Você está na página 1de 2

O surrealismo em “Poemas”

Nesta etapa da análise, iremos discorrer sobre a relevância da estética surrealista no


processo de composição dos poemas de Murilo Mendes, em específico no poema “Cantiga de
Malazarte”, que abarca fortes traços desse movimento artístico e literário.
No Brasil, não houve propriamente Surrealismo como houve na Europa, mas é sabido
que alguns artistas incorporaram pressupostos do movimento em seus métodos de composição.
É o caso de Murilo Mendes que, conforme explica Marcondes de Moura (1994, p.119),
“dialogou de modo declarado com uma das principais vertentes da modernidade: o
surrealismo”.
Esse surrealismo em Murilo Mendes não se configura como escrita automática, da
maneira em que ficou conhecida a produção artística do grupo de André Breton, na França. No
entanto, o caráter fragmentário de sua escrita associa-se fortemente com a experiência do
registro imediato da imaginação. O efeito poético dessa fragmentação foi descrito por
Marcondes como “o aparente esgarçamento da composição” (1994, p. 105). Isso quer dizer que
a uma ordenação lógica dos elementos semânticos do poema Murilo prefere uma articulação
ilógica, segundo um modo de funcionamento das narrativas oníricas. Para o sentido do poema,
o ilogismo significa um ataque proposital ao mundo real ordenado como é.
No poema “Modinha do Empregado de Banco”, a força da imaginação ameaça colocar
em xeque o mundo trivial dos negócios, assim como a chuva, elemento natural que precipita
sobre as coisas, molha e modifica a figura rígida e onipotente de Floriano Peixoto.
Além do fragmentário, o surrealismo legou as aproximações insólitas de elementos que
não coexistem ou convivem na realidade. São imagens que brotam do choque de coisas muito
diferentes ou opostas.
Pode-se observar a construção do insólito imagético no poema “Cantiga de Malazarte”
adaptando o que Marcondes de Moura faz em relação ao poema de Murilo “Aproximação do
terror”. Neste, o autor diz que “convivem sem mediações explicativas o maior e o menor, o
artificial e o natural, o construtivo e o destrutivo, o presente, o passado e o fututo”. (MOURA,
1994, p.107). Em “Cantiga de Malazartes” as aproximações podem ser descritas da seguinte
forma: o eu e o mundo, o relevante e o irrelevante, o mundano e o sagrado.
A relação entre o eu e o mundo é verificada nas imagens do “olhar que penetra nas
camadas do mundo”, no “andar de baixo da pele”, no ato de destelhar “as casas penduradas na
terra” e na rua que “estala com meus passos”. Tudo isso indica a abertura sensível do eu-lírico
às impressões do mundo físico. Já o paralelo entre o relevante e o irrelevante traduz-se pelas
imagens do “herói vagabundo”, o personagem Malazarte, e pelo “soldado vencido”, ambos
dignificados pelo eu-lírico, que se considera ser o próprio amor, quem é capaz também de
“cumprimentar os gatos” e “pedir desculpas ao mendigo”. Aprofundando o choque de
elementos dessemelhantes, é no confronto entre o mundano e o sagrado que o poema concentra
a imagem de um eu-lírico espirituoso “que assiste à Criação” sem deixar de abrir mão de sua
consciência mundana; por isso ele olha, anda, “toca nas flores, nas almas, nos sons, nos
movimentos”, tira “o cheiro dos corpos das meninas sonhando” e “bole em todas as almas que
encontra”.
Portanto, o insólito das imagens assim como o fragmentário resultante da apreensão do
inconsciente são traços surrealistas importantes no processo de composição de grande parte dos
poemas da obra “Poemas” e conferem a eles um sentido particular de embate entre o universo
da imaginação e a realidade cruel do mundo concreto.

Referências Bibliográficas:

MOURA, Murilo Marcondes de. Os jasmins da palavra jamais. In BOSI, Alfredo. (Org.)
Leitura de poesia. São Paulo: Ática, 1996.p.101-125.

Você também pode gostar