latino-americana podem
pessoal e social. Tal papel somente é possível por- nos auxiliar a problematizar o cenário das cidades
que, para Martin-Baró (1996, p. 14), “a consciência desses países? A partir de que intervenções a prática
[...] é [...] sobretudo, aquele âmbito onde cada pessoa das(os) psicólogas(os) latino-americanas(os) pode
encontra o impacto refletido de seu ser e de seu fazer contribuir na superação das profundas desigualdades
na sociedade, onde assume e elabora um saber sobre sociais que marcam a experiência humana nos centros
si mesmo e sobre a realidade que lhe permite ter uma urbanos dessa região do mundo? Tomando as reflexões
identidade pessoal e social”. Ele ressalta que não só de Montero (2011) acerca dos questionamentos que
o saber, mas também o não saber (práxico, mais que fazem uma prática psicológica crítica, constitui inte-
mental), sobre si, os demais e o próprio mundo, é que resse de análise/intervenção, diante da realidade das
constituem a consciência, defendendo o processo cidades, ponderar alternativas, causas e efeitos; reco-
conscientizador como aquele voltado primeiramente nhecer a diversidade de atores sociais envolvidos, sua
a devolver a palavra às pessoas, não somente como pluralidade de formas de ação, assim como sua capa-
indivíduos, mas como parte de um coletivo. “O saber cidade de produzir transformações; além de relacionar
mais importante do ponto de vista psicológico não é o o fenômeno da “cidade enquanto campo em disputa”
conhecimento explícito e formalizado, mas esse saber com seu contexto cultural, histórico e social.
inserido na práxis cotidiana, [...] enquanto permite A maneira como o espaço urbano de uma cidade
ou impede os grupos e povos de manter a sua própria se estrutura e se modifica está intimamente relacio-
existência” (Martin-Baró, 1996, p. 15). nada com a forma como se dão as interações sociais
Conscientização, como bem lembra Guareschi da população que nele vive. Tais interações, por sua
(2011), no sentido de palavração, ou seja, algo que vez, refletem a maneira como, ao longo do tempo,
demonstra a impossibilidade da dicotomia entre diferentes segmentos sociais se apropriam desse ter-
consciência e ação, o que por sua vez implica para a ritório. Apropriação cujos modos derivam de questões

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relacionadas à historicidade com o local, ao perten- de-negócio por meio de práticas que afirmam uma
cimento, aos vínculos entre indivíduos e grupos, às visão de cidade que não privilegie este espaço para
manifestações culturais, aos processos de desenvol- especulação e obtenção de lucro. Uma Psicologia que
vimento econômico, às políticas de planejamento tenha a luta e participação política como metas para
urbano e outros (Lefebvre, 2001). Ou seja, de acordo uma experiência democrática de sociedade, consoli-
com Lefebvre, o espaço se configura como um dos dando dessa forma o compromisso social como nor-
elementos instigantes das interações da sociedade, teador da profissão. Uma Psicologia comprometida
observando que, nas cidades, as misturas culturais e com a democratização do país a partir da democra-
sociais se fazem obrigatórias, possibilitando diferen- tização de suas cidades; que luta por direitos e contra
tes formas de subjetivação. a exploração e as opressões que se atualizam a partir
No Rio de Janeiro e em outras metrópoles lati- da imposição de um modelo de cidade-negócio; e que
no-americanas, o planejamento urbano e o direito contribua nos enfrentamentos emancipatórios pela
à cidade vêm sofrendo contundentes interferências democracia no Brasil e na América Latina, especial-
do modelo neoliberal, colocando em conflito os mente considerando os efeitos da disputa pela cidade.
interesses de quem habita o território e os de gran- Contudo, concordamos que a discussão sobre
des corporações do capital financeiro (Faulhaber, & modelos de cidade (e seus efeitos sobre as pes-
Azevedo, 2015). E tais interferências agravam proble- soas) que se encontram em vigência ou pelos quais
mas já conhecidos. O direito à moradia, saneamento se lutam para que possam ser modificados pode, a
básico, mobilidade urbana, o acesso a equipamentos princípio, parecer muito distante a área de abran-
culturais, esportivos e de lazer ainda são negados a gência do saber psi. Todavia, esmiuçar as forças em
boa parte de moradoras e moradores da cidade. Isso operação que constituem as lógicas imperativas nas
por vezes acarreta uma multiplicidade de formas cidades, e entre elas na cidade-negócio, constitui-se
contra hegemônicas de apropriação/construção campo fértil para compreensão das produções de
do espaço urbano, algumas delas criminalizadas (e, subjetividade em andamento.
portanto, passíveis de diferentes tipos de sanções) A constatação de que a relação entre subjeti-
por serem desviantes de uma ordem instituída como vidade e objetividade não se trata de uma polariza-
padrão. E aí tem forte influência certo uso de uma ção, mas sim de uma dialética, foi uma contribuição
garantia de segurança na gestão da cidade-negócio importante que Lane (2004), embasada nos pressu-
(Barbosa, 2017). postos marxistas do materialismo histórico dialético,
Por trás dessas transformações, surgem novos forneceu como ferramenta de análise psi. Através dela
significados e possibilidades de relações que alte- é possível afirmar que toda ação humana, inclusive
ram dinâmicas da cidade, que se inscreve em muros aquelas que dizem respeito a elaboração e imple-
simbólicos e reais, em trajetos, acessos, fronteiras e mentação de políticas para a cidade, não está isenta
olhares. Como aponta Santos (1987), percebemos daquilo que nos constitui enquanto sujeitos situados
que, na cidade, “cada homem vale pelo lugar onde num contexto que necessariamente é atravessado por
está” (p. 81), demonstrando que a luta pela apropria- uma história e materialidade.
ção do espaço é também uma disputa pelo estabe- Não há, portanto, a possibilidade de se susten-
lecimento de poder. O tecido urbano é história que tar qualquer ideia ou ação que se pretende neutra,
se produz continuamente, revelando contradições conceito tão comumente associado à objetividade e
produzidas pelo desenvolvimento desigual das rela- defendido pelo positivismo. A aprovação de leis e polí-
ções sociais. Quem sofre com o processo de desqua- ticas que visam estabelecer marcos regulatórios rela-
lificação social vê sua condição de sujeito esvaziada, cionadas à habitação (como um plano diretor), ape-
enquanto que aqueles, em posições favoráveis, se sar de aparente objetividade, estão permeadas pelos
valem disso para reforçar seus lugares sociais, valo- processos de subjetivação que atravessam determi-
rizando sua identidade de pertencimento em con- nado grupo, o que se constitui necessariamente como
traponto àquela desqualificada. campo para Psicologia. Subjetivamos, ao objetivar
Nesse cenário, faz-se necessária uma Psicolo- e vice-versa, uma espiral constituída no decorrer do
gia comprometida em intervir na realidade que vem tempo, refutando dicotomias para dar lugar à dialé-
sendo imposta a partir de uma perspectiva de cida- tica sujeito-sociedade!

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 224-238.

Quando o poder público se coloca no papel de a preocupação do pobre é unicamente a sobre-


limitar a circulação da população pobre nos espaços vivência e que não tem justificativa trabalhar a
abastados da cidade, a partir de extinção de linhas de emoção quando se passa fome. Epistemologica-
ônibus, alta nos preços de passagens ou mesmo pelas mente, significa colocar no centro das reflexões
violações perpetradas pelos agentes de segurança sobre exclusão, a idéia de humanidade e como
pública, isso produz também subjetividade em todo temática o sujeito e a maneira como se relaciona
o tecido social. O estigma evidenciado pelos policiais com o social (família, trabalho, lazer e socie-
que impedem a circulação de jovens negros para as dade), de forma que, ao falar de exclusão, fala-
praias da zona sul do Rio de Janeiro (Heringer, & Bar- -se de desejo, temporalidade e de afetividade, ao
ros, 2015) marca de forma potente esses sujeitos pela mesmo tempo que de poder, de economia e de
desvalorização que sentem pelo Estado, principal- direitos sociais (Sawaia, 2001, p. 98).
mente quando se encontram em determinados terri-
tórios. As políticas de cidade, portanto, geram afetos, Supera-se o imaginário de que a afetividade ape-
fazendo emergir a necessidade de conhecimentos e nas deturpava o rigor científico para compreendê-la
intervenções que possam considerar a dimensão da dentro da complexidade que constitui os fenômenos
afetividade para a preservação de direitos. sociais. Busca-se, assim, entender a produção sub-
As relações aqui problematizadas entre cidade jetiva-objetiva mediada pelas emoções na dinâmica
e subjetividade podem ser evidenciadas na disputa sujeito-sociedade.
que ocorre hoje no Rio de Janeiro e, no espaço geo- Vilhena (2002) vai ao encontro dessa mesma dis-
gráfico, apresentam-se as marcas dessa disputa. Bap- cussão ao ressaltar a dimensão simbólica do lugar na
tista (2001) ilustra e analisa, com o caso das Mães da dimensão psíquica, lembrando que os sujeitos fre-
Praça de Maio6, fenômeno semelhante. Conta o autor quentemente remetem-se aos lugares que os marca-
que “as mulheres argentinas, renunciando a missão ram ao longo de suas vidas. Ela destaca que “é a partir
do conformismo a elas delegado pelo torpor do sofri- dele que é possível pensar o viver, trabalhar, formar
mento, fazem da praça o lugar atravessado por desejos laços sociais e identificar-se com os semelhantes.
e revoltas promotoras de criação” (p. 195). Tal como as Pois é a partir de um lugar [...] que falamos e somos
Mães da Praça de Maio, moradores da Indiana canali- ouvidos, respeitamos e somos respeitados, sentimo-
zaram medo e sofrimento para resistir à possibilidade -nos incluídos ou à margem” (p. 50). Dessa maneira,
de remoção desejada pela Secretaria Municipal de a autora nos convida a pensar sobre os efeitos provo-
Habitação da prefeitura. Outros exemplos se fazem cados pela desconfiança e temor ao outro, que mar-
notar, como nos emblemáticos casos de disputas na cam a convivência entre diferentes segmentos sociais
Comunidade da Vila Autódromo, Aldeia Maracanã, em nossa cidade. Ela alerta para o sofrimento experi-
dentre outros, onde nem mesmo a racionalidade neo- mentado por certos segmentos que não fazem parte
liberal, travestida com um discurso supostamente daqueles modelos identificatórios ideais e considera
desenvolvimentista para a cidade, foi capaz de silen- que “a imagem construída pelo seu meio social, nas
ciar os moradores atingidos. relações com seus próximos, com a cultura na qual o
A afetividade foi outra categoria de análise desen- sujeito se insere, é fator privilegiado da constituição
volvida por essa Psicologia Social Crítica a que temos do sujeito” (p. 52).
nos referido. Sawaia (2009), a partir das contribuições Autores como Silva e Barbosa (2005, p. 100) afir-
de Espinosa, esclarece o papel que os afetos têm em mam outra dimensão dessa relação entre subjetivi-
aumentar nossa potência de agir. A autora desen- dade e territorialidade ao definirem a cidade como
volve importantes pressupostos sobre a dialética “obra humana territorialmente impressa”. Para eles,
inclusão-exclusão através dessa categoria. Para ela: falar em sociedade é o mesmo que tratar de uma rela-
ção sujeito-território, afinal, as categorias de compre-
Perguntar por sofrimento e por felicidade no ensão do modo de vida humano são, necessariamente,
estudo da exclusão é superar a concepção de que atravessadas pela dimensão espacial. Lefebvre (2001)

6
No dia 30 de abril de 2017 completou-se 40 anos do movimento das Mães da Praça de Maio, coletivo que se iniciou em resposta à dita-
dura militar argentina frente aos inúmeros casos de desaparecimento de crianças filhas de mães ativistas (Andrade, 2017).

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Martins, E.; Pereira, F.; Salem, G.; Santos, L. G. M.; Barbosa, R. B. (2017). Psicologia, Democracia e Cidade em Disputa.

traz outros elementos para essa perspectiva de expli- para tanto, a produção da subjetividade em relação à
cação para a cidade, ressaltando que ela está entre as produção do espaço urbano. Só se pode compreender
relações dos indivíduos em grupos e a ordem deter- a relação cidade/subjetividade a partir de um movi-
minada por grandes e poderosas instituições, por um mento dialético. Para a compreensão da experiência
código jurídico, formalizado ou não. de vida de seus habitantes, é necessário pensar sobre
No entanto, mais do que demonstrar, a partir a cidade, assim como para pensar a subjetividade é
de suas concepções, uma relação entre diferentes preciso pensar o espaço.
constituições de ser e estar no mundo (ou seja, sub- Sendo assim, temos um imenso compromisso
jetivação) e a experiência urbana, os autores citados a assumir. Enquanto área de saber, a Psicologia deve
apontam para o modelo de cidade por cujo direito contribuir nas discussões sobre cidade. Em espe-
se reclama: aquele em que está garantido o direito à cial diante desse cenário de cidade que se apresenta:
produção do espaço (Harvey, 2014), que também é cidade enquanto campo em disputa, no qual ocorrem
produção de si. E nessas discussões é fundamental graves ameaças a um desenvolvimento democrático
que outro aspecto da experiência humana em socie- da gestão de bens e existências coletivas. Mas sobre
dade possa ser considerado: a democracia. Pautar a que fundamentos devem ser construídas as contribui-
lógica que rege as cidades, sua organização e gestão, ções dessa área do saber? Acredita-se naqueles defen-
é também colocar em evidência o exercício ou não de didos por Martín-Baró (1996), e outros praticantes
instrumentos democráticos. E, nesse sentido, “pensar da Psicologia da Libertação, que aposta no processo
o Rio hoje é central não só por sua importância his- conscientizador, tendo em vista que a modificação
tórica, mas porque ele é o laboratório de um modelo da realidade impõe modificações ao ser humano; que
de cidade voltada para o capital, a cidade-negócio, em a decodificação do mundo permite o conhecimento
que a gestão pública é controlada por empresas sócias sobre mecanismos de opressão e desumanização; e
da prefeitura”. Isso significa que, na sustentação desse que um novo saber sobre a realidade leva a um novo
modelo de cidade, o Estado exerce papel fundamen- saber sobre si e sobre seu coletivo.
tal, na medida em que permite a gestão das políticas Dessa forma, conclui-se que se está diante de mais
públicas pela iniciativa privada, afastando assim ao do que um campo para atuação da Psicologia. Trata-se
máximo a participação da população nas decisões de de um compromisso, que é social, ético e político, o qual,
interesse público e consequentemente a soberania portanto, não pode ser assumido de maneira neutra.
popular e a “dimensão pública da cidade enquanto Como critica Martín-Baró (1996), não se convoca a Psi-
espaço de fazer político”. cologia para intervir em mecanismos socioeconômicos,
mas sim a atuar frente aos processos subjetivos que sus-
Últimas considerações tentam e viabilizam estruturas injustas que decorrem
O espaço urbano atua em processos de produção desses mecanismos.  É preciso romper com esse lugar.
de subjetividades e enquanto psicólogas(os), ao nos O casamento entre Psicologia e democracia somente
debruçarmos sobre o ser humano, objeto de nosso ocorre quando o saber psi contribui com a formação de
estudo, devemos levar em consideração a construção uma identidade pessoal e coletiva advinda das necessi-
do espaço urbano – a qual ocorre segundo mecanis- dades reais dos grupos subalternizados. A intervenção
mos mais, menos ou quase nada democráticos – e as aqui descrita, cujos objetivos contemplam a luta e a par-
implicações desse contexto nos processos de subje- ticipação política e que é disparadora dessas reflexões
tivação. A categoria espaço é elemento imprescindí- sobre Psicologia e democracia, abarca implicações éti-
vel para a realização de uma análise da vida social, co-políticas de um fazer num momento histórico-social
reforçando o nosso compromisso político de não em que a luta pela democratização do país abrange uma
desconhecer a complexidade do humano, tomando, interferência na disputa pela cidade.

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Elisa Martins
Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Extensionista no Núcleo
Interdisciplinar de Ações para a Cidadania (NIAC-UFRJ). Bolsista Profaex.
E-mail: martinsselisa@gmail.com

Fhillipe Pereira
Graduando em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Extensionista no Núcleo
Interdisciplinar de Ações para a Cidadania (NIAC-UFRJ). Bolsista Profaex.
E-mail: fhillipepsico@gmail.com

Gabriela Salem
Psicóloga pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Voluntária no Núcleo Interdisciplinar de Ações para
a Cidadania (NIAC-UFRJ).
E-mail: salemgabriela@gmail.com

237
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 224-238.

Lucas Gabriel de Matos Santos


Graduando em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista de iniciação científica no Núcleo
Interdisciplinar de Ações para a Cidadania (NIAC-UFRJ). Bolsista CNPq.
E-mail: lucasgabrieldematos@gmail.com

Roberta Brasilino Barbosa


Psicóloga e Pós-doutoranda em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Supervisora da equipe de Psicologia do Núcleo Interdisciplinar de Ações para
Cidadania (NIAC-UFRJ). Membro da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia.
E-mail: robertabrasilino@gmail.com

Endereço para envio de correspondência:


Av. Pasteur 250 - Pavilhão Nilton Campos, 2º andar, Urca, Rio de Janeiro/RJ. CEP nº 22290-902

Recebido 30/06/2017
Reformulação 07/09/2017
Aprovado 13/09/2017

Received 06/30/2017
Reformulated 09/07/2017
Approved 09/13/2017

Recebido 30/06/2017
Reformulado 07/09/2017
Aceptado 13/09/2017

Como citar: Martins, E., Pereira, F., Salem, G., Santos, L. G. M., Barbosa, R. B.(2017). Psicologia e Democracia
em um Cenário de Cidade como Campo em Disputa. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 224-238.
https://doi.org/10.1590/1982-3703170002017

How to cite: Martins, E., Pereira, F., Salem, G., Santos, L. G. M., Barbosa, R. B (2017). Psychology and
Democracy in a Scenario of the City as a Disputed Field. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 224-238.
https://doi.org/10.1590/1982-3703170002017

Cómo citar: Martins, E., Pereira, F., Salem, G., Santos, L. G. M., Barbosa, R. B (2017). Psicología y Democracia
en un Escenario de Ciudad como Campo en Disputa. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 224-238.
https://doi.org/10.1590/1982-3703170002017

238
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 239-252.
https://doi.org/10.1590/1982-3703180002017

A Ditadura que se Perpetua: Direitos Humanos


e a Militarização da Questão Social

Ana Vládia Holanda Cruz Tatiana Minchoni


Faculdade DeVry Fanor, CE, Brasil. Universidade Federal de Santa Catarina, SC, Brasil.
Adriana Eiko Matsumoto Soraya Souza de Andrade
Universidade Federal Fluminense, RJ, Brasil. Universidade Federal do Pará, PA, Brasil.

Resumo: O presente artigo contempla um estudo teórico sobre os processos de permanência


e de alastramento no corpo social, no tocante às políticas de segurança, dos elementos que se
forjaram na história longa de nosso território brasileiro, desde a época da invasão colonial, dando
ênfase ao acirramento de suas contradições na ditadura empresarial-militar e à contradição
posta entre a militarização da questão social e a luta pela garantia dos direitos humanos na
atualidade. A partir das reflexões da criminologia crítica ou radical e da análise do papel das
ciências numa perspectiva materialista-histórico e dialética, buscou-se evidenciar os processos
de construção da figura do inimigo interno hoje qualificado como “delinquente”, bem como
os desdobramentos da constituição de processos de criminalização em determinados modos
de sociabilidade e de subjetividades. Nesse sentido, compreende-se que à Psicologia, como
ciência e profissão, cabe a tarefa de posicionar-se frente às expressões da desigualdade social
buscando desvelar as determinações históricas e a relação com a totalidade da qual emergem
tais contextos.
Palavras-chave: Ditadura, Direitos Humanos, Militarização da Questão Social.

The Dictatorship that Remains: Human Rights and


the Militarization of the Social Issue

Abstract: The present article is a theoretical study about the permanence and spread processes
in the social body, regarding the security policies, of the elements that were forged in the
long history of our Brazilian territory, from the time of the colonial invasion, emphasizing
the contradictions in the military-business dictatorship, and the contradiction between the
militarization of the social question and the struggle for the guarantee of human rights today.
From the reflections of critical or radical criminology and the analysis of the role of sciences in
a materialist-historical and dialectical perspective, this study sought to highlight the processes
of construction of the figure of the internal enemy today qualified as “delinquent”, as well as
the unfolding of the constitution of processes of criminalization in certain modes of sociability
and subjectivities. In this sense, it is understood that psychology, as a science and profession,
has the task of positioning itself before the expressions of social inequality, seeking to unveil the
historical determinations and the relation with the totality from which emerge such contexts.
Keywords: Dictatorship, Human Rights, Militarization of the Social Issue.

Disponível em www.scielo.br/pcp
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 239-252.

La Dictadura que se Perpetúa: Derechos Humanos


y la Militarización de la Cuestión Social

Resumen: El presente artículo contempla un estudio teórico sobre los procesos de permanencia
y de extensión en el cuerpo social, en lo que se refiere a las políticas de seguridad, de los
elementos que se forjaron en la larga historia de nuestro territorio brasileño, desde la época
de la invasión colonial, dando énfasis al crecimiento de sus contradicciones en la dictadura
empresarial-militar, y la contradicción entre la militarización de la cuestión social y la lucha por
la garantía de los derechos humanos en la actualidad. A partir de las reflexiones de la criminología
crítica o radical y del análisis del papel de las ciencias bajo una mirada materialista-histórica y
dialéctica, se buscó evidenciar los procesos de construcción de la figura del enemigo interno hoy
calificado como “delincuente”, así como los desdoblamientos de la constitución de procesos de
criminalización en determinados modos de sociabilidad y de subjetividades. En ese sentido, se
comprende que a la psicología, como ciencia y profesión, cabe la tarea de posicionarse frente a
las expresiones de la desigualdad social buscando desvelar las determinaciones históricas y la
relación con la totalidad de la cual emergen tales contextos.
Palabras clave: Dictadura, Derechos Humanos, Militarización de la Cuestión Social.

Os que trabalham têm medo de perder o trabalho. nismo, como políticas reproduzidas em larga escala;
Os que não trabalham têm medo de nunca do racismo autoproclamado científico com o acolhi-
encontrar trabalho. mento de Lombroso e Ferri em terreno tropical; da
Quem não tem medo da fome, tem medo da abordagem manicomial e das políticas de controle e
comida. hiperencarceramento.
Os motoristas têm medo de caminhar A República, em sua democracia de baixíssima
e os pedestres têm medo de ser atropelados. intensidade, não foi capaz de oferecer-lhe senão um
A democracia tem medo de lembrar lugar social subalternizado e uma inclusão perversa,
e a linguagem tem medo de dizer. limitada ao que é mais adequado e necessário a mais
eficiente reprodução do capital e do funcionamento da
Os civis têm medo dos militares,
ordem política em favor dos que dominam (Martins,
os militares têm medo da falta de armas,
1997). Ele ocupa, de forma precária, as funções de
as armas têm medo da falta de guerras.
menor renda e status no mundo do trabalho, mora em
Eduardo Galeano (1940/2013, p. 83)
ocupações arriscadas e afastadas pela gentrificação;
tem menos acesso à educação e à saúde; pouca repre-
sentação na política institucional e morre mais cedo.
E há quem tenha medo que o medo acabe.
Sua trajetória também pode ser contada por
Mia Couto1 meio das manifestações históricas das instituições
privativas de liberdade. Desde o contexto fundacional
A vida de um adolescente negro, no Brasil atual, do Brasil com a invasão estrangeira, os “moinhos de
encarna séculos de História. Sua vida se constitui, gastar gente” (Ribeiro, 1995) se alteraram como con-
em pleno século XXI, a partir de uma formação social sequência das opções político-econômicas das elites.
hierárquica e mantenedora de privilégios, fundada na As técnicas de tortura se modificaram: dos açoites aos
concentração de poder e riquezas pela força. Traz as choques, do pau de arara ao asfixiamento com sacos
marcas do escravismo, da clandestinidade da cultura plásticos, mas a prática continua. A história dos atu-
(d)e resistência e da repressão; da eugenia e do higie- ais Centros Educacionais – em um contexto no qual

1
Despertai Consciência (Difusor). (2013). Murar o Medo - Fala de Mia Couto na Conferência de Estoril de 2011. Recuperado de https://
www.youtube.com/watch?v=5xtgUxggt_4

240
Cruz, A. V. H.; Minchoni, T.; Matsumoto, A. E.; Andrade, S. S. (2017). Direitos Humanos e Militarização da Questão Social.

o aparato legal da Proteção Integral não foi capaz de nos coloca a tarefa de “escovar a história a contrapelo”,
modificar arraigadas concepções menoristas – é a uma vez que, deixado à própria sorte, o capitalismo
mesma da Fundação Estadual para o Bem-estar do apenas intensificará opressões e explorações, acos-
Menor (Febem), do Serviço de Assistência ao Menor sando os direitos humanos até a sua desfiguração.
(SAM), das Casas de Correção e dos Calabouços: é a A ordem pós-1989, lembra Douzinas (2011), combina
história do encarceramento no Brasil, com os mes- com maior intensidade um sistema econômico que
mos corpos enclausurados – jovens, negros, pouco gera enormes desigualdades estruturais com uma
ou nada escolarizados e ocupando com instabilidade ideologia jurídico-política que promete dignidade
as mais baixas posições no mundo do trabalho, para e equidade.
o qual têm obrigação de entrar muito cedo. “Mudou Ao percebemos historicamente a realidade enten-
a letra da lei porém não o espírito da coisa. (...) Em demos, portanto, que a segurança, erigida como prio-
suma: [são os] punidos e mal pagos” (Batista, 1990, ridade política para a manutenção da ordem, mudou
p. 36), os mesmos a ganharem o estigma mais letal já constantemente seu pretexto no decorrer do tempo (a
produzido: o de “delinquentes”. insurreição, a subversão, a proteção da propriedade, a
Essa é uma das facetas mais cruéis da mate- “ameaça comunista”, o terrorismo, o vandalismo etc.),
rialização de um direito – e de todo o aparato que o sem nunca alterar o seu propósito: governar as popu-
acompanha – desigual, no qual uns são tidos como lações (Agamben, 2014). Em seu nome, uma carta
descartáveis ou, para colocar de forma mais explícita, branca é dada para a suspensão de direitos e de liber-
“matáveis”, e outros como sujeitos dotados de plenas dades individuais e coletivas, inscrevendo o Estado no
garantias e foro privilegiado. Para uns a prática secu- paradigma da Exceção – não como forma de lidar com
lar do vigilantismo, da repressão e do controle penal; problemas e ameaças pontuais dentro de um deter-
para outros a leniência com as infrações e a proteção minado período, mas, ao contrário, como técnica per-
que estimula o elitismo intolerante. manente de governo (Agamben, 2004).
Tal divisão não se restringe ao mundo do traba- “Articular o passado historicamente significa apo-
lho ou ao acesso à justiça e aos mecanismos formais derar-se de uma lembrança tal como ela lampeja num
e informais de punição. Ela é notória na divisão espa- instante de perigo”, afirma a sexta tese de Benjamin
cial das cidades e na intensificação de sua guetização. (Löwy, 2005). É esta a faísca que nos move na escrita
As ocupações militares, colocando populações e ter- deste artigo. A atualidade de uma rarefeita democra-
ritórios inteiros sob gestão policial, tem provocado cia reflete nossa trajetória político-econômica, con-
inúmeras mortes e acirrado debates com pouco diá- centradora de poder e riquezas, e é mantida por um
logo institucional. As perguntas permanecem (“Onde aparato repressivo que se intensifica, mais recente-
está Amarildo?”, “Porque o senhor atirou em mim?”) mente, pela militarização da “questão social”, evi-
e a resposta muitas vezes tem sido a presença militar denciando a típica produção de precarização de
a controlar enterros para evitar que comoções virem condições de vida imposta pelo modo de produção
revolta massiva. capitalista à classe trabalhadora. Portanto, cabe tam-
Assim, sem compreendermos que a relação entre bém a nós, psicólogas(os), a tarefa de recuperar o indi-
o hoje e o ontem é eminentemente dialética e de per- víduo na intersecção de sua história com a história de
manências, não conseguiremos operar rupturas sig- sua sociedade (Lane, 1984), reescrevendo a trajetória
nificativas no presente. Em tempos de “pós-verdade”, coletiva pela recusa em se juntar ao cortejo do falso
vale ressaltar que o fio de sua ligação se encontra na progresso democrático.
luta de classes – classes de carne e osso, que possuem
gênero, raça/etnia, geração, orientação sexual. O estado de Exceção permanente e a
Walter Benjamin, nas suas teses Sobre o Con- militarização da “questão social”
ceito de História, apresenta a ideia de que só à huma- A política criminal, como parte estruturante
nidade redimida cabe o passado em sua inteireza. da lei e da ordem na sociabilidade do capital, é uma
Isso significa que, sem a rememoração e a reparação, chave fundamental para a interpretação dos conflitos
a emancipação não é possível e sequer os mortos de classe e raça no Brasil. Por política criminal enten-
estarão seguros. Profana-se sua luta, distorce-se sua de-se o conjunto de princípios e recomendações para
causa e banaliza-se a sua permanência. Esta leitura a reforma ou a manutenção da legislação penal e dos

241
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 239-252.

órgãos encarregados de sua aplicação (Batista, 2011), privilegiando os interesses do agronegócio em detri-
sendo os sistemas judiciário, de segurança pública e mento da preservação dos ecossistemas (contradição
penitenciário seus principais elementos constitutivos. bens tutelados versus interesses comuns).
Dentre os conhecimentos que mais influenciaram tais Os aparentes objetivos do direito penal, expressos
modificações, a criminologia, sobretudo em sua ver- através da formulação de proteção dos “interesses”,
são tradicional positivista, merece destaque por cum- “necessidades”, “valores” ou “bens jurídicos” essenciais
prir um importante papel de redefinição dos “crimi- para a existência da vida em sociedade, possuem certos
nosos”, dos crimes e das penas, alterando a legislação pressupostos ideológicos para sua aceitação, como as
e os objetivos institucionais do aparelho penal e legi- noções de unidade social (e não de divisão), de iden-
timando a ordem política e econômica estabelecida. tidade de classes (e não de contradição), de igualdade
Olhemos, portanto, mais detalhadamente sobre cada entre os componentes do corpo social (e não de desi-
um dos sistemas componentes da Política Criminal e gualdades reais, inclusive no seu acesso à justiça) e de
seus desdobramentos para a democracia no Brasil. liberdade individual (e não de exploração e opressão)
O sistema judiciário, sobre o qual, desde (Batista, 2011). Neste estudo defende-se que, em uma
Cesare Beccaria e sua obra Dos Delitos e das Penas sociedade de classes, o sistema criminal protege prio-
(1764/2006), recai a concepção de neutralidade, pre- ritariamente relações sociais, interesses e valores da
cisa antes de tudo ser desmistificado. Em geral, a his- classe dominante, ainda que aparente universalidade.
tória do direito é apresentada de forma quase autô- É do campo da Criminologia Crítica ou Radi-
noma e descolada com respeito ao contexto histórico cal que partem as análises mais contundentes sobre
de suas formulações e aos interesses econômicos e o funcionamento seletivo do sistema de justiça e da
políticos que fundamentam a criação das normas. política criminal. Em sua vertente positivista tradicio-
Segundo o professor Nilo Batista (2011), a missão nal, nascida na segunda metade do século XIX, a cri-
do direito, na perspectiva adotada hegemonicamente, minologia reforçou a idealização de um saber jurídico
seria identificada com a própria garantia das condi- neutro, puramente técnico (para não dizer científico)
ções de vida em sociedade, tendo como finalidade a e alheio às tensões da realidade social, limitando-se
defesa e a preservação dos interesses do corpo social. ao exame causal-explicativo do crime e de seus auto-
No caso do direito penal, refletido em ampla medida res. Embora a Escola Positivista tenha sofrido diver-
na justiça juvenil, seu intento seria a proteção legítima sas modificações e acumulado críticas relacionadas,
e eficaz dos bens jurídicos fundamentais do indivíduo sobretudo, ao determinismo de suas proposições,
e da coletividade. Mas deve-se perguntar: o que signi- seu modelo permanece ativo nas diversas instâncias
ficarão os “interesses do corpo social” em uma socie- da política, de modo que mesmo a produção jurí-
dade de classes, na qual os interesses em jogo são dica continua furtando-se ao exame de sua própria
estruturalmente antagônicos? Se o crime é um cons- legitimidade, dos determinantes de sua formulação
tructo social e não um ente natural ou ontológico, conceitual e do desempenho concreto das agências
“aparecido na natureza como os peixes, os abacates e encarregadas de sua aplicação. No Brasil, mais do
as esmeraldas”, como provoca Vera M. Batista (2012), que uma escola de pensamento, o positivismo crimi-
quais são os determinantes para a sua definição e, nológico constituiu-se como uma cultura que sofreu
sobretudo, para a seleção dentre o imenso quadro da continuamente atualizações e sofisticações em seus
“criminalidade” daqueles que devem ser registrados, esquemas classificatórios e hierarquizantes – a Psico-
apurados, julgados e, por fim, punidos? logia lhe sabe bem – e que continua sendo apropriado
O direito é, portanto, político, assim como a defi- pelo campo jurídico e pelo senso comum, por exem-
nição de crime e de “criminoso”. Damos três exemplos plo, na noção de “má índole” ou de “índole criminosa”,
reveladores sobre a opção política das leis: a crimina- indicando a percepção de que alguém possa ter uma
lização do aborto, permitido na França e nos Estados propensão natural ao crime. Tal como afirma Vera M.
Unidos, por exemplo, desde a década de 1970 (tutela Batista (2012),
sobre direitos sexuais e reprodutivos, a partir de deter-
minada moral); a abordagem penal sobre a produção, O positivismo não foi apenas uma maneira
o consumo e o comércio de algumas drogas (inte- de pensar, profundamente enraizada na
resses econômicos); e a frouxa legislação ambiental, intelligentsia e nas práticas sociais e políticas

242
Cruz, A. V. H.; Minchoni, T.; Matsumoto, A. E.; Andrade, S. S. (2017). Direitos Humanos e Militarização da Questão Social.

brasileiras; ele foi principalmente uma maneira com o momento histórico, olhar para seu desenvolvi-
de sentir o povo, sempre inferiorizado, patolo- mento pode nos auxiliar a compreender as variações
gizado, discriminado e, por fim, criminalizado. da política criminal, uma vez que esta mesma não
Funcionou, e funciona, como grande catalisador se concretiza tendo em vista apenas a melhor forma
da violência e da desigualdade características do de combater o crime e a violência. O uso e a rejeição
processo de incorporação da nossa margem ao de certas punições, assim como a origem e a inten-
capitalismo central (Batista, 2012, p. 48). sidade dos sistemas punitivos – nos ensinam Rus-
che e Kirchheimer (2004), Foucault (1987) e Melossi
Assim, sem questionar a construção política e Pavarini (2006) em seus diferentes enfoques –, são
do direito – “como, por que e para que se ameaçam determinados por forças sociais que correspondem
penalmente determinadas condutas e não outras, que a um dado estágio de desenvolvimento econômico:
atingem determinados interesses e não outros, com todo sistema de produção tende a descobrir formas
o resultado prático de atingir quase exclusivamente punitivas que correspondem ao estágio de suas forças
pessoas de determinada classe e não de outra” –, produtivas, resumem os autores.
ao conceber os “comportamentos desviantes” a partir Do mesmo modo, o aspecto institucional – assim
de um prisma individualizante e ao naturalizar as fun- como seu funcionamento, seja ele oficial ou não – da
ções sociais desempenhadas pela pena, a criminolo- reação ao comportamento desviante e do corres-
gia positivista cumpriu um importante papel político pondente controle social não deve ser considerado
de conservação e legitimação da ordem estabelecida como menos relevante em relação à formação de um
(Batista, 2011, p. 29). Por legitimação, com base na cri- sistema penal dado. É ele elemento fundamental da
minóloga venezuelana Lola Aniyar de Castro, enten- própria sociologia jurídico-penal, consistindo em
demos “toda forma de convalidar, autorizando, prin- sua materialização na vida social e cotidiana, ou seja,
cipalmente através da promoção do consenso social, na forma como atinge a vida concreta de sua clientela
um determinado sistema de dominação” (Castro, preferencial (Castro, 2005). Efetivamente, apenas ana-
2005, p. 43). Por seu turno, a função conservadora lisando esta unidade pode-se alcançar a função prá-
ou de controle social corresponde à produção e uti- tica do direito (Baratta, 2002).
lização de conhecimentos, táticas e estratégias para No terreno da segurança, a superlotação dos pre-
a construção da hegemonia e, em sua ameaça, para sídios e o crescimento de mortes por ações policiais
a submissão forçada daqueles que não se integram à no campo e na cidade são manifestações do mesmo
ideologia dominante. fenômeno: a militarização da “questão social”. Con-
Essa função legitimadora, historicamente, começa forme já salientou Netto (2012), “[...] a articulação
a ganhar um corpo teórico coeso e de peso com a orgânica de repressão às “classes perigosas” e assis-
Escola Liberal Clássica sobre o crime, o direito e a tencialização minimalista das políticas sociais diri-
pena, ressaltada por muitos apenas por seu aspecto gidas ao enfrentamento da ‘questão social’ constitui
filosófico, “humanista” e limitador do direito puni- uma face contemporânea da barbárie” (p. 429).
tivo em face dos excessos do Ancien Regime. Embora Compreendemos, assim, a “questão social” como
correta, tal caracterização é insuficiente com relação um conceito que expressa na aparência as condições
à formulação e, sobretudo, às aplicações e utilidades de pauperismo a que está submetida a classe traba-
da teoria Iluminista incorporada aos sistemas jurídi- lhadora a partir das condições concretas da explora-
co-penais. Ademais, ela deixa oculta a noção de tempo ção da força de trabalho, as quais vão se modificando
forjada na concepção burguesa de sociabilidade que no fio da história (Netto, 2001). Trata-se, pois, de um
acompanhou a ideologia do trabalho, tornando pos- processo de naturalização que torna a “questão social”
sível o princípio fundamental de proporcionalidade traço a priori da realidade social, tornando-se alvo de
da pena, conforme proposto por Beccaria, e a própria intervenções que visam minimizar seus efeitos, a par-
instituição da Prisão – forma especificamente bur- tir de uma ação tutelada do Estado para com a popu-
guesa de punição, na passagem ao capitalismo. lação tomada como em situação de vulnerabilidade.
Se a pena não consiste em mera consequência Nesse sentido, nos afastamos das concepções eivadas
do delito, mas compõe um sistema punitivo concreto de ideologias reformistas e conservadoras, que visam
com práticas penais específicas que variam de acordo dissertar sobre a manifestação fenomênica da produ-

243
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 239-252.

ção de desigualdades, reproduzindo multiplicidades tiplicação dos mecanismos de segurança (inclui-se,


(questões de segurança, de violência, de “criminali- aí, as balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo
dade”, entre outros) como elementos isolados e com etc.) e as reduzidas possibilidades de participação
especificidades próprias, sem qualquer relação com a política, a ponto de devermos nos perguntar se vive-
totalidade de onde emergiram. mos em sociedades que ainda podem ser qualificadas
Multifacetada, a militarização da “questão social” de democráticas ou se reduzimos nossa participação
também se expressa no “caveirão” que tudo arrasta política a um estatuto jurídico, burocratizado, que
na Maré; na abordagem criminalizante de jovens praticamente se limita à potência pífia de um voto.
negros/as; no aumento de tiroteios em áreas com Vale ressaltar que o militarismo constitui um
Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) na ordem de vasto conjunto de hábitos, interesses, ações e pen-
13.746%, passando de 13 em 2011 para 1.555 em 2016; samentos associados com o uso de armas e com a
no canto de guerra da Polícia Militar (PM) do Paraná guerra, mas que transcende aos objetivos puramente
(Eu miro na cabeça, atiro sem errar / Se munição militares (Bobbio, 1998). O militarismo também não
eu já não tiver, pancadaria vai rolar / Bate na cara, se restringe ao estatuto de determinada polícia ou
espanca até matar / Arranca a cabeça e explode ela ao espelhamento institucional do exército, mas é um
no ar / Arranca a pele e esmaga os seus ossos / Joga fenômeno que se espraia por toda a sociedade.
ele na vala e reza um Pai Nosso); na Chacina de Mes- No Brasil, antes do regime ditatorial, as PMs
sejana, com 11 mortos, em Fortaleza; na condenação encerravam um papel secundário no trato das ques-
de Rafael Braga; na perseguição a Mirian França; no tões de segurança interna. Embora já existisse a atual
Velório sem corpo de Amarildo; na política higienista separação entre as Polícias Civil e Militar, foi sobretudo
e manicomial da Cracolândia, em São Paulo. a partir de 1969, portanto no auge da repressão polí-
Eis o Estado-Centauro (Wacquant, 2001), guiado tica, que houve uma reversão nas funções das corpo-
por uma cabeça (neo)liberal e um corpo autoritário, rações, de modo que as polícias militares saíram de
que destitui direitos e aplica a doutrina do  laissez- seu aquartelamento e foram lançadas nas ruas com o
-faire em relação às desigualdades sociais e aos meca- objetivo de fazer o papel do policiamento ostensivo e
nismos que as geram, mas mostra-se brutalmente de manutenção da ordem pública (Zaverucha, 2010).
punitivo quando se trata de administrar suas conse- O treinamento e a atuação das PMs, no entanto, não
quências no nível cotidiano. Essa violência inscreve- está focado na garantia de direitos. Muito pelo contrá-
-se em uma tradição multissecular de controle pela rio, a cultura institucional é guiada por uma lógica de
força, tradição oriunda do colonialismo, fortalecida guerra que transforma as ruas em campos de batalha,
por conflitos agrários e por duas décadas de dita- criminaliza a condição de pobreza e os movimentos
dura empresarial-militar. Mais recentemente, ganha sociais e transforma questões de saúde, como o con-
força no trampolim político da bancada da bala em sumo e a dependência de drogas, em declarada Guerra.
programas policialescos, na reedição das medidas de A chamada Constituição Cidadã manteve a estru-
Tolerância Zero, apresentadas como inovação em um tura de militarização da segurança – ou seja, de ado-
verdadeiro Museu das Grandes Novidades, e com a ção e uso de modelos, conceitos, doutrinas e proce-
pressão de ruralistas e do agronegócio. dimentos militares em atividades de natureza civil
Retornando ao autor francês, para Wacquant (Cerqueira, 1998) – além de garantir a supremacia
(2003), o Estado keynesiano, cuja missão seria contra- em número de homens e poder de fogo (igualmente
por-se aos ciclos recessivos da economia de mercado, alcançada durante o período autocrático burguês)
proteger as populações mais vulneráveis e reduzir as da Polícia Militar sobre a Polícia Civil.
desigualdades mais gritantes do modo de produção Nesse sentido, o processo de desmilitarização das
e da sociabilidade capitalista, foi sucedido por um polícias – bandeira popular que ganhou maior fôlego
Estado que se pode chamar de neo-darwinista, que desde as chamadas “Jornadas de Junho”, em 2013 –
se baseia na competição, celebra a responsabilidade passa, inicial e essencialmente, por um corajoso enfren-
individual irrestrita e tem como contrapartida a irres- tamento das heranças da ditadura, presentes inclusive
ponsabilidade coletiva e, deste modo, política. em termos legais – tarefa nada fácil, vide as amplas e
Conclusão semelhante chega o teórico Agamben sintomáticas dificuldades na constituição e atuação de
(2014) ao destacar a conexão entre a crescente mul- uma efetiva Comissão da Verdade. Ademais, os legados

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Cruz, A. V. H.; Minchoni, T.; Matsumoto, A. E.; Andrade, S. S. (2017). Direitos Humanos e Militarização da Questão Social.

do autoritarismo nas instituições policiais e nas políti- mos, por meio da brutalidade e do exercício bélico.
cas de segurança precisam ser encarados não somente Não menos importante é a consideração do sofri-
na esfera prática (através da expansão dos mecanis- mento psíquico a que está sujeito o próprio profissio-
mos de controle e participação social, elaboração de nal da segurança pública, pressionado a dar respostas
uma nova abordagem que reconheça a diversidade do imediatas a um problema estrutural e difícil de ser
fenômeno da violência e não criminalize a situação efetivamente enfrentado nos marcos de uma socie-
de destituição, revitalização dos espaços públicos ao dade produtora de desigualdades.
revés da ameaça ostensiva e do domínio territorial etc.) O outro front invisível da guerra está no campo.
mas, igualmente, nos campos cultural e simbólico. Até Sequências de chacinas foram realizadas, sobretudo
hoje, para citar apenas um exemplo, a polícia militar de no Norte e Centro-oeste do Brasil, contra campesi-
São Paulo presta homenagem aos golpes militares do nos(as) e indígenas que lutam por reforma agrária
Estado Novo e de 1964 em seu brasão de armas, além e demarcação de terras para os povos originários.
das repressões ao levante de 1935 e à greve dos operá- A mais recente ocorreu em de 24 de maio de 2017:
rios de 1917, dentre outras ocorrências de contenção a nove homens e uma mulher ligados à Liga dos Cam-
manifestações populares. poneses Pobres (LCP) foram mortos na fazenda Santa
A atuação excessivamente violenta das PMs Lúcia, localizada no município de Pau d’Arco, sudeste
guarda íntima relação com a formação dos policiais e do Pará, durante ação das Polícias Civil e Militar.
a composição interna da instituição, e também deve Outras 14 pessoas foram baleadas e ficaram feridas.
ser incorporada a esse debate. Fincada nos valores da É o maior morticínio, em uma única investida, desde
disciplina e da hierarquia, a estrutura organizacio- Eldorado dos Carajás.
nal militarizada não permite aos que nela ingressam De 2007 para cá, os assassinatos motivados por
o mínimo questionamento sobre suas funções e res- disputas de terras mais que dobraram, segundo dados
ponsabilidades. Ordens não podem ser discutidas e da Comissão Pastoral da Terra (CPT). O Brasil, consi-
tradições, por vezes com fortes matizes genocidas e derado um dos países mais perigosos do mundo para
preconceituosas ao ponto de incitar pública e impu- ambientalistas, teve 58 assassinatos registrados pela
nemente os crimes de tortura e homicídio, tendem CPT em 2016 – um crescimento de 23% com relação
a ser perpetuadas. As queixas sobre as condições de aos casos registrados em 2015. Neste ano, já foram
trabalho e os dilemas éticos que porventura seus ope- contabilizadas 36 mortes por conflitos agrários.
radores enfrentem, como poderia ser o caso diante A construção da figura do inimigo delinquente –
dos protestos e reivindicações populares – “Manter a um Outro diferenciado de nós e de quem precisamos,
ordem pode ser uma missão eticamente sustentável a qualquer custo, nos proteger – foi forjada há sécu-
se a ordem real está alicerçada em uma injustiça fla- los e ainda permanece como um assustador consenso
grante?” (Rolim, 2006) –, são silenciados pela obriga- social. Ela foi primeiramente legitimada enquanto
ção da submissão e o despotismo dos oficiais. uma ideia, apresentada como necessidade e susten-
Em qualquer outro contexto laboral, a forma tada por teorias dentro de uma concepção moderna
como se concretizam cotidianamente tais princípios de Estado que amparou dominações e práticas auto-
seria caracterizada como assédio moral. No entanto, ritárias com vernizes democráticos. Virou política
o autoritarismo presente nas organizações militares pública, algumas vezes expressa (lei antiterror) outras
aumenta sensivelmente as possibilidades de adoeci- veladas (“guerra às drogas”, objeto inanimado que
mento dos policiais e propicia a reprodução da vio- leva o “caveirão” e a gestão militar para as favelas),
lência (banalizada em sua própria formação) junto à mas apresentando-se, invariavelmente, como preser-
população que deveria proteger. vação social. O massacre multissecular, portanto, foi
Mantida por meio de privilégios e punições que e é feito “em nome da segurança”, da “Defesa Social”.
compreendem a simbologia e a prática da humilha- O trabalho ideológico foi bem-feito: ainda hoje,
ção, a disciplina militar doutrina ao longo dos anos “bandidos” e “vagabundos” – independentemente
que é possível “corrigir” sujeitos através do castigo e de sua idade – não merecem direitos, pois não são
do sujeitamento forçado à autoridade – algo extrema- concebidos como humanos iguais. São vidas indig-
mente perigoso de ser reproduzido pelos detentores nas de serem vividas, pelo menos em sociedade. São
do “uso legítimo da força” quando tratados, eles mes- seres humanos privados do caráter de pessoas por um

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 239-252.

direito penal subterrâneo (Zaffaroni, 2007) que come- miséria (2001; 2003) está em demonstrar que a dire-
mora sua morte em massa. Cada corpo no chão é “um ção punitiva tomada pelas políticas penais nas socie-
a menos” numa sociedade que aprova amplamente a dades ditas avançadas a partir do final do século XX
pena de morte e a prisão perpétua2: “vagabundo não (e copiada em diferentes partes do globo, incluindo o
merece perdão”. Brasil), consiste na reedição de um governo da inse-
A maioria legitima o que, em tempos idos, era gurança social no sentido de ampliar técnicas e pro-
mais facilmente identificável como interesses de uma cedimentos destinados a dirigir a conduta daqueles
poderosa minoria. Os Direitos Humanos se distan- envolvidos na turbulência da desregulamentação
ciaram cada vez mais do conceito de humanidade e econômica neoliberal. No interior dessa proposta de
do consequente chamado à dignidade. Sua concreti- organização, a prisão assume um papel maior que se
zação esteve sujeita à definição de quem conta como traduz, para os grupos que vivem nas regiões inferio-
ser humano a ter seus direitos garantidos: os “huma- res da pirâmide social, na imposição de uma tutela
nos direitos”; demonstrando uma gigantesca lacuna severa e minuciosa.
entre o Homem abstrato das declarações e os sujei- Assim, não nos parece exagero afirmar que a estra-
tos de carne, osso e classe social. Se algum discurso tégia segregacionista da Política Criminal é parte estru-
sedicioso se propõe a resgatar seu sentido original, turante da preservação do Capital e revela, no rio de
relacionado à concepção de cidadania no contexto lama de Mariana e no rio de sangue da carne mais barata
da Revolução Francesa, é desqualificado junto com o do mercado, o que significa a Garantia da Lei e da Ordem
sujeito: defensor de bandido não merece crédito, pois no acirramento do conflito de classes do Brasil atual.
contribui com a violência, sempre atribuída ao outro.
O medo construído a partir de um inimigo
De qual democracia estamos falando?
suposto (e que, justamente por ser suposto, é ines-
A adesão subjetiva à barbárie
gotável) e invariavelmente identificado nos setores
Se, para Marx e Engels (1932/2007), é a vida que
populares, cumpriu o seu dever: a força policial, hoje,
determina a consciência a partir de suas condições
está autorizada a atuar no patamar do massacre.
concretas de existência, há de se considerar que a
O Brasil, assim como boa parte do ocidente,
crescente militarização da “questão social” e a exe-
optou por uma gestão penal da miséria e da desigual-
cução da política criminal tal qual discutida anterior-
dade. Trata-se, cada vez mais, de fortalecer o Estado
mente, associada à manipulação ideológica operada,
Penal para conter o aumento da insegurança objetiva
sobretudo, pela mídia empresarial, terá efeitos bas-
e subjetiva que é, ela mesma, causada pela incapa-
tante concretos no cotidiano da população brasileira.
cidade da intervenção estatal para reduzir os desdo-
Trata-se do entendimento do processo de constitui-
bramentos da questão social inerente ao capitalismo.
ção subjetiva que legitima, reitera e sustenta práti-
Esta alternativa se acirra com algumas particularida-
cas ditas “democráticas”, mas que efetivamente são
des a partir da entrada em cena do neoliberalismo
de segregação e extermínio, alimentadas pelo desejo
enquanto ideário político e econômico predominante.
crescente e massivo por punição.
Nos termos de Wacquant (2003, p. 32), “a mão invisível
Caldeira (1991), em uma análise minuciosa da
do mercado encontra seu prolongamento ideológico
transformação do discurso dos Direitos Humanos em
e seu complemento institucional no ‘punho de ferro’
“privilégio de bandidos” no estado de São Paulo, evi-
do Estado penal”, que por sua vez se materializa em
dencia como a mídia empresarial, via meios de comu-
práticas de criminalização da pobreza e no reforta-
nicação de massa, inculcou uma relação direta e cau-
lecimento das medidas de disciplina e controle dire-
sal entre a democracia e o aumento da criminalidade.
cionadas para aqueles que são as principais vítimas
Esse processo se iniciou nos períodos de transição e
da violência, embora tomados como seus exclusivos
reabertura democrática na década de 1980, mesma
algozes: adolescentes e jovens pobres, negros e mora-
época em que os índices de violência na cidade de São
dores das periferias urbanas.
Paulo chegaram a níveis alarmantes e se ensaiava a
A principal proposição de Wacquant nas duas
tentativa de humanização de presídios e de reforma
obras em que trata da “nova” governabilidade da
da polícia. Nesse contexto, as notícias destacadas roti-

2
http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,no-brasil-46-aceitam-pena-de-morte-e-51-prisao-perpetua,787757

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Cruz, A. V. H.; Minchoni, T.; Matsumoto, A. E.; Andrade, S. S. (2017). Direitos Humanos e Militarização da Questão Social.

neiramente pelos programas de rádio, enfatizavam o mente pessoas a quem se destina o estigma de “ban-
aumento da criminalidade em função da diminuição didos” ou “vagabundos”, incitando e demandando
do poder de ação da polícia militar após o fim da dita- coletivamente o castigo e a punição. Esse julgamento
dura, hiperdimensionando episódios de violência, se efetiva com ações cotidianas que se relacionam
retratados como verdadeiras carnificinas como se fos- com o impacto que o discurso midiático tem na vida
sem a regra do cotidiano das cidades. da população, a exemplo do aumento de episódios
Essa estratégia de imposição do medo à popula- de justiçamento nas semanas seguintes à ampla difu-
ção torna-se tão mais sofisticada quanto cruel quando são do discurso da jornalista Rachel Sheherazade,
se atualiza nos programas televisivos. Com o recurso em 20143. Ou ainda se desmembra em um clamor
da imagem, diversos programas, e especialmente pelo encarceramento em massa, associando segu-
os policialescos, não só narram episódios isolados e rança pública com o aumento do número de prisões.
grotescos de violência como exploram imagens san- Não é demais destacar que 57% da população brasi-
guinolentas, investindo incisivamente em uma via leira concorda com a frase “bandido bom é bandido
de mão dupla: por um lado, na criação da sensação morto”, e que o “país da impunidade” possui a quarta
de que a próxima pessoa a experienciar a violência maior população carcerária do mundo; sendo que, ao
será o expectador, sempre na condição de vítima; e contrário dos EUA e da Rússia, que ocupam respec-
por outro, na da pessoa exposta ali como criminosa, tivamente, a primeira e a terceira posições – e para
configurando-a como inimiga, “lixo da humanidade”. os quais há dados mais consolidados –, nossa taxa
Ambos investimentos terão consequências desastro- de encarceramento permanece em ascensão sob o
sas, sobretudo para as pessoas que são alvo preferen- aplauso entusiasmado de amplos setores.
cial e histórico da política criminal. Em paralelo a isso, destaca-se o risco em que
O estereótipo do “bandido” que está nas bordas se encontram as pessoas “dignas e honestas”, bem
da humanidade, alheio a sentimentos de compai- como suas famílias, consideradas “cidadãos de bem”.
xão, piedade e que, portanto, executa “crimes cruéis”, Essa dualidade foi construída e enfatizada, corrobo-
é endossada constantemente pelos meios de comuni- rada por discursos de agentes da segurança pública
cação de massa (Batista, 2012), atualizando uma vez que afirmavam a ameaça a que estava submetida a
mais as concepções lombrosianas sobre o “homem população em um momento de mudança social, pro-
delinquente”: se originalmente esta teoria apregoava vocando a sensação de insegurança. Permanecemos,
que o criminoso traria organicamente, por atavismo destarte, diante de uma atuação estatal, midiatica-
ou hereditariedade, a reminiscência de comporta- mente explorada e socialmente legitimada, que repro-
mentos adquiridos durante a evolução psicofisioló- duz tradições e valores que rejeitam “visceralmente a
gica (em sua obra são constantemente comparados noção de direitos universais e divide binariamente os
com “bárbaros” e “selvagens”), possuindo uma ten- seres humanos em ‘cidadãos de bem’ (ou ‘cidadãos’
dência inata para o crime e com características espe- tout court) e ‘não-cidadãos’”. Num gradiente de auto-
cialmente reveladoras de sua delinquência (ânimo ritarismo, sustentado pelo argumento da necessidade
violento, espírito vingativo, vaidade instintiva, insen- de segurança, “essa moral binária (...) oferece suporte
sibilidade ou tolerância a dor, ausência do sentimento à continuidade das práticas policiais ilegais, em nome
de compaixão ou indiferença pela desgraça alheia, da pretensa necessidade de se travar uma ‘guerra’ sem
preguiça e apreço à ociosidade, insensibilidade moral, trégua, por todos os meios, contra o crime e a desor-
tendências obscenas ou “forma monstruosa de amor dem” (Lemgruber, Musumeci, & Cano, 2003, p. 55).
sexual” etc.), hoje esta visão reverbera no próprio Ademais, a criação da figura do “cidadão de bem”
conceito de criminalização, entendida como a con- foi também bastante útil para desarticular a luta em
denação antecipada de pessoas por questões físicas, prol dos mínimos direitos para a população prisional.
sociais, econômicas e/ou geográficas que suposta- De acordo com Caldeira (1991), a direita se utilizou da
mente revelariam a sua periculosidade. equiparação entre direitos civis individuais à noção
Usando o medo como metodologia, a mídia pro- de privilégios, investindo no argumento de que se
paga um senso comum criminológico que julga feroz- queria transformar prisões em hotéis luxuosos e dar

3
Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) (Produtor). (2014). Telejornal SBT Brasil - 4 de fevereiro de 2014 - 1º bloco. [Vídeo]. Recuperado de
https://www.youtube.com/watch?v=yxSr0ht8vgM

247
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 239-252.

boa vida aos “bandidos”, que zombariam das pessoas nistas. Ao mesmo tempo em que se verifica a expansão
que lutam para sobreviver “de forma honesta”. Tais populacional em centros urbanos e o desenvolvimento
elementos contribuíram para equiparar a luta pelos do comércio e da indústria, surge um novo projeto
direitos à “privilégio de bandido”, quando a realidade de Nação especialmente empenhado em fortalecer o
do sistema prisional brasileiro é assustadoramente Estado e moralizar as famílias, sobretudo através da
oposta a qualquer privilégio. imposição do trabalho assalariado.
No campo psi, Martín-Baró (1990), em Psicología
social de la guerra, apontava para as características
A Psicologia que não teme tomar partido:
psicossociais de contextos de conflitos declarados, provocações necessárias
ao analisar a condição de El Salvador. Nesse sentido, Após 55 anos da promulgação da Lei no 4.119/1962
podemos articular tais apontamentos com as questões (Brasil, 1962), que regulamenta a profissão da Psico-
aqui apresentadas ao analisar as permanências da dita- logia no Brasil, muitos foram os desdobramentos de
dura nas políticas de segurança e sua disseminação no nossa ciência e profissão que merecem destaques
corpo social a partir dos elementos tratados por Baró, ao analisarmos o contexto político-social brasileiro
tais como: processos de militarização da vida cotidiana e as convocações históricas a que a Psicologia bus-
e “das mentes”, a veiculação de mentiras instituciona- cou responder nesse período. Constituída como uma
lizadas a partir das expressões midiáticas da ideolo- profissão que tem como função privativa a utilização
gia dominante, e a cristalização das relações sociais, de métodos e técnicas psicológicas com objetivos de
redundando numa polarização social, a qual deter- diagnóstico psicológico, de orientação e seleção pro-
mina quais são os sujeitos que devem ser encarcerados, fissional, de orientação psicopedagógica e de solução
exterminados, aniquilados da sociedade. de problemas de ajustamento, conforme descrito no
Desse modo, os estereótipos forjados sob medida texto legal, a história de nossa profissão expressa tam-
para legitimar a execução da política criminal no bém as conflitivas sociais determinantes na relação
Estado Democrático de Direito, associados aos dis- com as demandas frente às desigualdades vividas pela
cursos contra os direitos humanos, escamoteiam os maioria da população brasileira.
interesses de classe aí contidos: a manutenção dos Nesse contexto, discorrer sobre o compromisso
privilégios da elite brasileira. Em um contexto nacio- ético-político de nossa profissão, em verdade, signi-
nal de expansão dos direitos, a partir da conquista das fica analisar as contradições postas no desenvolvi-
lutas populares e dos movimentos sociais na década mento do Estado Brasileiro, buscando compreender a
de 1980, o crime se torna justamente um meio de arti- Psicologia como um conjunto de contribuições socio-
cular discursos contra os direitos, sobretudo, de pes- técnicas inseridas na totalidade das relações sociais,
soas empobrecidas, amparado na noção de periculo- e que tem, desde o seu surgimento, produzido respos-
sidade e propensão para o crime, herdada das teorias tas e posicionamentos diante das demandas que lhe
e práticas higienistas e eugênicas. são apresentadas. Tais contribuições denotam deter-
A semelhança com outros períodos de nossa his- minados compromissos e objetivos, os quais são fun-
tória não é mera coincidência. No contexto de conso- damentais para compreendermos o movimento cons-
lidação da República, no final do século XIX e início tante de construção de suas teorias e práticas.
do século XX, a valoração positiva do trabalho após De forma hegemônica, a Psicologia desenvolveu-se
séculos de regime escravagista ganha contornos parti- pautada na construção de técnicas e métodos, por
culares na conjuntura nacional, articulado aos ideários meio das bases teóricas, mormente importadas de
positivista, de “ordem” e “progresso”, e à eugenia, arti- outros países e oriundas de outros contextos sociais,
culada ao conceito de degenerescência. O que estava com o intuito primordial de fazer valer a promoção
em jogo, portanto, não era “somente” a construção de de “ajustamentos de conduta”. Foi assim nas escolas,
um novo regime político e econômico, mas igualmente nas fábricas e empresas, nas instituições assistenciais,
a conservação e justificação de uma hierarquia social na relação com a justiça e, ainda mais enfaticamente,
arraigada. Assim, tem início o regime republicano, em nos espaços privados das clínicas psicológicas.
meio às grandes transformações políticas, econômicas A legitimação de constructo teórico expresso pelos
e sociais geradas, dentre outros fatores, pela abolição contornos de uma individualidade destacada das rela-
do regime escravocrata e pela ação dos médicos higie- ções sociais é condição fundamental para o desenvol-

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Cruz, A. V. H.; Minchoni, T.; Matsumoto, A. E.; Andrade, S. S. (2017). Direitos Humanos e Militarização da Questão Social.

vimento de processos de controle, disciplina e pretenso colonização, de extermínio de seus povos originários,
apaziguamento dos sujeitos frente aos conflitos sociais de escravização, de desigualdades sociais, guerras
vivenciados, escamoteando-se, assim, a processuali- civis, militarismo e ditaduras civis-militares finan-
dade e o movimento dialético da constituição de indi- ciadas pelo imperialismo estadunidense como tática
vidualidade. A validação de traços de personalidade, para a expansão do capitalismo entre os países sub-
a predominância do foco na doença, esta fundamen- desenvolvidos. Muito recentemente, esta história está
talmente de responsabilidade de cada sujeito, a elabo- pautada por um frágil processo de uma “abertura
ração de crivos para marcadores sociais de diferença, democrática” em vários de seus países, baseado em
traduzidos em características individuais naturais, e uma débil emancipação política como corolário de
a produção teórica sobre o que deve ser considerado uma pretensa conquista de cidadania burguesa. Con-
normal, foram constituindo a prática dominante da flitos agrários, precarização do trabalho, baixo índice
Psicologia desde seu surgimento. Nossa ciência e pro- de desenvolvimento humano (IDH), desintegração
fissão foi peça importante, nesses termos, para a ins- de recursos naturais, ações policialescas e políticas
tauração e manutenção do capitalismo e isto deve ser neoliberais dão o tom de muitas das contradições
posto em análise, sob pena de reproduzirmos discur- atuais que ainda vivenciamos em nosso território
sos meramente alegóricos sobre nosso papel. latino-americano. A partir do desenvolvimento do
Como Martín-Baró (1997) já nos ensinou, a Psi- trabalho assim chamado livre no território brasileiro,
cologia ainda tem permanecido numa relação servil temos que necessariamente discutir as dimensões e
em relação aos interesses dominantes, bem como contradições no mundo do trabalho, além do deter-
à apropriação colonizada de teorizações, no levan- minante fundante de classe social, também a partir
tamento de questões e de produção de respostas, também dos recortes raciais e de gênero. Nesse sen-
como distante e alheia aos anseios sociais dos povos tido, cabe-nos destacar que o racismo e o machismo
latino-americanos. Um dos vieses colonizadores tem incidem sobre a precarização do trabalho, pois há o
sido a tendência ao “psicologismo” como gabarito desenvolvimento de justificativas ideológicas para a
para a compreensão de complexos problemas sociais mão de obra negra e feminina ser superexplorada a
encarnados dialética e contraditoriamente nas histó- partir do desenvolvimento do capitalismo.
rias de vidas de sujeitos singulares. Dessa forma, para analisarmos a relação do
Löwy (1994), inspirado por Rosa Luxemburgo, desenvolvimento da Psicologia como ciência e profis-
apresenta a metáfora do mirante para nos dizer que são e o da história do Brasil, nessa perspectiva, há que
há uma relação intrínseca entre a posição social do se rechaçar, portanto, as concepções que visam à har-
pesquisador (e podemos dizer de todo profissional) monização da formação social brasileira, escamote-
e seu horizonte de visibilidade do movimento do ando as raízes da violência trans-históricas pautadas
real, a qual se desdobra na definição de um “ponto pelo racismo e pelo patriarcalismo que fundaram a
de vista” que não tem interesse em escamotear a rea- ideia de “Brasil Moderno”.
lidade (produzindo e reproduzindo a mistificação) Resgatamos aqui o sentido do compromisso
e que dá condições de se vislumbrar as múltiplas ético-político de nossa profissão, calcado na radi-
determinações do objeto a ser estudado (e a realidade calidade da compreensão dos determinantes
da intervenção). A visão de mundo e concepção de ser histórico-sociais a que estão submetidos os povos
humano do pesquisador – e porque não, da(o) psicó- latino-americanos, a partir da especificidade de como
loga(o)? –, portanto, são elementos que precisam ser isso se desdobra em nosso país. Há que se partir das
explicitados nesse processo de produção de conheci- vozes das resistências, dos enfrentamentos e das trans-
mento e não são estranhas ao estatuto da ciência ou formações realizadas no interior de nossa prática pro-
da práxis profissional. Dessa forma, cabe-nos inda- fissional em diálogo com os coletivos e grupos atendi-
gar: sob qual mirante nos assentamos para conhecer dos em sua história de lutas, confrontos e insurgências.
aqueles que atendemos e para desenvolver e realizar Cabe-nos falar, nesse contexto, partir de uma Psicologia
as práticas psicológicas? que se pretende indisciplinada, por não se pautar pela
Como já pontuado anteriormente, a história da disciplinarização dos sujeitos, e de libertação/emanci-
América Latina é recheada de episódios de violên- pação humana para produzirmos formas de cuidado e
cia, de dominação e opressão, histórias de invasão e de intervenção voltada à nossa população.

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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 239-252.

Considerações finais com os direitos humanos, a tarefa de uma crítica radi-


A história não é linear e nem se desenvolve neces- cal ao modelo criminalizante.
sariamente no sentido do progresso emancipatório Nesse sentido, talvez a primeira e mais difícil
da humanidade. As diferentes concepções se interpe- tarefa seja abandonar a ideia de que direitos são sinô-
netram e se atualizam, as múltiplas e contraditórias nimo de justiça e, sobretudo, abandonar a fé no poder
determinações concretas dos modos de produzir e punitivo para a resolução de conflitos. Isso significa
reproduzir a vida se inter-relacionam. À inferioridade repensar o modo como temos abordado opressões
jurídica e biológica, inicialmente atestada “cientifica- históricas, uma vez que a crítica, mesmo quando acer-
mente”, soma-se à social. Sua desconstrução, na teo- tada, não tem contribuído em ações para a resolução
ria, não se desdobrou numa desconstrução prática. ou superação da realidade posta, muitas vezes, inclu-
O estereotipo do delinquente, ainda hoje sinto- sive, utilizando-se de argumentos que reverberam na
maticamente chamado “vagabundo”, ganha novos ampliação da criminalização e do encarceramento.
ares: um jovem negro, morador da favela, próximo O problema comum da criminologia tradicio-
ao tráfico de drogas, de boné, cordões e “portador de nal está na necessidade de ordem numa perspectiva
algum sinal de orgulho ou de poder e nenhum sinal de de luta de classes. É essa ligação com o fio condutor
resignação ao desolador cenário de miséria e fome que da história – a luta de classes – que não podemos
o circunda” (Zaccone, 2013, p. 21). Este sujeito/objeto perder de vista. Como afirma Batista (2012, p. 22),
forjado pela teoria criminológica só pode ser compre- “ela nunca foi tão visível e palpável como na dura
endido se atentarmos para a demanda por ordem em conflitividade social do dia a dia do capitalismo de
cada momento histórico. barbárie: garotos morrendo ou matando por um
As contradições sociais necessitam ser adminis- boné de marca”. Qualquer proposta que vislumbre
tradas, de uma forma ou de outra, pelo Estado bur- a redução da letalidade do sistema penal em nosso
guês. No caso dos setores mais precarizados, sua ação país deve incluir, portanto, a contenção do poder
tem forte viés punitivo e coercitivo, sentido com par- punitivo. E à Psicologia está posto o desafio de
ticular violência por crianças e jovens. Tal realidade revisitar-se, com vistas a ampliar suas contribuições
impõe, àqueles que possuem algum compromisso possíveis nessa empreitada.

Referências

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Ana Vládia Holanda Cruz


Doutora e Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal – RN. Brasil.
Professora da Faculdade DeVry Fanor, Fortaleza – CE. Brasil.
E-mail: anavladiahc@gmail.com

251
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 239-252.

Tatiana Minchoni
Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal – RN. Brasil. Doutoranda do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis – SC.
Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Brasil.
E-mail: minchoni.tatiana@gmail.com

Adriana Eiko Matsumoto


Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo – SP. Brasil.
Professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), Volta Redonda – RJ. Brasil.
E-mail: drieiko@hotmail.com

Soraya Souza de Andrade


Doutora em Ciências do Desenvolvimento Socioambiental pela Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém, PA. Brasil.
E-mail: soraya.souzandrade@gmail.com

Endereço para envio de correspondência:


Soraya Souza de Andrade
QI 20, conjunto B, casa 114, Guará I. CEP: 71015-026.
Brasília – DF. Brasil.

Recebido 30/06/2017
Reformulação 15/09/2017
Aprovado 25/09/2017

Received 06/30/2017
Reformulated 09/15/2017
Approved 09/25/2017

Recebido 30/06/2017
Reformulado 15/09/2017
Aceptado 25/09/2017

Como citar: Cruz, A. V. H., Minchoni, T., Matsumoto, A. E., & Andrade, S. S. (2017 ). A ditadura que se perpetua:
direitos humanos e a militarização da questão social. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 239-252.
https://doi.org/10.1590/1982-3703180002017

How to cite: Cruz, A. V. H., Minchoni, T., Matsumoto, A. E., & Andrade, S. S. (2017). The dictatorship that
remains: human rights and the militarization of the social issue. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 239-252.
https://doi.org/10.1590/1982-3703180002017

Cómo citar: Cruz, A. V. H., Minchoni, T., Matsumoto, A. E., & Andrade, S. S. (2017). La dictadura que se perpetúa:
derechos humanos y la militarización de la cuestión social. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 239-252.
https://doi.org/10.1590/1982-3703180002017

252
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1. Estudo teórico - discussão de problemas fundamentados teoricamente, envolvendo reflexão crítica e indicação
de avanços científicos no estado da arte a ele associado. É necessário conter: resumo, introdução, método, discus-
são, conclusão ou considerações finais e referências. Devem ser escritos entre 20 e 25 laudas, não considerando
resumos e referências;

2. Relato de pesquisa – investigação original, de relevância científica, baseada em estado da arte e dados empí-
ricos, lastreada em metodologia específica e discussão. É importante que seja explicitada a contribuição da
pesquisa para a produção do conhecimento em Psicologia. É necessário conter: resumo, introdução, método,
resultados, discussão, conclusão ou considerações finais e referências. Devem ser escritos entre 20 e 25 laudas,
não considerando resumos e referências;

3. Relato de experiência - relato de experiência relacionados à intervenção profissional, de interesse e relevância cien-
tífica e social para as diferentes áreas do conhecimento psicológico, e que demonstrem contribuições para a melhoria
de práticas profissionais em Psicologia. É necessário conter: resumo, introdução, método, discussão, conclusão ou
considerações finais e referências. Devem ser escritos entre 15 e 20 laudas, não considerando resumos e referências.

Critérios gerais para avaliação dos manuscritos

1) Os trabalhos enviados devem ser redigidos em português, em inglês ou em espanhol e, obrigatoriamente


com resumo, abstract e resumen;

2) Espaço duplo, fonte Times New Roman, tamanho 12, margens de 2,54 centímetros, texto alinhado à esquerda;

3) Textos devem ser submetidos em extensão .doc ou .docx;

4) Tabelas e figuras (gráficos e imagens) devem constar no corpo de texto, mas necessariamente em formato editável;

5) As páginas não devem ser numeradas;

6) O título deve ser centralizado, em negrito e conter letras maiúsculas e minúsculas;

7) O título deve explicitar o(s) fenômeno(s) estudado(s) e a relação com o contexto de investigação;

8) O resumo deve ater-se às informações relevantes do manuscrito, destacando o contexto teórico do estudo,
objetivo, método, resultados, discussão e conclusão. Manuscritos de revisão sistemática ou teóricos devem explicitar
a perspectiva adotada e as contribuições ou avanços produzidos pela pesquisa no campo da Psicologia. De 150
a 250 palavras, e de 3 a 5 palavras-chave em cada um dos resumos;

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9) A introdução deve destacar o estado da arte, propósitos e objetivos e potencial contribuição da investigação
na área de conhecimento considerada;

10) O método deve salientar o delineamento e os procedimentos de pesquisa e, principalmente, no caso das
pesquisas empíricas, especificar o contexto, participantes, variáveis ou categorias estudadas, instrumentos de
coleta de dados, análise dos dados sistematizados e discussão;

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1) Carta ao Editor

Os autores devem dar ciência da sua concordância com a publicação do manuscrito à Revista Psicologia: Ciência
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Justificar a relevância científica e social;

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em outro meio de divulgação científica;

Declarar que os procedimentos éticos de pesquisa exigidos pela legislação vigente (Resolução 466/2012) foram
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ência, é necessário apresentar o respectivo parecer do Comitê de Ética da Universidade/Instituição ou Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido no caso de estudo individual/grupal;

Autorizar o início do processo editorial do manuscrito;

Indicar a área de conhecimento a qual o manuscrito pertence de acordo com a tabela do CNPQ.

Somente serão avaliados manuscritos submetidos à Revista Psicologia: Ciência e Profissão via Plataforma SciELO.

2) Folha de Rosto

A folha de rosto deverá ser enviada via Plataforma SciELO como “Documento Suplementar”, contendo:

• Título em português (máximo de 12 palavras);

• Título em inglês;

• Título em espanhol;

254 | psicologia: ciência e profissão


• Nome, titulação e afiliação institucional e/ou profissional, por extenso, de cada um dos autores;

• Nomes dos autores como devem aparecer em citações;

• Endereço de correspondência do(a) autor(a) com o qual a Revista poderá se corresponder (recomendamos
que sejam utilizados endereços institucionais);

• Agradecimentos e observações, quando pertinentes.

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Lista dos pareceristas do número temático “Psicologia e democracia”

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