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«PSICO-NEURO-ENDOCRINO-IMUNO-

- R E U M AT O L O G I A »: EXPLORANDO OS

MECANISMOS BIOLÓGICOS DAS

M A N I F E S TA Ç Õ E S P S I C O - S O M ÁT I C A S

José António Pereira da Silva

Serviço de Medicina III e Reumatologia


Hospitais da Universidade de Coimbra
RESUMO

As doenças reumáticas são frequentemente acompanhadas de manifestações do foro emocional e afec-


tivo que podem alterar de forma dramática a apresentação clínica e, por essa via, o diagnóstico e orien-
tação terapêutica. Noutros casos, as manifestações músculo-esqueléticas podem ser vistas como resul-
tado de somatização de conflitos emocionais. A dicotomia físico/psíquico é fortemente artificial. A abor-
dagem das doenças reumáticas numa perspectiva bio-psico-social, bastante mais consentânea com a
realidade, é a que garante melhores resultados numa perspectiva global do doente, isto é, da sua quali-
dade de vida. A investigação biomédica recente na fronteira entre a mente e os sistemas endócrino e
imunológico vieram revelar vias bioquímicas insuspeitadas que permitem começar a desenhar a pro-
funda interacção existente entre estas esferas. É este o objectivo deste artigo.

ABSTRACT

Rheumatic diseases are frequently associated with emotional and affective manifestations which may
dramatically change their clinical manifestations and, hence, their diagnosis and management. In other
cases, musculo-skeletal symptoms may be seen as the result of somatisation of affective conflicts. The
dichotomy between physical and psychical is strongly artificial. The approach to rheumatic diseases fol-
lowing a bio-psycho-social model, much closer to reality, offers the best results in a global perspective of
the patient, that is focused on quality of life. Recent bio-medical research in the frontier between the
mind and endocrine and immune systems has revealed unsuspected biochemical pathways, that are
starting to unravell the complex interaction between these spheres. This is the objective of this paper.

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ARTIGOS DE REVISÃO

« P S I C O - N E U R O - E N D O C R I N O - I M U N O - R E U M AT O L O G I A » :
EXPLORANDO OS MECANISMOS BIOLÓGICOS DAS
M A N I F E S TA Ç Õ E S PSICO - S O M ÁT I C A S .

José António Pereira da Silva*

Introdução mento integral da bioquímica do seu sistema ner-


voso. Sem se aperceber, o aluno resistia à «exe-
A ninguém que pratique Medicina nas áreas da cução sumária da alma» que o Professor ali pro-
Reumatologia ou da Psiquiatria será entranha a punha, despudoradamente, à vista de todos.
noção de que existe, entre as duas Especialidades, Apaixonado embora pela química e a biologia, o
uma fronteira riquíssima, tão estimulante quanto aluno tinha uma paixão maior pelo Homem, pela
enigmática, cujos terrenos, acidentados e inde- sua dimensão psico-social, pela sua intuição, sen-
finidos, oferecem enormes dificuldades ao mais timentos e emoções que não poderiam, sem grave
intrépido explorador. prejuízo da sua própria visão da Vida, ser limi-
De facto, as doenças reumáticas são acompa- tadas a um mero jogo bioquímico. O que ficaria
nhadas de uma dimensão psicológica da máxima então, como razão para sua opção por Medicina,
importância, não só por ser determinante do grau ao invés de Veterinária?
de sofrimento e do prognóstico do paciente mas Esse aluno era o autor deste texto. Sirvo-me
também porque a sua abordagem é, muitas vezes, desta memória reconhecendo que dou cada vez
essencial ao sucesso diagnóstico e terapêutico. As mais razão ao meu Professor de então, ainda que
implicações psico-sociais destas doenças são uma parte de mim insista, conscientemente lu-
reforçadas pelo seu carácter crónico e doloroso, dibriada, em ver no Homem, a que dedica a sua
associado a deformação corporal, incapacidade vida profissional, uma aura imaterial que con-
física e diminuição do papel familiar e social do densa o mais nobre da sua natureza.
doente.
A reflexão sobre esta matéria leva-me a recor-
dar o meu primeiro contacto com a cadeira de Psico-patologia em doentes reumáticos
Psicologia Médica, no 3º ano da Faculdade. Dáva-
mos nas aulas práticas, muitíssimo interessantes, A alta prevalência de psicopatologia entre os
os primeiros passos no entendimento da natureza doentes reumáticos é seguramente reconhecida
psicológica do homem e das suas relações com a por todos os Médicos que deles cuidam e está
sua estrutura biológica, orgânica. Numa dessas demonstrada cientificamente. Hawley e Wolfe1
aulas, o Professor defendia que tudo o que se pas- encontraram critérios de «possible deppression»
sava no homem sob ponto de vista emocional, em 33% dos portadores de artrose da anca, 36,8%
psicológico, intuitivo, estaria relacionado com as dos doentes de artrite reumatóide e 48,6% dos
suas moléculas, com as transformações bioquími- doentes fibromiálgicos. Os números para «proba-
cas que ocorriam, necessariamente à mesma ble depression» eram respectivamente, de 16,8;
velocidade, no sistema nervoso central. Um aluno 20,4 e 29,3%.
resistia empenhadamente ao conceito, defenden- Estes números sublinham a importância de
do que alguma parte do Homem, ínfima que uma correcta avaliação psiquiátrica nos doentes
fosse, estaria, seguramente, para além das suas reumáticos, mas indiciam também diferenças
moléculas, inexplicável mesmo com um conheci- importantes entre os diferentes tipos de patolo-
gia. A artrite reumatóide é, de longe, a mais des-
*Especialista em Medicina Interna e em Reumatologia trutiva e incapacitante destas doenças, podendo
Professor Auxiliar de Reumatologia da Universidade de Coimbra ser horrenda quando realmente agressiva, deter-

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minando dores quase permanentes, deformando ter muito diverso do portador de artrite reuma-
o doente, prejudicando drasticamente a sua tóide e que o doente típico de espondilite an-
qualidade de vida, a sua capacidade de ganho, o quilosante se distingue de ambos.
seu relacionamento social, a sua auto-imagem. O As dimensões psicológicas afectam a Reuma-
atingimento estrutural é muito menos marcado tologia ainda de outras maneiras. Andamos há
na artrose e está completamente ausente na anos, em Reumatologia, a procurar os principais
fibromialgia. É, assim, difícil perceber que o sofri- indicadores de actividade e os principais factores
mento físico possa, por si só, justificar a ocorrên- de prognóstico nas doenças reumatismais infla-
cia de depressão nestes doentes e, sobretudo, matórias. Estudamos em profundidade «mi-
explicar as diferenças de prevalência observadas. nudências moleculares» como as Interleucinas e
Em qualquer estado patológico importa distin- os factores de crescimento, as moléculas de
guir a doença, física, objectivável («Disease», na adesão, a importância dos polimorfismos dos
terminologia anglo-saxónica) das implicações seus genes e receptores, desenvolvemos drogas
globais que ela tem sobre o doente e que podería- altamente sofisticadas como os anti-TNF. Há,
mos designar por «sofrimento» («Illness»). A rela- contudo, numerosos trabalhos que demonstram
ção de grandeza entre as duas dimensões é pro- que o perfil psicológico do doente tem maior
fundamente variável consoante a situação clínica impacto nos seu prognósticos estrutural e fun-
e mesmo consoante o doente. Numa apreciação cional a prazo do que os indicadores da gravidade
pessoal, diria que a artrite reumatóide tem uma de inflamação articular2,3. Na prática corrente é
enorme carga de «disease» para uma carga relati- indiscutível que a presença de depressão deter-
vamente pequena de «illness», apenas ligeira- mina, por si só, parte importante do grau de inca-
mente superior à da artrose onde a carga de «di- pacidade física dos doentes reumáticos. Por outro
sease» é muitíssimo menor. Pelo contrário a carga lado, a depressão pode alterar sobremaneira a
de sofrimento do doente fibromiálgico é absolu- forma como o doente expressa os seus sintomas,
tamente desproporcionada relativamente à doen- podendo conduzir o Médico menos atento a in-
ça objectivável, praticamente inexistente (Fig. 1). vestigação ou intervenção terapêutica desneces-
E contudo, todos sofrem! E o sofrimento, qual- sariamente agressivas.
quer que seja a sua natureza, é igualmente digno É compreensível que estes aspectos recebam
da atenção e dos cuidados do Médico. menor atenção do Reumatologista do que os indi-
Ainda que a literatura levante dúvidas quanto à cadores de inflamação, pelo simples facto de que
existência de traços de personalidade ligados a não os domina e os não consegue reduzir a núme-
diferentes doenças reumáticas, a maior parte dos ros. Ignorá-los, contudo, será um erro grosseiro.
reumatologistas não terá dúvidas em assumir que
o doente médio com fibromialgia tem um carác-
O sofrimento reumático como causa
de psicopatologia

Que mecanismos justificarão a elevada prevalên-


cia de psicopatologia nos doente reumáticos?
Como poderemos interpretá-los?
A literatura oferece-nos alguns modelos de
raciocínio que parecem absolutamente lógicos,
quase intuitivos. Fazem apelo a conceitos como
os de «perception of control», «learned helpless-
ness», que poderíamos, talvez, traduzir por «de-
samparo»4. O doente reumático crónico sente
que o controlo da sua vida, do seu futuro, que
naturalmente gostaria de determinar em exclu-
sividade, foi desviado de si próprio para as mãos
de outros bastante mais poderosos, como a
Figura 1. Relação variável entre doença e sofrimento em doença, o médico e outros profissionais de saúde.
diferentes condições reumáticas. Isto conduz a uma situação de dependência e

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desamparo que poderá condicionar uma tendên- «inflação de palavras». Trata-se de um aspecto
cia depressiva. Esta tendência é exacerbada pela provavelmente relacionado com conceitos bas-
perda de esperança, no sentido de que a sua tante versados na literatura como a «catastrofiza-
doença é crónica, dolorosa e incapacitante, ção» e emotividade, mas que me parece ganhar
inacessível ao seu próprio controlo. uma vida própria, com um impacto autónomo no
Este percurso será fortemente afectado pela grau de sofrimento do doente. A inflação das
estrutura de personalidade do doente e pelo meio palavras traduz-se na expressão dos sintomas e
que o rodeia, factores que condicionam, em boa do sofrimento com palavras tão dramáticas e for-
medida, as estratégias a que faz recurso para lidar tes quanto possível. É particularmente visível no
com as suas dificuldades e sofrimento (Estratégia doente fibromiálgico, cujas dores, ainda que sem
de «coping»). Sabemos hoje que estas estratégias substrato objectivo, raramente merecerão do
estão fortemente relacionadas com o desenvolvi- doente descrição menos grave do que «terrível»,
mento e o prognóstico funcional a longo prazo «horrível», «de matar». É fácil pensar que esta dra-
das doenças reumáticas. Doentes que tendem a matização é reflexo exclusivo da personalidade
ter estratégias de «coping» passivas, isto é, a dei- do fibromiálgico. Julgo, contudo, que esta ten-
xar que outros cuidem de si, a evitar as activida- dência tem uma base fortemente cultural. Em
des que causam dor, têm, em regra, pior prognós- Portugal, parece-me crescente uma tendência,
tico em termos de incapacidade física do que bem notória nos meios de comunicação, a esgo-
aqueles que têm uma atitude activa perante a sua tar as palavras rapidamente, a consumi-las com
doença, que procuram combatê-la pelos seus uma voracidade extrema, esgotando a nossa
próprios meios, que tentam viver o mais e o me- capacidade de dar mais ênfase aos acontecimen-
lhor possível apesar dela. tos de vida: facilmente a chuva é, para nós, «hor-
O apoio social e familiar ao alcance do doente rível» ou o trânsito «de dar em doido». Não admi-
é também decisivo. De acordo com a investigação ra que os doentes, levados pela emoção, bastante
efectuada interessa muito mais o tipo e qualidade característica de uma maneira latina de estar na
de suporte do que a sua quantidade. Um apoio vida, esgotem também a sua capacidade de se
construtivo, estimulante da autonomia do pa- expressar, de utilizar palavras mais duras, mais
ciente, alguém que ajude se necessário, ao invés dramáticas ainda. Isto tem implicações que me
de substituir o doente, terá um impacto positivo, parecem da maior importância nos mais variados
enquanto que o apoio excessivo, emocional, con- domínios da doença: o doente será incapaz de
trolador, pode estimular o doente a assumir a sua transmitir uma real agudização das suas queixas;
incapacidade e dependência ao invés de a com- a família vê-se forçada a mergulhar no drama
bater. Tendo trabalhado como Reumatologista descritivo perdendo objectividade. Penso, contu-
em Inglaterra e em Portugal, o autor encontra do, que a implicação mais importante desta dra-
reflexos claros destas dimensões nos dois países. matização radica na própria estruturação que o
Em Inglaterra o apoio dado aos doentes reumáti- doente faz da sua experiência, tornando-se inca-
cos, pela família e pelo sistema de saúde, é essen- paz de medir melhorias e agravamentos, de rela-
cialmente técnico, procurando encontrar, com o tivizar a doença e as suas implicações, retro-ali-
doente, meios de ultrapassar as dificuldades e mentando o sofrimento com a própria descrição
recuperar a autonomia. Em Portugal, a nossa que dele faz, enquistando-se num autêntico filme
tendência é para o «apoio moral», emotivo. É difí- de terror em que não tem cabimento qualquer
cil encontrar, entre nós, um centro de fisioterapia indício de graça. A diferença de linguagem entre
que nos receba mas temos, geralmente, fácil os doentes portugueses e ingleses com que tive
acesso a um ombro onde chorar e aí encon- oportunidade de contactar é absolutamente
traremos ainda mais conforto se ombro chorar manifesta, mesmo entre os fibromiálgicos, talvez
connosco. Não tenho, no meu espírito, dúvidas porque em Inglaterra raramente se encontrará
de que uma estratégia intermédia conseguiria alguém com paciência para «curtir a desgraça».
melhor equilíbrio entre conforto e eficácia. Na literatura, a personalidade do fibromiálgico
Recolho, da minha experiência, alguns outros e mesmo a sua dor têm sido associados a «acon-
motivos de reflexão sobre esta interface reumato- tecimentos de vida», isto é, a episódios traumati-
lógico/psicológico que me parecem relevantes no zantes acontecidos na juventude que modulariam
nosso contexto social. Ao primeiro chamaria a a sua estrutura emocional e tendência à soma-

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tização. A história de violência doméstica, abuso e dos, poderia designar-se como a «dimensão do
abandono é bastante mais prevalente nos doentes Mundo» do doente, entendendo por isso a diver-
com fibromialgia do que na população geral. sidade e abrangência dos seus conhecimentos e
Contudo, penso que esta tendência à catas- dos seus interesses culturais e sociais. Com muita
trofização e ao dramatismo, que influencia sobre- frequência, na nossa população, o Mundo limita-
maneira a leitura e descrição que o doente faz da -se à estrita dimensão física do que é possível ver
sua vivência actual, não pode deixar de afectar e visitar. Um mundo como este fica extrema-
profundamente a leitura que faz do seu passado. mente reduzido pela própria limitação física do
Quando hoje descrevo, com toda a minha emo- doente, já que o seu físico constituía o único meio
tividade, uma bofetada que levei do meu pai em de acesso ao mundo que conhece. Num doente
pequeno, como avaliar a real importância deste incapacitado por artrite reumatóide persistem
evento? O que para mim foi uma catástrofe, é intactas as capacidades intelectuais. Contudo, o
recordado, pelo meu irmão, como um aconteci- uso e utilidade destas capacidades, enquanto
mento positivo, educador. É certo que o impacto meio de obter vivência, satisfação e felicidade,
psicológico da bofetada poderia ter sido muito têm apenas a dimensão do mundo que o doente
diferente para nós os dois – contudo, estou a conhece. Num mundo desprovido de interesses
recordá-la hoje, com a minha emotividade de intelectuais, a limitação física pode ser uma he-
hoje, temperada por toda minha história inter- catombe, porque deixa o doente distante de (qua-
corrente, pela imagem de mim mesmo e da se) tudo o que lhe possa interessar. Pelo contrário,
minha vida que fui construindo ao longo dos no doente que os interesses intelectuais domi-
anos. Como será possível nestas circunstâncias nam, a limitação física tem um impacto muitíssi-
avaliar a real importância daquele episódio, mo menor, proporcional ao espaço relativo ocu-
como «acontecimento de vida» potencialmente pado pelo «físico» no seu mundo. Para alguns
determinante dos acontecimentos e vivência doentes o mundo ficou limitado ao estrito limite
futuros. Dificilmente um catastrofizador será da sua doença: única razão das suas reflexões e da
uma boa testemunha em causa própria. sua interacção social, como se vivessem apenas
Tenho por isso uma noção pessoal de que há dentro do seu quarto, metáfora para a sua
uma diferença muito significativa entre a verdade doença. Julgo que este aspecto justifica que
narrativa apresentada pelo doente e a verdade alguns doentes pareçam resistir a qualquer tenta-
factual. Questiono, por este motivo, que a meto- tiva de cura ou resolução significativa das suas
dologia até agora empregue para avaliar a impor- queixas e limitações: se o mundo se limita ao
tância dos acontecimentos de vida no desenvolvi- espaço do nosso quarto, apagar a luz significa a
mento de psicopatologia posterior, bem como na escuridão completa, universal.
génese da fibromialgia, seja adequada. Questio- Julgo, como muitos outros, que a somatização
no, assim, os seus resultados. Reconheço, obvia- deve ser entendida como uma metáfora: em boa
mente, que estes acontecimentos têm lugar na medida, muitos dos nossos doentes, nomeada-
dimensão estrita do indivíduo, que podem ser va- mente os fibromiálgicos, vêm procurar o Médico
lorados na sua perspectiva individual. Não seria com uma dor, para não falar directamente sobre
aceitável dizermos, por exemplo que, para todos sofrimento maior. E o sofrimento maior destes
os indivíduos «morte de marido» vale 100, «morte doentes resulta da sua incapacidade de lidar com
de filho» 50, desemprego 30, etc. Parece-me, con- a vida, de tirar prazer dela, da sua incapacidade
tudo, indiscutível que a verdade individual é difi- de viver a vida motivados pela satisfação de viver
cilmente prescrutável pelo simples facto de que e não apenas pelo sentido do dever ou da obri-
narrador e sujeito se confundem: ao tentar estru- gação. Nestas circunstâncias os Médicos que os
turar as razões de ser do seu sofrimento, o doente atendem têm que ter a noção de que o doente lhe
cria para si próprio uma verdade narrativa, justi- está a mostrar apenas a ponta do iceberg, conti-
ficativa de si mesmo, que pode estar muito longe nuando submerso, à espera de exploração, o ver-
da verdade factual, sobretudo, precisamente, nas dadeiro sofrimento, aquele que suporta e origina
dimensões psicológicas do evento, as que não são a dor apresentada.
passíveis de avaliação independente. Não há nenhuma dúvida no meu espírito de
Um outro aspecto que julgo muito relevante, que os Médicos em geral e os Reumatologistas em
especialmente em meios culturais menos evoluí- particular, precisam de ter uma noção clara des-

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tas dimensões psicossociais e da relação intrinca- riam em stress – daqui resultaria um aumento dos
da que mantêm com as doenças reumáticas, níveis de corticosteróides, capazes de frenar a
desde a fisiopatologia ao diagnóstico e terapêuti- reacção inflamatória e, assim, proteger a carti-
ca. Mas penso também que em algumas áreas da lagem. Admitia, portanto, e parece-me que com
Psiquiatria há uma visão dos fenómenos psi- absoluta razoabilidade biológica, que nos rati-
cológicos como se eles ocorressem num vazio nhos, talvez como em humanos, o comporta-
biológico, como se o homem fosse um corpo mento, o stress, as relações psicossociais pudes-
acrescentado de uma aura psicológica, imaterial, sem ter influência decisiva sobre o processo infla-
a que se dedicam os psiquiatras e psicólogos. matório, supostamente somático. Direi, em
É tempo de acabarmos, definitivamente, com a resumo, que o curso das investigações viria a pro-
velha dicotomia entre dimensões biomédicas e var que ambas as interpretações eram demasiado
psico-sociais, passando a entender o nosso simplistas, mas fica a sugestão de um primeiro
doente como um todo inextricável. Se a clínica mecanismo biológico passível de fazer ponte
nos dá já razões de sobra para suportar esta pro- entre a reumatologia e a psiquiatria.
posta, temos hoje conhecimento de uma va- O desenvolvimento desses trabalhos viria a
riedade de mecanismos biológicos comuns aos centrá-los, em grande medida, sobre o eixo hipo-
mecanismos biomédicos de doença e às suas cor- tálamo-hipófise-suprarenal (HHS) e suas inter-
relações psico-sociais. Entendendo que «disease» acções com as hormonas sexuais. Tive, nessa
e «illness» têm mecanismos comuns, pelo menos altura a felicidade de entrar em contacto com os
em parte explicáveis biologicamente, poderá aju- resultados de investigações levadas a cabo nos
dar os Psiquiatras a encher o «vazio» biológico em NIH dos Estados Unidos sobre uma outra estirpe
que tendem a operar e os Clínicos a entenderem de rato: o Lewis. O rato Lewis é um animal ex-
que as dimensões psico-sociais são parte inte- traordinariamente susceptível a todos os tipos de
grante e indissociável das doenças que abordam. doenças auto-imunes, incluindo muitos modelos
É nos mecanismos biológicos subjacentes às de doenças reumatológicas experimentais. Pelo
relações entre a doença física e psiquiatria que se contrário, o rato Fischer, embora histocompatível
centra o resto deste texto. Para isso, nada melhor com o primeiro, é fortemente resistente a este
do que falarmos de ratos! tipo de afecções. A investigação levada a cabo por
aqueles autores para perceberam a razão destas
diferenças demonstrou que o rato Lewis é sus-
Ratos de laboratório, imunologia e ceptível porque tem uma produção deficiente de
comportamento CRH (hormona libertadora de corticotropina) no
hipotálamo. Assim, quando exposto a um estímu-
Nas minhas investigações laboratoriais sobre a lo imunológico, o animal não responde com CRH
influência das hormonas sexuais na artrite era suficiente. A produção de corticosterona, que
claro que, sistematicamente, as fêmeas degra- deveria controlar a resposta imune é escassa, a
davam cartilagem mais rapidamente do que os reacção autoimune desenvolve-se livremente e
machos. Esta observação tinha um tranquilizante surge doença. No Fisher a produção de CRH e
paralelismo com a doença humana: também as cortisona é poderosa, donde resulta o controlo da
mulheres têm mais artrite reumatóide, e mais reacção imunológica e prevenção da doença
grave, do que os homens. Estrogénios e andro- imunológica7,8. O CRH é, de facto, essencial ao
génios pareciam responsáveis por esta diferença. controlo do sistema imunológico, de acordo com
Apercebi-me, contudo, de que os machos luta- as interacções apresentadas na Figura 2. Andro-
vam muitíssimo entre si, violentamente, para génios e estrogénios influenciam a produção
estabelecerem as hierarquias na jaula do biotério, desta hormona de forma diferenciada.
enquanto as fêmeas pareciam conviver pacifica- O que é interessante é que aqueles investi-
mente. Os ratos machos deixam de lutar se forem gadores, a partir daqui, se separaram em duas
castrados, mas degradam cartilagem mais rapi- áreas de investigação completamente diferentes:
damente5,6. Ocorreu-me, em face disto, que as uma reumatológica e outra psiquiátrica. Isto,
diferenças que observava entre machos e fêmeas porque notaram e valorizaram importantes dife-
não seriam resultado dos estrogénios e androgé- renças de comportamento entre o Lewis e o Fi-
nios mas sim do stress! Lutando, os machos entra- sher: o Lewis é um rato dócil, isolado, não procu-

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controlo do humor, constitui


um dos mais notáveis progres-
sos recentes na área da neuro-
psiquiatria. Ao longo dos últi-
mos anos, numerosos grupos
independentes de investigado-
res têm produzido evidência de
que a hiperprodução do CRH no
hipotálamo está fortemente
relacionada com a depressão
Figura 2. O eixo HHS e o sistema imunológico. melancólica, a ansiedade, as
perturbações sexuais, pertur-
bação obsessivo-compulsiva, a anorexia ner-
vosa, tanto em modelos experimentais como
em humanos. Pelo contrário, a hiporreactivi-
dade de CRH está associada à depressão
atípica9,11,12 (Fig. 4). Particularmente interes-
sante para a minha área de especial interesse
é o facto de que estrogénios e androgénios
afectam a produção de CRH, podendo, por
isso ajudar a compreender diferenças sexuais
na prevalência e gravidade destas situações.
Em estudos humanos prospectivos, os
estados depressivos mostram-se relaciona-
Figura 3. Influência do CRH nos sistemas neuroquímicos
dos com níveis aumentados de CRH e ACTH
reguladores do humor. no líquido cefalo-raquídeo e de ACTH e corti-
sol no soro, com diminuição dos surtos noc-
turnos de hormona de crescimento9,13.
ra grandemente a interacção social, resignado, é Investigadores alemães identificaram dois
um rato que, por exemplo, desiste de nadar e se tipos de receptores para o CRH, predominando o
afoga após algumas horas num tanque de água. tipo I, no sistema nervoso central. Foram já de-
Pelo contrário, o Fisher é um rato agressivo, mui- senvolvidos inibidores específicos destes re-
to mais interactivo, estabelece uma relação social ceptores, apresentados recentemente na literatu-
forte e é um lutador: nada até à absoluta exaustão ra como «a linha mais promissora de desenvolvi-
física. Dos autores principais daquele trabalho, mento de novos anti-depresssivos», antevendo,
Ronald Wilder continua a trabalhar na área da alguns, uma verdadeira revolução nesta área9,12.
autoimunidade e Esther Sternberg passou a Esta relação endócrino-psicológica é reforçada
dedicar-se ao stress e depressão. Ambos se cen- por outros dados. Estudos realizados por Zobel e
tram na produção e efeitos do CRH! colaboradores14 demonstram que a presença de
hiperprodução de cortisol em resposta ao teste
do CRH no final de internamentos por depressão
CRH e humor está associada a um risco seis vezes maior de
recorrência da doença do que em doentes que
Investigações subsequentes permitiram demons- apresentam uma resposta endócrina normal.
trar que o CRH não se limita a controlar a ACTH e Estes e outros resultados levam a afirmar que «a
supra-renal, mas constitui um verdadeiro neuro- estabilização do eixo hipotálamo-hipófise-supra-
transmissor do Sistema Nervoso Central, influen- renal é um pré-requisito para a eficácia da tera-
ciando directamente os sistemas dopaminérgico, pêutica antidepressiva»15.
serotoninérgico, noradrenérgico, colinérgico, Poder-se-ia chegar assim a uma conclusão
etc., sistemas nucleares ao controlo do humor e provocatória: a depressão é uma doença endócri-
outros aspectos psicológicos9,10 (Fig. 3). na e deveria ser tratada (também?) pelos endocri-
O reconhecimento da importância do CRH no nologistas.

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um aumento dos índices de


depressão, de ansiedade e per-
turbações da memória. Esta
relação está dependente dos
níveis de citoquinas que se
atingem e que são responsáveis
pela activação do eixo HHS.
Mais notável, talvez, é o facto de
que o tratamento com anti-de-
pressivos reverte os efeitos do
LPS e não só os psicológicos co-
mo também a febre, a activida-
Figura 4. Reactividade do CRH e perturbações do humor. de do eixo hipotálamo supra-re-
nal e a produção de TNF a nível
do baço16.
De que forma poderemos explicar tais obser-
vações? Observe a Figura 5.
Admitamos que começamos, neste caso, por
um processo inflamatório primário. Daqui resul-
ta um aumento dos níveis circulantes de cito-
quinas produzidas por linfócitos e monócitos.
Estas citoquinas vão aumentar a produção de
CRH a nível do hipotálamo e o resultado é o
aparecimento das tais traduções psicológicas da
hiperreactividade de CRH: depressão, fadiga,
hiperalgesia, perda de peso17,18,19. Estas citoquinas
podem ainda afectar esta tendência por outros
Figura 5. A resposta inflamatória como indutora de alte- mecanismos, como sejam a indução de óxido
rações do humor. Alguns mecanismos biológicos. nítrico sintetase e da cicloxigenase a nível do sis-
tema nervoso central. Está demonstrado que a
administração intratecal de citoquinas, por
Sistema imune, CRH e humor exemplo em doentes com tumores, determina
este tipo de manifestações psicológicas num
Será possível que alterações primárias no sistema prazo de horas. Parece assim de admitir que o
imunológico, tal como uma infecção ou uma tratamento eficaz de uma doença inflamatória
doença autoimune possam ter impacto psi- como, por exemplo, a artrite reumatóide, poderá
cológico através destes mecanismos? Tudo indica resultar, indirectamente, na melhoria depressão
que sim! que lhe está associada por um mecanismo
Em animais, o stress imunológico está associa- biológico independente da diminuição da dor.
do à anodinia, anorexia, perda de peso, dimi- Estas observações poderiam conduzir a uma
nuição da actividade locomotora, exploratória e segunda conclusão provocatória: a depressão é
social, tudo traços reminescentes de uma síndro- uma doença imunológica e deveria ser tratada
ma depressiva em humanos. Experiências mais pelos Reumatologistas.
dirigidas tornam esta relação mais clara: a vaci-
nação contra a rubéola é seguida de um aumento
considerável da incidência de estados de- Humor e resposta imunológica
pressivos, particularmente marcado em certos
grupos de risco; normalmente mulheres jovens E no que respeita ao processo inverso, será pos-
de baixo nível socio-económico. A administração sível que estados de depressão e de stress
de LPS, uma endotoxina que determina uma primários tenham implicações imunológicas
reacção sistémica dominada pela produção de passíveis de afectar a incidência e curso de
Interleucina 6 e TNF, está associada claramente a doenças de base imunológica? Está claramente

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demonstrado que sim. dução de mediadores anti-inflamatórios, como


Estes estados de stress crónico estão associa- sejam o antagonista do receptor da Interleucina 1
dos a uma hiperprodução de corticosteróides que e Interleucina 10 bem como de corticol22,23,24.
não poderia deixar de ter implicações sobre a res- Chegaríamos, nesta base, a uma terceira con-
posta imunológica, deprimindo-a. Esta é, aliás, a clusão provocatória: a reacção imunológica é mo-
base para uma das mais importantes teorias dulada por factores psicológicos, a autoimunidade
recentes de depressão que sugere que esta situa- poderá ser uma doença psicossomática e deveria
ção tem origem num estado de dessensibilização ser tratada pelos psiquiatras.
dos receptores de glucocorticóides determinada
pelo aumento persistente dos níveis circulantes
destas hormonas devido ao stress crónico e hipe- Acontecimentos de vida e reactividade
ractivação do eixo hipotálamo/hipófise supra- imunológica
renal20.
Contudo, a depressão e o stress têm implica- Poderão estes mecanismos oferecer uma expli-
ções directas ao nível da resposta imunológica, cação biológica para o impacto dos acontecimen-
não mediadas pelos corticoesteróides, mas sim tos de vida, tão importantes na interpretação psi-
através de receptores próprios para os neuro- quiátrica das manifestações psicossomáticas? De
-transmissores que existem nos tecidos linfóides acordo com esta interpretação, acontecimentos
periféricos e nas células imunocompetentes; o particularmente relevantes para o indivíduo, es-
stress crónico está associado a alterações como pecialmente na esfera emocional, seriam deter-
leucocitose e linfopenia, diminuição da função minantes na sua tendência a uma reactividade
das células «natural killer», isto é citotóxicas, inadequada a situações de stress no futuro, con-
diminuição da função das células T, aumento de tribuindo para situações como a fibromialgia e
mediadores pro-inflamatórios com a prostaglan- outros quadros somáticos funcionais. Ora esses
dina E2, a Interleucina VI e a Interleucina II, acontecimentos de vida, têm também implicação
aumento da relação CD4/CD8 com natural directa sobre a reactividade do eixo hipotálamo
propensão daqui derivada para reactividade supra-renal. Na realidade, a exposição de animais
imunológica exacerbada21,22 (Fig. 6). Mais ainda, a stress crónico pré-natal, isto é, os filhos de mães
está hoje demonstrado que a administração de que sofreram situações de stress arrastado
anti-depressivos, nomeadamente dos inibidores durante a gravidez, tem implicações de enorme
selectivos da recaptação da serotonina, têm relevância ao nível da esfera psiquiátrica. Assim,
implicação directa em índices de actividade em humanos, estas situações foram epidemio-
imunológica, com diminuição de produção de logicamente associadas ao aumento da prevalên-
citocinas pro-inflamatórias como Interferon- cia da esquizofrenia, ao aumento do número de
-, a Interleucina 1 e a Interleucina 6, diminuição canhotos, o que não sendo uma doença não deixa
da actividade da cicloxigenase, aumento da pro- de ser uma observação muito curiosa particular-
mente porque está associada a
uma demonstrável diminuição
da assimetria cerebral nos filhos
de mães que foram stressadas du-
rante a gravidez. Em animais de
experimentação, o stress crónico
durante a gravidez está associa-
do, nos filhos, ao aumento das
manifestações de ansiedade, di-
minuição da interacção social,
diminuição do «turnover» da do-
pamina, todos eles tipicamente
associados à depressão em hu-
manos. O stress pré-natal está
também associado com altera-
Figura 6 ção do ritmo de glucocorticóides,

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J O S É A . P, S I LVA

alterações do sono, déficit hedónico e ainda de imunes.


sensação de desamparo bem como feminização 2) Características psíquicas e somáticas associa-
dos machos25,26. das entre si na prática clínica podem, na reali-
Ora esta situação de stress durante a gravidez, dade, ser derivadas de um mesmo clima, de
foi claramente relacionada com uma alteração da um mesmo tónus neuroquímico. Quer isto di-
reactividade do CRH. Os descendentes nascidos zer que os indivíduos que, por qualquer moti-
destas condições apresentam um eixo hipotála- vo, sejam portadores de hiperreactividade do
mo supra-renal hiperreactivo o que obviamente CRH terão, por esse motivo, simultaneamente
tem consequências não só psicológicas, mas tam- uma tendência a uma personalidade mais
bém endocrinológicas e imunológicas. O mesmo depressiva, ansiosa, obsessiva, mas também
pode suceder quando o stress não ocorre já uma maior propensão à incidência eventual-
durante a gravidez mas sim durante os primeiros mente de tumores e de infecções mercê da
dias ou meses de vida. Numa experiência extre- supressão de imunidade causada pelo excesso
mamente interessante com ratos, autores norte- de glucocorticóides circulantes.
-americanos verificaram que os filhos de mães 3) Eventos psíquicos e somáticos exercem in-
mais agressivas, menos cuidadosas e carinhosas, fluência mútua cuja mediação será também
apresentavam uma reactividade aumentada do (se não exclusivamente) bioquímica.
eixo hipotálamo supra-renal por comparação 4) O clima neuroquímico acima referido poderá
com os descendentes de mães mais carinhosas e ter uma origem ou influência genética, mas é
tranquilas. A primeira hipótese, era de que este também passível de uma modulação definitiva
traço era herdado, os filhos tinham hiperreactivi- por eventos psicossociais e talvez mesmo por
dade porque a mãe também a teria e esta era a eventos imunológicos ocorridos precocemen-
razão da sua maior agressividade. A experiência te durante a vida ou até mesmo durante a ges-
consistiu então em trocar os descendentes entre- tação.
gando à mãe carinhosa os filhos da mãe mais 5) Eventos psicossociais podem marcar a reac-
agressiva e vice-versa. Para surpresa dos autores, tividade do eixo hipotálamo supra-renal per-
verificou-se que o padrão de reactividade conti- petuando um padrão de resposta ao stress,
nuava semelhante ao anteriormente observado, tanto psíquico como orgânico, que definirá as
isto é, tratava-se de um padrão aprendido, conse- reacções do indivíduo a desafios tanto de uma
quência dos primeiros meses de vida e de uma como de outra natureza.
reacção mais ou menos stressante entre a mãe e 6) Assim, o comportamento dito de doença, a
os seus descendentes27. depressão, a hiperalgesia, a dramatização e
Sendo sempre difícil extrapolar de estudos catastrofização, as estratégias de coping, po-
experimentais para a realidade humana, não po- derão na verdade estar bastante mais determi-
demos deixar de notar o paralelo que estas obser- nados por reacções de natureza bioquímica
vações têm com observações em humanos. Num radicados neste clima de neuroquímico do que
estudo de 49 mulheres adultas a resposta máxima anteriormente imaginaríamos.
de ACTH a estímulo de stress estava fortemente 7) As doenças somáticas, mesmo claras como
relacionada com antecedentes pessoais de abuso neoplasias e doenças inflamatórias, são pas-
infantil, número de episódios, número de trau- síveis de influências psicossociais. Julgo existir
mas em adulto e gravidade de depressão28. em todos os médicos a intuição desta realidade
Estes factos justificam recomendações encon- fundamentada muitas vezes em casos pontu-
tradas em textos dedicados à natureza e à origem ais em que eventos emocionais fortes tiveram
destas perturbações psiquiátricas e cito «para evi- consequências marcantes no desenlace de
tar a hiperreactividade patológica de resposta de uma doença somática, mas temos agora algu-
stress, é essencial proteger os nossos jovens con- mas perspectivas quanto à natureza dos me-
tra o traumatismo e o abuso»9. canismos biológicos que podem estar subja-
Em resumo, julgo que podemos tirar algumas centes a esta interacção, antes enigmática.
ilações desta viagem exploratória na fronteira 8) Resulta desta revisão um reforço notável da
entre o somático e o psíquico: adequação e da mais valia do modelo bio-psi-
1) Os mesmos neurotransmissores medeiam pro- cossocial, esferas que se articulam entre si co-
cessos endócrinos, psíquicos, inflamatórios e mo verdadeiras facetas do «poliedro humano»,

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coexistentes e fortemente interactivas. 14. Zobel AW, Nickel T, Sonntag A, Uhr M, Holsboer F,
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