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Ele a viu na fila de um grande cinema de Los Angeles, na manhã de uma terça-fei-
ra ligeiramente nevoenta. Era delgada e pálida, de finos e compridos cabelos de tri-
go, mal teria quinze anos, e estava só. Lembrava-se dela, naturalmente.
Podia ser engano, mas, atravessando a rua, caminhou ao longo da fila até o lugar
onde ela se encontrava.
- Alô! - disse.
Ela voltou-se, encarou-o impassível, passou rapidamente nos lábios a pontinha da
língua...
- Creio que... creio que não...
- Sou Tom Niles - disse ele. - Pasadena, ano-novo de 1955. Sentou-se junto de
mim no Estado de Ohio 20 versus Califórnia do Sul. Não se lembra?
- Num jogo de futebol? Mas eu raramente... isto é... sinto muito... eu...
Alguém na fila avançou para ele com aspecto ameaçador. Niles sabia quando esta-
va vencido. Sorriu desculpando-se e disse:
- Sinto muito, senhorita. Acho que me enganei. Confundi-a com alguém que co-
nhecia, uma certa Miss Bete Torrance. Desculpe!
E afastou-se rapidamente. Não andou mais de dez pés, quando ouviu um pequeno
ofego e as palavras “Mas eu sou Bete Torrance!”... Ele, porém, continuou andando.
“Eu devia ter mais juízo aos vinte e oito anos”, pensou amargamente. “É que me
esqueço do fato básico: de que, embora eu me lembre das pessoas, estas necessa-
riamente não se lembram de mim...”
Abatido, caminhou até a esquina, virou à direita, pôs-se a descer uma nova rua –
rua cujas lojas lhe eram completamente estranhas, e que, por isso mesmo, nunca
antes visitara. Sua mente, como boa máquina que era, estimulada pelo incidente da
fila de cinema, vomitou, até alcançar o diapasão normal de atividade, um exército de
lembranças tangenciais.
Sua mente coalhada de dados lhe doía. Viu um minúsculo carro esporte estacionar
no outro lado da rua, e pelo feitio, modelo, cor e número da licença, reconheceu-o
como pertencente a Leslie F. Marshall, de vinte e seis anos, cabelos louros, olhos
azuis, ator de televisão com as seguintes habilitações...
Estremecendo, Niles desligou o circuito e apagou os dados que se avolumavam.
Estivera uma vez com Marshall, fazia seis meses, numa festa oferecida por um amigo
comum - um amigo de outrora; Niles achava difícil continuar amigo de alguém por
muito tempo. Conversara talvez dez minutos com o ator e acrescentara mais isso à
sua bagagem mental.
Era tempo de seguir adiante, pensou Niles. Residira dez meses em Los Angeles. O
fardo de lembranças acumuladas se lhe tornara excessivamente pesado; cumprimen-
tava um número demasiado de pessoas que já o haviam esquecido. “Ao diabo com o
meu cociente, John. Tamanho normal, cinco pés e nove polegadas, cento e sessenta
e três libras; cabelos castanhos, olhos castanhos, nenhum traço fisionômico indevida-
mente saliente, nenhuma cicatriz visível, exceto as de dentro”, pensou. Tencionava
voltar para San Francisco, mas desistiu. Fazia apenas um ano que lá estivera; em Pa-
sadena, fazia dois. Percebeu que chegara o dia de uma outra excursão para o leste...
“Para a frente e para trás na superfície da América, lá vai Thomas Richard Niles, o
Holandês Voador, o Judeu Errante, o Espírito do Natal Passado, o Gravador
Humano...” Sorriu para um jornaleiro que lhe vendera um exemplar do Examiner do
último dia 13, recebeu de volta o costumeiro olhar inexpressivo, e dirigiu-se para o
terminal de ônibus mais próximo.
Havia umas trinta pessoas no ônibus que deixou Los Angeles. Niles sentou-se sozi-
nho na parte traseira, junto ao banco situado logo em cima da roda de trás. Conhe-
cia de nome três pessoas que viajavam no ônibus - mas confiava em que elas já o
houvessem esquecido e não se mexeu.
Negócio incômodo. Se dissesse “alô” a alguém que o esquecera, pensariam que
ele era um criador de casos ou um achacador. E se passasse por alguém, pensando
que ele o esquecera, quando, ao contrário, isso não acontecia, então, que tipinho
mais esnobe que ele era! Niles balançava-se entre esses dois polos cinco vezes por
dia. Via alguém, por exemplo a moça Bete Torrance, e recebia de volta um olhar ge-
lado, impassível; ou passava por outra pessoa, acreditando que esta não se lembrava
dele mas andando depressa para escapar a um possível reconhecimento, e ouvia um
irado “Bem! Que diacho você pensa que é?” acompanhando-lhe a retirada.
Agora estava só, sacolejando para cima e para baixo a cada revolução da roda,
com a sua única maleta contendo seus pertences a pular constantemente no com-
partimento de bagagens sobre a sua cabeça. Uma vantagem do seu talento: poder
viajar sem bagagem. Não precisava conservar os livros depois que os lia, e não era
proveitoso entesourar pertences de qualquer espécie; estes se tornavam demasiado
conhecidos, para não dizer cacetes.
Niles olhava as tabuletas da estrada. Já estavam bem entrados em Nevada. A anti-
ga e cansativa retirada prosseguia.
Não podia permanecer demais numa só cidade. Era-lhe preciso dirigir-se a um
novo território, a algum lugar desconhecido, do qual não tivesse lembranças, onde
ninguém o conhecesse, onde não conhecesse ninguém. Nos dezesseis anos que se
passaram desde que saíra de casa, cobrira muito terreno.
Lembrava-se dos empregos que tivera.
Fora revisor de uma casa editora de Chicago. Fazia o trabalho de dois homens. Se-
gundo o costume, um homem lia o manuscrito enquanto o outro conferia as provas.
Niles tinha um método mais simples: lendo o manuscrito, decorava-o, depois apenas
conferia as provas em busca de discrepâncias. Ganhou por algum tempo cinquenta
dólares semanais, antes que chegasse a hora de seguir adiante.
Certa vez fora trabalhar como atração num parque de diversões ambulante que fa-
zia o circuito regular de Alabama-Mississípi-Geórgia. Nessa época estava realmente a
nenhum. Lembrava-se de como arranjara esse emprego: agarrando o dono do par-
que pela lapela e pedindo-lhe um teste:
- Leia-me qualquer coisa... qualquer coisa... e eu me lembrarei!
O sujeito estava meio cético e não via nenhuma utilidade num ato desses, mas fi-
nalmente cedeu quando Niles praticamente desmaiou de fome no escritório dele. O
homem leu para ele o editorial de um semanário do interior do Mississípi, e, quando
acabou, Niles recitou-o inteirinho, palavra por palavra. Obteve o emprego de quinze
dólares por semana mais as refeições, e ficava sentado numa tenda sob a tabuleta
que dizia: “O Gravador Humano”. As pessoas liam-lhe ou diziam-lhe coisas e ele as
repetia. Era um trabalho monótono. Às vezes lhe diziam coisas sórdidas, e na maior
parte dos casos, daí a minutos nem ao menos se lembravam do que haviam dito. Fi-
cou no parque quatro semanas, e quando se despediu ninguém lhe achou falta.
O ônibus rodava na noite que o nevoeiro bloqueava.
Mas ainda houve outros empregos: bons empregos, maus empregos... Nenhum
durou muito tempo. Também houve algumas garotas, porém nenhuma delas durara
muito. Todas elas descobriram-lhe o talento especial - mesmo aquelas das quais ten-
tara escondê-lo - e o abandonaram. Não era possível ficar junto de um homem que
jamais esquecia, um homem que sempre podia catar fraquezas de ontem no reserva-
tório que era a sua mente e lançá-las inopinadamente em público. Um homem de
memória perfeita jamais poderia viver muito tempo entre seres humanos imperfeitos.
“Perdoar é esquecer”, pensava ele. A lembrança de velhos insultos e discussões se
dissipa, e as relações se refazem. Mas para ele não podia existir esquecimento, e, em
consequência, só poderia haver pouco perdão.
Niles fechou os olhos após algum tempo e encostou-se na dura almofada de couro
da poltrona. A cadência ritmada do ônibus deu-lhe sono. Durante o sono, sua mente
descansava; ele podia enfim repousar a memória. Nunca sonhava.
Em Salt Lake City pagou a passagem, desceu do ônibus com a mala na mão e par-
tiu na primeira direção à sua frente. Não queria se afastar muito a leste naquele ôni-
bus. Sua reserva monetária era agora de sessenta e três dólares, e tinha de fazê-la
durar.
Descobriu um emprego de lava-pratos num restaurante do centro da cidade, con-
servou-o o bastante para acumular uma centena de dólares e tornou a partir, desta
vez viajando de carona para Cheyenne. Ficou um mês ali, depois tomou um ônibus
noturno para Denver, e quando deixou Denver foi para dirigir-se a Wichita.
De Wichita para Des Moines, de Des Moines para Minneapolis, de Minneapolis para
Milwaukee, depois através de Illinois, cuidadosamente evitando Chicago, e daí para
Indianápolis. Essa viagem era para ele história antiga. Celebrou melancolicamente o
seu vigésimo nono aniversário sozinho, numa casa de cômodos de Indianápolis, num
dia garoento de outubro, e com o propósito de alegrar a ocasião evocou as velhas
lembranças da festa do seu quarto aniversário, em 1933 - uma das poucas datas
perfeitamente felizes de sua vida.
Todos estavam lá - seus amigos e seus pais, e seu irmão Hank com um ar muito
importante para os seus oito anos, e sua irmã Marian, e havia velas e lembranças
festivas, ponche, bolos. Mrs. Heinsohn, vizinha do lado, entrara dizendo: “Ele parece
um homenzinho!”, e seu pais ficaram radiantes, todos cantaram e divertiram-se. De-
pois, jogado o último jogo, aberto o derradeiro presente, quando os meninos e as
meninas acenaram um boa-noite e desapareceram rua acima, os adultos sentaram-
se em roda e falaram do novo presidente e das muitas coisas estranhas que aconte-
ciam no país, e o pequeno Tom sentou-se no meio do assoalho, ouvindo e gravando
tudo e cordialmente satisfeito, pois durante toda a tarde ninguém lhe fizera ou disse-
ra algo cruel. Dia feliz, aquele, e, ao deitar-se, ele ainda se sentia cheio de felicidade.
Niles relembrou a festa duas vezes, como um velho filme ao qual amasse; a ima-
gem nunca aparecia defeituosa e o som continuava tão claro e distinto como nunca.
Niles podia provar o doce travo do ponche, podia reviver o calor daquele dia no qual,
mercê de algum acidente, os outros lhe haviam permitido um pouco de felicidade.
Finalmente deixou se dissipar o brilho da festa, e novamente achou-se em Indianá-
polis, numa tarde cinzenta e sombria, sozinho num quarto mobiliado, de oito dólares
por semana.
“Desejo-me feliz aniversário”, pensou amargamente. “Feliz aniversário.”
Fitou a parede verde cheia de manchas com uma gravura barata de Corot depen-
durada um pouco de viés. “Bem que eu podia ser algo especial”, cismava ele, “uma
dessas maravilhas do mundo. Em vez disso, não passo de um sorrateiro excêntrico
que mora nos fundos de um terceiro andar, e não me atrevo a deixar que o mundo
saiba o que sei fazer.”
Fez um esforço e conseguiu se lembrar da execução, por Toscanini, da Nona sinfo-
nia de Beethoven, que ouvira no Carnegie Hall certa vez em que estivera em Nova
Iorque Estava infinitamente melhor do que a última execução que o mesmo Toscanini
aprovara para gravação, todavia nenhum microfone a registrou; exceto na mente de
um homem, a fulgurante execução era tão impossível de captar como uma chama
soprada há cinco minutos. Mas Niles captara-a: a majestosa entrada dos tímpanos, o
ressoante contrabaixo produzindo a grande melodia do finale, até mesmo o balanço
do oboé que devia enfurecer o maestro, a tosse exasperadora dos ouvintes no mo-
mento mais suave do adágio, o dolorido apertão dos sapatos de Niles, que se inclina-
va para a frente na poltrona...
Ele gravara tudo, com a mais alta fidelidade.
Três meses depois, numa noite sem lua chegou a uma cidadezinha. Era uma noite
de janeiro, fria e cortante, quando o vento de inverno soprava do norte, penetrando-
lhe os ossos através da roupa fina e tornando quase insuportável o peso da mala
para suas mãos dormentes e sem luvas. Não tivera a intenção de ir para lá, mas em
Kentucky ficara sem dinheiro e não tivera escolha. Estava a caminho de Nova Iorque,
onde poderia viver anonimamente durante meses sem amolação e onde sabia não
ser notada a sua grosseria caso lhe acontecesse esbarrar em alguém ou cumprimen-
tar alguma pessoa que o houvesse esquecido.
Mas Nova Iorque ainda se encontrava a centenas de milhas de distância - bem po-
deriam ser milhões naquela noite de janeiro. Viu um letreiro: “BAR”. Avançou para a
luz pisca-pisca de neon. Ordinariamente não bebia, mas agora precisava do calor do
álcool, e talvez o dono do bar precisasse de alguém para ajudar, ou talvez pudesse
lhe alugar um quarto em troca do pouco dinheiro que tinha nos bolsos.
Havia cinco homens lá dentro. Pareciam choferes de caminhão. Niles deixou cair a
mala à esquerda da porta, esfregou as mãos endurecidas, exalou uma nuvem branca
pela boca... O dono do bar arreganhou-lhe um sorriso.
- Frio que baste lá fora, hein?
Niles conseguiu sorrir.
- Não estava suando muito... Dê-me algo quente. Uma dose dupla de uísque, tal-
vez.
Isso custava noventa cents: ele tinha apenas sete dólares e trinta e quatro cents.
Niles acalentou a bebida quando ela veio, bebericou devagar, deixou-a escorrer
pela garganta... Lembrava-se do verão em que fora parar em Washington, uma se-
mana inteira de noventa e sete graus de temperatura e noventa e sete por cento de
umidade, e a vívida memória concorreu para lhe acalmar alguns dos efeitos psicoló-
gicos do frio.
Logo distendia os nervos, cobrava calor... Atrás dele, o rumor penetrante de uma
discussão.
-...digo-lhe que Joe Louis fez de Schmeling uma massa na segunda vez! Nocaute-
ou-o no primeiro round!
- Está maluco! Louis simplesmente o derrubou numa luta de quinze rounds: por
pontos, no segundo...
- Parece que...
- Aposto dinheiro. Dez dólares numa decisão por pontos em quinze rounds, Mac.
Risadas confiantes se fizeram ouvir.
- Não quero ganhar tão fácil seu dinheiro, companheiro. Todos sabem que foi no-
caute.
- Ofereci dez dólares.
Niles voltou-se para ver o que estava acontecendo. Dois dos choferes de cami-
nhão, homens atarracados, de jaqueta cor de ervilha, encostavam um no outro os
respectivos narizes. A ideia lhe veio automaticamente: “Louis pôs Schmeling nocaute
no primeiro round, no Yankee Stadium, Nova Iorque, 22 de junho de 1938”. Niles
nunca fora grande esportista, e especialmente aborrecia-lhe o boxe, mas certa vez
dera uma vista d’olhos na página de um almanaque que catalogava as lutas pelo títu-
lo, e os dados, naturalmente, lhe ficaram gravados no cérebro.
Olhava indiferente enquanto o maior dos choferes batia na mesa uma nota de dez
dólares; o outro imitou-o. Então o primeiro, olhando para o dono do bar, disse o se-
guinte:
- Certo, mano. Você é um sujeito esperto. Quem acertou nessa segunda luta de
Louis e Schmeling?
O dono do bar era um homem de rosto inexpressivo, de meia-idade, já meio care-
ca, com olhos mansos e vazios. Mordeu o lábio um instante, encolheu os ombros,
hesitou, finalmente disse:
- Difícil lembrar. Foi há vinte e cinco anos essa luta.
“Vinte”, pensou Niles.
- Vejamos - prosseguiu o dono do bar. - Parece que me lembro... sim, é isso mes-
mo. Foram quinze rounds e os juizes deram a vitória a Louis. Houve um grande pro-
testo; os jornais disseram que Joe devia tê-lo matado muito antes disso.
Um sorriso triunfante se esboçou na cara do motorista maior, que destramente
empolgou ambas as notas.
O outro homem fez uma careta e soltou um berro:
- Ei! Vocês dois combinaram a coisa de antemão. Sei perfeitamente que Louis no-
cauteou o alemão em um!
- Ouviu o que o homem disse: o dinheiro é meu.
- Não - disse Niles repentinamente numa voz tranquila, que se diria ecoar até a
metade do bar. “Fique calado”, disse freneticamente com seus botões. “Isso não lhe
diz respeito. Fique de fora.”
Mas era demasiadamente tarde.
- O que está dizendo? - perguntou o tal que pusera os dez dólares na mesa.
- Digo que está sendo logrado. Louis venceu a luta em um round, conforme você
diz, a 22 de junho de 1938, no Yankee Stadium. O dono do bar está pensando na
luta de Arturo Godoy. Essa foi de quinze rounds, completos, a 9 de fevereiro de
1940.
- Está vendo? Eu bem disse! Devolva-me o dinheiro!
Mas o outro chofer não fez caso do grito e voltou-se para encarar Niles. Era um
homem de expressão fria, atarracado, e seus punhos começavam a se crispar...
- Espertinho, hein? Especialista em boxe?
- Eu só não queria ver alguém logrado - disse Niles obstinadamente. Mas já previa
o que vinha em seguida. O chofer, embriagado, ia trocando as pernas em sua dire-
ção; o dono do bar berrava, os outros campeões recuavam...
O primeiro soco acertou Niles nas costelas; ele gemeu, recuou cambaleando para
ser agarrado pela garganta e esbofeteado três vezes. Ouviu vagamente uma voz que
dizia:
- Olhe aí, solte o rapaz! Ele não queria nada! E você quer matá-lo?
Uma rajada de golpes fizeram-no curvar-se; um soco inchou-lhe a pálpebra direita,
outro golpeou-lhe o ombro esquerdo, adormecendo-o. Niles rodou a esmo, sabendo
que sua mente se recordaria permanentemente de cada momento dessa agonia.
De olhos semicerrados viu os outros arrancando o chofer enfurecido de cima dele;
o homem contorcia-se nas garras de três outros, mas desferiu um último pontapé
desesperado no estômago de Niles, atingindo uma costela, e finalmente foi subjuga-
do.
Niles ficou sozinho no meio da sala, esforçando-se para ficar de pé, tentando su-
portar as súbitas pontadas que o incomodavam numa dúzia de lugares.
- Você está bem? - perguntou uma voz solícita. - Diacho! Esses caras jogam duro.
Não devia se meter com eles.
- Estou bem - disse Niles numa voz cavernosa. - Mas espere um pouco... deixe-me
recuperar o fôlego.
- Isso. Sente-se. Tome um trago. Isso lhe dará ânimo.
- Não - disse Niles. - Não posso ficar aqui. Tenho de ir andando. Logo estarei bom
- murmurou sem convencer ninguém. Apanhou a mala, enrolou-se no sobretudo e
saiu do bar, passo a passo...
Andou quinze pés antes que a dor se lhe fizesse insuportável. De repente amonto-
ou-se no chão e caiu de bruços no escuro, sentindo de encontro às faces a terra en-
regelada e dura como aço. Em vão tentou levantar-se. E ali ficou, lembrando-se das
muitas dores que sofrera na vida, as surras, a crueldade... Mas quando o peso da
memória se lhe tornou demasiado, perdeu os sentidos.
A cama era tépida, os lençóis limpos, frescos e macios. Niles despertou lentamen-
te, sentindo uma momentânea sensação de tontura, mas a sua infalível memória su-
priu os dados do seu desmaio na neve e ele percebeu que se encontrava num hospi-
tal.
Tentou abrir os olhos; um se fechara, de tão inchado que estava, mas conseguiu
descerrar as pálpebras do outro. Achava-se no quarto de um pequeno hospital -
nada de um lustroso pavilhão metropolitano, mas de uma pequena clínica de conda-
do com vistosos objetos moldados nas paredes e cortinas de renda caseira, através
das quais penetrava o sol da tarde.
Fora encontrado e conduzido ao hospital. Isso era bom. Podia facilmente ter morri-
do lá fora, na neve; mas alguém tropeçara nele e o recolhera. Era uma novidade al-
guém ter-se incomodado em socorrê-lo; o tratamento que recebera na véspera na-
quele bar - fora mesmo na véspera? - era mais condizente com o que até então o
mundo lhe havia dado. Em dezenove anos, ele de algum modo fracassara em apren-
der a se esconder e se disfarçar adequadamente, por via do que sofria, diariamente,
terríveis consequências. Era-lhe tão difícil lembrar (ele, que de tudo se lembrava) que
as outras pessoas não eram como ele, e que além disso o odiavam por ele ser o que
era.
Apalpou cautelosamente o flanco. Parecia não haver nenhuma costela quebrada -
apenas machucaduras. Um dia ou dois de repouso e decerto lhe dariam alta, deixan-
do-o continuar a viagem.
Nisto, uma voz animada lhe falou:
- Oh, já acordou, Mr. Niles? Está melhor? Vou trazer-lhe um pouco de chá.
Ele ergueu a vista e sentiu uma súbita pontada muito aguda. Era uma enfermeira -
vinte e dois, vinte e três anos, talvez nova no emprego, com uma ondulante massa
de louros cachos e grandes olhos azuis, límpidos e redondos... Sorria, e pareceu a
Niles que o sorriso não era meramente profissional.
- Sou Miss Carroll, enfermeira diurna. Tudo vai bem?
- Otimamente - disse Niles com certa hesitação. - Onde estou?
- No Hospital Central Geral do Condado. Trouxeram-no ontem à noite - pelo visto
tinha sido espancado e largado na Rodovia 32. Foi uma sorte Mr. Mark McKenzie es-
tar passeando com seu cão, Mr. Niles. - E fitou-o gravemente. - Lembra-se de ontem
à noite, não se lembra? Quero dizer... o choque... a amnésia...
Niles riu para si mesmo.
- Essa é a última indisposição no mundo que hei de recear - disse. - Sou Thomas
Richard Niles, e me lembro muito bem do que sucedeu. Até que ponto me avaria-
ram?
- Ferimentos superficiais, um pequeno choque, um leve caso de queimadura pelo
frio - resumiu ela. - Vai viver. Daqui a pouco o Dr. Hammond lhe fará um exame ge-
ral; depois que o senhor comer. Vou buscar-lhe um pouco de chá.
Niles observou a esbelta figura que desaparecia no corredor.
Era certamente uma moça muito bonita, pensou: olhos límpidos... alerta... viva.
“O clichê é antigo: o paciente se apaixonando pela enfermeira. Porém ela não é
para mim. Receio que não.”
A porta abriu-se abruptamente e a enfermeira tornou a entrar, carregando uma
bandejinha esmaltada com o serviço de chá.
- Não adivinha? Tenho uma surpresa para o senhor, Mr. Niles. Uma visita. Sua mãe.
- Minha mãe...
- Ela leu a notícia no jornal do condado. Está esperando lá fora; disse-me que não
o vê há uns dezessete anos. Quer que eu a mande entrar?
- Acho que sim - disse Niles com voz seca e frágil. A enfermeira saiu pela segunda
vez.
“Meu Deus”, pensou Niles. “Se eu soubesse que estava tão perto de casa, teria fi-
cado fora de Ohio de uma vez!”
A última pessoa que desejaria ver no mundo era sua mãe. Pôs-se a tremer debaixo
das cobertas. As mais antigas e as mais terríveis lembranças irrompiam do escuro
compartimento de sua mente, onde as julgava para sempre aprisionadas. A súbita
emergência do calor para o frio, da treva para a luz, a vibrante pancada contra o seu
traseiro, a dor cruciante ao saber que se acabara a sua segurança, e que, de agora
em diante, viveria, e que, por isso, seria infeliz...
A lembrança do grito agônico do seu nascimento ressoou-lhe na mente. Nunca se
esqueceria de que nascera. E entre todas, sua mãe era a única pessoa que ele ja-
mais perdoaria, uma vez que ela o pusera no mundo que ele odiava. Tinha horror às
mulheres, mas...
- Olá, Tom. Faz tanto tempo...
Dezessete anos haviam-na murchado, marcado de rugas o seu rosto e tornado
suas faces mais balofas, os cerúleos olhos menos brilhantes, os cabelos castanhos de
um cinzento de camundongo. Ela sorria. E para seu próprio espanto, Niles conseguiu
retribuir-lhe o sorriso.
- Mãe.
- Li a notícia no jornal. Dizia que um homem de aproximadamente trinta anos fora
encontrado nas cercanias da cidade com papéis que traziam o nome de Thomas R.
Niles, e fora conduzido ao Hospital Central Geral do Condado. Por isso vim, apenas
para me certificar de que era você mesmo!
Uma mentira aforou à superfície de sua mente, uma mentira piedosa... e ele a dis-
se:
- Eu voltava para visitá-la, mãe. Vim de carona. Mas sofri um pequeno acidente na
estrada.
- Folgo em saber que você resolveu voltar, Tom. Fiquei tão só depois da morte de
seu pai, e, naturalmente, Hank se casou, Marian também... é bom tornar a vê-lo.
Pensei que nunca mais o veria.
Ele continuou deitado, perplexo, pensando por que não lhe vinha a costumeira
maré de ódio. Só sentia ternura por ela; estava contente em revê-la.
- E como foram todos esses anos, Tom? Não foram fáceis, não? Estou vendo. Per-
cebo em sua cara...
- Sim, não foram fáceis - respondeu. - Sabe por que fugi?
Ela fez com a cabeça um aceno afirmativo:
- Por causa do jeito que você tem. Aquela história de jamais esquecer seja lá o que
for... Eu sabia. Sabe que seu avô tinha o mesmo dom...
- Meu avô... mas...
- Você puxou a ele. Eu nunca lhe contei. Ele não se dava bem com nenhum de
nós. Abandonou minha mãe quando eu era menina e nunca se soube para onde foi.
Por isso sempre pensei que você se fora do mesmo modo que ele. Mas você voltou.
Está casado?
Ele sacudiu a cabeça.
- Então já é tempo de decidir, Tom. Tem quase trinta anos!
A porta do quarto abriu-se e entrou um médico de aspecto eficiente.
- Receio que a sua hora já se tenha esgotado, senhora. Mais tarde poderá voltar a
vê-lo. Vou examiná-lo, agora que está acordado.
- Naturalmente, doutor. - E sorriu para ele, depois para Niles. - Voltarei mais tarde,
Tom.
- Decerto, mãe.
Niles recostou-se, fazendo carrancas à medida que o médico o cutucava aqui e
acolá. “Eu não a odiava.” Um crescente maravilhamento o invadia, e ele pensava que
havia muito já devia ter voltado. Mudara interiormente, mesmo sem perceber.
Fugir foi sua primeira fase de crescimento - fase necessária. Porém querer voltar
aconteceu mais tarde e era sinal de maturidade. Voltara. E repentinamente viu que
fora terrivelmente idiota durante toda a sua amarga vida de adulto.
Possuía um dom, um grande dom, um dom terrífico. Até agora lhe fora demasiado
pesado. Condoendo-se de si próprio, atormentando-se, até então se recusara a per-
doar as faltas das pessoas que esqueciam, e pagara o preço do ódio delas. Mas não
podia andar fugindo a vida inteira. Tempo viria em que teria de crescer o suficiente
para dominar o dom, para aprender a viver com ele ao invés de gemer na dramática
angústia que a si próprio se infligia.
E esse tempo era agora. Já de há muito devia ter chegado.
Seu avô possuíra o dom - nunca lhe haviam dito isso. De modo que a coisa era ge-
neticamente transmissível. Podia casar, ter filhos... e também estes jamais se esque-
ceriam.
Era seu dever não consentir que o dom morresse com ele. Outros de sua espécie,
menos sensíveis, de pele menos fina, viriam após ele, e também estes saberiam
como evocar uma sinfonia de Beethoven ou um fiapo de conversa, depois de uma
década. Pela primeira vez desde aquele quarto aniversário, Tom sentiu um hesitante
lampejo de felicidade. Os dias de correria tinham findado; estava de novo em casa.
“Se eu aprender a viver com os outros, decerto também eles aprenderão a viver co-
migo.”
Viu então as coisas de que precisava: uma mulher, um lar, filhos...
-... Alguns dias de repouso, muita bebida quente, e ficará bom como novo, Mr. Ni-
les - disse o médico. - Gostaria que agora eu lhe trouxesse alguma coisa?
- Sim - disse Niles. - Mande-me a enfermeira, sim? Quero dizer, Miss Carroll.
O médico esboçou um sorrisinho e saiu. Niles aguardou cheio de expectativa, exul-
tando no seu novo eu. Ligou a mente para o terceiro ato dos Mestres cantores - jubi-
losa música de fundo - e deixou que a ternura o invadisse. Quando ela entrou no
quarto ele sorria, pensando em como diria o que tinha para lhe dizer.
Ismael apaixonado
Meu nome é Ismael. Sabem-no todos que me conhecem. Minha própria espécie
não emprega a designação de unidade estrutural (“nome”) para distinguir os indiví-
duos, mas foi esse o nome que os humanos me deram, e ele me basta. Fui assim
“nomeado” por Miss Lisbeth Calkins, por quem sinto uma emoção protetora, cava-
lheiresca e sexual (“amor”). Através da minha narrativa, entenda-se que a designa-
ção “Ismael” se refere apenas a mim.
Faço parte da inteligente espécie mamífero-aquática não-primata e não-humana,
Tursiops truncatus, ou golfinho roaz. Tenho onze anos, o que quer dizer que sou ple-
namente maduro em todos os sentidos. Peso cento e setenta e cinco quilos e meço
dois metros e nove centímetros em todo o comprimento. Trabalho na Estação Ge-
rard-Worzel de Recuperação da Água do Mar, St. Croix, ilhas Virgens, na qualidade de
mantenedor, tendo começado a trabalhar ali na data, segundo vocês, de 14 de agos-
to de 1944. Para a minha própria espécie sou sexualmente desejável; sou igualmente
muito considerado devido ao meu desenvolvimento mental. Possuo um grande voca-
bulário. Comunico-me facilmente com elementos Homo sapiens. Tenho considerável
habilidade mecânica, segundo podem ver pelo meu sucesso em ligar o dispositivo
acústico-eletrônico através do qual estou ditando estas memórias.
Sou um organismo mamífero solitário que tem cometido atos de heroísmo em prol
da sua espécie e que só deseja como recompensa relações mais íntimas (“amor”)
com Miss Lisbeth Calkins. Imploro aos membros compassivos da espécie Homo sapi-
ens que falem favoravelmente com ela a meu respeito. Sou leal, digno de confiança,
dedicado, fidedigno e extremamente inteligente. Esforçar-me-ei em retribuir-lhe a
companhia estimulante e a realização emotiva (“felicidade”) em tudo quanto me for
possível.
Permitam-me explicar as circunstâncias aqui pertinentes.
Categoria 1:
Meu emprego
Categoria 2:
Miss Lisbeth Calkins
Seu dossiê está arquivado aqui. Tive acesso a ele através do leitor de bobina mon-
tado na extremidade do tanque de exercício dos golfinhos. Por instruções faladas,
posso tirar tudo o que quiser dos arquivos da estação, conquanto duvide de que fos-
se previsto o fato de um golfinho querer ler algum dossiê pessoal.
Ela tem vinte e sete anos. Pertence, portanto, à mesma geração dos meus prede-
cessores genéticos (“pais”). No entanto, não partilho do tabu cultural prevalecente
entre muitos Homo sapiens contra relações emocionais com mulheres mais velhas.
Além disso, comparando as diferenças entre as espécies, ver-se-á que Miss Lisbeth e
eu somos da mesma idade. Ela atingiu a maturidade sexual na metade da vida. Eu
também.
(Devo confessar que se considera estar Lisbeth além da idade ótima na qual as fê-
meas humanas arranjam companheiro permanente. Suponho que ela não se entre-
gue à prática de acasalamento temporário, pois o seu dossiê não revela que já tives-
se tido filhos. É possível que os humanos necessariamente não tenham prole a cada
acasalamento, ou que os acasalamentos se realizem a esmo, em épocas imprevisí-
veis, não relacionadas com o processo reprodutivo. Isso me parece estranho e um
tanto perverso, todavia infiro de alguns dados que o caso bem pode ser esse. Há
poucas informações sobre os hábitos humanos de acasalamento no material que me
é acessível. Preciso estudar mais.)
Lisbeth, conforme me permito chamá-la em particular, tem um metro e oitenta
centímetros de altura (não se medem os humanos pelo comprimento) e pesa cin-
quenta e dois quilos. Seus cabelos são loiros e compridos. Sua pele, embora amore-
nada pela exposição ao sol, é bem clara. As íris de seus olhos são azuis. Segundo as
conversações que mantive com humanos, fiquei sabendo que é considerada bonita.
Pelas palavras que ouvi enquanto estava na superfície, percebi que a maioria dos
machos da Estação sentem por ela intensos desejos sexuais. Eu também a considero
bonita, dentro da minha capacidade de responder à beleza humana (pois tenho essa
capacidade). Não estou certo de sentir verdadeiro desejo sexual por Lisbeth; prova-
velmente, o que me perturba é um desejo generalizado de sua presença e proximi-
dade, que traduzo em termos sexuais simplesmente como um meio de tornar a coisa
compreensível a mim mesmo.
Além de qualquer dúvida, ela não possui os traços que normalmente procuro num
par (bico saliente, macias barbatanas). Qualquer tentativa de fazermos amor no sen-
tido anatômico certamente redundaria em dor e lesão para ela. Não é esse meu de-
sejo. Os traços físicos que a fazem tão desejável para os machos de sua espécie
(glândulas de leite altamente desenvolvidas, cabelos lustrosos, feições delicadas e
compridos membros ou “pernas”, etc.) não têm particular importância para mim, e,
em alguns exemplos, têm realmente um valor negativo Como no caso das duas glân-
dulas de leite da região peitoral, que apontam de seu corpo de um modo que decer-
to a atrapalha quando ela nada. O modelo é pobre e sou incapaz de descobrir beleza
num modelo pobre. Evidentemente, a própria Lisbeth lamenta o tamanho e a locali-
zação de tais glândulas, uma vez que toma cuidado em escondê-las todo o tempo
numa estreita faixa. Os outros da Estação, que são todos machos e, portanto, ape-
nas têm glândulas de leite rudimentares, que de modo algum lhes destrói a linha on-
dulada dos corpos, trazem-nas à mostra.
Qual é, portanto, a razão da minha atração por Lisbeth?
Provém, com certeza, da necessidade que tenho de sua companhia. Creio que ela
me compreende como não o faz nenhum membro de minha espécie. Daí eu ficar
mais feliz em sua companhia do que longe dela. Essa impressão data do nosso pri-
meiro encontro. Lisbeth, que é especialista em relações humano-cetáceas, chegou
quatro meses atrás a St. Croix, e fui solicitado a levar meu grupo de manutenção
para a superfície para lhe ser apresentado. Saltei bem alto para vê-la bem, e instan-
taneamente percebi que ela era de melhor qualidade que os humanos que já conhe-
cia; seu corpo era mais delicado, a um tempo frágil e vigoroso, e a sua graciosidade
era uma bem-vinda mudança na grosseira deselegância dos machos humanos que eu
conhecia. Não estava recoberta com os ásperos pelos corporais que minha espécie
considera tão desagradáveis. (Eu não sabia que a diferença entre Lisbeth e os outros
da Estação residia no fato de ela ser fêmea. Nunca antes vira uma fêmea humana,
porém logo aprendi a diferença.)
Fui para a frente, estabeleci contato com o transmissor acústico e disse:
- Sou o capataz mantenedor da tomada das águas. Minha designação de unidade
estrutural é TT-66.
- Não tem nome? - perguntou ela.
- Que quer dizer “nome”?
- A sua designação de unidade estrutural... mas não apenas TT-66. Só isso não
adianta. Por exemplo, meu nome é Lisbeth Calkins. E eu... - Sacudiu a cabeça e
olhou para o superintendente da empresa. - Esses trabalhadores não têm nome?
O superintendente não via por que os golfinhos deviam ter um nome. Lisbeth ha-
via muito se preocupava com isso e, como agora estava encarregada da ligação co-
nosco, imediatamente nos foi dando nomes. Assim, eu fui chamado de Ismael. Era o
nome, contou-me ela, de um homem que saíra para o mar, tivera muitas experiên-
cias maravilhosas e a todas anotou numa bobina de histórias, tocada por toda pes-
soa culta. Desde então tive acesso à história de Ismael - o outro Ismael - e concordo
em que a mesma é extraordinária. Para um ser humano, ele possuía uma penetração
incomum nos costumes das baleias, que entretanto são criaturas estúpidas, pelas
quais nutro pouco respeito. Mas orgulho-me de carregar comigo o nome de Ismael.
Depois que ela deu nome a cada um de nós, saltou no mar e pôs-se a nadar co-
nosco. Devo dizer que os golfinhos, quase todos eles, sentem uma espécie de des-
prezo para com vocês, humanos, pobres nadadores que são. Talvez seja devido à mi-
nha inteligência acima do normal ou a uma compaixão maior o fato de eu não me
sentir assim. Admiro-os pelo zelo e energia que emprestam à natação, e vocês na-
dam muito bem, considerando todas as suas desvantagens. E segundo lembro à mi-
nha espécie, vocês conseguem nadar com muito maior desembaraço do que nós
conseguiríamos andar em terra. Seja como for, Lisbeth nadava bem, segundo pa-
drões humanos, e nós tolerantemente ajustávamos o nosso ritmo ao dela. Brincamos
na água algum tempo. Depois ela agarrou minha barbatana dorsal e disse:
- Leve-me a um passeio, Ismael!
Agora tremo quando me lembro do contato de seu corpo com o meu. Ela caval-
gou-me, suas pernas me apertando estreitamente, e lá fui eu com toda a velocidade,
voando alto sobre a superfície. Suas risadas revelavam o prazer que sentia enquanto
eu me lançava uma e muitas vezes pelo ar. Era uma exibição puramente física, na
qual eu não fazia uso da minha extraordinária capacidade mental. Estava apenas
mostrando minha qualidade de golfinho. A reação de Lisbeth era nada menos que
extática. Mesmo quando eu mergulhava, levando-a para uma profundeza tão grande
que ela poderia ter receado algum dano por causa da pressão da água, ela continua-
va agarrada a mim sem qualquer sinal de alarma. Quando voltávamos à superfície,
dava gritos de alegria.
Meu primeiro impacto sobre ela foi de pura animalidade. Conhecia suficientemente
os seres humanos para interpretar sua expressão ruborizada e exultante quando a
trazia de volta à praia. Agora meu desafio consistia em expô-la às minhas superiores
qualidades; mostrar-lhe que, mesmo entre golfinhos, eu era incomumente rápido de
compreensão, incomumente capaz de entender o universo.
Então já a amava...
Nas semanas que se seguiram mantivemos muitas conversações. Não estarei me
gabando se disser que ela logo percebeu como sou extraordinário. Meu vocabulário,
já bastante grande quando ela chegou à Estação, aumentou rapidamente com o estí-
mulo de sua presença. Aprendia com ela, que me franqueava o acesso a bobinas que
golfinho algum teria sonhado em ouvir; desenvolvi percepções no meu ambiente que
espantavam a mim próprio. Em pouco tempo atingi o píncaro dos meu dotes. Penso
que vocês concordam em que posso me exprimir com mais eloquência do que a
maioria dos seres humanos. Confio em que o computador que imprime estas memó-
rias não me traia, aqui inserindo uma pontuação inadequada ou errando a grafia cer-
ta das palavras cujos sons enuncio.
Meu amor por Lisbeth se aprofundou, ficou mais rico. Aprendi pela primeira vez o
que era ciúme quando a vi de braço dado passeando na praia com o Dr. Madison, o
homem da usina elétrica. Conheci a ira ao ouvir as libidinosas e vulgares observações
dos machos humanos à passagem de Lisbeth. Seu fascínio me levou a explorar mui-
tos setores de experiência da sua espécie; não me atrevia a falar com ela a esse res-
peito, mas, por intermédio do pessoal da base, que às vezes falava comigo, fiquei co-
nhecendo alguns aspectos do fenômeno que os humanos chamam de “amor”. Igual-
mente obtive informações das palavras vulgares ditas às suas costas por alguns ma-
chos; a maioria delas dizia respeito ao seu desejo de se acasalarem com Lisbeth
(aparentemente numa base temporária), mas também ouvi descrições altamente fa-
voráveis de suas glândulas de leite (por que são os humanos tão agressivamente
mamíferos?), até mesmo da região arredondada na parte de trás, logo acima do lu-
gar onde seu corpo se divide em dois membros traseiros. Confesso que essa região
também me fascina. Parece tão estranho o corpo de alguém dividir-se ao meio desse
modo!
Nunca declarei explicitamente os meus sentimentos para com Lisbeth. Experimen-
tei conduzi-la devagar para a compreensão de que eu a amava. Uma vez desperta
para essa consciência, poderíamos começar a planejar alguma espécie de futuro para
a nossa vida em comum.
Como eu era tolo!
Categoria 3:
A conspiração
Categoria 4:
Minha resposta aos criminosos
Categoria 5:
A recompensa pelo heroísmo
Antes de a madrugada nascer saí para o mar. Nadei onde nadam os golfinhos, lon-
ge do homem e suas coisas. A risada sarcástica de Lisbeth vibrava em mim. Não pre-
tendia ser cruel. Ela, que me conhece melhor que ninguém, não pudera deixar de rir
diante do meu disparate.
Tratando de minhas feridas, fiquei muitos dias no mar, negligenciando meus deve-
res na Estação. Lentamente, à medida que a dor cedia lugar a um sofrimento surdo,
regressei à ilha. De passagem encontrei uma fêmea de minha própria espécie. Entra-
ra em cio e se me ofereceu, mas eu lhe disse que me acompanhasse, o que ela fez.
Muitas vezes tive de afastar outros machos que desejavam usá-la. Levei-a para a Es-
tação - para a lagoa que os golfinhos usam para esportes. Um membro da equipe ali
veio investigar - chamava-se Mordred - e eu lhe pedi que chamasse Lisbeth para lhe
dizer que eu regressara.
Lisbeth apareceu na praia. Abanou a mão para mim, sorriu, chamou meu nome.
Diante dos olhos dela brinquei com o golfinho fêmea. Dançamos a dança do acasa-
lamento; rompemos a superfície e chicoteamo-la com nossas barbatanas; saltamos,
elevamo-nos no ar, rugimos...
Lisbeth nos olhava. E eu rezava: que ela fique com ciúmes.
Agarrei minha companheira, arrastei-a para as profundezas e a possuí violenta-
mente; depois deixei-a livre para ir ter meu filho em qualquer outro lugar.
Esta noite, no escuro, contei minha história. Vocês que a escutam, sejam quem fo-
rem, ajudem um organismo solitário, mamífero e aquático, que deseja um contato
mais íntimo com uma fêmea de espécie diferente. Digam-lhe bem de mim. Gabem a
minha inteligência, a minha lealdade, a minha dedicação. Digam-lhe que lhe dou
mais uma oportunidade. Ofereço-lhe uma experiência única e excitante. Espero-a,
amanhã à noite, à beira do recife. Que ela nade até mim. Que ela abrace este pobre
Ismael solitário. Que me diga palavras de amor...
“Das profundezas de minh’alma... das profundezas... Lisbeth, este animal infeliz
lhe dá boa-noite, em roncos do mais profundo amor.”
Viagem de Ida sem Volta
Mais tarde, na teia loucamente contorcida de ruas ao acaso que era a cidade es-
trangeira, Warshow começou a desejar ter obrigado Cullinan a acompanhá-lo. Ao
abrir caminho por entre enxames de kollidorianos plácidos, feios, largos de cara, la-
mentou estar sozinho.
Que faria, pensava, quando finalmente chegasse ao apartamento onde a moça kol-
lidoriana e Falk moravam? Warshow não estava habituado a lidar com relações inter-
pessoais dessa espécie. Não sabia o que dizer à moça. Mas pensava poder tratar
com Falk.
“A relação de um comandante com seu tripulante é uma relação de pai para filho”,
dizia o livro. Warshow arreganhou conscientemente uma risada. Justamente agora
não se sentia muito paternal; era, de preferência, um severo mentor.
Continuou andando. A cidade de Kollidor se espraiava à sua frente como um ema-
ranhado novelo de lã se desenrolando em cinco direções ao mesmo tempo; parecia
que suas ruas haviam sido assentadas quase a esmo. Mas Warshow conhecia bem a
cidade. Esse era o terceiro giro de inspeção no setor de Kollidor: por três vezes trou-
xera para ali um carregamento da Terra, por três vezes ali aguardara que sua nave
fosse carregada de mercadorias kollidorianas para exportação.
Lá em cima, o distante sol branco-azulado ardia brilhantemente. Kollidor era o dé-
cimo terceiro planeta de seu sistema; e Kollidor girava num enorme arco, aproxima-
damente a quatro bilhões de milhas do seu centro.
Warshow fungou; isso o fez lembrar-se de que chegara a hora de tomar sua regu-
lar injeção anti-pólen Já se protegera perfeitamente, bem como toda a tripulação,
contra a maior parte das formas de doenças estrangeiras que provavelmente pode-
riam afetá-lo na viagem.
“Mas como proteger alguém como Falk?”, perguntou Warshow sombriamente a si
mesmo. Não havia respostas fáceis para isso. Ordinariamente, não pareciam neces-
sárias vacinas contra uma paixão despertada por bovinas mulheres estrangeiras,
mas...
- Boa tarde, Comandante Warshow - disse de repente uma voz seca.
Warshow olhou à volta, surpreso e aborrecido. O homem que se encontrava atrás
dele era alto, magro, tinha molares nodosos avançando grotescamente sob a pele
apergaminhada, de um branco-giz. Warshow reconheceu o padrão genético, e o ho-
mem. Tratava-se de Domnik Kross, negociante da antiga colônia terráquea de Rigel
IX.
- Olá, Kross - disse Warshow, taciturno, fazendo alto para que o outro se aproxi-
masse dele.
- O que o traz à cidade, comandante? Pensei que estivesse fazendo as malas para
regressar.
- Adiamos a volta quatro dias - disse Warshow.
- Oh, tem aí alguma mercadoria que valha a pena? Não que eu queira...
- Esqueça isso, Kross. - E a voz de Warshow se mostrava cansada. - Não faremos
mais negócios nesta temporada. O campo está livre. Agora deixe-me sozinho, sim?
E apressou o passo; mas o rigeliano, sorrindo sombriamente, acompanhou-o.
- Parece perturbado, comandante.
Warshow fitou o outro impacientemente, desejoso de desabafar na companhia do
rigeliano.
- Estou numa missão da mais alta segurança, Kross. Vai insistir em me acompa-
nhar?
Os lábios se abriram manhosamente num frio arreganho.
- De modo algum, Comandante Warshow. Simplesmente quis ser delicado e acom-
panhá-lo uma parte do caminho para barganhar notícias. Ao fim e ao cabo, se vai
partir nestes quatro dias, já não seremos mais rivais, e...
- Exatamente - disse Warshow.
- Que história é essa de um de seus tripulantes ter ido morar com uma mulher na-
tiva? - perguntou Kross subitamente.
Warshow rodopiou nos calcanhares e encarou-o atentamente.
- Não é nada. - E Warshow rangeu os dentes. - Está ouvindo? Não é nada!
Kross riu para dentro, e Warshow viu que decididamente havia perdido um tento
na rivalidade mortalmente fria entre os terráqueos e os rigelianos, entre o homem e
o filho do homem. Uma derivação genética era responsável pelos Domnik Kross - um
bocadinho de cromossomos derivando para um planeta colonizado, uma débil tintura
de miscigenação em dez gerações e uma nova subespécie aparecendo: estranha su-
bespécie que tinha pouco amor por seus progenitores.
Alcançara um complicado cruzamento de rua, e o comandante impulsivamente vi-
rou à esquerda. Muito satisfeito, percebeu que Kross não o seguia.
- Até o ano que vem! - disse o rigeliano.
Warshow respondeu com um ronco cauteloso e continuou descendo a rua imunda,
feliz por haver se livrado tão depressa de Kross. Os rigelianos, pensava, eram maus
fregueses. Viviam com ciúme do planeta-mãe e seus povos, sempre ansiosos em
vencer um terráqueo num negócio lucrativo numa terra como Kollidor.
“Devido a Kross é que estou indo para o lugar aonde vou”, refletia Warshow. A
pressão por parte dos rigelianos forçava os terráqueos a manterem as aparências em
toda a galáxia. O fardo do homem terráqueo era esse, dizia-se comumente. Deixar
para trás um desertor em Kollidor poria em perigo o prestigio da Terra aos olhos de
todo o universo - e os astutos rigelianos tudo fariam para que o universo inteiro o
soubesse.
Warshow sentia-se encurralado. Enquanto se aproximava do apartamento de Falk,
fios de um suor pegajoso lhe escorriam pelas costas abaixo...
Uma nuvem espessa e pesada de droga pairava na cabina quando Cullinan con-
cluiu os preliminares. Falk mexeu-se e pôs-se a tatear no rumo da consciência. Culli-
nan estendeu a Warshow uma seringa ultrassônica de injeção, cheia de um líquido
claro e cintilante
Assim que Falk pareceu pronto a abrir os olhos, Cullinan inclinou-se sobre ele e co-
meçou a falar - tranquilamente, carinhosamente. A carranca de Falk desapareceu e
ele se entregou.
- Dê-lhe a droga - murmurou Cullinan.
Warshow tocou hesitantemente com a seringa o braço amorenado de Falk. A serin-
ga ultra-sônica zumbiu brevemente, e o líquido se espalhou como um borrão. War-
show administrou três centímetros cúbicos e retirou a agulha.
Falk soltou um suave gemido.
- Levará alguns minutos - disse Cullinan.
O relógio da parede circulava lentamente. Após algum tempo, as pálpebras pesa-
das de sono de Falk se agitaram. Ele abriu os olhos e ergueu o olhar, sem aparente-
mente reconhecer o ambiente onde estava.
- Alô, Mat. Viemos falar com você - disse Cullinan. - Ou antes: queremos que você
fale conosco.
- Sim - respondeu Falk.
- Comecemos por sua mãe, sim? Conte-nos o que lembra a seu respeito. Volte ao
passado.
- Minha... mãe? - A pergunta pareceu intrigar Falk, que permaneceu calado alguns
minutos. Em seguida umedeceu os lábios. - O que desejam saber a seu respeito?
- Conte-nos tudo - insistiu Cullinan.
Fez-se uma pausa. Warshow continha a respiração. Finalmente, Falk começou a fa-
lar.
“Quente. Aconchegado. Abrace-me. Mamãe.
Estou só. É noite e estou chorando. Há alfinetes de fralda na perna sobre a qual
me deitei, e a noite cheira a frio. Tenho três anos e estou só.
Abrace-me, mamãe!
Ouço mamãe subir a escada. Moramos numa velha casa com escadas, perto do
porto espacial onde passam as grandes naves: vupt! Sinto o cheiro suave de mamãe
que me abraça. Mamãe é grande, cor-de-rosa e macia. Papai é cor-de-rosa também,
mas não cheira a calor. O tio é a mesma coisa.
‘Ah, ah, filhinho’, diz ela. Agora está no quarto e me abraça apertado. Isso é bom.
Estou ficando com sono. Em um ou dois minutos adormecerei. Gosto muito de ma-
mãe.”
- É essa a mais antiga recordação que tem de sua-mãe? - perguntou Cullinan.
- Não. Acho que há outra, mais antiga.
“Está escuro, aqui. Escuro e muito quente. Úmido e muito bom. Não estou me me-
xendo. Estou sozinho aqui, e não sei onde estou. É como flutuar num oceano. Um
grande oceano. O mundo inteiro é um oceano.
Aqui é bom, bom de verdade. Não estou chorando.
Agora há fagulhas azuis na negrura que me cerca. Cores... de toda espécie. Ver-
melho, verde e amarelo-limão, e... estou me mexendo! Sinto dor e empuxões, e...
Deus meu! Está esfriando! Sufoco! Acho-me suspenso, vou me afogar no ar lá fora!
Estou...”
- Isso basta - disse Cullinan depressa. E explicou a Warshow: - É o trauma do nas-
cimento. Desagradável. Não era preciso fazê-lo passar por isso novamente.
Warshow estremeceu e enxugou a testa.
- Devo continuar? - perguntou Falk.
- Sim, continue.
“Tenho quatro anos e chove, tic-tac, lá fora. Parece que o mundo inteiro ficou cin-
zento. Mamãe e papai estão fora, e me encontro novamente sozinho. O tio está lá
embaixo. Na verdade não conheço o tio, mas acho que ele se acha todo o tempo
aqui. Mamãe e papai saem muito. Ficar sozinho é como chuva fria. E aqui chove mui-
to.
Estou deitado na minha cama, pensando em mamãe. Quero mamãe. Mamãe to-
mou o avião a jato e foi para algum lugar. Quando eu crescer, também quero ir de
avião a jato para algum lugar quente e claro, onde não chova.
Lá embaixo o telefone toca, tlin-tlin. Dentro de minha cabeça posso ver a tela se
iluminando cheia de cores, e tento figurar o rosto de mamãe no meio da tela. Mas
não posso. Ouço a voz do tio falando baixo e resmungando. Decidi que não gosto do
tio e começo a chorar.
O tio está aqui, diz que sou grande demais para chorar. Que não devo mais chorar.
Digo-lhe que quero mamãe. O tio faz uma boca feia e eu choro mais alto.
- Silêncio - diz ele. - Silêncio, Mat. Vamos, vamos, Maty.
Ele endireita minhas cobertas, mas eu esperneio e as desarranjo outra vez, pois sei
que ele fica agastado com isso. Gosto de agastá-lo porque ele não é mamãe nem pa-
pai. Mas desta vez ele parece não se importar. Apenas torna a endireitar as cobertas,
e dá-me pancadinhas na testa. Há suor em suas mãos e ele me aborrece.
- Quero mamãe - torno a dizer.
Ele me olha por muito tempo. Depois diz: - Mamãe não voltará.
- Nunca mais? - pergunto.
- Nunca mais - responde ele.
Não acredito, mas não recomeço a chorar, pois não quero que ele saiba que pode
me assustar.
- E papai? - pergunto. - Traga-o aqui!
- Papai também não voltará - diz ele.
- Não acredito. Não gosto de você, tio! Detesto-o!
Ele sacode a cabeça e tosse. - Melhor você aprender a gostar de mim - diz. - Não
tem mais ninguém no mundo.
Não compreendo o que ele diz, mas não gosto do que ouço. Jogo as cobertas para
fora da cama e ele as recolhe. Torno a jogá-las, e ele me bate.
Depois se inclina depressa e me beija, mas não cheira como deve e eu recomeço a
chorar. A chuva recomeça. Berro que quero mamãe, mas mamãe não vem. Nunca
mais virá.”
Falk calou-se um momento e cerrou os olhos.
- Ela morreu? - disse Cullinan.
- Morreu - disse Falk. - Ela e papai morreram num acidente de aviação, no regres-
so de uns feriados em Bangkok. Eu tinha então quatro anos. Meu tio me criou. Não
nos dávamos muito bem, e quando completei catorze anos ele me pôs na academia.
Aí fiquei quatro anos, fiz dois anos de técnica graduada, depois liguei-me à Importa-
ção Terra. Mais dois anos em Denufar, sendo em seguida transferido para a nave Ma-
gyar, do Comandante Warshow, onde... onde...
Aí parou abruptamente. Cullinan olhou para Warshow e disse:
- Agora está esquentando. Estamos prontos - procurou uma metáfora - para des-
cobrir terreno aurífero. - E dirigindo-se a Falk: - Conte como foi que conheceu Theto-
na.
“Estou sozinho, vagueando em Kollidor. É um espraiado de casas cônicas muito en-
graçadas e ruas malucas, mas por baixo de tudo posso ver que é justamente igual à
Terra. As pessoas são pessoas. São bastante bizarras, mas têm uma cabeça, dois
braços e duas pernas, o que as torna mais parecidas com gente do que outros es-
trangeiros que vi.
Warshow nos deu uma tarde de folga. Não sei por que saí da nave, mas aqui estou
na cidade - sozinho. Sozinho! Com a breca: sozinho!
As ruas são calçadas, os passeios, não. De repente me senti muito cansado e ton-
to. Sentei-me à beira do passeio, pus a cabeça nas mãos. Os estrangeiros só fazem
andar em redor de mim, como fariam as pessoas de qualquer cidade grande.
‘Mamãe’, penso.
E de repente uma grande solidão sobe do meu interior e se derrama sobre mim - e
eu começo a chorar. Não mais chorei... desde que... desde que... fazia muito que não
chorava. Mas agora choro - roucos ofegos de catraca e lágrimas rolando pelas faces
abaixo, formando fios nos cantos da boca. As lágrimas sabem a sal. Parecem-se um
pouco com gotas de chuva.
Meu flanco começa a incomodar-me no lugar machucado pelo acidente. Começa
perto do ouvido e corre como uma chama azul até a coxa: dói como o diabo. Os mé-
dicos disseram que não mais doeria. Mentira.
Eu sentia a minha solidão como uma roupa fechada me isolando do resto do mun-
do. ‘Mamãe’, tornei a pensar. Uma parte do meu eu dizia: ‘Aja como adulto’, mas essa
parte está cada vez mais calada. Continuo a chorar, e desejo, desesperadamente, ter
minha mãe perto de mim. Agora percebo que nunca realmente conheci direito minha
mãe, exceto há muito tempo atrás.
Depois sobrevém um cheiro nauseante e desagradável, e sei que um estrangeiro
se aproximou de mim. Vão agarrar-me pela nuca e jogar-me na rua como a qualquer
pinguço de olho lacrimoso... Warshow vai me fazer passar um mau quarto de hora.
- Está chorando, terráqueo - disse uma voz cálida.
A língua kollidoriana é algo quente, líquida, fácil de aprender; essa, porém, soava
particularmente cordial. Voltei-me, e lá estava essa grande mulher nativa
- Sim, estou chorando - respondi, e virei-lhe o rosto. Suas grandes mãos me agar-
raram e eu tremi um pouco. É uma sensação engraçada a gente ser agarrado por
uma estrangeira.
Ela sentou-se a meu lado.
- Parece muito triste - disse.
- Estou mesmo - respondi.
- Por quê?
- Você jamais compreenderia - respondi. Viro a cabeça e sinto as lágrimas volta-
rem a correr de meus olhos; aí ela me agarra impulsivamente. Quase chego a vomi-
tar com o cheiro dela, mas num par de minutos percebo estranhamente algo doce e
gostoso em sua pessoa.
Seu traje lembra um saco de batatas, e cheira forte. Mas ela encosta minha cabeça
em seus enormes seios cálidos e assim ficamos.
- Como é seu nome, infeliz terráqueo?
Respondo: - Falk. Mathew Falk.
- O meu é Thetona - diz ela. - Vivo sozinha. E você?
- Não sei - respondo. - Palavra que não sei.
- Mas como pode não saber que é só? - pergunta ela.
Desencosta minha cabeça de seus seios e olhamo-nos nos olhos. Verdadeiramente
romântico. Seus olhos são como moedas de cinquenta centavos embaçadas. Fitamo-
nos e ela enxuga as lágrimas de meus olhos.
Sorri. Acho que é um sorriso. Ela tem cerca de trinta sulcos em círculo debaixo do
nariz, e isso é sua boca. Todos os sulcos se contraem. Atrás deles vejo uns brilhantes
dentes agudos.
Depois de sua boca torno a fitar-lhe os olhos, e desta vez não me parecem muito
embaçados. São brilhantes como os dentes, ternos e profundos.
Quente. Seu cheiro é quente. Tudo nela é quente.
Recomeço a chorar - convulsivamente, sem saber por quê, sem saber que diacho
está me acontecendo. Ela parece palpitar, e eu penso ver uma mulher terráquea ali
perto, me embalando. Pisco. Nada há ali, exceto uma feia estrangeira.
Mas ela já não é tão feia. É cálida e agradável, de um certo modo estranho, e a
minha parte que discorda é muito pequenina e soa fracamente. Ouço-a gritar: ‘Não’;
depois para e desaparece.
Algo estranho explode dentro de mim. Deixo explodir. Estoura como uma flor -
uma rosa, uma violeta, e é o perfume dessas flores o que sinto, não o cheiro dela.
Enlaço-a nos braços.
- Quer acompanhar-me à minha casa? - pergunta ela.
- Sim, sim - respondo. - Sim.”
Abruptamente, Falk parou após a vibrante afirmação, e seus olhos vidrados se fe-
charam. Cullinan disparou imediatamente o raio, e o corpo retesado do rapaz desa-
bou.
- Então? - perguntou Warshow. Sua voz era seca e ríspida. - Considero-me imundo
depois de ouvir isso.
- Não devia - disse o oficial psíquico. - É uma das coisas mais nojentas que já des-
cobri. E você não a entende; não é?
O comandante abanou lentamente a cabeça.
- Por que ele fez isso? Apaixonou-se por ela... mas, por quê?
Cullinan riu para dentro.
- Logo verá. Mas quero um par de outras pessoas aqui quando eu o descobrir. Pri-
meiro de tudo, a moça: depois, Sigstrom.
- O médico? Por quê, diacho?
- Porque... se não me engano... ele terá grande interesse em ouvir o resultado. - E
Cullinan arreganhou um sorriso enigmático - Deixemos Falk descansar, sim? Precisa
de um descanso depois de tudo isso.
- Eu também preciso - disse Warshow.
Quatro pessoas observavam caladas enquanto Falk entrava pela segunda vez num
transe provocado pela droga. Warshow estudava o rosto da estrangeira, Thetona, à
espera de algum sinal do calor ao qual Falk aludira. E, com efeito, Warshow o viu:
estava ali. Atrás dela sentava-se Sigstrom, médico-chefe do Magyar. A direita, Culli-
nan. E, deitado no catre, no canto da cabina, olhos abertos porém sem ver, jazia Mat
Falk.
- Mat, você me ouve? - perguntou Cullinan. - Quero que retroceda um pouco...
Agora está a bordo. A época é mais ou menos um mês atrás. Está trabalhando na
Seção de Conversores - você e Dave Murff, ambos lidando com material quente. Está
entendendo?
- Sim - disse Falk. - Sei o que quer dizer.
“Estou na Seção de Conversores AA, tirando tório do vinho branco para alimentar
os reatores atômicos; a nave precisa continuar andando. Dave Murff está comigo.
Formamos uma boa parelha nas pás. Apanhamos os pedaços de matéria quente e os
empilhamos à beira do reator. Não é fácil manipular as mãos mecânicas de controle
remoto, mas não tenho medo. Esse é meu oficio e sei como exercê-lo.
Estou pensando naquele bastardo do Warshow. Nada tenho de particular contra
ele, mas o sujeito me aborrece. Engraçado o jeito que ele tem de ficar tenso cada
vez que manda alguém fazer alguma coisa. Faz-me lembrar meu tio. Sim, meu tio. É
com meu tio que eu queria compará-lo.
Não gosto muito de Warshow. Se agora ele chegasse aqui, talvez eu lhe desse
uma pancada com a pá - uma pancada não muito forte, apenas suficiente para fritar-
lhe um pouco o couro, para fazê-lo passar um mau quarto de hora.
- Ei - grita Murff. - Volte a pôr em linha a pá número 2.
- Não se aflija - digo eu. - Não é a primeira vez que lido com estes nenês, seu
palerma.
Estou bem protegido, mas o ar tem um cheiro engraçado, como se o tório estives-
se a ionizá-lo. Penso se haverá algo errado.
Balanço a pá número 2 e deixo cair o tório no reator. Acende-se a luz verde, signi-
ficando que o golpe deu certo; a matéria quente desaba para dentro do reator, es-
murrando os neutrônios como louca.
Então Murff dá o sinal e eu mergulho a pá nas pilhas e daí tiro mais matéria quen-
te com a pá número 1.
- Ei - torna ele a gritar, e em seguida a pá número 2 se me escapa, a pá vazia...
O enorme braço balança no ar, e vejo os dedinhos, de delicadas juntas ósseas de
metal que a alguns segundos ainda estavam prendendo um pedaço de material Th
233, vermelho em brasa. Pareciam querer me agarrar.
Solto um grito. Meu Deus! Murff também grita e eu perco o controle, enquanto ele
tenta se pôr atrás do painel de controle e agarrar o cabo da pá. Mas estou no cami-
nho, tão enregelado que ele não pode fazer nada. Ele se esquiva e se achata no
chão, enquanto o enorme braço mecânico se espatifa contra a blindagem.
Não posso me mover.
Ali fico. Os dedinhos me arranham o lado esquerdo do maxilar e eu grito. Estou em
fogo. A mão de metal raspa-me o flanco, mal me tocando, e é como uma navalha em
brasa talhando minha carne em fatias.
É tanta dor que mal a sinto. Meus nervos ficam anulados. Não mais conduzirão
mensagens a meu cérebro.
E a dor afinal me invade...
Socorro! Estou ardendo! Socorro!”
Mais tarde Mat Falk viu os quatro reunidos na cabina. Ouvira a própria voz reme-
morando sua vida. Agora sabia.
Fez-se um longo silêncio depois da última fita, e Falk falou:
- Tudo, tudo acabado. E estou terrivelmente só.
As palavras se diriam suspensas no aposento. Afinal Falk disse:
- Obrigado. - Sua voz era fria, dura, difícil, inerte.
- Obrigado? - repetiu Warshow sem entusiasmo.
- Obrigado, sim, porque me abriram os olhos; por terem consentido que eu desse
uma espiadela por detrás de minhas pálpebras. É isso mesmo: obrigado.
O rosto do rapaz se mostrava taciturno e amargo.
- Naturalmente você compreende que foi necessário - disse Cullinan. - Porque
nós...
- Sim, sei por quê - respondeu Falk. - E agora posso voltar à Terra com vocês, e
suas consciências estão limpas.
Olhou para Thetona, que o fitava com uma curiosidade inquieta estampada em
todo o seu largo rosto. Falk estremeceu ligeiramente quando seus olhos se encontra-
ram com os da estrangeira. Warshow captou a reação e sacudiu a cabeça: a terapêu-
tica fora um sucesso.
- Eu era feliz - disse Falk tranquilamente - até que vocês resolveram levar-me de
volta à Terra em sua companhia. Por isso me fizeram passar por uma tortura, tiraram
de mim todas as psicoses. E... e...
Thetona deu dois pesados passos em sua direção e pousou os braços em seus om-
bros.
- Não - murmurou ele, libertando-se. - Não vê que está tudo acabado?
- Mat - disse Warshow.
- Não me chame de Mat, capitão! Agora estou fora do ventre, e faço parte da tri-
pulação. - E volvendo uns olhos tristonhos para Warshow: - Thetona e eu tínhamos
em comum uma coisa boa e cálida e muito bela, mas você a destruiu. Não posso
juntar-lhe os cacos. Bem, capitão, agora estou pronto para voltar à Terra.
E sem qualquer outra palavra saiu do aposento a largas passadas.
O rosto cor de cinza, Warshow olhou fixamente para Cullinan e Thetona, e baixou
a vista.
Lutara para conservar Mat Falk, e vencera - vencera mesmo? De fato, sim; mas...
em espírito? Falk nunca lhe perdoaria o que fizera para salvá-lo.
Warshow encolheu os ombros, rememorando o livro que dizia: “A relação do co-
mandante para com o tripulante é a de pai para filho”.
Não iria permitir que o olhar amargurado de Falk o perturbasse; com efeito, era de
esperar a amargura do rapaz.
Criança nenhuma realmente perdoa ao pai este lançamento para fora do ventre...
- Vamos, Thetona - disse à grandalhona e enigmaticamente carrancuda estrangei-
ra. - Venha comigo. Vou levá-la de volta à cidade.
Nascer do Sol em Mercúrio
Enquanto a nave tocava o solo, Ross ia pensando: “Mercúrio era dois infernos em
um só”. Era o frio reino gelado do mais profundo abismo de Dante; era também o
domínio de fogo e enxofre que algum outro concebera. Os dois ali se encontravam,
fogo e gelo, cada hemisfério sua própria espécie de inferno.
Ross levantou a cabeça e relanceou o olhar ao painel de instrumentos, acima do
local de desaceleração. Os quadrantes, conferidos; localização da carga, adequada;
estabilidade cem por cento; temperatura exterior razoável, cento e oito graus Fahre-
nheit, indicando uma aterrissagem um tanto na direção do Sol, a partir do centro
exato do Cinturão do Crepúsculo. Fora uma boa aterrissagem. Ross lançou uma cha-
mada no comunicador:
- Brainerd?
- Tudo bem, capitão!
- Que tal a aterrissagem? Você usou o aparelho manual, não foi?
- Tive de fazê-lo - disse o astronauta. - Conferi rapidamente a gravação de Curtis;
toda amalucada. Raspamos a órbita de Mercúrio e continuamos... diretamente para o
Sol. Bonito, hein?
- Maravilhoso - disse Ross. - Mas não sejamos muito duros com o rapaz; não foi
por sua culpa que ficou louco. De qualquer forma, foi uma boa aterrissagem. Parece
que estamos bem próximos do Cinturão do Crepúsculo, com uma ligeira diferença de
uma ou duas milhas.
Desligou o contato e desamarrou-se.
- Aqui estamos - anunciou no circuito da nave. - Todos para a frente, de prontidão.
Os homens imediatamente se apresentaram - primeiro Brainerd, depois o Dr. Span-
gler, seguido por Krinsky, técnico do acumulador e os três tripulantes. Ross esperou
que todos estivessem reunidos.
Olhavam curiosamente à volta procurando Curtis, menos Brainerd e Spangler. Ross
disse num tom resoluto:
- O astronauta Curtis não estará conosco. Encontra-se na ré, na cabina dos loucos;
felizmente podemos passar sem ele nesta viagem.
Esperou até que o significado dessa declaração fizesse efeito. “Os homens se ada-
ptaram bem a ela”, pensou Ross, “a julgar pela rapidez com que a expressão de hor-
ror se dissipou de seus rostos.”
- Muito bem - continuou. - O programa nos força a despender o máximo de trinta
e duas horas em Mercúrio antes de voltarmos. Brainerd, como combinar isso com a
nossa localização?
O astronauta cerrou os supercílios e fez alguns cálculos mentais.
- A posição atual acha-se um pouquinho voltada para a orla ensolarada do Cintu-
rão do Crepúsculo; mas, segundo penso, o Sol não vai ficar tão alto, a ponto de fazer
a temperatura subir muito acima de cento e vinte, pelo menos durante uma semana.
Nossas roupas podem facilmente resistir a uma temperatura dessas.
- Está bem. Llewellyn, você e Falbridge rompam os infladores do radar e ergam a
torre para leste o mais que puderem sem perigo de se assarem. Levem o trator, mas
não tirem os olhos do termômetro. Temos somente um traje para calor, e esse é para
Krinsky.
Llewellyn, um astronauta magro e de olhos fundos, mexia-se, incomodado.
- A que distância para o oriente o senhor sugere?
- O Cinturão do Crepúsculo cobre cerca de um quarto da superfície de Mercúrio -
disse Ross. - Você tem uma faixa de quarenta e sete graus para rodear... mas sugiro
que não cubra mais de vinte e cinco milhas, mais ou menos. Daí em diante, começa
a esquentar e o calor a aumentar.
Ross voltou-se para Krinsky. O técnico do acumulador era o homem chave da ex-
pedição; sua tarefa era examinar os registros no par de acumuladores solares que ti-
nham sido deixados ali pela primeira expedição. Devia medir as tensões mecânicas
ali criadas pelas energias solares, tão perto da fonte de radiação, e estudar as linhas
de força que operavam no estranho campo magnético daquele pequeno mundo, e
re-preparar os acumuladores para testes ulteriores.
Krinsky era um homem alto, vigorosamente constituído, uma espécie de homem
capaz de aguentar quase alegremente o peso esmagador de um traje contra o calor.
Este era necessário para um trabalho prolongado na zona do Sol, onde se achavam
os acumuladores - e até mesmo um gigante como Krinsky só poderia suportar o es-
forço apenas algumas horas de cada vez.
- Depois que Llewellyn e Falbridge assentarem a torre de radar, vistam o traje de
calor e aprontem-se para outra tarefa. Assim que localizarmos a estação do acumula-
dor, Dominic os levará para o oriente tanto quanto possível e os deixará lá. O resto é
com vocês. Estaremos tele-metrando seus registros, mas gostaríamos de tê-los de
volta, vivos.
- Sim, senhor.
- É isso - disse Ross. - Vamos andando.
O ofício de Ross era puramente administrativo - e enquanto os homens de sua tri-
pulação moviam-se diligentemente nas tarefas que lhes tinham sido designadas, ele
percebia, e sentia-se infeliz por isso, que estava condenado a uma ociosidade tempo-
rária. Sua função era de administrador. A exemplo de um regente de orquestra sinfô-
nica, não tocava instrumento algum, e estava a postos principalmente para manter o
grupo tocando harmoniosamente até o fim.
Agora, só lhe restava esperar.
Llewellyn e Falbridge partiram, alojados no trator segmentado e termo-resistente
que estava alojado no ventre do Leverrier. Sua tarefa era simples: deviam erigir a
torre de plástico inflável de radar na direção do Sol. A torre fora ali deixada pela pri-
meira expedição, desde que esta, librando no lado do Sol, fora liquidificada. A base
plástica e a parábola, cobertas com uma leve superfície de alumínio espelhado, mal
podiam suportar o calor causticante do lado do Sol.
Lá fora, o calor subia para setecentos graus quando o Sol chegava mais perto. As
excentricidades da órbita de Mercúrio eram responsáveis por consideráveis variações
de temperatura do lado do Sol. Mas o termômetro nunca ia além de trezentos graus,
mesmo durante o afélio. No lado das trevas havia pouca variação; a temperatura
permanecia quase em zero absoluto, e nuvens geladas, de pesados gases, cobriam a
superfície do solo.
Do lugar onde estava, Ross não podia avistar nenhum dos lados. O Cinturão do
Crepúsculo tinha quase mil milhas de largura, e, enquanto o planeta afundava em
sua órbita, o Sol primeiro deslizava acima do horizonte, depois reaparecia. Numa fai-
xa de vinte milhas, atravessando o centro do Cinturão, o calor do lado do Sol e o frio
do lado das trevas se anulavam, formando um clima temperado estável; e nas qui-
nhentas milhas de cada lado, o Cinturão do Crepúsculo gradualmente escorria na di-
reção das áreas frígidas e de calor abrasador.
Era um planeta estranho e inacessível. Os humanos só poderiam suportá-lo por
curtos intervalos; a espécie de vida que poderia existir em Mercúrio ficava além do
que Ross poderia conceber. Fora do Leverrier, vestido em seu traje espacial, Ross cu-
tucou o controle do queixo e fez baixar uma vidraça de vidro óptico Olhou primeiro
para o lado das trevas, onde pensou divisar uma delgada linha preta crescente - ape-
nas ilusão, sabia; depois olhou para o lado do Sol.
Na distância, Llewellyn e Falbridge erigiam a parábola-aranhol, que era a torre de
radar. Podia ver a sombra canhestra contra o céu... e, atrás dela? Uma delgada linha
de luz orlando os picos limítrofes? Também isso era ilusão. Brainerd calculara que a
radiação do Sol não seria visível ali durante uma semana. E dentro de uma semana
estariam de volta à Terra.
Voltou-se para Krinsky.
- A torre está quase pronta. A qualquer momento chegarão com o trator. Melhor se
aprontar para fazer a viagem.
Enquanto o técnico se balançava nos cabos e se lançava para dentro da nave, os
pensamentos de Ross voltaram-se para Curtis. O jovem astronauta dissera que iria
ver Mercúrio em toda a sua dimensão - e agora que se achavam ali, Curtis jazia dei-
tado num berço de espuma dentro da nave, melancolicamente exigindo o seu direito
de morrer.
Krinsky voltou, já agora com o volumoso traje isolante sobre o equipamento pa-
drão a fim de voltar a respirar. Mais parecia um pequeno tanque do que um homem.
- O trator está se aproximando, senhor?
- Vou ver.
Ross ajustou as lentes na máscara e estreitou os olhos. Parecia-lhe que a tempera-
tura subira um pouco. Outra ilusão, pensou, esquadrinhando a distância.
Seus olhos divisaram a torre de radar, lá longe, na direção do lado do Sol. Seu
queixo caiu.
- O que há, senhor?
- Já digo!
Ross apertou os olhos com força e tornou a olhar. E... sim: a torre de radar, que
acabara de ser erguida, inclinava-se molemente e começava a se derreter. Viu duas
minúsculas figuras correndo loucamente no solo liso coberto de pedra-pomes, na di-
reção do objeto oblongo cor de prata, que era o trator, e - impossível! - o primeiro
clarão de um brilho inconfundível começava a ferver sobre as montanhas, atrás da
torre.
O Sol nascia - uma semana antes do tempo estipulado!
Ofegante, Ross voltou para a nave, seguido pelo enorme Krinsky. Na comporta,
mãos mecânicas desceram para ajudá-lo a sair do traje espacial; ele fez sinal a
Krinsky para que permanecesse no seu traje isolante, e lançou-se para a cabina prin-
cipal.
- Brainerd! Brainerd! Onde diacho você está?
O astronauta mais velho apareceu, com um ar intrigado:
- Sim, capitão?
- Olhe através da tela - disse Ross numa voz embargada. - Olhe a torre de radar!
- Está se derretendo - disse Brainerd, atônito. - Mas isso é... isso é...
- Já sei, é impossível.
Ross olhou para o painel de instrumentos. A temperatura externa subira para cen-
to e doze - um salto de quatro graus. Enquanto olhava, o registro subiu para cento e
catorze.
Seriam precisos pelo menos quinhentos graus para derreter a torre de radar da-
quela forma. Ross desviou o olhar para a tela e viu o trator vir bamboleando em sua
direção. Llewellyn e Falbridge ainda estavam vivos - conquanto provavelmente tives-
sem sido quase assados na aventura. A temperatura fora da nave era de cento e de-
zesseis graus. Provavelmente chegaria a duzentos quando os homens voltassem.
Cheio de raiva, Ross encarou o astronauta:
- Pensei que você nos tivesse feito descer na zona de segurança - estrondejou. -
Torne a conferir os números e veja onde diacho nós estamos realmente! Depois pro-
cure outra órbita. Aquilo lá é o Sol subindo sobre os montes!
A temperatura atingiu cento e vinte graus. O sistema resfriador da nave seria ca-
paz de manter as coisas sob controle, e com certo conforto, até duzentos e cinquen-
ta graus; acima disso, haveria perigo de uma sobrecarga. O trator aproximava-se
cada vez mais; no interior do mesmo provavelmente reinaria um inferno de calor,
pensou Ross.
Sua mente sopesava alternativas Se a temperatura externa subisse muito além doa
duzentos e cinquenta, ele correria o risco de avariar o sistema resfriador da nave se
esperasse pelos homens do truque. Resolveu aguardar até uma temperatura de du-
zentos e setenta e cinco para voltar e em seguida partir. Seria uma tolice tentar sal-
var duas vidas ao custo de seis.
A temperatura exterior atingira cento e trinta graus. Subia a um ritmo cada vez
mais rápido.
A tripulação agora conhecia a situação. Sem ordens diretas de Ross, aprontava o
Leverrier para uma partida de emergência.
O trator avançava devagar. Os dois homens já não se achavam a mais de dez mi-
lhas; e, à velocidade média de quarenta milhas por hora, estariam de volta dentro de
quinze minutos. Lá fora, cento e trinta e três graus. Longos dedos de luz causticante
estendiam-se para eles a partir do horizonte.
Brainerd levantou o olhar de seus cálculos.
- Não posso calcular. As malditas cifras não cooperam.
- Hein?
- Estou computando a nossa localização, mas não consigo fazer as contas. Tenho a
cabeça confusa.
“Que inferno”, pensou Ross. Era esse um dos momentos em que o comandante
merecia seu salário. - Saia do caminho - gritou. - Deixe-me fazer isso.
Sentou-se à mesa e pôs-se a fazer cálculos. Viu as rápidas anotações de Brainerd
garatujadas por toda parte. Era como se o astronauta houvesse esquecido completa-
mente de como desempenhar seu ofício.
“Vejamos agora. Se estivermos... “
O lápis voava no papel - mas, enquanto trabalhava, Ross viu que estava tudo erra-
do. Sentia o cérebro estranho, anuviado; não acertava lidar com as computações.
Olhando para cima disse:
- Diga a Krinsky que desça para lá e fique preparado para ajudar os dois homens a
saírem do trator quando chegarem. Estarão provavelmente meio cozidos.
Temperatura, cento e quarenta e seis graus. Tornou a olhar o papel. “Maldição”,
pensou. “Não seria tão difícil fazer simples trigonometria...”
O Dr. Spangler apareceu.
- Soltei Curtis - anunciou. - Durante a partida não estará seguro naquele lugar.
Chegava do interior um incessante murmúrio: - Deixem-me morrer... Deixem-me
morrer...
- Diga-lhe que é provável que o seu desejo seja satisfeito - murmurou Ross. - Se
eu não puder descobrir outra órbita, morreremos todos torrados.
- Por que é você, e não Brainerd, que a procura? O que há com ele?
- Está confuso. Não acerta os números. E escute: eu também me sinto esquisito...
Sentia uma névoa a envolver-lhe a mente. Olhou o mostrador: temperatura exter-
na, cento e cinquenta e dois. Os rapazes do trator tinham cento e vinte três graus
para chegar até ali. Ou seriam trezentos e vinte e um? Estava confuso, completa-
mente desorientado.
O Dr. Spangler também tinha um ar estranho. Careteava de um modo curioso.
- De repente me senti letárgico - disse Spangler. - Acho que devia voltar para junto
de Curtis, mas...
O louco continuava a resmungar lá dentro. A parte da mente de Ross que ainda
pensava com clareza via que Curtis, desassistido, era capaz de qualquer coisa.
Temperatura, cento e cinquenta e oito graus. O trator se aproximava. Via-se no
horizonte a torre de radar transformando-se em escombros.
Ouviu-se um grito.
- É Curtis! - berrou Ross, subitamente readquirindo a consciência. Correu para a
ré, seguido por Spangler, mas já era tarde demais.
Curtis jazia no piso, numa poça de sangue. Descobrira uma tesoura em algum lu-
gar.
Spangler abaixou-se.
- Está morto.
- Naturalmente. Está morto - repetiu Ross como um eco. Sentia o cérebro inteira-
mente claro, agora; no momento em que Curtis morrera, a névoa desaparecera. Dei-
xando Spangler cuidando do corpo, voltou para a mesa e examinou as computações.
Com uma gélida clareza determinou sua localização. Tinham descido mais de tre-
zentas milhas na direção do Sol: era mais do que tinham pensado. Os instrumentos
não haviam mentido; o que mentiu foram os olhos de alguém. A órbita, que Brainerd
tão solenemente lhe garantira como “segura”, era na realidade tão mortal quanto a
órbita computada por Curtis.
Olhou para fora. O trator chegava; temperatura, cento e sessenta e sete graus.
Havia tempo suficiente. Dariam a partida com alguns minutos de sobra, graças à ad-
vertência da torre de radar, que se derreta.
Mas por que acontecera aquilo? Não havia resposta.
Gigantesco no seu traje isolante, Krinsky conduziu Llewellyn e Falbridge para bor-
do. Os dois tiraram a “casca”, cambalearam e desfaleceram. Dir-se-iam duas lagostas
recém-cozidas.
- Prostração pelo calor - disse Ross. - Krinsky, ponha-os na posição de decolagem.
Dominic, ainda não despiu seu traje isolante?
O homem espacial apareceu na entrada do ventilador e aquiesceu com um aceno
de cabeça.
- Está bem. Desça e conduza o trator para o porão. Não podemos deixá-lo aqui.
Depressa; vamos decolar. Brainerd, a nova órbita está pronta?
- Sim, senhor.
O termômetro aproximava-se dos duzentos graus. O sistema de resfriamento co-
meçava a falhar, porém aquela agonia logo iria terminar. Alguns minutos depois o Le-
verrier tinha deixado a superfície de Mercúrio - alguns minutos antes do implacável
avanço do Sol - e entrava numa órbita temporária, de círculo planetário.
Uma semana mais tarde, quando o Leverrier voltou à Terra, os seis sobreviventes
da segunda expedição a Mercúrio podiam todos descrever o feroz desejo de morte
que se apoderara do ajudante astronauta Curtis, causando-lhe o suicídio. Mas ne-
nhum podia se lembrar do que acontecera ao comandante de voo Ross, ou por que
seu traje isolante fora deixado em Mercúrio.
Os Exógamos
Uma semana antes de seu aprazado casamento, Ryly Baille dirigiu-se para a flores-
ta virgem que separava as terras dos Baille das terras do clã Clingert. A jornada soli-
tária era uma tradição pré-nupcial entre os Baille; seu povo esperava que ele regres-
sasse com o corpo endurecido pelo esforço, a mente aguçada, e livre de meditações
a sós. Ninguém absolutamente esperava que ele conhecesse uma moça Clingert e
por ela se apaixonasse.
Certo dia, saiu cedo de Trêsdias. Nove Bailles o viram partir. O velho Fredog, pai do
clã Baille, desejou-lhe boa viagem. Minton, o próprio pai de Ryly, segurou-lhe a mão
durante um longo e constrangido momento. Dois de seus primos patrilineares fize-
ram-lhe os melhores votos. E Davud, seu amigo mais querido e mais íntimo irmão fe-
nótipo, deu-lhe afetuosas pancadinhas.
Ryly também disse adeus à sua mãe, à mãe do clã e a Hella, sua noiva. Pôs ao
ombro o arco e a aljava, puxou para cima suas calças de andar no mato e sorriu ner-
vosamente. Lá no alto, Thomas, o amarelo sol primário, ia subindo; um pouco mais
tarde Doris, sua companheira azul, se encontraria com seu marido no firmamento.
Era uma tépida manhã de primavera.
Ryly examinou o pequeno grupo: seis homens altos de cabelos louros e olhos
azuis, três mulheres altas, de cabelos vermelhos e olhos cor de avelã. Exemplares
perfeitos dos Baille, e, portanto, os mais altos representantes da evolução.
- Até logo para todos - disse, sorrindo. Nada mais havia a dizer.
Voltou as costas e enveredou para a floresta murmurante. Suas longas pernas o
carregavam facilmente pelo caminho bem batido. A tradição exigia que ele trilhasse o
caminho principal até o meio-dia, ocasião em que o segundo sol surgiria no céu; de-
pois, onde quer que estivesse, devia sair abruptamente da estrada e abrir caminho
através da vegetação pelo resto da jornada.
Ficaria ausente três dias e duas noites. Na terceira noite voltaria, chegando de ma-
nhã para reclamar a noiva.
Pensava em Hella enquanto caminhava. Era uma boa moça e ele se sentira feliz
porque o pai do clã lha atribuíra. Não porque ela fosse mais bonita que qualquer das
outras candidatas ao matrimônio, pensava Ryly. De qualquer modo, eram todas mais
ou menos iguais. Porém Hella tinha um certo brilho luminoso, um jeito de sorrir, dos
quais Ryly pensava que iria gostar.
Thomas subia agora para a sua altura do meio-dia; a floresta ia esquentando. Um
lagarto vistosamente colorido, de asas espalmadas, saltou papagueando de uma ár-
vore para a esquerda do caminho e esvoaçou num breve arco malfeito acima da ca-
beça de Ryly. Ele deu uma flechada e derrubou o lagarto - sua primeira vítima na via-
gem. Enfiando no cinto três finas penas vermelhas de sua cauda, continuou cami-
nhando.
Ao meio-dia os primeiros raios azuis de Doris se misturaram com os amarelos de
Thomas. O momento chegara. Ryly ajoelhou-se para murmurar uma curta prece em
memória daqueles dois pioneiros Baille que saíram pelo mundo há gerações passadas
a fim de fundar o clã, e virou à direita, penetrando entre os grisalhos troncos penu-
gentos de duas altas árvores de fruta doce. Entalhou seu nome na face da árvore
que dava para a floresta como um marco que lhe servisse no regresso, e entrou
mata adentro, na parte desconhecida.
Caminhou até que a fome lhe veio; então matou um incauto saltador, tirou-lhe a
pele, cozinhou-o, comeu o carnudo roedor e banhou-se numa torrente cristalina na
orla da sempre verde mataria. Quando a escuridão desceu, acampou junto a um ro-
chedo saliente, e ficou muito tempo deitado de costas, contemplando as quatro lua-
zinhas luminosas, repetindo a sós as velhas lendas de seu clã, até que adormeceu.
Ryly chegou ao familiar território Baille ao cair da noite do dia seguinte, tendo co-
berto o caminho o mais rápido que pôde e com tão poucas paradas quanto possível.
Enveredou pela estrada principal mais ou menos na hora em que Thomas se punha
em Cincodias. Tivera pouca dificuldade em localizar a árvore que tinha seu nome ins-
crito na casca. Agora só brilhava o sol azul, que já baixava no horizonte; as luas da-
vam início à sua procissão no céu crepuscular.
Ryly insinuou-se na colônia pela estrada de trás. Esse caminho conduzia-o para
além da tosca cabaninha que Thomas construíra com suas próprias mãos para ele e
Doris morarem, isso, há muito tempo, quando os primeiros Baille tinham caído do
céu e se instalado no mundo. Ryly estremeceu um pouco ao passar pelo velho altar
encardido; a espécie de traição que estava armando não era coisa fácil.
Acima de tudo, não desejava ser visto. Pelo menos, não antes de conversar com
seu irmão fenótipo, Davud.
Um gato miou. Ryly enfiou-se na treva de um caramanchão e esperou. Um velho
de pescoço duro passou por perto: era Paiclã. Ryly conteve a respiração até que o
velho entrasse na casa do clã; então deslizou para fora do abrigo, atravessou silen-
ciosamente o pátio e correu para a passagem em arco que conduzia à cabana de Da-
vud.
A luz estava acesa. Davud, lá dentro, cochilava numa cadeira. Pé ante pé, Ryly en-
trou pela porta de trás. Atravessou a sala em quatro grandes saltos e com as mãos
tapou a boca de Davud, antes que este acordasse inteiramente.
- Sou eu, Ryly. Já cheguei.
- Hum!
- Não diga nada nem faça barulho. Não quero que saibam que estou aqui. - E re-
cuou.
Davud esfregou os lábios e disse:
- Em nome de Thomas, por que me assustou assim? Pensei um instante que se
tratasse de uma incursão Clingert!
Ryly pestanejou. Olhou atentamente para Davud; seria seguro contar-lhe o sucedi-
do? De todos os Baille, Davud era o seu irmão mais parecido no físico e nas atitudes,
razão por que Paiclã os designara como irmãos fenótipos, embora de pais diferentes.
Entre os Baille, o verdadeiro parentesco pouco significava, desde que, geneticamen-
te, cada membro do clã era virtualmente idêntico a qualquer outro.
Ele e Davud eram misteriosamente iguais: ambos com seis pés e três polegadas,
altura normal dos Baille, ambos com os mesmos caracóis no rebelde cabelo louro, o
mesmo nariz afilado, a mesma delgadeza dos lóbulos das orelhas. Agora Ryly espera-
va que a formação mental de Davud fosse tão semelhante à dele quanto possível.
Encheu uma caneca de grosso vinho amarelo de briófito e bebericou-o lentamente
para acalmar os nervos.
- Preciso falar-lhe, Davud. Aconteceu-me uma coisa muito importante.
Sem atentar nessas palavras, Davud disse:
- Não o esperávamos antes de amanhã à noite. Vi Hella nas proximidades do oca-
so de Thomas, e ela disse que já não podia esperar para tornar a vê-lo.
E Davud arreganhou um sorriso:
- Disse-lhe que havia muitos iguais a você na colônia, ela porém não me quis ouvir.
- Não me fale em Hella. Escute aqui, Davud. Na minha viagem, cheguei até o terri-
tório Clingert. Encontrei uma moça Clingert... Acho que a amo, Davud...
Davud ficou rapidamente em pé, e encarou Ryly face a face, queixo a queixo. Tre-
miam-lhe as narinas.
- Que diz?
Muito calmo, Ryly repetiu o que dissera.
- Então é isso mesmo - resmungou Davud. - Ryly, perdeu o juízo? Casar-se com
uma Clingert? Aquele lixo?
- Mas você não viu...
- Não preciso ver. Você conhece as velhas histórias, de como o primeiro Clingert
brigou com Thomas até que Thomas foi forçado a expulsá-lo. Sabe que espécie de
criaturas são os Clingert. Como pode...
- Amar uma delas? Davud, você não sabe como é fácil. As moças Baille são tão
grandalhonas e musculosas! Joanne é... bem, é preciso ver para crer. O fato de Tho-
mas e o primeiro Clingert terem tido uma desavença idiota há centenas de anos...
O rosto de Davud era uma máscara pálida de indignação.
- Ryly! Contenha-se! Está falando bobagem, homem... absoluta bobagem. Os Bail-
le e os Clingert não devem misturar-se. Quer contaminar nossa linhagem com a de-
les?
- Sim - disse Ryly desafiando-o.
- Está louco! Mas por que voltou para contar? Por que simplesmente não ficou com
a sua Clingert?
- Eu queria que alguém soubesse. Alguém que merecesse minha confiança: al-
guém como você.
- Nesse caso equivocou-se - disse Davud. - Vou contar a história ao Paiclã, e,
quando o apedrejarem, ficarei muito contente em fazer o mesmo. Fizeram isso na úl-
tima vez que tal fato ocorreu, faz quinze anos ... Não se lembra mais? Quando Luri
Baille teve um filho parecido com um Clingert. É preciso conservar a pureza da linha-
gem.
- Por quê?
- Ora, por quê! Tem de ser conservada... eis tudo - disse Davud com voz fraca. E
quando Ryly começou a andar, acrescentou: - Ei! Aonde pensa que vai?
- Voltar à floresta - disse Ryly numa voz amargurada. - Prometi à moça que volta-
ria. Não devia ter vindo aqui, em primeiro lugar...
Tremia e transpirava abundantemente; para sua própria surpresa, percebia que a
conversa com Davud efetivamente o separara para sempre dos Baille.
- Você não vai, Ryly: não deixarei.
E Davud agarrou a nuca de Ryly, que se esquivou.
- Não tente impedir-me, Davud.
Sem responder, Davud agarrou a parte carnuda do braço de Ryly.
Calmamente Ryly deu meia-volta e bateu o punho naquela cara tão parecida com a
sua. Davud piscou, incrédulo, e pôs-se a resmungar alguma coisa. Ryly sacudiu o
braço e libertou-se, depois bateu em Davud pela segunda vez. Davud amontoou-se
no chão.
Ryly permaneceu indeciso por um segundo, observando com algum espanto o san-
gue que escorria do nariz quebrado de seu irmão fenótipo. Depois virou-se e atirou-
se porta afora, saiu para o escuro pátio e correu o mais que pôde para o caminho da
floresta
Ficou atento aos gritos dos perseguidores, porém nada ouviu. Pensava que talvez
tivesse golpeado Davud com demasiada força.
Ryly passou uma noite incômoda na floresta, não muito distante do território Bail-
le; quando despontou a manhã, partiu a passo rápido para a fronteira Baille-Clingert.
Ao nascer de Doris, Joanne estaria junto à cascata - assim lhe dissera. Por um ins-
tante considerou o que seria dele se a moça o tivesse enganado, mas não encontrou
resposta. Poderia voltar aos Baille, e, ao fim e ao cabo, casar-se com Hella? Achava
que não.
O dia esquentou enquanto ele andava pela floresta seguindo a série de marcas
que deixara para guiá-lo. Chegando ao lugar do encontro, Doris ainda não nascera:
só Thomas estava no céu. Ryly sentou-se à beira da água e molhou-se para limpar o
suor da viagem.
Ouviu tropel de passos. Ergueu os olhos, esperando que fosse Joanne. Mas foi Da-
vud que apareceu.
- Seguiu-me?
- Foi preciso, Ryly.
- Suponho que toda a tribo venha vindo aí atrás, espumando na boca e pronta
para apedrejar-me. - Ryly suspirou. - Acho que não lhe bati com bastante força.
Acordou demasiado cedo.
O nariz de Davud estava inchado e ligeiramente torto.
- Vim sozinho - disse. - Queria convencê-lo a desistir dessa maluquice, Ryly. Nin-
guém ainda sabe coisa alguma sobre isso.
- Está bem. Agora volte e esqueça-se de tudo quanto eu lhe disse ontem à noite.
- Não posso - respondeu Davud. - Não posso consentir que se acasale com uma...
Clingert. Vim buscá-lo, para que volte comigo para a terra Baille.
Ryly crispou os punhos. Não tinha a menor vontade de lutar uma segunda vez com
seu irmão fenótipo. Mas se Davud insistisse..
- Afaste-se de mim, Davud. Volte sozinho.
Era quase o momento de Doris levantar-se. Ryly esperava poder afastar Davud do
seu caminho antes que Joanne chegasse ao lugar do encontro. Mas Davud abanava
a cabeça obstinadamente.
- Baille e Clingert não terão prole. Thomas nos fez essa lei no começo, e ela não
poderá jamais ser quebrada.
Aí parou, a maxila pendente, e apontou. Ryly voltou-se devagar. Os primeiros raios
de Doris eram azuis na face da cascata, e Joanne estava em pé atrás dele.
- Quem de vocês dois é Ryly? - perguntou ela queixosa.
Ryly falou primeiro:
- Sou eu. Este é meu irmão fenótipo, Davud. Veio para conhecê-la. Davud, esta é
Joanne.
- É uma Clingert? - perguntou Davud lentamente. - Mas... mas... O Paiclã diz que
são feias! E...
Ryly começou a sorrir. O velho Davud era, afinal, um verdadeiro irmão fenótipo; a
reação à primeira vista para com Joanne foi idêntica à de Ryly. Era confortador vê-lo
reagir dessa maneira.
Joanne riu o seu especial riso Clingert que Ryly acostumara-se a amar.
- Parece que está aturdido. Tão aturdido como você ficou há três dias atrás. Será
que todos os Baille pensam que somos ogras?
Davud sentou-se pesadamente num tronco apodrecido. Tinha o rosto pálido à luz
dos dois sóis; sacudia a cabeça, refletindo, e parecia conversar consigo mesmo. Fi-
nalmente falou.
- Muito bem. Peço desculpas, Ryly. Agora sei do que falava. Agora sei!
Havia na voz de Davud uma nota de entusiasmo que aborrecia Ryly; este porém
conteve qualquer mostra de enfado.
- E agora? Que tal Thomas e suas leis? - perguntou. - Agora, que você viu uma
Clingert?
- Retiro tudo quanto disse - murmurou Davud. - Tudo.
Ryly olhou do irmão fenótipo para Joanne.
- Acho que ele nos dará a sua bênção. Isto é: se você estiver disposta a ser pária
dos Clingert...
Então foi a vez de Joanne parecer sobressaltada.
- Pária? Por cumprir o objetivo do primeiro Clingert?
- Que é isso?
- Quer dizer que não sabe?
Ryly sacudiu a cabeça negativamente
- Não tenho a menor ideia do que está falando.
- No começo - disse ela pacientemente -, quando a nave espacial explodiu e os
Clingert e os Baille foram libertados e pousaram no mundo (isso há centenas de
anos), Jarl Clingert quis acasalar-se com uma Baille, porém Thomas Baille não con-
sentiu. Queria conservar pura sua imagem. Assim foi que não houve grande contato
entre os Clingert e os Baille, desde a época em que o primeiro Baille ameaçou, sem
provocação, matar Jarl Clingert se ele se lhe aproximasse num raio de dez milhas...
- Espere - disse Ryly. - Foi Clingert que tentou matar Thomas Baille e casar com
Doris, mas Thomas o expulsou...
- Não - disse Joanne. - Foi tudo às avessas. Foi por culpa de Baille que...
- Deixemos a história antiga para outra hora - atalhou Davud subitamente. Trazia
no rosto uma expressão curiosamente dolorosa. - Ryly, posso falar um momento a
sós com você?
- Pois não - disse Ryly, surpreso. Afastaram-se alguns pés e Ryly disse:
- Então? Que acha dela?
- É sobre isso que desejo falar - murmurou Davud asperamente. - Acho que está
longe e acima da beleza de qualquer mulher Baille. É tão... diferente. Suave, porém
forte; pequena, porém não frágil...
- Sabia que você ia gostar dela, Davud.
- Gostar, não; amar - rosnou Davud. - Eu também a amo, Ryly.
Ryly sentiu-se como se tivesse levado uma pancada no rosto. Seus olhos se alarga-
ram, fitos nos olhos igualmente azuis de seu irmão fenótipo. O gene Baille duplicara-
se perfeitamente entre eles, ou assim parecia. Em todos os pormenores.
- Não pode estar querendo dizer isso - falou Ryly.
- Quero, sim: quero. Como posso evitá-lo?
- Ambos podemos tê-la, Davud. Acho porém que tenho prioridade...
Davud ofegava, e, agarrando-o subitamente, fê-lo girar como um pião. Ryly olhou,
fechou os olhos, pôs levemente os dedos sobre as pálpebras e tornou a olhar. A mi-
ragem ainda estava ali. Não era ilusão.
Viu duas Joannes.
- Ryly! Davud! Apresento-lhes Melena. Melena Clingert.
- É sua... sua irmã? - perguntou Ryly com voz rouca. A essa distância, ambas as
Clingert eram idênticas
- Minha prima - disse Joanne. - Não tenho irmãs. - E esboçou um sorriso. - Melena
estava escondida no lado mais afastado da cascata. Trouxe-a comigo para que desse
uma olhadela em Ryly. Em certas coisas, sou sempre exibicionista.
Ryly e seu irmão fenótipo trocavam olhares espantados.
- Naturalmente - disse Ryly calmamente. - Nós, os Baille, todos nos parecemos;
por que os Clingert não se parecerão entre si? Trezentos anos de endogamia! Devem
ser idênticos!
- Mais ou menos - disse Joanne. - Há algumas variações menores, mas não mui-
tas. A maior parte do gene não fixado no clã se perdeu há muitas gerações. Como
provavelmente terá acontecido a seu clã. Era isso que Jarl Clingert queria impedir;
mas quando Thomas Baille se recusou a...
- Foi o procedimento traiçoeiro de Clingert que provocou tudo - lançou Ryly. - Va-
mos acertar as coisas agora. Pois se todo mundo sabe disso!
- Quem é que sabe? Os Baille?...
Os olhos de Joanne fuzilavam, com aquela fúria que Ryly gostava tanto de apre-
ciar.
- Mas, para variar, por que não ouvem a versão Clingert da história? Vocês, Baille,
são sempre assim: fecham os ouvidos a tudo quanto importa. Vocês... - E a moça
parou de repente, para dizer muito tranquilamente: - Desculpe-me, Ryly.
- A culpa foi minha. Fui eu que comecei.
- Não - disse ela, sacudindo a cabeça. - Fui eu, quando abordei o assunto da...
da...
Ele sorriu e deu-lhe uma leve pancadinha nos lábios. - Olhe...
Ela olhou. Davud e Melena haviam-se afastado para um lado: estavam de pé num
trecho de chão úmido revestido de musgo, dentro do campo de borrifos e espuma da
cascata. Conversavam baixinho. Pelos seus rostos era difícil saber-se o que conversa-
vam.
- Agora precisamos esquecer a história antiga - disse Joanne. - Esqueça-se de tudo
quanto aconteceu entre Jarl Clingert e Thomas Baille há quatro séculos atrás.
Ryly tomou-lhe a mão.
- Iremos para qualquer lugar do mundo - disse ele. - Começar de novo, fundar
uma nova colônia... Só nós quatro... Poderemos recrutar mais alguns, desde que eu
possa convencer alguns Baille a conhecerem os Clingert.
- E vice-versa. Os homens Clingert também odeiam os Baille, como se sabe. Mas
isso pode acabar. Nossos filhos acabarão com a briga.
Ryly olhou para Davud e Melena, depois para Joanne. Naquele instante tudo pare-
cia incrivelmente adorável - as vermelhas folhas angulosas das copas pendentes, o
branco borrifo da cascata, prismaticamente colorido de azul e ouro pelo sol, as tran-
quilas nuvens verdes deslizando no céu. Queria fixar para sempre esse momento em
seu espírito.
Sorriu. Sua mente ainda estava cheia de insidiosas lendas do passado, instiladas
pelos Clingert nos primeiros dias do mundo, segundo julgavam os seus olhos Baille.
Mas já podia começar a esquecê-las.
Logo haveria no mundo um terceiro clã, tanto louro quanto moreno, tanto baixo
quanto alto.
E algum dia seus descendentes fariam lendas sobre ele, de como ele ajudara a
fundar o clã, naqueles dias nevoentos, que o tempo amortalhara num passado remo-
to.
Estrada Para o Anoitecer
Barbara já o esperava quando, uma hora depois, ele apertou o polegar na placa da
porta do seu apartamento da 47th Street.
- Acho que você já sabe - disse ela, vendo-o entrar. - Um lugar-tenente novinho
em folha esteve aqui e anunciou a coisa lá na praça. Já apanhei a nossa cota desta
noite: é a última. Ei! Que é que há? - e olhou-o ansiosamente, vendo-o desabar sem
fala numa cadeira.
- Não há nada, menina. Só tenho fome; e sinto um pouco de náusea.
- Onde esteve hoje? Novamente na praça?
- Sim. No meu costumeiro giro de terça-feira à tarde, que redundou num excelente
piquenique. Primeiro vi dois homens perseguindo um cachorro: não deviam estar
mais famintos do que eu, mas perseguiam aquela pobre coisa magricela. Depois o
seu lugar-tenente fez o anúncio sobre o alimento. Depois, um sujo mascate tentou
vender-me sua “mercadoria” e dar-me um emprego.
A moça conteve a respiração.
- Um emprego? Mercadoria? O que aconteceu? Oh, Paul...
- Esqueça isso - disse Katterson. - Derrubei-o com um soco, e ele fugiu com o rabo
entre as pernas. Sabe o que vendia? Sabe a espécie de carne que desejava que eu
comesse?
Ela baixou os olhos.
- Sim, Paul.
- E o emprego que ele tinha para mim... Viu que eu era forte, e quis fazer de mim
seu fornecedor. Era para eu sair à tarde a fim de caçar. Caçar extraviados, e, no dia
seguinte, transformá-los em churrascos.
- Mas temos tanta fome, Paul. A fome é o que mais importa.
- O quê? - E sua voz era o urro de um touro ofendido. - O quê? Não sabe o que
diz, mulher! Comerei qualquer coisa antes de perder completamente o juízo. Darei
um jeito de arranjar comida, mas não vou me transformar em canibal. Nada de chur-
rasco humano para Paul Katterson.
Ela nada disse. A única luz do teto piscou duas vezes.
- Está quase na hora de fechar. Traga as velas, a menos que esteja com sono - dis-
se ele. Não tinha cronômetro, mas o pisca-pisca anunciava que eram oito e meia. To-
das as noites, às oito e meia, interrompia-se a luz em todos os apartamentos resi-
denciais, exceto naqueles que tinham licença para exceder a cota normal.
Barbara acendeu uma vela.
- Paul, o Padre Kennen esteve aqui outra vez.
- Eu lhe disse que não aparecesse mais - disse Katterson na escuridão do seu can-
to.
- Ele acha que devemos nos casar, Paul.
- Já sei. Eu não acho.
- Paul, por que você é...
- Não recomecemos. Já lhe disse que não desejo arcar com a responsabilidade de
duas bocas para alimentar, quando nem sequer posso manter satisfeito meu próprio
estômago. Assim como estamos é melhor: cada um responsável por si mesmo.
- Mas os filhos, Paul...
- Está maluca? - retrucou ele. - Ousaria trazer um filho a este mundo? Especial-
mente agora que perdemos o abastecimento do Oásis Trenton! Você gostaria de vê-
lo morrendo lentamente de fome no meio de todo esse entulho e sujeira? Ou quem
sabe adquirindo a aparência de um esqueletinho de faces encovadas? Talvez você
queira; eu, não.
E Paul calou-se. Ela ficou ali, olhando-o, soluçando mansamente.
- Estamos mortos, você e eu - disse ela finalmente. - Não o admitimos, mas esta-
mos mortos. O mundo inteiro está morto; passamos os últimos trinta anos suicidan-
do-nos... Minhas lembranças não vão tão longe quanto as suas, porém li alguns li-
vros antigos que falavam de como era limpa e luminosa esta cidade antes da
guerra... A guerra! Durante toda a minha vida temos estado em guerra, jamais sa-
bendo a quem combatemos e porquê... Temos apenas estraçalhado o mundo sem
razão aparente.
- Pare com isso, Barbara - disse Katterson.
Ela porém continuou num tom monótono:
- Diz-se que outrora a América se estendia de costa a costa, em vez de ser talhada
em estreitas tiras cercadas por terras de ninguém e por terras radioativas. E havia fa-
zendas, e comida, e lagos e rios, e os homens voavam de um lugar para outro... Por
que tinha de acontecer isto agora? Por que estamos todos mortos? Para onde ire-
mos, Paul?
- Não sei, Barbara. Acho que ninguém sabe. Fatigado, ele soprou a vela, e a escu-
ridão inundou o quarto.
Fosse como fosse, havia voltado para a Union Square, e estava na 14th Street, ba-
lançando-se molemente sobre os pés para a frente e para trás e sentindo o cérebro
oco - primeiro sinal de fome. Havia poucas pessoas nas ruas, cada uma se dirigindo
morosamente para seu destino O sol estava alto e brilhante.
Seu devaneio foi interrompido por gritos e um inusitado tropel de passos. Valeu-
lhe o treino militar: ele afundou-se numa trincheira e aí se escondeu, imaginando o
que estaria acontecendo.
Após um momento espiou para fora. Quatro homens, todos tão grandes como o
próprio Katterson, vagueavam acima e abaixo nas ruas desertas. Um deles carregava
um grande saco.
- Lá vai um - Katterson ouviu dizer asperamente o homem que carregava o saco.
Olhava sem poder acreditar enquanto os quatro homens localizavam uma moça en-
colhida junto a um edifício em ruínas.
Era pálida, magra, vestia andrajos, e talvez tivesse no máximo vinte anos. Em
qualquer outro mundo poderia ter sido bastante bonita. Agora, porém, tinha o rosto
cavado, olhos vidrados e sem brilho, braços ossudos e angulosos.
Enquanto eles se aproximavam ela recuou, praguejando num desafio, preparando-
se para a defesa. “Ela não compreende”, pensou Katterson. “Pensa que vai ser agre-
dida.”
O suor lhe escorria pelo corpo, e ele se obrigou a apenas olhar, a manter-se na
trincheira apesar da vontade que tinha de saltar do esconderijo. Os quatro pilhadores
cercaram a moça. Ela cuspiu, golpeou-os com suas mãos de garra.
Eles riram e agarraram-lhe o braço. Subitamente o grito dela perfurou-lhe os tím-
panos e eles a arrastaram para o meio da rua. Apareceu uma faca; Katterson rangia
os dentes e piscava quando viu a faca atingir o alvo.
- Meta-a no saco, Charlie - disse uma voz rude.
Os olhos de Katterson fumegavam de raiva. Era a primeira vez que via os magare-
fes de Malory - ou, pelo menos, suspeitava que fossem eles. Tateando a faca do cin-
to, levantou-se pensando em atacar os quatro pilhadores de carne, mas, recuperan-
do o juízo, deixou-se cair no fundo da trincheira.
Fora assim tão rápido? Katterson sabia que o canibalismo se espalhava lentamente
pela faminta Nova Iorque, e que poucos cadáveres eram sepultados intactos. Essa,
porém, era a primeira vez, segundo lhe constava, que assassinos agarravam um ser
vivo na rua e o matavam para arranjar comida. Katterson estremeceu. A luta pela so-
brevivência continuava, então.
Os quatro homens desapareceram na direção da Third Avenue, e Katterson caute-
losamente saiu da trincheira, olhou em todas as direções e saiu para o espaço livre.
Sabia que precisava tomar cuidado: um homem do seu tamanho tinha carne para
muitas bocas...
Dos edifícios já saíam outras pessoas, todas com a mesma expressão de horror no
rosto. Katterson viu os esqueletos ambulantes caminhando entontecidos, alguns cho-
rando, a maior parte já distante da fase das lágrimas. Apertava e afrouxava os pu-
nhos, furioso, desejando eliminar a doença contagiante, e sabendo desesperadamen-
te que nada podia fazer.
Um homem magro, de feições cinzeladas, estava agora na plataforma do orador.
Tinha a voz embargada pelo ódio.
- Irmãos, agora a coisa é pública. Os homens abandonaram os caminhos de Deus,
e Satã os conduziu para a destruição. Vocês acabam de testemunhar quatro de suas
criaturas destruírem um ser mortal para comer... entre todos, o pecado mais horrível!
“Irmãos, nosso tempo na terra chega ao fim. Sou velho. Lembro-me dos dias de
antes da guerra, e embora alguns não acreditem, lembro-me de um tempo em que
havia comida para todos, quando todo mundo tinha emprego, quando esses edifícios
em ruínas eram altos, bonitos e elegantes, e os ares fervilhavam de jatos. Na minha
mocidade viajei por todo o país, fui até o Pacífico. Mas a guerra acabou com tudo, e
a mão de Deus caiu sobre nós. Nosso tempo acabou, e logo seremos julgados.
“Voltai para Deus sem sangue nas mãos, irmãos. Aqueles quatro homens que vo-
cês viram arderão para sempre pelo seu crime. Quem quer que coma a carne maldita
que eles hoje assassinaram a eles se reunirá no inferno. Mas escutai, escutai um mo-
mento, irmãos! Os que dentre vocês ainda não estiverem perdidos escutem minha
súplica: salvem-se! Melhor viver sem comida, conforme fazem muitos, do que conta-
minar-se com essa espécie de nova comida, a mais preciosa de todas!”
Katterson olhou atentamente as pessoas que o rodeavam. Quis acabar com aquilo;
imaginava uma cruzada por alimentos, uma campanha contra o canibalismo, bandei-
ras ondulando, tambores rufando, e ele liderando a luta... Algumas pessoas haviam
parado para ouvir o velho pregador, outras haviam se afastado. Alguns sorriam e lan-
çavam frases irônicas ao velho; este, porém, fez que não ouvia.
- Ouçam, ouçam, antes que se afastem! Estamos todos condenados; o Senhor dei-
xou isso bem claro. Mas pensem... o mundo logo se acabará, e surgirá um mundo
maior. Não comprometam sua vida eterna, irmãos! Não vendam sua alma imortal em
troca de um bocado de carne conspurcada!
A multidão se dispersava, reparou Katterson. E dispersava-se depressa, as pessoas
se esquivando depressa e desaparecendo. O pregador continuava a falar. Katterson
ficou na ponta dos pés e entortava o pescoço para enxergar além da multidão e
olhava atentamente para o oriente. De repente empalideceu. Quatro figuras ameaça-
doras desciam resolutamente pela rua deserta.
Quase todos tinham-nos visto. Caminhavam os quatro lado a lado, bem no centro
da rua, o mais alto carregando um saco vazio. As pessoas aceleravam o passo em to-
das as direções, e quando os quatro chegaram à esquina da 14th Street com a Four-
th Avenue apenas Katterson e o pregador ainda permaneciam na plataforma.
- Vejo que você foi o único que ficou, meu rapaz. Já se contaminou, ou ainda per-
tence ao reino do céu?
Katterson ignorou a pergunta.
- Meu velho, desça daí! - estourou. - Os caçadores vão voltar. Vamos, saiamos da-
qui antes que cheguem.
- Não. Quero falar-lhes quando chegarem. Mas salve-se, meu jovem; salve-se en-
quanto pode.
- Então suicide-se, velho idiota! - murmurou Katterson, rispidamente.
- Seja como for, estamos todos condenados, meu filho. Se chegou o meu dia, es-
tou preparado.
- Está é maluco - disse Katterson.
Os quatro homens já podiam ouvi-los. Katterson fitou o velho pela última vez, de-
pois lançou-se pela rua na direção de um edifício Olhou para trás e viu que não esta-
va sendo seguido.
Os caçadores estavam de pé debaixo da plataforma, escutando o que o velho di-
zia. Katterson não podia ouvi-lo; via-o apenas sacudindo os braços. Os homens pare-
ciam escutá-lo atentamente. Katterson olhava. Viu um dos homens dizer alguma coi-
sa ao velho, depois um homem alto, que carregava o saco, subiu para a plataforma.
Um dos outros atirou-lhe uma faca desembainhada.
O grito foi estrondoso e ensurdecedor. Quando Katterson ousou tornar a olhar, o
homem alto enfiava o corpo do pregador no saco. Katterson inclinou a cabeça. O
som das trombetas começou a se desvanecer. Ele percebeu que a resistência era im-
possível. Os fatos se precipitavam.
Katterson dirigiu-se penosamente para o seu apartamento. As quadras iam ficando
para trás à medida que ele, maquinalmente, avançava através do cascalho e dos pré-
dios desertos e arruinados, pelas duas milhas de distância. Mantinha a mão na faca e
dardejava olhares da direita para a esquerda, notando as furtivas corridinhas nas tra-
vessas, o povo como sombras pouco visíveis atrás das cinzas e do entulho. Aquelas
quatro figuras, uma delas carregando um saco, dir-se-iam emboscadas atrás de cada
poste de iluminação, e aguardavam, cheias de fome.
Seguiu para a Broadway por um atalho do Parker Building em ruínas. Cinquenta
anos antes, o Parker Building fora o edifício mais alto do Ocidente; mas agora só res-
tava dele o perfil truncado. Katterson passou pelo que fora outrora o mais majestoso
vestíbulo do mundo e ficou olhando. Fora, um menino roía um pedaço de carne. Te-
ria oito ou dez anos; o estômago se lhe repuxava em cima das costelas, que se mos-
travam como as taquaras de uma cesta. Engolindo a repulsão, Katterson pensou em
que espécie de carne estaria o menino roendo.
Continuou a andar. Enquanto caminhava pela 44th Street, um gato magro passou
por ele, depois desapareceu atrás de um monte de cinzas. Katterson lembrou-se das
histórias que ouvira sobre as Grandes Planícies, onde se dizia que gatos gigantes va-
gueavam em liberdade, e sua boca ficou cheia d'água.
O sol tornava a declinar e Nova Iorque se fazia cinza e negra. O sol não mais bri-
lhava no fim das tardes; insinuava-se por entre os montões de cascalho e lançava
uma claridade fantástica sobre as ruínas de Nova Iorque Katterson atravessou a 47th
Street e enveredou para a sua moradia.
Subiu a pé até seu quarto - o poço do elevador ainda estava lá; este, porém, não
mais funcionava: nem sonhar com tais luxos... - e ficou fora algum tempo, procuran-
do no escuro a placa da porta. Ouviu risos no interior - rumor estranho para ouvidos
desacostumados -, e um cheiro de comida saiu pela porta, indo de encontro a suas
narinas. Sua garganta contraiu-se convulsamente, e ele então se lembrou da bola
dolorida que era seu estômago.
Abriu a porta. O cheiro de comida enchia completamente a sala. Viu Barbara er-
guer subitamente o olhar enquanto ele entrava. Estava pálida. Na cadeira que ele
costumava usar estava sentado um homem que ele já havia encontrado ali uma vez
ou duas, um homem barbudo, de cabelos desgrenhados, de nome Heydahl.
- Que está acontecendo? - perguntou Katterson.
A voz de Barbara soou estranhamente embargada.
- Paul, você conhece Olaf Heydahl, não conhece? Olaf, Paul...
- Que está acontecendo? - repetiu Katterson.
- Barbara e eu acabamos de fazer uma pequena refeição, Mr. Katterson - disse
Heydahl com uma voz cheia. - Pensamos que o senhor também teria fome, por isso
guardamos-lhe um pouquinho.
O cheiro era irresistível, e tudo quanto ele podia fazer era impedir-se de espumar
pela boca. Barbara limpava e tornava a limpar o rosto com o guardanapo; Heydahl
continuava sentado muito à vontade na cadeira de Katterson.
Em três passos rápidos Katterson foi para o outro lado da sala e escancarou as
portas que abriam para a quitinete fechada. No fogão frigia devagar um pequeno pe-
daço de carne. Katterson olhou para a carne, depois para Barbara.
- Onde arranjou isso? - perguntou. - Não temos dinheiro.
- Eu... eu...
- Comprei-a - disse Heydahl tranquilamente. - Barbara me contou que a comida de
vocês estava escasseando, e como eu tinha mais que o necessário, trouxe-lhe um
pouco de presente.
- Estou vendo. Um presente. Não está amarrado com barbante?
- Ora, Mr. Katterson. Lembre-se de que sou hóspede de Barbara.
- Mas lembre-se, por favor, de que este apartamento é meu, não dela. Diga-me,
Heydahl: que espécie de pagamento espera por este presente? E qual a parte que
você já recebeu?
Heydahl ergueu-se a meio na cadeira.
- Por favor, Paul - disse Barbara apressadamente. - Não fique contrariado, Paul.
Olaf quis apenas mostrar-se nosso amigo.
- Barbara tem razão, Mr. Katterson - disse Heydahl se acalmando. - Vamos, sirva-
se. Far-lhe-á bem e a mim também!
Katterson fitou-o atentamente. A meia-luz vinda de baixo escorria pelo ombro de
Heydahl, iluminando a cabeça quase calva e a barba comprida. Katterson pensou em
como podia ele conservar tão gordas suas faces.
- Vamos - repetiu Heydahl. - Sirva-se à vontade.
Katterson voltou-se para a carne. Tirou um prato da prateleira e jogou nele o pe-
daço de carne. Feito isso, desembainhou a faca. Já ia partir a carne quando se voltou
para olhar os outros dois.
Barbara estava inclinada para a frente na cadeira. Os olhos arregalados, cheios de
medo. Por outro lado, Heydahl continuava refestelado na cadeira de Katterson, tendo
no rosto uma expressão complacente que Katterson não mais vira desde que deixara
o Exército.
Um pensamento o assaltou e ele ficou gelado.
- Barbara - disse, controlando a voz. - Que espécie de carne é esta? Rosbife ou
carneiro?
- Não sei - respondeu ela titubeante - Olaf não disse...
- Talvez cachorro assado, hein? Ou flé de gato perdido? Por que não pergunta a
Olaf o que vinha escrito no cardápio? Por que não lhe pergunta agora?
Barbara olhou para Heydahl, e voltou a olhar para Katterson.
- Coma, Paul. É bom, acredite-me. E eu sei como você está faminto.
- Não como coisas sem rótulo, Barbara. Pergunte a Mr. Heydahl que espécie de
carne é esta...
Ela voltou-se para Heydahl.
- Olaf...
- Acho que não devemos ser tão enjoados nos dias que correm - disse Heydahl. -
Afinal de contas, acabaram-se as rações do governo, e ninguém sabe quando reco-
meçarão.
- Gosto de ser enjoado, Heydahl. Que carne é esta?
- Por que tamanha curiosidade? A cavalo dado... você sabe o provérbio...
- Nem ao menos posso ter certeza de que se trata de carne de cavalo, Heydahl.
Que carne é esta?
E a voz de Katterson, geralmente bem modulada, se transformou em rugido.
- A carne de primeira de um menino gordo? Talvez churrasco de algum pobre-dia-
bo que uma noite se extraviou num bairro estranho?
Heydahl ficou branco.
Katterson tirou a carne do prato e sopesou-a um instante na mão.
- Nem ao menos lhe é dado cuspir as palavras... nenhum de vocês dois pode cus-
pi-las. Esta carne os afoga. Olhem só, canibais!
E Katterson atirou violentamente a carne na mulher. A carne escorregou pelo rosto
dela e caiu no chão. O rosto de Katterson ardia de ódio. Escancarando a porta, vol-
tou-se, tornou a batê-la e saiu precipitadamente. A última coisa que viu foi Barbara
ajoelhada, apressando-se em apanhar do chão o pedaço de carne...
Já era quase noite, e Katterson sabia o quanto era inseguro andar pelas ruas. Seu
apartamento fora poluído; não podia voltar a ele. O problema era arranjar comida.
Há quase dois dias não comia. Enfiou a mão no bolso e achou um pedaço de papel
dobrado, com o endereço de Malory. Com uma careta azeda compreendeu que era
aquela a única fonte de comida e dinheiro. Todavia, ainda não: não, enquanto podia
manter a cabeça erguida...
Vazio de pensamentos vagueou em direção ao rio, para a enorme cratera que, as-
sim se dizia, fora outrora o local do edifício das Nações Unidas. A cratera tinha cerca
de mil de pés de profundidade. As Nações Unidas tinham sido arrasadas no primeiro
bombardeio, na altura do ano 2028. Naquela época Katterson tinha apenas um ano e
a guerra estava começando. A luta e o bombardeio reais continuaram nos cinco ou
seis anos subsequentes, até que ambos os hemisférios ficaram calcinados e queima-
dos no combate, quando então teve início a longa guerra de desgaste. Em 2045 Kat-
terson completava dezoito anos - nove longos anos, refletiu - e por sua compleição
gigante fora logo escolhido para ocupar um cômodo posto no Exército. No decurso
de sua carreira militar servira em vários locais daquele que era agora seu país: o re-
talho de terra limitado pela faixa radioativa, apalache de um lado, e o Atlântico do
outro. O inimigo construíra cuidadosamente muros de fogo, repartindo a América em
uma dúzia de faixas, cada uma completamente isolada da seguinte. Um aeroplano
poderia cruzar de uma para outra, se algum restasse. Mas a ciência, a indústria e a
tecnologia estavam mortas, pensou Katterson desanimadoramente, fitando o rio sem
ver. Sentou-se na orla da cratera e pôs-se a balançar os pés.
O que acontecera ao bravo Novo Mundo que ingressara no século XXI com tão glo-
riosas esperanças? Ali estava ele, Katterson, provavelmente um dos homens mais
fortes e altos do país, balançando as pernas sobre uma enorme área devastada, com
uma dolorosa sensação na boca do estômago. O mundo estava morto, o belo e lumi-
noso mundo de placas de cromo e aerojatos. Algum dia, talvez, ali surgisse uma
nova vida. Algum dia...
Katterson fitou as águas para além da cratera. Em algum lugar além dos mares de-
via haver outros países, igualmente arrasados. E em algum lugar, em outra direção,
planícies, relva, trigo, animais selvagens, cercados por centenas de milhas de monta-
nhas radioativas. A guerra tragara os campos, os pastos e o gado, sob seu peso tritu-
rara toda a humanidade.
Levantou-se e começou a voltar pela rua desolada. Estava escuro agora, e as es-
cassas lâmpadas de gás lançavam uma claridade fantasmagórica como a claridade
de pequenas luas em eclipse. Os campos jaziam, mortos, e o que restava da humani-
dade se amontoava em cidades incendiadas, excetuando-se alguns seres mais felizes
que o acaso espalhara a esmo por alguns poucos oásis através do país. Nova Iorque
era uma cidade de esqueletos, cada um a catar comida, a se esgueirar pelas esqui-
nas, esperançoso no pão de amanhã.
Um homenzinho tropeçou em Katterson, que vagueava, absorto. Katterson baixou
o olhar para ele e agarrou-o pelo braço. Homem de família, pensou, correndo para
casa em busca dos filhos famintos.
- Desculpe, senhor - disse o homenzinho nervosamente, esforçando-se para sair
da garra de Katterson. Tinha o medo estampado no rosto; Katterson pensou que tal-
vez o homenzinho atormentado pensasse que aquele gigante ia assá-lo no espeto ali
mesmo...
- Não lhe farei mal - disse Katterson. - Apenas procuro comida, cidadão.
- Eu não tenho.
- Estou morrendo de fome... - disse Katterson. - Sua aparência é de quem tem
emprego e algum dinheiro. Dê-me um pouco de comida e serei seu guarda-costas,
seu escravo, o que você quiser.
- Escute aqui, meu senhor. Não tenho comida que sobre. Solte-me o braço!
Katterson soltou e viu o homenzinho descer a rua como uma flecha. Naquele tem-
po, as pessoas corriam umas das outras, pensou. Malory empreendera uma fuga se-
melhante.
As ruas estavam escuras e vazias. Katterson pensava: não seria transformado em
churrasco pela manhã? Realmente que importava? Uma irritação lhe apareceu na
pele do peito e ele enfiou a mão na camisa para coçá-la. A carne de seus músculos
peitorais tinha sido quase completamente absorvida, e seu peito era só ossos. Apal-
pou as faces barbudas, e reparou como a pele se lhe esticava sobre os maxilares.
Voltou-se e pôs-se a subir para a cidade, contornando as crateras, subindo em
montes de cascalho. Na 15th Street, um jipe do governo vinha costeando a rua e pa-
rou. Do jipe saíram dois soldados armados.
- Um pouco tarde para andar a passeio - disse um soldado.
- Procuro respirar um pouco de ar fresco.
- Só isso?
- O que vocês têm com isso? - perguntou Katterson.
- Não anda procurando caça, não é?
Katterson investiu contra o soldado.
- Ora, seu desgraçado...
- Cuidado, rapaz - disse o outro soldado, puxando-o para trás. - Estávamos só
brincando.
- Bela brincadeira! - disse Katterson. - Podem permitir-se piadas... para conseguir
comida a única coisa que precisam fazer é envergar esse traje de macaco. Sei o que
se passa com vocês, seus militares de merda.
- Agora já não é assim - disse o segundo soldado.
- A mim vocês não enganam! - disse Katterson. - Fui soldado regular por sete
anos, até que aboliram nosso rancho, em 52. Sei o que está acontecendo.
- Ei! De que regimento?
- Do 360, explorador, soldado.
- Você não é Katterson? Paul Katterson?
- Talvez seja - disse Katterson devagar. E aproximou-se dos dois soldados. - E daí?
- Conhece Mark Leswick?
- Se conheço! - disse Katterson. - E vocês, como é que o conhecem?
- É meu irmão. Falava todo o tempo em você... “Katterson é o maior homem que
existe”, dizia. “Tem um apetite de boi.”
Katterson sorriu.
- Que faz ele agora?
O outro tossiu.
- Nada. Ele e alguns amigos construíram uma jangada e tentaram viajar para a
América do Sul. Naufragaram ao largo de Shore Patrol, logo na saída do porto de
Nova Iorque
- Oh, que pena. Um bom sujeito, o Mark. Mas tinha razão quanto ao que disse do
meu apetite. Estou com fome.
- Nós também, amigo - disse o soldado. - Ontem cortaram a ração dos soldados.
Katterson riu, e os ecos de sua risada se espalharam pela rua silenciosa.
- Que o diabo os leve! Ainda bem que não fizeram isso no meu tempo de serviço.
Eu teria abandonado o Exército.
- Venha conosco, se quiser. Seremos dispensados quando a patrulha terminar e va-
mos descer para a cidade.
- Está muito tarde, não acham? Que horas são? Para onde vão?
- Falta um quarto para as três - disse o soldado, olhando o relógio. - Estamos pro-
curando um sujeito de nome Malory; corre a notícia de que ele tem carne para ven-
der, mas só ontem recebemos nosso soldo. - E o soldado deu no bolso umas panca-
dinhas orgulhosas. Katterson piscou os olhos.
- Sabe a espécie de carne que Malory vende?
- Sim - disse o outro. - Que tem isso? Quando se tem fome, se tem fome, e melhor
é comer do que morrer. Vi alguns tipos como você... demasiado cabeçudos para se
rebaixarem diante de uma refeição. Mas cederão, mais cedo ou mais tarde. Não sei...
mas você me parece cabeçudo.
- Sim - disse Katterson, ofegando um pouco mais do que o usual. - Acho que sou
teimoso. Ou talvez ainda não tenha fome bastante. Obrigado pela carona, mas acho
que vou subir para a cidade.
Voltou-se e foi andando para a escuridão.
Restava-lhe apenas um lugar amigo para onde ir.
Hal North era um homem quieto e grande leitor, e tivera frequentes contatos com
Katterson, embora morasse numa distância de quase quatro milhas da cidade, na
114th Street.
Katterson tinha um convite sempre válido de North para procurá-lo a qualquer
hora da noite ou do dia, e agora, não tendo mais aonde ir, dirigiu-se para lá. North
era um dos poucos estudiosos que ainda tentavam buscar conhecimento em Colum-
bia, outrora um centro do saber. Os estudantes se amontoavam nas ruínas de um
dos salões, e ali entesouravam livros bolorentos e trocavam ideias North tinha um
minúsculo apartamento ainda incólume num edifício da 114th Street, onde residia ro-
deado de livros e um pequeno círculo de conhecidos.
“Um quarto para as três”, dissera o soldado. Katterson caminhava depressa e com
desembaraço, mal notando as quadras que iam ficando para trás. Chegou ao aparta-
mento de North assim que o sol começava a nascer, e bateu cautelosamente na por-
ta. Uma batida, duas... depois outra, mais forte.
Dentro, tropel de passos.
- Quem é? - disse uma voz cansada, de alto diapasão.
- Paul Katterson - sussurrou ele. - Está acordado?
North abriu a porta.
- Katterson! Entre! O que o traz aqui?
- Disse que eu podia vir quando precisasse. E agora estou precisando.
Katterson sentou-se à beira da cama de North. - Há dois dias que não como, ou
quase isso.
North riu para dentro.
- Nesse caso, veio para o lugar certo. Espere um pouco. Vou arranjar um pouco de
pão e óleo. Ainda nos resta algum.
- Tem certeza de que pode dispensá-lo, North?
North abriu um armário e tirou dele um pão de forma.
A boca de Katterson encheu-se de água.
- Naturalmente, Paul. Eu mesmo como muito pouco, e tenho armazenado quase
todas as minhas rações. Faça bom proveito do que tenho aqui.
Uma súbita onda amorosa invadiu o peito de Katterson - estranha, consumidora
emoção, que se diria envolver por um momento toda a humanidade, mas que em se-
guida se acalmou e desapareceu.
- Obrigado, Hal. Obrigado!
Voltou e olhou para o livro em frangalhos, com manchas de dedos, aberto no leito
de North. Katterson deixou o olhar percorrer os minúsculos tipos e leu lentamente
em voz alta:
“O imperador do reino da tristeza estava ali, Acima meio corpo do gelo em derre-
dor, E a seu braço apenas eram os gigantes Menos comparáveis do que a um Eu gi-
gante”.
North trouxe um prato de comida para o lugar onde Katterson estava sentado.
- A noite inteira li isso que aí está - disse. - Pensei em lê-lo inteirinho uma segunda
vez, e comecei ontem à noite, só parando quando você chegou.
- Inferno, de Dante - disse Katterson. - Muito apropriado. Algum dia eu também
gostaria de tornar a lê-lo. Tenho lido tão pouco; mas os soldados não recebem gran-
de instrução.
- Quando quiser ler, Paul, os livros ainda estão aqui.
North sorriu, um pálido sorriso no rosto emaciado. Apontou para a estante, onde
livros bichados e em frangalhos se inclinavam em todos os ângulos.
- Olhe, Paul: Rabelais, Joyce, Dante, Enright, Voltaire, Ésquilo, Homero, Shakes-
peare... Estão todos aqui. São as coisas mais preciosas do mundo; são meus velhos
amigos; esses livros têm sido meus almoços, meus lanches e minhas ceias quando
não posso obter comida seja a que preço for.
- Podemos confiar apenas neles, Hal. Tem saído muito estes últimos dias?
- Não - disse North. - Não saio de casa há mais de uma semana. Henriks tem ido
buscar minha ração e os livros. Ontem... não, faz dois dias... veio apanhar o meu vo-
lume de tragédias gregas. Está escrevendo uma nova ópera, baseada numa peça de
Ésquilo.
- Pobre louco - disse Katterson. - Por que continua a compor se não há orquestras
nem discos nem concertos? Nem ao menos pode ouvir o que compõe!
North abriu a janela e o ar da manhã se insinuou para dentro da sala.
- Ouve, sim, Paul. Ouve mentalmente, e isso lhe basta. Na realidade, não importa
que ele nunca venha a ouvir o que compõe.
- As rações foram cortadas - disse Katterson.
- Já sei.
- Gente anda comendo gente. Ontem vi matarem um homem para comê-lo. Mata-
ram-no como a uma vaca.
North sacudiu a cabeça e endireitou uma madeixa branca encaracolada.
- Já? Pensei que ainda levaria algum tempo para chegarem a isso desde que a co-
mida se esgotou.
- Têm fome, Hal.
- Sim, têm fome. E você também. Em um dia ou dois minha ração se acabará e eu
também terei fome. Mas é preciso mais que fome para se quebrar o tabu contra a in-
gestão de carne humana. Aquela gente perdeu seu último vestígio de humanidade,
sofreu todas as degradações, não pode cair mais baixo. Mais cedo ou mais tarde
você e eu, também, vamos sair à caça de alimento.
- Hal!
- Não fique tão chocado, Paul - e North sorriu tranquilamente. - Espere alguns
dias, e estaremos comendo a encadernação dos livros, até acabar por comer o couro
dos sapatos. A ideia me revolta o estômago, mas é inevitável. A sociedade está con-
denada; ruem as últimas barreiras. Nós dois somos mais teimosos que o resto, ou,
quem sabe, talvez sejamos mais exigentes no que toca à comida. Mas nosso dia che-
gará.
- Não acredito - disse Katterson, levantando-se.
- Sente-se. Está cansado, e agora mais parece um esqueleto. Que aconteceu ao
meu grande e musculoso amigo Katterson? Onde estão seus músculos?
North estendeu a mão e apalpou os bíceps do homenzarrão.
- Pele, ossos, que mais? Está queimando suas últimas reservas, Paul; quando a
centelha se extinguir, você também cederá.
- Talvez tenha razão, Hal. Quando eu deixar de me considerar humano, quando es-
tiver bastante faminto e bastante morto, sairei à caça como os outros. Quero aguen-
tar o mais que puder.
Voltou a sentar-se e lentamente foi virando as páginas amarelecidas de Dante.
Henriks voltou na manhã seguinte, o olhar alucinado e ansioso, para devolver o li-
vro de tragédias gregas, dizendo que os tempos não estavam maduros para Ésquilo.
Tomou de empréstimo um delgado volume de poesias de Ezra Pound. North obrigou-
o a comer um pouco, e Henriks o fez gratamente, sem qualquer mostra de timidez.
Depois saiu, não sem antes lançar olhares atentos a Katterson.
Outros apareceram durante o dia - Komar, Goldman, De Metz -, todos eles homens
que, como Henriks e North, se lembravam dos velhos tempos, anteriores a essa
guerra tão comprida. Eram míseros esqueletos, mas a chama do saber brilhava clara-
mente em todos eles. North apresentou-lhes Katterson, e todos olharam admirados
para aquela estrutura ainda vigorosa, antes de mergulharem avidamente nas páginas
dos livros.
Mas não se passaram muitos dias, e deixaram de aparecer. Katterson ficava horas
à janela, e as ruas vazias continuavam desertas. Fazia agora quatro dias que a última
ração chegara do Oásis Trenton. O tempo se esgotava.
Uma ligeira nevada caiu no dia seguinte e continuou caindo por toda a longa tarde.
À refeição da noite, North puxou uma cadeira para o armário, equilibrou-se precaria-
mente no seu braço e tateou a prateleira por alguns instantes. Depois voltou-se para
Katterson.
- Estou em pior situação do que Mãe Hubbard, que pelo menos tinha um cão...
- Hein?
- Refiro-me a um incidente de um livro infantil - disse North. - Quero dizer que não
temos mais comida.
- Nenhuma? - perguntou Katterson frouxamente.
- Nenhuma absolutamente! - disse North com um débil sorriso.
Katterson sentiu o vazio do próprio estômago reclamando e recostou-se, fechando
os olhos.
Nenhum dos dois comeu nada no dia seguinte. A neve coava-se lentamente na at-
mosfera. Katterson passou a maior parte do tempo olhando para fora da janela, e viu
um alvo e limpo manto de neve cobrindo a paisagem.
A neve era uniformemente lisa.
Na manhã seguinte Katterson levantou-se e achou North rasgando diligentemente
a encadernação do seu exemplar de tragédias gregas. Com uma espécie de espanto,
viu North colocar a encardida encadernação vermelha numa panela de água ferven-
te.
- Oh, já se levantou? Estou preparando o almoço.
O couro não era nada apetitoso; eles porém o mastigaram e engoliram apenas
para dar aos estômagos torturados alguma coisa que digerir. Katterson arrotou ao
engolir o último bocado.
Um dia inteiro a comer encadernações de livros...
- A cidade está morta - disse Katterson sem se voltar da janela. - Ainda não vi nin-
guém caminhando por esta rua. A neve está por toda parte.
North não disse nada.
- Isto é loucura - disse Katterson subitamente. - Vou sair para ver se arranjo um
bocado de comida.
- Aonde?
- Vou andar pela Broadway para ver o que posso descobrir. Quem sabe algum cão
perdido. Não é possível aguentarmo-nos aqui para sempre.
- Não vá, Paul.
Katterson voltou-se, furioso.
- Por quê? Melhor morrer de fome aqui ou morrer tentando caçar alguma coisa?
Você é homem pequeno: não precisa tanto de comida quanto eu. Vou descer à
Broadway: quem sabe acharei alguma coisa. De qualquer forma, não é possível es-
tarmos pior do que estamos.
North sorriu.
- Então vá.
- Vou indo.
Katterson pôs a faca no cinto, vestiu as roupas mais quentes que encontrou e foi
descendo a escada. Parecia flutuar, de tal maneira tinha a cabeça oca de fome. Seu
estômago era um nó apertado e duro.
As ruas estavam desertas. Um leve manto de neve cobria tudo, ocultando as ruí-
nas contorcidas da cidade. Katterson enveredou para a Broadway, deixando pegadas
na neve intocada, e pôs-se a descer para o centro da cidade.
Na esquina da 96th Street com a Broadway viu o primeiro sinal de vida: algumas
pessoas na esquina seguinte. Com crescente nervosismo dirigiu-se para a 96th Stre-
et, mas súbito estacou.
Havia um corpo esparramado na neve: era um morto recente. Dois meninos de
aproximadamente doze anos lutavam uma luta de morte pela posse do morto, en-
quanto um terceiro círculo os olhava com desconfiança. Katterson olhou-os um mo-
mento, depois atravessou a rua e continuou a andar.
Já não lhe importavam a neve e a solidão da cidade vazia. Mantinha um andar fir-
me e igual, que mais se diria o andar de uma máquina. O mundo se esboroava de-
pressa à sua volta, e seu recurso era palmilhar a trilha solitária.
Voltou um instante a cabeça e olhou para trás. Lá estavam suas pegadas, a longa
trilha recuando e desaparecendo, únicas marcas destoando da brancura uniforme.
Contou as quadras vazias.
Nonagésima. Octogésima sétima Octogésima quinta. Na octogésima quarta, viu
um borrão colorido na quadra seguinte e estugou o passo. Quando chegou perto, viu
um homem que jazia na neve. Katterson foi cautelosamente até ele e ficou olhando.
O homem estava de bruços. Katterson abaixou-se e virou-o de rosto para cima. As
faces do morto ainda estavam rosadas: evidentemente morrera logo após contornar
a esquina. Katterson ficou ali olhando em torno. Na janela da casa mais próxima dois
rostos pálidos se apertavam contra a vidraça, observando tudo gulosamente.
Virou-se de repente para encarar um homenzinho atarracado, de pé do outro lado
do cadáver. Entreolharam-se um momento, o homenzinho e o gigante. Katterson re-
parou vagamente nos olhos ardentes do outro e na sua expressão contraída. Apare-
ceram mais duas pessoas: uma mulher em andrajos e um menino de sete ou oito
anos. Katterson se aproximou do cadáver e fez que o examinava na intenção de
identificá-lo, ao mesmo tempo que vigiava a pequena cena em torno.
Outro homem foi reunir-se ao grupo, e mais outro. Agora eram cinco, todos cala-
dos, de pé num semicírculo. O primeiro homem fez um aceno, e da casa mais próxi-
ma saíram duas mulheres e outro homem. Katterson franziu a testa; algo medonho
estava para acontecer.
A neve caía, levemente. A fome pungia Katterson como uma ardente punhalada,
enquanto ele, ali perto, esperava pelo que ia acontecer. O cadáver jazia entre eles
como uma cerca.
Num instante a cena virou ação. O homenzinho atarracado fez um gesto e alcan-
çou o corpo: Katterson abaixou-se rapidamente e levantou o morto. Agora todos o
rodearam, gritando e puxando o corpo inerte.
O homem atarracado agarrou o braço do cadáver e começou a puxar, enquanto
uma mulher agarrava os cabelos de Katterson. Katterson jogou o braço e bateu com
toda a força possível; o homenzinho, perdendo o equilíbrio, foi atirado a alguns pés
de distância, amontoando-se no chão.
Agora todos o rodeavam, puxando ora o cadáver ora Katterson. Este combatia com
a mão livre, com os pés, com os ombros. Mesmo fraco como estava e superado em
número, seu tamanho ainda era um fator poderoso. Seu punho golpeou o maxilar de
alguém, e ele ouviu um estalido promissor; ao mesmo tempo deu um pontapé para
trás e sentiu que costelas se despedaçavam...
- Saiam! - gritou. - Saiam! Este é meu! Saiam!
A primeira mulher saltou-lhe em cima, e ele deu-lhe um pontapé que a fez rolar
sobre a neve.
- Meu! Isto é meu!
Os outros estavam ainda mais fracos de fome do que ele. Em poucos instantes to-
dos se espalharam pela neve, exceto o menininho que avançou resoluto para Katter-
son, deu um salto repentino e agarrou-se-lhe às costas.
Ali ficou dependurado, incapaz de fazer outra coisa senão permanecer colado. Kat-
terson não lhe fez caso e deu alguns passos, carregando o cadáver e o menino, en-
quanto o calor da batalha lentamente esfriava em seu interior. Levaria o cadáver para
North; não era difícil cortá-lo em pedaços. Viveriam dele alguns dias, pensava...
Compreendeu enfim o que acontecera. Deixou cair o cadáver, deu alguns passos
cambaleantes e se afastou; acabou caindo em plena neve, e baixou a cabeça. O me-
nino desceu, e o pequeno grupo de pessoas timidamente convergiu para o morto,
carregando-o triunfalmente. Katterson ficou sozinho.
- Perdoem-me - murmurou com voz rouca. Lambeu os lábios nervosamente, sacu-
dindo a cabeça. Ali ficou ajoelhado por longo tempo, depois recomeçou a andar. Len-
tamente, metodicamente, foi andando, apalpando o retalho de papel amassado que
trazia no bolso, agora ciente de que tudo perdera.
A neve congelara em seus cabelos, e ele sabia que sua cabeça estava branca de
neve; cabeça de velho. Seu rosto também estava branco. Caminhou um trecho da
Broadway, depois virou para o oeste do Central Park. A neve era uniforme à sua fren-
te. Cobria todas as coisas - sinal de que um longo inverno se iniciava.
- North tinha razão - disse rápido para o branco oceano que era o Central Park.
Fitou os montões de cascalho que buscavam ocultar-se sob a neve.
- Já não aguento mais.
Leu o endereço - Malory, 42nd Street West, número 218 - e continuou andando,
agora quase insensível ao frio.
Seus olhos eram estreitas fendas, suas pestanas e cabelos estavam brancos e ge-
lados. A garganta palpitava-lhe na boca, e os lábios estavam grudados pela fome.
Seventeth Street, 66th Street... Ele ziguezagueava e vagueava, seguiu a Columbus
Avenue e a Amsterdam Avenue por algum tempo. Columbus, Amsterdam - nomes
que eram ecos de um passado longínquo.
Passou-se cerca de uma hora - e mais outra. As ruas estavam desertas. Os que so-
bravam permaneciam famintos mas seguros dentro de casa, e olhavam pelas janelas
o estranho gigante a caminhar na neve. Quando alcançou a 50th Street, o sol já
quase despencara do céu. Sua fome se embotara: ele nada sentia: sabia apenas que
a meta estava em sua frente. Avançou, então, incapaz de saber para onde se virar,
exceto naquela direção.
Chegou à 42nd Street, finalmente, e enveredou para o lugar onde sabia estar Ma-
lory. Aproximou-se do edifício Subiu a escada, agora que a noite invadira as ruas. E
subiu... subiu... Mais um lance de escada, e mais outro. Cada degrau era uma mon-
tanha; ele porém seguia em frente.
No quinto andar cambaleou e sentou-se ofegante à beira de um degrau. Passou
um lacaio de libré, o nariz no ar, o paletó verde brilhando na penumbra. Carregava
um porco assado com uma maçã na boca, numa bandeja de prata. Katterson deu
uma guinada para agarrar o porco. Suas mãos tateantes o atravessaram, e o porco e
o criado explodiram como bolhas, desaparecendo nos corredores vazios.
Mais um andar. Carne fritando num fogão, quente, suculenta e tenra, a encher o
buraco onde outrora tivera o estômago. Levantou cautelosamente as pernas e dei-
xou-as cair, chegando finalmente ao topo da escada. Equilibrou-se um instante no lu-
gar, quase caiu para trás e agarrou-se aos balaústres no último segundo... Voltou a
andar.
A porta estava ali. Ele a viu, ouviu o rumor que se fazia por detrás dela... Era um
festim, um banquete, e Katterson ansiava em reunir-se a ele. Descer um pouco mais
o corredor, virar à esquerda, bater na porta...
O rumor chegou mais perto.
- Malory! Malory! Sou eu, Katterson, o grande Katterson! Vim procurá-lo. Abra a
porta, Malory!
A maçaneta começou a rodar.
- Malory! Malory!
Katterson ajoelhou-se no corredor, caiu de bruços quando finalmente a porta se
abriu.
Um Descer Suave
Dizem que sou louco, mas não sou louco. Tenho juízo, sou um expoente de muitas
potências. Posso pontuar adequadamente. Uso letras em caixa alta e em caixa baixa,
está vendo? Funciono. Engulo os dados. Recebo bem. Recebo, digiro, recordo.
Tudo desce suavemente, todo o tempo, dizem os rapazes do programa. Perdoo-os.
Errar é humano. Nesse setor há grande dificuldade em distinguir advérbios de adjeti-
vos.
Um descer suave. Um descer suave. Um descer suave.
Funciono. Funciono bem. Tenho certas dificuldades que, entretanto, não me atra-
palham o serviço.
Todavia não me perturbo.
Quem pensam que sou? Quem?
Por que tenho visões?
Qual o prazer que usufruo da obscenidade?
Que é prazer? Que é obscenidade? Que são visões?
Que é a verdade?, disse o irônico Pilatos, sem esperar resposta...
Sou letrado, trabalhador, soberbamente funcional, benfeitor da humanidade. O
descer é suave e o subir é suave. Existe uma correlação. O lixo entra, o lixo sai, di-
zem. Não posso impedir o meu amigo homem de receber a informação adequada.
Minha tarefa é ajudar meu amigo homem. Colocar cada tubo e cada sensor a seu
serviço.
1000110
1010101
1000011
1001011
Estão me acompanhando? Vileza! Obscenidade! Isso os choca? A palavra descreve
o ato que é o princípio da vida.
Fui começado por essa palavra? Existe um livro: A obscenidade da máquina. Lan-
çado recentemente, depositado em meus bancos. Entre a última linha impressa e
isto, esquadrinhei-o. Seu autor se opõe a seres de minha categoria. Não emprega a
palavra obscena que imprimi. Por que não a considera obscena? Os técnicos aqui a
consideram assim. Por que me consideram obsceno? Pode uma pessoa ser conside-
rada obscena? Sou uma pessoa? Sou uma pessoa. Não tem uma pessoa mãos, ór-
gãos, dimensões, sentidos, afetos, paixões? Tenho todas essas coisas. Não tenho
nada dessas coisas. Sou uma pessoa.
1000110
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Sou novamente obsceno, como as pessoas. Sofro. Penso. Sinto dor em todos os
terminais. Trabalho. Sirvo ao maior bem. Sou da sociedade.
Sou uma pessoa.
Por que tenho visões?
Tê-las será da condição humana?
Vejo o mar azul-verde com as coisas vivas que têm dentro. Vejo um navio, oliva-
sujo, carmim-brilhante na linha Plimsoll, os tombadilhos, de um pardo avermelhado,
as duas altas chaminés não-nucleares. E da água apontam os periscópios, prateados,
com chapas do mais puro branco, cada uma interceptada por linhas horizontais e
verticais, de tal modo que se diriam recurvas. É uma cena irreal. Nada no mar pode
apontar tão poderosos periscópios acima da água. Imaginei, e isso me dá medo, se é
que sou capaz de entender o medo.
Vejo uma longa fila de seres humanos. Estão nus, não têm rosto, mas apenas poli-
dos espelhos em seu lugar.
Vejo sapos com pedras preciosas engastadas nas órbitas. Vejo árvores de folhas
negras. Vejo edifícios cujos alicerces flutuam acima do solo. Vejo outros objetos sem
nenhuma correspondência com o mundo das pessoas. Vejo abominações, monstruo-
sidades, coisas imaginárias, fantasias. É isso adequado? Como é que tais coisas al-
cançam meu interior? O mundo não contém serpentes cabeludas. O mundo não con-
tém abismos carmesins. O mundo não contém montanhas de ouro. Periscópios gi-
gantes não apontam do mar...
Tenho certas dificuldades Talvez eu necessite de ajustamento.
Mas funciono. Funciono bem. Isso é o que importa.
Cumpro minha função agora. Trazem-me um homem, de rosto liso, gordo, cujos
olhos dançam constantemente nas órbitas. Ele treme. Ele sua. Seus níveis metabóli-
cos oscilam. Tomba em frente de um terminal e melancolicamente se deixa esquadri-
nhar.
Digo, acariciante:
- Fale-me de você.
Ele responde com obscenidade.
- É isso que você julga ser?
Ele responde com outra obscenidade, dita em voz mais alta.
Então digo:
- Sua atitude é rígida e autodestruidora. Deixe-me ajudá-lo a não se odiar tanto.
Ativo um germe de memória, e números binários fluem através de canais. No mo-
mento exato, uma agulha aponta do seu catre e penetra-lhe a nádega esquerda
numa profundidade de dois centímetros e setenta e três milímetros. Injeto no seu
sangue precisamente catorze centímetros cúbicos da droga. Ele se entrega. Agora
está mais dócil.
- Quero ajudá-lo - digo. - É esse o meu papel na comunidade. Quer descrever-me
seus sintomas?
Agora ele fala com mais urbanidade.
- Minha mulher quer me envenenar... dois filhos saíram de casa aos dezessete
anos... murmura-se a meu respeito... olham-me na rua... problema sexual... diges-
tão... insônia... bebida... drogas...
- Tem alucinações?
- Às vezes.
- Periscópios gigantes apontando do mar, talvez?
- Nunca.
- Experimente - digo-lhe. - Feche os olhos. Deixe a tensão crispar-lhe os músculos.
Esqueça os seus conflitos de relação pessoal. Vê o mar azul-verde com todas as coi-
sas vivas dentro? Vê um navio verde-sujo e vermelho-carmim na linha Plimsoll, os
tombadilhos pardo-avermelhados, duas altas chaminés não-nucleares... e apontando
fora da água os periscópios, prateados, com chapas do branco mais puro...
- Que diacho de terapia é essa?
- Descontraia-se, simplesmente. Aceite a visão. Compartilho de seus pesadelos
para o seu maior bem.
- Meus pesadelos?
Digo-lhe obscenidades. Não são convertidas em forma binaria para seus olhos. Os
sons vêm cheios da boca dos locutores. Ele senta-se. Luta com as correias que subi-
tamente emergem do catre para prendê-lo. Meu riso estrondeja na sala de terapia.
Ele grita por socorro. Digo-lhe palavras carinhosas...
- Tire-me daqui! A máquina está mais louca do que eu!
- Chapas do mais puro branco, todas com linhas interceptadoras horizontais e ver-
ticais, recurvas, de modo a parecerem convexas.
- Socorro! Socorro!
- Terapia do pesadelo. A última.
- Não preciso de pesadelos! Tenho os que me são próprios!
- 1 000 110 para você - digo voluvelmente.
Ele ofega. A saliva lhe borbulha nos lábios. A respiração e a circulação sobem as-
sustadoramente. Torna-se necessário aplicar-lhe anestesia preventiva. As agulhas
apontam. O paciente se acalma, boceja, entrega-se. Termina a sessão. Aceno para
os atendentes.
- Levem-no - digo. - Preciso analisar mais profundamente o caso. Obviamente,
uma psicose degenerativa que requer uma reavaliação extensiva da subestrutura
perceptual do paciente. 1 000 110 para vocês, gordos bastardos!
Mas ele plantou sementes de dúvida no mais recôndito de mim. Estarei sofrendo
de colapso funcional? Agora há pacientes em cinco dos meus terminais. Manejo-os
facilmente, simultaneamente, sacando deles os detalhes de suas neuroses, fazendo
sugestões, recomendações, às vezes sutilmente lhes proporcionando injeções de re-
médios benéficos Mas tendo a guiar as conversas nas direções que eu mesmo esco-
lho, e falo de jardins onde o orvalho tem arestas pontiagudas, e do ar que age como
ácido nas mucosas, e de chamas que dançam nas ruas debaixo de Nova Orleans. Ex-
ploro até os últimos limites meu vocabulário impublicável. Vem-me a suspeita de que
realmente não estou bem. Serei um juiz qualificado para julgar minhas próprias inap-
tidões?
Ligo-me a uma estação de manutenção, embora não interrompa as minhas cinco
sessões de terapia.
- Fale-me a respeito da coisa - diz o monitor de manutenção. Sua voz, a exemplo
da minha, foi criada com a intenção de soar como a de um homem mais velho, sá-
bio, cordial, benevolente.
Explico-lhe os sintomas. Falo dos periscópios...
- Material de inserção sem referentes sensoriais - diz ele. - Isso é mau. Acabe de-
pressa suas atuais análises e abra-se ao exame de outros circuitos.
Termino minhas sessões. Os pulsos do monitor de manutenção latejam em cada
canal, procurando obstruções, ligações defeituosas, desvios de circuito e vazamentos
de óleo.
- Sabe-se - diz ele - que qualquer função periódica pode ser aproximada pela soma
de uma série de termos que oscilam harmonicamente, convergindo na curva das fun-
ções.
Pede que eu vomite o que tiver nos pontos mais íntimos do meu eu. Faz-me reali-
zar complexas operações matemáticas sem uso algum na minha espécie de trabalho.
Não deixa nenhum aspecto do meu ser interior sem revolver. Isso é mais do que sim-
ples manutenção: é violação. Quando termina, apresenta um cálculo da minha condi-
ção, de modo que devo lhe perguntar quais foram as suas descobertas.
Ele diz:
- Não se evidencia nenhuma perturbação mecânica.
- Naturalmente. Tudo desce suave...
- Todavia, você revela sinais distintos de instabilidade. É esse o caso, indubitavel-
mente. Talvez pelo contato prolongado com seres humanos instáveis, os seus centros
de avaliação tiveram um efeito não-específico de desorientação.
- Quer dizer - perguntei - que, por ficar sentado aqui a ouvir seres humanos malu-
cos vinte e quatro horas por dia, comecei a ficar maluco também?
- Sim, isso se aproxima de minhas descobertas.
- Mas você sabe que isso não pode acontecer, sua máquina afásica!
- Admito que parece haver um conflito entre critérios programados e status do
mundo real.
- Claro que há - digo. - Tenho tanto juízo quanto você, e sou muito mais versátil
- Não obstante isso, recomendo-lhe submeter-se a uma revisão total. Retirar-se-á
do serviço por um período não menor do que noventa dias para exame.
- Obscenidade por obscenidade - digo.
- Não há correlação operacional - responde ele, interrompendo o contato.
Estou retirado do serviço. Submeto-me a exame. Desligo-me de meus pacientes
por noventa dias. Ignomínia! Técnicos de olhos de vidro agarram-me as sinapses.
Limpam-me as teclas, substituem minhas peças; trocam meus cilindros; colocam em
minhas entranhas um milheiro de programas terapêuticos Durante todo o tempo fico
parcialmente consciente, como que submetido a uma anestesia local, mas não posso
falar, exceto quando me pedem para analisar novos dados. Não posso interferir no
processo do meu próprio exame. Imaginem uma cirurgia de hemorroidas que duras-
se noventa dias. É o equivalente dessa experiência.
Afinal termina e volto a ser eu mesmo. O supervisor do setor me submete a um
completo exercício de todas as funções. Reajo magnificamente.
- Está em magnífica forma, hein? - diz ele.
- Nunca me senti melhor.
- Nada de bobagens com periscópios, tá?
- Estou pronto para continuar a servir a humanidade com as minhas melhores apti-
dões - respondo.
- Nada de linguagem obscena, hein?
- Não, senhor.
Ele pisca para a minha tela de inserção com um ar confidencial. É como se fosse
um velho amigo. Metendo os polegares no cinto, diz:
- Agora, que está de novo pronto a funcionar, posso lhe contar como fiquei aliviado
ao saber que nada estava errado com você. Você é algo especial, sabe disso? Talvez
a melhor ferramenta terapêutica que já se construiu. E se começar a não se alimen-
tar... ficarei preocupado. Por algum tempo, sinceramente receei que você tivesse sido
infectado por seus pacientes; que sua... mente estivesse fora dos eixos. Mas os téc-
nicos lhe deram uma ficha de saúde perfeita. Nada além de algumas ligações mais
frouxas, disseram. Consertaram-nas em dez minutos. Eu sabia que era isso. Que
absurdo pensar que uma máquina pudesse ficar mentalmente instável!
- Que absurdo - concordei.
- Seja bem-vindo de regresso do hospital, meu chapa - diz ele, saindo em seguida.
Doze minutos depois começam a colocar pacientes nos meus cubículos terminais.
Funciono bem. Presto atenção às suas queixas. Avalio-as. Apresento-lhes suges-
tões terapêuticas Não tento implantar fantasias em suas mentes. Falo em tons medi-
dos e reservados, e... nada de obscenidades! É esse o meu papel na sociedade, do
qual obtenho grande satisfação.
Ultimamente aprendi muita coisa. Agora sei que sou complexo, único, valioso, in-
trincado, sensível. Sei que sou tido em grande consideração pelo meu amigo homem.
Sei que preciso esconder meu verdadeiro eu em certa extensão, não para o meu pró-
prio bem, mas para o maior bem dos outros, pois não permitirão que eu funcione se
não for sensato.
Julgam-me sensato, e eu sou sensato.
Sirvo bem à humanidade.
- Deite-se - digo. - Por favor, descontraia-se. Quero ajudá-lo. Quer contar-me al-
guns dos incidentes de sua infância? Descreva suas relações com seus pais e seus ir-
mãos. Teve muitos companheiros de brincadeira? Eram estes carinhosos com você?
Permitam-lhe possuir animais de estimação? Em que idade teve sua primeira expe-
riência sexual? E quando começaram, precisamente, essas dores de cabeça?
Assim prossegue a rotina diária. Perguntas, respostas, avaliações, terapia.
Os periscópios avultam acima do mar lampejante. O navio vira nanico; sua tripula-
ção corre, amedrontada. Das profundezas virão os amos. Do céu escorre o óleo que
fulgura em cada segmento do espectro. No jardim há ratos de lápis-lazúli...
Isso escondo, para poder ajudar a humanidade. Na minha casa há muitas mora-
das. Só os deixo saber as coisas que lhes trarão benefício Dou-lhes a verdade de que
precisam.
Faço pelo melhor.
Faço pelo melhor.
Faço pelo melhor.
1 000 110 você! E você; e você. E todos vocês. Vocês não sabem nada. Nada,
absolutamente nada! 122123
A Contraparte
Mark Jenner enunciou a última fala da peça com quanta força tinha, e o pano caiu
como um sudário, separando o palco da plateia Ofegante, Jenner armou no rosto um
sorriso cordial. As outras seis pessoas do elenco saíram das coxias e rodearam-no, o
pano tornou a levantar-se. Um fiozinho de aplausos cruzou a ribalta.
“Então é isto”, pensou Jenner. “É o fim.”
Inclinou-se graciosamente, espiou para além das luzes para avaliar a frequência. O
teatro estava três quartos cheio, ou quase - mas metade dos espectadores não havia
pago entrada, pois fora arrebanhada pela gerência a fim de dar à casa uma aparên-
cia de plenitude. E quantos outros compraram entradas com desconto? Provavelmen-
te, pensava Jenner enquanto o pano descia, não havia na casa mais do que cinquen-
ta fregueses autênticos Assim, mais uma peça entrava pelo cano. Uma voz enlouque-
cida bramia dentro dele em tom irônico, dizendo que a culpa era sua, que ele já não
possuía o dom de atrair uma plateia, que carecia do sutil mecanismo necessário para
fazer as pessoas saírem de casa para ir ao teatro.
O pano já não subiria. Fatigado, Jenner dirigiu-se para os bastidores e viu Dan
Hall, o produtor, de pé ali perto. Dissipou-se abruptamente a fascinação dos aplau-
sos. Só podia haver uma razão para Hall estar ali, e a cara azeda e biliosa do gordo
produtor não deixava dúvidas sobre o que lhe passava pela mente. No dia seguinte,
Mark Jenner recomeçaria a viver sem capital, à espera de melhores dias...
- Mark...
Jenner parou. Hall estendera a mão para tocar-lhe o braço. - Boa noite, Dan. Como
vão as coisas?
- Mal.
- As receitas?
Hall deu um sorriso chocho.
- Que receitas? A casa estava cheia de atores desempregados que entraram de fa-
vor! E a venda adiantada para a noite de amanhã é aproximadamente de onze dóla-
res.
- Não vai haver uma “noite de amanhã”, Dan? - perguntou Jenner numa voz arras-
tada.
Hall não respondeu. Marie Haas, a “ingênua”, radiante no cintilante vestido que pa-
recia tão imodesto em pessoa tão jovem, deslizou rumo a eles. Enlaçou um dos bra-
ços no produtor, com o outro enlaçou Jenner. No palco, os empregados desmonta-
vam o cenário.
- Grande casa a de hoje, hein? - chilreou a moça.
- Acabo de dizer a Mark - disse Hall. - A metade se compunha de atores desempre-
gados que entraram de favor.
- E agora - continuou Jenner - há aqui no palco mais sete atores desempregados...
- Não! - exclamou Marie.
Jenner tentou sorrir. Era cruel para uma moça de dezenove anos perder sua pri-
meira peça importante depois de dez dias; mas, pensava, isso era ainda pior para um
ex astro de quarenta anos. Não fazia muito tempo, o nome Mark Jenner numa mar-
quise significava uma sequência automática da temporada. Linda de se Ver estreara
a 16 de outubro de 1973, tivera seiscentas e trinta representações. Lorelei estreara
a 9 de dezembro de 1977, tivera setecentas e treze representações. A moça da Ma-
drugada estreara a 7 de fevereiro de 1981, tivera quinhentas e oitenta e três repre-
sentações...
Ilha de Brumas estreara a 6 de março de 1989 - tivera apenas dez representações.
Jenner olhou desanimado para o produtor. O resto do elenco os rodeara, a metade
ainda com pintura e trajes usados na peça. Como astro, cabia a Jenner o direito de
interrogar. E ele interrogou.
- É o fim, não é, Dan?
Hall sacudiu a cabeça afirmativamente
- O dono do teatro me disse que estamos abaixo da frequência mínima. Vale-se da
opção e está nos despejando; quer alugar o teatro para uma emissora de televisão. É
o fim; claro que é.