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ANTONIO CANDIDO

É curioso que no temário deste encon- diz Mário de Andrade no "Noturno de


tro o único País expressamente referido Belo Horizonte", referindo-se à unidade
seja o Brasil. Os outros tópicos aludem, da América Portuguesa e aos atuais Esta-
de modo explícito ou implícito, a uma to- dos brasileiros. Ora, alguns destes Esta-
talidade de nações que integram a reali- dos, e por vezes grupos deles, quiseram
dade cultural chamada "latino-america- formar países independentes, como a
na". Se apenas a respeito de uma delas Confederação do Equador (1824) e a Re-
houve necessidade de especificar, é por- pública de Piratini (1835-1845), para
que há problemas a respeito. mencionar apenas duas tentativas impor-
Pelo mundo afora, quando se mencio- tantes que desencadearam guerras inter-
na a "nova narrativa latino-americana", nas.
pensa-se quase exclusivamente na produ- Uma pergunta talvez gratuita, mas cu-
ção deveras impressionante de todos os riosa, é a seguinte: se essas repúblicas ti-
autores espalhados em todos os países da vessem subsistido, haveria hoje três litera-
América que falam a língua espanhola, turas de língua portuguesa na América?
isto é, dezenove, se não estou enganado. A Confederação do Equador correspondia
Uma unidade compósita, maciça e pode- quase exatamente à nossa atual região
rosa, em face da qual, num segundo mo- Nordeste, que sempre teve uma produção
mento, lembra-se que existe uma unida- literária bastante própria, culminando no
de simples que fala português e é preciso século XX por um poderoso romance re-
incluir, para completar o panorama. E en- gionalista. A República de Piratini equi-
tão se juntam alguns nomes, em geral valia ao Rio Grande do Sul, cuja produ-
Guimarães Rosa e Clarice Lispector. ção também possui traços característicos,
A mesma coisa acontece no Brasil, on- que por vezes a aproximam mais da litera-
de, quando se menciona a referida narra- tura gauchesca rio-platense que do ro-
tiva, pensa-se na produção dos nossos pa- mance urbano do Rio de Janeiro.
rentes de idioma espanhol, em geral com No decênio de 1870, um escritor nor-
um senso unificador e mesmo simplifica- destino, Franklin Távora, defendeu a tese
dor que permite considerar como aspectos de que no Brasil havia duas literaturas in-
do mesmo fenômeno o mexicano Rulfo, o dependentes dentro da mesma língua:
colombiano García Márquez, o peruano uma do Norte e outra do Sul, regiões se-
Arguedas, o paraguaio Roa Bastos, o ar- gundo ele muito diferentes por formação
gentino Cortázar, considerando-se os nos- histórica, composição étnica, costumes,
sos próprios escritores como caso à parte, modismos lingüísticos, etc. Por isso, deu
que só depois de alguma reflexão a gente aos romances que publicou o título geral
se esforça por integrar no conjunto. de Literatura do Norte. Em nossos dias,
A Espanha estilhaçou-se numa poei- um escritor do Rio Grande do Sul, Viana
ra de nações americanas Moog, procurou mostrar com bastante
Mas sobre o tronco sonoro da língua engenho que no Brasil há em verdade li-
do ão teraturas setoriais diversas, refletindo as
Portugal reuniu vinte e duas orquí- características regionais. Pode-se então
deas desiguais, pensar que, caso o Brasil se houvesse tor-
OS BRASILEIROS E A LITERATURA LATINO-AMERICANA

nado uma pluralidade de países falando Estados Unidos, desde a poesia de revolta e
português, haveria hoje algumas literatu- a técnica do romance até os inculcamentos
ras nacionais nesta língua, formando ante da T.V., que importa, de modo maciço,
o bloco hispânico um conjunto compósito uma violência ficcional, correspondente à
de maior peso, que suscitaria no plano in- violência real não apenas da metrópole,
ternacional problemas diferentes de ava- mas de todos nós, seus satélites.
liação e classificação. Assim, no passado e no presente, mui-
Mas a realidade é a que ficou indicada tos elementos comuns permitem refletir
no começo e se reflete no temário do en- sobre a cultura e a literatura da América
contro, cujo pressuposto é a existência de Latina como "um conjunto". Parafra-
traços comuns às literaturas ibéricas da seando Mário de Andrade — sobre o
América Latina = 19 + 1. Esses traços se- tronco dos idiomas ibéricos a anamorfose
riam naturalmente devidos ao fato de os imperialista criou vinte orquídeas san-
nossos países terem sido colonizados pelas grentas, desiguais entre si, mas sobretudo
duas monarquias da Península, cujas afi- em relação a ele.
nidades eram notórias; ao fato de terem Por isso, o caso do Brasil pode ser anali-
conhecido a escravidão como regime de sado nesse contexto. Só que convém ex-
trabalho; a monocultura e a mineração plicar com detalhe as raízes das tendên-
como atividade econômica; de passarem, cias atuais, remontando no passado mais
em geral, por um processo amplo de mes- do que seria preciso para as literaturas de
tiçamento com povos chamados "de língua espanhola, bem mais conhecidas e
cor"; de terem produzido uma elite de atuantes. E antes de terminar este prólo-
"crioulos" que dirigiu o processo de in- go, quero registrar as posições antagônicas
dependência em períodos sensivelmente de dois textos brasileiros contemporâ-
paralelos, e depois o capitalizou em bene- neos. A primeira, num trecho do conto
fício próprio, a fim de manter intacto, ou "Intestino grosso", de Rubem Fonseca:
quase, o estatuto econômico e social. "Existe uma literatura latino-ameri-
Com efeito, trata-se de condiciona- cana?"
mentos com bastante analogia, quando "Não me faça rir. Não existe nem
vistos em grosso. A isso se deve juntar, no mesmo uma literatura brasileira,
plano literário, a imitação de tendências com semelhança de estrutura, estilo,
européias, sobretudo francesas, que se caracterização, ou lá o que seja. Exis-
misturaram às das metrópoles e ajudaram tem pessoas escrevendo na mesma
a estabelecer uma certa autonomia em re- língua, em português, o que já é
lação a elas. Por toda a América Latina, a muito e tudo. Eu nada tenho com
França foi um fator de unificação, alie- Guimarães Rosa, estou escrevendo
nante mas distintivo. sobre pessoas empilhadas na cidade
Nos nossos dias, aparecem outros traços enquanto os tecnocratas afiam o ara-
para dar certa fisionomia comum, como, me farpado".
por exemplo, a urbanização acelerada e E agora Roberto Drummond, numa
desumana, devida a um processo indus- entrevista com o editor Granville Ponce:
trial com características análogas, moti- “Acho que nós, de cultura latino-
vando a transformação das populações ru- americana, não temos que ser sucur-
rais em massas miseráveis e marginaliza- sal de um movimento de Nova Ior-
das, despojadas de seus usos estabilizado- que ou de Londres. Nós temos con-
res e submetidas à neurose do consumo, dições de ditar. E o que a literatura
inviável devido às suas condições econô- latino-americana tá fazendo, pois
micas. Pairando sobre tudo o capitalismo hoje você encontra americano imi-
predatório das imensas multinacionais, tando Borges".
que às vezes parecem mais fortes do que São alternativas que existem não ape-
os Governos dos seus países, nos transfor- nas na consciência dos ficcionistas, mas na
mando (salvo Cuba) em um novo tipo de dos críticos e do público. E preciso não as
colônias regidas por Governos militares perder de vista.
ou militarizados, mais capazes de garantir
os interesses internacionais e os das classes Universal e regional
dominantes locais.
No campo cultural, ocorre em todos os Se as primitivas capitanias portuguesas
nossos países a influência avassaladora dos da América formaram afinal um só País
NOVOS ESTUDOS N.º 1
— de acordo com as convenções, houve e dissolver as forças centrífugas, estendendo
há apenas uma literatura de língua portu- sobre o País uma espécie de linguagem
guesa neste continente. Mas por isso mes- culta comum a todos, e a todos dirigida: a
mo, as diferenças locais se exprimiram linguagem que procura dar conta dos pro-
com intensidade no regionalismo, que blemas que são de todos os homens em to-
quem sabe corresponde em parte a litera- dos os lugares, na moldura de costumes da
turas nacionais atrofiadas, embora signifi- civilização dominante, que contrabalança
que, no plano geral unificador, uma pro- o particular de cada zona.
cura dos elementos específicos da nacio- Este segundo processo alcança precoce-
nalidade. mente um auge com Machado de Assis,
No começo do período independente, que de certo contribuiu para que o regio-
que coincidiu com o Romantismo, esse nalismo ficasse na ficção brasileira como
elemento de identificação e comunhão foi opção secundária, ao trazer para o primei-
o Indianismo, que apresentava o habitan- ro plano o homem existente no substrato
te original do País como uma espécie de dos homens de cada país, região, povoa-
antepassado mítico, oposto ao coloniza- do. O amadurecimento promovido por
dor. Pouco depois surgiu o regionalismo Machado foi decisivo e cheio de conse-
na ficção, assinalando as peculiaridades qüências futuras, porque ele não apenas
locais e mostrando cada uma delas como consolidou com maestria uma opção te-
outras tantas maneiras de ser brasileiro. mática, mas se interessou por técnicas
Por estarem organicamente vinculadas à narrativas que eram heterodoxas e pode-
terra, e pressuporem a descrição de um riam ter sido inovadoras. Além disso, teve
certo isolamento cultural, tais peculiari- consciência crítica da sua posição sem pre-
dades pareciam representar melhor o País conceitos provincianos, como se vê no fa-
do que os costumes e a linguagem das ci- moso artigo "Instinto de Nacionalida-
dades, marcadas pela constante influência de", de 1873.
estrangeira. Estas considerações aparentemente in-
Essa linhagem especificadora percorre a tempestivas são feitas com o intuito de
história da nossa literatura com momen- lembrar que na ficção brasileira o regio-
tos de maior ou menor importância e sig- nal, o pitoresco campestre, o peculiar que
nificado. No século XIX teve um impor- destaca e isola, nunca foi elemento cen-
tante sentido social de reconhecimento do tral e decisivo; que desde cedo houve nela
País. No começo do século XX, sob o no- uma certa opção estética pelas formas ur-
me de "literatura sertaneja", tornou-se banas, universalizantes, que destacam o
na maioria dos casos uma subliteratura vínculo com os problemas supra-regionais
vulgar, explorando o pitoresco conforme e supranacionais; e que houve sempre
o ângulo duvidoso do exotismo, paterna- uma espécie de jogo dialético deste geral
lista, patrioteiro e sentimental. Creio que com aquele particular, de tal modo que as
apenas Simões Lopes Neto fez ficção real- fortes tendências centrífugas (correspon-
mente boa dentro desse enquadramento dendo no limite a quase literaturas autô-
comprometido, porque soube, entre ou- nomas atrofiadas) se compõem a cada ins-
tras coisas, escolher os ângulos narrativos tante com as tendências centrípetas (cor-
corretos, que identificavam o narrador respondendo à força histórica da unifica-
com o personagem e, assim, suprimiam a ção política).
distância paternalista e a dicotomia entre
o discurso direto ("popular") e o indireto Consolida-se o romance
("culto").
Mas antes mesmo do indianismo e do A narrativa brasileira, no que tem de
regionalismo, a ficção brasileira, desde os continuidade dentro da nossa literatura, e
anos de 1840, se orientou para a outra ver- sem contar as influências externas, desen-
tente de identificação nacional através da volve ou contraria a obra dos antecessores
literatura: a descrição da vida nas cidades imediatos dos anos 30 e 40.
grandes, sobretudo o Rio e áreas de in- A partir de 1930 houve uma ampliação
fluência, o que sobrepunha à diversidade e consolidação do romance, que apareceu
do pitoresco regional uma visão unificado- pela primeira vez como bloco central em
ra. Se, por um lado, isso favoreceu a imita- nossa literatura, marcando uma visão di-
ção mecânica da Europa, e portanto uma ferente da sua função e natureza. A radi-
certa alienação, de outro contribuiu para calização posterior à Revolução Liberal
DEZEMBRO DE 1981
OS BRASILEIROS E A LITERATURA LATINO-AMERICANA

daquele ano favoreceu a divulgação das temática e uma concepção da escrita como
conquistas da vanguarda artística e literá- veículo, mais do que como objeto central
ria dos anos 20. Radicalização do gosto e e integrador do processo literário. Os de-
também das idéias políticas, divulgação cênios de 30 e 40 foram momentos de re-
do marxismo, aparecimento do fascismo, novação dos assuntos e busca da naturali-
renascimento católico. O fato mais saliente dade, e a maioria dos escritores não sentia
foi a voga do chamado "romance do plenamente a importância da revolução
Nordeste", que transformou o regionalis- estilística que por vezes efetuavam. Mas
mo ao extirpar a visão paternalista e exóti- não esqueçamos que esses autores (alguns
ca, para lhe substituir uma posição crítica dos quais despreocupados em refletir so-
freqüentemente agressiva, não raro assu- bre a língua literária) estavam de fato
mindo o ângulo do espoliado, ao mesmo construindo uma nova maneira de escre-
tempo que alargava o ecúmeno literário ver, tornada possível pela liberdade que
por um acentuado realismo no uso do vo- os modernistas do decênio de 1920 ti-
cabulário e na escolha das situações. Gra- nham conquistado e praticado. Por exem-
ciliano Ramos (um dos poucos ficcionistas plo: a obtenção do ritmo oral em José Lins
realmente grandes da nossa literatura), do Rego; a transfusão de poesia e a com-
Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, o posição descontínua do primeiro Jorge
primeiro Jorge Amado, são os maiores no- Amado; a atualização da linguagem tra-
mes desse movimento renovador, que dicional em Graciliano Ramos ou Mar-
conta com algumas dezenas de bons pra- ques Rebelo; o contundente prosaísmo de
ticantes. Dionélio Machado; a naturalidade chã de
Ao mesmo tempo, o romance urbano Érico Veríssimo.
cresceu no conjunto em qualidade e im- A posição politicamente radical de
portância, inclusive, nalguns casos, com muitos desses autores os fazia procurar so-
ânimo de reação polêmica contra os '' nor- luções antiacadêmicas e acolher os modos
destinos" , como é o caso de Otávio de Fa- populares; mas ao mesmo tempo os tor-
ria, romancista e ensaísta de direita, que nava mais conscientes da sua contribuição
preconizou a ficção dramática, interessa- ideológica e menos conscientes daquilo
da nos conflitos de consciência, e os pro- que na verdade traziam como renovação
blemas religiosos ligados a classe social, formal. De qualquer maneira, neles ga-
como aparecem na sua obra cíclica Tragé- nha ímpeto o movimento ainda em curso
dia burguesa. Cornélio Pena e Lúcio Car- de desliteratização, com a quebra dos ta-
doso, igualmente marcados pelos valores bus de vocabulário e sintaxe, o gosto pe-
católicos, constroem universos fantasmais los termos considerados "baixos" segun-
como quadro das tensões íntimas. do a convenção, e a desarticulação estru-
Uma terceira linha seria a dos eqüidis- tural da narrativa — que Mário de Andra-
tantes da direita e da esquerda quanto à de e Oswald de Andrade haviam começa-
ideologia, e, quanto à escrita, passando do nos anos 20 em nível de alta estiliza-
longe tanto da dureza realista quanto da ção, e que de um quase idioleto restrito
angústia dilacerante: Marques Rebelo, tendia agora a se tornar linguagem natu-
João Alphonsus, Ciro dos Anjos — que, ral da ficção, aberta a todos.
como os anteriores, são do Centro-Sul, Essas linhagens de escritores liquida-
gravitando em torno do Rio de Janeiro. ram o velho regionalismo e retemperaram
É possível ainda distinguir os que se o moderno romance urbano, livrando-o
poderia chamar de radicais urbanos, preo- da frivolidade que tinha predominado
cupados tanto com a desarmonia da socie- nos anos de 10 e 20. Os seus sucessores,
dade quanto com os problemas pessoais; que estrearam ou amadureceram nos anos
marcados pela sua província, mas sem ob- de 1950, tiveram menos vigor, mas pro-
sessão regionalista — como ocorre na vasta moveram o que se pode chamar consoli-
obra de Érico Veríssimo e na obra parca dação da média, que, segundo Mário de
mas admirável de Dionélio Machado, am- Andrade, é essencial para a literatura.
bos do Rio Grande do Sul. O que antes era exceção se tornou ren-
Geralmente essas diferentes orientações dimento normal, e se houve menos erup-
eram concebidas pelos autores e apresen- ções de elevada criatividade, houve maior
tadas pela crítica de um ponto de vista número de bons livros do que em qual-
disjuntivo: uma ou outra. Sobretudo por- quer outro momento da nossa ficção.
que os autores tinham muita preocupação Penso em contistas como Dalton Trevisan
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(estréia em 1954), mestre do conto curto e percebido desde logo, nos três casos, por
cruel, criador de uma espécie de mitolo- um crítico de grande acuidade, Álvaro
gia urbana da sua cidade de Curitiba. Em Lins; mas que, sobretudo quanto aos dois
Osman Lins (estréia em 1955), que foi últimos, só muito mais tarde seria capta-
passando do realismo corriqueiro para do pelo público e a maioria da crítica.
uma notável inquietação experimental O romance Perto do coração selvagem,
que o atualizava incessantemente, até à de Clarice Lispector (1943), foi quase tão
morte recente. Em Fernando Sabino, cujo importante quanto, para a poesia, Pedra
romance O encontro marcado (1956) é de sono, de João Cabral (1942). Nele, o
uma crônica da adolescência e da inicia- tema passava de certo modo a segundo
ção literária, em estilo acelerado que faz plano e a escrita a primeiro, fazendo ver
do rendu realista um ataque à realidade, que a elaboração do texto era elemento
para dela extrair o maior realce. Em Oto decisivo para a ficção atingir o seu pleno
Lara Rezende, autor de um romance que efeito. Por outras palavras, Clarice mos-
se prende pelas origens à atmosfera de trava que a realidade social ou pessoal
Bernanos e dela se desprende, para conse- (que fornece o tema) e o instrumento ver-
guir um impacto seco de tragédia banal, bal (que institui a linguagem) se justifi-
no prosaísmo de um caderno de notas (O cam antes de mais nada pelo fato de pro-
braço direito, 1963). Em Lígia Fagundes duzirem uma realidade própria, com a
Telles (maturidade literária com Ciranda sua inteligibilidade específica. Não se tra-
de pedra, 1954), que teve e tem o alto ta mais de ver o texto como algo que con-
mérito de obter, no romance e no conto, duz a este ou aquele aspecto do mundo e
a limpidez adequada a uma visão que pe- do ser; mas de lhe pedir que crie para nós
netra e revela, sem recurso a qualquer tra- o mundo, ou um mundo.
ço carregado, na linguagem ou na caracte- É claro que esse fato é requisito em
rização. Estes e outros, como Bernardo El- qualquer obra; mas se o autor assume
lis, apresentavam a boa linha média que maior consciência dele, mudam as manei-
caracteriza a ficção brasileira dos anos de ras de escrever e a crítica sente necessidade
50 e 60. de reconsiderar os seus pontos de vista,
Registro que deles só o último é regio- inclusive a atitude disjuntiva (tema a ou
nalista; os outros circulam no universo b; direita ou esquerda; psicológico ou so-
dos valores urbanos, relativamente desli- cial). Isso, porque, assim como os pró-
gados de um interesse mais vivo pelo lu- prios escritores, verá cada vez mais que a
gar, o momento, os costumes, que em força própria da ficção provém, antes de
seus livros entram por assim dizer na fili- tudo, da convenção que permite elaborar
grana. Também, nenhum deles se afirma um mundo além do mundo.
ideologicamente por meio da ficção, com Guimarães Rosa publicou em 1946 um
exceções que aumentam depois do golpe livro de contos regionalistas, Sagarana,
militar de 1964. Por isso, é difícil enqua- com inflexão diferente graças à invenção
drá-los numa ''opção'', conforme o sentido rara do entrecho e à construção inovadora
definido acima. Direita ou esquerda? da linguagem. Prosseguindo silenciosa-
Romance pessoal ou social? Escrita popu- mente nesse rumo, ele o aprofundou du-
lar ou erudita? Pontos como estes, antes rante anos numa série de contos longos, o
controversos, já não têm sentido com rela- último dos quais cresceu ao ponto de se
ção a livros que exprimem uma experiên- tornar um romance: respectivamente Cor-
cia abrangente, segundo a qual a tomada po de baile (2 volumes) e Grande sertão:
de partido e a denúncia são substituídas veredas, ambos publicados em 1956.
pelo modo de ser e de existir, do ângulo Muito mais que no caso de Clarice Lis-
da pessoa ou do grupo. pector, esses livros foram um aconteci-
mento, porque tomavam por dentro uma
O particular e o geral: transfiguração tendência tão duvidosa quanto inevitável,
como o regionalismo, e procediam à sua
Mas, chegando à última fase da ficção explosão transfiguradora. Com isso, Rosa
brasileira, que se manifesta nos anos 60 e alcançou o mais indiscutível universal
70, devemos voltar atrás para registrar a através da exploração exaustiva quase im-
obra de alguns inovadores, como Clarice placável do mais discutível particular.
Lispector, Guimarães Rosa e Murilo Ru- Machado de Assis tinha mostrado como
bião, que produziram um toque novo, um País novo e inculto podia fazer litera-

DEZEMBRO DE 1981
OS BRASILEIROS E A LITERATURA LATINO-AMERICANA

tura de grande significado, válida para tom de piada, como as décimas de um cu-
qualquer lugar, deixando de lado a tenta- rioso poeta popular do começo do século
ção do pitoresco (quase irresistível em seu XIX, o Sapateiro Silva; ou, no decênio de
tempo). Guimarães Rosa cumpriu uma 1840, a "poesia pantagruélica" de alguns
etapa mais arrojada: tentar ao mesmo re- românticos boêmios.
sultado sem contornar o perigo, mas acei- Com segurança meticulosa e absoluta
tando-o, entrando de armas e bagagens parcialidade pelo gênero (pois nada escre-
pelo pitoresco regional mais completo e ve fora dele), Murilo Rubião elaborou os
meticuloso, e assim conseguindo anulá-lo seus contos absurdos num momento de
como particularidade, para transformá-lo predomínio do realismo social, propondo
em valor de todos. O mundo rústico do um caminho que poucos identificaram e
sertão ainda existe no Brasil e ignorá-lo é só mais tarde outros seguiram. Na meia
um artifício. Por isso ele se impõe à cons- penumbra ficou ele, até a reedição modi-
ciência do artista, como à do político e do ficada e aumentada daquele livro em
revolucionário. Rosa aceitou o desafio e 1966 (Os dragões e outros contos). Já en-
fez dele matéria, não de regionalismo, tão a voga de Borges e o começo da de
mas de ficção pluridimensional, acima do Cortázar, logo seguida pela divulgação,
seu ponto de partida contingente. no Brasil, de livros como Cien años de so-
Com isso, tornou-se o maior ficcionista ledad, de García Márquez, fizeram a críti-
da língua portuguesa em nosso tempo, ca e os leitores atentarem para esse discre-
mostrando como é possível superar o rea- to precursor local, que todavia precisou
lismo para intensificar o senso do real; co- esperar os anos 70 para atingir o público e
mo é possível entrar pelo fantástico e co- ver reconhecida a sua importância. Entre-
municar o mais legítimo sentimento do mentes a ficção tinha-se transformado e,
verdadeiro; como é possível instaurar a de exceção, ele passava quase a uma alta
modernidade da escrita dentro da maior regra.
fidelidade à tradição da língua e à matriz
da região. Além disso, em Grande sertão: Amargura política e vanguarda estética
veredas forjou como instrumento privile-
giado da narrativa o que se poderia cha- O decênio de 1960 foi primeiro turbu-
mar de monólogo infinito (um pouco no lento e depois terrível. A princípio a radi-
sentido da "melodia infinita") — que te- calização generosa mas desorganizada do
ria influência decisiva sobre toda a ficção populismo no Governo João Goulart.
brasileira posterior. Em seguida, graças ao pavor da burguesia e
Com todos estes recursos na mão, tal- à atuação do imperialismo, o golpe mili-
vez tenha sido o primeiro que operou a tar de 1964, que se transformou em 1968
síntese final das obsessões constitutivas da de brutalmente opressivo em ferozmente
nossa ficção, até ali dissociadas: a sede do repressivo.
particular como justificativa e como iden- Na fase inicial, período Goulart, houve
tificação; o desejo do geral, como aspira- um aumento de interesse pela cultura po-
ção ao mundo dos valores inteligíveis à pular e um grande esforço para exprimir
comunidade dos homens. Como sugeria as aspirações e reivindicações do povo —
em 1873 o artigo de Machado de Assis, no teatro, no cinema, na poesia, na edu-
tratava-se de fixar o particular, mesmo cação. O golpe não cortou tudo desde lo-
sob a sua forma extrema de pitoresco, co- go, mas aos poucos. E então surgiram al-
mo afirmação de uma autonomia interior gumas manifestações de revolta meio caó-
que o transcende. ticas, berrantes e demolidoras, como o
Com o livro de contos O ex-mágico tropicalismo. Na verdade, tratava-se de
(1947), Murilo Rubião instaurou no Brasil um processo transformador que teve co-
a ficção do insólito absurdo. Havia exem- mo eixo os movimentos estudantis de
plos anteriores de outros tipos de insólito, 1968 e desfechou num anticonvenciona-
sobretudo de cunho lírico, como o admi- lismo que ainda hoje rege a produção cul-
rável conto "O iniciado do vento" de tural — a par e passo com a mudança dos
Aníbal Machado, um dos escritores mais costumes, a dissolução da moda no ves-
finos da nossa literatura moderna, forma- tuário, a quebra das hierarquias conven-
do sob o Modernismo e expandido a par- cionais, a busca entre patética e desvairada
tir dos anos 40. Mas de absurdo, somente de uma situação de catch-as-catch-can em
casos limitados na poesia, e ainda aí em atmosfera de terra de ninguém.
NOVOS ESTUDOS N.º1
Na ficção, o decênio de 60 teve algu- cente pode ser dada pelas coleções Nosso
mas manifestações fortes na linha mais ou Tempo e Autores Brasileiros, da Editora
menos convencional, como o romance de Ática, de São Paulo, que publicou sobre-
Antônio Callado, que renovou a "litera- tudo jovens, em edições cujo projeto grá-
tura participante" com perícia e deste- fico arrojado e vistoso tem um relevo
mor, tornando-se o primeiro cronista de equivalente ao do texto, formando ambos
qualidade do golpe militar em Quarup um conjunto orgânico anticonvencional,
(1967), a que seguiria a história desabusa- que agride o leitor ao mesmo tempo que
da da esquerda aventureira em Bar Don b envolve. E o envolvimento agressivo pa-
Juan (1971). Na mesma linha o veterano rece uma das chaves para entender a nossa
Érico Veríssimo produziria a fábula políti- ficção presente.
ca Incidente em Antares ( 1971) . Com o Mas no início, o que pareceu avultar
correr dos anos surgiu o que se pode cha- como influência foi algo mais brando: a
mar a "geração da repressão", formada de Clarice Lispector. Ela é provavelmente
pelos jovens escritores amadurecidos de- a origem das tendências desestruturantes,
pois do golpe, dos quais serve de amostra que dissolvem o enredo na descrição e
honrosa Renato Tapajós, no romance Em praticam esta com o gosto pelos contornos
câmara lenta (1977), análise do terroris- fugidios. Decorre a perda da visão de con-
mo com técnica ficcional avançada junto pelo meticuloso acúmulo de por-
(apreendido por ordem da censura, foi li- menores, que um crítico atribuiu com ar-
berado judicialmente em 1979). gúcia à visão feminina, presa ao miúdo
Mas o sal dos anos 60 e sobretudo 70 concreto. Daí a produção de textos monó-
foram as contribuições de linha inovado- tonos do tipo "nouveau roman", de que
ra, refletindo de maneira crispada, no ex- Clarice foi talvez uma desconhecida pre-
perimentalismo da técnica e da concepção cursora, e que verificamos em outras fic-
narrativa, esses anos de vanguarda estética cionistas que vieram na sua esteira, como
e amargura política. Maria Alice Barroso (estréia em 1960) e
Se, a respeito dos escritores dos anos Nélida Piñon (estréia em 1961).
50, falamos na dificuldade em optar, no Traço característico é também a ficcio-
f i m da apreciação "disjuntiva", com rela- nalização de outros gêneros (crônica, au-
ção aos que avultam neste decênio de 70 tobiografia), sem falar da vocação ficcio-
pode-se falar em verdadeira legitimação nal transferida para fora da palavra escrita,
da pluralidade. Não se trata mais da coe- indo levar a diversas artes o que era
xistência pacífica de diversas modalidades substância do conto e do romance: cine-
de romance ou conto, mas do desdobra- ma, teatro, telenovela (cada dia mais im-
mento desses gêneros ficcionais, que na portante e atraindo boas vocações de es-
verdade deixam de ser gêneros, incorpo- critor). É sabido como a ficção encontrou
rando técnicas e linguagens nunca dantes no cinema um escoadouro excepcional,
imaginadas dentro das suas fronteiras. sobretudo a partir do "cinema novo",
Resultam textos indefiníveis: romances quando se tornou normal que os diretores
que mais parecem reportagens; contos concebessem e escrevessem os roteiros de
que não se distinguem de poemas ou crô- seus filmes. Muitos romancistas poten-
nicas, semeados de sinais e fotomonta- ciais se realizaram deste modo como tan-
gens; autobiografias com tonalidade e tos poetas que preferiram a canção, a
técnica de romance; narrativas que são ce- exemplo de Vinícius de Moraes.
nas de teatro; textos feitos com a justapo-
sição de recortes, documentos, lembran- O realismo feroz
ças, reflexões de toda a sorte. A ficção re-
cebe na carne mais sensível o impacto do Há uma opinião mais ou menos geral
boom jornalístico moderno, do espantoso de que o conto constitui o melhor da fic-
incremento de revistas e pequenos sema- ção brasileira mais nova, e com efeito al-
nários, da propaganda, da televisão, das guns contistas se destacam pela penetra-
vantagens poéticas que atuam desde o ção veemente no real graças a técnicas re-
f i m dos anos 50, sobretudo o concretis- novadoras, devidas quer à invenção, quer
mo, storm-center que abalou hábitos à transformação das antigas. Não é possí-
mentais, inclusive porque se apoiou em vel nem cabível enumerá-los aqui, mas al-
reflexão teórica exigente. Uma idéia do guns nomes devem ser mencionados.
que há de característico na ficção mais re- João Antônio publicou em 1963 a vigo-
DEZEMBRO DE 1981
OS BRASILEIROS E A LITERATURA LATINO-AMERICANA

rosa coletânea Malagueta, Perus e Bacana- Drummond: A morte de D.J. em Paris,


ço; mas a sua obra-prima (e obra-prima contos (1975), grande sucesso de público,
em nossa ficção) é o conto longo "Pauli- e o romance O dia em que Ernest He-
nho Perna-Torta", de 1965. Nele parece mingway morreu crucificado (1978). In-
realizar-se de maneira privilegiada a aspi- sólito no texto e no contexto gráfico.
ração a uma prosa aderente a todos os ní- Muitos autores mantêm uma linha que
veis da realidade, graças ao fluxo do mo- se poderia chamar de mais tradicional,
nólogo, à gíria, à abolição das diferenças sem dizer com isto que seja convencional,
entre falado e escrito, ao ritmo galopante pois na verdade operam dentro dela com
que acerta o passo com o pensamento, pa- ousadia — no tema, na violação dos usos
ra mostrar de maneira brutal a vida do cri- literários, na procura de uma naturalida-
me e da prostituição. de coloquial que vem sendo buscada des-
Essa espécie de ultra-realismo sem pre- de o Modernismo dos anos 20 e só agora
conceitos aparece igualmente na parte parece instalar-se de fato na prática geral
mais forte do grande mestre do conto que da literatura. Pode-se mencionar neste ru-
é Rubem Fonseca (estréia em 1963). Ele mo a obra discreta de Luiz Vilela, escritor
também agride o leitor pela violência, bastante fecundo que estreou em 1967
não apenas dos temas, mas dos recursos com um volume de contos.
técnicos — fundindo ser e ato na eficácia
de uma fala magistral em primeira pes- Uma literatura do contra
soa, propondo soluções alternativas na se-
qüência narrativa, avançando as fronteiras Pelo dito, vê-se que estamos diante du-
da literatura no rumo de uma espécie de ma literatura do contra. Contra a escrita
notícia crua da vida. elegante, antigo ideal castiço do País;
Esses dois escritores representam em alto contra a convenção realista, baseada na
nível uma das tendências salientes do verossimilhança e o seu pressuposto de
momento, que se poderia chamar de rea- uma escolha dirigida pela convenção cul-
lismo feroz, de que talvez tenham sido os tural; contra a lógica narrativa, isto é, a
propulsores. O mesmo se observa em ou- concatenação graduada de começo, meio
tros, como Ignácio de Loyola, cujo ro- e fim pela técnica soberana da "dosa-
mance Zero (1975) ficou pronto em 1971, gem" dos efeitos; finalmente, contra as
mas, não encontrando meios de ser publi- normas sociais, sem que com isso os textos
cado no Brasil, apareceu inicialmente na manifestem ou correspondam a posição
tradução italiana. E quando saiu aqui, foi política determinada. E talvez aí esteja
proibido pela censura, que só o liberou mais um traço dessa literatura recente: a
em 1979. negação implícita sem adesão explícita às
Outra tendência é a ruptura, agora ge- ideologias.
neralizada, do pacto realista (que domi- Essas tendências podem ser ligadas às
nou a ficção por mais de duzentos anos), condições do momento histórico e ao efei-
graças a injeções de um insólito que de re- to das vanguardas artísticas, que por mo-
cessivo passou a predominante e, como vi- tivos diferentes favoreceram um duplo
mos, teve nos contos do absurdo de Muri- movimento de negação e superação. A di-
lo Rubião o seu precursor. Com certeza tadura militar — com a violência repressi-
foi a voga da ficção hispano-americana va, a censura, a caça aos inconformados
que levou para esse rumo o gosto dos au- — certamente aguçou por contragolpe,
tores e do público. Os seus adeptos são le- nos intelectuais e artistas, o sentimento
gião, mas bem antes da moda se instalar, de oposição, sem com isso permitir a sua
José J. Veiga tinha publicado Os cavali- manifestação clara. Por outro lado, o
nhos de Platiplanto (1959) — contos mar- pressuposto das vanguardas era também
cados por uma espécie de tranqüilidade de negação, como foi entre o caso do tro-
catastrófica. picalismo dos anos 60, que desencadeou
Convém lembrar que a ruptura nas uma recusa trepidante e final dos valores
normas pode ocorrer por meio do recurso tradicionais que regiam a arte e a literatu-
a sinais gráficos, figuras, fotografias, não ra — como bom-gosto, equilíbrio, senso
apenas inseridos no texto, mas fazendo das proporções.
parte orgânica do projeto gráfico — como É possível enquadrar nesta ordem de
nas mencionadas edições da Ática. Ve- idéias o que acima denominei realismo
jam-se a esse propósito os dois de Roberto feroz, se lembrarmos que além disso ele
NOVOS ESTUDOS N.º 1
corresponde à era de violência urbana em relevante na atual ficção brasileira (e tal-
todos os níveis do comportamento. Guer- vez também em outras).
rilha, criminalidade solta, superpopula- Um reparo, todavia. Escritores como
ção, migração rumo à cidade, quebra do Rubem Fonseca primam quando usam es-
ritmo estabelecido de vida, marginalidade sa técnica, mas quando passam à terceira
econômica e social — tudo abala a pessoa ou descrevem situações da sua clas-
consciência do escritor e cria novas neces- se social, a força parece cair. Isso leva a
sidades no leitor, em ritmo acelerado. perguntar se tais escritores não estão
Um teste interessante é a evolução da cen- criando um novo exotismo de tipo espe-
sura, que em vinte anos foi obrigada a se cial, que ficará mais evidente para os lei-
abrir cada vez mais à descrição da vida se- tores futuros; se não estão sendo eficien-
xual, ao palavrão, à crueldade, à obsceni- tes, em parte, pelo fato de apresentarem
dade — no cinema, no teatro, no jornalis- temas, situações e modos de falar do mar-
mo, no livro —, apesar do arrocho do re- ginal, da prostituta, do incluso das cida-
gime militar. des, que para o leitor de classe média têm
Talvez esse tipo feroz de realismo se o atrativo de qualquer pitoresco. Mas, se-
realize melhor na narrativa em primeira ja como for, estão operando uma extraor-
pessoa — dominante na ficção brasileira dinária expansão do âmbito literário, co-
atual, em parte, como ficou sugerido, pela mo grandes inovadores. Os ficcionistas
provável influência de Guimarães Rosa. A dos anos 30 e 40 inovaram no temário e
brutalidade da situação é transmitida pela no léxico, assim como no progresso rumo
brutalidade do seu agente (personagem), à oralidade. Estes vão mais longe e en-
ao qual se identifica a voz narrativa, que tram pela própria natureza do discurso
assim descarta qualquer interrupção ou ficcional, mesmo quando não alcançam a
contraste crítico entre narrador e matéria eminência daqueles predecessores.
narrada. Esse ânimo de experimentar e renovar
Na tradição naturalista o narrador em talvez enfraqueça a ambição criadora,
terceira pessoa tentava identificar-se ao porque se concentra no pequeno fazer de
nível do personagem popular através do cada texto. Daí o abandono dos grandes
discurso indireto livre. No Brasil isso era projetos de antanho: o Ciclo da cana-de-
difícil por motivos sociais: o escritor não açúcar, de Lins do Rego (5 títulos); os Ro-
queria arriscar a identificação do seu sta- mances da Bahia, de Jorge Amado (6 títu-
tus, por causa da instabilidade das cama- los); Tragédia burguesa, de Otávio de Fa-
das sociais e da degradação do trabalho ria (13 títulos); O espelho partido, de
escravo. Por isso, usava a linguagem culta Marques Rebelo (7 títulos projetados); O
no discurso indireto (que o definia) e in- tempo e o vento, de Érico Veríssimo (9 tí-
corporava entre aspas a linguagem popu- tulos). O ânimo narrativo se atomiza e a
lar no discurso direto (que definia o ou- unidade ideal acaba sendo o conto, a crô-
tro); no indireto livre, depois de tudo já nica, o sketch, que permitem manter a
definido, esboçava uma prudente fusão. tensão difícil da violência, do insólito ou
Daí o cunho exótico do regionalismo e da visão fulgurante.
de muitos romances de tema urbano. O Ao mesmo tempo, nos vemos lançados
desejo de preservar a distância social leva- numa ficção sem parâmetros de julga-
va o escritor, malgrado a simpatia literá- mento crítico. Não se cogita mais de pro-
ria, a definir a sua posição superior, tra- duzir (nem de usar como categorias) a Be-
tando de maneira paternalista a lingua- leza, a Graça, a Emoção, a Simetria, a
gem e os temas do povo. Encastelava-se Harmonia. O que vale é o Impacto, pro-
então na terceira pessoa, que define o duzido pela Habilidade ou a Força. Não
ponto de vista do realismo burguês. se deseja emocionar nem suscitar a con-
O esforço do escritor atual é inverso. templação, mas causar choque no leitor e
Ele deseja apagar as distâncias sociais, excitar a argúcia do crítico, por meio de
identificando-se com a matéria popular. textos que penetram com vigor mas não
Por isso usa a primeira pessoa como recur- se avaliam com facilidade.
so para confundir autor e personagem, Talvez por isso caiba refletir, para argu-
adotando uma espécie de discurso direto mentar, sobre os limites da inovação que
permanente e desconvencionalizado, que vai se tornando rotineira e resiste menos
permite fusão maior que a do indireto li- ao tempo. Aliás, a duração parece não
vre. Essa abdicação estilística é um traço importar à nova literatura cuja natureza é

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OS BRASILEIROS E A LITERATURA LATINO-AMERICANA

freqüentemente a de uma montagem mais, mas apenas no fim da vida, aos ses-
provisória em era de leitura apressada, re- senta anos, escreveu os três contos longos
querendo publicações ajustadas ao espaço do mencionado livro, que tratam de rela-
curto de cada dia. Dentro dessa luta con- ções amorosas complicadas, com uma rara
tra a pressa e o esquecimento rápido, exa- liberdade de escrita e concepção. No en-
geram-se os recursos e eles acabam viran- tanto, a sua modernidade serena e corro-
do clichês aguados nas mãos da maioria, siva se exprime numa prosa quase clássica,
que apenas segue e transmite a moda. translúcida e irônica, com uma certa li-
bertinagem de tom que faz pensar em fic-
Os não-ficcionistas cionistas franceses do século XVIII.
Pedro Nava, médico eminente, era co-
Daí, quem sabe, o fato de alguns dos nhecido em literatura por alguns amigos
livros mais criadores e sem dúvida mais devido à participação nos grupos do mo-
interessantes da ficção brasileira recente dernismo de Minas Gerais, e por alguns
serem devidos a não-ficcionistas ou, mes- raros poemas de amador original e talen-
mo, não serem de ficção... Por isso, apre- toso. De repente, aos setenta anos começa
sentam uma escrita antes tradicional, com a publicar as suas espantosas memórias,
ausência de recursos espetaculares, aceita- numa língua extremamente saborosa, de
ção dos limites da palavra escrita, renún- uma prolixidade que fascina proustiana-
cia à mistura de recursos e artes, indife- mente o leitor. Nós as lemos como se fos-
rença às provocações estilísticas e estrutu- sem ficção, porque são de fato poderosa-
rais. mente ficcionais a força da caracterização
Quero me referir a livros como Maíra, e a disposição imaginosa dos aconteci-
romance de Darcy Ribeiro (1976); Três mentos, que, mesmo quando documen-
mulheres de três ppp, contos de Paulo tados no ponto de partida, são tratados
Emílio Salles Gomes (1977); e os quatro com a fantasia que distingue o romancista.
volumes publicados das Memórias de Pe- Portanto, na literatura brasileira atual
dro Nava (Baú de ossos, 1972; Balão cati- há uma circunstância que faz refletir: a
vo, 1973; Chão de ferro, 1976; Beira-mar, ficção procurou de tantos modos sair das
1978). suas normas, assimilar outros recursos, fa-
Darcy Ribeiro, que tem uma obra notá- zer pactos com outras artes e meios, que
vel de antropólogo e educador, além de nós acabamos considerando como obras
uma corajosa atividade de homem públi- ficcionalmente mais bem realizadas e sa-
co progressista, nunca escrevera antes fic- tisfatórias algumas que foram elaboradas
ção. O seu romance é uma retomada ori- sem preocupação de inovar, sem vinco de
ginal do indianismo, operando em três escola, sem compromisso com a moda; in-
planos: o dos deuses, o dos índios, o dos clusive uma que não é ficcional! Seria um
brancos. A correlação dos planos, a força acaso? Ou seria um aviso? Eu não saberia
germinal dos mitos, misturada à ordem nem ousaria dizer. Apenas verifico uma
social do primitivo e tudo questionado coisa que é pelo menos intrigante e esti-
pela interferência do civilizado, são mani- mula a investigação crítica.
pulados com uma maestria sem modis-
mos nem preconceitos estilísticos, de ma-
neira a atingir aquela modernidade que
não é a das vanguardas, e sim a da expres-
são que encontra uma espécie de plenitu- NOTA
de. Com patético, mas com ironia, ele re-
cria a utilização ficcional do índio em cra- O título original deste escrito — "O Papel do Brasil na No-
va Narrativa" — foi um dos tópicos do Simpósio sobre o
veira transfiguradora que lembra o que surto da nova narrativa latino-americana (1950-1975), orga-
Guimarães Rosa fizera com o regionalis- nizado pelo Woodrow Wilson International Center for
mo: uma explosão nuclear. Scholars, em outubro de 1979, em Washington. Originaria-
mente o escrito destinava-se a um público estrangeiro, daí
Paulo Emílio sempre foi um estudioso dados informativos eventualmente dispensáveis para o leitor
de cinema, o maior crítico cinematográfi- brasileiro. (N. da R. )

co que já tivemos, o criador do movimen-


to das cinematecas no Brasil, o autor de
monografias clássicas sobre Jean Vigo e
Humberto Mauro. A sua livre e extraordi-
nária imaginação sempre aspirou a algo
NOVOS ESTUDOS N.º 1

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