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Atas do

II Encontro Nacional
do GT Estudos de
Gênero
Associação Nacional de História
Seção Regional do Rio de Janeiro
Anpuh-Rio

Conselho Diretor

Presidenta: Márcia Maria Menendes Motta (UFF)


Vice-presidente: Ricardo Figueiredo de Castro (UFRJ)
Secretário-geral: Edmar Checon de Freitas (UFF)
1ª secretária: Claudia Beltrão (UNIRIO)
2ª secretária: Silvana Bandoli Vargas (CP II)
1ª tesoureira: Raquel Alvitos Pereira (UFRRJ).
2ª tesoureira: Tânia Salgado Pimenta (FIOCRUZ)

Conselho Consultivo

Presidenta: Ismênia de Lima Martins (UFF/IHGB)


Secretária: Vânia Leite Fróes (UFF)
Relatora: Lucia Maria Paschoal Guimarães (UERJ)

Conselho Fiscal

Presidenta: Beatriz Kushinr (AGCRJ)


Secretário: Marcus Ajuruam Dezemone (UFF)
Relatora: Mônica de Souza N. Martins (UFRRJ)
Lana Lage da Gama Lima
Miriam Cabral Coser
Fábio Henrique Lopes
Thiago de Souza dos Reis
(Org.)

Atas do II Encontro Nacional


do GT Estudos de Gênero

Rio de Janeiro
Anpuh-Rio
2016
Encontro Nacional do GT Estudos de Gênero (2.:
2016: Rio de Janeiro, RJ)
Atas do II Encontro Nacional do GT Estudos de Gênero /
Lana Lage da Gama Lima, Miriam Cabral Coser, Fábio
Henrique Lopes e Thiago de Souza Reis (organizadores). – Rio
de Janeiro: Anpuh-Rio, 2016.

927p.: il.
Disponível em: http://www.rj.anpuh.org
ISBN: 978-85-65957-07-6

1. História. I. Lima, Lana Lage da Gama. II. Coser, Miriam


Cabral. III. Lopes, Fábio Henrique. IV. Reis, Thiago de Souza.

II Encontro Nacional do GT Estudos de Gênero


Comissão de Organização do evento

Lana Lage (UFF/UENF)


Fábio Henrique Lopes (UFRRJ)
Miriam Coser (UNIRIO)
Maria Beatriz Nader (UFES)
Lidia Possas (UNESP)
Thiago Reis (UVA/UNESA)

Comissão Científica

Alcileide Cabral (UFRPE)


Ana Maria Colling (UFGD)
Ana Paula Martins (UFPR)
Ismênia de Lima Martins (UFF)
Joana Maria Pedro (UFSC)
Losandro Tedeschi (UFGD)
Margareth Rago (UNICAMP)
Raquel Sohiet (UFF)
Suely Gomes (UFF)

Publicação aprovada pela Comissão Científica do evento

Editor: Thiago de Souza dos Reis


Os(as) autores(as):

Alcileide Cabral do Nascimento Leidy Carolina Díaz Cardozo


Alex Silva Ferrari Lidia M V Possas
Ana Carolina Eiras Coelho Soares Lisa Batista de Oliveira
Ana Maria Veiga Luciana Nogueira da Silva
Ana Taisa da Silva Falcão Luciana Silveira
Brena Oliveira Pinto Marcel de Almeida Freitas
Bruno Sanches Mariante da Silva Marcela Boni Evangelista
Camila Serafim Daminelli Maria Beatriz Nader
Daniela Auad Maria Rita Neves Ramos
Danielle Silva Moreira dos Santos Mariane Ambrósio Costa
Douglas Josiel Voks Marta de Carvalho Silveira
Elaine P. Rocha Mayllon Lyggon de Sousa Oliveira
Elda Alvarenga Mirela Marin Morgante
Elisangela da Silva Machieski Mirella Tuanny Ferreira
Elvira Mejia Herrejón Míriam Albani
Emelly Sueny Fekete Facundes Miriam Soares Leite
Érika Oliveira Amorim Nadia Maria Guariza
Erineusa Maria da Silva Natanael de Freitas Silva
Fábio Luiz Alves de Amorim Nayara Cristina Carneiro de Araújo
Gilvânia Cândida da Silva Nicolle Taner de Lima
Giovanna Costa Cinacchi Patrícia Urruzola
Gisele Morais Oliveira Paulo Brito do Prado
Graciana Martins dos Santos Rafael Chaves Vasconcelos Barreto
Inara Fonseca Raquel Borges Salvador
Ioneide M P B de Souza Renan Reis Fonseca
Isabela Brasil Magno Renata Lopes Marinho
Jaqueline Ap. M. Zarbato Rhanielly Pereira do Nascimento Pinto
Jhoana Gregoria Prada Merchán Tânia Bassi Costa
Joice de Souza Soares Vanessa Gonçalves Bittencourt de Souza
Júlia Glaciela da Silva Oliveira Veronica de Jesus Gomes
Juliana da Conceição Pereira Wéber Félix de Oliveira
Larissa Urquiza Perez de Morais Weyber Rodrigues de Souza
Leandro Teófilo de Brito
As opiniões e ideias aqui expressas são de inteira
responsabilidade dos(as) autores(as) dos artigos.
Atas do II Encontro Nacional do GT Estudos de Gênero
Rio de Janeiro, 27 e 28 de outubro de 2016.

Sumário

APRESENTAÇÃO ......................................................................................... 17

ix
ST 1A: HISTÓRIA E GÊNERO: CULTURA MEMÓRIA E
IDENTIDADES .............................................................................................. 19

A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE FEMININA NA IDADE MÉDIA: UM


DIÁLOGO POSSÍVEL ENTRE OS DISCURSOS JURÍDICO E
ECLESIÁSTICO .............................................................................................. 20

"CONHECIDA MARAFONA E DESORDEIRA": MORALIDADE E


PROSTITUIÇÃO EM UM ESTUDO DE CASO NO RIO DE JANEIRO (1900-
1910) ................................................................................................................. 36

FILANTROPIA E MATERNIDADE: RELAÇÕES ENTRE DAMAS DA


ELITE E MÉDICOS FILANTROPOS NA PRIMEIRA REPÚBLICA .......... 48

MULHERES QUINHENTISTAS EM CENA: REPRESENTAÇÕES


FEMININAS NO TEATRO DE ANTONIO RIBEIRO CHIADO .................. 65

SUBVERSÕES DO PECADO: DESEJO E SEDUÇÃO NAS MINAS


SETECENTISTAS ........................................................................................... 82

ST 1B: HISTÓRIA E GÊNERO: CULTURA MEMÓRIA E


IDENTIDADES ............................................................................................ 105

AS “VIRA-LATAS” E O TRABALHO FEMININO NA COMPANHIA


SIDERÚRGICA NACIONAL: GÊNERO E MEMÓRIA ............................. 106

CRIANDO HÍBRIDOS: MEMÓRIA, RELIGIOSIDADE E GÊNERO ....... 126

“DEMOCRACIA EN EL PAÍS Y EN LA CASA”: IDENTIDADE E POLÍTICA


NOS PERIÓDICOS FEMINISTAS CHILENOS NA DÉCADA DE 1980 .. 140

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GÊNERO E MEMÓRIA: A CONSTRUÇÃO DE HIERARQUIAS ............. 156

ST 1C: HISTÓRIA E GÊNERO: CULTURA, MEMÓRIA E


IDENTIDADES ............................................................................................ 170

A PERSISTÊNCIA DA VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES NO BRASIL:


ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE O GÊNERO NO TEMPO PRESENTE
........................................................................................................................ 171 x

VIOLÊNCIA DE GÊNERO E A CULTURA DO ESTUPRO NO ESPAÇO


ACADÊMICO: VULNERABILIDADES E HISTÓRIA............................... 200

ST 2: CORPO, VIOLÊNCIA DE GÊNERO E HISTÓRIA ..................... 210

A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES IDOSAS EM DENÚNCIAS: O


CASO DA DEAM E DA DAPPI DE VITÓRIA – ES, 2002 – 2012. ............ 211

CORPOS MARCADOS, CRIMES SILENCIADOS: VIOLÊNCIAS SEXUAIS


NO CONFLITO ARMADO COLOMBIANO. .............................................. 230

DA CONSTRUÇÃO DOS SABERES À PRÁTICA – REFLEXÕES


DECOLONIAIS SOBRE A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA NO BRASIL ..... 249

E ESSE CORPO, DE QUEM É? O ABORTO NO BRASIL E O DEBATE


SOBRE SUA DESCRIMINALIZAÇÃO ....................................................... 267

GÊNERO E HISTÓRIA ORAL: UM ESTUDO DA PROSTITUIÇÃO EM


CARAPEBA (1960-1980) .............................................................................. 281

HIGIENIZANDO A FEMINIDADE: ESPOSAS, MÃES E INFANTICIDAS


ATRAVÉS DOS DISCURSOS MÉDICOS NO RIO DE JANEIRO, 1834 –
1924 ................................................................................................................ 295

ROMPENDO O SILÊNCIO: VOZES DE MULHERES AGREDIDAS NO


INTERIOR DE MINAS GERAIS. ................................................................. 319

SACERDOTES “CONVERSANDO COM MOSSOS E MININOS EM


LUGARES EXCUSOS”: A SODOMIA CONTRA CRIANÇAS EM
PORTUGAL NO SÉCULO XVII .................................................................. 334

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VIOLÊNCIA DE GÊNERO EM BARBADOS: NOTAS SOBRE


FEMINICÍDIO NO SÉCULO XX ................................................................. 352

ST 3A: GÊNERO, SENSIBILIDADES E PODER ................................... 361

AS REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO E O PROJETO POLÍTICO


REPUBLICANO NO PERIÓDICO GOIANO O LAR (1926-1932). ........... 362
xi
BELAS, RECATADAS E DO LAR? : UMA ANÁLISE SOBRE AS
PERSONAGENS DE ORGULHO E PRECONCEITO, DE JANE AUSTEN.
........................................................................................................................ 378

LEGISLADORAS EM AMÉLIA RODRIGUES – BAHIA: POLÍTICA,


EDUCAÇÃO E PRÁTICAS DE CARIDADE (1972 – 1982)....................... 391

LITERATURA, DESEJO E RELAÇÕES DE GÊNERO: SENSIBILIDADES


AMOROSAS EM ANÁLISE ......................................................................... 410

MULHERES BRASILEIRAS E COLOMBIANAS: ESCREVENDO SOBRE O


CORPO FEMININO E O PRAZER NA LITERATURA EROTICA NA
METADE DO SECULO XX ......................................................................... 422

ST 3B: GÊNERO, SENSIBILIDADES E PODER .................................... 435

CORPO, PODER E EMPODERAMENTO: O NÃO-LUGAR E O DISCURSO


DE SI DE LAERTE ........................................................................................ 436

DISCURSOS DE PODER E INSENSIBILIDADES DE GÊNERO ............. 454

GÊNERO E PODER: COMO E PORQUE PENSAR AS MASCULINIDADES


NUMA PERSPECTIVA HISTÓRICA .......................................................... 474

O LAMPIÃO DA ESQUINA: AS DENÚNCIAS DA LGBTFOBIA


INSTITUCIONAL NA DITADURA CIVIL-MILITAR ............................... 494

O TEATRO-FÓRUM COMO EXERCÍCIO DE PENSAMENTO POLÍTICO:


UM CAMINHO PARA DEBATER AS RELAÇÕES DE GÊNERO ........... 507

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ST 4: RELAÇÕES DE GÊNERO, INTERCULTURALIDADE E


MEMÓRIA ................................................................................................... 526

A HISTÓRICA INEXPRESSIVA REPRESENTAÇÃO DAS MULHERES


NAS ACADEMIAS CIENTÍFICAS BRASILEIRAS E NO PRÊMIO NOBEL
........................................................................................................................ 527

GÊNERO E AÇÕES POLÍTICAS CONSERVADORAS NO BRASIL E NO


ESPÍRITO SANTO: A “IDEOLOGIA DE GÊNERO” EM QUESTÃO ...... 541 xii
A GUERRA DO CONTESTADO VISTA DE UMA PERSPECTIVA DO
GÊNERO: MEMÓRIA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE 555

MULHER, INTERCULTURALIDADE E HISTÓRIA: REPRESENTAÇÃO


FEMININA NUMA COMUNIDADE QUILOMBOLA EM CAMPO
GRANDE/MS................................................................................................. 570

PELO DIREITO À VIDA: UMA DINÂMICA SOCIAL DE PODER SOBRE O


CORPO ........................................................................................................... 588

ST 5: PERSPECTIVAS TRANSCULTURAIS E TRANSNACIONAIS DE


GÊNERO ....................................................................................................... 604

A MULHER EM SELEÇÃO: REPRESENTAÇÕES TRANSNACIONAIS NO


CONTEXTO DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL .................................. 605

A MISSIONAÇÃO NO JAPÃO EM AGOSTINHO DE SANTA MARIA: UMA


PERSPECTIVA DE GÊNERO ...................................................................... 627

ST 06: GÊNERO E FEMINISMOS: HISTÓRIA, POLÍTICA E


EDUCAÇÃO ................................................................................................. 643

A QUESTÃO DO FEMININO NA HISTÓRIA DA FORMAÇÃO


PROFISSIONAL TÉCNICA DA REDE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
........................................................................................................................ 644

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DO LAR PARA AS RUAS: O DEBATE PELA CONQUISTA DA


CIDADANIA POLÍTICA E OS MOVIMENTOS FEMINISTAS EM RECIFE
(1920-1934) .................................................................................................... 661

EDUCAÇÃO, TRABALHO E VOTO: A LUTA POLÍTICA FEMINISTA DA


FEDERAÇÃO PERNAMBUCANA PELO PROGRESSO FEMININO (1931-
1937) ............................................................................................................... 679

FEMINISMOS NO HISTÓRICO ESCOLAR: UMA MIRADA SOBRE A xiii


TRAJETÓRIA EDUCACIONAL DAS MULHERES NO BRASIL ............ 698

MULHER MARAVILHA: REFLEXÕES ACERCA DA REPRESENTAÇÃO


E PAPEL FEMININO NO SÉCULO XX ...................................................... 733

O FEMINISMO NAS ONDAS DO RÁDIO: A CRUZADA FEMINISTA


BRASILEIRA E A RÁDIO CLUBE DE PERNAMBUCO (1931-1932) ..... 746

ST 7: GÊNERO E CULTURAS POLÍTICAS NO BRASIL .................... 764

CENSURA PARA QUEM? GÊNERO E MORAL NO CINEMA DA


DITATURA .................................................................................................... 765

CULTURA POLÍTICA E AÇÕES VOLTADAS AOS INFANTOJUVENIS EM


FLORIANÓPOLIS: UM ESTUDO ATRAVÉS DAS LENTES DE GÊNERO:
(1979 – 1990) ................................................................................................. 781

DESCONSTRUÇÃO DE ESTEREÓTIPOS: A CAMPANHA DA


FRATERNIDADE DE 1987 .......................................................................... 795

FUTUROS HOMENS DA PÁTRIA: MASCULINIDADES NA CASA DO


PEQUENO JORNALEIRO (CURITIBA, 1957-1962) .................................. 807

GÊNERO, SEXUALIDADE E CONSERVADORISMO POLÍTICO NA


EDUCAÇÃO ESCOLAR DA JUVENTUDE................................................ 822

IMPRENSA ALTERNATIVA E CULTURAS POLÍTICAS: GÊNERO E


POLÍTICA EM “O MULHERIO” ................................................................. 839

POLÍTICA POR E PARA MULHERES: A EMANCIPAÇÃO NAS PÁGINAS


DE “O SEXO FEMININO” ........................................................................... 895

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A OPERACIONALIZAÇÃO DE UMA MASCULINIDADE POLÍTICA NA


REVISTA PLAYBOY (DÉCADA DE 1980) ................................................ 913

xiv

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Índice de Autores

A G

Alcileide Cabral do Nascimento ...................746 Gilvânia Cândida da Silva ............................. 746


Alex Silva Ferrari...........................................211 Giovanna Costa Cinacchi .............................. 48
Ana Carolina Eiras Coelho Soares .................410 Gisele Morais Oliveira ................................. 716
Ana Maria Veiga ...........................................765 Graciana Martins dos Santos ....................... 588 xv
Ana Taisa da Silva Falcão .............................. 230

I
B
Inara Fonseca .............................................. 249
Brena Oliveira Pinto .....................................391 Ioneide M P B de Souza ............................... 857
Bruno Sanches Mariante da Silva .................877 Isabela Brasil Magno ................................... 378

C J

Camila Serafim Daminelli ............................. 781 Jaqueline Ap. M. Zarbato ............................ 570
Jhoana Gregoria Prada Merchán ................. 295

D Joice de Souza Soares .................................. 895


Júlia Glaciela da Silva Oliveira...................... 140
Daniela Auad ................................................698 Juliana da Conceição Pereira ......................... 36
Danielle Silva Moreira Dos Santos................362
Douglas Josiel Voks ......................................913 L

E Larissa Urquiza Perez de Morais.................. 555


Leandro Teófilo de Brito .............................. 822
Elaine P. Rocha .............................................352 Leidy Carolina Díaz Cardozo ........................ 422
Elda Alvarenga .............................................541 Lidia M V Possas .......................................... 200
Elisangela da Silva Machieski .......................795 Lisa Batista de Oliveira ................................. 82
Elvira Mejia Herrejón ...................................454 Luciana Nogueira da Silva ............................ 627
Emelly Sueny Fekete Facundes ....................679 Luciana Silveira ............................................ 211
Érika Oliveira Amorim ..................................319
Erineusa Maria da Silva ................................ 541 M

F Marcel de Almeida Freitas........................... 527


Marcela Boni Evangelista ............................ 267
Fábio Luiz Alves de Amorim ......................... 541 Maria Beatriz Nader .............................281, 319
Maria Rita Neves Ramos ............................. 698

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Mariane Ambrósio Costa.............................. 839


R
Marta de Carvalho Silveira ............................ 20
Mayllon Lyggon de Sousa Oliveira................436 Rafael Chaves Vasconcelos Barreto............. 156
Mirela Marin Morgante ............................... 281 Raquel Borges Salvador ............................... 698
Mirella Tuanny Ferreira ................................ 661 Renan Reis Fonseca ..................................... 605
Míriam Albani...............................................644 Renata Lopes Marinho ................................ 733
Miriam Soares Leite .....................................822 Rhanielly Pereira do Nascimento Pinto ....... 494

N T xvi
Nadia Maria Guariza ....................................126 Tânia Bassi Costa ......................................... 106
Natanael de Freitas Silva .............................. 474
Nayara Cristina Carneiro de Araújo ..............822 V
Nicolle Taner de Lima ...................................807
Vanessa Gonçalves Bittencourt de Souza...... 65

P Veronica de Jesus Gomes ............................ 334

Patrícia Urruzola...........................................895 W
Paulo Brito do Prado ....................................171
Wéber Félix de Oliveira ............................... 436
Weyber Rodrigues de Souza ........................ 507

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APRESENTAÇÃO

A Associação Nacional de História – ANPUH Brasil – é uma entidade


que agrega profissionais atuantes na área de História e mantém em sua
17
organização Grupos de Trabalho (GTs) que consistem em conjuntos de
pesquisadores que se propõem a trabalhar certo eixo temático em caráter
contínuo, definindo para isso um programa de atividades, tais como debates,
pesquisas, produções, participação e promoção de eventos.
O Grupo de Trabalho Estudos de Gênero, que completa 15 anos de
fundação em 2016, reúne pesquisadoras(es) de diferentes estados do Brasil,
vinculados ao tema “Gênero”, e tem como objetivo constituir uma rede nacional
de estudos, bem como promover a criação de laboratórios vinculados a esta
temática. Hoje, no país o GT Gênero conta com mais de dez sessões regionais.
O GT de Estudos de Gênero da ANPUH/RJ, um dos responsáveis pela
organização do II Encontro Nacional do Grupo de Trabalho Estudos de
Gênero - ANPUH, desde sua formação teve como objetivo central reunir
diversos estudos que operam com a categoria de gênero para a análise histórica
em suas mais diversas abordagens, temas e fontes. Agrega professoras(es) e
alunas(os) de pós-graduação e de graduação que pesquisam temas relacionados
aos estudos de gênero.
O II Encontro Nacional do Grupo de Trabalho Estudos de Gênero -
ANPUH congregou, na sede da UNIRIO, no Rio de Janeiro, entre os dias 27 e
28 de outubro de 2016, estudantes, pesquisadoras(es) e professoras(es) do
Ensino Superior de todo o país, para a troca de experiências, apresentação e
debate de suas pesquisas e reflexões. Com a participação de pesquisadoras(es)
da História e áreas afins, o evento buscou fomentar o intercâmbio de saberes e
de práticas de pesquisa sobre as relações de gênero e enriquecer o debate, as
trocas entre pesquisadoras(es) e instituições de pesquisa, facilitando novos

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projetos, novas redes de pesquisadores e publicações em torno das relações de


gênero no Brasil.
Parte desses resultados, apresentamos ao grande público nas Atas que
ora divulgamos. Fazemos votos que novas(os) interessadas(as) possam encontrar
nos textos que as(os) autoras(es) cederam para publicação, incentivos e subsídios
para ampliar as pesquisas no campo.

18
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
As(os) Organizadoras(es)

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ST 1A
História e Gênero: Cultura
Memória e Identidades

Coordenação
Prof. Dr. Ricardo dos Santos Batista
(UNEB)

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A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE FEMININA NA IDADE MÉDIA:


UM DIÁLOGO POSSÍVEL ENTRE OS DISCURSOS JURÍDICO E
ECLESIÁSTICO

Marta de Carvalho Silveira*

A década de 1960 trouxe à cena social o movimento feminista. As


mulheres chegaram às universidades e se tornaram produtoras de um 20
conhecimento intelectual que as tornou também um objeto de estudo. A História,
que privilegiara até aquele momento o chamado sujeito universal masculino,
ganhou novos protagonistas que foram além dos grandes personagens
masculinos e heróis nacionais. As mulheres e outros grupos sociais
desconsiderados pelos estudos historiográficos ganharam um amplo espaço de
pesquisa na academia. Sem dúvida a interação crescente com os estudos
antropológicos, particularmente com a obra de Claude Lévi-Strauss, cuja tônica
era a importância alcançada pelas relações de parentesco nas sociedades
primitivas, estimulou e fundamentou a exploração de novos temas pelos
historiadores, tais como o casamento e o papel social das mulheres.
Influenciados pela antropologia, os medievalistas da década de 1970,
iniciados por Georges Duby, iniciaram uma reflexão mais aprofundada sobre o
papel que o casamento alcançou na estruturação da sociedade feudal. As obras
Idade Média, Idade dos Homens e O cavaleiro, a mulher e o padre iniciaram
uma profunda reflexão sobre as relações matrimoniai que se desdobrou em
estudos específicos sobre a história das mulheres, tais como os três volumes
intitulados Damas do século XII e a coleção História das Mulheres, organizada
em parceria com Michelle Perrot. Estas obras produzidas por Duby
representaram um passo altamente significativo para o desenvolvimento dos
estudos referentes à história das mulheres apesar de, com exceção de a História
das Mulheres, as obras de Duby não ousaram ir além do século XII e a análise
do papel social das mulheres restringiu-se à aristocracia. As obras referidas, além
da inovação temática, propõem também o uso de novos métodos de análise e

*
UERJ

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fontes de estudo. A tônica que permeia todas as obras referidas, conforme nos
informa Patrick Boucheron, é a dominação masculina sobre as mulheres.1
Para a implementação das suas análises, Duby utilizou como fontes de
pesquisa a literatura genealógica e os discursos clericais. Chamou a atenção para
o fato de que tais materiais não eram de autoria feminina, mas sim refletiam a
visão masculina sobre o papel social considerado adequado às mulheres. Nas
palavras do autor:
21
Faço de imediato essa advertência. O que procuro mostrar não
é o realmente vivido. Inacessível. Procuro mostrar reflexos, o
que testemunhos escritos refletem. Confio no que eles dizem.
Se dizem a verdade ou não, não é isso que importa. O
importante para mim é a imagem que oferecem de uma
mulher e, por meio delas, das mulheres em geral, a imagem
que o autor do texto fazia delas e quis passar aos que o
escutaram. Ora, a imagem viva é inevitavelmente deformada
nesse reflexo e por duas razões: Primeiro, porque os escritos
datados da época que estudo – e esse caráter, no espaço
francês, não se alterou antes do final do século XIII – são
todos oficiais, dirigidos a um público, jamais voltado para o
íntimo; segundo, porque foram redigidos por homens.2

No estudo aqui estabelecido serão tratadas tanto as imagens propostas


pelo discurso clerical quanto as que foram produzidas no âmbito jurídico. Não
para que se alcance a realidade acerca do cotidiano das mulheres medievais, mas
sim as representações cunhadas no medievo sobre o modelo feminino. Para
tanto, serão utilizados como fontes de pesquisa IV Concílio Lateranense (1213)
e o Fuero Real (1255). As duas fontes têm um caráter normativo, mas foram
construídas em “lugares” diferenciados: a primeira é uma ordenação constituída
no âmbito eclesiástico e a segunda, no âmbito jurídico. Portanto, apesar da
diversidade referente à autoria, os dois documentos permitem que se entrevejam
representações muito semelhantes no que tange ao papel social a ser
desempenhado pelas mulheres laicas.
O IV Concílio de Latrão, convocado pelo papa Inocêncio III, em 1213,
representou para a Igreja medieval o ponto máximo da sua normatização.

1
BOUCHERON, P. Georges Duby. In: SALES, Véronique (org.). Os Historiadores.
São Paulo: UNESP, 2011.p. 278.
2
DUBY,G. Heloisa, Isolda e outras damas do século XII. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995. p. 10.

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Resultado de uma série de discussões dogmáticas existentes desde o I Concílio


de Latrão (1123), convocado no momento em que a Igreja buscava firmar a sua
autoridade sobre os assuntos espirituais e estabelecer a sua autonomia frente aos
poderes laicos. Em um movimento claramente reformista, a Igreja iniciou um
processo de discussão burocrática e dogmática interna buscando diminuir a forte
influência da aristocracia em seus quadros. Em um movimento crescente, as
principais famílias nobiliárquicas gradativamente controlaram os principais
22
cargos eclesiásticos e infiltraram-se na sua estrutura da Igreja. Como nos lembra
Leandro Rust, o concílio de Latrão pode ser considerado “o maior de todos os
concílios medievais, um verdadeiro “monumento jurídico” e síntese privilegiada
da organização institucional arquitetada pelo papado dos séculos XI e XII”3, que
resultou na elaboração de setenta decretos reformatórios que dispunham tanto de
assuntos referentes à reorganização do quadro eclesiástico quanto da condução
dogmática dos laicos.
O Fuero Real é uma obra jurídica, parte de um projeto legislativo
elaborado mando de Afonso X em seu scriptorium. A necessidade de fortalecer
o seu poder frente às forças particularistas de poder presentes no reino
castelhano-leonês, que envolviam tanto as autoridades municipais quanto as
aristocráticas, em um contexto marcado pela retomada do território das mãos dos
muçulmanos, levou o monarca a organizar este código jurídico. Composto por
quatro livros subdivididos em livros e títulos que tratam de assuntos que vão
desde a natureza do poder real até as questões como casamentos, furtos,
falsificações, heranças etc., o Fuero Real oferece, em alguns dos seus títulos,
preceitos legais que definem a condição jurídica da mulher. Este código visava
substituir os inúmeros fueros que haviam sido produzidos e distribuídos por
iniciativa dos monarcas castelhanos e leoneses ao longo do processo que a
historiografia castelhana da primeira metade do século XX convencionou
chamar de Reconquista. O Fuero Real foi elaborado a partir das referências do
direito consuetudinário e das referências jurídicas das diversas famílias forais,

3
RUST, L. O concílio, o papado e o tempo: ou algumas considerações críticas sobre a
institucionalização do papado medieval (1050-1270). História: Questões & Debates,
Curitiba, n. 46, p. 165, 2007. Editora UFPR.

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do direito canônico e do direito romano. Sua proposta era difundir os modelos


legais e consequentemente comportamentais que deveriam ser adotados por
todos os habitantes do reino, tanto os clérigos quanto os laicos, tanto homens
quanto mulheres.
Ao contrário da proposta de Duby, que concentrou a sua análise no papel
social das damas francesas do século XII, neste trabalho não foi utilizada uma
categoria social feminina específica. Tanto o modelo clerical quanto o modelo
23
jurídico eram propostos para todas as mulheres, embora a sua repercussão possa
ter sido maior em uma ou outra esfera social. Estes modelos foram cunhados
para serem universais e ordenadores da sociedade, não sendo destinados a uma
categoria social feminina específica.
Como fontes normativas que são os decretos do IV Concílio de Latrão e
os títulos do Fuero Real representam estruturas discursivas produzidas pela
sociedade medieval. O uso dos códigos legislativos gerou um debate
considerável entre os historiadores e estudiosos da lei. Para alguns as leis podem
ser entendidas como uma expressão da realidade social que pode ser apreendida
através do seu estudo. Para outros, a lei é o produto de uma demanda social que
objetiva a ordenação das práticas consideradas aceitáveis por aqueles que
governam a sociedade. Desta forma, as normas não seriam um reflexo da
sociedade, mas a representação dos comportamentos por ela considerados ideais.
A riqueza das fontes narrativas repousa justamente no fato de que através delas
é possível conhecer um pouco mais acerca das situações cotidianas e dos dilemas
gerais enfrentados por uma determinada sociedade e ao mesmo tempo identificar
os modelos comportamentais considerados por ela ideais.
Um ponto nevrálgico que deve ser tocado quando se analisa as fontes
normativas é a questão da autoria, que não é individual e sim coletiva,
expressando, portanto, a visão de um dado grupo detentor de poder sobre os
mecanismos de governo ou institucionais. A contraposição das fontes
selecionadas aqui permite compreender a visão que o papa e o monarca,
juntamente com todos aqueles que ofereciam suporte ao seu governo, tinham do
comportamento considerado ideal às mulheres laicas inseridas na Igreja e no
reino. Tanto Afonso X quanto Inocêncio III, cada um por motivos específicos,

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buscavam nas normas assegurar a centralidade e a superioridade da sua


autoridade sobre aqueles que lhes estavam subordinados. As mulheres laicas
eram ao mesmo tempo súditas e fiéis e, no que se refere aos papéis sociais a elas
impostos, não há contradições entre os modelos propostos no discurso
eclesiástico e no discurso jurídico.
Em comum com as fontes literárias usadas por Duby em suas análises,
os documentos aqui utilizados têm o fato de terem sido escritas por homens que
24
criaram a sua própria representação sobre o ideal feminino. Ideal que implica no
cumprimento de três papéis sociais básicos: o de ser a filha, a esposa e a viúva
ideal.

A filha
O casamento medieval era um dos principais instrumentos de
organização da estrutura social. Afora as questões sentimentais, que não
formalmente não eram consideradas neste contexto, a união de homens e
mulheres em uma relação matrimonial significava a definição de um lugar social.
Os homens e mulheres casados gozavam de um status diferenciado na sociedade.
O casamento lançava sobre eles responsabilidades e privilégios. Ao homem
caberia ter a honra e a dignidade de chefiar uma família, sendo responsável pelo
seu sustendo e preservação. À mulher cabia antes de tudo gerar a família
tornando-se mãe e depois mantê-la unida sobre os princípios da honra e da moral
cristã.
O casamento funcionava como uma espinha dorsal que sustentava a
hierarquia social, principalmente no que se referia ao círculo aristocrático.
Tratava-se de uma prática que precisava ser regulada por aqueles que, desde o
século XII, com os ventos reformistas na Igreja e as tendências centralistas do
poder monárquico, buscavam ordenar aqueles pelos quais se consideravam
responsáveis. Controlar a prática matrimonial significava controlar, dentre
outros pontos, a sexualidade e a transmissão e a divisão dos bens familiares, já
que o casamento era, em última instância, uma decisão familiar onde o amor não
era um pré-requisito necessário, sendo na maior parte das vezes, condenável.
Como afirma Charles de la Roncière, “(...) Evidentemente, o casamento

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impõem-se como uma instituição indispensável, e até feliz, mas não é local de
amor.”4 Desta forma, tanto se referia ao âmbito eclesiástico quanto ao laico e
precisava ser por ambos ordenados. O Fuero Real, ao tratar da ordenação do
casamento, é claro em afirmar que ele deve ser feito de acordo com as regras
estabelecidas pela Igreja. Diz o Fuero Real: “Establecemos e mandamos que
todos los casamientos se fagan por aquellas palabras que manda santa iglesia, e
los que casaren sean tales que puedan casar sin pecado.” 5
25
Desde o século XII o casamento tornou-se um sacramento. Deixou de ser
um assunto que poderia ser tratado livremente pelos laicos que definiam as
regras e legavam ao clero somente o papel coadjuvante. Até ser
sacramentalizado, o casamento era elaborado pelas famílias dos noivos que além
de ver na união uma forma de ampliar e/ou preservar o seu patrimônio, o
entendiam também como um símbolo de status social. No planejamento da união
não era levado em consideração o desejo e o consentimento dos noivos, já que
se tratava de uma decisão coletiva e não individual.
O controle do casamento era, segundo Georges Duby, o conflito de duas
morais: a moral eclesiástica e a moral laica e foi estabelecido como uma forma
de sobrepor a autoridade moral da Igreja à autonomia de que gozava a
aristocracia para a definição da sua política patrimonial, que se desdobravam em
ações políticas e econômicas, além de lhe garantir um dado posicionamento
social.
A moral eclesiástica, implantada como um desdobramento dos ventos
reformistas, visava ressaltar o caráter divino do casamento, buscando retirar dele
qualquer traço de luxúria, o resguardo da virgindade da noiva até que o laço
matrimonial ocorresse de fato, o seu caráter procriativo e o combate à práticas
como o incesto, o repúdio e o concubinato. O discurso eclesiástico ressaltava
quatro pontos fundamentais que foram incorporados ao caráter matrimonial do
casamento. O primeiro ponto era assegurar que fosse dado aos noivos o direito

4
LA RONCIÈRE, Charles de. À sombra da castidade. In: BERNOS, M;
LÉCRIVAIN,P.; LA RONCIÈRE,C. de la et. GUYON, Jean. O Fruto proibido.
Lisboa: Edições 70, 1985. p. 141.
5
FUERO REAL DEL REY DON ALONSO EL SABIO. La real academia de la
historia. Madrid: Imprenta Real, 1836. Livro III, Título I; lei 1, p.64.

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de consentir na realização da união. O segundo ponto da moral eclesiástica


refere-se aos fatores que permitiriam a dissolução de um casamento. O terceiro
ponto versava sobre os critérios de licitude de um casamento. Já o quarto ponto
desta moral tratava da regulamentação das práticas sexuais.
O ato do consentimento em relação ao casamento é atestado no Fuero
Real que condena o pai ou qualquer outro que ousar casar uma filha donzela ou
viúva sem que ela expresse o seu consentimento. Caso incorram neste erro,
26
infrator deverá pagar cem maravédis, divididos entre o rei e a mulher onerada e
o casamento será invalidado. Esta pena só é suspensa se o casamento tiver sido
feito com a aprovação do rei6.
Antes de o casamento tornar-se um sacramento, eram os pais os
responsáveis por assegurar a legitimidade da união. Aos clérigos cabia somente
assegurar a sacralidade do ato aspergindo água benta sobre o leito nupcial como
uma garantia da fecundidade do casamento assegurada principalmente pelas
mulheres.
A trajetória da mulher medieval não diferia muito dos padrões sociais
vigentes atualmente. Elas nasciam filhas, tornavam-se esposas e alcançavam a
sua maturidade sendo mães. De uma forma ou de outra, respeitando-se as
diferenças culturais, os padrões e pressões sociais relativos à mulher ainda se
conservam.
Na Idade Média a concepção de infância não é a mesma que possuímos
hoje. As crianças eram entendidas e vestidas como adultos em miniatura,
recebendo sobre si também as responsabilidades próprias da maturidade. Sendo
assim, a menarca era o marco de ingresso de uma mulher na vida adulta,
independente da idade em que ela ocorresse. Em geral, as famílias aristocráticas
iniciavam as negociações para o casamento desde o nascimento. Tão logo a
mulher estava pronta para cumprir a sua principal função, que era a procriação,
era dada em casamento àquele que foi escolhido pela sua parentela.
Uma boa filha era aquela que respeitava os desígnios da sua parentela
principalmente no que se referia às questões matrimoniais. Isto fica claro no

6
FR, IV, X, 8; p. 136.

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artigo 51 do IV Concílio de Latrão que determina a proibição de casamentos


secretos. Segundo esta norma, o casamento só poderia ser considerado lícito se
ocorresse publicamente, na presença de testemunhas e do clérigo. Nem um
clérigo e nem qualquer outra pessoa que participasse de um casamento secreto
se livraria da ira da Igreja. A publicidade do casamento era um fator garantidor
da sua legitimidade e exigida também no Fuero Real que determina; “Et todo
casamiento fagase concejeramiente, e non a furto, de guisa que si fuer mester
27
que se pueda probar por muchos.”7 e estabelece como punição para quem
comente esse erro, o pagamento de uma pena pecuniária de cem maravédis ao
rei e se não tiver a quantia a ser paga, perderá todos os bens que tiver para o rei,
além de perder a sua própria liberdade, pois o seu corpo ficará à mercê do rei.
Nota-se que há por parte do rei uma tentativa de legislar sobre a legalidade do
casamento, mesmo que utilizando como parâmetro a normativa eclesiástica. Ao
mesmo tempo em que o monarca se submete à lei canônica, ele a utiliza também
como instrumento de fortalecimento da sua própria autoridade, visto que quem
se casa ilegalmente, ofende diretamente ao rei, a cabeça do corpo social, que é a
quem devem ser revertidos os ganhos gerados pela ofensa.
Além da publicidade do casamento assegurar a sua legitimidade, o artigo
50 do IV Concilio de Latrão determinava que os casamentos legítimos seriam
aqueles que se dessem acima do quarto grau de parentesco. Com esta estratégia
a Igreja dificultava em muito a livre negociação das uniões matrimoniais pelos
laicos e aumentava o controle sobre os mecanismos de dissolução do casamento
que se dava pela anulação ou pelo divórcio, possíveis de acontecer quando a
união não foi consumada, pelo adultério feminino ou pela consanguinidade
imprópria dos nubentes.
O Fuero Real reforçava esta determinação da Igreja quando condenava
legalmente a prática do incesto. A lei diz: “Ninguno non sea osado de casar con
su parienta nin con su cuñada fasta el grado que manda santa yglesia, nin de
yacer con ella, e qui contra esto ficiere a sabiendas, el casamiento non vala, e
ellos sean metidos em seños monastérios para facer penitencia por siempre;” 8

7
FR,III, I; 1, p. 64.
8
FR, IV, VIII, 1, p. 132-133.

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No jogo político e patrimonial em que se inseria a contratação dos laços


matrimoniais aristocráticos, o casamento era uma peça seminal, já que era o
responsável pela definição do lugar social das mulheres que fundamentalmente
poderia estar em três condições: solteira, casada ou viúva.
Às donzelas eram propostos dois caminhos: casar-se ou entrar para a vida
religiosa. Em se tratando das mulheres laicas, objeto da nossa análise, o destino
final era o casamento. Daí o direito de casar-se ser assegurado na própria lei,
28
conforme se lê no Fuero Real: “Si el padre o la madre, o hermanos o otros
parientes tovieren en su poder manceba en cabellos e, non la casaren fasta XXV
años, e ella despues casares sin su mandado, non aya pena por ende, casando ella
con ome quel conviere.”9
O Fuero Real é claro em definir a importância da obediência da filha nas
questões matrimoniais. Uma “manceba em cabelos”, como eram chamadas as
donzelas, só poderia casar-se com o consentimento da sua parentela e com
alguém que por ela fosse escolhido. Caso a donzela insistisse em casar-se sem o
consentimento dos pais perderia o acesso aos seus bens, não participando mais
da partilha como os seus irmãos, sendo portanto, deserdada10. No entanto, se ela
alcançar o perdão dos pais, ela poderá participar da partilha dos bens com os seus
irmãos11. Nota-se aqui a maior penalidade que poderia ser atribuída a uma
mulher solteira: a perda dos seus bens, que implicaria na perda do único
instrumento de que ela disporia para alcançar o seu destino social: o casamento.
Como alerta Georges Duby, em sua obra O cavaleiro, a mulher e o padre,
“(...) A função do casamento era a de juntar a um genitor valente, uma esposa de
tal ordem que o seu filho legítimo, esse ser que transportaria o sangue e o nome
do antepassado valoroso, fosse capaz de fazer reviver este na sua pessoa. Tudo
dependia da mulher”12. O papel fundamental da mulher no casamento era a
procriação. Ter um filho era sinal de status para a mulher e fortalecia o seu lugar
na parentela.

9
FR, III, I, 2; p. 64.
10
FR, III, I, 3; p. 64.
11
FR, III, I, 5; p. 65.
12
DUBY,G. O cavaleiro, a mulher e o padre. Lisboa: Dom Quixote, 1981, p.30.

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As virgens eram muito valorizadas pela parentela para a contratação de


casamentos considerados ideais. A virgindade assegurava a legitimidade do
primeiro filho e herdeiro, já que a primogenitura tornou-se uma condição
primordial para a delegação das heranças por volta do século XII. A virgindade
alcança um forte teor simbólico nas sociedades desde a Antiguidade até os
nossos dias. Como alerta Yvone Knibichier, em seu livro História da Virgindade
(2016), “(...) A defloração é vista como um ato mágico; simultaneamente ferida
29
que sangra e revelação do prazer, ela supostamente provoca uma alteração
definitiva na fêmea humana” 13. Mesmo fora da aristocracia, a virgindade é um
valor a ser preservado ou negociado. Há relatos de mulheres que eram
conduzidas à prostituição por parte das suas próprias famílias que, endividadas,
viam na prostituição das filhas um caminho para a sua sobrevivência. Mesmo
nesse caso extremo, e conta qualquer moralidade, as boas filhas deveriam
obedecer às designações dos seus pais.
Dada à importância que as donzelas alcançavam na sociedade medieval,
o rapto de donzelas era considerado um erro tão grave para a sociedade que
poderia levar à morte do raptor, caso fosse atestada a fornicação. No entanto, se
a fornicação não ocorresse, a pena se transmutava em pecuniária, com o
pagamento da quantia de cem maravédis. Caso o infrator não tivesse com o que
pagar, deveria ser metido na prisão até que conseguisse pagar a quantia que
deveria ser dividida entre o rei e a mulher ofendida14.

A esposa
Cumprido o papel de filha impecável, a mulher medieval era inserida no
universo matrimonial. Como esposa a mulher assumia responsabilidades sobre
a sua casa e deveres. Silvana Vecchio15 define como um dos primeiros deveres
da esposa, a obediência aos seus sogros. A mulher casada passava da custódia
da sua parentela e passava à de seu marido e dos seus parentes. Ela não poderia

13
KNIBIEHLER,Yvonne. História da Virgindade. São Paulo: Contexto, 2016. p. 112.
14
FR,IV, X, 1, p. 134-135.
15
VECCHIO,Silvana. La Buena Esposa. In: DUBY,G.e PERROT,M. Historia de las
mujeres. La Edad Media. La mujer en la família y en la sociedad. Madrid: Taurus,
1992. p. 136.

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tornar-se um elemento desagregador na sua nova moradia, mas exercendo a


pacificação e a obediência, deveria favorecer a união entre o seu marido e a sua
parentela, rompendo os laços de fidelidade com o seu grupo originário e
firmando-os com a sua nova família.
Outro dever da boa esposa era amar ao seu marido não somente no
sentido carnal quanto social. O amor não era condição para a existência de um
casamento no medievo. Alguns clérigos, como São Jerônimo, criticavam a
30
existência de um amor carnal entre os esposos, já que ele poderia favorecer a
submissão do marido à mulher, algo inadmissível, já que o marido era o
responsável pelo governo da sua esposa. Como atesta Carla Casagrande, através
da análise dos discursos eclesiásticos, há uma concepção corrente no Medievo
de que a mulher necessita da custódia constante de um elemento masculino: pais,
irmãos, tios, maridos... Isto porque a natureza feminina, radicada no simbolismo
da Eva bíblica, é marcada pela instabilidade, pela sexualidade desenfreada e
exacerbada, pela curiosidade indevida que inevitavelmente conduz às mulheres
a uma atitude inquieta e irresponsável diante do mundo que a cerca. Como afirma
Carla Casagrande: “Por tanto, las mujeres no pueden custodiarse por si mismas;
la infirmitas de su condición, que las hace débiles y privadas de toda firmeza,
exige que, junto a las vergüezas, intervengnan otras custodias.”16
O débito conjugal e a fidelidade também eram deveres de uma boa
esposa. A esposa deveria permitir ao seu marido que exercesse a sua sexualidade
no leito conjugal para fins procriativos. A procriação era o objetivo máximo do
casamento e do sexo. Os clérigos medievais, em seus escritos e sermões,
reforçavam a clara relação entre o sexo e o pecado original. O pecado original
cometido por Adão e Eva afeta a todos, homens e mulheres, no entanto quem o
introduziu no mundo foram as mulheres que, em sua desobediência a Deus,
incitaram os homens ao sexo. Não sem sentido, Eva tornou-se o grande símbolo
da natureza inconstante e pecaminosa da mulher. A luxúria, o prostituição, a

16
CASAGRANDE, Carla. La Mujer Custodiada. In: DUBY, G. e PERROT, M.
Historia de las mujeres. La Edad Media. La mujer en la família y en la sociedad.
Madrid: Taurus, 1992. p. 113.

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fornicação e o adultério são pecados tipicamente femininos, como afirma


Cristina Segura Graiño.17
A disciplinarização da sexualidade era uma das metas estabelecidas pela
Reforma Gregoriana. Freud considera a sexualidade como um dos principais
instintos humanos. O controle da sexualidade pela Igreja representaria, portanto,
o controle sobre a vontade e a força da persona, ensejando a sua total submissão
à moral eclesiástica. Para tanto a Igreja, através dos seus sermões e penitenciais,
31
definia a legalidade das relações sexuais a partir de quem a realiza (relações
realizadas entre homens e mulheres casados), do lugar onde ela pode ser
realizada (na cama do casal) e da posição adequada (a sobreposição do homem
sobre a mulher). O sexo realizado fora das regras elencadas era considerado
ilícito e passível de condenação eterna, além de poder ocasionar danos para a
criança que seria gerada a partir dessa relação. O medo de que nascessem
crianças defeituosas em função de uma relação sexual feita em durante o período
menstrual ou em dias santos era muito grande. Uma criança defeituosa era
considerada como uma falha evidente da mulher e o fruto indesejado da sua
luxúria.
O adultério representa a maior quebra de confiança que a mulher pode
exercer em relação a sua parentela, pois oferecia perigo à parentela permitindo
que um filho ilegítimo se tornasse herdeiro do patrimônio familiar. O
interessante é que o adultério não é considerado somente como um pecado
feminino. Os homens adúlteros que tivessem filhos com uma mulher que não
fosse a sua, poderia permitir que filhos bastardos tivessem acesso ao patrimônio
familiar. Daí o adultério receber a pena máxima tanto no discurso clerical quanto
no jurídico.18
O Fuero Real determinava que ficasse à cargo do marido penalizar da
forma como quisesse, inclusive com a morte, a esposa traidora e o seu amante.
A mesma pena deveria ser aplicada a ambos, não podendo haver a condenação

17
SEGURA GRAIÑO, Cristina. El pecado y los pecados de las mujeres. In:
CARRASCO, Ana Isabel Manchado e RÁBADE, María del Pillar Obradó (org.). Pecar
en la Edad Media. Madrid: Sílex, 2008. p. 213.
18
SEGURA GRAIÑO, Cristina. Op. cit., p. 223.

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à morte de um e a sobrevivência do outro. No entanto, a lei é clara em afirmar


que caso um dos envolvidos tenha filhos, a herança dos mesmos é resguardada.
No caso de a mulher ter sido forçada ao adultério, ela não deveria sofrer nenhuma
pena19. O mesmo código também prevê o adultério consentido, aquele que a
mulher comete com o conhecimento ou a mando do marido. Nesse caso
específico, o marido não pode acusar a sua esposa20. Prova de que o adultério é
um crime contra a parentela, está no próprio Fuero Real, que determina que uma
32
mulher pode ser acusada de adultério por qualquer homem que não seja o seu
marido, entretanto, se o marido não quer acusar a sua mulher e a quer perdoar, a
acusação do outro não poderá ser aceita21. Logo, a lei dá ao marido a autoridade
máxima para criminalizar ou não a ação da sua esposa. O adultério masculino
também é previsto na mesma lei que determinava que o marido adúltero que
quisesse acusar a sua mulher de adultério, não poderia fazê-lo22.

A viúva
O casamento é entendido tanto pelo discurso eclesiástico quanto jurídico
como um marco na vida da mulher laica medieval. As donzelas eram
extremamente valorizadas porque seriam inseridas em uma nova parentela com
possibilidades de ampliação de recursos para o seu grupo familiar. Às esposas
atribui-se um papel fundamental na conservação das alianças patrimoniais e na
garantia da perpetuação familiar. Que papel jurídico e eclesiástico era reservado
às viúvas?
As viúvas eram peças também seminais na engrenagem familiar. Elas
eram responsáveis por aconselhar às demais damas e donzelas, ajudando-as a
desempenhar devidamente as suas responsabilidades quanto à administração da
casa, tarefa, aliás, que poderia tornar-se muito complexa dependendo do
tamanho do patrimônio familiar. As viúvas ajudavam a manter o gineceu sob
controle, tornando-se um bastião da moralidade que deveria reinar na casa.

19
FR, IV, VII, 1, p. 131.
20
FR, IV, VII, 5, p. 132
21
FR, IV, VII, 3, p. 131
22
FR, IV, VII, 4, p. 132

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Como lembra Duby: (...) O gineceu, entrevisto pelos homens mas do qual são
naturalmente excluídos, aparece a seus olhos como um domínio “estranho”, um
principado separado do qual a dama, por delegação do seu senhor, detém o
governo.”23 As responsáveis por manter as demais mulheres ocupadas e com as
suas mentes livres do pecado. “(...) O ideal era uma divisão equilibrada entre a
oração e o trabalho, o trabalho do tecido.” 24
O papel político desempenhado pelas viúvas também poderia ser muito
33
ativo, mesmo que não exercido publicamente. As damas viúvas poderiam ser
muito atuantes em termos governamentais nos períodos de minoridade dos seus
filhos, tornando-se regentes.
Assim como às virgens, às viúvas é indicada, pelo discurso clerical, a
castidade. Liberada das suas funções sexuais, as viúvas também deveriam
manter as suas mentes livres dos pensamentos luxuriosos. Somente poderiam
voltar a exercer a sexualidade de forma legítima através de um novo casamento.
O destino das viúvas na Idade Média era manter a sua condição, sendo
custodiada pelos homens da sua família, entrar para a vida religiosa (passando
assim, para a tutela da Igreja) ou contrair um novo casamento, o que nem sempre
era do desejo da sua parentela, só se uma nova união implicasse em vantagens
patrimoniais para o grupo familiar. Logo, muitas viúvas viam-se impedidas de
casar-se novamente. Para tanto, o Fuero Real, de uma forma geral garantia às
viúvas a liberdade para contrair novas núpcias sem que os seus pais ou demais
membros da sua parentela possam impedi-las25. No entanto, esse casamento teria
que seguir algumas regras, como por exemplo, a certeza de que o primeiro
marido estava realmente morto, uma regra muito plausível para uma sociedade
onde a guerra e o deslocamento de maridos para outras localidades era muito
comum; caso contrário, o casamento seria invalidado e tanto a mulher quanto o
seu futuro esposo cairiam em poder do marido que poderia imputar-lhes a pena
que melhor lhe conviesse, inclusive a morte26. Outra regra estabelecida em

23
Duby,G. Convívio. In: ARIÈS,P. et DUBY,G. História da Vida Privada. Da
Europa feudal à Renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 90.
24
Idem
25
FR, III, I, 4, p. 65.
26
FR, III, I, 11, p. 66.

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relação ao casamento das viúvas era que ele se desse passado um ano após a
morte do marido. Este segundo casamento só poderia ocorrer com a licença do
rei . Caso a viúva desrespeite esta regra, desrespeitando o prazo estabelecido e
sem o aval real, ela perderia metade de todos os seus bens que passariam para
seus filhos ou netos, caso os tivesse. Caso não os tivesse, os bens seriam dados
aos parentes mais próximos do marido morto27.

34
Conclusão
Analisando, portanto, os discursos clerical e legal, entende-se a
existência de princípios morais, pautados nos parâmetros da castidade,
direcionados às mulheres medievais, buscando a disciplinarização ao
desempenho dos papéis sociais considerados fundamentais para a sociedade em
questão, ou seja, o de filhas, o de esposas e o de viúvas. Através do bom
desempenho destes papéis, as mulheres medievais garantiam a sobrevivência e
a perpetuação tanto da sua parentela quanto da sociedade como um todo.
Os padrões morais e papéis sociais estabelecidos no medievo continuam
vigentes na sociedade atual, quando de uma forma geral espera-se que a filha
seja obediente aos desígnios dos pais, que a esposa mantenha a fidelidade ao seu
marido cumprindo as suas funções de administradora do lar e que as viúvas
sejam, símbolos da experiência e da sabedoria feminina. Como as
transformações mentais são as mais lentas de serem alteradas no processo
histórico, os modelos femininos medievais, reproduzidos pela Igreja e pelo
monarca, ainda fazem muito sentido no século XXI e influenciam direta ou
indiretamente a forma como as mulheres se comportam atualmente.

REFERÊNCIAS

FUERO REAL DEL REY DON ALONSO EL SABIO. La real academia de la


historia. Madrid: Imprenta Real, 1836.

BOUCHERON, PATRICK. Georges Duby. In: SALES, Véronique (org.). Os


Historiadores. São Paulo: UNESP, 2011.

27
FR, III, I, 13, p. 67.

ISBN: 978-85-65957-07-6
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CASAGRANDE, Carla. La Mujer Custodiada. In: DUBY, G.e PERROT,M.


Historia de las mujeres. La Edad Media. La mujer en la família y en la sociedad.
Madrid: Taurus, 1992. p. 113.
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"CONHECIDA MARAFONA E DESORDEIRA": MORALIDADE E


PROSTITUIÇÃO EM UM ESTUDO DE CASO NO RIO DE JANEIRO
(1900- 1910)

Juliana da Conceição Pereira*

Já era final de tarde do dia 15 de junho de 1907, quando o soldado


36
bombeiro Manoel Bernardino de Souza, foi até a casa de número 78 da rua Luiz
de Camões na cidade do Rio de Janeiro onde morava sua amásia Maria
Umbelina, e disparou dois tiros contra ela lhe atingindo a cabeça. Depois de
atirar na mulher, o bombeiro pegou a arma e disparou as três balas restantes
contra a própria cabeça. Das três balas, duas se perderam; mas a terceira lhe
penetrou o crânio.

De acordo com o jornal O Paiz1 tudo aconteceu porque Maria Umbelina


estava viciada com a vida desregrada de baixo meretrício que a algum tempo
levava na cidade. A história que veio noticiada na página policial informava que
por ser meretriz, Maria Umbelina não era “incentivo a um afeto sincero”, porém
sua “silhueta franzina e os seus grandes olhos negros de mulata” despertaram
uma paixão no baiano Manoel Bernardino de Souza de 21 anos, soldado da 3ª
companhia de bombeiros.

Ao conhece-la ficou tão envolvido pelo seu sentimento que o homem a


tirou do meretrício, lhe deu uma casa (na rua São Jorge) e até levou a meretriz
em viagem a Bahia para conhecer sua parentela. Mas, ela não se conformando
com as manifestações sinceras de afeto dele acabou por não o suportar, mudou
–se para a rua Luiz de Camões e “arranjou outro amante”, um praça de cavalaria
de polícia de nome Antenor. O bombeiro não aguentando tanta humilhação e
movido pelo sentimento de posse por Umbelina, resolveu dar um fim no
problema:
Bernardino de Souza ali apareceu ontem, ás 5 horas da tarde.

*
UFF
1
O Paiz, 15 de junho de 1907.

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Como todo homem que toma uma resolução sinistra, o


bombeiro entrou simulando calma e interpretou a rapariga
sobre a resolução que tomara de separar-se dele.
Umbelina confirmou-a
E uma cena como tantas outras.
O bombeiro saca o revólver e dispara contra a rapariga duas
balas, que lhe atingiram a cabeça, e ela cai pedindo socorro.
(...)
A polícia do 4º distrito chega logo e as providências não se
fazem esperar.
Maria Umbelina segue em carro leito para o hospital de
Misericórdia e o bombeiro é logo transportado em ambulância 37
de seu Corpo para a enfermaria do mesmo.

No hospital verificou-se que as balas não atingiram o crâneo de


Umbelina, somente feriram o couro cabeludo e depois de medicada, a mesma
pode voltar para a sua casa. Já Manoel Bernardino de Souza teve que ficar no
hospital devido ao seu estado de saúde ser mais delicado.

Essa não era a primeira vez que Maria Umbelina de Britto se envolvia
em uma confusão e aparecia na coluna policial de algum jornal. Por ser meretriz,
ela representava o oposto da imagem familiar, isto é, da imagem moral, que tanto
era valorizada durante a Primeira República. Mulheres com o comportamento
como o de Maria Umbelina eram mal vista perante a sociedade, sua constante
presença nos noticiários era uma forma pedagógica de mostrar para a população
qual o comportamento era inadequado para as mulheres. A partir da leitura dos
conflitos envolvendo Maria Umbelina de Britto a presente investigação pretende
analisar o conceito de imoralidade feminina nas primeiras décadas da República.

Desordeira Conhecida

Maria Umbelina de Britto constantemente estava envolvida nas páginas


policiais dos periódicos. Foi presa diversas vezes na delegacia da 4ª
circunscrição urbana por desordens ou agressões, nas ruas vizinhas ao Campo
do Santana. Durante os anos de 1900 a 1910 morou nas ruas do Núncio, Luiz
de Camões e na rua São Jorge. De cor pálida e grandes olhos de mulata, desde

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os quatorze anos levava uma vida desregrada como meretriz” 2. O Correio da


Manhã afirmava que ela era uma marafona e desordeira, conhecida nas ruas da
cidade como “macaca que pula”3. Os insultos lançados a Umbelina eram
diversos e durante a primeira década da República seu nome se tornou sinônimo
de arruaça.

Supostamente, ela era irmã de criação de Joaquim Pedro Silva soldado


do 9º regimento de cavalaria do Exército. Assassinado em dezembro do ano de
38
1901 com um golpe de facão dado por João Eugenio Lima da Silva, conhecido
como João Mulatinho, na rua Luiz de Camões. O crime durante semanas foi
lembrado nos principais jornais como um ato de covardia:
A luta foi rápida. Em um abrir e fechar de olhos viu-se
Joaquim Pedro preso, enquanto o Mulatinho lhe cravava até o
cabo, no peito, do lado esquerdo a faca de que se armara.
Sentindo-se gravemente ferido, o inditoso soldado deu ainda
alguns passos indo cair nos braços de uma mulher de nome
Umbelina, a quem costumava dar o nome de irmã.4

O João Mulatinho era um antigo praça da brigada policial que foi


expulso por mal comportamento. Seu bando era formado por Adolfo Xavier de
Melo (o inglesinho), Heitor (o caboclinho) e Salvador Mictóre (o Tetéa), que
viviam explorando as meretrizes. O crime contra o soldado Joaquim Pedro era
por motivo de vingança. De acordo com os jornais Gazeta de Notícias e o Jornal
do Brasil alguns dias antes Mulatinho, Inglesinho, Caboclinho e Tetéa estavam
como de costume em exercício de “capoeiragem” na rua São Jorge. Passando
pelo local o soldado Joaquim Pedro, ao avistar a cena foi até a 3ª delegacia e fez
a denúncia as autoridades que prenderam (por pouco tempo) os indivíduos.
Desde essa denúncia, a “sentença de morte” do soldado Joaquim estaria lavrada.5

Era esse o meio em que vivia Maria Umbelina. É provável que ela fosse
uma das meretrizes exploradas pelo bando do Mulatinho. Alguns dias depois do
crime, por volta das nove e meia da noite Maria Umbelina estava na janela de

2
Idem.
3
“Guarda Civil esfaqueado”. Correio da Manhã, 15 de junho de 1907.
4
“Sentença de morte”. Gazeta de Notícias, 4 de dezembro de 1901.
5
Ver: Jornal do Brasil, 04 de dezembro de 1901.

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sua residência quando rapidamente passou por ela o “crioulo” Agostinho Pinto
Gomes e lhe deu uma navalhada no rosto. Também a arrastou para fora e
“esbordoou-a desumanamente” até ser prendido em flagrante. A vítima afirmou
na 3ª delegacia que não conhecia o seu agressor, e o jornalista termina a coluna
perguntando se isso “não seria uma vingança? ”6.

Voltando para a notícia do envolvimento com Manoel Bernardino,


chama a nossa atenção a construção narrativa em torno do caso da vida da
39
meretriz. O redator estimula a ideia de culpabilidade da vítima. Isto é, a vida
desregrada de Maria Umbelina seria a justificativa para a ação do soldado
bombeiro Manoel Bernardino. Por estar agindo em “defesa da sua honra”7 o
soldado acaba sendo sutilmente justificado na reportagem. O jornal constrói o
perfil de Manoel como um homem honesto e trabalhador, que saiu de sua terra
natal para o Rio de Janeiro e que tinha condições financeiras de ter uma família.
Seu erro seria ter se apaixonado por uma mulher desonesta como Maria
Umbelina que viciada pelo meio que viveu desde os 14 anos, preferiu viver como
uma mulher leviana insistindo em manter sua vida desregrada. Sua experiência
apareceu nos jornais como um exemplo negativo, um modelo de como não se
deveria ser.

Seus envolvimentos amorosos eram caracterizados e expostos nos


jornais da pior forma possível. Alguns anos antes, em 1903 na rua do Núncio ela
se envolvera em uma outra confusão amorosa. Como destaca o jornal A Cidade
do Rio, nessa época ela era amante do furriel de polícia Manuel Domingues de
Oliveira, e resolvendo não mais lhe satisfazer “as exigências monetárias",
separou-se do mesmo e ainda aceitava a corte de um certo Arthur. Movido pelo
ciúme, o furriel atacou o seu rival com uma faca. Arthur que no momento estava
armado, pegou seu revólver e atirou em Manuel. Mesmo com toda essa confusão
ninguém saiu ferido, mas Manuel Domingues de Oliveira foi levado preso a 5ª
delegacia de polícia. Os redatores do Jornal do Brasil em descrição a tal caso,

6
“Navalhista Traiçoeiro: Porque seria? ”. Jornal do Brasil, 7 de dezembro de 1901.
7
Como sugere a análise de CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade,
modernidade e nação no Rio de Janeiro, 1918-1940. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 2000.

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contam que Manuel Domingues de Oliveira era amante, na verdade, da meretriz


Ermerentina Polonia do Nascimento, irmã de Maria Umbelina. O furriel foi atrás
da ex amante que estava em um bar na companhia de Umbelina e do tal Arthur
e os atacou com seu facão. Para proteger Ermerentina e Arthur, sua irmã entrou
na frente e teve suas vestes rasgadas, sendo capturada juntamente com o furriel
pela polícia e levada presa a 5ª delegacia.

As redes de relações amorosas de Umbelina pareciam envolver sempre


40
militares. Embora não possamos saber se Manuel Domingues de Oliveira era
amante de Maria Umbelina ou de Emerentina Polonia fica evidente no jornal que
a reação do furriel só aconteceu por causa da troca de parceiros sexuais de uma
das meretrizes. A vida de “desordeira”, serviu de justificativa para os dois casos
que envolviam o ciúme de seus antigos parceiros. Mais do que ser o motivo
comum aos dois conflitos, o comportamento de Umbelina faz parte de uma
discussão muito maior que tinha como centro o conceito de honra no período
republicano.

Assim como o caso de Umbelina, muitos conflitos envolvendo


prostitutas apareciam diariamente nas reportagens do Jornal do Brasil8. Sempre
relacionados aos problemas morais da presença das mesmas na cidade, os jornais
eram um meio de estigmatizar as prostitutas como um contra ideal para as jovens
de família.9

Moralidade e Prostituição

Sueann Caulfield, no livro Em defesa da Honra10, trabalha com o


conceito de honra sexual do final do século XIX até a década de 1930, utilizando
processos sobre defloramento, estupros e pedidos de casamento. A autora
observa que a honra sexual estava ligada às bases da nação. Sem a força

8
Afirmo no Jornal do Brasil porque foi o jornal que selecionei para direcionar minha
pesquisa.
9
Conf. RAGO, Luzia Margareth. “Imagens da prostituição na belle époque paulistana”.
Cadernos Pagu (1), Campinas, Pagu/Unicamp, 1993.
10
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra. Op. Cit

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moralizadora da honestidade sexual das mulheres, a modernização causaria a


dissolução da família, um aumento brutal da criminalidade e o caos social. Havia
nesse período uma tentativa de zelar pela moral pública e pelos valores da
família, vinculando-os à honra nacional. Quando os juristas impunham normas
civilizadas nas relações de gênero estavam participando de um projeto externo
de controle social. E esse controle estava em todas as partes não se localizando
somente entre mulheres pobres ou ricas. Em conformidade com essa reflexão a
41
autora Rachel Soihet afirma que nesse projeto civilizador nacional recaía
principalmente sobre as mulheres “uma forte carga de pressão acerca do
comportamento desejado- pessoal e familiar- que lhes garantissem apropriada
inserção na nova ordem, considerando-se que delas dependera, em grande
escala, a consecução desses propósitos”11. Com tal intento foram implementadas
uma serie de políticas pedagógica para disciplinar todas as famílias nos moldes
de moralidade de uma família que fosse branca burguesa.

Com base na honestidade sexual feminina a prostituição havia se


tornado um assunto cada vez mais frequente nos debates entre autoridades
públicas e os profissionais liberais no Rio de Janeiro. A prostituição pública era
uma fonte de trabalho mal vista pelos olhos dos pretensos reformadores e
moralizadores da Nação. 12

No final do Império e início da República nas ruas do Rio de Janeiro,


inúmeras prostitutas europeias pobres conviviam com brasileiras de
descendência africana. Diferente das francesas e de algumas meretrizes da elite
que eram admiradas e toleradas por homens influentes da cidade, a presença das
prostitutas pobres de cor negra e estrangeiras judias e polacas causavam
perturbação, incomodavam a “elite carioca” no seu desejo de que a capital
servisse de vitrine de civilização para o resto do mundo e também para o país.
As prostitutas pobres “representavam o mal que ameaçava os esforços para

11
SOIHET, Rachel. “A interdição e o transbordamento do desejo: Mulher e Carnaval
no Rio de Janeiro (1890-1945) ”. Caderno Espaço Feminino, Uberlândia, vol. 2, ano 2,
n. 1, 1995, pp. 15-52
12
CAUFIELD, Sueann. O nascimento do Mangue: raça, nação e o controle da
prostituição no Rio de Janeiro (1850-1942). Tempo, Niterói, n. 9, 2000, pp. 43-63.

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civilizar a população e a construir imagens do progresso cultural e social do


país.”13 Como descreve Caulfield “as campanhas de controle da prostituição
foram acionadas pelo medo do aumento da criminalidade, das epidemias e da
desordem social no Rio de Janeiro”.

O Código Penal do ano de 1890 não trazia referências à prostituição,


mas punia quem a facilitava. Os Chefes de Polícia do Rio tinham como propósito
regulamentar a prostituição, porém não obtiveram muito sucesso. O que
42
conseguiram foi concentrar algumas delas em zonas específicas da cidade, como
o Mangue, área pesquisada por Caulfield. Essas áreas mudavam frequentemente.
Havia uma inconsistência nos limites e nas regras voltadas para as prostitutas. E
a falta de uma legislação permitia que a polícia impusesse políticas de
confinamento e “supervisão” da prostituição. Sueann Caulfield conclui que as
áreas como a do Mangue “foram marcadas pela intervenção da polícia e de outras
autoridades municipais”. E que essa era uma história permeada por “conflitos e
negociações entre a polícia e as prostitutas”14. Tanto a polícia quanto as
prostitutas, como destaca a autora, atuavam dentro de um amplo contexto
político.

De acordo com a autora Cristiana Schettini Pereira, em Que Tenhas Teu


Corpo15, as “ruas do Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas estavam
povoadas de homens fardados que se envolviam com prostitutas em função de
seus trabalhos ou de seus momentos de folga”. A convivência entre fardados e
meretrizes era permeada por negociações diárias, como ressalta Schettini “tanto
eles, como elas procuravam legitimar suas ações e defender seus interesses
através da repartição de certos acordos e comportamentos. ” Essas negociações
se apresentavam em várias notícias dos jornais que tinham como tema o
meretrício. Maria Umbelina, também tinha laços de solidariedade com soldados

13
Idem. (p, 45)
14
Idem, (p, 63)
15
SCHETTINI, C. . Que tenhas teu corpo: uma história das políticas da prostituição no
Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas. Tese de doutorado. São Paulo:
Unicamp, 2002

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do exército, seu envolvimento até amoroso com alguns deles, acabava por lhe
proporcionar alguma proteção:
Eram 9 horas da noite, quando as conhecidas marafonas e
desordeiras Maria Umbelina de Brito e Otília Maria da
Conceição promoviam desordens na rua de São Jorge,
dirigindo-se reciprocamente os insultos mais baixos e soezes
acompanhando-os de luta corporal.
O guarda civil Eugenio Ferreira Lima, n. 32 diversas vezes as
chamou a ordem aconselhando-as a que se acomodassem a se
recolhessem a sua residência.
As observações do guarda respondiam elas com desaforos de 43
toda espécie.
A calma mantida pelo civil, por sabe-las protegidas de
soldados do exército, esgotou-se, dando-lhes, voz de prisão.
Houve logo intervenção de soldados do 23º batalhão do
exército em favor delas. (...)”16 [grifo meu]

Casos como esse não eram incomuns. Cristiana Schettini observa que,
desde o século XIX, os “comandantes das corporações militares já deveriam
estar acostumados a receber comunicações da repartição central da polícia sobre
briga e desordens envolvendo seus subordinados e prostitutas de janela. ”17 As
rivalidades e as hierarquias entre os policiais eram fundamentais nas negociações
de convivência desses grupos. Maria Umbelina receberia a proteção dos
soldados do Exército não só por manter algum laço de amizade (ou amoroso)
com eles, mas porque haviam rivalidades entre os soldados do Exército e os
guardas civis.

Na versão da história contada pelo jornal A União18 a discussão que


acontecia era entre as duas mulheres e os dois soldados do 23º batalhão do
Exército. Ao ver a discussão o guarda civil Eugenio Ferreira Lima “recolheu os
quatro ao xadrez”. No caminho, os praças “garantiram as mulheres que elas não
iriam para o xadrez”. Chegando na delegacia, após a prisão, na hora do
interrogatório dos presos, sorrateiramente o soldado Aristides Ferreira Negreiros
(um dos presos) “sem ser pressentido sacou uma faca” e golpeou no peito o

16
“Assombroso! Crime Revoltante: Marafonas desordeiras dentro da 5ª delegacia”.
Jornal do Brasil, 27 de março de 1905.
17
SCHETTINI, C. . Que tenhas teu corpo: uma história das políticas da prostituição no
Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas. Op. Cit. (p,34)
18
“Crime horroroso: Soldado sanguinário na 5ª delegacia”. A União, 27 de março de
1905.

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guarda Eugenio que estava de pé assistindo o testemunho do outro preso.


Enquanto os policias socorriam seu colega ferido, os criminosos conversavam
na porta da delegacia de forma tranquila.

Embora o crime tenha sido cometido por um praça do exército, não se


têm notícias se este foi condenado. Já Otília Maria da Conceição e Maria
Umbelina de Brito foram condenadas a vinte dois dias e meio de prisão, como
vagabundas, pelo juiz da 3ª pretoria.19
44
De fato, havia uma hostilidade na cidade para com os policiais militares.
Maria Umbelina parecia se relacionar muito bem com o pessoal do exército, já
os vários conflitos que a levaram presa a 4ª delegacia sugerem uma relação mais
conflituosa com esses guardas.

Conclusões

No meio de tanta confusão entre Maria Umbelina de Britto e homens


fardados foram as redes de amizade construídas pela meretriz, que ainda que de
uma forma pequena, lhe beneficiaram e a trouxeram as ruas novamente. Por ser
do baixo meretrício, a jovem Umbelina era retratada nas páginas jornalísticas
sempre de forma negativa. Além disso a frequência dela, e de outras
companheiras de profissão, em alguns ambientes trazia uma má imagem para o
local.

Na madrugada do dia 04 de julho do ano de 1902 em um maxixe


localizado na rua do Espírito Santo, Umbelina se envolveria em mais um
problema. O caso que foi noticiado pelo Jornal do Brasil em duas pequenas
notas não foi descrito com muitos detalhes. Não se sabe o motivo pelo qual se
deu o atrito, mas foram publicados os nomes das seis vítimas que tiveram

19
Lerice de Castro Garzoni em seu trabalho, Vagabundas e Conhecidas: novos olhares
sobre a polícia republicana (Rio de Janeiro, início século XX) argumenta que no Código
Penal de 1890 a prostituição não era um crime nem contravenção, porém o texto legal
apresentava “medidas restritivas em relação a essa atividade”. Haviam artigos que
puniam a prática do lenocínio; que era o ato de induzir ou se beneficiar da prostituição
alheia. As brechas nas leis forneciam mecanismos para que as meretrizes fossem atuadas
em outras infrações como a de vadiagem.

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ferimentos resultantes de tal acontecimento. Eram elas “Dalila Augusta da Silva,


Garrafinha, celebre desordeira, ferida na cabeça; Maria Umbelina de Brito,
Adelina Ferreira, Anna Braga, Alexandrina dos Santos, Maria Rita de Araújo e
Rita de Castro”. As mulheres que foram levadas ao Hospital da Misericórdia,
após serem medicadas “foram recolhidas presas à 4ª delegacia, onde se acham
também as donas da espelunca”. Embora esse “maxixe” já tivesse sido palco de
outras confusões, os articulistas enfatizam na notícia que pessoas de reputação
45
não frequentavam um ambiente como aquele20, que a casa era uma “espelunca
do vício” 21 e seus frequentadores eram tudo o que havia de mais “asqueroso na
escória social”. Eram os mais temíveis representantes do vício e do crime, que
viviam em companhia de mulheres da baixa reputação que promoviam
“escândalos e cenas da mais requintada imoralidade” o que era algo nocivo à
“tranquilidade pública”22.

Como não se enquadravam no perfil idealizado de mulher que era


dedicada a família, contida sexualmente sendo vigiada e protegida no espaço
privado do lar; mulheres que levavam uma vida como a de Maria Umbelina eram
caracterizadas como imorais, não eram vistas como cidadãs, mas como algo ruim
que deveria ser curado pelos reformadores da Nação.

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autobiográficas. Rio de Janeiro: Editora FGV/ Porto Alegre: UFRGS Editora,
2009, p. 255-276

20
“O Maxixe”. Cidade do Rio, 25 de fevereiro de 1902.
21
“Espelunca do Vício”. Jornal do Brasil, 05 de julho de 1902.
22
Idem

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(2012) jul/dez Gênero e Subjetividades

SOIHET, Rachel e PEDRO, Joana Maria. “A Emergência da pesquisa da


História das Mulheres e das relações de gênero” In: Revista Brasileira de
História. Nº 54 vols.27. São Paulo: ANPUH, jul - dez. 2007, p. 281-300.

ISBN: 978-85-65957-07-6
Rio de Janeiro
Ed. Anpuh-Rio
Atas do II Encontro Nacional do GT Estudos de Gênero
Rio de Janeiro, 27 e 28 de outubro de 2016.

FILANTROPIA E MATERNIDADE: RELAÇÕES ENTRE DAMAS DA


ELITE E MÉDICOS FILANTROPOS NA PRIMEIRA REPÚBLICA

Giovanna Costa Cinacchi*

Introdução: Os ideais positivistas na nova República

A consolidação da Primeira República no Brasil sofreu alguns revezes, 48


seja pelo fato de ser sido orquestrada pelas classes dominantes, de cima para
baixo, seja pelas próprias dimensões continentais e descentralização à época. O
processo republicano se constitui em torno de um projeto societário civilizador
no qual se insere um movimento intelectual de base positivista, materialista e
evolucionista, havendo maior configuração de espaços dialógicos, os quais
passam a se preocupar também com os “problemas sociais” (SCHWARCZ;
STARLING, 2015)1.

A pobreza extrema, vista como um entrave ao desenvolvimento de uma


nação que pretendia ser “civilizada” se torna, assim, alvo de críticas por
membros proeminentes de diversas classes de intelectuais, inclusive da área
médica. Em meio a teorias eugênicas pautadas no darwinismo racial, a
ocorrência de epidemias como a varíola e a gripe espanhola que dizimaram
número considerável de habitantes de algumas cidades do país, projetos
higienistas passam a ser implementados na Capital.

A medicina higienista do início do século XIX se insere no ideário


positivista republicano, dando cientificidade aos postulados racionais ora
apresentados. A evolução do Brasil como nação, que agora, republicano,
buscava ordem e progresso, se daria a partir dos princípios racionalistas
fenomenológicos legados pela sociologia comtiana e o controle do
desenvolvimento dos corpos se dá a partir dessa lógica.

*
UFF
1
Diversos movimentos sociais vão às ruas neste momento, denunciar a carestia e
reivindicar direitos e serviços sociais (SCHWARCZ; STARLING, 2015).

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A proposta higienista orientará a saúde pública no que se refere a


questões espaciais, como a Reforma Urbanística na capital da República, o Rio
de Janeiro (CARVALHO, 1987; 1990), bem como a vanguarda da área da saúde.
A saúde pública, sofre descaso no Império, o que se repetirá em grande medida
na Primeira República, como aponta Schwarcz e Starling, fazendo uso das
palavras do médico Miguel Pereira em 1916, nesse momento “O Brasil ainda é
um imenso hospital” (2015, p. 336). Isso porque as epidemias se alastravam ao
49
longo do território nacional, atingindo especialmente a população rural e a
população urbana mais pobre.

O Instituto Oswaldo Cruz, vinculado ao governo federal desponta como


uma ação importante por parte do governo republicano no que tange à
problemática da saúde, especialmente das epidemias que assolaram o país entre
o final do século XIX e início do século XX. A construção de hospitais e,
especialmente, de maternidades foi, entretanto, relegada no período republicano
tratado neste artigo. Médicos filantropos tomam para si a responsabilidade [não
sem reclamar o apoio estatal] e criam organizações de apoio à causa, como é o
caso da “Associação das Damas da caridade” e das “Damas da Cruz Verde”.

Diante do exposto, o presente trabalho tem por intuito incorporar


reflexões aos estudos das ações filantrópicas na Primeira República a partir da
discussão acerca das relações entre as mulheres da elite carioca na capital
republicana que atuavam no Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Rio
De Janeiro (IPAI), as Damas da Assistência, e as Damas da Cruz Verde que,
tendo trabalhado na epidemia da gripe espanhola, atuaram na criação e
manutenção da Maternidade Pro-Matre com os médicos que deram origem a
estas associações.

A ideologia positivista atua como como fio condutor para a construção


do movimento filantrópico impetrado pela elite. Tendo tratado brevemente do
positivismo como orientador do fazer científico à época, trataremos a seguir do
movimento de hospitalização do parto que também se insere na lógica positivo-
higienista. Posteriormente, abordaremos a criação do IPAI e do Pro-Matre,
fazendo uso de fontes primárias e, portanto, nos apropriando do discurso dessas

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entidades diretamente. As Damas da Assistência e as Damas da Cruz Verde serão


tratadas no item conclusivo deste artigo.

Compreendemos aqui que o Brasil foi construído em torno de um


projeto societário organizado pelas elites. Não negamos, entretanto, a luta de
classes, tampouco os movimentos empreendidos pelas classes subalternizadas
neste processo. Nossa decisão por este recorte metodológico se dá pelo desejo
de contribuir para a história das mulheres e inseri-las no contexto de
50
filantropização na Primeira República, por compreendermos que estas mulheres,
mesmo quando não autodeclaradas feministas, contribuíram para que o debate
político se proliferasse, inclusive entre as mulheres.

A Hospitalização do Parto no Brasil: a filantropia na ausência do Estado

Os partos no Brasil realizados no país até fins do século XIX eram em


sua maioria domiciliares, geralmente realizados por parteiras leigas ou
diplomadas, os médicos atuando no parto em situações de complicação deste
(MOTT, 1999). Os partos realizados em hospitais ocorriam geralmente entre as
mulheres de camadas subalternizadas, mães solteiras e prostitutas, sendo
realizados por cirurgiões e geralmente incorrendo em óbitos, por não haver uma
divisão entre as alas hospitalares, o que facilitava a transmissão de doenças.

A visão do parto em hospitais como sendo adequado apenas para


mulheres “sem berço” é corroborada pela criação das Casas de Saúde nas quais
parteiras diplomadas faziam o atendimento geralmente a mulheres pobres e
escravas. A necessidade de criação de maternidades era, entretanto, fala
recorrente nos discursos de professores das escolas de medicina, bem como era
apoiada socialmente pela possibilidade de se transferir a reponsabilidade do
parto das escravas para essas instituições de saúde (MOTT, 2002).

Devemos ter em mente que o discurso médico em prol da criação de


maternidades remete a questões políticas que se engendravam no país. A alta
taxa de natalidade e baixa mortandade infantil seriam indicativos de progresso
nacional e fazem parte dos discursos nacionalistas positivados. As alocuções de

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médicos, portanto, se coadunam com o próprio desenvolvimento econômico do


país que se industrializava, necessitando, pois, de indivíduos propícios ao
desempenho de atividade laboral.2 O Estado fora convocado em ocasiões de
discursos e conferencias na área médica para a intervenção nesta seara, se
mostrando, em grande medida, alheio à problemática. Isso não esteve
desvinculado da área acadêmico-científica. A publicação em periódicos e de
estudos sobre a questão da maternidade e da infância é profícua no período ao
51
qual aqui nos remetemos, sendo os dados recolhidos publicados em veículos das
próprias instituições de saúde. Verificamos também uma organização por parte
dos médicos posicionados a favor da hospitalização do parto, sendo a Sociedade
de Obstetrícia e Ginecologia do Brasil criada já em 1897.

Mestriner (2001) aponta para um Estado “fraco” no primeiro momento


republicano. A assistência à saúde é feita pela benemerência católica. Diante do
desinteresse do Estado e, vinculados à própria formatação do movimento
filantrópico, médicos passam a encabeçar organizações benemerentes com o
apoio de membros da elite, inclusive, de mulheres que, seja pela arrecadação de
fundos, seja pelo trabalho, passam a se dedicar ao auxílio a mães e crianças
desassistidas. Cabe recordarmos que neste momento a assistência social e a
assistência à saúde não são consideradas funções públicas, devendo o Estado
atuar, quando muito, a partir do princípio de subsidiariedade, ou seja, subsidiar
indivíduos a partir das mais diversas fontes sem precisar, contudo, atuar
diretamente, sendo até o final do Brasil-Império, esses serviços prestados
exclusivamente por ações de caridade da Igreja Católica, vinculada ao governo
imperial.

Convém fazer uma distinção entre o que consideraremos aqui serem as


ações de caridade e a filantropia. Wadsworth (1999) aponta serem as ações
caritativas “movidas eminentemente pela piedade cristã”. Consideramos haver
aqui uma resignação ante a pobreza caracterizada nas ações individuais,
coletivas e mesmo institucionalizadas [como é o caso das Casas de

2
Para conhecer mais sobre os discursos higienistas positivados, ver Moncorvo Filho
(1908, 1914, 1916, 1924, 1927, 1931), PAIVA (1922) e MAGALHÃES (1922, 1924).

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Misericórdia]. A filantropia da qual falamos ainda que possuam essa dimensão


da piedade se fundamenta na noção de “utilidade social”, cujos princípios
higienistas positivistas serão orientadores das ações. (SANGLARD, 2010;
PEREIRA, 2015). No caso da filantropia praticada por grupos da elite carioca
no primeiro momento republicano, temos ainda o fato de que o fazer filantrópico
conferia prestígio a esses indivíduos, fato revelado pela exaustiva publicização
das ações, inclusive em periódicos e jornais (FREIRE, 2013). O discurso
52
higienista positivado dos médicos filantropos pode ser constatado na alocução
de Moncorvo Filho:
A philantropia, porém, diante dos céleres progressos da
sciencia, revolucionada, na metade ultima do seculo, por
incomparáveis descobrimentos e o desmesurado progresso
dos estudos sociaes, não podia permanecer sufocada em seus
antigos móldes, guardando a tradição dos seus velhos hábitos,
nem tão pouco mantendo os seus systemas sob muitas faces
repudiados já pela Medicina e pela Hygiene. (1916, p. 194).

A filantropia se vincula a uma forma de benemerência cientificizada,


imprescindível para o desenvolvimento do país:
A nossa cultura intellectual, o nosso progresso moral e
material ahi estão, de ha muito a exigir que volvamos as
nossas vistas para esse assumpto de tanta magnitude e tão de
perto toca a felicidade da Nação. (...) A proteção da infancia
surge assim não sómente como uma das condições essenciaes
do progresso collectivo, mas ainda como uma das condições
essenciaes para manter nossa harmonia social.
(MONCORVO FILHO, 1914, p. 5-6).

Assim, o projeto societário, inicialmente centrado nos discursos


acadêmico-intelectuais ou ainda, ultrapassando esta esfera, presentes em jornais
e periódicos progressistas vincula-se à formatação da elite republicana da
capital. Na Belle époque carioca, aos moldes da filantropização da elite francesa,
verificamos que esta vai ao encontro dos anseios das senhoras “de boa moral”
de circulação no espaço público sem prejuízo de seus predicados já bem
conhecidos (SANGLARD, 2010). Ora, à elite cabe bem o papel de ajudar aos
“pobrezinhos” dos discursos de Ataulpho Paiva, Artur Moncorvo Filho e
Fernando Magalhães. A pobreza exacerbada é aqui vista como uma anomia, no
sentido durkeimiano, devendo ser contida, se não pelo braço do Estado, por

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aqueles [e aquelas] que, afortunados, possuem instrumentos para fazê-lo. Longe


daqui está a perspectiva de revolução classista. Não se pretende, tampouco,
alterar o status quo: aos subalternizados resta seguir os preceitos apontados pela
elite, seja os hábitos de higiene, sejam àqueles melhor adequados para as práticas
fabris. Os apelos dos médicos preconizam uma institucionalização da assistência
às crianças e, por conseguinte, às mães que, como apontamos, se coadunam com
a visão positivada do ideário nacional.
53

O IPAI e a Pro-Matre: as redes de proteção privada se conformam

Em 1889, Moncorvo Filho funda o Instituto de Proteção e Assistência


à Infância do Rio De Janeiro (IPAI). Este funcionará a partir da política centrada
nas “Gottas de leite”, experiências brasileiras dadas à francesa. Essa política de
uma alimentação forte e de boa procedência se insere nos princípios higienistas:
o IPAI é responsável pelo controle e distribuição de leite, pela educação e
propaganda negativa das amas de leite “mercenárias”, bem como pela
organização dos consultórios de atenção materno-infantil. O funcionamento da
instituição se daria em julho de 1908. Aponta Moncorvo Filho:
A protecção da primeira infância, ninguem o ousará
constestar, é e será sempre a base da felicidade dos povos e
ahi estão para assegurar o valor dessa asserção os meritórios
resultados da Puericultura intra e extra-ulterina assignalados
em todos os certamens scientíficos (1908, p. 385).

De acordo com os relatórios publicados no periódico "A Tribuna


Médica", o IPAI contava, já no ano de sua inauguração com clínica de
atendimento médico e cirúrgico, entretanto, os serviços oferecidos que merecem
maior atenção [de acordo com os próprios relatórios] são os "Gynecologia e
Protecção á Mulher Grávida Pobre, onde é praticada a verdadeira puericultura
intra-uterina”. Outro ponto em destaque é o “exame e attestação das amas de
leite” (MONCORVO FILHO, 1908, p. 386). Além disso, chama a atenção para
a criação do Dispensário Moncorvo e das Gottas de leite.

O IPAI se insere como importante instrumento no processo de


hospitalização do parto, bem como no processo “pedagógico” orientador do “ser

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mãe” e do “fazer maternal” (FREIRE, CONSATI, 2015) e, embora não tenha se


configurado como a única iniciativa na Primeira República de modelo
institucional voltado no cuidado à infância, mostra-se inovador, abrindo filiais
em diversas cidades do país. Sobre a institucionalização e construção de um
“fazer maternal” adequado ao projeto societário científico positivista, podemos
empreender que
De um lado, os médicos higienistas legitimavam-se como
puericultores, especialistas na promoção e manutenção da 54
saúde das crianças, conquistando maior autoridade na
sociedade e no interior do corpo médico. De outro,
contribuíam para a redefinição dos papéis femininos e a
configuração de um novo papel social para a mulher: a mãe
moderna. (FREIRE, 2008, p. 160).

Quando da abertura de suas portas ao público, o IPAI situava-se na


região central da cidade do Rio de Janeiro, local de trânsito constante de
mulheres muito pobres e de mulheres da classe operária e estas [com seus filhos]
seriam seu público principal. A princípio, o IPAI viria funcionar em casa
pertencente à própria família Moncorvo. O caráter subsidiário do Estado já
aparece após quinze anos de funcionamento em sedes provisórias: em 1914, o
governo federal doa um terreno para a construção da sede oficial do Instituto
(WADSWORTH, 1999).

A este processo, inclusive fazendo parte da rede de assistência ao parto


e à infância preconizada pelo IPAI, segue-se a criação, em 1918, da Maternidade
Pro-Matre. Moncorvo Filho, que como já exposto há tempos se dedicava à
criação de hospitais-maternidades e apoiado por outros médicos como Ataulpho
Paiva e Fernando Magalhães, “sensibilizam” as Senhoras Stella Duval e
Baronesa do Bonfim [e filha], as quais organizam [sob a “tutela” do médico-
filantropo ginecologista Fernando Magalhães] grupos de trabalho para a criação
do Pro-Matre. Durante esse movimento organizativo ou pré-institucional, a
epidemia de gripe espanhola se torna um grave problema no Rio de Janeiro. Em
1918, a gripe espanhola que assola diversas cidades do país e na capital federal,
pode ser considerada uma das causas para o aumento significativo do número de
óbitos. Entre os anos de 1917 e 1918 o número de óbitos vai de 21.508 para

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35.237 (BRASIL, 1931).3 As Damas da Cruz Verde [assim se chamam as


mulheres do grupo de trabalho em torno do Pro-Matre] entram em cena em prol
do apoio aos doentes e convalescentes desta “grippe”. Como aponta Moncorvo
Filho:
O Dr. Fernando Magalhães, naquella mesma data [20 de
Outubro de 1918], por incumbencia do Governo, aproveitava
o "Hospital Pro-Matre" e transformava-o n'um "Pôsto de
Socôrro", autorisando-o aquelle a fazer as despezas
necessarias, em ordem, segundo se propoz o seu Director, a 55
receber 200 doentes. (1924, p. 62).

O processo de criação da Pro-Matre, portanto, se imiscui aos esforços


impetrados contra a epidemia de gripe espanhola. A experiência desse grupo de
mulheres da elite na área da saúde [contavam também com enfermeiras, parteiras
e auxiliares]não foi descartada, sendo utilizada tanto nas funções da
maternidade, como nos Postos de Atendimento da gripe. O Primeiro Estatuto da
Maternidade Pro-Matre é instituído em 1918 com a seguinte redação inicial:
Art. 1°. Sob a denominação "Pro-Matre", fica constituída,
com séde e domicílio nesta cidade do Rio de Janeiro, uma
associação de caridade e auxílio mútuo para os fins que abaixo
se declaram.
Art. 2°. A Associação tem por fim dispensar proteção á
mulher desvalida sem distinção de credos ou posição social.
(ESTATUTOS, 1918, p. 1).

É interessante observarmos serem pontuadas no Estatuto da Pro-Matre


as não distinções acerca de credos ou posições sociais das mulheres [mães]
assistidas. Isso porque, como já assinalamos, há distinções entre a benemerência
católica e a “caridade cientifica” dos médicos filantropos que orientavam os
grupos femininos da elite. A laicização é um processo que acaba por fazer parte
deste movimento que, apesar de não ser totalmente alheio à Igreja católica, se

3
De 1919 até 1922 as cifras diminuem em aproximadamente dez mil óbitos. Os
"Annuários" apontam para um número maior de mortes de mulheres do que de homens,
bem como número elevado de mortes de menores de quinze anos. Outrossim, dentre as
profissões com mais elevado número de óbitos se encontram os operários. Apesar da
inconstância nas publicações dos Annuários, bem como na possível perda documental,
os dados por estes coletados se mostram imprescindíveis neste trabalho pela inclusão
de estatísticas de mortandade em hospitais filantrópicos, como é o caso do Pro matre, já
inserido no Annuário de 1922 (BRASIL, 1931, 1932).

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diferencia justamente por incorporar a caridade de outras organizações,


religiosas ou não. Não se trata de piedade, no sentido de “ajudar ao próximo”,
tal qual se apresenta no Velho Testamento. Trata-se da utilidade social. “A
filantropia é uma virtude laicizada, é uma ação continuada, refletida e não mais
isolada” (SANGLARD, 2010, p. 128).

A conformação de maternidades e demais instituições de saúde na


esfera privada tendo, entretanto, vistas ao atendimento público, em especial, a
56
atender indivíduos de classes subalternizadas não é um ato de “bondade”,
simplesmente, por parte dos filantropos. Como apontamos, existe no Brasil uma
formatação das indústrias e, consequentemente, um recrudescimento das
expressões da Questão Social. A responsabilização do privado em detrimento do
público, se insere no movimento de laisse faire, ou seja, de não intervenção
estatal que por muito tempo se fez presente em discursos político-ideológicos no
país [se é que em algum momento deixou de fazê-lo].

Considerações Finais: as damas filantropas entram no mundo público

Na literatura feminista ou não-feminista que versa acerca do papel


feminino [e no caso, tratamos das mulheres das elites urbanas] na filantropia e
como isso se relaciona à inserção da mulher no espaço público, há divergências:
por um lado, a maior parte da literatura evidencia o papel de subalternidade das
mulheres nos movimentos de caráter filantrópico, por outro, uma pequena parte
dos estudos se dedica a pensar essas mulheres como parte efetiva da história,
como personagens principais e não mera coadjuvantes (MOTT, 2001). Assim, a
filantropia executada por mulheres pode ser vista como ramificação do fazer
doméstico ou como a entrada das mulheres da elite e da classe média no mundo
público. Aqui, compreendemos a filantropia feminina a partir da segunda
perspectiva.

O processo de filantropização feminina no início do século XX


recrudesce, adquirindo apoio ideológico/institucional especialmente a partir da
Primeira Guerra [1914-1918]. Os médicos cientistas possuem papel fundamental

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neste processo cuja necessidade de nacionalismo [e a ameaça socialista que já se


instaura na Europa] tornam a “questão da mulher” uma preocupação menor, esta
podendo ser incorporada ao movimento político propalado pela ideologia
dominante da elite brasileira. A filantropia feminina aqui, portanto, aparece
“conectada ao nacionalismo e também a uma visão cultural da superioridade dos
valores morais e cristãos do Ocidente, sintetizada pela palavra civilização”
(VOSNE, 2015, p. 19).
57
As mulheres passam a ser vistas neste momento, como possíveis
agentes políticos, indicando esforços em compor mais vigorosamente uma
unidade nacional (HAHNER, 1981). Desde o século XIX temos no Brasil uma
conclamação direcionada às mulheres e ao papel que essas deveriam exercer.
Nos discursos feitos por homens intelectuais, médicos e jornalistas, este apelo
aparece e a maternidade e à infância surge como uma questão que deve ser
“naturalmente” incorporada à filantropia feminina, como podemos ver nas
seguintes passagens de discurso feito por Moncorvo Filho, quando da
inauguração da unidade do IPAI na cidade de Petrópolis, apontando ser esta uma
“[...] daquellas obras que reflectem o coração da mulher [...]” (MONCORVO
FILHO, 1920, p. 11).
A mulher patrícia, que tão nobres dótes de espírito possue, tão
exemplar, generosa e affectiva como Filha, como Esposa ou
como Mãe, encarnada na pratica do Bem já demonstrou a
grandeza do seu coração contribuindo com abundância de
carícias nesta cruzada pela santa salvação dos pequeninos.
(MONCORVO FILHO, 1920, p. 09).

Se o papel da mulher “abastada” é explicitado nos discursos feitos por


médicos filantropos, Moncorvo Filho ainda reitera o papel da mulher na
filantropia de caráter nacionalista dedicada à infância e à maternidade ao afirmar
que a “[...] affectividade excessiva da mulher brasileira foi posta à prova nesse
movimento promissor pelo engrandecimento de nosso torrão patrio e é mais
grandioso ainda o papel que lhe está reservado no futuro” (MONCORVO
FILHO, 1920, p. 10-11). O médico afirma ainda que nas mulheres “[...] residem
as nossas esperanças que são as da Patria” (Ibidem).

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Assim, dentro dessa lógica de filantropizar a maternidade e,


consequentemente, de trata-la como assunto típico feminino e a partir da
cientifização do “ser mãe”, a maternidade, institucionalizada ou não passa a ser
construída. As condutas “corretas” do ser mãe, o papel de cuidadora da família,
do lar e da moral adquirem importância na formatação do processo societário
empreendido pela elite positivista.

Consideramos que as mulheres da elite carioca ao fazer parte de


58
atividades filantrópicas, adentram ao mundo público, concorrendo para uma
cada vez maior ocupação dos espaços públicos pelas mulheres. Devemos
pontuar, para fins didáticos que à mulher da classe trabalhadora, o espaço
público há muito que era por ela frequentado, ao menos a partir do trabalho,
entretanto, quando nos referimos aqui ao público, nos remetemos principalmente
à sua dimensão político.4

Como apontamos, mulheres da elite carioca, ou seja, da elite da capital


da República do Brasil no início do século XX formam as Damas da Assistência,
com atuação no Instituto de Proteção à Infância, o IPAI. Entre essas mulheres
apontamos àquelas as quais fizeram parte das comissões de mais alto gabarito,
as senhoras da elite: Baronesa Salgado Zenha, Celeste Zenha de Moraes,
Baronesa de Mesquita, Bernardina Azeredo, Cecília Mendes, Cacilda G.
Fernandes, Hannah Mendes de Almeida, Anna Siqueira de Menezes,
Guilhermina Moncorvo, Paulina Dolbeth Andrade, Brazilina Guedes e
Josephina Vianna (MONCORVO FILHO, 1924, 1927).

No início do século XX, essas senhoras, juntamente com centenas de


outras que viriam apoiar o IPAI de uma forma ou de outra, atuaram
concretamente no movimento filantrópico que neste momento recrudescia. O
IPAI, como vemos, ao atuar no cuidado para com a infância, passa a atuar em
outras frentes, como a Assistência, prestando serviços de apoio a uma parcela
pobre da população. A Educação também é uma questão abarcada pelo referido

4
As mulheres das classes operárias já faziam parte de movimentos contestatórios desde
séculos antes do período por nós retratado (MELO; BANDEIRA, 2010). Não são elas,
entretanto, objeto de nosso trabalho.

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Instituto, vez que a educação com vistas à “higiene e à boa moral” faz parte do
ideário positivo-científico adotado nos espaços da medicina, seja nos
dispensários, nas clínicas ou nos hospitais.

Na reunião em casa da família Duval, se reuniram5 Laurinda Santos


Lobo, Jeni Monteiro Amaral, Helena Figueiredo Araújo, Ernestina Passos
Bulhões de Carvalho, Nair de Azevedo Teixeira, Maria Eugenia Celso Carneiro
de Mendonça, Lo Landbery. Essas senhoras da classe alta e média alta da capital
59
Rio de Janeiro, juntamente com Stella Duval e a Baronesa do Bonfim, Jerônima
Mesquita, viriam incorporar a Obra da Cruz Verde, de Moncorvo Filho,
auxiliando nos postos de atendimento [o IPAI e suas dependências são utilizados
pelo Dr. Moncorvo Filho como postos de atendimento] os acometidos pela
“grippe hespanhola” (ABREU, 2015). A criação da maternidade se dá no mesmo
ano da epidemia de gripe e nela muitos doentes foram atendidos. Assim:
Em 1918 creava o eminente Fernando de Magalhães a
Associação "Pro-Matre" com auxilio de um grupo de
senhoras. [...] A maternidade da Pro-Matre foi installada no
predio da Avenida Venezuela, do Caes do Porto. O
estabelecimento abriu-se tendo 70 leitos, havendo a
"Associação" instituido 22 póstos urbanos de consulta e, com
o auxilio poderoso da Fabrica Alliança, um ambulatorio
obstetrico e gynecologico e uma créche em excellentes
condições de installação. Na sua séde criou uma escola de
enfermeiras e organisou os cursos da especialidade, onde
aprendem os alumnos da Faculdade de Medicina.
(MONCORVO FILHO, 1927, p. 282).

Ao inserir-se no meio de médicos e filantropos os quais, por si mesmos


já ensejavam pressupostos de organização política e social, as Damas do IPAI e
do Pro-Matre fizeram parte, intencionalmente ou não, de um movimento político
ideológico que consubstanciava a nação. No caso da Maternidade Pro-Matre,
tendo ela sido fundada pelo médico Fernando Magalhães, a continuidade e
expansão de seus trabalhos deu-se principalmente pela atuação de uma de suas
fundadoras: Stella Duval.

5
Poucos homens se fizeram presentes na reunião: o médico-filantropo e ginecologista
Fernando Magalhães e o Sr. Duval, marido de Stella e dono da casa onde o encontro
ocorrera.

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Os médicos filantropos, como buscamos aqui demonstrar, de fato foram


os orientadores do processo de filantropização o qual foi instrumentalizado para
a inserção das mulheres na esfera pública. A assunção de cargos e luta por
direitos políticos, por vezes convergiu com os trabalhos empreendidos por estas
mulheres no apoio à infância e à maternidade [nos moldes já descritos].

Apesar de terem sido orientadas, a princípio pelos postulados da


filantropia científica positivista, os quais por seu caráter moralista e normativo,
60
muitas mulheres partícipes de organizações filantrópicas se furtaram a exercer o
“papel de gênero e de classe que delas era esperado no controle das classes
populares” (VOSNE, 2015, p.25). Stella Duval, como já apontamos é um
exemplo dessas mulheres. Tendo fundado juntamente com Fernando Magalhães
a Associação Pro Matre, torna-se dela presidenta. Em 1922, juntamente com
Bertha Lutz, Jerônima Mesquita e outras mulheres da elite e da classe média,
funda a Federação Brasileira para o Progresso Feminino, a qual expressava em
seus estatutos possuía como principais reivindicações o sufrágio feminino, a
instrução da mulher, a proteção às mães e à infância e uma legislação reguladora
do trabalho feminino (SHUMAHER; BRAZIL, 2000).

Não podemos deixar de ressaltar um fato muito importante: não apenas


a representatividade das mulheres da elite que se inserem na esfera pública [e
política] notadamente masculina deve ser considerada, mas também o fato de
que as relações sociais engendradas a partir dessa penetração em um “outro
mundo” são agentes de transformação sócio-política. Ao inserirmos as Damas
da elite na história, somos capazes de compreendê-la a partir de diferentes
espectros e amplitudes. Elas, ao se reunirem e organizarem ações coletivas,
mesmo quando o faziam representando um moralismo classista, forjaram
espaços dialógicos que ultrapassaram os limites dos salões requintados onde
ocorriam as reuniões.

Se as relações entre as Damas e os médicos à princípio possa nos dar a


impressão de submissão do feminino pelo masculino, as próprias mulheres
conseguem escapar, paulatinamente a esta lógica, ao constituir projetos que,
mesmo não sendo alheios aos princípios filantrópicos positivados, as colocam

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como protagonistas na luta feminina para as políticas públicas, proteção da


mulher e igualdade de direitos.

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MULHERES QUINHENTISTAS EM CENA: REPRESENTAÇÕES


FEMININAS NO TEATRO DE ANTONIO RIBEIRO CHIADO

Vanessa Gonçalves Bittencourt de Souza*

Ao longo do século XVI, o teatro assumiu um lugar de destaque nas


celebrações portuguesas, vindo a animar festas, serões e procissões. Mais do que
65
espetáculo e entretenimento, é importante compreender o teatro quinhentista
como um importante veículo de transmissão de valores na medida em que
produzia sátiras sobre determinados grupos sociais e fixava modelos de conduta
ideal a partir da construção de personagens tipo ou personagens estereotipados.
Entre os dramaturgos quinhentistas que exploraram o recurso aos tipos, Antonio
Ribeiro Chiado destaca-se sobretudo por sua galeria de mulheres, composta por
perfis como a viúva, a escrava, esposas e filhas envolvidas em intrigas
casamenteiras. Assim sendo, o objetivo deste trabalho é analisar as
representações femininas no teatro de Chiado.

Nascido na cidade de Évora na década de 1520 e vindo a falecer em


Lisboa no ano de 1591, Antonio Ribeiro Chiado fora um frade franciscano
interessado em trovas e imitações. Teria se ausentado do cenóbio por alguns anos
para se unir a um grupo de foliões e artistas. Reconhecidamente indisciplinado,
teve seus votos anulados, mas manteve as vestes clericais ao circular pelas ruas
de Lisboa, onde fez fama de “dizidor” (poeta, improvisador) e “bargante”
(libertino). Pelo menos uma de suas peças, o Auto da Natural Invenção, teria
sido apresentada na corte de D. João III entre 1549 e 1554.

A produção de Chiado é marcada pela sátira, ridicularizando clérigos,


fidalgos, mulheres e escravos. Chiado demonstra estar atento às dinâmicas da
corte, às transformações sociais no contexto da expansão ultramarina, aos
desvios do clero e aos detalhes mais expressivos da vida cotidiana na sociedade
portuguesa, incluindo os modos de falar, vestir e comer e os conflitos e a
hierarquia no ambiente doméstico. Seus escritos compreendem trovas e cartas

*
UFF

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satíricas de fundo moralista e religioso, algumas paródias de profecias e ao


menos cinco peças de teatro produzidas entre as décadas de 1540 e 1570, a saber,
o Auto da Natural Invenção, o Auto das Regateiras, a Prática de Oito Figuras,
a Prática dos Compadres e o Auto de Gonçalo Chambão. Com exceção da
última peça citada, cujo texto permanece desaparecido, os textos das peças de
Chiado foram impressos e preservados em bibliotecas particulares e na
Biblioteca Nacional de Lisboa.
66
No Auto da Natural Invenção, o fidalgo Gomes da Rocha contrata uma
companhia de teatro para uma apresentação em sua casa. Uma série de conflitos
entre o dono da casa, os integrantes da companhia e os convidados dificulta o
andamento da apresentação, fazendo desta peça o melhor exemplo do tipo de
teatro produzido por Chiado: uma série de cenas justapostas com diálogos nem
sempre muito bem conectados. Na peça Prática de Oito Figuras uma ceia na
casa do fidalgo Ambrosio da Gama reúne um pequeno grupo de pessoas que
conversam sobre as decisões régias, fé, pecado e casamento. Não há nenhuma
personagem feminina nessa peça, mas as mulheres são mencionadas em cantigas
do personagem Ayres Galvão e nas queixas de maridos insatisfeitos. Na peça
Prática dos Compadres, por sua vez, o desaparecimento de uma capa é o estopim
de uma séria discussão entre o casal Vasco e Brasia. O Auto das Regateiras, por
fim, tem como tema central os preparativos para um casamento.

É importante observar que, em princípios da Época Moderna, o teatro


dialogava com uma literatura moralista interessada em fixar e enaltecer papéis
femininos desejáveis para jovens solteiras, esposas e viúvas. Sobre as mulheres
que não se encaixavam nesses perfis também foram produzidos textos hoje
entendidos como misóginos na medida em que expressam uma opinião negativa
sobre o feminino. Em outras palavras, era uma constante escrever sobre o tipo
de mulher que se desejava conter (FARGE; DAVIS, 1994, p. 9). Contudo, o
medievalista Howard Bloch (1995, p. 13) observa que todas as tentativas de
enquadrar mulheres em categorias, sejam elas positivas ou negativas, podem ser
entendidas como misóginas. O conceito alargado de misoginia proposto por
Bloch é viável na análise das complexas representações femininas elaboradas

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por Chiado, uma vez que as mesmas oscilam entre a valorização e a depreciação
das mulheres portuguesas. Conforme observa Eric Nicholson (1994, p. 341), “o
teatro moderno colocava a mulher em primeiro plano, em todos os seus aspectos:
negativos, positivos e frequentemente ambivalentes”.

A fixação de papéis ideais se relaciona com a compreensão do gênero


enquanto uma construção cultural e enquanto performance. Segundo a filósofa
Judith Butler (2015, p. 69):
67
O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de
atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora
altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a
aparência de uma substância, de uma classe natural de ser.

Ainda de acordo com Butler (2002, p. 325), “as normas de gênero


requerem a incorporação de certos ideais de feminilidade e masculinidade”.
Nesse sentido, é importante destacar que Chiado dialogou com alguns ideais de
feminilidade e masculinidade vigentes em princípios da Época Moderna. A
construção dos seus personagens masculinos, por exemplo, explorou duas
concepções de homem ideal: o enamorado que assume uma posição submissa no
amor cortês e o homem que tutela mulheres, seja como marido ou como pai.

Entre os séculos XI e XIV, o amor cortês expressava um amor


impossível entre um homem apaixonado e devotado e uma mulher idealizada e
inalcançável, geralmente casada. Nesse contexto, a figura feminina é uma
mulher-pretexto cuja existência depende do louvor do poeta (DESAIVE, 1994,
p. 302). Na peça Prática de Oito Figuras, o trovador Ayres Galvão decide
compartilhar com os personagens Capelão e Faria uma cantiga dedicada a uma
mulher amada:
Senhora, pois sou captivo
d'esses olhos com que olhaes,
matae-me, pois começaes.
[...]
Os males, que d'improviso
vem ao triste coração,
esses causam perdição,
que os outros são tudo riso.
Senhora, fallo de siso:
Esses olhos com que olhaes,
prendeis, feris, e mataes”

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(CHIADO apud PIMENTEL, 1889, p.34)

A cantiga de Ayres Galvão caracteriza a mulher amada como sua


senhora, sendo o enamorado um cativo vitimado pelo perigoso olhar da mulher
amada. Os mesmos elementos podem ser encontrados nas trovas enviadas pelo
namorado da jovem Isabel na peça Prática dos Compadres:
Senhora, minha senhora.
senhora, cujo captivo 68
fui e sam,
com seus olhos, matadora,
me tem morto, sendo vivo,
com paixão

(CHIADO apud PIMENTEL, 1889, p. 114)

Sendo um gênero que confrontava os padrões morais do mundo cristão


feudal, o amor cortês baseava-se num desequilíbrio entre o masculino e o
feminino, pendendo a balança para uma aparente valorização da figura feminina.
Desse modo, é possível perceber que parte da construção do masculino no teatro
de Chiado tem como elementos a servidão ao amor e à dama de seu interesse.
Neste caso, a promoção da figura feminina condena o enamorado ao sofrimento,
considerando que as cantigas de amor ibéricas desenvolveram uma complexa
associação entre amor, sofrimento e morte. O amor cortês galego português que
teria inspirado o teatro de Chiado explorava intensamente as paixões, os ciúmes
e a interferência da família da amada (NUNES, 1978).

Teresa Rodrigues (1997, p. 113) afirma que “nas classes remediadas e


nobres, o costume ditava que o namoro se fizesse por carta e à distância”, uma
vez que abordagens mais diretas poderiam comprometer a honra da mulher
desejada. Ainda assim, o Namorado de Isabel em Prática dos Compadres a
surpreende aparecendo em sua casa. Ao perceber a aproximação de seu pai,
Isabel finge não conhecer o Namorado. Vasco, o pai, repreende Isabel pela
conversa imprópria com um homem desconhecido. Nesse contexto, é importante
frisar que a principal preocupação paterna é a castidade, que tornava possível a
negociação de um bom casamento e afastava manchas sobre a legitimidade dos
seus netos. Em síntese, a desonra de uma filha também representava o fracasso

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da figura paterna em termos de vigilância (KING, 1994, p. 40). Dessa forma, a


fala de Vasco resulta de um interessante jogo entre o sangue que indica a perda
da virgindade e a “ferida” da desonra paterna:
[...] a filha que má sae,
e tem a virtude na borra,
ainda que o sangue lhe corra,
a ferida é de seu pae.
Porque o mundo está em estilo:
Seu pae tem culpa n'aquillo...
Se elle a castigara... 69
De modo que abrange a vara
ao pae, se quer resistil-o”

(CHIADO apud PIMENTEL, 1889, p.120)

O discurso de Vasco é tributário de uma moralidade cristã que defendia


que os homens precisavam exercer custódia sobre as mulheres. A principal
justificativa para essa custódia seria uma suposta debilidade feminina
(CASAGRANDE, 1994, p. 122) em termos de fé e tomada de decisões. Vale
observar que o discurso sobre a debilidade feminina coincidia ainda com a
identificação da mulher como um agente de satã (DELUMEAU, 1989, p. 310).
O teatro de Chiado também reproduz a associação entre a mulher e o demoníaco,
como indica a fala do personagem Vasco em Prática dos Compadres:
Se os homens são anfarismos,
as mulheres Satanazas,
e se elas tivessem azas,
voariam aos abysmos

(CHIADO apud PIMENTEL, 1889, p. 128)

Tanto a defesa da debilidade quanto a defesa do caráter demoníaco da


figura feminina são baseados no pressuposto de que uma mulher sem tutela
representa um risco para si mesma e para os homens conectados a ela. Nesse
sentido, a insatisfação dos maridos com os gastos das esposas surge com
destaque no teatro de Chiado, conforme expressa a fala do personagem Lopo em
Prática de Oito Figuras:
Senhor, não é para crer;
é muito forte contenda
gastardes vossa fazenda
no que quer vossa mulher.

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E, ainda para mais magua,


são remás de contentar,
Alexandras em gastar,
e demandam ainda mais água

(CHIADO apud PIMENTEL, 1889, p. 42)

De certa maneira, essa fala de Lopo não apenas reafirma o topos da


“mulher gastadeira” que dilapida os bens do marido, como também repreende o
marido que é envolvido pelos apelos e desejos da esposa. Nesse sentido, é 70
importante observar que a produção de Chiado está repleta de conselhos aos
maridos. Na peça Prática dos Compadres, por exemplo, é possível encontrar
duas regras para um bom casamento. A primeira regra é apresentada pelo
personagem Compadre, homem relativamente ponderado e preocupado com o
conflito entre Vasco e sua esposa Brasia. Para que o casal possa conviver em
harmonia, o Compadre sugere: “se queres viver em paz, tua porta cerrarás”, “não
te ouça ninguém na rua o que disseres”, “guar'-te de conversações suspeitosas,
arrenegadas, damnosas” (CHIADO apud PIMENTEL, 1889). Em outras
palavras, o Compadre recomenda evitar fofocas e interferências nocivas ao
casamento. Em contraposição, Vasco acredita que a harmonia no casamento
depende do controle do marido sobre a esposa, uma figura que não seria digna
de confiança: “tomarás tua mulher com bom pau, em que te tenham por mau”,
“não te dê nada de nada, dar-lhe-has infinda pancada”, “nunca tomes seu
conselho”, “não na deixes sahir fora, senão com tua licença” (CHIADO apud
PIMENTEL, 1889). A base do discurso de Vasco é a necessidade de garantir a
correção e obediência da esposa a partir do exercício da violência.

A análise sobre a forma de falar sobre as mulheres é parte importante


da tentativa de compreender as representações femininas no teatro de Chiado,
considerando que esses discursos misóginos se relacionam com normas que
definem papéis e hierarquias sociais. O universo de representações femininas no
teatro de Chiado envolve a observação de aspectos importantes para a
organização da vida cotidiana de mulheres na sociedade portuguesa quinhentista,
tais como o casamento, a maternidade e o trabalho. Nesse sentido, é importante
avaliar de que forma as personagens femininas elaboradas por Chiado se

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relacionam com ideais de feminilidade baseados na castidade, na obediência, na


submissão e na dedicação ao lar.

Em Prática dos Compadres, Chiado explora sob uma perspectiva


cômica o tema da briga de casal, conferindo atenção às trocas de ofensas e
acusações, ao marido que ameaça agredir a esposa, ao escândalo que atrai a
atenção dos que passavam por perto. No entanto, a personagem Brasia, a esposa
ameaçada, destaca-se por conseguir ridicularizar e enfrentar o marido,
71
desferindo suas próprias ameaças:
Sou muito forte e isenta,
e não sou captiva, não:
nem m'haveis de pôr a mão”
[..]
“Eu me irei aos pés d'El-Rei
e lhe direi
cousas que não s'escreveram.
[...]
Eu darei apontamentos,
que vos lancem no Brazil

(CHIADO apud PIMENTEL, 1889, p. 103)

O que Brasia desejava, portanto, era ver o marido receber a sentença de


degredo para o Brasil. Brasia não é a única esposa agredida a se rebelar contra o
marido na peça Prática dos Compadres. Ao ouvir rumores sobre a discussão
entre Brasia e Vasco, a personagem Comadre resolve fazer uma visita para
demonstrar sua preocupação e queixa-ser do próprio marido:
[...] casei com uma má ventura,
que não tem remédio nem cura.
E' um leão para mim.
Suspeitoso,
sotrancão, malicioso,
a mesma peçonha mera,
um drago e besta fera!

(CHIADO apud PIMENTEL, 1889, p. 122)

Por fim, a Comadre relata um diálogo com uma pessoa que teria
prometido uma poção para “amansar” o seu marido:
Quero amansar um imigo,
que a isso venho cá,
e conto-lh'o pé-á-pá,

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que a meu confessor não digo.


[...]
Diz: Porventura quereis
uma boa beberagem,
com que falle outra linguagem?

(CHIADO apud PIMENTEL, 1889, p. 123)

O Index Expurgatório de 1624 determinou a eliminação do trecho da


peça que apresentava a mencionada poção, uma vez que a referência às
72
superstições populares e práticas de feitiçaria era proibida. As mulheres
predominam entre os processados por feitiçaria em Portugal no século XVI
(BETHENCOURT, 2004, p. 206), acusadas de crimes que envolviam a proteção
da casa, a manipulação de remédios e os relacionamentos amorosos. Como é
possível perceber, Brasia e a Comadre não se encaixam no ideal de feminilidade
da boa esposa submissa. Ao contrário, esboçam tentativas de enfrentamento
contra os maridos por meio de ameaças e do recurso à feitiçaria. Se essa
caracterização confere maior possibilidade de ação às mulheres e torna ainda
mais complexas e variadas as representações sobre a esposa no teatro
quinhentista, é inegável que também indica que mulheres que não se enquadram
nos perfis ideais serão alvo da sátira misógina de dramaturgos como Antonio
Ribeiro Chiado, que valorizam sobretudo a hierarquia no casamento. A defesa
da hierarquia que fixava o homem como cabeça de casal mobilizou pregadores
medievais que entendiam que a manutenção da ordem social também dependia
da manutenção da hierarquia entre homens e mulheres no casamento. Desse
modo, nas Parvoices que acontecem muitas vezes, obra satírica que demarcava
comportamentos inadequados ou nocivos, Chiado recomenda ao marido que
assuma a liderança em sua casa:
Homem que consente que sua mulher mande mais em casa
que elle.
Parvoíce.
Refrão: Mal vae a casa onde a roca manda a espada

(CHIADO apud PIMENTEL, 1889, p. 152-153)

No trecho destacado, observa-se que a roca alude à figura feminina,


enquanto a espada representa a figura masculina. Segundo Chiado, uma casa

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comandada por uma mulher não poderia funcionar bem. Esta observação é
interessante considerando que no século XVI um quinto dos lares lisboetas era
liderado por mulheres, sendo as viúvas cerca de 80% delas (RODRIGUES, 1997,
p. 119).

Além do destaque conferido às esposas, a relação entre mãe e filha


também é parte importante das peças Auto das Regateiras, Prática dos
Compadres e Auto da Natural Invenção. No Auto das Regateiras, a personagem
73
Velha acusa a filha Beatriz de não ser uma mulher virtuosa:
Tu, preguiçosa,
dorminhoca, mentirosa,
gulosa, mexeriqueira,
rapariga enliçadeira,
porque não és virtuosa?

(CHIADO apud PIMENTEL, 1889, p. 65)

A partir dessa fala é possível perceber que a mulher virtuosa seria


aquela que se dedica ao trabalho, que é moderada no comer e que evita mentiras
e fofocas. A jovem Beatriz, por sua vez, refuta as ofensas da mãe e garante ser
uma boa mulher:
Sou muito boa molher,
e mau grado a quem tiver
melhor fama

(CHIADO apud PIMENTEL, 1889, p. 65)

A discussão entre mãe e filha também está presente em Prática dos


Compadres. Assim como no Auto das Regateiras, Brasia critica a filha Isabel
por ser preguiçosa e gulosa:
Moça, vê quem está batendo,
quem anda lá n'essa porta.
Tu és viva, ou andas morta!
Abala-te! vae correndo!
As portas escancaradas!
[...]
Descansa d'ella sobr'ella,
o comer sempre anda à vela,
mas os feitos, que feitos são
da minha fresca donzella?

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Ed. Anpuh-Rio
Atas do II Encontro Nacional do GT Estudos de Gênero
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(CHIADO apud PIMENTEL, 1889, p. 98)

Isabel não tenta rebater as acusações, mas ameaça fugir de casa diante
das queixas da mãe:
Não cuidem que sou de ferro,
que algura'hora farei mingua!

(CHIADO apud PIMENTEL, 1889, p. 108)

A preocupação com o destino das filhas ocupa as mães no teatro de 74

Chiado. A conduta da filha na Época Moderna poderia lançar manchas não


apenas sobre o controle exercido pela figura paterna, como também sobre a
virtude da mãe, uma vez que prevalecia a ideia de que a moralidade feminina
fosse uma herança materna (KING, 1994, p.175). No Auto da Natural Invenção,
outra personagem de nome Velha entra em conflito com um Escudeiro
interessado em casar com sua filha. O Escudeiro faz uma serenata para a amada,
mas é recebido aos gritos pela Velha. Diante da proposta de casamento para a
filha, a Velha responde apenas “melhor a espero empregar” (CHIADO apud
SABUGOSA, 1917, p. 103) demonstrando o desejo de promover um casamento
mais vantajoso, uma vez que o Escudeiro no teatro quinhentista representava um
tipo de homem decadente que vivia de aparências.

Se a recusa da Velha é um dos vários temas da vida familiar abordados


por Chiado no Auto da Natural Invenção, os esforços da Velha de Auto das
Regateiras para realizar um bom casamento para a filha Beatriz constituem o
tema central da peça. Segundo Olwen Hufton (1994, p. 47), na Europa Moderna
“o casamento era entendido como uma instituição destinada a proporcionar
apoio e sustento a ambas as partes e uma percepção clara dos imperativos
econômicos era fundamental à sobrevivência”. Nesse sentido, a Velha tem
consciência da importância de avaliar os bens do pretendente de Beatriz,
observando que a mulher se unia às posses do marido:
Quem casa com tal como elle,
não casa com sua pelle;
mas casa c'o qu'elle tem

(CHIADO apud PIMENTEL, 1889, p. 62)

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Desse modo, a Velha recebe a visita de Pero Vaz, pai do noivo, para
discutir o que cada parte somará à união. Os bens do noivo incluem itens como
redes, cordas, remos e vela, materiais necessários ao ofício de pescador. Beatriz,
por seu lado, possui um enxoval composto por itens como colchões, cobertores,
castiçais, bacias, lençóis de linho, além de um “olival em São Bento” e um
“pinhal n’Arrentela”. Assim como no Auto da Natural Invenção, não há aqui um
marido ou pai para conduzir as negociações a favor de Beatriz, sendo a figura da
75
velha viúva a responsável pela tomada de decisões na vida familiar. O Sumario
e[m] que breuemente se contem alguas cousas assi ecclesiasticas como
seculares que ha na cidade de Lisboa de Cristóvão Rodrigues de Oliveira (1554)
indicava o número de 1635 viúvas na cidade de Lisboa até a década de 1550. O
título XXXII do livro III das Ordenações do Reino garantia a posição de
liderança familiar às mulheres em caso de viuvez: “e morto o marido a mulher
fica em posse e cabeça de casal, se com ele ao tempo de sua morte vivia em casa
tida e mantida como marido e mulher” (ORDENAÇÕES MANUELINAS,
1984). Porém, se comprovada a má administração dos bens de uma viúva, o
mesmo código jurídico indicava que os bens deveriam ser retirados de sua posse.
Vale observar que a Velha viúva era um dos tipos do teatro quinhentista que
melhor representavam a crítica a uma suposta moral corrompida e o apreço pelos
costumes numa sociedade tão impactada pelas transformações sociais e
econômicas resultantes sobretudo do processo de expansão ultramarina. Com
seu sarcasmo e maledicência, a Velha do Auto das Regateiras se enquadra no
perfil da mulher que se preocupa com essas transformações, conforme explicita
na seguinte fala:
Assim como é cousa forte
deixar d'aquentar o lume,
assim o mudar costume
é um parelho de morte

(CHIADO apud PIMENTEL, 1889, p. 61)

A boa moral, sobretudo no que diz respeito à conduta feminina, é


salientada no teatro de Chiado por meio das críticas às mulheres que traem os
maridos e do incentivo ao trabalho feminino no ambiente doméstico. Naquele

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momento, a literatura moralista argumentava que o ócio estimulava ideias


pecaminosas. Na prática, porém, o incentivo ao trabalho tinha por objetivo
manter mulheres sob controle e disciplina. Com exceção dos moços que servem
os fidalgos de Prática de Oito Figuras e dos integrantes da companhia teatral de
Auto da Natural Invenção, a maior parte dos personagens masculinos elaborados
por Chiado é ociosa, dedicando-se apenas aos jogos, às comidas e ao vinho. Em
contrapartida, nas peças Auto das Regateiras e Prática dos Compadres as
76
ocupações femininas estão em evidência.

Sendo o ofício de fiar um atributo feminino ao longo da Idade Média e


da Idade Moderna, Chiado reconstitui de forma detalhada essa dimensão da
rotina das mulheres portuguesas, tendo em vista que o trabalho resultante da
associação entre mãe e filha constituía uma importante fonte de renda nos lares
em que não havia uma figura masculina. Uma fala da Velha do Auto das
Regateiras explicita a divisão das tarefas: enquanto a Velha se ocupava da
dobadoira ou dobadoura (máquina para trabalhar fios), Beatriz deveria se
encarregar da meada (porção de fios):
Traze-m'aqui a dobadoira,
e um tanho em que m'assente;
acabae, colher mexedoira,
e ponde-lhe lá uma meada
que está dentro no cabaz,
se inda estiver em paz;
que aqui não está quedo nada,
ao rabear que ella faz!

(CHIADO apud PIMENTEL, 1889, p. 52)

Em Prática dos Compadres, por sua vez, Isabel e a jovem Silvestra


conversam sobre suas habilidades na costura:
Isabel— Mana, sabeis ponto-chão?
Silvestra — Ponto-chão, e de feição,
pesponto e cadenetas,
torcido e de cordão.
Isabel — E sabeis ponto cruzado?
Silvestra —E lumilho, e ponto real

(CHIADO apud PIMENTEL, 1889, p. 110-111)

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No século XVI mais de 9000 mulheres eram descritas como


trabalhadeiras em Lisboa (SILVA, 1982, p. 153), entre lavrandeiras, parteiras e
vendedoras de gêneros alimentícios diversos. Porém, era o setor da produção
têxtil o responsável por atrair e ocupar mais mulheres. O já mencionado sumário
de Cristóvão Rodrigues de Oliveira (1554) registrava 1066 alfaiatas, 124
tecedeiras, 815 fiandeiras e 30 mulheres que faziam redes de pescar na primeira
metade do século XVI. Essas mulheres poderiam trabalhar com materiais mais
77
refinados, como a seda, brocado, o veludo e o cetim, ou com materiais mais
baratos, como algodão, linho, fustão e lã (BOMFIM, 2008).

As tarefas domésticas também ocupam as personagens femininas de


Chiado. Queixando-se das exigências da mãe, Beatriz lista as tarefas que
costuma executar:
Eu lavar e esfregar,
varrer e esfolinhar,
e por dae-me cá aquella palha!

(CHIADO apud PIMENTEL, 1889, p. 52)

Segundo Teresa Rodrigues (1997, p. 121), as mulheres portuguesas


realizavam muitas de suas tarefas na porta de casa, sendo possível assim exercer
o controle moral da comunidade. Outras tarefas exigiam a circulação de
mulheres pela cidade, mais especificamente pelas fontes ou chafariz, pelo
moinho e pelo forno, locais coletivos femininos na Lisboa quinhentista
(RODRIGUES, 1997, p. 121). Nesse sentido, a escrava Luzia do Auto das
Regateiras é uma das poucas personagens femininas do teatro de Chiado
circulando pela cidade. Já no início da peça, a Velha manda a escrava
interromper suas orações matinais para ir ao chafariz:
Que madrugada d' Alfama,
cadella! E em cu na cama
vos pondes vós a rezar!
Não virá por ti má trama?
[...]
Cadella, tomae essa talha,
e ide logo ao chafariz,
e levae comvosco o assento

(CHIADO apud PIMENTEL, 1889, p. 51)

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Em resposta, Luzia lança uma provocação ao acusar a Velha de ser


judia, uma acusação perigosa considerando que a Inquisição portuguesa
condenava práticas judaizantes:
A mi catiba ro judeu
Nam querê ca mim razá

(CHIADO apud PIMENTEL, 1889, p. 106)

O negro e a negra foram explorados no teatro quinhentista sob uma 78


perspectiva cômica. O tom cômico de Luzia é produzido pelo conflito com sua
senhora, que desdenha de sua fé, e pelo uso da língua de preto, uma estilização
da linguagem que reforçava não apenas a sua origem estrangeira como também
uma condição de inferioridade na sociedade portuguesa (ALKMIM, 2008, p.
251).

Luzia representava as “negras do pote”, como ficaram conhecidas as


negras que lavavam roupa, vendiam água e despejavam os dejetos das casas na
Lisboa quinhentista. Mas Luzia não demonstra eficiência, retornando do chafariz
com um pote quebrado, inspirando a revolta de sua senhora:
Já me quebraste uma talha,
quatro potes, um asado,
tudo me tens já quebrado!
Já não tenho nemmigalha,
e sofrer-te é meu pecado

(CHIADO apud PIMENTEL, 1889, p. 136-137)

Luzia é uma escrava atrapalhada, constantemente ameaçada e insultada


por sua senhora. A construção dessa personagem não está condicionada aos
mesmos elementos que caracterizam as demais mulheres do teatro de Chiado,
tais como o casamento ou a preservação das virtudes.

Com base no que foi exposto, é possível perceber que as personagens


femininas do teatro de Antonio Ribeiro Chiado entram em confronto com os
ideais de feminilidade vigentes na medida em que assumem a liderança familiar,
desafiam seus maridos e namoram às escondidas. Porém, é importante observar
que a tônica misógina e satírica que ridiculariza a posição dessas personagens
nas esferas do casamento, da maternidade e do trabalho reafirma a expectativa

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de que as mulheres da sociedade portuguesa quinhentista conservem a castidade,


obedeçam aos pais e maridos e evitem o ócio.

REFERÊNCIAS

ALKMIM, Tania. Falas e cores: um estudo sobre o português de negros e


escravos no Brasil do século XIX. In: L. do Carmo & I. S. Lima (orgs.). História
social da língua nacional. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2008, p. 247- 79

264.

BETHENCOURT, Francisco. O Imaginário da Magia - feiticeiras, adivinhos e


curandeiros em Portugal no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras,
2004.

BOMFIM, Eneida. O traje e a aparência nos autos de Gil Vicente. Rio de


Janeiro: Ed.PUC-Rio, 2008.

BUTLER, Judith. Cuerpos que importan: sobre los límites materiales y


discursivos del "sexo". Buenos Aires: Paidós, 2002.

______________. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.


Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

CASAGRANDE, Carla. A mulher sob custódia. In: KLAPISCH-ZUBER,


Christiane (Org). História das mulheres no ocidente: Do Renascimento à Idade
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uma explicação prévia pelo Conde de Sabugosa, Lisboa: Livraria Ferreira, 1917.

DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente: 1300-1800; Uma Cidade


Citiada. Trad. Maria Lucia Machado/ Trad. das notas Heloisa Jahn. São Paulo:
Companhia das letras, 1989.

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FARGE, Arlette; DAVIS, Natalie Zemon. História das Mulheres no Ocidente:


Do Renascimento à Idade Moderna, Porto, Edições Afrontamento, 1994, vol.3.

HUFTON, Olwen. Mulheres, trabalho e família. In: FARGE, Arlette; DAVIS,


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Zemon (Org.). História das mulheres no ocidente: Do Renascimento à Idade


Moderna.Porto: Edições Afrontamento, 1994, vol. 3, p. 23-69.

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Homem Renascentista. Lisboa: Editorial Presença, 1994, p. 191-227.

_________________. A mulher do Renascimento. Lisboa: Presença, 1994.

NICHOLSON, Eric A. As mulheres e o teatro, 1500-1800, Imagens e


representações. In: FARGE, Arlette; DAVIS, Natalie Zemon (Org.). História
das mulheres no ocidente: Do Renascimento à Idade Moderna. Porto: Edições
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NUNES, Maria Arminda Zaluar. O Cancioneiro popular em Portugal. Lisboa:


ICALP, 1978.

OLIVEIRA, Cristóvão Rodrigues de, fl. 15--Sumario e[m] que breuemente se


contem alguas cousas assi ecclesiasticas como seculares que ha na cidade de
Lisboa / [por Cristouão Rodriguez Doliueira]. - Em Lixboa : em casa de
Germão Galharde: acharssea em casa de Gil Marinho, liureiro do infante dom
Luis no terreiro do Paço onde sua A. mora, depois de 1554. Disponível em <
http://purl.pt/14435>. Acesso em: 2 de abril de 2015.

Ordenações Manuelinas, livro III, título XXXII: Que o marido nom possa
litiguar em Juizo sobre bens de raiz sem ortorgua de sua molher. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1984.

____________________, livro IV, título X: Das viuvas que emalheam, e


desbaratam seus bens como nom devem . Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1984.

PIMENTEL, Alberto. Obras do Poeta Chiado. Lisboa: Empreza da Historia


de Portugal, 1889.

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Acesso em: 6 de abril de 2013.

81

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SUBVERSÕES DO PECADO: DESEJO E SEDUÇÃO NAS MINAS


SETECENTISTAS

Lisa Batista de Oliveira*

No século XVIII, as Minas Gerais foram submetidas ao controle das


devassas eclesiásticas, que puniam desvios morais em relação aos preceitos da
82
Igreja Católica. Visitas diocesanas que recebiam denúncias dos moradores sobre
crimes contra a fé e delitos sexuais, as devassas incentivavam a maledicência de
compadres e amigos, alterando as relações comunitárias e rompendo seus
vínculos de solidariedade. As devassas desfaziam amizades, rompiam laços de
vizinhança (VAINFAS, 1989, p. 222-226), separavam amantes. Pretendia-se
impor vigilância sobre a vida íntima dos moradores (FURTADO, 2003, p. 51) e
combater as transgressões nas Minas, marcadas pela recorrência de “crimes”
contra o sacramento cristão do matrimônio.

A difusão do sacramento do matrimônio era elemento essencial para


disseminar o cristianismo e impor o casamento cristão como espaço legítimo do
desejo (FIGUEIREDO; SOUSA, 1987). As devassas integravam um processo
de aculturação cristã pautado na repressão violenta das uniões ilícitas, que
transgrediam o sacramento do matrimônio. Uma das principais metas da Contra-
Reforma foi a difusão do sacramento matrimonial efetivada através da
criminalização das sexualidades desviantes e das religiosidades heterodoxas,
visando à destruição das solidariedades comunitárias (VAINFAS, 1989). Com o
Concílio de Trento (1545-1563), o concubinato foi condenado. A imposição do
casamento católico como única forma de acesso a relações eróticas ocorreu
através da afirmação do concubinato como transgressão. As devassas
procuravam ordenar as uniões sexuais tendo como base o caráter lícito do ato de
conjunção carnal e tinham como objetivo dividir a comunidade, submetendo-a
ao poder eclesiástico através do distanciamento dos “pecadores”, condenados a

*
UFF.

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penas pecuniárias, prisões, excomunhões e separados da vivência social


(LONDOÑO, 1988).

Ao estigmatizar as práticas sexuais ilícitas, a Igreja procurava o controle


do desejo. A doutrina cristã direciona a concepção de pecado no sentido da
procura das intenções (LIMA, 1986, p.78) e o momento mais importante é
deslocado do ato sexual em si para a inquietação do desejo. Com o Concílio de
Trento, a direção espiritual impõe regras de exame de si mesmo ao atribuir cada
83
vez mais importância na confissão a todos os prazeres e sensações ligados às
insinuações da “carne”, que torna-se a origem de todos os pecados. O
catolicismo tridentino marca uma cisão importante naquilo que Michel Foucault
chama de “tecnologia cristã da carne”, pois introduz a “obsessão pela decifração
da verdade de nossos desejos”. Inicia-se o processo de constituição da
sexualidade moderna, formada em grande medida com a pastoral cristã da
“carne” (DREYFUS; RABINOW, 1995a, p. 280; FOUCAULT, 1985), que
consiste na criação do sexo como essência identitária, instituindo-o em relações
de poder e transformando-o no locus de produção da verdade sobre os corpos e
as subjetividades (SWAIN, 2001, p. 91).

A hermenêutica cristã de si centra-se na decifração dos desejos da


“carne” (DREYFUS; RABINOW, 1995b). Para a ética cristã é preciso buscar
uma verdade sobre si contida no desejo que conduz à renúncia de si e dos
prazeres (FOUCAULT, 1988). O que estava em causa era o caráter permitido ou
proibido das relações carnais, estabelecido pela lei divina, que volta-se nesse
contexto histórico para a questão da ampliação da população mestiça decorrente
dos relacionamentos sexuais ilícitos, pois as relações amorosas entre homens
brancos livres com escravas e libertas chegaram a corresponder a 76,5 dos casos
de concubinato sentenciados nas devassas (LUNA; COSTA, 1982, p. 10). As
devassas eram instrumentos de uma política religiosa que visava à normatização
social das uniões livres (FIGUEIREDO, 1997), pois a mestiçagem advinda das
relações ilícitas era uma ameaça ao caráter estamental da ordem patriarcal
escravista. Contudo, as devassas revelam a instabilidade das uniões
sacramentadas nas Minas, espaço histórico onde práticas sexuais

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marginalizadas, excluídas pelo discurso cristão, subsistiram. Nas Minas


predominaram formas heterodoxas de organização familiar e de uniões sexuais
como o concubinato e as relações efêmeras (FURTADO, 2003, p. 267). Estáveis
ou passageiras, as relações ilícitas distanciavam-se da união sacralizada pelos
laços do matrimônio (LOPES, 1996, p. 1).

As atividades auríferas e comerciais trouxeram para as Minas um fluxo


populacional diversificado, formado por portugueses, africanos, indígenas e
84
mestiços. A interação de pessoas de tradições culturais heterogêneas constituiu
uma sociedade plural e diferenciada, caracterizada por complexas formas de
organização familiar resultantes de uma multiplicidade de relacionamentos
conjugais alternativos ao comportamento moral ditado pela Igreja Católica pós-
tridentina, que tentava controlar, sob os valores cristãos e patriarcais, práticas
culturais distintas e específicas. Atentar para a historicidade desse processo
significa problematizar um contexto histórico propício para a mestiçagem, capaz
de engendrar uniões conjugais informais decorrentes de uma intensa convivência
entre indivíduos de culturas variadas. As uniões multirraciais transformaram-se
em costumes em um espaço cultural favorável para as relações entre homens e
mulheres “com condições sociais e matizes de peles diferentes”, que optaram
por viver solteiros, estabelecendo uniões livres ou ligações efêmeras, que
“subverteram, do ponto de vista moral e normativo, as tradições de uma
sociedade escravocrata, estamental e baseada em privilégios”. Os homens
brancos livres, portugueses ou luso-brasileiros, preponderaram entre os
concubinos sentenciados nas devassas, perfazendo 92% dos casos na Comarca
do Rio das Velhas entre 1727 e 1756. Entre as mulheres mancebas
predominaram as libertas africanas, crioulas e mestiças com percentual de 58%.
Em seguida, vinham as cativas africanas e crioulas com 26,6% (NETTO, 2008).
Negras e mulatas forras, mães solteiras, chefes de seus fogos, com seus filhos
bastardos, foram as principais parceiras sexuais da população masculina mineira
(PAIVA, 2009, p. 158). Assim, busca-se inserir as uniões consensuais e as
ligações esporádicas em um intenso processo histórico-cultural de mestiçagem
decorrente de relações informais de gênero, pois nas Minas Gerais do século
XVIII foram construídas alternativas de conjugalidade marcadas pela interação

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cultural e sexual de homens e mulheres de etnias distintas. Entretanto, os


encontros amorosos pluriétnicos, fossem fugazes ou duradouros, eram
permeados por relações afetivas hierarquizadas, fortemente sexualizadas
(VAINFAS, 1997, p. 229).

Negras e mestiças eram suspeitas de prostituição e maus costumes


(DIAS, 1995, p. 93), o que revela o ideal de castidade restrito às brancas. Um
código sexual cristão e patriarcal, no qual relações escravistas estendiam-se às
85
relações de gênero, considerava cativas e forras mulheres lascivas, que se
entregavam aos prazeres sensuais devido à propensão ao pecado capital da
luxúria. A proteção patriarcal reservada às brancas de elite, que teoricamente se
enquadravam nos ideais de pureza feminina, tinha como avesso a aceitação das
relações ilícitas com negras e mestiças, mulheres “passíveis de fornicação”,
desejadas, mas degradadas pelo estigma da cor e da escravidão (VAINFAS,
1989, p. 64-65). Mas a submissão feminina decorrente dos “tratos ilícitos” foi
usada como forma de se marcar resistência em um universo cultural
extremamente hierarquizado. Ao se relacionarem intimamente com homens
brancos, escravas e libertas subverteram os padrões hierárquicos da sociedade
escravista das Minas do século XVIII, deslocando as relações de dominação e
criando poderes informais femininos definidos como contrapoderes ilícitos
fundamentados na sedução que proporcionavam uma existência mais livre.
Mulheres “desonradas”, por meio de uma inserção específica em relações
patriarcais de poder, recorreram às representações de um discurso dominante que
as consideravam moralmente degradadas e através da sedução lutaram contra as
limitações impostas por uma sociedade misógina. Relações de poder cristãs,
escravistas e patriarcais permearam as relações de gênero conduzindo à
submissão sexual das “mal-procedidas”. Mas ao vivenciarem as representações
impostas, mulheres pobres não cumpriram os termos e prescrições da cultura
dominante. Papéis informais de gênero foram criados por uma experiência
feminina que transformou um código cristão de comportamento em uma moral
sexual informal. Portanto, trata-se de delinear as vivências sexuais ilícitas do
desejo e da sedução por mulheres tidas como “mal-procedidas”. Através da
subversão do desejo e do olhar masculinos, cativas, libertas e brancas pobres

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conquistaram melhores condições de vida, construindo uma cultura feminina de


resistência fundamentada no “mau uso de si”.

A recorrência de desvios e heterodoxias era consequência do ir e vir de


homens errantes, do denso fluxo populacional masculino em uma sociedade
essencialmente urbana, onde a incidência expressiva de africanos e seus
descendentes (MOTT, 1989, p. 103), e a relativa escassez de mulheres brancas
disponíveis sexualmente contribuíram para o surgimento de organizações
86
familiares não ortodoxas e de formas não convencionais de conjugalidade.
Multiplicavam-se homens com costumes itinerantes, a ganhar a vida pelos
caminhos como mineradores, comerciantes, tropeiros. A presença masculina era
intermitente, fomentada pelo costume de concubinatos que se sucediam em
uniões efêmeras. A mobilidade intrínseca à mineração e às atividades comerciais
resultou numa população masculina flutuante que buscava enriquecimento
rápido, o que conduziu a um tipo de família criada a partir de relações
concubinárias ou eventuais, onde somente a mãe convivia com os filhos. As
mulheres tornaram-se presença predominante na vida urbana, pois permaneciam
na retaguarda do povoamento, estabelecendo relações sexuais casuais, arcando
com seus filhos bastardos. O intenso fluxo populacional das vilas, arraiais e
centros mineradores, tradicionais zonas de passagem (DIAS, 1995, p. 30-33;
FARIA, 1998), transformou as Minas setecentistas em um espaço histórico
propício aos envolvimentos ilícitos

Denunciava-se às devassas principalmente mulheres de origem africana


que viviam em uniões consensuais com seus filhos ilegítimos. Eram rotuladas
de “mal-procedidas” tanto mulheres que se entregavam a relações conjugais não
ortodoxas, auferindo benefícios ou rendimentos dos relacionamentos amorosos
ilícitos, quanto aquelas que aderiam efetivamente ao comércio sexual, o que
revela os tênues limites entre práticas desviantes e prostituição. Algumas
mulheres possuíam mais de um concubino e meretrizes despertavam amores,
estabelecendo relações de mancebia com vários homens. O “mau uso de si”
estava vinculado aos fogos chefiados por mulheres sós, dispostas,
eventualmente, a sobreviver com o ganho de seus corpos. Libertas utilizavam os

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“tratos ilícitos” como alternativas improvisadas de sobrevivência e consentiam


que suas filhas “fizessem mal de si”, criando laços de auxílio mútuo através do
“mau-procedimento”. Mães solteiras, cúmplices da vida “dissoluta” de suas
meninas, subverteram as relações familiares de dependência pessoal ao viverem
“formas não sacramentadas de convívio sexual”. O “viver meretrizmente”
designava a vida fora dos padrões convencionais de mulheres solteiras ou de
maridos “ausentes”, com todo comportamento “desregrado” confundindo-as
87
com prostitutas (PRIORE, 2009).

As vivências intensas de amores efêmeros pautavam-se na constituição


de laços comunitários e de áreas de resistência, caracterizados pela contestação
ao comportamento social ditado pela Igreja Católica. A natureza explícita das
relações amorosas ilícitas de negras e mulatas, sua prole ilegítima e sua
capacidade de congregação em casas de alcouce fizeram com que o discurso
cristão dominante problematizasse as transgressões sexuais colocando-as como
as principais responsáveis pelos “tratos ilícitos”. A prática da prostituição
exerceu função social importante, refletindo as relações de dependência que
uniam entre si, nas fímbrias da escravidão urbana, brancas pobres, cativas e
libertas (DIAS, 1985). Buscava-se uma identidade cultural fundamentada em
uma forma própria de conjugalidade e na organização de um ganha-pão, que
dependiam de densos laços de solidariedade e vizinhança que se improvisavam
(DIAS, 1995, p. 16) continuamente:
Josefa Maria de Souza concorre para que sua filha Jacinta de
São José se desoneste com hóspedes que ela recolhe e não tem
outra coisa de que viva e também vive de dar pousada para o
mesmo fim a mulheres meretrizes, como é uma bastarda [...]
por nome Rosa Maria [...] como foi algumas vezes Joana
Xavier mulher branca e uma crioula por nome Ana [...] preta
forra e Gertrudes de Oliveira mulher branca que adentro em
casa da mesma hoje sendo casada. [...] E quando os hóspedes
eram muitos e eram necessárias mais mulheres, as convocava
deste arraial e também de outras partes vinham assistir à sua
casa.

Além de “dar alcouce”, Josefa de Souza era uma prostituta que se dava
aos homens em sua pousada em Ouro Branco, no ano de 1764. No entanto, era
concubinada com João da Costa Barbosa, oficial de ferreiro e ferrador. Assim

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como a mãe, Jacinta de São José era conhecida como “pública meretriz”, apesar
de seu amancebamento com o português Manoel Gomes Chaves. Josefa abrigava
“toda a casta de passageiros”, cozinhando para eles e lhes prestando outros
serviços, sendo infamada de servi-los com “atos lascivos” (Devassas, 1762-69,
fl.65v a 71; MELLO E SOUZA, 1986, p. 184-185). As uniões conjugais
informais com homens que com elas não se casariam não diminui a ação social
dessas mulheres. Josefa de Souza proporcionava oportunidades de convívio
88
entre mulheres brancas e negras, solteiras e casadas, criando vínculos de
solidariedade femininos.

As “mal-procedidas” possuíam uma ética própria para constituir


vínculos familiares e afetivos, cercando-se de comadres e vizinhas, e
estabelecendo relações ilícitas estáveis ou esporádicas com eventuais
companheiros. A alcovitice fundamentava uma profunda solidariedade feminina
e era um laço que unia mães e filhas (PRIORE, 1992; 2009). Em 1777, o forro
Manoel Borges denunciou a sogra por alcovitar homens para sua mulher, que
não queria com ele “fazer vida”, talvez por estar na sua liberdade para “usar mal
de si” (Devassas,1767-77, fl. 21). A inserção em relações de mancebia ou redes
de alcovitagem correspondiam a uma escolha social ditada por uma cultura
feminina de resistência fundamentada na sedução que rejeitava o controle da
Igreja sobre as interações culturais comunitárias. A parda Inácia da Costa
consentia nos “pecados” de sua filha Rosana, “sempre a mãe morou com ela na
mesma casa, vendo entrar homens para tratarem [...] com [...] sua filha sem que
lhe proibisse, antes permitindo-lhe [...] para que se sustentasse”. Além de saber
dos amásios de Rosana e de consentir seus “tratos ilícitos”, Inácia era uma
alcoviteira de Mariana, que costumava “ter em sua casa algumas mulheres para
se darem a homens, sendo medianeira para que os homens lhes dêem algumas
coisas” (Devassas, 1753, fl. 139-155v).

Negras e mulatas tinham como passado cultural o hábito de africanas


que se mantinham economicamente independentes, sustentando a si próprias e
aos filhos (DIAS, 1995, p. 158). Gertrudes de Oliveira vivia “separada de seu
marido Manoel Francisco”, “que querendo por várias vezes chamá-la para sua

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companhia ela nunca quis”. Gertrudes não “fazia vida” com o marido por preferir
“viver na sua liberdade”, “dada à sensualidade” (Devassas, 1753, fl. 70v-71).
Tinha-se uma liberdade na escolha dos parceiros e a negação da estrita
submissão ao marido existente no matrimônio eclesiástico. A forra Paula
Perpétua “supondo seja casada vive como se não o fora, porque se ausenta de
seu marido todas as vezes e quando quer”. A posição passiva do marido de Paula
em relação ao adultério de sua esposa justificava-se pelo fato deste temer “que a
89
mesma lhe maquine a morte” (Devassas, 1756-57, fl. 7-7v-8). Apesar de
concubinada com outro homem, Paula relacionava-se com o marido, “a qual vive
separada dele no morro”, não obstante, algumas vezes, o seu marido ia à casa
dela e ela à casa dele (Devassas, 1750-53, fl. 58).

As africanas e suas descendentes crioulas e mulatas constituíam a


maioria do contingente feminino que vivia fora das uniões sacramentadas. As
libertas tinham um modo peculiar de se relacionar com companheiros e parentes,
vivenciando relações de gênero endogâmicas, poligâmicas ou monogâmicas e
transformando-se no centro da estrutura familiar. Para as forras viver em
concubinato representava uma valorização de tradições familiares matrifocais
com origens africanas matrilineares (NETTO, 2008). Os iorubás cultuavam as
forças femininas do cosmos. “Os rituais valorizavam a crença no extraordinário
poder feminino, mais forte do que o dos ancestrais” (PRIORE; VENÂNCIO,
2004, p. 129). Em várias sociedades africanas, “a descendência é traçada de uma
ancestral original ou de uma série de ancestrais femininas conhecidas como as
‘mães’ da linhagem ou do clã” (SLENES, 2011), prática que pode ser
considerada o passado histórico dos lares matrifocais nas Minas, formados por
negras e mulatas com suas mães, filhas e filhos, irmãs, madrinhas, comadres,
afilhados e “crias” (OLIVEIRA, 1988, p. 70). Mulheres chefes de família
mantinham laços de dependência mútua no meio em que viviam e mesmo com
filhos homens eram reconhecidas como líderes (CUNHA, 2010, p. 46) de seus
domicílios:
Antônia Nunes tem umas filhas [...] mal-procedidas,
admitindo homens em casa para fins torpes e desonestos,
estando a mãe em casa, não lhes proíbe estes desaforos, [...]
tendo dois filhos [...], um chamado José e o outro Manuel,

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estes são amancebados, o José com uma parda forra e o


Manuel com uma bastarda Margarida, as quais estão na
mesma casa morando com a dona Antônia Nunes (Devassas,
1753, fl. 71).

Em muitas sociedades africanas, não havia uma estigmatização social


da “promiscuidade”, um conceito cristão e ocidental. Existia uma certa
“liberdade sexual”. Mesmo em casos de uniões informais estáveis, semelhantes
a “casamentos”, a existência de laços duradouros não impedia a procura de novos 90
parceiros. A “honra” de uma mulher não era ofuscada pela variedade de seus
amores, desde que reconhecesse o marido ou concubino como amante principal.
Nas Minas setecentistas, a monogamia sexual nem sempre era praticada e o
significado cristão do casamento foi transformado por uma variedade de acordos
que revelam concepções mais flexíveis sobre sexualidade, parentesco e família
(SWEET, 2007). Parecem ser essas tradições que marcaram a vida da negra forra
Maria da Costa, que possuía vários amásios e “vivia escandalosamente usando
mal de seu corpo com todo homem que se lhe oferece, especialmente com
Sebastião, oficial de ferrador, que vivia meio apartado dela”. Maria da Costa
envolvia-se constantemente em brigas com o seu concubino preferido por
exercer o meretrício, sendo que em certa ocasião “se descompuseram de palavras
e pancadas por ciúmes e que do modo de viver da dita têm resultado várias ruínas
e mortes” (Devassas, 1747-48, fl. 31 a 32v).

Muitas mulheres preteriam o “casamento cristão” em favor de acordos


com origem cultural marcadamente africana, o que não impedia a eventual
existência de laços duradouros. Estabeleciam relações de parentesco
sancionadas por suas comunidades e não pela Igreja Católica. Para elas, o
“matrimônio cristão” era uma instituição de pouca importância. Devido ao
desequilíbrio numérico entre os sexos, com certa ausência de mulheres, era
comum que essas atraíssem a atenção de mais de um homem, estabelecendo
relações poligâmicas que eram um desafio às normas ocidentais (SWEET,
2007). As meretrizes das Minas do século XVIII tinham vários amásios, situação
que gerava brigas sérias. Bernarda “se dá aos homens que a procuram,
motivando discórdia” entre eles (Devassas, 1753, fl. 139v). A cabra Antônia era

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“dada a todo o gênero de vícios por razão da qual têm sucedido grandes
distúrbios” no arraial (Devassas, 1756-57, fl. 82). Os ciúmes e a “desordem”
resultantes da infidelidade feminina sugerem a resistência das mulheres de
origem africana em adotar a monogamia cristã, pois as redes de parentesco
decorrentes das relações concubinárias e ilícitas eram a essência da vida
comunitária, revelando estruturas familiares extensivas que transmitiam
tradições culturais africanas. Parceiros únicos ou múltiplos, relações temporárias
91
ou estáveis, eram destinados a formar amplas unidades de parentesco simbólico
(SWEET, 2007). Rosa Pereira da Costa dava casa de alcouce, “em forma que
nela se ajuntam todas as noites quase todas as mulheres-damas que há neste
arraial e quantidade de homens de toda qualidade, e na dita casa estão todas as
noites até fora de horas conversando [...], fazendo saraus e galhofas” (Devassas,
1734, fl. 73v, 74v, 75).

Mas uma cultura feminina de resistência baseada na sedução não foi


vivida somente por mulheres de origem africana. Crescia na retaguarda do
povoamento, em vilas de homens “ausentes”, uma população feminina ao
mesmo tempo perseguida e protegida pelos poderosos, que integrava relações de
dominação e laços de vizinhança, constituindo uma intensa rede de relações
pessoais, proteção e compadrio (DIAS, 1995). A portuguesa Bárbara da Costa,
quarenta anos, foi denunciada em 1738 por entregar sua filha Joana ao ouvidor
geral da Comarca do Rio das Velhas, José Telles da Silva. De acordo com o
boato que corria em Sabará, o mercador Gregório Freyre montara um
complicado esquema para conduzir uma misteriosa mulher de madrugada para
assistir a “festas em que se correram touros”, donde se recolhia para a casa do
ouvidor acompanhada de negros. Várias pessoas na vila comentaram a passagem
da mulher a cavalo envolta em um manto. Dizia-se que era a filha de Bárbara.
Chamada à mesa da devassa, Bárbara negou a acusação, dizendo que “sua filha
era menina e honrada” e que a concubina do ouvidor era Joana Vitória, “meretriz
pública” que pela sua dissolução foi expulsa da vila pelo vigário da Vara
Eclesiástica, mas que há tempos vivia com o ouvidor “de portas adentro”
(Devassas, 1737-38, fl. 42 a 46). O testemunho de Bárbara subverteu duplamente
o mecanismo de funcionamento das devassas eclesiásticas. Por ser mulher em

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um contexto em que somente os homens eram convocados para prestar


depoimento e por ser chamada a depor como “testemunha referida”, já que as
devassas eram processos secretos, onde as denúncias eram a razão de ser das
visitas, com o acusado comparecendo à mesa apenas para assinar o termo de
culpa e ser admoestado pelo visitador.

As “formosas sem dotes”, brancas pobres que viviam em uniões


consensuais, tiveram uma significativa atuação na inversão estratégica das
92
relações de força ao criarem alternativas para um discurso social que excluía
aquelas que não tinham função definida no que se refere à transmissão de
poderes, privilégios e à reprodução da cultura patriarcal misógina. Por não se
enquadrarem em padrões inatingíveis de status, viviam em discretas uniões
consensuais e eram mais valorizadas do que negras e mulatas por se
enquadrarem no machismo lusitano com seus ideais de pureza feminina. Brancas
pobres, que não se vestiam tão ricamente quanto algumas escravas, “mal podiam
aparecer à luz do dia”. A “pobreza recolhida” de mulheres que andavam às
escondidas após as “ave-marias” representava papéis sociais difíceis de serem
mantidos por moças pobres, sem dotes, que não se casavam. Esse excedente de
brancas sem dotes, em um contexto onde a principal função do casamento era a
manutenção do poder e do patrimônio de ricos senhores de escravos, tornava-se
objeto de desejo daqueles que sucumbiam diante das idealizações produzidas
pelo discurso patriarcal. Daí as denúncias ambíguas do “mal viver” daquelas que
se envolviam em andanças noturnas clandestinas e furtivas (DIAS, 1995).
Entretanto, não cabe aqui desvendar se a donzela Joana era a misteriosa mulher
a cavalo. Mas a irreverência de Bárbara não ficaria impune, pois ela foi
pronunciada pelo concubinato com Manuel da Costa Vianna, um mercador de
vinte e oito anos, que talvez por acaso fosse amigo de Gregório Freyre,
alcoviteiro do ouvidor (Devassas, 1737-38, fl. 46v-47). Certas brancas pobres
atuaram intensamente na construção de uma tradição cultural feminina de
resistência fundamentada na sedução, subvertendo radicalmente a ordem social
cristã através da transgressão e do “pecado”.

Nesse sentido, o problema a ser desenvolvido refere-se às formas

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alternativas de representação social da sexualidade. A Teoria Queer, ao


reivindicar uma subjetividade que não se articula ao masculino/feminino, abre
espaço para a análise de práticas eróticas que perturbam os esquemas tradicionais
das identidades sexuais. A Teoria Queer é uma política da diferença que
questiona a sexualidade enquanto “verdade intrínseca do ser”, desestruturando a
categorização do mundo em “masculino” e “feminino”. Trata-se de relações não-
normativas a partir da politização da sexualidade e da diferença através da busca
93
de alternativas de resistência aos limites históricos impostos pela
heteronormatividade, norma historicamente construída que institui uma
intimidade normatizada por uma identidade sexual (MISKOLCI, 2011; SWAIN,
2001). A subjetividade queer é uma “política subjetiva” onde o sexo binário não
seria essência identitária e nem definiria a identidade. A experiência é concebida
como inserção dos sujeitos nas práticas sociais (SWAIN, 2000) e o corpo é visto
como cultura, fundamento do processo de subjetivação do feminino e da crítica
às significações de uma cultura masculina (SWAIN, 2002) percebida como ação
simbólica.

Judith Butler subverte o caráter construído do gênero, produzido


culturalmente. O gênero pode ser teorizado como radicalmente independente do
sexo, o que sugere sua descontinuidade radical com corpos sexuados construídos
socialmente (BUTLER, 1990, p. 6-7). Butler trabalha com a desconstrução do
gênero e com a multiplicidade dos corpos. O gênero é contextual e não denota
uma essência do “ser”. A subjetividade e a identidade são expressões de um
contexto. O pós-feminismo deixa de lado a noção unitária de mulher e a ideia de
uma identidade feminina “por conceitos de identidade social que são plurais e
de constituição complexa, e nos quais o gênero seria somente um traço relevante
entre outros” (RODRIGUES, 2005). “A sexualidade não se constitui em um
campo externo a outros modos de diferença” como etnia e classe social
(LOURO, 2007). Compreender gênero e sexualidade significa articulá-los com
outras diferenças e desigualdades (MISKOLCI, 2014). Somos mulheres
diversas, marcadas por inúmeras diferenças, como condição social, sexualidade,
raça e crenças religiosas. A fragmentação da ideia universal de “mulher” nos
leva a uma interpenetração entre “História das Mulheres” e “História de

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Gênero”, caracterizada pela existência de múltiplas subjetividades e cujo


objetivo é construir uma memória histórica do passado que inclua tanto as
vivências sociais quanto as representações culturais femininas. Um enfoque do
cotidiano pode dar visibilidade à atuação informal feminina ao estabelecer um
distanciamento entre a normatização e as vivências concretas. A subversão dos
modelos culturais impostos pode ser uma arma na defesa do gênero feminino
contra as tradições misóginas (SOIHET, 1997; SOIHET; PEDRO, 2007, p. 296).
94
A reconstrução de múltiplas subjetividades nos direciona para a
desconstrução da categoria “mulher”. Mais do que reivindicar a multiplicidade
das expressões de gênero, o ativismo queer reivindica uma não-identidade. A
Teoria Queer se organiza em torno da ênfase nas relações de poder para
interpretar as estruturas subjetivas da vida social (BENTO, 2014). É uma
epistemologia política radical que contesta a busca de uma verdade profunda
sobre nós mesmos inscrita em nossos desejos. A sexualidade normatizada, com
sua verdade sobre o sexo e os prazeres, pode ser recusada pela rejeição de definir
o que somos. Uma ética que recuse o “eu profundo” criado pelo cristianismo
pode se fundamentar em práticas marginalizadas, triviais e irreais, que ajudaram
a modelar nossos corpos e almas e ainda estão ao nosso alcance. É preciso
resgatar práticas sexuais potencialmente subversivas, como as vivências
alternativas do desejo e da sedução nas Minas setecentistas, que podem se
transformar em referências para nossas estratégias de resistência. Precisamos
buscar um novo paradigma cultural que contribua para a construção de nossas
vidas dentro dos parâmetros de uma “estética da existência” foucaultiana,
escolha política que busca compreensões de si mesmo não-centradas no desejo.
A partir da ideia de que o “eu” é construído, temos que criar a nós mesmos como
uma obra de arte (DREYFUS; RABINOW, 1995; MISKOLCI, 2011).

É necessário se fundamentar nas experiências de gênero e nas vivências


femininas como forma de contestação a um conceito identitário imutável de
“mulher” (VIEIRA, 2015). Política pós-identitária com potencial subversivo, o
movimento queer volta-se para as múltiplas sexualidades, para as diversidades
sexuais e de gênero, e designa os sujeitos “desviantes” em uma perspectiva de

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contestação da heteronormatividade. O queer é uma teoria das sexualidades


contrárias ao processo de normatização e disciplina dos corpos. O termo inclui
os desviantes da sexualidade dita “normal”, que revertem o jogo, marcando a
posição queer afirmativamente. A expressão indica a diferença que não quer ser
integrada, constituída por sujeitos que não se conformam às normas pelas quais
deveriam ser definidos, ultrapassando os limites da identidade sexual. A
subversão queer busca desconstruir o processo de normalização, prática que se
95
institui como violência social (LOURO, 2007). Uma concepção dinâmica de
sujeito pode servir para explorar os contextos históricos onde ocorrem a
sexualização das subjetividades e contribui para a crítica à sexualidade como
“dispositivo normalizador”, fundamentada por um impulso ressignificador
(MISKOLCI, 2014). É uma prática de vida que contesta a normalização sexual
e de gênero por sujeitos que se designam desviantes da norma heterossexual. O
queer é aquele que se posiciona fora das normas prescritas, que se coloca à
margem.

Existe a possibilidade de subjetivação como resistência e produção de


diferença. Para a “analítica do poder” de Foucault, no centro das relações de
poder, há uma “insubmissão” que fundamenta a inversão eventual das estratégias
de dominação. Butler oferece elementos para a percepção da multiplicidade das
diferenças e das contingências sócio-históricas da subjetivação. O poder produz
subjetividades através de mecanismos de disciplina que tem efeitos constitutivos
sobre os processos de subjetivação. Por ser uma “performance” e não uma
identidade pré-existente, o gênero pode ser fonte de resistência. Há sempre uma
possibilidade de deslocamento, com potencial de transformação, inerente à
performance do masculino/feminino. Uma concepção dos processos de
subjetivação direcionada para a reelaboração das normas de gênero pressupõe a
desconstrução da diferença sexual binária através de uma ultrapassagem
subversiva das fronteiras normativas. A política queer demonstra de forma
radical a instabilidade das normas de gênero. A subversão do desejo resulta em
novas possibilidades de existência (ARÁN; JÚNIOR, 2007). Lutas contra
formas de subjetivação questionam tudo aquilo que liga o indivíduo à sua própria
identidade de um modo coercitivo. A luta por uma nova subjetividade tem como

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objetivo atacar uma técnica de poder. Temos que promover novas formas de
subjetividade através da análise das formas de resistência. Precisamos recusar o
que somos e construir o que poderíamos ser para nos livrarmos do
constrangimento político que é a individualização própria às estruturas do poder
moderno (FOUCAULT, 1995). Trata-se de fazer uma história da sexualidade
enquanto “experiência” para descobrir como os indivíduos foram levados a se
reconhecer como sujeitos de desejo, estabelecendo consigo uma relação que lhes
96
impõe procurar no desejo, a verdade de seu ser (FOUCAULT, 1988).

Corpos performatizam papéis sexuais a partir da possibilidade de


transgressão e exercício da liberdade de gênero em uma política corporal
performativa (RODRIGUES, 2015). Documentar uma multiplicidade de
diferenças através da historicização da vida cotidiana faz parte da busca de
instrumentos analíticos que dêem conta da experiência feminina em seu devir,
pois propicia a percepção de subjetividades plurais inseridas em momentos de
resistência específicos (DIAS, 1992; 1994). As percepções subjetivas femininas
devem se fundamentar na especificidade das experiências dos corpos através da
categoria “mulheres”, fundamento de uma “subjetividade feminina, múltipla em
si mesma”, “constituída na interseção de diversos níveis de experiência”
(SWAIN, 2002). Trata-se de delimitar as vivências alternativas do prazer e do
erotismo e de saber como uma cultura feminina fundamentada na sedução se
constrói num contexto de relações desiguais marcado pelo escravismo e pela
imposição da religiosidade cristã. Mulheres pobres, principalmente as libertas,
interagiram com homens, induzindo as ações desses que ocupavam um lugar
privilegiado nos relacionamentos de gênero, construindo uma cultura popular na
qual a apropriação feminina das relações sociais patriarcais era fundamental. Nas
Minas do XVIII, a participação feminina possuía um caráter estratégico,
imprescindível para a consolidação de vínculos associativos e para a difusão de
uma moral sexual informal. Assim, é preciso definir múltiplas subjetividades
femininas a partir de possibilidades plurais de sentidos atribuídas às práticas
sexuais ilícitas através das vivências do desejo e da sedução. Para isso, é
necessário demarcar os posicionamentos femininos no domínio específico
formado por relações de poder cristãs e patriarcais, para delinear papéis

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contrários aos padrões oficiais de comportamento que configuram formas


peculiares de luta, pois mulheres pobres, ao se posicionarem como mulheres
sensuais, conseguiram resistir ao inverterem estrategicamente as relações
patriarcais de poder.

É preciso questionar o conceito de identidade a partir da reconstrução


de subjetividades articuladas às experiências de gênero e à multiplicidade das
sexualidades e dos corpos (LOURO, 2004), o que resulta na crítica às
97
tecnologias intrínsecas de poder que vinculam ao sexo a essência da verdade do
ser. Para Michel Foucault, o sexo e a sexualidade enquanto eixos de
representação do “eu” integram uma realidade culturalmente construída por
convenções históricas que constituem a identidade do sujeito a partir da sua
vivência sexual. O “dispositivo da sexualidade” é um mecanismo de poder que
cria a identidade sexual como foco de inserção social e constrói corpos
biológicos enquanto essência identitária das pessoas (SWAIN, 2000).

A crítica a categorias identitárias a-históricas nos permite vislumbrar


múltiplas experiências subjetivas femininas como construções históricas
diferenciadas. Devemos relacionar as identidades de gênero a representações
culturais historicamente específicas (SCOTT, 1991, p. 16) como a imagem da
“mal-procedida”, pois construções representacionais engendram práticas sexuais
alternativas e papéis de resistência, nos levando à análise das significações
culturais e simbólicas. A apreensão de múltiplas subjetividades femininas deve
se pautar na análise dos processos de reelaboração das tradições culturais
disponíveis a partir das quais as mulheres resistiram às relações de força. As
identidades sexuais são subjetividades historicamente definidas, mas em
constante transformação, pois os sujeitos históricos nos processos de
interpretação que dão sentido às relações cotidianas transformam as
determinações culturais. As múltiplas maneiras pelas quais as mulheres
interpretam as significações dominantes transcendem o caráter normativo do
discurso. Recusar-se a tomar como referência estrita as definições dominantes
da diferença entre os sexos possibilita analisar a dinâmica das relações de poder
que tornam possíveis as experiências históricas das mulheres (VARIKAS,

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1994), o que permite incorporar à história experiências singulares e radicalmente


diferentes que escapam aos padrões sexuais normativos.

A perspectiva metodológica adotada, pautada na “analítica do poder”


de Michel Foucault (1985, p. 80), insere as subjetividades femininas no domínio
específico formado por relações de poder cristãs e patriarcais, o que determina
os instrumentos de análise que recortam as estratégias de resistência construídas
a partir dos “tratos ilícitos” e possibilita buscar nos envolvimentos amorosos
98
alternativos um caráter estratégico que desvende o posicionamento das “mal-
procedidas” nas relações de dominação, resultado da inserção específica em
relações de poder. A articulação da experiência social feminina a um código
sexual misógino propicia a visualização da reversão tática de um discurso cristão
que institui a dominação e nos permite delinear as vivências daquelas que
transformaram as relações sociais para resistir às injunções de um contexto
histórico construído com base na exploração sexual. O poder feminino de incitar
o desejo masculino suscitava vantagens inegáveis para aquelas que se submetiam
sexualmente. A interação mais efetiva no universo público e o fato de se
apropriarem mais ativamente das relações de gênero fazem parte das
contradições decorrentes dos ideais de pureza feminina restritos às mulheres
brancas de elite. O posicionamento de negras, mestiças e brancas pobres nas
relações de poder cristãs e patriarcais gerava uma autonomia de movimentos, de
inserção nas uniões conjugais e de participação nas manifestações culturais
jamais vislumbradas pelas mulheres bem posicionadas na sociedade escravista.

Nas Minas, as experiências sexuais femininas subverteram os papéis de


gênero. Por isso, a “sexualidade” enquanto eixo de poder e controle social deve
ser problematizada. As devassas engendravam relações simbólicas que
normatizavam corpos por todo um ritual de produção da verdade sobre o sexo
inscrito em redes de significações sociais específicas. A afirmação da Igreja
como instituição de poder se dava por meio de mecanismos representacionais de
controle da sexualidade e dos costumes como as devassas, que atuaram na
imposição de normas sexuais. Embora seja inegável a importância das devassas
na construção de um universo simbólico impositor de relações patriarcais de

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poder, as visitas diocesanas, com seus julgamentos e punições, não conseguiram


conter o processo de transformação dos valores cristãos pela prática cultural
popular. As percepções subjetivas que as mulheres têm de si são representações
culturais historicamente específicas, o que não exclui a transgressão dos limites
impostos aos gêneros, a transcendência dos significados dominantes atribuídos
à diferença sexual, a contestação das relações de gênero normativas. Nas Minas,
os papéis sociais designados às mulheres pobres pelos valores morais cristãos
99
foram subvertidos pelas vivências dos “tratos ilícitos” e pela incorporação da
imagem imposta da “mal-procedida”, caracterizada pela tendência ao “pecado”.

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105

ST 1B
História e Gênero: Cultura
Memória e Identidades

Coordenação
Profa. Dra. Claudia Andrade Vieira
(UNEB)

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AS “VIRA-LATAS” E O TRABALHO FEMININO NA COMPANHIA


SIDERÚRGICA NACIONAL: GÊNERO E MEMÓRIA

Tânia Bassi Costa*

Introdução

A cidade de Volta Redonda, situada na região Sul Fluminense do estado


do Rio de Janeiro, tem seu histórico associado à Companhia Siderúrgica 106

Nacional (CSN) e ficou conhecida como “Cidade do Aço”, tornando-se um


espaço industrial de trabalho marcadamente masculino. O desconhecimento
acerca de um grupo de mulheres atuando no setor produtivo dá-se entre os
operários e moradores da cidade, o que demostrou a importância do resgate da
história daquelas operárias.

Abordagens sobre a formação do operariado, agitações sindicais, o


processo de privatização e suas consequências foram objetos de vários estudos
sobre a história da empresa, porém a análise a partir da categoria Gênero não
existe nesses estudos, o que manteve, nesse sentido, uma desconsideração das
relações identitárias e de poder como elemento importante para a composição do
mundo operário.

A CSN, quando do início de sua operação, tornou-se um modelo


exemplar de empresa estatal para o país, tanto na sua produção como na
formação de um novo tipo de trabalhador, saudável, capaz e disciplinado. A
imagem da ‘Família Siderúrgica’ sempre presente nos discursos oficiais do
governo, expressava a relação de tutela e os laços da empresa com seus
funcionários, mostrando um caráter paternalista e assistencialista de acordo com
Regina Morel (1989),
Construir a “Família Siderúrgica”, implicou um conjunto de
mecanismos que variavam segundo os objetivos e alvos
visados. De um lado, para ter permanentemente a força de
trabalho saudável e produtiva, a CSN montara, com ajuda dos
médicos enfermeiras, educadores e assistentes sociais, uma
série de estratégias que tinha como alvo a família operária,
especialmente a mulher, a criança e o adolescente. De outro

*
UGB.

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lado, indicando um segundo sentido da expressão, a


Companhia estabeleceu, no espaço interno da fábrica, regras
que formulam proibições e recompensas, a fim de assegurar a
cooperação e o bom comportamento.

As “Vira-latas” da CSN formavam o único grupo de mulheres que


trabalhavam dentro da Usina desde o fim da década de 1940, quando teve início
a produção das folhas de flandres. Assim, a imagem dessas operárias não era
diferente aos olhos masculinos e mesmo aos femininos de funcionárias das áreas 107
administrativas da empresa. O próprio apelido “Vira latas”, surgido em função
do movimento realizado para a análise de marcas ou pequenas perfurações nas
chapas de aço, também expressava um sentido de marginalização e
desqualificação da figura feminina. Margareth Rago (2000) nos mostra em seu
estudo sobre o trabalho feminino e a sexualidade, como era a imagem das
mulheres no fim do século XIX e início do século XX:
Não é a toa que até recentemente, falar das trabalhadoras
urbanas no Brasil significava retratar um mundo de opressão
e exploração demasiada, em que elas apareciam como figuras
vitimizadas e sem nenhuma possibilidade de resistência. Sem
rosto, sem corpo, a operária foi transformada numa figura
passiva, sem expressão política nem contorno social. (p. 579)

Em relação ás operárias, as normas de comportamento dentro da


empresa e o rigor era maior, já que estavam em um ambiente de predomínio
masculino. Deste modo, a postura de submissão, segregação e passividade era
nítida de acordo com os relatos das antigas funcionárias. Essa segregação não
era explicitada na documentação oficial da empresa, como mostra a reportagem
de 1971 do jornal o Lingote:
Chegou a vez de a mulher ser eleita “Operário Padrão”.... Em
categoria própria, por enquanto com títulos regionais, a
trabalhadora em fábricas começa este ano sua projeção por
méritos comprovados, que vão desde a assiduidade até
conduta familiar e comunitária1

1
Jornal “ O Lingote” número 220, Rio de Janeiro, Julho/Agosto. 1971.

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Uma publicação da CSN de 1985 pode exemplificar a exploração da


mão de obra feminina, disfarçada no discurso de dedicação e profissionalismo
dessas mulheres à empresa, sobre uma hora extra feita no “dia das mães”:
Não foi presente de grego. Mas a urgência e do serviço, e
essas colegas dentro de um espírito profissional e de
companheirismo, não se fizeram de rogadas. Deram uma
prova de dedicação mostraram saber que a empresa está
nesse momento a exigir mais eficiência e competência.2

108
Para um caráter comparativo, Andréa Brandão Puppin (2001), em seu
livro de título “Do lugar das mulheres e das mulheres fora de lugar”, analisa as
relações de gênero em uma empresa petrolífera de grande porte, quanto aos
espaços definidos no interior da usina e ao discurso da empresa e destaca que:
No processo de assimilação das mulheres dentro de espaços
de trabalho masculinizados, o que vemos ocorrer é o
afloramento de ambiguidades e o estabelecimento de
discriminações ainda operantes(...) afirmamos a existência de
uma ambiguidade colocada no fato de essa conformação
diferenciada do lugar social de homens e mulheres ser a todo
instante disfarçada, negada, pelo discurso dos agentes
masculinos e pelas políticas declaradas da empresa. (p. 75)

As marcas da divisão sexual do trabalho apresentavam-se no setor de


seleção das folhas de flandres através da forte pressão de tempo, num ritmo de
trabalho imposto pela supervisão dos chefes e das toneladas dos fardos a
classificar. A função, que exige habilidade manual, meticulosidade e acuidade
visual, tendo caráter taylorista3 e sendo de execução simples e repetitiva, foi
reservada às mulheres e comparável às múltiplas atividades da esfera familiar e
doméstica, o que se podemos perceber nos depoimentos das operárias:
[...] eles ( os homens) não sabem manobrar... porque a mulher
tem até elegância. O homem pega o material, até ele virar a
mulher já virou quatro ou cinco folha... eles não tem aquele

2
Jornal “ Nove de Abril”. Número 115, Ano IX, Maio de 1985.
3
A expressão teórica do processo de trabalho parcelado é levada a efeito por Frederick
Taylor (1856-1915) no livro Princípios de Administração Científica, onde estabelece os
parâmetros do método científico de racionalização da produção – daí em diante
conhecido como Taylorismo – e que visa o aumento de produtividade com a economia
de tempo, a supressão de gestos desnecessários e comportamentos supérfluos no interior
do processo produtivo.

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traquejo, aquela elegância... ficam o dia inteiro pra fazer


aquilo. Não dá.4

[...] a mulher enxerga mais rápido que o homem... o olhar


mais rápido que o do homem...porque naquilo que você pega
a chapa pra virar você tinha que olhar daqui, quando ela caia
de cá você já tinha que olhar daqui... você não podia passar
devagarinho e passar... então o homem não conseguia ver
esses dois lados ao mesmo tempo. Pela rapidez eles acharam
que a mulher dava mais certo, como deu.5

109
Apesar da presença das “Vira-latas” desde os anos 40, foram nas
décadas de 1970 e 1980 que se verificou uma maior inserção de mulheres no
mundo do trabalho e assim ganharam maior visibilidade, criando uma
“feminilização” do trabalho industrial, principalmente em setores de operação.

Na década de 1990 o contexto neoliberal foi pouco favorável ao


trabalhador e o ‘peso’ dessa década nos levou a refletir sobre a precarização da
mulher no mercado de trabalho. Como primeiro aspecto, destaca -se a dinâmica
demográfica no país, pois com a diminuição da taxa de natalidade e/ou
fecundidade, a mulher passou a ter mais tempo disponível para se dedicar ao
trabalho. O segundo aspecto está ligado às mudanças nos postos de trabalho,
com o crescimento no setor de serviços e nas atividades secundárias no processo
produtivo, as empresas de grande porte passaram a terceirizar seus serviços, e
são justamente nesses espaços que ocorrem um crescimento da mulher no
mercado de trabalho, porém com salários mais baixos em relação ao homem e o
aumento da exploração.

Levando em consideração as relações Gênero e Trabalho neste fim de


século XX, podemos ainda sinalizar que se mantem os traços de discriminação
e hierarquização entre homens e mulheres, estando estas em situação de vasta
desigualdade. A partir dos anos 2000 verificou-se a crescente subcontratação na
estrutura industrial e a precarização do trabalho impulsionada pela flexibilização
e reestruturação do mundo do trabalho.

4
Sra. A. Depoimento cedido no dia 23 de janeiro de 2006.
5
Sra. R. Depoimento cedido dia 20 de janeiro de 2006

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Gênero e Trabalho: um debate historiográfico

O conceito de Gênero também fruto das discussões tanto políticas


quanto teóricas das últimas décadas, despertou o interesse acadêmico em
compreender a multiplicidade das identidades femininas ao longo da História.

“Mulheres, o que sabemos sobre elas?”, a indagação de Jacques Le Goff


aparente na conclusão da coletânea intitulada História das Mulheres no
Ocidente, junto com Michelle Perrot, legitimou e cristalizou esse campo 110
historiográfico no início da década de 1990. As estudiosas e estudiosos que
escrevem a História da Mulheres, consideram-se envolvidos em um esforço
altamente político de mudar o modo de como a História é escrita, embora ainda
de frágil reconhecimento acadêmico e de estruturas institucionais insuficientes.
É o que nos diz Michelle Perrot (1989) sobre a História das Mulheres:
As mulheres não são passivas nem submissas. A miséria, a
opressão, a dominação, por reais que sejam, não bastam, para
contar sua história. Elas estão sempre presentes aqui e além.
Elas são diferentes. Elas se afirmam por outras palavras,
outros gestos. Na cidade, na própria fábrica, elas tem outras
práticas cotidianas, formas concretas de resistência – à
hierarquia, à disciplina – que derrotam a racionalidade do
poder, enxertadas sobre seu uso próprio do tempo e do espaço.
Elas traçam um caminho que é preciso reencontrar. Uma outra
história. (p. 157)

A aparente restrição e segregação a história das mulheres, no final da


década de 1960, começou a ser minada e para desafiar a viabilidade da categoria
das “mulheres”, os estudos introduziram a “diferença” como um problema a ser
analisado. Era necessário um modo de pensar sobre a diferença e como a sua
construção definiria as relações entre os indivíduos e os grupos sociais.

Joan Scott (1990) destaca que durante a década de 1960, as atividades


feministas reivindicavam uma história que estabelecesse heroínas, prova de
atuação das mulheres e também explicações sobre a opressão e inspiração para
a ação. Entre a metade e o final da década de 1970, a história das mulheres
afastou-se da política, ampliando seu campo de questionamentos, documentando
todos os aspectos da vida das mulheres no passado. Finalmente na década de

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1980, houve um rompimento definitivo com a política e propiciou a história das


mulheres um próprio espaço.

A emergência da História Social, proporcionou um importante veículo


para a História das Mulheres, na qual a categoria ‘mulheres’ assumiu uma
existência como entidade social separada de seu relacionamento conceitual
situado na categoria ‘homens’. A história das mulheres passou menos tempo
documentando a vitimização das mulheres e mais tempo afirmando o papel das
111
mulheres enquanto sujeitos históricos.

A documentação da realidade histórica das mulheres ecoou e contribuiu


para o discurso da identidade coletiva que tornou possível o movimento de
mulheres nos anos 70. O aumento da consciência acarretou a obtenção da
autonomia, de individualidade, e por isso, de emancipação. O movimento das
mulheres pressupôs a existência das mulheres como uma categoria social
definida.

Gênero foi o termo usado para teorizar a questão da diferença sexual e


esta categoria estendida à questão da “diferença dentro da diferença”. A
fragmentação da ideia universal de “mulheres” por raça, etnia, classe e
sexualidade estava associada a diferenças política sérias no interior do
movimento das mulheres. Grande parte da atual história a partir da perspectiva
de gênero está voltada para as preocupações contemporâneas da política
feminista, daí a argumentação relacionado à força e legitimidade do feminismo
como um movimento político. O uso do conceito gênero afirma a não existência
de uma identidade única para o que se chama genericamente mulheres, pois
desse modo, auxilia na compreensão da diversidade das condições femininas ao
longo da história, sobretudo nas relações onde se verifica uma hierarquia entre
homens e mulheres.

A questão das diferenças dentro da diferença trouxe a tona um debate


sobre o modo e a conveniência de se articular o gênero como uma categoria de
análise. Gênero presume uma oposição fixa entre os homens e as mulheres e
identidades (ou papéis) separadas para os sexos, o que operam consistentemente
em todas as esferas da vida social. Presume também uma correlação diretas entre

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as categorias sociais masculina e feminina a as atividades de sujeito dos homens


e das mulheres.

Vale ressaltar que sexo e gênero não são sinônimos, pois a palavra sexo
está ligada as diferenças anatômicas e fisiológicas entre homens e mulheres, e
gênero está ligado as diferenças entre homens e mulheres na sociedade em que
vivem, é exatamente a relação de poder existente um sobre o outro, independente
do sexo. O conceito de Gênero se contrapõe a visão que enfatiza as diferenças
112
biológicas, ou sexuais, entre homens e mulheres que naturalizavam a dominação
masculina e enfatizam as visões sobre o “lugar” determinado para as mulheres.

Joan Scott (2011) analisa gênero como sendo uma “realidade social
baseada no sexo”, ela determina o sistema de gênero como sendo “as relações
entre os sexos opera de acordo com e através das estruturas socioeconômicas
bem como das estruturas de sexo/gênero”.

As operárias objeto dessa pesquisa tiveram seu trabalho associado a


repetição gestual que deu origem a alcunha de “Vira-latas”. O termo acabou
simbolizando o papel e lugar destinado a elas naquele espaço social, bem como
apresentava um significado carregado de preconceito àquelas mulheres por
estarem em um espaço predominantemente masculino. Nesse viés pela análise
de Pierre Bourdieu (1990) a dominação através da divisão sexual se traduz tanto
na estruturação das modalidades de vivencia do espaço social, quanto nas
técnicas do corpo, nas posturas, maneiras, manutenção, o que o autor chama de
habitus, cristalizado no espaço social.

Nas sociedades pré-industriais, as mulheres realizavam diferentes


atividades como: afazeres domésticos, trabalhos no campo, costura, cozinha,
criação dos filhos. Muitas destas atividades não eram remuneradas; portanto não
eram tidas como Trabalho.

Nas sociedades capitalistas, o trabalho representa atividade


desenvolvida pelo homem, sob determinadas formas, para produzir riqueza.
Nesse contexto, as atividades realizadas pelas mulheres, no espaço doméstico,
não eram reconhecidas como formas de trabalho produtivo. Produziu-se uma

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“masculinização” daquilo que a economia reconhecia como trabalho, sendo


aquele realizado pelo homem (pai de família) já que o mesmo era remunerado.

As mulheres nunca foram alheias ao mundo do trabalho. Para suprir as


necessidades domésticas, a mulher pobre precisava trabalhar fora de casa e
arriscava-se a sofrer o pejo de ‘mulher pública’. O trabalho remunerado da
mulher trouxe, no século XIX, uma discussão em relação ao êxito dessas
atividades e a criação dos filhos. Michelle Perrot (1988) em sua obra “Os
113
Excluídos da História” destacou que:
Ela não tem acesso a dinheiro, a não ser pelos serviços miúdos
que sempre se esforça em fazer caber dentro dos interstícios
de tempo que lhe deixa a família: atividades comerciais,
venda em bancas ou cestos, que persiste apesar de todas as
regulamentações, que exigem cada vez mais alvarás e
autorizações – mais ainda, mais horas de faxina para fora,
lavagem de roupas, trabalhos de costura, tomar conta de
crianças, recados e entregas domésticas. (p. 190)

Estudiosos como Duby e Perrrot (1990) denominaram de ‘culto à


domesticidade’, a dedicação à família e aos afazeres da casa e, nesse viés, o
trabalho feminino era considerado informal e fortemente ligado ao espaço
privado, sendo assim as cooperativas de base familiar da indústria de confecção,
o chamado “trabalho de agulha” tinha esse caráter pois função permitia a
conciliação entre o trabalho assalariado e a domesticidade. Nesse sentido,
segundo Eric Hobsbawm (2001):
As indústrias domésticas conseguiram uma certa erosão das
diferenças convencionais entre o trabalho feminino e o
masculino, e acima de tudo uma transformação da estrutura e
da estratégia familiar (...) a maioria das indústrias domésticas
deixou de ser um empreendimento de família e tornou-se
apenas um tipo de trabalho mal pago que as mulheres podiam
fazer em casa, nas águas furtadas ou nos quintais. (pp. 277-
278)

Com o ingresso no universo fabril, deu-se a separação entre produção e


família e o trabalho feminino passou a ser mais expressivo. Com a mulher ‘fora
do lar’, questionou-se a compatibilidade de sua função doméstica com a de ser
mão de obra assalariada na manutenção de sua feminilidade (no caso, sua função
materna). Somava-se a isso a discussão sobre a possível competição com os

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homens por postos de trabalho, o que, segundo acreditavam, poderia tanto


masculinizar as mulheres quanto aumentar a crise de empregabilidade
masculina.

No século XIX, o discurso masculino tendia a apresentar a trabalhadora


como uma figura sem capacidade produtora e sem um reconhecimento social e
econômico. De acordo com Saffiot (1969), esse discurso desejava a supressão
pura e simples do trabalho feminino, invocando o papel de ‘guardiã do lar. O
114
advento do capitalismo representou, para a mulher, uma grande desvantagem,
pois ela passou a ser subvalorizada em suas capacidades. Segundo a visão
masculina, seus atributos estariam ligados, apenas, aos serviços domésticos e à
maternidade e, progressivamente a mulher foi marginalizada em funções
periféricas da produção.

A possibilidade para o trabalho feminino dava-se apenas em curtos


períodos da vida em função do casamento ou do nascimento dos filhos, e
justificava o confinamento das mesmas em postos não-especializados. Daí a
predominância de baixos salários e a ausência de um processo de
comprometimento de especialização profissional. Nesse sentido, as obrigações
domésticas e maternais mantinham-se como prioridades.

Associadas, pelos empregadores, à mão de obra barata, as mulheres


exerciam funções consideradas apropriadas para elas. Ser apropriado ou não para
as mulheres caracterizou a divisão sexual do trabalho, vista como “natural”, já
que atribuição dita feminina, de delicadeza, atenção, agilidade, era considerada
próprias dos afazeres domésticos.

As funções exercidas pelas mulheres lembravam ou se pareciam com o


tipo de atividade que estavam acostumadas a realizar. Muitas funções tidas como
masculinas exigiam força física, justificando a hierarquia dos sexos e, segundo
Saffioti (1969), no modo de produção capitalista, o sexo passou a ser um fator
de inferiorização da mulher e “a ideologia se encarregou de transformar a divisão
sexual do trabalho, em uma divisão ‘natural’ própria da biologia de cada sexo”.

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Com o surgimento das máquinas, a exigência de qualificação para


operá-las tornou-se independente da força física, como sugeriam anúncios de
empregos, enfatizando características inerentes ao sexo, como dedos delicados e
ágeis, paciência e perseverança tidos como atributos femininos. Deste modo,
esses aspectos eram utilizados pelos empregadores e atendiam a sede de
enriquecimento da burguesia, e foram percebidos por Marx (2000) em O Capital
sendo “o trabalho da mulher e da criança foi o primeiro brado da aplicação
115
capitalista na maquinaria” (p.157)

Um outro aspecto da divisão sexual do trabalho refere-se à diferença


salarial. Além das limitações dos postos de trabalhos ‘permitidos’ para as
mulheres na indústria, os rendimentos das operárias, comparados aos dos
homens, mesmo exercendo atividades similares, eram inferiores. Na medida que
a oferta de postos de trabalho para as mulheres é menor, a procura por esses
empregos é grande e a exploração dessa mão de obra se justificava, entre outros,
pela diminuição dos salários. Se os postos de trabalho oferecidos pudessem ser
preenchidos por homens ou mulheres, a contratação das trabalhadoras
significava normalmente economia para os empregadores, já que os salários
pagos poderiam ser menores.

A divisão sexual do trabalho permaneceu, apesar da inovação


tecnológica. Mesmo com a modernização de diversos setores industriais, a
eliminação de tarefas sujas, insalubres, pesadas permitiria uma ampliação da
participação feminina e a diminuição das discriminações nos locais de trabalho,
o que na realidade não aconteceu. Segundo Neves (2000), a relação entre
tecnologia e mão de obra feminina é ideológica, já que a qualificação é um fator
fundamental para o emprego. A qualificação da mulher estaria ligada aos
afazeres domésticos, atividades repetitivas e monótonas, enquanto as tarefas que
exigem maior qualificação estariam destinadas aos homens.

A fábrica era vista como perigosa, ‘antro de perdição’, bordel, lupanar,


enquanto a trabalhadora era vista com vítima indefesa. Essa visão estava
associada, direta ou indiretamente, à vontade de direcionar a mulher à esfera da

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vida privada.6 Existia a ideia de que a mulher que trabalhasse fora de casa
destruiria os laços familiares, pois não teria tempo para vigiar e educar os filhos,
deixaria de ser mãe dedicada, esposa carinhosa, sem falar das solteiras que se
desinteressariam pelo casamento e pela maternidade. Margareth Rago (2000)
acrescentou:
Nesse contexto, com a crescente incorporação das mulheres
ao mercado de trabalho, e à esfera pública em geral, o trabalho
feminino passou a ser amplamente discutido, ao lado de temas
relacionados à sexualidade: adultério, virgindade, casamento 116
e prostituição. Enquanto o mundo do trabalho era
representado pela metáfora do cabaré, o lar era valorizado
como o ninho sagrado que abrigava a ‘rainha do lar’. (p. 588)

O discurso patronal das vantagens do trabalho domiciliar, o qual


possibilitava à mulher estar próxima aos filhos, a casa, foi utilizado de certa
maneira para afastar a presença feminina do ‘perigo’ das fábricas e reforçando a
ideia do lar como lugar da mulher. O trabalho domiciliar dava a mulher uma
certa flexibilidade nos horários para realizar as obrigações domésticas; porém a
exigência do cumprimento dos prazos para as entrega das encomendas nas
fábricas, caracterizava uma exploração discreta desse tipo de força de trabalho,
já que, aparentemente, a capacidade de resistência desse grupo era pequena.
Essas mulheres, porém, não aceitavam com passividade essa dominação como
analisou Izilda Matos (2000):
A primeira vista pode parecer que as mulheres se submetiam
a esse discurso que lhes recusava a competência, a autoridade
e o direito a todos os níveis de emprego, remetendo-as aos
chamados ‘ ofícios femininos’, que elas poderiam realizar
sem remorsos, e sem perder, inclusive, a feminilidade.
Todavia não se poderia apenas esperar dessas mulheres
apenas conformismo e passividade, mas também resistência.
(p. 274)

Entre as décadas de 1950 e 1970, houve um avanço na industrialização


brasileira, e o parque industrial brasileiro passou a contar com a significativa
produção de bens de consumo duráveis, ampliando os setores fabris. Nesse
momento, com a utilização de novas tecnologias na indústria e, por

6
RAGO, Margareth. Do Cabaré ao Lar.: A Utopia da Cidade Disciplinar (1890-
1930)1. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

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consequência, a exigência de maior qualificação para realização das atividades,


as oportunidades de emprego para as mulheres diminuíram, já que estas sempre
estiveram na base da hierarquia do sistema fabril. Essa diminuição é percebida
quando comparamos o número de mulheres presentes na indústria têxtil com
outros ramos, nos quais a mão de obra feminina não era facilmente aceita.

As mulheres passaram a integrar o que Bruschini (2000) chama de


‘guetos ocupacionais’, nos quais muitas trabalhadoras se concentraram em um
117
pequeno número de ocupações, geralmente de baixo prestígio e remuneração. É
o caso das empregadas domésticas, professoras primárias, funcionárias de
escritórios, costureiras, balconistas, serventes, enfermeiras.

Na década de 1970, o perfil das mulheres trabalhadoras começou a


mudar diante do novo quadro econômico do país. A necessidade de trabalho para
ampliar a renda familiar não se restringiu apenas às camadas menos favorecidas,
mas a necessidade de ampliação do consumo, levou muitas mulheres da classe
média a buscar postos de trabalho.

Os cuidados com a família e com os afazeres domésticos, que eram


vistos como fatores que impediam a mulher de ingressar no mundo do trabalho,
não aparecem mais como uma barreira. Percebe-se essa alteração no perfil das
trabalhadoras, quando analisamos as idades: até o final dos anos 70, eram jovens,
solteiras e sem filhos. Pesquisas7 indicam uma mudança no perfil das
trabalhadoras nas décadas de 1980 e 1990: mulheres mais velhas, com idade
entre 25 e 44 anos, casadas e com filhos, são maioria no mercado de trabalho.

Segundo Bruschini (2000), diante da concorrência internacional, as


indústrias brasileiras se reestruturaram em relação ao emprego de tecnologias
mais modernas na produção. Passaram, portanto, a empregar menos, o que afetou
diretamente, a mão de obra feminina.

7
Ver: WAJNMAN, Simone. Quantas serão as mulheres: Cenários para a atividade
feminina. In: ROCHA, Maria Isabel Baltar da. Trabalho e Gênero: Mudanças,
permanências e desafios. Campinas: ABEP, NEPO/UNICAMP e
CEDEPLAR/UFMG/São Paulo: Ed.34, 2000. P69

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A situação das mulheres operárias, no Brasil, ao longo da história, foi


bem definida por Elizabeth Silva (2001):
Ser trabalhadora, na realidade brasileira, representa o desafio
de vencer obstáculos de conjunturas políticas e econômicas
que não tiveram como propósito reconhecer as mulheres
como sujeitos economicamente ativos, ora mantendo-as
excluídas do processo produtivo, ora explorando sua força de
trabalho, mas à sombra do homem trabalhador, e sob as
péssimas condições, sem uma substantiva valorização de seu
trabalho. (p. 61)
118

Esta realidade de exploração, exclusão e subordinação também pode ser


verificada em relação ás classificadoras de folhas de flandres da Companhia
Siderúrgica Nacional, como a pesquisa nos mostrou. Com as mudanças na
expansão da industrialização brasileira na primeira metade do século XX, na
Companhia Siderúrgica Nacional, a presença feminina era quase imperceptível,
pois sendo uma indústria pesada, a mão de obra masculina é predominante o de
nos demostra a ‘invisibilidade’ feminina na indústria de base, daí relevância da
pesquisa.

As mulheres, principalmente das camadas sociais menos favorecidas,


sempre contribuíam para a subsistência da família e completavam os
orçamentos, existindo, assim, uma conciliação entre a vida doméstica e as
atividades remuneradas, sendo assim o Mundo do trabalho um espaço também
feminino, apesar de indesejado pelos homens como nos mostra Eric Hobsbawn
(2008):
De fato a situação era frequentemente indesejável e um
número expressivo de mulheres casadas era forçado a
trabalhar por salários ou seu equivalente, embora a grande
proporção o fizesse em casa, isto é fora dos efetivos alcance
dos movimentos operários. (p.135)

As desvantagens sociais que o sexo feminino sempre enfrentou,


permitiu a sociedade capitalista à exploração da sua mais valia, através da
intensificação e extensão da jornada de trabalho e de salários mais baixos em
relação aos dos homens, o que é relativamente interessante para o processo de
acumulação do capital. Ainda para Marx (1996):

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Mr. E., fabricante, informou-me que em seus teares


mecânicos empregava exclusivamente mulheres, dando
preferência às casadas, e sobretudo, às mulheres casadas que
tinham em casa uma família que vivia ou dependia de seu
salário, pois estas eram muito mais ativas e cuidadosas que as
mulheres solteiras, ademais, a necessidade de garantir o
sustento de sua família as obrigava a trabalhar com mais
afinco. (p. 331)

Com o desenvolvimento industrial houve ênfase na transferência da


mulher no espaço doméstico para as fábricas, mas não houve efetiva 119

possibilidade de combinação entre trabalho produtivo e trabalho reprodutivo,


pois as mulheres só poderiam se inserir no mundo do trabalho durante curtos
períodos de suas vidas, pois precisariam conciliar os afazeres domésticos com
os cuidados dos filhos, o que para os capitalistas era visto como “prejuízo”, pois
as obrigações maternais e domésticas eram prioridades.

As “Vira- Latas”

O interesse no resgate da memória deste grupo de operárias da CSN foi,


uma tentativa de preencher mais uma lacuna na historiografia sobre a mulher
operária no Brasil. Contudo, o objetivo maior da pesquisa foi explicitar a
experiência de 'ser mulher' em um ambiente predominantemente masculino
como uma usina siderúrgica, e compará-la à outras análises já realizadas sobre a
mulher operária acrescentando novas abordagens sobre o assunto.

Mas porque um grupo tão pequeno de operárias 'mereceria' essa


atenção? Ao se tratar de um espaço físico e social, como CSN, que desde a sua
criação representou as aspirações de um Estado interventor refletido no controle
de seus funcionários, não apenas no interior da usina, a presença feminina,
embora era quase imperceptível, não poderia ser ignorada assim como suas
experiências enquanto trabalhadoras.

Entendemos que mesmo isoladas, esquecidas, essas mulheres fizeram


parte da história da Usina, e suas experiências não podem ser ignoradas. O
resgate da memória feminina, seja coletiva ou individual, é imprescindível para
se escrever a História, e como diria, Michelle Perrot sobre as mulheres, "Elas

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traçam um caminho que é preciso reencontrar. Uma outra história". (1988, p.


212)

A inserção do trabalho feminino em uma usina siderúrgica, considerada


pesada, nos remete a ideia da inclusão da mulher em um espaço masculino.
Porém, o trabalho realizado por essas operárias reforçou o estereótipo de
docilidade, delicadeza atribuído à mulher, como características inerentes ao
sexo. Ao mesmo tempo que estas mulheres estariam, segundo Andréa Puppin
120
(2001), "fora do lugar' em uma usina de base, foram alocadas em um espaço
exclusivamente feminino, sendo a Sala de Escolha, um 'gueto', quase invisível
dentro da usina.

A presença dessas mulheres era percebida com estranheza pelos


funcionários, e principalmente pela sociedade que não considerava a usina
siderúrgica com um lugar para elas. Ao serem questionadas sobre esse aspecto,
todas as entrevistadas alegaram que a usina era sim um lugar para mulher e
afirmavam seu papel, seu trabalho, sua identidade.

Estavam isoladas, não apenas geograficamente, pois a Sala de Escolha


encontra-se distante das unidades centrais da produção do aço, mas também da
construção da história do operariado da CSN. Desse modo, permaneceram
alheias às muitas transformações pelas quais passaram os operários.

Com gestos repetitivos e infindáveis ao classificar as folhas de flandres,


muitas operárias passaram cerca de trinta anos trabalhando na usina, e todo esse
tempo, para muitas, foi percebido, como se a vida e o trabalho, fossem uma coisa
só. 'Abraçadas' pelo caráter paternalista da CSN, apresentado como zelo à essa
minoria na fábrica, as operárias tinham seu trabalho destacado em publicações
da empresa, visitas. Porém o enfoque não era para elas, e sim para o produto com
o qual trabalhavam. Apesar da delicadeza no manuseio com as folhas, a
exploração do trabalho era uma realidade: toneladas de fardos classificados por
dia. Como aceitar o discurso do trabalho feminino como 'leve'?

Aliada à exploração de sua força de trabalho, as operárias da CSN ainda


sofriam o pejo de 'Vira-latas', alusivo à função que realizavam, mas que por

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muitas vezes apresentou um ar pejorativo, dentro ou fora da fábrica, que as


diminuíam como profissional e como pessoas.

A importância desse resgate histórico, deve-se também, ao progressivo


desaparecimento desse tipo de trabalho. Embora não extinto totalmente
(atualmente hoje existem apenas 10 classificadoras) o trabalho dessas operárias
é ainda importante para a CSN, pois não existem recursos tecnológicos que
substituam a visão e o tato 'treinados' dessas classificadoras.
121
Através da pesquisa, pode-se concluir que as operadoras de qualidade,
“Vira-latas”, desempenham exclusivamente uma função final da produção, que
exige atenção aos detalhes, organização e delicadeza, características atribuídas
às mulheres, pelas funções desempenhadas no lar, segundo o imaginário
masculino, contemplando os estereótipos destinados as mulheres, mantendo-as
em funções periféricas e de pouca qualificação, dessa forma legitimando a
hierarquia de gênero espaço fabril.

Ao analisar a o universo do capitalismo contemporâneo, Antunes


(2011) se dedica a questões chamadas por ele de “metamorfoses’ no mundo do
trabalho como a precarização, flexibilização, crise e em relação á presença
feminina, o autor enfatiza a necessidade de:
Apreender a dimensão da exploração presente nas relações
capital/trabalho e também aquelas opressivas presentes na
relação homem/mulher, de modo que a luta pela constituição
do gênero para si mesmo possibilite também a emancipação
do gênero mulher. (p. 51)

Os dados coletados demonstraram um perfil para mulheres que


ocupavam a função de “Vira-latas” na CSN. São elas, mulheres na faixa de 40
anos, chefes de família, viúvas, negras e pobres. Esse perfil não sofreu alterações
ao longo do tempo e diante do contexto de ‘feminilização’ do mundo do trabalho
que mostra suas marcas de exclusão por classe e etnia.
As operárias em questão não contestavam suas condições de trabalho e
sem a consciência de pertencimento à classe operária, mantiveram -se a margem
das discussões trabalhistas, em função do ‘lugar’ determinado historicamente a
elas, apesar das organizações de mulheres em todo o cenário nacional, das

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agitações sindicais na cidade mesmo no período e mesmo após a privatização da


empresa.
Os ‘novos olhares’ sobre o mundo do trabalho são alimentados
principalmente pela aproximação entra e a história, a antropologia e a sociologia.
As análises de micro-história, sociologia do trabalho, tem apresentado uma nova
interpretação sobre a história operária, considerando uma diversidade, segundo
Mattos (1998), presente nas diferenças entre trabalho formal, informal precário,
122
terceirizado, eventual, diferenças de gênero e devem ser ainda compreendidas
nos marcos da luta de classes.

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Press. N.Y., 1988. Tradução Mariza Corrêa. IFCH Unicamp. Cadernos


Pagu,1994.

ANEXOS

Foto 1. Classificadora de Folha de Flandres / “ Vira –latas”. Arquivo Central da CSN.

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Foto 2. Classificadora de Folha de Flandes. Revista Exame, 2001

125

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CRIANDO HÍBRIDOS: MEMÓRIA, RELIGIOSIDADE E GÊNERO

Nadia Maria Guariza*

Religião, religiosidade e História

Certeau (2006) afirma que há mais de três séculos a história religiosa


foi marcada por duas tendências: uma ligada a correntes espirituais que 126
estudavam a doutrina; e outra ligada às Luzes, que compreendia a Religião como
superstição. Nesta perspectiva, os temas ligados à religiosidade recebiam uma
leitura depreciativa de correntes historiográficas no século XIX, exceção feita a
historiadores românticos como Michelet, que se dedicavam ao estudo desses
fenômenos sociais.

O caráter racionalista de abordar as questões relativas à religiosidade,


segundo Jacqueline Hermann (1997), estava presente desde o Iluminismo,
quando alguns pensadores concebiam a existência de uma religião natural
própria da natureza humana. Na primeira metade do século XIX, a Etnografia
dedicou-se a inventariar costumes e práticas das chamadas sociedades naturais,
privilegiando os aspectos religiosos como um dos fatores determinantes e
explicativos dessas sociedades. A autora afirma que a concepção iluminista de
uma religião natural passou por dificuldades diante da diversidade encontrada
nos estudos etnográficos.

Se a História no século XIX procurou se omitir acerca das discussões


em relação à religião, a Etnografia analisava a religião de outras sociedades,
evitando a incômoda tarefa de tornar religiões próprias como o Catolicismo e o
Protestantismo objeto de estudo. Segundo Certeau (2006), o que torna possível
a relativização dos debates de outrora referentes à Religião é justamente o lugar
que ela ocupa atualmente na sociedade. Desta forma, uma historiografia religiosa
poderia fazer-se objeto de um novo exotismo, semelhante àquele que conduz o
etnólogo aos “selvagens” do interior ou aos feiticeiros franceses.

*
Unicentro

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Por causa desse deslocamento das religiões tradicionais na sociedade


ocidental, a religião tornou-se objeto e tornou-se pensável. O lugar-tempo do
fazer História cria topografias de interesses e a partir disso a Religião se torna
objeto. De qualquer forma, Certeau (2006) observa que a história da religião na
primeira metade do século XX não se beneficiou das discussões historiográficas.

Dominique Julia, em seu texto História religiosa (1998), publicado


originalmente em 1974, propõe alguns temas e abordagens que poderiam ser
127
desenvolvidos pelo historiador. A análise dos que foram eliminados pela
repressão da hierarquia e estudar as atitudes frente à vida e à morte, bem como
empregar parcialmente os métodos da Sociologia para procurar as continuidades
e as rupturas nos fenômenos religiosos e no território da Linguística e da
Semântica, e promover a análise dos discursos proposta por Foucault (1999) para
o discurso religioso.

Michel Lagrée, em seu texto intitulado História religiosa e história


cultural (1998), publicado originalmente em 1997, na coletânea Para uma
história cultural, pretende realizar um inventário da história religiosa
contemporânea, justamente porque a sua aproximação com a história cultural
não é unânime.

O autor aponta as grandes tendências da história da religião na escola


francesa no século XX, após a sua emancipação em relação à história
confessional. As duas tendências comentadas são a quantitativa e a qualitativa.
Nas últimas décadas, segundo Michel Lagrée (1998), com o esgotamento das
duas tendências, a escrita da História voltou-se para a cultura, bem como o
movimento de migrações para a França transformou a constituição religiosa da
população do país.

Neste sentido, verifica-se um deslocamento das temáticas tratadas pela


historiografia; pode-se afirmar que a ênfase poderia predominar sobre a doutrina,
a contabilização de práticas e a abordagem generalizante da história das
mentalidades. Com a virada cultural, a história da religião tornou-se a história
das práticas religiosas, da leitura religiosa, da hagiografia, da história da
laicidade, história das sociabilidades, dos movimentos e a história intelectual.

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Atas do II Encontro Nacional do GT Estudos de Gênero
Rio de Janeiro, 27 e 28 de outubro de 2016.

No Brasil, assistiu-se ao desenvolvimento dessas tendências em relação


aos estudos referentes à religião e religiosidade; os historiadores tenderam a
analisar mais o discurso institucional, enquanto as práticas religiosas, como as
devoções e os ex-votos, foram exploradas de maneira bem interessante pelos
antropólogos. Na Historiografia, recebe destaque o grupo de estudiosos ligados
ao Centro de Estudos de História da Igreja Católica na América Latina
(CEHILA), da Universidade de São Paulo, USP, a partir da década de 1970.
128
Alguns estudos desenvolvidos pelo CEHILA compreendiam que o
Catolicismo no Brasil se desenvolveu desde o período colonial de maneira
dicotômica entre a ortodoxia católica e catolicismo popular. Recentemente, à luz
dos conceitos da Nova História Cultural, sobretudo a ideia de circularidade
cultural, os estudos a respeito de religião e religiosidades passaram por uma
revisão, compreendendo de maneira mais fluída as relações entre as normas e as
práticas religiosas.

É nesse quadro que se inserem os estudos das religiões e das


religiosidades na perspectiva de gênero, além de analisar os discursos
normativos das instituições religiosas em relação ao público feminino, para
compreender as múltiplas apropriações dos discursos e a criação de formas
diversas de expressões e de práticas religiosas. Estas múltiplas apropriações e
práticas religiosas se tornam perceptíveis com a metodologia da história oral.

Memória, religiosidade e gênero: mulheres e suas narrativas no tocante à


participação em movimentos da Igreja Católica nas décadas de 1960 e 1970

Há algum tempo a polêmica em torno da objetividade da fonte oral foi


superada; afinal, todo documento é monumento, segundo Le Goff (1990), ou
seja, todos os documentos possuem intencionalidades. Contudo, deve-se estar
atento à especificidade de cada documento. No caso da fonte oral há uma
interferência direta do historiador em sua construção, porque o rememorar dos
entrevistados segue o fio condutor do roteiro de perguntas elaborado pelo
pesquisador.

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A riqueza da fonte oral reside na possibilidade de o pesquisador poder


analisar os significados subjetivos das experiências dos indivíduos (PORTELLI,
2003, p. 63-74); no caso dos estudos referentes às apropriações e às práticas
religiosas, a fonte oral fornece um material interessante para pensar como os
indivíduos criam a partir dos discursos normativos.

A fonte oral possibilita compreender como as mulheres criam sentido


ao seu passado e como elas constroem a sua memória. Sangster (2003, p. 88)
129
afirma que o rememorar das mulheres é diferente do rememorar do homem; elas
tendem a diminuir a importância de si e de suas atividades na narrativa e
incorporam a família em sua recordação.

A construção da memória também é influenciada pela posição que essas


mulheres ocupam na sociedade. Em minha tese intitulada Incorporação e
(re)criação nas margens: trajetórias femininas no catolicismo nas décadas de
1960 e 1970, foram entrevistadas mulheres que participaram e/ou ainda
participam de movimentos e de associações que possuem ligação com a Igreja
Católica na cidade de Curitiba (PR).

O perfil das entrevistadas é o mais variável possível nas associações


que foram criadas antes do Concílio Vaticano II (1962-1965), e que seguem o
modelo de um Catolicismo moralizante e caritativo. Encontramos mulheres de
classe média e alta que moram em bairros com maior infraestrutura, enquanto as
mulheres que participaram ou ainda participam das Comunidades Eclesiais de
Base (CEBs) moram na periferia da cidade, em situações precárias, e cenas
cotidianas permeadas pela violência e pelo trabalho.

As associações escolhidas para realizar as entrevistadas foram a


Arquiconfraria das Mães Cristãs, fundada na cidade em 1910, com as mães das
alunas do Colégio Nossa Senhora de Sion, reconhecido como um espaço de
formação para moças de famílias abastadas da cidade. E a Associação e Oficinas
de Caridade Santa Rita, fundada em Curitiba, em 1958, nas dependências da casa
de sua primeira presidente, Edith de França Alves, que morava no centro da
cidade e pertencia a uma família bastante reconhecida por sua proeminência na
história da cidade.

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Por outro lado, as mulheres que participaram ou participam das CEBs


migraram de outras partes do país, geralmente de áreas rurais, na década de 1960,
devido às dificuldades de inserção no mercado de trabalho com o processo de
mecanização da agricultura nesse período. Migram para Curitiba com a intenção
de procurar alternativas de sobrevivência que não encontram mais no campo.
Elas foram morar em regiões ainda pouco habitadas na década de 1960 na
cidade, como a Vila São Pedro; assim, não havia infraestrutura, como
130
saneamento básico, energia elétrica, etc.

As mulheres que participavam das associações partiam da ideia da


caridade; elas poderiam trabalhar fora de casa, contudo, não para sobreviver, e
dedicavam parte do seu tempo para as reuniões da associação e para o trabalho
caritativo, fazendo elas mesmas o que seria doado, como roupas de tricô para
recém-nascido, ou angariando doações. Mas o público que deveria ser atendido
ocupava justamente o lugar oposto delas, ou seja, eram os pobres.

Para essas mulheres, o pobre é o outro que precisa de sua ajuda,


enquanto que para as mulheres das CEBs aquele que precisa não era o outro, era
o vizinho que estava doente ou passando por dificuldades. Elas também
acreditavam que estavam doando o seu tempo pela comunidade. As reuniões
com a Prefeitura para reivindicar melhores condições para o bairro e a
organização de uma rifa para comprar a casa para as reuniões da comunidade
eram missões importantes.

É interessante observar que, apesar de possuírem perfis tão diferentes,


essas mulheres apresentam pontos em comum, como a compreensão da caridade
e da doação ao próximo ou para aquele que precisa. A caridade para elas é um
bem da salvação; a percepção delas está muito fortemente ligada ao caritas
católico. A partir do século XIX, a palavra caritas adquiriu a conotação da luta
contra a luxúria e o egoísmo; na encíclica Caritas, Leão XIII afirmava que o
caritas deveria estar na família, no clero e nas instituições. O pontífice lembrava
a importância da ajuda mútua motivada pelo santo amor para amenizar o
sofrimento dos pobres e informar o povo corretamente (GUARIZA, 2013, p. 1).

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Isso é mais visível nas associações anteriores ao Concílio Vaticano II.


A concepção quase que paternalista de atender aos pobres para atenuar os
malefícios do liberalismo e do socialismo, era uma ação embasada na Doutrina
Social da Igreja. Nas CEBs, que são movimentos organizados após o Vaticano
II, ainda se acredita na importância da ajuda mútua, contudo, não se pensa os
pobres como meros destinatários da bondade dos ricos, mas como agentes de sua
própria libertação, influenciados pela Teologia da Libertação.
131
Entretanto, não podemos nos prender aos objetivos da Igreja Católica
com estas associações e movimentos, porque as entrevistas demonstram como
as mulheres criaram outros significados a partir de suas intencionalidades.
Comparando os manuais das associações fundadas na primeira metade do século
XX verifica-se que eles enfatizam mais a moral do que a caridade, contudo, nas
atas e nas entrevistas das mulheres que participaram da Associação e Oficinas
de Caridade Santa Rita é notável que elas concedessem maior importância à
caridade do que aos aspectos morais. Elas adaptaram a fita da associação,
uniformizando-a para todas as associadas, independente do seu estado civil e
conviviam muito bem com mulheres divorciadas ou espíritas que integravam a
associação. A respeito do uso da fita, a entrevistada comentou:
Outra coisa que nós modificamos. Em São Paulo é assim, as
senhoras viúvas usam a fita roxa e medalha da santa, as
solteiras usam uma fita branca com medalha e as casas fita
vermelha. Nós padronizamos em Curitiba, porque nós
achamos, às vezes uma pessoa está solteira e já está com 50
anos, então ela ficar com a fitinha branca, ela vai ficar
constrangida. E a outra que muda da fita vermelha pra roxa
quando ficou viúva é uma coisa que maltrata. Nós achamos
melhor padronizar a fita, fita vermelha pra criança, pra velho,
pra quem for. (LACERDA, 2008)

Em outro ponto da entrevista ela afirmou que não importava a


orientação da Igreja, se é de Puebla ou não, o que importa é que seja uma igreja
voltada aos pobres. As entrevistadas da Arquiconfraria das Mães Cristãs
demonstravam maior preocupação com a questão moral e o respeito ao
Catolicismo. Isso se manifestava na crítica aos netos que se converteram a
religiões neopentecostais ou as filhas que se separaram porque não se submetem
à autoridade do marido, como se pode constatar na citação a seguir.

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E depois tivemos que aceitar na própria carne, porque as


minhas duas filhas são divorciadas (....) Então a gente vai (?)
a independência da mulher né. Mesmo você sentindo
intimamente a convivência com o casal que não se dá bem,
né, antigamente o primeiro sentido era fazer com que aquele
casal se reconstituí e etc etc. e hoje em dia não, eles apelam
pro divórcio com a maior facilidade né. O conceito já é bem
outro (RIBEIRO, 2007).

Mesmo em associações cujo parâmetro é um Catolicismo da


neocristandade, baseado na Doutrina Social da Igreja, no rigor moral e no 132

combate às outras religiões, é visível que as mulheres não recebem passivamente


as orientações da Igreja, criando apropriações a partir de outras experiências.

Enquanto que as mulheres que participavam das CEBs, um movimento


criado a partir da ideia da Igreja do povo, ou seja, devia-se apostar no
protagonismo da população pobre para compreender a sua situação e modificá-
la, não há manual, os religiosos iam até a comunidade e conversavam,
conheciam, criavam estratégias e agiam, orientando os seus trabalhos pastorais
a partir das diretrizes dos padres belgas, “ver, julgar e agir” e na Teologia da
Libertação. Não há manual que frise os aspectos morais a serem seguidos, a
comunidade era ouvida e a partir de suas necessidades os personagens bíblicos
eram ressignificados.

Novamente o que se observa é a complexidade da apropriação das


mulheres nas CEBs; elas tinham grupos de discussão bíblica, e quando indagadas
acerca deles, lembram espontaneamente de representações masculinas como
líderes de seu povo para a libertação, como Abraão, Moisés, Jesus, enquanto as
representações femininas pouco são mencionadas. Quando perguntado a respeito
de Nossa Senhora, elas remetem à tradicional representação de Maria como
corredentora e intermediária nas relações entre os seus filhos espirituais e seu
filho, Jesus. Como é perceptível na citação da narrativa de Irene
[...] Maria é a intercessora nossa; porque milagre mesmo é
Jesus que faz, só que ela é intercessora como mãe, vai lá pro
pai e diz; Ah, faça isso, o teu filho tá querendo, vai, vai, né
(tom de suplica); então a gente vê Maria assim, como
intercessora; se eu quero conversa direto com Jesus nada
impede, porque Deus é o nosso pai, né, mas se eu tenho aquela
devoção por Maria, eu pedi pra Maria me ajuda com uma

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família que tá entrando por um caminho errado, pedi a ajuda


de Maria: Me ajuda você que também foi mãe, me ajuda; a
gente sempre pede, a gente vê Maria como intercessora; e ama
demais. (COSTA, 2008)

Portanto, essas mulheres na ausência de um discurso referente às


lideranças femininas na Teologia da Libertação1 criaram híbridos entre a
mariologia tradicional e a Teologia da Libertação. Neste sentido, foram
provocadas por parte das entrevistadas situações interessantes, desde mulheres 133
que ainda mencionam Maria a partir da mariologia tradicional, justamente por
terem tido contato em suas comunidades rurais de origem, quanto outras
mulheres que, posteriormente, na década de 1980, participaram de formações.
Nesse período, as mulheres que participaram das pastorais e das CEBs
começaram a questionar o próprio papel das mulheres na sociedade. É o caso de
Lontina, que compreende que as mulheres podem ser exemplo de liderança e de
luta para os homens.
[...] porque você pode vê, se você observar bem, muitos
homens se espelham nas mulheres, né, eles muitas vezes te
admiram, as vezes te criticam, porque as vezes você faz bem,
você faz melhor que eles, né; o meu mesmo, ele fala, porque
eu chego todo mundo me conhece, todo mundo cumprimenta,
todo mundo dá beijinho, né, ele não, ele é mais fechado, então
o problema é dele, eu tenho essa visão pode se espelha em
mim... (LICHEWITZ, 2008)

Portanto, há uma distância entre o discurso normativo e teológico e as


apropriações e as práticas religiosas dessas mulheres. As entrevistas apontaram
para várias formas de consumo das normas e das propostas católicas. De acordo
com Certeau (1998), o consumidor cultural não é tão disciplinado, ele inclusive
cria novas formas de consumir os produtos culturais. Para o autor, os
consumidores seriam produtores desconhecidos de trilhas ilegíveis (CERTEAU,
1998, p.45); eles produzem, contudo, deixam poucos indícios. A fonte oral pode
fornecer mais pistas acerca da produção dos híbridos culturais dos consumidores
religiosos.

1
Vários estudos apontam ser essencialmente cristológico e que repudiou a mariologia
tradicional. AQUINO, 1997, COYLE, 1999, COUTO, 2002.

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A compreensão das mulheres referente aos papéis de mulheres e de homens

É interessante observar que há uma grande diferença entre os papéis de


mulheres e de homens nas associações e nos movimentos. Nas associações
anteriores ao Concílio Vaticano II, as associações se organizavam por idade,
estado civil e gênero, havendo grande distinção nos papéis dos associados. As
crianças, da primeira comunhão até a puberdade, poderiam participar da Cruzada 134
Eucarística, que pretendia incutir a frequência à missa e a comunhão. Depois, na
adolescência, os jovens eram divididos por gênero; as moças geralmente
ingressavam na União Pia das Filhas de Maria e os rapazes nas Congregações
Marianas. Cada qual ressaltava características que se esperava socialmente; as
moças sofriam uma vigilância maior em relação ao comportamento moral e
sexual.

Um indício disso é que depois de casadas as moças deveriam sair da


União Pia das Filhas de Maria, enquanto os rapazes poderiam permanecer na
Congregação Mariana. Como observamos, existiam associações, como as
Associação e Oficina de Caridade Santa Rita, que recebiam mulheres solteiras,
casadas e viúvas, mas as fitas demonstravam a que estado civil pertenciam e o
comportamento esperado para cada caso.

Neste sentido, devido a essa separação das associações por gênero, as


entrevistadas da Arquiconfraria das Mães Cristãs e da Associação e Oficina de
Caridade Santa Rita quando mencionam os homens se referem mais aos seus
maridos e aos seus filhos e não a companheiros associados. De maneira geral, as
entrevistadas demonstram que se dedicaram ao casamento e aos filhos, inclusive
abandonando o emprego quando descobriam que estavam grávidas, afinal elas
“não iriam jogar os seus filhos em creches” (FREITAS, 2005).

Os filhos eram a demonstração do seu êxito como mulheres; quando


eles não agiam de acordo com os parâmetros morais com que foram educados,
o que restava era lamentar, como o caso das filhas que se separaram e os netos
que saíram do Catolicismo. Lembrando que estas associações ressaltavam a

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responsabilidade das mães em educar catolicamente os filhos e dentro dos


quadros da moral cristã, por isso esses comportamentos demonstravam uma
falha em sua missão materna.

Por outro lado, as mulheres que participaram das CEBs vivenciaram


uma participação em movimentos que não distinguiam os integrantes, todos
eram convidados a participar, mulheres, homens, crianças, adolescentes. Nas
primeiras reuniões das CEBs na Vila São Pedro, em 1968, o padre convidou os
135
casais para participar e no início todos participavam. Contudo, à medida que a
Vila foi se modificando, criando novos espaços de sociabilidade, como clube
poliesportivo e bares, os homens começaram a participar menos nas CEBs,
permanecendo apenas as mulheres. Esse processo foi indicado pelas
entrevistadas como Ezilda, que observou:
[...] sempre tinha mais mulheres, porque os homens ... não têm
aquele pique, eu acho, ... e outros, sei lá, não se interessa, acha
mais cômodo chega do trabalho, já cansado, e as mulheres
participam e ainda vão na reunião, trabalham e vão na reunião,
e os homens já gostam mais de bar e outro, aí já tira o pique,
né. Aí as mulher continua lutando.... (HOFFMANN, 2008)

Lontina narra como se desenvolveu esse processo de diminuição de


homens e do aumento das mulheres nas CEBs e as conquistas delas que
permaneceram.
[...] Era toda semana, toda semana, depois a mulherada foi se
destacando mais, e os homens começaram a ficar pra trás,
foram parando né, então as mulherada, porque agora a maior
parte é mulher que tá trabalhando nas atividades, homem não
tem muito, não ... O padre que arrumou aquelas missionárias,
elas que vieram pra cá, eram 10 mulheres, e daí elas
começaram a fazer um movimento com as mulherada, que
tinha que ter saúde, tinha que ter escola, que tinha que ter isso
e ter aquilo, aí que começaram a organizar o posto de saúde,
tem até hoje, acho em 78 por aí; daí começou a cresce um
pouquinho, né; dando espaço, aí forno adquirindo, luz, rua,
não tinha luz, não tinha rua, era só campo, não tinha nada,
nada; daí comecemo a exigir da prefeitura, daí veio a luz, daí
veio s ruas, aí se começou a organizar; foi se organizando os
bairros, foi crescendo, e daí foi exigido a água e o esgoto; deu
muita briga, mas conseguimo, né (LICHEWITZ, 2008)

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Lourdes (COSTA, 2008), que era a entrevistada mais idosa, com oitenta
anos, comparava a questão dos trabalhos nas CEBs com a doação do tempo;
algumas mulheres não podiam doar o seu tempo, porque tinham muita coisa para
fazer, acumulando o trabalho fora de casa com as atividades da casa e da família.
Irene (COSTA, 2008) comentou que ser mulher era uma matemática difícil, a
mulher é cobrada se algo der errado em casa ou na família, sobretudo se
permanece muito tempo em atividades fora da casa. Nota-se que essas mulheres
136
tinham que trabalhar fora para manter o orçamento familiar, mesmo assim, eram
cobradas pelas obrigações de esposa e de mãe. Também, segundo Lourdes, havia
as mulheres que poderiam doar o seu tempo, mas não queriam, fazendo alusão à
geração mais nova que não se compromete com a comunidade e a Religião.
Porque a mulher que ajuda, é pessoas que podem doar o
serviço, que tem algumas que nem no domingo pode doar o
serviço, né, aquelas que não podem doar, algumas não
querem, porque têm algumas que não têm experiência de
religião, aqueles que não têm experiência de religião, eles não
acertam faze nada, então a gente que faz tempo que trabalha
na comunidade, a gente tem mais experiência, né. (COSTA,
2008)

Prosseguindo, Lourdes observa que o número de homens é menor


porque eles não têm tempo para doar, eles são o provedor do lar. Ou seja, mesmo
nas famílias em que as mulheres muitas vezes desempenharam o papel de
provedoras, como foi o caso de Lourdes, que, quando se mudou para Curitiba, o
marido não conseguiu emprego e ela ficou trabalhando da faxineira até adoecer
e não pôde mais trabalhar com produtos de limpeza. Ou sua filha Irene, que
começou a trabalhar bem jovem para ajudar o orçamento da família e continua a
trabalhar como costureira e ainda coordena a panificadora comunitária da CEB.
Mesmo assim, Lourdes (COSTA, 2008) acredita que o tempo do homem tem um
valor superior em comparação ao da mulher, que pode doar o tempo. Irene
(COSTA, 2008) observa que a mulher pode faltar ao trabalho para cuidar dos
filhos doentes, os homens não.

Como Bourdieu (1999) afirma, as atividades realizadas pelos homens


em nossa sociedade são valorizadas, enquanto as atividades associadas às
mulheres são menos valorizadas tanto simbolicamente quanto em remuneração.

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Contudo, há um preço a pagar pela posição de superioridade, o homem não pode


demonstrar fraqueza e nem fracassar. Lourdes (COSTA, 2008) indicou isso
quando comentou que seu marido não gostava de participar das reuniões nas
CEBs, porque não queria admitir publicamente que não sabia ler; por outro lado,
as mulheres podem arriscar mais, porque justamente não se espera muito delas.

Portanto, a dicotomia entre o masculino e o feminino permeia as


relações nas associações e nas CEBs. De acordo com Bourdieu (1999), a
137
Religião é um dos meios em que há a reprodução das relações hierárquicas entre
os gêneros. Poderíamos pensar que mesmo com as apropriações e as práticas
criadas a partir das normas, existem outras normas que estão para além da
própria religião, que orientam as relações entre homens e mulheres nesses
movimentos.

Considerações finais

A historiografia atual referente às religiosidades enfatiza a diversidade


e a circularidade cultural, o que promove o desenvolvimento de estudos que
analisam as formas criativas com que os indivíduos consomem os bens
religiosos. Davis (1997), ao estudar mulheres do século XVII, observa que as
margens que essas mulheres ocuparam permitem que elas possam construir
novas experiências diferentes dos cânones de sua época.

As mulheres na Igreja Católica, não obstante terem grande importância


numérica e de participação, não ocupam os lugares centrais na instituição. As
religiosas não são ordenadas, sendo assim, mesmo participando do espaço do
sagrado, elas não podem realizar o momento mais importante do ritual da missa,
que é a consagração da hóstia. No caso das leigas, elas estariam submetidas a
uma dupla hierarquia, por não serem agentes do sagrado e por serem mulheres.

Contudo, esse espaço destinado às mulheres na Igreja Católica não


impediu que elas criassem formas diversas de participação, muitas vezes indo
além do permitido. Neste sentido, a oralidade nos permite conhecer essas
histórias de reapropriação e de hibridações experimentadas por elas.

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138
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Nadia Maria Guariza, Curitiba, 18 dez. 2008.

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THOMSON, Alistair. The oral history reader. New York: Routtedge, 2003.

RIBEIRO, Maria Helena Lessa. Associada da Arquiconfraria das Mães Cristãs.


Entrevista concedida à Nadia Maria Guariza, Curitiba, 26 set. 2007.

SANGER, Joan. Telling our stories: feminist debates and the use oral history.
In: PERKS, Robert; THOMSON, Alistair. The oral history reader. New York:
Routtedge, 2003.

ISBN: 978-85-65957-07-6
Rio de Janeiro
Ed. Anpuh-Rio
Atas do II Encontro Nacional do GT Estudos de Gênero
Rio de Janeiro, 27 e 28 de outubro de 2016.

“DEMOCRACIA EN EL PAÍS Y EN LA CASA”: IDENTIDADE E


POLÍTICA NOS PERIÓDICOS FEMINISTAS CHILENOS NA
DÉCADA DE 1980

Júlia Glaciela da Silva Oliveira*

Em 1983, tiveram início as jornadas de protesto convocadas pelo


140
Comando dos trabalhadores do Cobre (CTC), responsável pelas primeiras
articulações de greves e protestos que eclodiram na década. Esta ação, a
princípio limitada, teve um efeito catalizador, fazendo com que outros setores da
sociedade civil aderissem de forma espontânea às jornadas. Em datas específicas
a população tomou as ruas e bairros com manifestações e barricadas que exigiam
melhores condições de vida e o retorno à via democrática. Foi neste contexto
que o movimento feminismo chileno reemergiu na cena pública em julho de
1983, ainda sob o signo do regime civil-militar1. As manifestações se
fortaleceram devido ao agravamento da crise econômica e social decorrente do
fracasso das medidas neoliberais implantadas pelo regime civil-militar. De
acordo com Susan Franceschet (2002), devido ao desemprego masculino, muitas
famílias se separaram e as mulheres assumiram a chefia da casa e, entre os anos
de 1982 e 1983, ápice da crise, 75% das mulheres estavam inseridas em ações
governamentais, como o Programa de Empleo Minino (MEP)2, que pagava de

*
USP.
1
Cabe ressaltarmos que o Chile apresentou uma particularidade. Com as fraudes
ocorridas no plebiscito de 1980, a nova Constituição conferiu legitimidade ao regime
vigente para continuar no poder, além de inserir no texto medidas que possibilitariam
decretar estado de emergência e estado de sítio, como ocorreu em 1986. A nova
Constituição também definiu o itinerário da abertura tutelada, com as regras e os prazos
para a sua conclusão. De acordo com o texto, Pinochet ficaria à frente do governo por
um período de oito anos e, após este período, a autoridade militar indicariam um
substituto, que seria submetido a plebiscito para a sucessão. Se aprovado, um novo
período de 8 anos se iniciaria do qual, ao final, se convocariam novas eleições livre.
Caso houvesse reprovação, novas eleições deveriam ser convocadas no prazo de um
ano. (MARTINS, 2000)
2
De acordo com a autora, o Programa Empleo Minino funcionou entre os anos de 1974
a 1978, atendendo de 2 a 6% da população economicamente ativa. Entre os anos de
1980 a 1984, o desemprego feminino praticamente dobrou, indo de 10.7% a 19%,
enquanto o masculino foi de 12.1% para 15,9%.

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40% a 60% do salário pelas atividades prestadas, no intuito de minimizar os


efeitos das crises, levando, ainda, à feminização da pobreza. Logo, o movimento
feminista que surge com a insígnia “Democracia en el país y en la casa”, exigia
não apenas o retorno à democracia, mas também uma redefinição da própria
noção de democracia a partir das assimetrias de gênero que incidiam no
cotidiano das mulheres, sobretudo na esfera doméstica e familiar.

No entanto, apesar de a visibilidade pública ocorrer neste período, a


141
retomada das discussões sobre a mulher, bem como próprio feminismo datam do
final dos anos de 1970, paradoxalmente, em um dos momentos de maior
repressão. Cabe ressalvarmos algumas particularidades da reorganização do
feminismo, como dos demais movimentos sociais e das produções intelectuais
de oposição no Chile. A reestruturação dos movimentos sociais ocorreu ao lado
da entrada das primeiras Organizações Não Governamentais (ONGs), que
chegaram ao país ainda na década de 1970. De acordo com Margarita Iglesias
(2010), as ONGs serviram como estratégia de trabalho para muitos profissionais
das classes médias e ainda como forma de organização social para grupos
intelectuais e antiditatoriais que se debruçaram em compreender a realidade
política chilena, sendo amparados por fundos de cooperação internacional. Para
a autora, foi neste contexto que os movimentos feministas retomaram a
militância política ligada, sobretudo, ao combate à ditadura e na defesa dos
Direitos Humanos.

Mario Durán (2010) avalia que a entrada das ONGs no país seguiu duas
direções, sendo a primeira constituída pela formação dos centros acadêmicos, a
exemplo dos “Círculos de Estudio de la Academia de Humanismo Cristiano”
que, posteriormente, se estendeu para Facultad Latinoamericana de Ciencias
Sociales (FLASCO); e a outra formada por instituições de apoio aos
movimentos populares, como SEDEJ (Servicio de Desarrollo Juvenil), SEPADE
(Servicio Evangélico para el Desarrollo) y también ECO (Educación y
Comunicaciones).

O feminismo está interligado com a primeira direção. Entre 1979 e


1983, a Academia de Humanismo Cristiano abrigou o Círculo de Estudios de la

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Mujer, composto por pesquisadoras das ciências sociais e militantes da ASUMA


(Asociación para la Unidad de las Mujeres). A Academia de Humanismo foi
fundada em 1975, por iniciativa da Igreja Católica, com o propósito de servir de
espaço para que grupos de intelectuais, desalojados das Universidades,
pudessem refletir sobre a situação política, econômica e social do país. O Círculo
de Estudios de la Mujer teve o apoio financeiro e físico da entidade por quatro
anos, promovendo oficinas, grupos de conscientização, seminários e debates em
142
torno das questões de gênero, além da publicação de um boletim homônimo
(RIOS; GODOY; GERRERO,2003).

Entretanto, com a retirada do apoio da Academia de Humanismo


Cristiano, em 1983, o Círculo de Estudios de la Mujer acabou se dividindo,
dando origem a novas instituições. De um lado formou-se o Centro de Estudios
de la Mujer (CEM), com um caráter mais acadêmico; e, de outro, a Casa de la
Mujer “La Morada”, em formato de ONG, cujo objetivo era exercer uma
militância, a partir de uma perspectiva de gênero. A ONG editou o boletim
homônimo, entre os anos de 1986 a 1987, sem uma periodicidade regular.

Ainda neste mesmo ano, foi retomado o Movimiento de Emancipación


de la Mujer Chilena, baixo a sigla MEMCH “83”. Esta organização foi criada
em 1935 e teve um papel importante na conquista do sufrágio feminino, além de
fazer importantes discussões sobre o papel social da mulher, organizando
tertúlias, e publicando o jornal La Mujer Nueva entre os anos de 1935 a 1941
(KIRKWOOD, 1986). A retomada do movimento contou com a participação de
duas de suas fundadoras iniciais, Elena Caffarena e Olga Poblete e tinha como
propósito construir uma militância autônoma e ligada aos movimentos
populares. Assim, o MEMCH”83” foi constituído por diferentes entidades como
o Movimento Feminista, MUDECHI (Mujeres de Chile), MOMUPO
(Movimiento de Mujeres Pobladoras) e Agrupación de Familiares de los
Detenidos Desaparecidos (AFDD), além de militantes do Partido Comunista e
líderes sindicais. A partir de junho de 1984, passou a editar o Boletina Chilena,
totalizando quatorze números até o ano de 1987. No entanto, para
compreendermos a insígnia “Democracia en el país y en la casa” que marcou a

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retomada do feminismo chileno à cena pública, precisamos retomar às


discussões realizadas anteriormente, especialmente, pela Federación de Mujeres
Socialista que, entre os anos de 1980 a 1984, publicou a revista feminista Furia.

A crise instaurada nas esquerdas, desde o golpe de 1973, levou à divisão


do Partido Socialista Chileno (PS). De acordo com Walker (1988), essa ruptura
foi marcada pelas tensões em torno do projeto político anterior e da renovação
das esquerdas marcada, sobretudo, pela revalorização da democracia,
143
culminando no projeto de “nuevo socialismo democrático”. Protagonizada por
Carlos Altamirano, esta ala do partido tomou como referência o pensamento
intelectual da nova esquerda europeia e as reflexões gramscinianas sobre a
democracia e foi composta por distintas organizações de esquerda, como o
MAPU (Movimiento de Acción Popular Unitaria) e o MAPU- Obrero
Campesino, além de intelectuais da esquerda. Posterioremnte, em 1984, essa
formação deu ensejo à Alianza Democrática, atuante como força de oposição ao
regime militar. Entre estes grupos figurava a Federación de Mujeres Socialista
que, apesar de aderir às concepções do “nuevo socialismo”, rompe com a
militância institucional partidária e passa a defender a autonomia do movimento.

A revista Furia circulou, de forma irregular, durante quatro anos,


totalizando seis números. Seus editoriais, textos analíticos e entrevistas eram
assinados por Adela H, Beatrice ou Julia, pseudônimos de militantes como o da
socióloga e militante Julieta Kirkwood. O periódico propunha refletir sobre a
condição feminina frente ao regime ditatorial, no qual as desigualdades e
discriminações tradicionalmente enfrentadas pelas mulheres se acirraram. Suas
publicações questionavam a origem da opressão feminina interlaçando as
questões de gênero a outros marcadores sociais, a exemplo das assimetrias de
classe e etnia. Também teceu, em todos os números, uma crítica mordaz à
relação da esquerda com o feminismo, como foi exposto em seu quinto editorial,
[…] ‘No hay feminismo sin democracia’ frase que encierra
otra manera de reafirmar la secuencia: ‘lucha contra la
dictadura y por la democracia, primero. El problema de la
mujer, después’. Que esta lógica tan precisa y justa del
‘después no se da exactamente así en la realidad, es un
sentimiento muy vivido para los grupos feministas de aquí y
de allá. (…) En la mirada al Después, nos encontramos en un

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punto en que no cabe duda razonable de que ni la democracia,


menos el socialismo, se construirán – no pueden ser
construidos – si mantenemos en reserva y diferido el
‘problema de la mujer’ (n.5, jul., 1983, p.2).

Nas páginas do periódico a crítica ao autoritarismo não como algo


relativo apenas ao Estado, mas inerente à sociedade chilena, foi um dos pontos
centrais de discussão. Esse autoritarismo estava imbricado nas instituições
sociais, como o Estado, Igreja e na família, local por excelência da reprodução e 144
interiorização dos papéis de gênero e, logo, das discriminações e opressões que
incidem sobre a mulher. Portanto, enfrentar o autoritarismo imerso nestas
relações era extremamente necessário ao projeto político democrático. Sendo
assim, dentro da perspectiva do periódico, não bastava findar o regime ditatorial
vigente ou resolver as questões econômicas, em uma recusa às prerrogativas
clássicas do marxismo; era preciso reexaminar as diversas instituições e
organizações que sustentam a ideologia patriarcal e autoritária.
[…] El autoritarismo y la discriminación constituyen una
realidad que va a más allá de las estructuras económicas y
políticas. El autoritarismo se da en la estructura familiar, en
cómo formamos a los niños, en las relaciones interpersonales,
en las organizaciones sociales y en los partidos políticos.
Transformar de manera real y profunda nuestra sociedad sólo
es posible si enfrentamos las expresiones de desigualdad y
dominación en todos los niveles. Esto no se desprende
automáticamente de la modificación de las estructuras
económicas (n.6, nov., 1984, p.31).

Tal análise acompanha as discussões estruturalistas a respeito da


interiorização da cultural dominante por meio do conceito de ideologia 3. Neste
aspecto, as feministas não mais localizavam, exclusivamente, na econômica as
explicações para as assimetrias sociais, enfatizando os sistemas de representação
que assegurariam, por meio de instituições civis e do Estado, os valores
ideológicos dominantes. Nesta análise, a psicologia ocupa um papel relevante,
uma vez que os indivíduos não internalizam essa ideologia de forma consciente.
Nesta chave interpretativa, Juliet Mitchell (2006) advoga que a mulher, assim

3
A respeito do conceito de ideologia ver: MOTA, L.;SERRA,C. A ideologia em
Althusser e Lacan: diálogos (im)pertinentes. Revista de Sociologia Politica. Vol.22, nº
50, abril/junho, 2014.

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como a família, “aparece como um objeto natural, mas é na verdade uma criação
cultural. Nada há de inevitável quanto à forma ou papel da família, a mais do
que quanto ao papel das mulheres. É função da ideologia apresentar estes tipos
sociais dados como aspectos da própria natureza” (2006, p.203). Igualmente, a
revista era tributária das reflexões da socióloga Julieta Kirkwood que asseverou
sobre a importância de se reconhecer o autoritarismo como um dado que estava
no cerne das experiências femininas.
145
[…] las mujeres reconocemos, constatamos, que nuestra
experiencia cotidiana concreta es el autoritarismo. Que las
mujeres viven- siempre han vivido – el autoritarismo en el
interior de la familia, su ámbito reconocido de trabajo y
experiencia. Que lo que allí se estructura e institucionaliza es
precisamiente la Autoridad indiscutida del jefe de familia, del
padre, la discriminación y subordinación de género, la
jerarquía y el disciplinamiento de un orden vertical, impuesto
como natural, y que más tarde se verá proyectado en todo el
acontecer social (1986, p.223).

É frente a esse contexto que as feministas defenderam a insignía


“Democracia en la casa y el país”. Para o movimento, que começava a dar
visibilidade às questões privadas como políticas, não bastava o retorno à
democracia, uma vez que esta não implicou na libertação da mulher; era
necessário combater e erradicar o autoritarismo em todas suas facetas, incluindo
dentro da militância de esquerda e de oposição naquele momento. Logo,
combinar feminismo com militância partidária foi compreendido, nestes
primeiros anos, como algo inviável, posto que, além das históricas tensões entre
as feministas e os partidos de esquerda chileno4; estes representavam a velha
política que não preteriu as demandas femininas em seus projetos anteriores.

Desde sua primeira edição, a revista Furia enfatiza como as questões


referentes ao universo do privado, ao não ser vislumbradas pela esquerda, foram
convertidas em questões políticas pela direita de maneira inversa, no apelo ao

4
Sobre a relação entre os partidos de esquerda e o movimento feminista chileno na
primeira metade do século XX ver: KIRKWOOD, Julieta. Ser politica en Chile: las
feministas y los partidos. Santiago: FLASCO, 1986, GAVIOLA Edda., MORENO,
Ximena, MIRA, Claudia. Queremos votar en las próximas eleciones: historia del
movimiento femenino chileno 1913-1952. Santiago: Centro de Análisis y Difusión de
la Condición de la Mujer, 1986.

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“eterno feminino”. Avalia que a ação das mulheres contra o gonverno da Unidad
Popular5, foi acionada pelo regime militar no intuíto de transformar as mulheres,
enquanto mães e esposas, como “bastiões” da nova nação. E este movimento foi
possível, pois, os partidos de esquerda nunca vislumbraram,de fato, a libertação
feminina, reservando às mulheres o mesmo lugar que a direita: na família, como
esposa e mãe.

Esse discurso também está presente no boletim La Morada. O


146
periódico, com formato diferente da revista socialista, tinha como principal
objetivo informar sobre cursos, palestras e exposições organizadas pelo
movimento feminista. A exemplo de seu editorial, em 1986, que convida as
mulheres para participarem das comemorações do Dia Internacional da Mulher
e lutar pela “democracia” em sua extensão à família.
Celebramos el 8 de marzo como el Día Internacional de la
Mujer en homenaje a las 60 obreras textiles que, habiéndose
declarado en huelga reclamando una jornada de 8 horas y un
salario similar al de sus compañeros varones, murieron
quemadas al ser incendiada la fábrica en que trabajan. Porque
no queremos que historias como ésta vuelvan a repetirse,
porque no queremos más discriminaciones entre hombres y
mujeres; porque queremos cambiar esta sociedad sexista y
autoritaria que nos impide ser personas, dueñas de decidir
nuestra propia historia, es que para nosotras las mujeres ¡cada
día es un 8 de marzo! EXIGIMOS DEMOCRACIA EN EL
PAÍS Y EN LA CASA! (s/n., fev.,1986, p.1).

Dada a distinção entre os projetos editoriais e políticos de ambos os


periódicos, por meio do La Morada, conseguimos acompanhar as discussões que
eram realizadas sobre sexualidade e controle de natalidade. Entre 1986 e 1987,
ao menos três seminários orientados para o tema foram anunciados, como o de
“Autoexamen y Anticonceptivos” e o de “Sexualidad”, que eram realizados uma
vez por semana, com oito a dez encontros. Em alguns anúncios foi apresentado

5
Em 1971, durante o governo da Unidad Popular, presidido por Salvador Allende, as
mulheres de classe média organizaram a “Marcha de las Cacerolas Vacías”, com o
intuito de protestar contra o regime vigente. Essa manifestação se espalhou por outras
cidades e, devido a sua expressividade pela mídia, levou à formação do Poder Feminino,
movimento constituído por militantes ligadas à Democracia Cristiana, além de mulheres
que nunca haviam participado da vida política. Os protestos organizados pelo grupo
contribuíram, de sobremaneira, para desestabilizar o governo de Allende e, em certa
medida, legitimar o golpe de 1973. VALENZUELA (1993)

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um pequeno resumo com a proposta temática, a exemplo do taller “La


Sexualidade no es sólo Maternidad”.
¿Qué es la sexualidad? Eso que te inquieta, que tantas veces
te preocupa; algo que te atrae, que te gusta pero que no te
acaba de convencer. Se trata de algo difícil de definir. Tiene
que ver con la salud. Con tu cuerpo. Con tu estado de ánimo.
Con tus ideas. Con las de otras personas. Con el sexo. En los
Talleres hablamos de nuestra experiencia, porque no
queremos seguir arrinconado el sexo en cuarto escuro (s./n,
dez, 1986, p.5).
147

Em outra ponta, o Boletina Chilena era direcionado às diversas


associações de mulheres, entre as quais figuravam lideranças sindicais e grupos
de mães e esposas de presos políticos. Deste modo, sua ênfase central está em
trazer à cena o movimento de mulheres como agente político, uma vez que estava
ausente do cenário público chileno desde os anos de 1950. Logo, apresentar as
mulheres como protagonistas, sobretudo na luta pelo retorno democrático e na
defesa de seus direitos, era um ponto dorsal no boletim. Em vários momentos, o
corpo editorial abriu espaço para que as pobladoras narrassem suas experiências,
relatando as dificuldades de conseguirem emprego, a má remuneração e a
situação de miséria. E, na quarta edição, a partir das declarações de militantes de
organizações femininas, destacou depoimentos da Comisión de Defensa de los
Derechos de la Mujer (CODEM) que enfatiza, justamente, a dupla opressão da
mulher trabalhadora.
[…] por generaciones y vamos descubriendo así que la mujer
es doblemente explotada, es la marginada de siempre. Yo soy
una obrera y ahí lo veo: desempeñando un trabajo incluso de
mejor calidad que los hombres, siempre los sueldos son
inferiores para la obrera. Comprobamos en la práctica esta
marginalización cotidiana. También fuimos descubriendo que
nos podíamos actuar sólo con las mujeres de población. Es la
más marginada, la que más sufre, pero ninguna mujer está
ajena a esta marginación. Hemos ido descubriendo que la
marginación de la mujer cruza todas las capas sociales y todos
los estilos de vida de la mujer (n.4, 1984, p.7)

Contudo, isso não impediu que publicasse excertos de textos que


afiançavam que eram as diferenças culturais que asseguram as formas de
opressão e discriminação contra as mulheres. Em 1986, a publicação de número
onze reproduziu um pequeno trecho de Margarita Cordero, militante

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dominicana, que havia sido publicado pela revista feminista latino-americana,


Mujer Fempress, editada pelo Instituto Latinoamericano de Estudios
Transnacionales (ILET). O trecho enfatiza, justamente, que “na cosa son las
diferencias naturales entre los sexos y otra muy distinta es la vigencia de
esquemas culturales sexistas en los cuales precisamos se apoyan las
discriminaciones contra la mujer” (n.11, may/jun., 1986, p.12).

Dada a sua aproximação com a militância dos desaparecidos políticos


148
e, por conseguinte, com a defesa dos Direitos Humanos, este boletim dedicou
atenção especial na denúncia das violações cometidas pelo Estado em relação às
mulheres através da seção intitulada “Para que nunca se diga: no lo sabía”. Nesta,
o boletim apresentou narrativas sobre espancamentos, torturas, estupros e
abortos, perpetuados pelo Estado contra os corpos femininos. Em 1984, esta
seção trouxe o relato de três de jovens estudantes que haviam sido presas e
torturadas e, ressalta, em dois, o uso do corpo feminino como alvo de ameaça da
violência sexual.
[…] Me llevaron a la misma sala vendada y cubierta sólo por
una frazada que la quitaron al pedirme que me acostara en la
colchoneta cerca de diez hombres y dos interrogadores, el
resto estaba para dar los golpes. En ese momento me pidieron
que abriera las piernas, lo que me terminó por descomponer.
No conformándose con eso el interrogador, que tenía una
luma en la mano, la puso entremedio de mis piernas,
amenazando con introducirla si no hablaba, en ese momento
se me borró la memoria y sólo me acuerdo cuando estaba de
pie recibiendo golpes para perder ‘la cría que tenía

[…] Fui víctima de tortura física y psicológica que paso a


mencionar: desnudez de mi cuerpo y groserías acompañadas
de golpes y manoseos (…) Otra de las torturas fue el llamado
por ellos ‘el submarino’; ahí me sumergieron reiteradas veces,
por varios segundos; cuando me encontraba bajo el agua uno
de ellos me introdujo los dedos en la vagina; me sacaron semi
inconciente y me siguieron interrogando en otra sala (n.4,
nov/dec., 1984, p.11)

Tais narrativas foram constantes no periódico, que tentava evidenciar a


violência do Estado contra as mulheres e articulá-las ao discurso dos Direitos
Humanos, ou seja, mostrar como as formas de tortura perpetradas pelo Estado
também apresentava nuances em relação à direcionada aos homens. De acordo

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com Susel Rosa (2015), nas ditaduras latino-americanas, o uso do corpo na


tortura, seja através do desparecimento, da disseminação da tortura ou dos
sequestros, atingiram os militantes em geral, mas “adquiriram um caráter
específico em relação às mulheres por meio da violência baseada no gênero
(2015, p. 315)”, pois, a tortura ocorreu por meio de estupro, mutilação,
humilhação, insultos e intimidações sexuais. O acionamento da maternidade
também foi um artifício utilizado pelos regimes ditatoriais para torturar as
149
mulheres, ameaçando-as de empreender as mesmas técnicas de violência em
seus filhos.

Essas reflexões e manifestações ocorreram paralelamente às disputas


entre as “feministas” e as “políticas”, termo cunhado por Julieta Kirkwood
(1986), e que seguiu norteando o debate sobre a incorporação das mulheres e
suas consignas nos partidos ou o fortalecimento do movimento autônomo como
mecanismo político. Essa diferenciação partia da descrença de muitas feministas
em relação aos partidos e, deste modo, as “políticas”, isto é, as mulheres que
optavam por militar no feminismo e no partido político, também eram vistas com
ressalvas pelas feministas autônomas. Estas criticavam as primeiras por
recorrem a uma velha tradição política que sempre postergara as especificidades
femininas. Contudo, Franceschet (2002) advoga que muitas militantes ao se
confrontarem com o dilema “autonomia versus integração”, rejeitaram a
estratégia autonomista e optaram pela “dupla militância” como método para
inserir as reinvindicações de gênero na agenda da transição.

Isso, no entanto, não quer dizer que a demanda das feministas foi
inserida nos novos partidos políticos. Segundo Valenzuela (1993), o Partido
Comunista propôs um programa voltado para os habituais “lugares” femininos,
como subsidio a maternidade e auxilio materno-infantil, além de uma permissão,
mas não estímulo, ao divórcio. Essa proposta pouco atendia às questões
femininas, sobretudo no que tange à desnaturalização dos papéis femininos e
redemocratização das atribuições domésticas e familiares. O Partido Socialista
renovado, por sua vez, que sofria de perto a pressão organizada das mulheres
socialistas, apresentou um projeto mais próximo aos interesses feministas,

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incluindo sanções à violência doméstica e conjugal, alteração das leis


trabalhistas, divórcio e a promessa de maior presença das mulheres na direção
(VALENZUELA, 1993).

A relação entre feministas, “políticas” e os partidos se acirraram durante


a campanha pelo “NO”, em 1987, momento em que as mulheres tiveram um
papel decisivo6. Representadas, sobretudo pela Concertación Nacional de las
Mujeres por la Democracia (CNDM), Valdés (1993) afiança que o movimento
150
organizado fez da bandeira pela democracia uma campanha pelo “NO” também
ao sexismo, as discriminações de gênero e ao autoritarismo presente na
sociedade chilena. Dado ao êxito da campanha, a autora avalia que este período
foi profícuo para as feministas pressionarem a Concertación por la Democracia
para que os temas das mulheres entrassem na agenda do novo governo. No
entanto, todo o protagonismo das mulheres, não resultou em uma adesão plena
de suas exigências pela Concertación.

Cabe pontuarmos que a transição democrática foi ancorada em um


“consenso” entre as novas forças políticas e o regime militar, portanto, trouxe
em seu bojo uma herança institucional do autoritarismo, aliada à Igreja Católica,
sendo, duplamente, inóspita às feministas. Além disso, o Chile apresenta uma
dupla especificidade em relação aos direitos postulados como emancipadores
femininos: o divórcio e o aborto que, ao lado da violência doméstica, foram
temas pouco abordados pelos periódicos. No que tange ao primeiro, vigorava
no país uma lei de 1884, na qual os chilenos poderiam anular o casamento no

6
Pela Constituição de 1980, Pinochet era obrigado a chamar um plebiscito e apresentar
a eleição de um único candidato escolhido por unanimidade pelos Chefes do Exército.
Para isso era necessário abrir os registrados eleitorais, o que ocorreu em 1987, momento
em que a oposição atuou fortemente com a campanha do registro e, posteriormente, a
campanha pelo “NO” que saiu vitoriosa, levando à eleições livres, como estava
acordada na Constituição. No entanto, há vários impasses em torno da maneira como as
eleições ocorreram, sobretudo em relação aos acordos feitos com o regime militar que
resultaram nas intituladas “leyes de amarre” que incluíram a permanência de
funcionários em cargos públicos, algumas privatizações, além de que Pinochet, caso
perdesse as eleições, seguiria como chefe do exército até 1998 (COLLIER; SATTER,
1996).

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civil, mas não se divorciarem7. Apesar de a prática existir, o impacto das relações
entre Estado e religião, fez com que o divórcio só fosse autorizado em 2004. Em
relação ao segundo ponto, o aborto, até 1989 havia uma lei, datada de 1930, do
governo de Carlos Ibáñez del Campo, que permitia o aborto terapêutico. O
método era permitido quando a gravidez colocava em risco a mulher ou a criança
e foi mantida, durante a reforma do Código Sanitária, em 1968, no governo de
Eduardo Frei. No entanto, Pinochet, que já adotava um discurso contrário à
151
prática; em setembro de 1989, revogou o artigo e referendou a lei nº 18.826, do
Código Penal, criminalizando toda ação cujo propósito seja provocar um aborto.
Frente aos acordos feitos na transição democrática, que teve amplo apoio dos
setores religiosos, o tema do aborto foi retirado da pauta política, bem como o
divórcio, indo na contramão das discussões e políticas públicas latino-
americanas sobre emancipação feminina e direitos reprodutivos.

Nesta trilha de pensamento, o editorial do Boletina, em 1989, que abriu


o novo projeto do MEMCH “83”8, trata, justamente, das frustrações do
movimento após a campanha exitosa pelo “NO”. Ao indagar o que teria
acontecido ao movimento feminista após a vitória do plebiscito, já que era
notória a ausência das mulheres e suas demandas no contexto político, afirma:
[…] Ha sido más fuerte el machismo: los cargos de
responsabilidad han quedado en manos de sus dueños
“naturales”, los hombres. Admitamos que sabíamos que esto
iba a ocurrir. Difícil, muy difícil, que a este joven movimiento
de mujeres, no si le valora y reconocerá por parte de quienes
desean recuperar el poder a través de una falsa reconciliación,
que oculte los dolores sin reparar las injusticias (n.1, 1989,
p.2)

Deste modo, podemos avaliar que, apesar da força que o movimento


conseguiu ao longo da década, na transição democrática as demandas femininas
não figuraram como centrais, isto é, as transformações almejadas, sobretudo nas
relações familiares, passaram ao largo das discussões políticas daquele

7
Para realizar a anulação, os cônjuges recorriam ao juiz e apresentavam três
testemunhas que pontassem erros no registro civil, como alteração na data de
nascimento de um dos noivos, endereço equivocado, etc.
8
A partir desta data o movimento passou a ser uma ONG, editando um novo periódico
intitulado La Boletina.

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momento. Contudo, gostaríamos de ressaltar uma peculiaridade dentro do


próprio feminismo chileno. Grande parte das discussões e reflexões das
feministas direcionou-se para as formas de opressão e assimetrias que eram
perpassadas dentro do núcleo familiar. Todavia, este núcleo familiar era
pensando dentro da lógica binária e heterossexual. Diferente de outros países
latino-americanos, como Brasil e Argentina, não encontramos no Chile
publicações de grupos homossexuais. Igualmente, não nos deparamos com
152
problematizações sobre a heternormatividade compulsória, debatida, neste
período, também como uma forma de opressão em outros países latino-
americanos.

A lacuna deste debate não implica na ausência de movimentos gays e


lésbicos, ao contrário, desde 1984, o coletivo lésbico feminista Ayuquelén
existia e realizava suas reuniões na sede da ONG La Morada. A decisão de
formar o grupo veio após o assassinato de Mónica Briones, uma jovem
espancada em praça pública por se assumir homossexual, e, também da
participação das militantes no II Encontro Feminista Latino Americano e do
Caribe, em 1983. Apesar disso, a visibilidade do movimento só ocorreu em 1987,
quando jornalistas da revista de oposição APSI solicitaram uma entrevista às
militantes, que foi concedida nas instalações da La Morada. Segundo Norma
Mogrovejo (2000) a publicação da entrevista9 gerou conflitos entre as feministas
que enviaram uma carta aos editores da revista explicando que o coletivo lésbico
era apenas mais um dos que compunham a ONG e que as entrevistadas deram
“un tratamiento superficial y sensacionalista que sólo contribuye a reforzar los
prejuicos existentes” (2000, p. 320). A partir dessas declarações e da posição de
Margarita Pisano, à época coordenadora da instituição, as relações entre o
Ayuquelén e a La Morada foram rompidas, nos levando a indagar sobre o porquê
da invisibilidade política da questão no feminismo chileno.

Em suma, a partir desta breve análise, podemos inferir que o movimento


feminista chileno, mesmo não sendo homogêneo, trouxe em comum o discurso

9
O artigo intitulado “Colectivo Ayuquélen: somos lesbianas por opción” foi publicada
no nº 206 da revista APSI, de 1987.

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da transformação dos tradicionais papéis de gênero dentro da família como uma


de suas principais bandeiras. Ao localizar o autoritarismo não como algo relativo
ao Estado, mas também intrínseco às práticas sociais que oprimiam as mulheres,
as feministas iluminaram as construções culturais que pesavam sobre as
identidades masculinas e femininas. Entretanto, com o objetivo de combater o
discurso que postulava a família como bastião da ordem e da moral chilena, o
feminismo acabou por acionar o papel tradicional da mulher para tratar de suas
153
lutas específicas. Se, por um lado, este recurso propiciou um fortalecimento
público do movimento, por outro não conseguiu sensibilizar o novo regime
democrático e construir uma representação política de gênero mais efetiva.

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La Morada, s/n.,fev.,1986.

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La Morada, s/n.,dez.,1986.

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GÊNERO E MEMÓRIA: A CONSTRUÇÃO DE HIERARQUIAS

Rafael Chaves Vasconcelos Barreto*

Introdução

Pensar a sociedade, sua construção e dinâmica, perpassa pelo


entendimento de seu elemento formador – o Ser Humano. Nesse sentido, pensar 156
o ser humano é uma tarefa difícil, porém instigante visto que, apesar de cada
homem e cada mulher serem únicos e diversos, essas diferenças em
determinados momentos são percebidas como algo que leva ao desequilíbrio do
conjunto, ou seja, da sociedade.

Observando a sociedade é possível perceber uma tentativa de


homogeneização onde se procura agrupar os indivíduos de acordo com suas
semelhanças levando, em determinados casos, a uma segregação daqueles que
não se enquadram nos grupos majoritários e/ou não se adequam a determinadas
normas criadas pelo corpo coletivo.

Desse modo é importante reparar que essa tentativa de homogeneização


leva à criação de categorias bem como de hierarquias que, se sobrepondo umas
às outras, criam grupos de indivíduos dotados de direitos e “privilégios”,
enquanto outros, não estabelecidos de acordo com essas normas historicamente
construídas, ficam à margem nesse conjunto e, em alguns casos, privados de
direitos.

Cabe ainda ressaltar que essa regulação imposta pela sociedade é


marcada por “escolhas” que vem sendo orientadas, dentre outros fatores, pela
memória coletiva da sociedade e seus costumes.

Nesse contexto, o presente trabalho visa analisar alguns elementos que


outras sociedades apresentam relativos à construção de uma das categorias
criadas pela sociedade – o gênero.

*
Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro.

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Estudar gênero perpassa por diversos elementos e questões como, por


exemplo, o uso do termo Homem para designar toda a espécie humana. Seria o
uso do termo Homem como representante da espécie humana uma simples opção
linguística ou seria o reflexo de uma hierarquia pautada em possíveis hierarquias
de gênero?

Partindo dessa questão será feita uma breve análise da construção dessa
categoria social tão complexa, buscando através da análise de alguns pontos
157
históricos como outras sociedades precursoras à nossa tratavam dessa questão.

A construção do binarismo

Para começar nossa discussão, é importante destacar que entendemos o


conceito de gênero como sendo algo construído socialmente, podendo ou não ter
uma relação de coerência e inteligibilidade em relação ao sexo, como nos mostra
Judith Butler (2003).

Nesse sentido a autora nos mostra que o sexo é representado pelo


caráter biológico, marcado pelo corpo do indivíduo1 no momento de seu
nascimento. Desse modo temos a criação de elementos vistos como constituintes
da categoria sexo, representados pelo macho e pela fêmea e, por sua vez, a
criação de dois perfis de gênero, o masculino e o feminino, que representam a
forma como o sujeito se apresenta na sociedade. A partir disso é possível
perceber que tanto sexo quanto gênero apresentam um modo de construção e
certa “oposição”, fazendo com que sexo e gênero sejam vistos de forma binária.

Desse modo é importante observar que esse binarismo de gênero


apresenta não só uma relação de oposição, mas também demonstra uma
hierarquia, percebida facilmente em nossa sociedade e que vem se perpetuando
ao longo dos anos.

1
Nesse momento não será levada em consideração a capacidade do indivíduo em
modificar seus caracteres biológicos, como por exemplo, intervenções possíveis através
de processos de transexualização. Tal processo modifica caracteres biológicos abrindo
questionamentos como o uso de tais procedimentos como forma de reforçar o binarismo.

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Apesar de atualmente esse tema fazer parte de muitas pautas de


discussão e alvo - mesmo que de forma discreta - de políticas públicas, podemos
observar a permanência de um discurso formador de gênero hierarquizado em
diversos momentos da história de inúmeras civilizações. Esses discursos
enfatizam a visão de uma posição inferior que tem atualmente na sociedade os
indivíduos que fogem do perfil masculino heteronormativo, ou seja, enfatizando
a “valorização que a cultura greco-judaico-cristã faz do homem viril, branco,
158
adulto, rico, monogâmico e heterossexual”, conforme no explica Alves (2004).

Podemos ainda, nesse contexto, analisar uma das metáforas mais


conhecidas pelos indivíduos que foi a formação do Universo, mostrada pela
Bíblia em seu livro da Gênesis. É importante considerar que a Bíblia é um dos
livros mais antigos da humanidade, tendo sido reescrita e traduzida diversas
vezes, utilizando em diversos momentos o recurso linguístico da metáfora, o que
proporciona ao leitor incontáveis formas de interpretações, permitindo muitas
vezes a ocorrência de interpretações extremistas.

Partindo disso, podemos observar a passagem bíblica da formação do


Universo, onde gostaria de ressaltar a criação do “Homem”, tendo sido Adão
criado primeiro, a partir da terra (o que dá a origem etimológica de seu nome –
Adão, oriundo segundo algumas interpretações da expressão Adam – do termo
hebraico, ADaMaH, que denota ‘terra fértil’2). Desse modo tivemos Adão criado
à imagem e semelhança de Deus.

Mas e Eva?

Essa teria sido criada após Adão, a partir de uma de suas costelas, o que
nos permite levantar inúmeras hipóteses e questionamentos. A primeira delas é
uma noção de “androginia constitutiva” (Buci-Glucksmann, 1984:181) partindo
do princípio de que Eva representaria a parte feminina retirada de Adão,
colocada na posição de outro. Essa posição de “outro”, representando assim a
alteridade também pode ser vista através de diversos ângulos. A parte feminina

2
Informação retirada de www.haroldoreimer.pro.br/genesis/Ge02.htm. Acesso em: 28
jun. 2011.

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vista como parte sensível do homem, responsável pelas percepções,


sensibilidade, ou seja, características regularmente caracterizadas como
femininas podem ser explicadas pela proximidade da costela com o coração, o
que nos faz caracterizar a mulher como dotada da emoção, enquanto o homem
traria a razão. Tal posição de certo modo já coloca nessa relação dual uma
hierarquia, visto que a mulher tanto por ser criada a partir do homem como por
não possuir razão, vive então uma dependência em relação ao homem e ao
159
mesmo tempo exclui do homem qualquer traço de sensibilidade.

Seguindo a história de Adão e Eva, temos o momento em que Eva,


desprovida (nesse contexto) de razão, mas provida de sensibilidade, se deixaria
seduzir pela serpente que porta o fruto proibido da árvore do conhecimento, e
ainda o oferece a Adão que também o come, fazendo com que ambos tenham
que se retirar do paraíso carregando para sempre esse “pecado original”, que
resultou de uma sobreposição da sensibilidade sobre a razão, visto que Eva teria
sido responsável por tal ato a partir dessa interpretação, conforme Alves (2004)
explica ao citar a seguinte parte do livro Gênesis:
Disse Deus à mulher, como castigo pelo pecado original:
Multiplicarei os teus trabalhos e teus partos. Darás a luz os
filhos com dor e estarás sob o poder do marido e ele te
dominará. (ALVES, 2004: 9)

O autor comenta ainda que a partir de então se instala no plano


simbólico a dominação masculina e a noção de mulheres como sendo um
segundo sexo. No entanto não é só nas culturas cristãs e islâmicas (pelo uso da
Bíblia e do Alcorão) que as mulheres podem ser vistas a partir de interpretações
hierárquicas. Visões ainda mais radicais sobre a mulher e o feminino podem ser
encontradas ao estudarmos a Grécia Antiga.

É importante frisar que, diferente da metáfora bíblica, na Grécia Antiga


a mulher era abertamente diferenciada do homem e posta numa relação
hierárquica onde somente os homens possuíam direitos visto que as mulheres,
conforme mostra Corino (2006) eram “encaradas como intelectual, física e
emocionalmente inferiores”. É possível observar esse traço de tratamento
quando Vernant (2000:155) relata uma passagem onde Penteu, um jovem rei, ao

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ser informado da derrota de seu exército para um grupo de mulheres, “encarna o


homem grego num de seus aspectos maiores”, sendo, dentre esses aspectos
“certo desprezo pelas mulheres, vistas, inversamente, como seres que se
abandonam com facilidade das emoções”. Desse modo, ainda nas palavras de
Vernant:
Penteu nutre a ideia de que o papel de monarca é manter uma
ordem hierárquica em que os homens estão no lugar que lhes
cabe, as mulheres ficam em casa, os estrangeiros não são
admitidos e em que a Ásia e o Oriente têm fama de ser 160
povoados por gente efeminada, habituada a obedecer às
ordens de um tirano, enquanto a Grécia é habitada por homens
livres. (VERNANT, 2000:155-156)

Desse modo vemos, que na monarquia de Penteu, os homens eram


livres e as mulheres ficam em casa. Na sociedade ateniense, segundo Corino
(2006) o papel cívico das mulheres era somente um: a reprodução. Feito isso seu
dever estava cumprido, pois ela não possuía paidea para transmitir, ou seja, não
possuía conhecimento, logo não podia frequentar as academias gregas. Tal
questão pode ser trazida para nossa realidade da qual, até o início do século XX
o acesso à educação era restrito ou mesmo vedado às mulheres em diversas
sociedades, como a brasileira, onde uma minoria tinha acesso às escolas
normalistas, sendo somente depois de algumas décadas instituídas escolas
mistas.

Partindo dessa breve explanação sobre a construção de binarismo


hierárquico, será possível, a seguir, pensar em uma visão mais ampla dos usos e
abordagens do feminino.

O feminino dionisíaco

Dando prosseguimento à nossa discussão, podemos analisar um


personagem grego bastante emblemático que pode nos ajudar a entender a
construção do feminino atual nesse contexto binário: o deus Dionísio.

Como nos mostra Vernant (2000), Dionísio é um deus a parte,


começando pela sua gestação, realizada na coxa de Zeus que fora transformada

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em útero para que Dionísio pudesse ser gestado após a morte de sua mãe Sêmele,
que fora consumida pela luminosidade flamejante e fulminante de Zeus. Desse
modo é possível observar uma primeira ambiguidade em Dionísio – ser gestado
no “ventre de um homem”.

Mas não é somente na sua gestação que a ambiguidade de gênero se


apresenta em Dionísio. O deus apresenta em parte, aspecto feminino, muitas
vezes, conforme mostra Vernant (2000), se vestindo de mulher com cabelos
161
compridos, dentre outras características então consideradas femininas para
aquela sociedade.

Desse modo Dionísio é colocado por Vernant (2000:144) como um


deus que representa “a figura do outro, do que é diferente, desnorteante,
desconcertante, anômico”. O autor ainda atribui à figura de Dionísio uma
misteriosidade, mostrando o deus como “aquele que não se pode captar, que não
se pode enquadrar” (2000:145).

Não obstante, temos na figura de Dionísio, características não somente


físicas em determinados momentos, como subjetivas, o que faz com que ele seja
portador, em um só corpo, do binarismo de gênero.

No entanto é importante discutirmos sobre que características seriam


essas capazes de marcar tão fortemente tal divisão, pautada cada vez mais por
aspectos subjetivos que pelo próprio corpo biológico, o que nos leva a entender
o que nos mostra Vernant (1991:21) ao relatar que:
(...) durante o período de crescimento, antes de darem o passo
decisivo, os jovens ocupam, como a deusa [Ártemis], uma
posição liminar, incerta e equivoca, na qual ainda não estão
claramente determinadas as fronteiras que separam os
meninos das meninas, os jovens dos adultos, os animais dos
homens. (Vernant, 1991:21-22)

Temos, portanto reforçada a ideia de gênero, como algo decisivo e


construído posterior ao nascimento.

Tendo em vista, portanto, que gênero se refere, segundo Alves (2004),


dentre outras questões, às práticas quotidianas, aos rituais e a tudo que constitui
as relações sociais, corroborando a visão de Butler (2003) que o classifica a partir

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dos significados culturais assumidos pelo corpo sexuado, podemos sugerir que
os aspectos subjetivos estariam ligados principalmente às ações do sujeito como
seus “códigos linguísticos e representações culturais” (Lauretis,1994 apud
Alves, 2004).

Portanto, da mesma forma que temos no campo filosófico a dualidade


apolíneo e dionisíaco, onde o dionisíaco aparece como sendo a parte do trágico,
representando a alteridade, podendo ser entendido como o feminino em oposição
162
ao masculino enquanto sujeito, polo positivo nessa dualidade.

Analisando as ações quotidianas que envolvem as relações de gênero,


podemos observar essa relação apolíneo/dionisíaca em determinadas questões
como a relação sexual, onde o homem, parte ativa é visto como atuante, intenso,
vivo, enquanto a mulher é mostrada como parte passiva, o que passa ainda a
ideia de sujeito que recebe a ação, que não atua, inerte e até mesmo apática,
como explica Alves (2004).

Trazendo a questão para o âmbito linguístico, Alves (2004) nos mostra


alguns exemplos dessa relação na língua portuguesa, como o significado de
alguns pares de palavras como pistolão – homem poderoso que faz indicações
ou recomendações; e pistoleira – sinônimo de ‘puta’.

Desse modo Alves (2004) nos faz retomar a realidade grega, onde
temos o homem público como o Homem de Estado, homem de prestígio,
enquanto a mulher pública seria vista com desprestígio, tendo muitas vezes o
significado de ‘mulher da vida’, meretriz, dentre outros. Desse modo a sociedade
grega demonstra na fala a destinação do espaço público (pólis) aos homens e o
espaço doméstico (òikos) às mulheres, situação que pode ser percebida em
inúmeras sociedades, embora ainda seja possível perceber tal discurso (com
menos intensidade) nos dias atuais onde muitas vezes a mulher é culpabilizada
por agressões e/ou abusos sofridos por estar portando vestimentas tidas como
“vulgares” pela sociedade.

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A negação do Apolíneo

Até o presente momento tratamos da construção binária homem/mulher


levando em consideração o que Butler (2003) chama de relação de coerência
entre sexo e gênero, ou seja, gênero masculino em relação ao homem e o
feminino correlacionado às mulheres. Nesse sentido a autora define como
gêneros inteligíveis:
(...) aqueles que, em certo sentido, instituem e mantem
relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, 163
prática sexual e desejo. (Butler, 2003:383)

No entanto, observando a sociedade é possível verificar que essa


relação de coerência não se dá entre todos os indivíduos, podendo ser observadas
manifestações de gênero contrárias, sob essa concepção, ao sexo biológico.

Tendo o feminino como dionisíaco, composto pela negação do


masculino, ou mesmo como nos traz Simone de Beauvoir, como sendo o lado
negativo, é possível perceber essa negação em indivíduos do sexo masculino.
Nesse sentido vemos nesses homens uma negação do apolíneo e a entrada desses
no mundo do dionisíaco. É importante notar que o mesmo não ocorre às avessas,
ou seja, em mulheres que negam a alteridade, a feminilidade, havendo nesse
sentido um predomínio do sexo [masculino] nessa hierarquia. Desse modo para
fazer parte do topo dessa hierarquia é preciso ser homem e masculino.

Entretanto é importante considerar que, por gênero se tratar de algo


construído socialmente, a interpretação dessa negação se torna uma tarefa
bastante difícil.

Analisando alguns aspectos discutidos ao longo do trabalho, é possível


verificar alguns pontos como inerentes ao feminino que são possíveis de se
encaixar ainda hoje como a sensibilidade, enquanto a razão e a virilidade
permanecem como inerentes à “natureza masculina”. No entanto atualmente
criamos categorias para segmentos de pessoas que consideramos diferentes da

3
Grifos meus

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maioria, como as pessoas que se relacionam afetivamente com outras do mesmo


sexo, o que pode ser considerada uma “invenção da homossexualidade”.

Tendo como foco principal a homossexualidade masculina, por se tratar


nesse contexto de uma negação do masculino, do apolíneo, vemos que inúmeras
são as características postas a esse indivíduo de modo a classificá-lo, resultando
em contrapartida em qualidades que são associadas a esse perfil tido como
desviante, tornando-o assim dionisíaco.
164
Desse modo a sociedade faz uma ligação da homossexualidade
masculina com o feminino, associando esse indivíduo à fraqueza, à passividade,
sendo assim desvalorizado na sociedade, o que pode ser facilmente percebido no
discurso hegemônico. Em muitos casos são usadas expressões como - “se ele
fosse homem” - para fazer referência a homens de orientação sexual
homoafetiva, o que reforça a ideia de que haveria negação do masculino nesses
casos.

Seguindo esse pensamento, podemos perceber a hierarquia que subjuga


os indivíduos que fogem à norma heteronormativa observando a maioria das
expressões consideradas agressivas (palavrões) usadas para desqualificar
alguém, por essas possuírem em sua maioria ligação sexual de dominação ativo
sobre passivo, refletindo a ideia de desqualificação do outro quanto a sua
masculinidade. No entanto as formas de negação da masculinidade, devido ao
seu caráter subjetivo, sofrem alterações ao longo do tempo e de acordo com as
sociedades.

Observando a sociedade grega, por exemplo, vemos que a valorização


do corpo, fator que hoje pode ser intimamente relacionada ao feminino e à
homossexualidade, era algo comum nas academias, dentre a filosofia mente sã,
corpo são. Vernant (1991) demonstra ainda a relação entre o uso de cabelos
longos e virilidade em determinadas sociedades gregas, por se associar tal
característica ao homem guerreiro, fazendo com que a mulher raptada para
casamento4 tivesse seus cabelos raspados como forma de extirpar qualquer traço

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Vernant (1991:58) explica uma tradição grega entre os lacedemônios de se casarem
raptando a noiva.

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de masculinidade, além de, segundo o autor, representar uma diferenciação


nítida [e necessária] entre a mulher e seu novo marido.

No entanto, o que nos dias atuais é considerada expressão de


homossexualidade, para os gregos era expressão de virilidade, sendo assim
incentivadas em muitos casos as relações afetivas entre homens. É importante
salientar que essa relação se dava de diferentes formas de acordo com os grupos
analisados, sendo em alguns casos permitida as relações que beiravam à
165
conjugalidade, contanto que não houvesse relação de submissão entre eles,
conforme relata Corino (2006). O autor revela ainda que entre os espartanos
essas relações eram incentivadas entre membros do exército, pois faria com que
lutassem com mais vigor em defesa de seus parceiros. Entre os atenienses,
segundo o mesmo autor, essas relações se davam nas academias para que
ocorresse a transmissão de conhecimento, logo essas relações se davam de
indivíduos mais velhos para os mais jovens, sendo chamada de paiderastia
(amor a meninos) onde, segundo Corino (2006) tal relação “tinha como
finalidade a transmissão de conhecimento do erastes [amante] ao eromenos
[amado]”. Tal expressão pode ser a origem ao termo pederastia.

Foucault (1997) mostra um diálogo entre favoráveis ao casamento entre


pessoas de sexos distintos e favoráveis ao casamento entre pessoas do mesmo
sexo na Grécia antiga. Tal relação era chamada de “amor socrático”.

É interessante perceber o discurso dos favoráveis ao amor socrático,


pois estes afirmam que o amor pelas mulheres nada mais seria que uma
inclinação da natureza, algo de certo modo biologizado, enquanto a relação entre
homens estaria cercada por algo maior do que uma inclinação natural, “um amor
além da natureza” (p.86), pois estaria ainda deslocado da prática sexual, pois esta
o ligaria à mulher pela necessidade biológica da procriação. Entretanto Foulcault
(1997) aponta para uma visão contrária a essa no discurso de Cáricles que dizia:
Em suma, o amor pelos rapazes é situado, alternadamente,
sobre os três eixos da natureza: como a ordem geral do
mundo, como estado primitivo da humanidade e como
conduta racionalmente ajustada a seus fins; ele perturba o
ordenamento do mundo, ocasiona condutas de violência e de
embuste e, finalmente, ele é nefasto para os objetivos do ser

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humano. Cosmológica, “política” e moralmente, esse tipo de


relação transgride a natureza. (Foucault, 1997:110)

Tal visão é muito próxima à utilizada por segmentos contrários à


relação entre homens em períodos como o da Inquisição onde a
homossexualidade era vista como pecado nefando que deveria ser duramente
reprimido e, posteriormente, no início do século XX quando passa a ser vista
como desvio, “inversão”, algo que deveria ser tratado, o que coloca a procriação
166
e o anti-natural como o discurso chave para a condenação de tais práticas, pois
essas levariam ao fim da espécie.

Desse modo tais discursos se tornaram hegemônicos ao longo dos


tempos, transformando a pederastia em algo condenável.

Reflexões finais

O presente trabalho buscou trazer uma contribuição para o


entendimento da construção do feminino enquanto outro – alteridade – em uma
visão de gênero binária e hierárquica.

Mais do que conclusões, é importante que tais considerações realizadas


ao longo do trabalho nos leve a refletir algumas questões que ainda são vistas
como problema em muitas sociedades e que encontram parte desses problemas
explicados através da análise do passado que é transmitido pelos indivíduos
constituindo sua memória coletiva.

Vivemos um período aonde questões como as relativas a gênero vem


ganhando visibilidade e levadas a discussão, fazendo com que esse seja um
momento de grandes avanços nesse sentido.

Nesse contexto as mulheres veem finalmente, depois de muitas lutas


principalmente por parte do movimento feminista bem como de mulheres como
Leila Diniz5 que ousaram quebrar o padrão estabelecido, conseguindo ganhar

5
Leila Diniz ficou famosa ao exibir sua gravidez de biquini na praia.

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espaço na pólis embora o espaço privado (òikos) ainda seja um espaço reservado
a elas pela negação dos homens em assumir papeis ditos “femininos”.

Estamos vivendo um período em que cada vez mais mulheres têm


ocupado o papel de chefes de família no Brasil, tendo elas segundo o IBGE
conseguido superar os homens em indicadores como o que se refere ao número
de anos de estudo. Um grande avanço visto que em um período de pouco menos
de um século somente uma pequena parte delas tinha acesso à educação formal.
167
Muitos avanços ainda são necessários para alcançar a tão sonhada e
cada vez menos utópica igualdade de gênero, sendo necessário que as mulheres
consigam alcançar os homens no que diz respeito à renda e, mais do que isso, no
respeito à mulher no campo simbólico, não devendo ser toleradas posturas onde
uma mulher violentada por estar circulando em determinada hora ou com
determinado tipo de roupa é vista como culpada por estar “induzindo tal ato”. O
desejo masculino ainda é posto como algo vindo do biológico, de sua natureza
enquanto homem, apresentado desse modo como justificativa para situações de
agressão e desrespeito às mulheres.

Do mesmo modo é importante que haja respeito àqueles que não


seguem o padrão tido como natural, quebrando o padrão masculino
heteronormativo. É fundamental que a sociedade perceba que tal padrão é algo
construído socialmente e de certo modo inventado pelo Homem, tão
questionável que não há um consenso quanto a um padrão homossexual, como
foi possível perceber ao longo do trabalho.

Desse modo, temos hoje grupos que lutam pela defesa da diferença, da
“apolinização” do outro, sendo interessante notar ainda algumas estratégias que
esse grupo utiliza como forma de tentar se salvar dessa perseguição da qual
sofrem. Entre elas é possível perceber a tentativa desses grupos em esconder sua
identidade, recorrendo ao conhecido “armário”. Desse modo diz-se que o
indivíduo homossexual que não assume sua identidade está “dentro do armário”,
devido principalmente pela homossexualidade ser ainda vista por muitos como
algo desviante, transgressor, o que faz com que o indivíduo homossexual seja

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alvo dos mais diversos tipos de agressão. Tal situação inibe em muitos casos que
o indivíduo exerça de forma livre a sua identidade.

Entretanto, estar no “armário” é ainda muito criticado principalmente


pelo movimento LGBTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais)
que observa tal postura como impedimento da visibilidade do grupo. No entanto,
de forma semelhante ao ocorrido com outros grupos que sofreram perseguição,
como os judeus, os homossexuais recorrem a essa estratégia para se livrarem de
168
agressões, muitas vezes no próprio lar.

No entanto é importante considerar a visão do movimento LGBTT ao


estimular o “coming out”, ou seja, a “saída do armário”, porque de fato
aumentaria a visibilidade desse grupo, ajudando na reivindicação de muitos
direitos que a eles são negados.

Nesse sentido devemos ponderar o limite entre a militância e a


segurança dos indivíduos, levando em consideração que, em determinados
momentos, a simples sobrevivência é uma forma de resistência e militância, o
que justifica a existência do “armário”, propiciando a espera de momentos
propícios para avançar nessa busca por igualdade.

Desse modo é importante refletir sobre as diferenças que existem em


nossa sociedade, respeitando o outro para que seja possível a construção de um
futuro apolíneo, livre de hierarquizações.

REFERÊNCIAS

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Janeiro: Textos para discussão – ENCE n.11, 2004.

BARRENECHEA, M. Espaço trágico: lugar das intensidades e das diferenças.


In: Costa, I. T. M e Gondar, J. (Org.). Memória e espaço. Rio de Janeiro: 7 letras,
2000.

BUCI-GLUCKSMANN, C. La raison Baroque: de Baudelaire à Benjamín.


Paris: Galilée, 1984.

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BUTHER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de


Janeiro: Civilizacao Brasileira, 2003.

CORINO, L. C. P. Homoerotismo na Grécia Antiga - homossexualidade e


bissexualidade, mitos e verdades . Rio Grande: Biblos, 2006.

FOUCAULT, M. A mulher / os rapazes: História da sexualidade (extraído da


História da sexualidade v. 3). Trad. Maria Theresa da Costa Albuquerque. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1997. 169

GONDAR, J. Lembrar e esquecer: desejo de memória. In: Costa, I. T. M e


Gondar, J. (Org.). Memória e espaço. Rio de Janeiro: 7 letras, 2000.

NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia. Trad. J. Guinsburg. São Paulo:


Companhia das Letras, 1992.

VERNANT, J-P. A morte nos olhos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

__________. O universo, os deuses, os homens. Trad. Rosa Freire d´Aguiar.


São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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170
ST 1C
História e Gênero: Cultura,
Memória e Identidades

Coordenação
Profa. Dra. Lídia Possas
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A PERSISTÊNCIA DA VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES NO


BRASIL: ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE O GÊNERO NO
TEMPO PRESENTE

Paulo Brito do Prado*

A história do tempo presente deve ser guiada por


uma pesquisa no sentido de não ser mais um
171
Telos, mais um Kairos, não mais um sentido
preestabelecido, mas um sentido que emerge do
fato que lhe da origem.
François Dosse (2012, p. 20)

Feeling Good
Birds flying high you know how I feel. Sun in the
sky you know how I feel. Breeze driftin’ on by you
know how I feel. It’s a new dawn. It’s a new day.
It’s a new life. For me. And I’m feeling good
Nina Simone (1965)

Nossa situação contemporânea tem sido caracterizada pela herança de


elementos oriundos da sociedade colonial/escravista, que tomou por modelo a
família patriarcal, alicerçada na subalternização das mulheres em processos
produtivos e decisórios (Cf. DEL PRIORE, 2009; SOIHET, 1989). A “vitória”
da dominação masculina (Cf. BOURDIEU, 1999; CHARTIER, 1995) e o
excesso de violências contra as mulheres no presente são os elementos
instigadores deste estudo panorâmico e introdutório.
Talvez eu tenha maior “tranquilidade” para tecer narrativas históricas
acerca de temas e acontecimentos presentes – ainda que não me sinta deveras
sereno para manipular exclusivamente minhas impressões, memórias e

*
UFF.

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testemunhos1. Aspecto incômodo para historiadores famosos, a exemplo de Eric


Hobsbawn (1995) que confessou, em sua história do “breve século XX”, os
desconfortos ao manipular épocas às quais pertenceu. Segundo ele, este
“desassossego” se consolidou em função de ter acumulado “opiniões e
preconceitos sobre a época, mais como contemporâneo que como estudioso” (p.
07). Por conta disto deixou claras as suas “limitações” em lidar com o campo da
história contemporânea, e destacou a importância de, ao fazer a história do
172
próprio tempo de vida, operá-la “em relação a uma época conhecida apenas de
fora, em segunda ou terceira mão, por intermédio de fontes da época ou obras de
historiadores posteriores” (p. 07).
Concordo com Hobsbawn acerca da utilização de fontes2 diversas,
referências bibliográficas posteriores, um critério metodológico rígido e a
manutenção de certo “distanciamento” do “tempo presente” – que estranhamente
me pertence, embora não completamente3. Entretanto não acredito que seja
possível fazer “história a quente” (BÉDARRIDA, 2000, p. 220) totalmente “de
fora”. Entendo que “a historiografia [e os historiadores] não podem se isolar da

1
Quando destaco o uso hipotético de “minhas impressões, memórias e testemunhos”, é
evidente que não ignoro ser inviável basear-se, num trabalho de cunho científico, pura
e exclusivamente naquilo que testemunhei ao longo de uma trajetória. Aqui estou
pensando na história das sensibilidades, que se preocupa muito com “sensações”
capazes de tocar aquilo que se situa “além da elaboração intelectual, mas nunca se
separa dela” (GRUZINSKI, 2007, p. 07). Estou pensando numa história capaz de
incorporar novas fontes e novos formatos de fontes (Cf. ALMEIDA, 2011). Estou em
busca de uma operação histórica capaz de ver, revelada nas sensibilidades – tanto
minhas quanto das fontes – “a presença do eu como agente e matriz das sensações e
sentimentos”. (PESAVENTO, 2007, p. 14).
2
Entendo as fontes como “indícios de faltas” (Cf. ROUSSO, 1989) ou “ausências
presentes” que precisam ser categoricamente problematizadas.
3
Digo isto porque o “presente”, enquanto temporalidade me pertence tão somente em
fragmentos, e dele tenho apenas alguns episódios. Se recorrer às metáforas e tratá-lo
como uma “novela”, vou perceber tão logo sua incompletude. O presente, como uma
novela, esta repleto de cortes, interrupções, cesuras, acidentes de trajetória e espaços em
branco que impedem um reconhecimento totalizante. Diante desse “tempo” minhas
experiências e conhecimentos, as fontes e referencias que mobilizo não passam de
fragmentos organizados em uma “intenção narrativa” de caráter histórico. Este é um
aspecto que exige a busca de diferentes fragmentos do tempo – fontes – que permitam
a construção de sentidos que não sejam exclusivamente os meus. É necessário
reconhecer que “o documento histórico é raramente dócil, aberto ou fácil” (KARNAL;
TATSCH, 2009, p. 17), exigindo um exame criterioso que “à força de esforços titânicos,
permita extrair coisas que só aparecem de forma indireta” (p. 17).

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realidade que pretendem estudar [e que] a História do Tempo Presente (HTP)


deve adaptar-se mais rapidamente às novas tecnologias da informação”.
(ALMEIDA, 2011, p. 11)
Penso ser necessário, ao historiador do presente, fixar-se no “entre
lugar”, pois somente aí ele conseguirá elaborar estratégias de “subjetivação –
singular e coletiva – para dar vazão a novos signos de identidade e postos
inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de
173
sociedade” (BHABHA, 1998, p. 20), ou mesmo para compreender os novos
agrupamentos sociais, comportamentos, identidades, representações culturais, as
permanências de passados e suas mutações4.
Não creio que seja possível passar ao largo de preconceitos, impressões,
convicções, subjetividades e sensibilidades durante a construção de narrativas.
Ainda que haja controle teórico e metodológico, sempre permanecerão alguns
apontamentos caracterizadores daquele que operou a narrativa histórica. Ignorar
isto, é intuí-la de uma autonomia inexistente e, que tornaria difícil a explicação
daquilo que move os historiadores na escolha de temas a ser estudados (Cf.
LORIGA, 2012).
Imbuído por estas reflexões penso ser oportuna a epígrafe de François
Dosse (2012) no instante em que destacou dever ser a história do tempo presente
guiada não mais por finalidades, mas sim por oportunidades de análise acerca de
questões que, embora pareçam passadas, se fazem presentes e repetidamente
lampejam em nosso cotidiano. Aqui destaco questões relacionadas ao gênero, às
sexualidades e à persistência da violência contra as mulheres no Brasil5.

4
É evidente que ao propor tal exercício, ainda mais se estiver interessado em utilizar
fontes que não contam com a total fiabilidade da academia, o historiador, ou o
historiador do tempo presente, precisa criar métodos e técnicas para manipular, por
exemplo, registros virtuais da sociedade. Lembro a importante contribuição
metodológica de Fábio Chang Almeida (2011) que destaca ser necessário sinalizar de
que forma o material utilizado foi analisado e como estão sendo preservadas as
informações mencionadas. Além disso, ele ressalta ser um problema grave dos
historiadores que buscam compreender o presente, negligenciar as fontes digitais e a
Internet, pois isto “significa fechar os olhos para todo um novo conjunto de práticas, de
atitudes, de modos de pensamento e de valores que vêm se desenvolvendo juntamente
com o crescimento e popularização da rede mundial de computadores.” (p. 12).
5
Tomo de empréstimo o tema de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)
em 2015. A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira foi o

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As violências, em especial aquelas cometidas contra mulheres, serão


entendidas como kairos, ou “momentos oportunos” para fazermos um exame
preliminar de acontecimentos marcados pela dominação simbólica e física.
Remeter-me-ei a situações envoltas por manifestações polêmicas,
acontecimentos que referenciam questões sexuais e situações caracterizadas por
graves violências de gênero. Neste exame utilizarei exclusivamente as fontes
virtuais, disponíveis na Internet6. Os vídeos, artigos noticiosos e fotografias
174
utilizadas ao longo deste trabalho foram convertidos em documentos mp4, pdf e
jpg7 para serem arquivados em dispositivos de armazenamento (HD externo).
Acredito que esta seja uma alternativa para garantir a seriedade do trabalho e
permitir a perenidade da fonte para acesos posteriores. Destacamos esta
preocupação por serem as informações disponibilizadas na Internet portadoras
de um caráter efêmero onde “muitos sites são retirados do ar sem aviso prévio e
seu conteúdo pode ser perdido, visto à sua inexistência em outro suporte”.
(ALMEIDA, 2011, p. 16). Talvez seja aí um dos papeis de destaque do
historiador do tempo presente. Desenvolvendo uma espécie de “arqueologia de
salvamento”, ele “torna-se responsável pela análise e também pela preservação
da informação. Não fosse a sua intervenção, o documento poderia ser perdido
em caráter definitivo”. (p. 16).
Ao fazermos um percurso pelo tempo, verificamos que as mulheres
ainda são “silêncios” e “sombras da história” (DUBY; PERROT, 1991, p. 07).
O silêncio que as encobre em nebulosas e as violências que lhes afligiam ainda

ponto de debate exigido pelo Enem para que todos os estudantes da educação básica
dissertassem. Embora vários dados tenham sido incorporados à prova a fim de auxiliar
na produção dissertativa, o exame acabou envolvido em toda uma polêmica alimentada
por parcela da sociedade civil, caracterizada pelo ultraconservadorismo, que utilizou as
redes sociais (facebook, instagran, twitter) para manifestar sua insatisfação ao tema. Ao
longo do texto tentaremos traçar parte deste debate, evidenciando o avanço rápido do
conservadorismo e corroborando a vitória da “dominação masculina” que segue
subalternizando as mulheres e todos aqueles que não correspondem ao modelo
heteronormativo ditado por este campo de poder.
6
Destaco ter cruzado as notícias aqui utilizadas com outras e que a confiabilidade das
mesmas foi avaliada através de ferramentas oferecidas pela Internet. Para tal
averiguação utilizei a ferramenta WHOIS, conferi o protocolo IP das páginas e contatei
repórteres que produziram alguns dos artigos analisados.
7
São formatações para armazenamento de dados digitais em um disco, de modo que tais
dados possam ser acessados posteriormente.

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impedem a constituição de uma consciência de gênero que as instrumentalize


para combater os efeitos da dominação simbólica e masculina8. A constituição
de um mundo marcado pela “naturalização” de sua subalternidade tornou
“legítima”, se não habitual, a recorrência de violências a elas dispensadas (Cf.
SCOTT, 2008). O tempo se encarregou de “calcificar” hábitos sexistas e
misóginos que conseguimos detectar em situações presentes, a exemplo de
projetos de leis ultraconservadores, estratagemas políticas e mazelas de grupos
175
interessados em impedir debates sobre as questões de gênero9.
Antes de me debruçar nas fontes e nas temáticas elegidas para esta
análise, gostaria de explicar as razões que me levaram a trazer, na epígrafe, a
música Feeling Good10. Na verdade, gostaria de explicar por quais razões trouxe
a interpretação de Nina Simone11. Não é novidade que esta cantora foi
fundamental na luta da comunidade negra americana pelos direitos civis entre as
décadas de 1960 e 1970. Também não é novidade que Nina Simone foi defensora
dos direitos das mulheres negras nos Estados Unidos. Isto pode ser observado

8
É importante lembrar que a submissão feminina às violências de gênero não é uma
regra. Muitas mulheres se manifestaram contrárias aos abusos masculinos ao longo da
história (Cf. SOIHET, 1989; 2002). Também não ignoro a importante crítica realizada
por Mariza Correa (1999) ao trabalho de Pierre Bourdieu. Suas impressões são
fundamentais para operarmos esta categoria (dominação masculina) com maior
cuidado, de forma que não reforce naturalizações.
9
Destaco aqui os projetos nº1301/2015, nº 7180/2014, nº 7181/2014, nº 1859/2015 e nº
2731/2015 que tem como propósito majoritário impedir o debate de gênero na escola.
Existem algumas páginas na internet que também atuam numa espécie de “militância”
contrária à “ideologia de gênero”. Vale destacar que páginas como a do Observatório
Interamericano de Biopolítica e Revoltados On Line sempre trazem um discurso voltado
para a defesa do modelo heteronormativo de “família” imbuído por uma forte conotação
religiosa, de cunho cristão ultraconservador.
10
Feeling Good foi escrita pelos músicos ingleses Anthony Newley e Leslie Bricusse em
1964, mas sua maior projeção se deu após a interpretação de Nina Simone, em 1965.
11
Eunice Kathleen Waimon nasceu em 21 de fevereiro de 1933 na cidade de Tryon,
Carolina do Norte (EUA). Filha de pregadores evangélicos. Adotou o nome Nina
Simone para esconder dos pais a vida dupla. Trabalhava como cantora de blues em bares
noturnos e com os rendimentos desse trabalho mantinha a família e custeava o curso de
piano clássico na Juilliard School. Depois de rejeitada no Curtis Institute of Music (por
questões raciais) e percebendo o fim de suas economias acabou assumindo a
personalidade de cantora, tornando-se uma das mais importantes interpretes de blues e
jazz. Vale lembrar que suas músicas incorporaram o espírito da época, momento em que
Nina Simone militou em prol dos direitos civis da população negra americana e
defendeu os direitos das mulheres. Estas informações biográficas podem ser consultadas
no documentário What Happened, Miss Simone?

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em centenas de músicas de sua autoria, em biografias, filmes e documentários12.


Alguns talvez se perguntem, por que busquei expoentes da luta feminina nos
Estados Unidos para falar das mulheres brasileiras? Gostaria que
compreendessem serem as razões deste exercício o resultado de escolhas, daí
dizer no início ser quase impossível passar ao largo das subjetividades, ainda que
este trabalho pretenda uma análise racional. Acredito que o historiador não deve
apagar sua subjetividade, “ele deve aprender a reconhecê-la e a transformá-la em
176
uma fonte de conhecimento. Ele deve, sobretudo, descobrir a historicidade do
seu eu.” (LORIGA, 2012, p. 254). Poderia ter escolhido diferentes personagens
brasileiras13, afinal de contas nosso país é repleto de exemplos inspiradores.
Todavia a reverberação das músicas e da memória de Nina Simone é deveras
intensa para ser ignorada. Entendendo-a como “documento”, como registro de
uma época, à qual tenho familiaridade consigo pensar através dela. E pensando
através dela, consigo visualizar melhor a dura condição imposta às mulheres
brasileiras do tempo presente.
Nina Simone teve sua trajetória marcada por violências e por variações
de humor que a encaminharam para perturbações psíquicas, apesar disso insistiu
na necessidade de lutar por liberdade. Para ela, ser livre era não sentir medo.
Talvez seja este o ponto no qual encontrei relações entre ela, suas músicas e as
mulheres brasileiras: a busca de um mundo velho convertido num mundo novo,
onde todas vivessem sem medo, pudessem gozar da liberdade e a reproduzissem
na posse de seus corpos14.

12
GARBUS, Liz. What Happened, Miss Simone? [Biografia-Filme-Documentário].
Produção de Amy Hobby, Jayson Jackson, Justin Wilkes e Liz Garbus. Direção de Liz
Garbus. Estados Unidos. 2015, DVD, 102 minutos, colorido, som.
13
Poderíamos citar Carolina de Jesus e suas obras literárias; Caetana e sua luta pelo
direito de separação, ainda no Brasil Colônia (Cf. GRAHAM, 2005); Mãe Biu (Severina
Paraíso da Silva), responsável pela sobrevivência das tradições religiosas do terreiro
Nação Xambá (Cf. SHUMAHER; BRAZIL, 2013) e outra infinidade de exemplos.
14
Refiro-me à posse do corpo no sentido de ser decisão exclusiva das mulheres
decidirem o que fazer dele sem que, para isto, sofram com estereótipos, exclusões,
violências, retaliações ou anulações por parte das instituições de poder, historicamente
incumbidas, pela criação das representações sociais para os indivíduos. Aquelas que
tentavam escapar desses padrões eram execradas do convívio social. Conforme lembra
Rachel Soihet (1989) a quebra de padrões a elas atribuídos revela-se catastrófica: “As
mulheres que ousavam fugir à frigidez sexual, à dependência, à submissão,
mediocridade intelectual, apatia, eram degeneradas, masculinas, criminosas de alta

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Sua vontade de liberdade e o medo que exala de suas músicas não é


diferente daquilo que historicamente marca a trajetória das mulheres brasileiras:
o medo da violência de gênero. Outra questão que talvez apareça é o fato de
mencionar mulheres negras sem, a princípio, discutir profundamente as questões
de classe e raça15. Embora acredite que a violência de gênero, de um modo geral,
não escolhe classe ou raça, compreendo que as mulheres negras estão mais
propensas aos efeitos dessa violência16. Para isto basta passarmos os olhos pelas
177
descrições misóginas produzidas por Gilberto Freyre (1992) acerca das negras
africanas e nativas americanas, tomadas à força pelo homem da Colônia.
Olharmos a dura condição das mulheres negras no Brasil Império, encaradas
como “um misterioso pedaço de carne a ser dissecadas” (XAVIER, 2012, p. 67),
ou condenadas “irreversivelmente, a permanecer na inferioridade mental e
social.” (SOIHET, 1989, p. 132).
No tempo presente basta olhar os demonstrativos produzidos pela
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres para identificar as grandes
vítimas da violência de gênero: as mulheres negras e as de classes subalternas17.
Mais que as mulheres brancas, as negras e pobres (Cf. SOIHET, 1989)
estão nas margens da sociedade. Elas estão nas margens da história. Elas estão

periculosidade. Eram despidas do santo sentimento da maternidade, único capaz de


neutralizar os traços negativos inerentes ao sexo feminino tais como a crueldade, a
vingança, a mentira, a vaidade, o ciúme, a inveja, etc., que, assim, emergem em toda
sua plenitude”. (p. 109).
15
Lembro os debates realizados por Joan Scott (2008) acerca das intersecções do gênero,
das classes e raças.
16
É importante problematizar se existem diferenças nas relações de gênero entre
populares e agentes pertencentes a outros segmentos sociais. Segundo Rachel Soihet
(2002) é relevante, “de início, acentuar o caráter complexo e contraditório da questão.
Os populares não constituem um bloco unívoco. A heterogeneidade impera em todos os
segmentos da sociedade. Além disso, não vivem isolados; o fenômeno da interpretação
cultural é uma realidade por todos reconhecida, ou seja, influências recíprocas ocorrem
entre os diversos grupos da sociedade. Essas trocas ocorrem não apenas entre
dominantes e dominados, de cima para baixo, e vice-versa, como também no sentido
horizontal, entre grupos pertencentes a classes sociais idênticas, mas apresentando
diferenças de cor, religião, geração, etc.” (p. 278).
17
Estudo intitulado #MENINAPODETUDO: como o machismo e a violência contra a
mulher afetam a vida das jovens das classes C, D e E, produzido por Énois Inteligência
Jovem em parceria com os institutos Vladimir Herzog e Patrícia Galvão. O material
produzido neste estudo deixa evidente que as mulheres de periferias estão mais
propensas a serem vítimas de violências de gênero.

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“longe dos centros de poder político, real, cívico e senatorial.” (DAVIS, 1997,
p. 195). O fato de estarem consideravelmente afastadas “dos centros formais de
aprendizagem e de instituições voltadas para a definição cultural” (p. 195) as
transforma em vítimas potenciais de homens violentos. Entretanto, o volume de
violências que atingem as mulheres contemporaneamente não tem passado
despercebido da opinião pública. Para sentirmos os excessos da dominação
masculina em nosso cotidiano e tomarmos conhecimento da quantidade de
178
mulheres vitimadas por crimes de gênero, basta ligarmos a televisão em canais
jornalísticos ou realizar pesquisas rápidas em nosso “oráculo virtual
contemporâneo”, o google, e vamos encontrar uma lista infindável de “mulheres
violentadas por seus machos, estupradas por seus patrões” (ALBUQUERQUE
JUNIOR, 2007, p. 95) ou friamente assassinadas pela simples razão de estarem
em lugares marginalizados e distantes dos centros políticos e cívicos: periferias
e subúrbios.
Um simples abrir de olhos nos permite testemunhar o fim trágico de
Claudia Silva Ferreira e Francisca das Chagas da Silva. Esses são dois
exemplos posteriores a um quadro aproximado de 25.637 mulheres negras
assassinadas no Brasil na última década. Esse quadro integra uma estimativa
total de 46.186 mulheres assassinadas entre os anos de 2003 e 201318. O fato de
as mulheres negras ocuparem mais da metade desse número é elemento
indiciador do caráter racial e classista na constituição do gênero e das violências
resultantes do excesso de poder entre os sexos no Brasil19.
Embora tantos dados e exemplos mereçam análise, destaco que não é
propósito deste trabalho discutir a dura condição das mulheres negras na

18
Essas informações foram retiradas de WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência
2015: homicídio de mulheres no Brasil. Brasília: OPAS/OMS; Brasília: ONU Mulheres;
Brasília: SPM; Rio de Janeiro: Flacso, 2015.
19
Não foram encontrados dados numéricos que explicitassem a quantidade de mulheres
assassinadas nos anos 2014 e 2015. Percorri os Balanços produzidos pela Secretaria de
Políticas para as Mulheres da Presidência da República e Ministério das Mulheres, da
Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (Extinta pelo atual governo, conforme
Medida Provisória n.º 726, de 12 de maio de 2016, assinada pelo presidente interino
Michel Temer), mas não os visualizei. Existem informações acerca das violências
sofridas por mulheres, mas não existe, em números, a quantidade de mulheres mortas
nestes dois últimos anos.

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sociedade brasileira contemporânea20. Isto demandaria tempo, pesquisa densa e


um suporte teórico ao qual conheço apenas parcialmente. Meu propósito é
evidenciar os problemas resultantes da interrupção do debate de gênero,
conforme aventado por parcela da sociedade civil representada em grupos,
páginas disponibilizadas na Internet (Revoltados On Line, Observatório
Iberoamericano de Biopolítica) e em projetos de lei que tramitam nas várias
Assembleias Legislativas e na Câmara dos Deputados. A interrupção desse
179
debate provocará, e já tem provocado efeitos colaterais prejudiciais à qualidade
de vida, principalmente, dos grupos de gênero excluídos da matriz
heteronormativa de poder. Isso pode ser testemunhado, por exemplo, na
persistência da violência contra as mulheres, no aumento de crimes de
homofobia21, na misoginia e na chamada “cultura do estupro”22. Acredito ter
chegado o momento de a comunidade acadêmica avançar neste debate, mas com
olhos no presente.
A fotografia de Roberto Setton23 é, dentre outros indícios, a
representação das incompreensões do gênero resultantes da interferência de

20
Para isso precisaria de um suporte teórico e metodológico específico e que me
permitisse percorrer os meandros da “classe” e da “raça” na construção do gênero. Seria
necessário conhecer mais profundamente os debates voltados especificamente para o
caso da violência de gênero contra mulheres negras.
21
Segundo relatório produzido pelo Grupo Gay da Bahia foram vitimas fatais da
homofobia no Brasil, nos últimos três anos (2013-2015), aproximadamente 956
indivíduos.
22
Acredito que os dois crimes de misoginia e violência contra as mulheres, mais
polêmicos, em âmbito institucional, no Brasil contemporâneo, tenham sido os casos do
adesivo colado na entrada do tanque de gasolina em que a presidenta Dilma Roussef
figurava com as pernas abertas, dando a ideia de que, no momento do abastecimento,
quando a bomba de gasolina ali colocada, penetrasse sexualmente a presidenta. O outro
caso seria o do deputado federal Jair Messias Bolsonaro (PSC-RJ) contra a deputada
federal Maria do Rosário Nunes (PT-RS) onde este teria dito, em assembleia na Câmara,
para a referida deputada que “não a estupraria porque ela não merecia”. Notícias do
julgamento do processo podem ser consultadas na página virtual do Tribunal de Justiça
do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) e na do Supremo Tribunal Federal (STF).
23
É fotografo e profissional free-lancer. Formou-se em fins da década de 1980 em
Cinema pela Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). Colabora e já colaborou
em publicações e editoriais para a Agência Estado, Editora Globo, Editora Abril, Portal
Uol, Jornalistas Livres, Grupo Folha, Grupo Glamurama e Jornal El País. Desenvolve
trabalhos pessoais na área da fotografia documental na cidade de São Paulo, como o
trabalho “Domingo” com curadoria de Eder Chiodetto, exposto na Pinacoteca do Estado
de São Paulo. Atualmente dedica seu trabalho ao fotojornalismo e à documentação do
cotidiano urbano de São Paulo.

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determinados agentes em debates necessários para a conscientização da


sociedade acerca de questões historicamente mal resolvidas. Entendo por
“questões mal resolvidas”, o gênero, sua constituição, as violências oriundas da
hierarquização/submissão sexual, as sexualidades, as normatizações, as
diferentes experiências derivadas das sexualidades e a construção de padrões
estético/sexuais. Se tivéssemos estas noções mais claras e não estivéssemos tão
apegados em naturalizações e crenças, talvez as violências de gênero não se
180
tornassem regra social. E talvez não testemunhássemos um aumento, em 2015,
por exemplo, de 136,6% no número de violências sexuais (estupro, assédio,
exploração sexual); de 165,27% no número de estupros registrados e de 300,39%
no de relatos de cárcere privado24. Talvez esses números sejam, em grande parte,
o estímulo para que as mulheres ocupem o cenário público brasileiro na
expectativa de, finalmente, se apropriarem de seus corpos.

Fig. 01 – Passeata contra Eduardo Cunha (Deputado Federal, PMDB) e a PL 5069, novembro
de 2015. Foto de Roberto Setton/Jornalistas Livres

Entre outubro e novembro de 2015, as principais avenidas do centro do


Rio de Janeiro foram tomadas por manifestantes, a maioria mulheres, que

24
Estes dados constam no Balanço 10 Anos produzido pela Secretaria de Políticas para
as Mulheres e Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos.
p. 10, 2015.

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reclamava, dentre diferentes pautas, o arquivamento do projeto de lei nº 506925


e a cassação do mandato de deputado do Senhor Eduardo Cosentino da Cunha
(PMDB-RJ). Manifestações semelhantes aconteceram em outras capitais
brasileiras, todavia a mobilização carioca tomou maior visibilidade em função
da pujante mobilização feminina e pela divulgação jornalística, feita,
principalmente na Internet.
No artigo produzido por Ricardo Targino, da Mídia Ninja, para os
181
Jornalistas Livres26 é possível verificar o impacto da manifestação. Em Quem
mandou mexer com as mulheres?, temos uma descrição panorâmica, no entanto
importante do movimento de mulheres contrárias às novas determinações de
atendimento para vítimas de estupro no Brasil. O artigo, que apresenta
linguagem mordaz, recorre, preliminarmente, ao corpo feminino e à disputa por
sua posse, destacando que “nenhuma mulher veio da costela de um homem, mas
todos os homens vieram do útero de uma mulher” (TARGINO, 2015). Aspecto
necessário de ser observado em função de questionar princípios ditados por uma
ordem masculina inscrita nos corpos através de “injunções tácitas, implícitas nas
rotinas da divisão do trabalho ou dos rituais coletivos ou privados (basta
lembrarmos, por exemplo, as condutas de marginalização imposta às mulheres
com sua exclusão dos lugares masculinos)” (BOURDIEU, 1999, p. 34). Segundo

25
O projeto de lei n.º 5069 proposto pelo deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ)
e outros acrescenta o art. 127-A ao Decreto-Lei n.º 2848, de 07 de dezembro de 1940 –
Código Penal. O texto do projeto se desdobra numa justificativa apegada num possível
lobby de instituições internacionais de pesquisa, organizações não governamentais e
empresas que, por sua vez, apegadas em teorias neo-maltusianas estariam tentando
controlar o crescimento demográfico mundial partindo das regiões subdesenvolvidas. O
texto todo parece uma grande “teoria da conspiração”, onde diferentes organizações
internacionais apoiadas por feministas tentariam estabelecer um controle da natalidade
no Brasil.. A proposta do acréscimo é criminalizar o aborto. Com sua aprovação, o
atendimento a vitimas de estupro se tornaria ainda mais difícil e servidores da área da
saúde teriam dificuldades em explicar, por exemplo, procedimentos que vitimas de
estupro deveriam tomar para evitar a gravidez. Depois das manifestações, o projeto foi
novamente discutido e alterações foram feitas em seu texto, permitindo assim o seu
prosseguimento. É importante notar no texto original da proposta a imagem negativa
atribuída ao feminismo, a dominação/tutela masculina sobre o corpo das mulheres e as
decorrências da criminalização do aborto: aumento de interrupções de gravidez ilegais
e a mortalidade de mulheres durante processos abortivos.
26
TARGINO, Ricardo. Quem mandou mexer com as mulheres? Jornalistas Livres, 15
de novembro de 2015.

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o articulista estaríamos em “plena ruína do patriarcado, quando todos os


privilégios são postos em xeque e os preconceitos se tornam definitivamente
velhos”. Momento no qual as mulheres estariam se “levantando” “para parir um
tempo novo para toda a humanidade” (TARGINO, 2015).
Durante a descrição do movimento de mulheres, o artigo recorre a
diferentes questões relacionadas ao contexto presente do Brasil. Ricardo Targino
lembra o aumento da violência contra as mulheres – principalmente as mulheres
182
negras – as polêmicas em torno da prova do Enem 2015 e o desastre ambiental
em Mariana (Minas Gerais). Entretanto, de uma forma geral, o tema central do
texto é a insatisfação feminina frente às práticas políticas e ao projeto do deputado
Eduardo Cunha.
Entre várias fotografias, algumas de autoria do fotografo Roberto
Setton27, verificamos diferentes mulheres e mães reclamando a propriedade de
seus corpos, solicitando o direito à liberdade e exigindo segurança para vivê-la
plenamente. As fotografias de mães carregando filhos, grávidas expondo a
barriga, mulheres com rostos e corpos pintados evidenciam estarem elas, ainda,
“deliberadamente afastadas da esfera política, colocadas nas margens de valores,
regras e instituições que a fundam e brevemente designadas como atrizes não
políticas ou atrizes ilegítimas” (SINEAU, 1994, p. 72). Aspecto que as forçou
tomar a cena pública e gritar em coro: “Nenhum passo atrás será permitido! A
pílula fica e Cunha sai” (TARGINO, 2015).
O fato de pintarem os rostos e expor partes do corpo, que
costumeiramente se espera estar cobertos por roupas, são medidas extremas que
evidenciam a vontade de tomar a posse do corpo e fazer com ele aquilo que
desejam. Elas desejam um corpo que seja todo delas, mas que lhes é negado em
função de serem consideradas, à luz de funções domésticas e reprodutivas,
“atrizes políticas parciais ou imperfeitas” (SCOTT, 2008, p. 102).
Mesmo que as mulheres tenham colocado em xeque a ordem simbólica
da dominação masculina, ditada por instituições de poder – leis, estado, igreja e
família – não é aconselhável esquecer terem sido as “vitórias” marcadas por

27
Aproveito para agradecer ao fotógrafo Roberto Setton por ter, gentilmente, autorizado
o uso das fotografias aqui utilizadas.

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duras disputas de poder e violências (Cf. CHARTIER, 1995; SOIHET, 1997)


que ainda não impediram o reconhecimento do homem “como um sujeito
humano neutro ou universal” (SCOTT, 2008, p. 99).
O homem persiste como arquétipo e isso coloca as mulheres numa
situação “bastante difícil de articular ou representar, porque sua diferença gera
desunião e representa um desafio à coerência” (p. 99).
O reconhecimento da diferença nas/das mulheres fez com que as
183
instituições de poder – controladas por homens – utilizassem a crença da
“igualdade na diferença” para rechaçar “a demanda das mulheres de uma total
igualdade humana com os homens” (p. 103), criando uma comunidade de
sentidos, composta por homens e mulheres, que compreendia o “ser mulher”
como inferior, e que por esta razão devia obediência à figura dominante: o
homem. Com a consolidação da burguesia no poder, entre os séculos XVIII e
XIX, a “construção da identidade feminina se enraizou na interiorização, pelas
mulheres, de normas enunciadas pelos discursos masculinos.” (CHARTIER,
1995, p. 40). Este fato correspondeu – e corresponde – a “uma violência
simbólica que supõe a adesão dos dominados às categorias que embasam sua
dominação” (SOIHET, 1997, p. 04). Houve, neste momento, uma “divisão de
papéis e uma rígida separação das esferas de atuação entre os gêneros: o
masculino na órbita pública e o feminino no âmbito privado” (SOIHET, 2002,
p. 280).
Os tentáculos da dominação masculina e violências de gênero, ai
instituídas, alcançam diferentes agentes – principalmente mulheres e a
comunidade LGBTT – do tempo presente. Isso tem se dado através dos projetos
de lei nº 1301/2015, nº 7180/2014, nº 7181/2014, nº 1859/2015, nº 2731/2015,
nº 5487/2016 e nº 867/2015 que impedem o debate de gênero, sexualidades e
diversidade nas escolas. Esses projetos pretendem instalar uma espécie de
“ditadura cristã” juridicamente legitimada. Todo e qualquer tema que abordar
questões de gênero, sexualidades e diversidades estarão proibidos e a
comunidade escolar permanecerá à revelia de líderes religiosos, interessados em
fomentar um único modelo sexual como padrão: o heteronormativo. As
mulheres, por sua vez, voltariam a ser “belas, recatadas, rainhas do lar e anjos

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tutelares” (Cf. DEL PRIORE, 2009) e estariam novamente sob o julgo da


dominação masculina e violências daí resultantes.
Apegado a todo este rol histórico de luta, é importante considerar não
ter sido exitoso o movimento das mulheres em 2015, salvo sua relevância política
e a momentânea liberalidade das mulheres ali presentes. Digo isto, pois o projeto
de lei, alvo das manifestações femininas, acabou aprovado pela Comissão de
Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados. E
184
mesmo que alterações, resultantes da pressão popular e feminina tenham sido
feitas em seu texto original, o aborto persistiu tipificado como crime e o corpo
das mulheres silenciado.
Não estou minimizando a luta das mulheres em busca de direitos
políticos, pelo contrário, estou apenas destacando que o perfil positivo criado pelo
referido artigo em torno da mobilização feminina e a imagem “impressionista”
de uma “primavera feminina” devem ser observadas com cuidado, pois a
realidade é bem mais complexa que as descrições aí presentes.
Acredito ser fundamental entender que o poder e a cultura das mulheres
se constroem “no interior de um sistema de relações desiguais” (PERROT et. All,
2011. p. 15) sendo necessário observar de que forma elas “emulam” o
poder/dominação masculina. É preciso notar “como elas mascaram as falhas,
reativam os conflitos, balizam tempos e espaços, como, enfim, pensam suas
particularidades e suas relações com a sociedade” (p. 15). Talvez vendo essas
particularidades consigamos compreender os paradoxos, as modalidades de
dominação masculina e as violências que ocasionalmente não se resumem “a atos
de agressões físicas, decorrendo igualmente de uma normatização na cultura, da
discriminação e da submissão feminina” (SOIHET, 2002, p. 279).
O tempo presente é deveras marcado por problemas característicos
daquilo que se convencionou chamar de “cultura do estupro”. Mais uma vez
convido os leitores a abrirem o google para realizar pesquisas temáticas que lhes
permitirão testemunhar, por exemplo, ator dizer em rede nacional, num tom de
troça, relacionar-se sexualmente com uma mulher negra sem seu consentimento;
o estupro coletivo de quatro mulheres no Piauí (2015), as postagens e
publicações de caráter misógino do deputado federal Jair Messias Bolsonaro

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(PSC-RJ) acerca do tema da redação e pergunta do Enem 2015, projetos de lei


que impedem o debate de gênero na escola, ataques racistas contra artistas e
apresentadoras negras, adesivo misógino que expõe a presidenta Dilma Vana
Rousseff (PT-RS), estupro coletivo de uma jovem no Rio de Janeiro (2016),
novo estupro coletivo no Piauí (2016), crimes de misoginia praticados pelo
deputado federal Jair Messias Bolsonaro contra a deputada federal Maria do
Rosário Nunes (PT-RS), ministro da educação recebendo em seu gabinete, para
185
debater projetos voltados à educação, o grupo Revoltados On Line juntamente
com um ator pornô que assumiu ter estuprado uma mulher em cadeia nacional e
um aumento de canais conservadores no You Tube, onde pessoas postam vídeos
que atacam os movimentos feministas e estimulam a violência contra as
mulheres.
Na última década presenciamos um aumento considerável de crimes de
gênero estimulados, talvez, por permanências patriarcais na constituição das
relações entre os sexos, por mazelas políticas apoiadas por grupos religiosos de
matriz cristã e por um conservadorismo que tem criado estratégias interessadas
em interromper debates voltados às sexualidades e diversidades.
O projeto de lei n.º 1301/2015 acompanhado pelos projetos de
n.º 7180/2014, nº 7181/2014, nº 1859/2015, nº 2731/2015, nº 5487/2016 e n.º
867/2015 tentam impedir a discussão de gênero na escola, dentre diferentes
questões. Segundo seus propositores, o debate de gênero, identidade e
sexualidades, vistos por eles, como questões estritamente ideológicas, em nada
contribuiriam no processo de formação dos estudantes. Cabe perguntar aqui o
que seria ou não ideológico neste campo de disputas e interesses? Qual o aspecto
do gênero caberia ao professor ensinar? Apenas o modelo patriarcal e a vitória
da “potência masculina” sobre a “fragilidade feminina”? Como ignorar estas
questões, uma vez que vivemos em um país no qual dezenas de mulheres são
assassinadas diariamente? Como ignorar ser a identidade de gênero construída,
quando nos deparamos com crimes de misógina e homofobia
institucionalizados? De que forma os professores podem ensinar história, por
exemplo, e ignorar que diariamente dezenas de mulheres ou integrantes da
comunidade LGBTT são vitimas das violências de gênero? Acredito que tantas

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perguntas servirão para que reflitamos acerca dos problemas ocasionados por
estes projetos. Passo agora a mostrar, rapidamente, as alterações propostas por
cada um deles.

 Projeto de Lei n.º 1301/2015, proposto pelo deputado estadual


Luiz Fernando Machado (PSDB-SP).
“Dispõe sobre a criação, no sistema estadual de ensino, do Programa
186
Escola Sem Partido, visando à neutralidade política, ideológica e
religiosa do Estado”. Este projeto está em votação na Assembleia
Legislativa do estado de São Paulo e conta com forte apoio de parcela da
sociedade civil. Em suma, ele pretende impedir o trabalho do professor,
retroagindo as práticas de ensino para um modelo “bancário”, positivista
e alienante. A laicidade do ensino deixaria de existir e passaria a respeitar
exclusivamente aos princípios cristãos. Todos os temas que estiverem em
confronto com esta lei permaneceriam proibidos.

 Projeto de Lei n.º 7180/2014, proposto pelo deputado federal


Erivelton Lima Santana (PSC-BA). Licenciado em História pela
Universidade Católica de Salvador. Funcionário público no Tribunal de
Justiça da Bahia e diretor financeiro da Igreja Evangélica Assembleia de
Deus, Salvador, Bahia.
“Altera o artigo terceiro da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 20
de dezembro de 1996 (Lei n.º 9394-LDB)”. Caso seja aprovado, o artigo
terceiro da LDB viria acrescido do inciso “XIII – respeito às convicções
do aluno, de seus pais ou responsáveis, tendo os valores de ordem
familiar precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados
à educação moral, sexual e religiosa, vedada a transversalidade ou
técnicas subliminares no ensino desses temas.” De uma forma geral, o
professor perderia a liberdade para ensinar e a autonomia, pois estaria
submetido a uma rede de controle que parte da família da criança e vai
dar em seus líderes religiosos. A laicidade do ensino deixaria de existir e

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passaria a respeitar exclusivamente os princípios cristãos,


especificamente aqueles defendidos pelas religiões neopentecostais.

 Projeto de Lei nº 7181/2014, proposto pelo deputado federal


Erivelton Lima Santana (PSC-BA).
“Dispõe sobre a fixação de parâmetros curriculares nacionais em lei com
vigência decenal e submete estes parâmetros curriculares às convicções
187
dos alunos, de seus pais ou responsáveis, tendo os valores de ordem
familiar precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados
à educação moral, sexual e religiosa, vedada a transversalidade ou
técnicas subliminares no ensino desses temas.” Novamente a atividade
docente estaria sob o controle “panóptico” das instituições que
historicamente dominam – leis, estado, igreja e família – o indivíduo e
determinam a forma como deve agir no ambiente social.

 Projeto de Lei nº 1859/2015, proposto pelo deputado federal


Izalci Lucas Ferreira (PSDB-DF). Pedagogo e contador (Associação de
Ensino Unificado, Brasília) e presidente dos Estabelecimentos
Particulares de Ensino do Distrito Federal, Brasília. Existem outros
quinze proponentes.
“Acrescenta parágrafo único ao artigo terceiro da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação, de 20 de dezembro de 1996 (Lei n.º 9394-LDB)”. O
artigo terceiro passaria a ter apenas o seguinte texto: “A educação não
desenvolverá políticas de ensino, nem adotará currículo escolar,
disciplinas obrigatórias, ou mesmo de forma complementar ou
facultativa, que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’
ou ‘orientação sexual’”. Isto significa que não se falaria mais em gênero
e nem em sexualidades. Os professores ignorariam que os estudantes e
todos, inclusive ele, são seres sexuados e que há um “nomadismo
indenitário”. Seriam instalados instrumentos de vigília e punição
institucionalizados. Falar em gênero, sexualidades e identidades sexuais
seria uma contravenção.

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 Projeto de Lei nº 2731/2015, proposto pelo deputado federal


Victorio Galli Filho (PSC-MT). Músico e médico veterinário (Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais)
e presidente da Comunidade Canção Nova Minas, Belo Horizonte, Minas
Gerais.
“Altera a Lei n.º 13005 de 25 de junho de 2014 que estabelece o Plano
188
Nacional de Educação (PNE)”. O artigo segundo desta lei passaria a ter
um parágrafo único que dispõe o seguinte: “É proibida a utilização de
qualquer tipo de ideologia na educação nacional em especial o uso da
ideologia de gênero e seus derivados, sob qualquer pretexto.” Novamente
seria aprovada uma medida restritiva, que impediria o debate em torno
da diversidade, conforme garantida na constituição. Este e todos os
projetos de lei abordados impediriam professores de ensinar e
silenciariam grupos historicamente marcados pela violência, pela
exclusão e pelo silêncio. Viveríamos uma espécie de ditadura
conservadora e cristã, uma vez que todos os projetos de lei se baseiam
em princípios cristãos e são propostos por líderes religiosos, ou adeptos
de religiões cristãs evangélicas.

 Projeto de Lei nº 5487/2016, proposto pelo deputado federal Eros


Biondini (PTB-MG). Professor de Teologia na empresa Faculdades
Evangélicas Integradas Cantares de Salomão – FEICS, Cuiabá, Mato
Grosso.
“Institui a proibição de orientação e distribuição de livros às escolas
públicas pelo Ministério da Educação e Cultura que verse sobre
orientação de diversidade sexual para crianças e adolescentes.” Em seu
artigo primeiro “fica proibido o Ministério da Educação e Cultura a
orientar e distribuir às escolas públicas que versem sobre orientação à
diversidade sexual de crianças e adolescentes, em consonância com a Lei
13005/2014 (PNE)”. Este projeto consolidaria toda uma estrutura de

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censura imposta por agentes que confundem a atuação política com suas
crenças religiosas.

 Projeto de Lei nº 867/2015, proposto pelo deputado federal Izalci


Lucas Ferreira (PSDB-DF).
Este projeto “inclui, entre as diretrizes e bases da educação nacional, o
Programa Escola Sem Partido”. Projetos semelhantes estão sendo
189
propostos em diferentes estados brasileiros. Com a aprovação deste
projeto se espera combater uma hipotética “doutrinação” que, segundo
seus proponentes, estaria sendo praticada por professores durante as
aulas. Este projeto utiliza o pressuposto de uma inventada “potência”
docente no exercício da “doutrinação” e ignora a inteligência dos
estudantes na tentativa de mascarar as suas reais intenções: alienar, por
meio de um discurso religioso, misógino, sexista e homofóbico e instituir
o controle dos corpos, pulsões e opções humanas.

Acredito que todos os dados apresentados mereçam ser encarados com


seriedade e cuidado. Espero que novos debates sejam realizados em torno das
problemáticas aqui apontadas. Tenho a convicção em destacar que a aprovação
de projetos, tais como os mencionados, só viria agravar ainda mais a dura
condição de violência ás quais mulheres e outros grupos de gênero estão
cotidianamente submetidos. A única diferença seria que, com aprovação dessas
leis, viveríamos em um país onde, culturalmente e juridicamente, se reconhece
por legítima a violência contra mulheres e agentes pertencentes à comunidade
LGBTT. Creio que vivemos no Brasil, uma “cultura do estupro” alimentada, em
sua vez na cultura machista, sexista, misógina e homofóbica. Destaco isso, pois
é exatamente o que os projetos de lei defendem como legitimo: o poder
masculino e a heteronormatividade branca e cristã. E isto não é apenas por conta
do texto dos projetos, mas também por seus propositores, ou devo ignorar ser
seus defensores agentes abusivos que não se intimidam em dizer, em rede
nacional, relacionar-se sexualmente com uma mulher sem seu consentimento?
Devo ignorar o aumento de casos de crimes de gênero? Devo ignorar serem os

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autores dos projetos, personalidades políticas muito comprometidas com suas


crenças religiosas? Devo ignorar a luta das mulheres para “sair” dos lugares de
dominação? Devo ignorar que todos, sem preconceito de classe, raça ou gênero,
têm o direito de viver e gozar da liberdade?
As proposições e acontecimentos mencionados ao longo do artigo
evidenciam diferentes questões que merecem maiores reflexões. Num mergulho
mais profundo podemos compreender que as manifestações de mulheres, os
190
projetos de lei e a mobilização de grupos contrários ao debate de gênero revelam
a ponta de um enorme iceberg que precisa ser discutido: as incompreensões do
gênero, as violências de gênero, as sexualidades e diferentes identidades sexuais.
Digo isto, pois temos experimentado diariamente um avanço rápido de
ideologias conservadores que pretendem esvaziar de significados as noções de
gênero enchendo-as de concepções estereotipadas e deturpadas. Vemos isto nas
publicações do Observatório Interamericano de Biopolitica, na ação do grupo
Revoltados On Line e nos projetos de lei que pretendem barrar uma suposta
“doutrinação” política/religiosa/sexual, por parte dos professores. Digo isso,
pois tenho acompanhado os ataques contemporâneos aos movimentos de
mulheres e feminismos, visto violências institucionalizadas contra as mulheres
em programas de televisão, no exame nacional do ensino médio e em ações de
personalidades políticas que deveriam agir de forma coletiva. A persistência da
violência contra as mulheres e as diferentes violências de gênero tem alimentado
uma cultura do medo que impede os variados agentes sociais de viverem e ser
livres. É por esta razão que tentei traçar alguns itinerários desta condição
presente. A expectativa é que novos debates aconteçam e que consigamos
converter este mundo velho em um mundo novo no qual todos possam viver sem
medo e livres.

REFERÊNCIAS

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BIOPOLITIA. Observatório Interamericano de Biopolitica. Disponível em:
http://biopolitica.com.br/index.php/cursos/40-voce-ja-ouviu-falar-sobre-a-
195
ideologia-de-genero. Acesso em 01 de junho de 2016. Obs. A página encontra-
se temporariamente suspensa. Durante a pesquisa visitei esta página algumas
vezes e vi dentre vídeos e documentos diversos um discurso misógino, machista
e fortemente intolerante às novas concepções familiares. A presença do discurso
cristão é uma característica expressiva. O combate à “ideologia de gênero”
parece ser o elemento estimulador da página virtual. Encontrei uma comunidade
no facebook, mantida pela mesma instituição.
BRANDINO, Géssica. Estupros coletivos e feminicídio: o caso de Castelo do
Piauí. Disponível em: http://www.compromissoeatitude.org.br/estupros-
coletivos-e-feminicidio-o-caso-de-castelo-do-piaui/. Acesso em 15 de maio de
2016.
BRASIL. Secretaria de Políticas para as Mulheres. Balanço 2014. Central de
Atendimento à Mulher: Disque 180. Brasília, 2015. Disponível em:
www.spm.gov.br. Acesso em: 01 jun. 2016 (adaptado).
BRASIL. Secretaria de Políticas para as Mulheres. Balanço 1º semestre de 2015.
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morta-arrastada-por-carro-da-pm/. Acesso em 02 de junho de 2016.
GOMES, Laís. Cris Vianna é vítima de racismo na internet, assim como Tais
Araújo. Foto da atriz em sua página oficial no Facebook foi alvo de comentários
preconceituosos. Assessoria diz que Cris vai tomar medidas legais cabíveis.
Disponível em: http://ego.globo.com/famosos/noticia/2015/11/cris-vianna-e-
vitima-de-racismo-na-internet-assim-como-tais-araujo.html. Acesso em 15 de
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encontrar Temer. Disponível em:
http://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,ministro-da-educacao-recebe-
alexandre-frota-nao-discrimino-ninguem--diz,10000053417. Acesso em 30 de
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REDE BANDEIRANTES. You tube. Agora é tarde 22/05/2014. Alexandre
Frota (íntegra) Vídeo (51 min 51 s). Disponível em:
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2016.

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https://www.youtube.com/user/revoltadosonline. Acesso em 02 de junho de
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RELATÓRIO 2015. Assassinato de LGBT no Brasil. Grupo Gay da Bahia
(GGB). Disponível em:
https://homofobiamata.wordpress.com/estatisticas/relatorios/. Acesso em 15 de
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06722. Acesso em 15 de nov. de 2015.
SANTANA, Erivelton. Projeto de lei nº 7181/2014. Disponível em
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ROSSI, Marina. O que já se sabe sobre o estupro coletivo no Rio de janeiro. A
polícia apontou sete suspeitos e dois deles estão detidos. A vitima deixou o Rio.
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no Brasil. Brasília: OPAS/OMS; Brasília: ONU Mulheres; Brasília: SPM; Rio
de Janeiro: Flacso, 2015. Disponível em:
http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.p
df. Acesso em 01 de maio de 2016.

#MENINAPODETUDO: como o machismo e a violência contra a mulher


afetam a vida das jovens das classes C, D e E. Estudo realizado pelo Énois
Inteligência jovem em parceria com os institutos Vladimir Herzog e Patrícia
Galvão. Disponível em: http://www.compromissoeatitude.org.br/enois-
inteligencia-jovem-faz-pesquisa-sobre-machismo-e-violencia-contra-jovens-e-
lanca-campanha-enois-02062015/. Existe nesta página um link que oferece

ISBN: 978-85-65957-07-6
Rio de Janeiro
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Atas do II Encontro Nacional do GT Estudos de Gênero
Rio de Janeiro, 27 e 28 de outubro de 2016.

acesso aos resultados da pesquisa. O leitor pode baixar infográfico, um arquivo


em pdf com informações da pesquisa e um vídeo com várias jovens de classes
subalternas.

199

ISBN: 978-85-65957-07-6
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Rio de Janeiro, 27 e 28 de outubro de 2016.

VIOLÊNCIA DE GÊNERO E A CULTURA DO ESTUPRO NO ESPAÇO


ACADÊMICO: VULNERABILIDADES E HISTÓRIA

Lidia M V Possas*

A temática emerge no contexto das atividades de comemoração dos 40


anos/ UNESP _ Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (1976-
200
2016)1 e das preocupações dos pesquisadores do Laboratório Interdisciplinar de
Estudos de Gênero/LIEG2 que aproveitam a data para não só (re)tomar a
trajetória histórica, mais as demandas que se colocam e avaliar as “agências”3
existentes paralelamente à sua participação acadêmica no país e internacional.

Uma das metas que está sendo debatida situa-se na urgência de garantir
efetivamente a inclusão social, de gênero e racial na vida acadêmica diante dos
inúmeros enfrentamentos e os conflitos que se fazem presentes no vivido dos
campi universitários

É evidente que uma gama de problemáticas socioculturais, econômicas


e políticas da sociedade brasileira e do país foram transportadas para o seu
cotidiano criando outras exigências inclusive curriculares, conceituais e
explicativas.

*
UNESP.
1
A UNESP é distribuída do litoral ao interior do Estado de São Paulo. Possui a
caraterística de ser multicampus atuando em 24 cidades paulistas. Conta com 134 curso
de Graduação (37.388 estudantes), 13.200 cursos de Pós-Graduação (13.2006
estudantes). Atua com 3.880 docentes titulados e mais de 7 mil funcionários distribuídos
em suas 34 unidades. Jornal Estado de São Paulo de 30/01/2016.
2
O LIEG foi fundado em 2010, na UNESP, campus de Marília, com a implementação
do Projeto de Politicas Publicas do Edital n. 20/2010 do Conselho Nacional do
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), intitulado “O impacto da(s)
Teoria(s) Feminista(s) na criação e implementação de Políticas Públicas no
enfrentamento à violência contra as mulheres: A proposta de alternativas frente ao
estudo comparativo das realidades distintas dos municípios de Marília-SP e Maringá-
PR” 2010-1014
3
Dentre as atividades propostas, salientando-se o trabalho do CEDEM/Centro de
Memória, participo de uma Mesa Redonda intitulada “Mulheres Intelectuais na
UNESP”, no dia 17/08 em São Paulo, Reitoria.

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Atas do II Encontro Nacional do GT Estudos de Gênero
Rio de Janeiro, 27 e 28 de outubro de 2016.

A violência de gênero4 e “a cultura do estupro”5 estão inseridas no


contexto de novas demandas, caracterizando as tensões e conflitos que são
gerados no cotidiano.

Com isso passei a observar a necessidade de debruçar-me sobre essa


realidade – o espaço acadêmico - como um campo de estudo, o que me exige
rever as ferramentas existentes realizando a crítica necessária diante da
produção do conhecimento cientifico que, dado as realidades complexas e
201
distintas vem debatendo uma maior autonomia intelectual, localizada, híbrida
que possibilitam introduzir novas perspectiva analíticas, e categorias dissonantes
libertando-as dos modelos e paradigmas explicativos dominantes. À exemplo
das teóricas feministas contemporâneas em sua revisão conceitual, a partir de
um “sul”, que é mais que o geográfico, tem realizado a desconstrução do olhar
do ocidente hegemônico e das tendências monolíticas emanadas pelo “norte”
(FRASER, 2007)6 o que me aproximou da construção de tradições acadêmicas
feministas “contra hegemônicas” de percepção do mundo, da atuação das
mulheres e das relações de gênero em contraponto com as propostas
(monolíticas) ocidentais (MOHANTY, 2010, p. 75).

4
Essa noção de violência de gênero entendida como violência dirigida à mulher, tem
sido alvo de discussão no Brasil desde o início dos anos de 1980, possuindo
complexidade devido as variações interpretativas e vozes. Constitui-se em um campo
teórico-metodológico sendo alvo das reivindicações do movimento feminista brasileiro
e internacional. Ela ocorre motivada pelas desigualdades baseadas na condição de sexo,
tendo no universo familiar as suas raízes devido que as relações de gênero se constituem
em relações hierárquicas. (ALMEIDA)
5
Por que falamos em “ cultura do estupro?
https://nacoesunidas.org/por-que-falamos-de-cultura-do-estupro/
Cultura do estupro” é um termo usado para abordar as maneiras em que a sociedade
culpa as vítimas de assédio sexual e normaliza o comportamento sexual violento dos
homens. Ou seja: quando, em uma sociedade, a violência sexual é normalizada por meio
da culpabilização da vítima, isso significa que existe uma cultura do estupro. “Mas ela
estava de saia curta”, “mas ela estava indo para uma festa”, “mas ela não deveria andar
sozinha à noite”, “mas ela estava pedindo”, “mas ela estava provocando” – estes são
alguns exemplos de argumentos comumente usados na cultura do estupro.
6
Estaria me aproximando de uma abordagem que se faz presente na academia, desde os
anos 70, sendo denominado de estudos pós-coloniais na medida em que revê as
especificidades das sociedades, das relações de poder partir do lugar dos sujeitos, sem
intermediações frente ao processo de globalização e da construção do capitalismo pelo
Ocidente. (BALESTRINI, 2013)

ISBN: 978-85-65957-07-6
Rio de Janeiro
Ed. Anpuh-Rio
Atas do II Encontro Nacional do GT Estudos de Gênero
Rio de Janeiro, 27 e 28 de outubro de 2016.

Portanto a minha proposta tem como ponto de partida uma revisão do


olhar epistemológico presente na história, de modo a garantir que uma revisão
das imagens e representações que temos de nossa realidade latino-americana,
inclusive acadêmica, me possibilitando sair da direcionalidade de relações de
poder convencionais produzidas pelas teorias existentes. Um dos exemplos dessa
postura intelectual está no conceito “do relativo subdesenvolvimento do Terceiro
Mundo” (que é nada menos do que injustificadamente o hibrido processo de
202
desenvolvimento com um caminho em separado tomado pelo Ocidente em seu
desenvolvimento do capitalismo ”). Esses pensamentos vêm sendo refletido
inclusive sobre as mulheres terceiro mundistas, como um grupo ou categoria
definida, a priori, que reforça estereótipos e as exclui:
[...] as religiosas (leia-se ‘não progressista’), orientadas para
a família (leia-se ‘tradicional’), menores legais (leia-se ‘elas-
são ainda-não-conscientes-de-seus-direitos’), analfabetas
(leia-se ‘ignorantes’), domésticas (leia-se ‘atrasadas’) e,
algumas vezes, revolucionárias (ler ‘o seu país-está-em-um-
estado-de-guerra-onde-há-que-lutar!’). “Isso é como a
‘diferença de terceiro mundo’ é produzida” (MOHANTY,
1984, p. 352)

Pretendo me colocar na contramão dessa perspectiva e observar os


conflitos existentes e as relações de gênero que são muitas vezes sutis, de várias
ordens e nuances. No espaço universitário, vivenciamos nas relações cotidianas
praticas essencialmente misóginas, conservadoras, elitistas contraditórias que
acabam sendo excludentes e não condizem com os discursos e a retorica de uma
autonomia endógena, um espaço de pessoas “ esclarecidas”. As transformações
do mundo contemporâneo, os avanços políticos e sociais obtidos por aqueles que
durante muito tempo foram considerados os silenciados, agora, são sujeitos de
direito e de representatividade. As “minorias”7 alçaram conquistas inéditas,

7
As minorias sociais são as coletividades que sofrem processos de estigmatização e
discriminação, resultando em diversas formas de desigualdade ou exclusão sociais,
apesar de constituírem a maioria numérica da população. Nesse sentido incluem além
das mulheres, os negros, indígenas, imigrantes, homossexuais, trabalhadores do sexo,
idosos, moradores de vilas (ou favelas), portadores de deficiências, obesos, pessoas com
certas doenças, moradores de rua, ex-presidiários.

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embora ainda enfrentem situações onde são consideradas como “diferentes” e,


portanto, sem a devida legitimidade pelos saberes dominantes.

Situando o lugar do discurso em que me coloco, pretendo aproximar-


me dessas complexidades e contradições com um estudo abordando as práticas
sociais e a violência de gênero8 vivenciadas no ambiente universitário – UNESP
– analisando, o que estou entendendo por conflitos gerados pela presença de
comportamentos sexistas, misóginos e naturalizados da “cultura do estupro”. 9
203
As feministas norte-americanas pós-coloniais vêm defendendo vários
movimentos na perspectiva do dismantle rape culture (GILMORE, 2011).10

Durante minha experiência docente (1995-2016), tive a oportunidade


de ouvir muitas falas de estudantes e as razões do(s) silêncio(s) que de certa
maneira “imobilizavam” as vítimas de violência, sendo o medo, a exposição
pública que levaram algumas delas a opção de abandonar a vida universitária.
Penso em penetrar mais a fundo nas distintas narrativas e depoimentos das
“vítimas/sobreviventes” decorrente desse tipo de violência incluindo os
comportamentos e valores observados nas atividades estudantis como os trotes

8
Nessa proposta, constitui-se de um campo teórico-metodológico que se fundamenta
nos estudos da opressão e dos conflitos que marcam a vida das mulheres de classes,
raças, religiões, culturas diferentes e para além de uma visão binária e reducionista
entre os sexos, em consonância os movimentos feministas pós –coloniais que levam
em consideração as dimensões micropolíticas, de subjetividades e de lutas específicas,
quanto aos contextos macropolíticos dos sistemas políticos e econômicos globais sem
descuidar de análises particulares, singulares. MATOS, M., 2010.
9
A expressão "cultura do estupro" é utilizada desde anos 70, para indicar a existência
de um ambiente onde esse tipo de crime, de violência em relação à mulher torna-se
naturalizado, justificado pela presença de uma cultura ( valores e normas) que confirma
a desigualdade social existente entre homens e mulheres, sendo estas vistas como
indivíduos inferiores e, muitas vezes, como objeto de desejo e de propriedade do homem
-- o que autoriza, banaliza ou alimenta diversos tipos de violência física e psicológica,
entre as quais o estupro. "Ela provocou”, “ela estava de saia curta”, “ela não deveria
sair sozinha”, “ela não deveria estar na rua naquela hora”, “ela não deveria ter bebido”
ou “ela é uma mulher fácil” -- quando surge esse tipo de comentário que coloca em
dúvida a denúncia da vítima, estamos diante de um traço da famigerada cultura do
estupro”. Cultura do estupro: Você sabe de que se trata. Carolina Cunha em 6/06/2016.
http://vestibular.uol.com.br/resumo-das-disciplinas/atualidades/discussao-o-brasil-
vive-em-uma-cultura-do-estupro. Acesso em julho de 2016
10
GILMORE, Stephanie. On The Issues Magazine , Wednesday, 09 February 2011.
http://truth-out.org/archive/component/k2/item/94414:disappearing-the-word-rape.
Acesso em 2/07/2016

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(proibidos na UNESP, porém mantidos com outras significações e práticas), as


festas e os relacionamentos “relâmpagos” (o ato de ficar com...). Por que persiste
essa espécie de violência, seja física ou psicológica, e quais as razões em um
ambiente acadêmico e com uma população de formação superior? Que
alternativas são possíveis de observar? Como enfrentam a vulnerabilidade frente
a frequente retaliação e a permanência de assédio e até de agressões? Como a
UNESP tem convivido e enfrentado as tensões e os conflitos de relação de
204
gênero, nesses 40 anos de uma trajetória?

Para obter a concretude do que estou problematizando fiz um


levantamento inicial de notícias em distintos sites e revistas online que
divulgavam casos: “Como as universidades brasileiras abafam os casos de
assédio sexual”11; “Alunas da Rural relatam casos de estupro na universidade”12;
“O que está por trás da violência dentro das universidades?”13e “Fórum Fale sem
Medo: Violência contra mulheres no ambiente universitário”14.

Desde 2014, o documentário The Hutting Ground15 chamou a minha


atenção ao colocar em evidência os casos de estupro nas principais universidades
americanas. As relações de gênero e de poder praticadas pelas conhecidas

11
Revista Galileu -
http://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2016/02/rompendo-o-silencio-
vitimas-de-violencia-nas-universidades-brasileiras-contam-suas-experiencias.html.
Acesso 3/2016
12
Ver http://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2016-04-04/alunas-da-rural-relatam-casos-
de-estupro-na-universidade.html. Acesso 3/2016
13
A revista Veja divulgou uma matéria com vários depoimentos. Uma estudante
perante a Assembleia Legislativa/SP denunciou que tinha “sido estuprada em 2011 e
que, na ocasião, procurou a direção do curso. Em resposta, membros da diretoria teriam
tentado convencê-la a não denunciar o crime.http://veja.abril.com.br/educacao/o-que-
esta-por-tras-da-violencia-dentro-das-universidades/ Acesso em março/2015
14
O Instituto Avon, contando com a parceria do Instituto Patrícia Galvão, Ministério
Público de São Paulo, Defensoria Pública de São Paulo e Ministério das Mulheres,
Igualdade Racial e Direitos Humanos, promoveu a terceira edição do FÓRUM FALE
SEM MEDO. São Paulo, 3 de dezembro de 2015.
http://www.compromissoeatitude.org.br/instituto-avon-promove-forum-fale-sem-
medo-violencia-contra-a-mulher-no-ambiente-universitario-sao-paulo-03122015/
Acesso janeiro/2016.
15
Esse documentário tornou-se referência de estudo e, principalmente de denúncia
frente os casos de abusos e violência sexual nos campos e fraternidades norte
americanas. Ver crítica ao filme no Plano crítico. http://www.planocritico.com/critica-
the-hunting-ground/. Acesso março de 2016.

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“fraternidades” (clubes esportivos e preferencialmente masculino) tinham um


caráter violento e machista . E o mais relevante foi o descaso frente as tentativas
de denuncia das vitimas ( geralmente moças) pelas autoridades locais e
instituições de ensino. Recentemente para enfrentar essa situação as estudantes
organizaram vários coletivos dando visibilidade aos relatos e as experiências
traumáticas vividas pelas jovens e que tiveram repercussão na imprensa e em
vários campi, com a adesão e ampliação de uma rede e contatos.
205
É evidente que reconheço as especificidades da realidade e a estrutura
das universidades situadas ao Norte, distintas de nossas universidades no
hemisfério Sul/Brasil. No entanto observei que, nos últimos anos as denúncias
de estudantes brasileiras, em vários estados da federação, ganharam força e
significado com a organização de resistências e o apoio de procuradoras e
advogadas das vítimas.

Um levantamento “inédito” do Instituto Avon ao Data Popular foi


realizado em cinco regiões do Brasil, sendo ouvidos 1,8 mil estudantes e chegou-
se a seguinte afirmação: “Quase 70% das mulheres já sofreram violência em
universidades”16.

Foi justamente diante dos depoimentos de várias estudantes brasileiras,


em momentos diferentes que senti o que o historiador chama de “fato histórico”.
Para mim há o fato quando sugere a presença de muitas memórias, muitos
testemunhos. Portanto, há provas/documentais que alguma coisa aconteceu e
que possui uma memória vivida, com testemunhos oculares. Porém poderá ficar
hibernando nos registros escritos, iconográficos ou orais se historiadoras
sensíveis aos ruídos e, ao próprio oficio não enfrentarem a tarefa de criar o fato,
investigando. (RICOEUR, 2007, p. 189).

16
A reportagem que veiculou o resultado da pesquisa dizia ainda mais: “violência contra
as mulheres ainda não exorcizou o fantasma da desigualdade de gênero”.
h.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2015/12/quase-70-das-mulheres-ja-sofreram-
violencia-em-universidades-mostra-pesquisa-4921846.html . Acesso em janeiro/2016.
O III Fórum Fale Sem Medo realizado em São Paulo, pelo Instituto Avon -
dezembro/2015 evidenciou um panorama critico e de violências com as narrativas das
jovens presentes. Contou com a participação de varias autoridades, promotoras,
feministas e movimentos de direitos humanos. Ver
https://www.youtube.com/user/falesemmedo

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O fato não está na simples narração. É sempre construído, a partir de


um lugar, por procedimento documental, epistemológico e proposicional
visando a qualificação veritativa da prova documental e não será encontrado nos
níveis da explicação, segundo Ricoeur (2007)17.

Ele se distingue sensivelmente daquilo que percebo por


“acontecimento” Novamente me referencio em Ricoeur (2007) quando nos
lembra que a recuperação do acontecimento é sempre bem-vindo, pois ele é
206
justamente sobre “a coisa que se fala, e principalmente “a propósito de que”.
(POSSAS, 2014) Assumo com a equipe do Laboratório Interdisciplinar de
Estudos de Gênero/LIEG, na UNESP, campus de Marília essa tarefa de
construção histórica, pois este é um tema recorrente e o mais importante: tem
uma história.

Na UNESP, em outubro de 2010 a comunidade unespiana foi


surpreendida pelo “rodeio de gordas” que provocou significativo desconforto à
imagem da Universidade, no evento cultural e esportivo que reúne estudantes
dos campi da UNESP, o InterUNESP (ou apenas Inter). Anunciado à época
como o maior da modalidade no país, o Inter teria reunido, na cidade de
Araraquara, cerca de 15 mil universitárias/os de 23 campi da universidade. Ao
ser entrevistado, um dos organizadores do "rodeio" e criador de uma comunidade
sobre o tema, no Orkut18, disse que o desafio teria sido "só uma brincadeira".
Quer representações estariam em jogo nessa “brincadeira”?

Em depoimento ao jornal Folha de São Paulo (2010) a advogada de uma


das jovens agredidas afirmou que sua cliente estaria profundamente abalada

17
Paul Ricoeur, A memória, a historia, o esquecimento. Campinas Editora da
UNICAMP, 2007, p. 189-192
18
Várias matérias podem ser encontradas a respeito. A pesquisa prévia remeteu a uma
mesma fonte, o jornal Folha de São Paulo. Em algumas delas existe a afirmação de que
a página no Orkut foi criada 4 dias depois de terminado o InterUNESP e que lá estariam
as regras para os próximos desafios, inclusive com premiações para os que se
destacassem. http://www.brasil247.com/pt/247/brasil/13848/Preconceito-contra-
gordas-agora-%C3%A9-crime.htm Em outra fonte (CARRIEL, 2010) há a menção de
que a comunidade existia desde 2006 e que à época em que foi excluída possuía 23
membros. Por sua riqueza informativa e de modo a compor os dados necessários para a
realização da pesquisa, fontes jornalísticas e de redes sociais virtuais, como as citadas
ao longo do projeto, serão utilizadas também como corpus documental.

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psicologicamente e sem condições de retornar às aulas. “Teme ficar conhecida


como ‘a gorda do rodeio'", teria dito à época. Os organizadores do “rodeio” eram
“colegas” do mesmo campus. Não teria sido a jovem a única vítima, mas muitas,
diretamente (cerca de 50 a 60) e outras indiretamente atingidas. A menina diante
da dor pelo ocorrido naquele momento, levou-a a abandonar os espaços comuns
da universidade, as rotinas de aulas e os trabalhos, receosa de que não houvesse
algum tipo de receptividade e garantia de defesa por direito. Uma sindicância foi
207
aberta pela direção do campus de Assis, acompanhada dos olhares da imprensa
e de alunas/os que protestaram contra o ocorrido. Após consulta aos
instrumentos legais de que dispunha, a instituição deliberou sobre a punição:
“suspensão de dois alunos por apenas cinco dias das atividades escolares”.

Apesar de ter sido relatado como um caso isolado, ocorrido fora das
dependências da universidade, outras agressões movidas por preconceito contra
mulheres consideradas acima do peso são relatadas por universitários. Mayara
Curcio (2010), aluna do campus de Assis, externou sua indignação em um blog
ao se posicionar sobre a agressão envolver pelo menos dois alunos do mesmo
campus, no caso futuros psicólogo e professor.

Uma matéria divulgada sobre o ocorrido entre discentes da Faculdade


de Medicina de Botucatu/UNESP é sintomática de que existe uma situação social
e educacional que se apresenta fora do controle da própria instituição, das
autoridades competentes e da sociedade: “Apontada como uma das mais
violentas de SP, Unesp de Botucatu ainda registra trote da Klu Klux Klan e atos
misóginos.”19
Apologia ao estupro segue firme, denuncia coletivo
Em entrevista à Rede Brasil Atual, a estudante Marina
Barbosa, da Faculdade de Medicina da UNESP de Botucatu e
integrante do Coletivo Genis, afirmou que a apologia ao
estupro e a misoginia seguem sendo registradas na instituição,
mesmo depois da CPI que aconteceu na Alesp. “A maioria das
letras (da bateria) é bastante machista, pornográficas,
obscenas ou homofóbicas (...). Eles ofendem as meninas das

19
http://www.brasilpost.com.br/2015/03/30/unesp-botucatu-klu-klux-
klan_n_6968590.html Acesso em 20/08/2015.

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outras faculdades, falam que vão estuprar as meninas das


outras faculdades”, comentou Marina.20 (grifos no original)

Situação como essas tem se tornando cada vez mais visíveis,


principalmente devido a divulgação das mídias e das redes e com isso observo
que para contrapor o discurso naturalizado, emerge o ativismo de “coletivos” 21
para enfrentar esse e todo tipo de exclusão e estereótipos de desigualdade.

Nesse sentido sinto que há a urgência de rever o colonialismo jurídico 208


presente em nossas instituições e que recentemente vem sido denunciado pelas
tendências do feminismo acadêmico e contemporâneo frente aos estudos pós-
coloniais (ADELMAN, 2009; PISCITELLI, 2016), principalmente as narrativas
femininas de subalternização (BIDASSECA, 2011)22. Pretendo ficar atenta aos
“sujeitos racializados, sexualizados e colonizados e os espaços desses sujeitos
em diferentes discursos”.

É evidente que há uma historicidade a ser buscada e analisada. Essas


situações de agressões, estupro não nasceram de uma tabula rasa, mas
evidenciam uma longa permanência de práticas de abuso, de violência de gênero,
como do descaso e, principalmente a impunidade dos agressores, mesmo com a

20
A CPI de que trata o trecho citado refere-se à “CPI das Universidades” instalada pela
Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) em dezembro de 2014 e concluída em
março de 2015. Produziu um relatório de 194 páginas “nas quais foi relatado uma série
de barbaridades vividas no mundo acadêmico paulista. Alguns dados espantam”.
Disponível em: http://www.brasilpost.com.br/2015/03/13/cpi-universidades-
sp_n_6863322.html O referido relatório também está sendo utilizado como fonte
documental para a pesquisa.
21
São grupos de jovens universitários ingressantes nas universidades para chamar a
atenção para problemas ainda não reconhecidos nas agendas prioritárias, como o de dar
visibilidade à luta das mulheres, dos homossexuais . Ver Luisa Scherer, do Coletivo
Jornalismo sem Machismo (UFSC) e com a Julia Dolce, do 3 Rosas (PUC-SP.)
Segundo elas “a empatia que rola dentro dos coletivos faz com que cada participante
se sinta amparada e empoderada. http://capricho.abril.com.br/vida-real/tudo-voce-
precisa-saber-coletivos-feministas-942780.shtml. Acesso em abril de 2016
22
BIDASSECA, Karina "Mujeres blancas buscando salvar a mujeres color café":
desigualdad, colonialismo jurídico y feminismo postcolonial. Andamios. Revista de
Investigación Social, vol. 8, núm. 17, sep-dic., 2011, pp. 61-89. Nesse artigo autora
investe na teoria das vozes . Ressalta um aspecto que há continuos intentos de algunas
voces feministas de silenciar a las mujeres de color/no blancas o bien, de hablar por
ellas.

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Lei Maria da Penha (2006) que tornou crime todo ato de violência contra as
mulheres.

As práticas e as relações estudantis, de docentes e funcionários


vivenciadas na Universidade, sem que ela enfrente de maneira mais assertiva,
tem um caráter de manutenção das oposições binárias e hierárquica do masculino
e feminino, de confronto das identidades múltiplas que no cotidiano acabam por
aprofundar as desigualdades provenientes de vários marcadores sociais como de
209
gênero, classe, de raça, de sexualidade, de confissão religiosa e partidária.

Aprofundar as análises de como as raízes de gênero de nossa cultura


ocidental baseada na hegemonia branca, masculina, heterossexual e cristã
transformaram os demais em diferentes, com o sentido de desiguais, fora da
“norma”, sem legitimidade de uma fala ou de serem ouvidos. Há de maneira
velada ou mesmo explicita impedimento das diferentes corporificações que sem
chance de uma existência válida na denominada normalidade, são apenas os
subalternos, o colonizado e irremediavelmente heterogêneo (SPIVAK, 2010:
55-56).

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210

ST 2
Corpo, Violência de Gênero e
História

Coordenação
Profa. Dra. Maria Beatriz Nader
(UFES)

Profa. Dra. Juçara Luzia Leite


(UFES)

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A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES IDOSAS EM DENÚNCIAS:


O CASO DA DEAM E DA DAPPI DE VITÓRIA – ES, 2002 – 2012

Alex Silva Ferrari*

Luciana Silveira**

Introdução
211
Há algumas décadas, o estado do Espírito Santo e, em especial, a
capital, Vitória, tem se destacado no cenário nacional pelos altos índices de
violência. Maria Beatriz Nader (2009) relaciona o fenômeno ao crescimento
demográfico ocorrido a partir dos anos de 1970, quando foram implementados
os Grandes Projetos Industriais no estado. A instalação da população que
chegava em Vitória, atraída pelas ofertas de trabalho nas indústrias recém-
surgidas, num espaço reduzido e em condição social desigual promoveu,
segundo a autora, um quadro de violência nunca antes experimentado pelos
moradores de Vitória.

E, apesar dessa violência atingir aos mais diversos grupos sociais, o


estado e a capital lideram, principalmente, os índices relacionados a algumas
manifestações específicas do fenômeno. Segundo dados do Mapa da Violência
publicado pelo Instituto Sangari no ano de 2014, o estado tem a segunda maior
taxa de assassinatos do país. Quanto ao feminicídio, a unidade federativa do
Espírito Santo ocupa o primeiro lugar do ranking. A cidade de Vitória também
está na primeira posição em comparação com as outras capitais brasileiras no
que diz respeito ao assassinato de mulheres.

Diante disso, no ano de 2008, o Laboratório de Estudos de Gênero,


Poder e Violência da Universidade Federal do Espírito Santo (LEG-UFES)

*
Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações
Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo. Integrante do Laboratório de
Estudos de Gênero, Poder e Violência (LEG-UFES).
**
Mestra em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações
Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo. Integrante do Laboratório de
Estudos de Gênero, Poder e Violência (LEG-UFES).

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iniciou o projeto de Mapeamento da Violência Contra a Mulher em Vitória - ES


com o objetivo de compreender as características que envolviam os casos de
agressões às mulheres na cidade. Diferentemente da pesquisa anteriormente
citada, o projeto do LEG-UFES focou na modalidade de violência não letal, que
consiste em ameaças e/ou agressões de natureza física, psíquica e moral.

Esse mapeamento iniciou-se no final do ano de 2008 e estendeu-se até


o ano de 2014, foi executado em duas partes, e envolveu cerca de vinte
212
pesquisadoras e pesquisadores, todos oriundos dos cursos de graduação e pós-
graduação em História da UFES. A primeira parte do projeto consistiu na cópia
do conteúdo dos BOs para uma ficha confeccionada exclusivamente para essa
função. Já a segunda parte consistiu na inserção das informações coletadas em
um banco de dados do Microsoft Access, também confeccionado para atender as
necessidades do projeto, permitindo a catalogação e análise de todos os registros.
Ao final, o mapeamento catalogou 12.255 casos registrados na DEAM/Vitória
entre os anos de 2002 e 2010.

No ano de 2012, tendo em vista ampliar o mapeamento em andamento


na DEAM, iniciou-se o levantamento dos dados referentes aos boletins de
ocorrência registrados na Delegacia de Atendimento e Proteção à Pessoa Idosa
de Vitória, a DAPPI, também conhecida como Delegacia do Idoso. O objetivo
era tratar de uma questão muitas vezes invisibilizada quando se trata de discutir
a violência de gênero que é a violência contra as mulheres idosas, especialmente
a praticada pelos filhos e netos.

O período de coleta das fontes na DAPPI foi de março de 2012 a maio


de 2013. Durante esse tempo, procedeu-se a transcrição das fontes referentes aos
anos de 2010 a 2012, que correspondem aos dois primeiros anos de existência
da delegacia. Para tanto, serviu-se das fichas criadas para o registro dos dados
da DEAM, com algumas adaptações, uma vez que os boletins das duas
instituições possuem algumas diferenças nas suas estruturas.

No presente trabalho, propõe-se uma análise comparativa das


ocorrências registradas na DEAM dos anos de 2002 a 2010, em que as vítimas
são mulheres idosas, e os casos registrados na DAPPI, durante os anos de 2010

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e 2012, de modo a perceber possíveis aproximações e especificidades dos dados


e da forma de tratamento dos casos atendidos.

A Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher da capital do


estado do Espírito Santo tem como função o recebimento de denúncias e
investigação de casos de violência contra a mulher, desempenhando um papel
de suma importância para esse que é um problema social de destaque no Espírito
Santo.
213
Ao revisitar a história da DEAM/Vitória, Nader (2010) destaca que no
ano de sua inauguração, 1985, quando ainda se chamava Delegacia
Especializada no Atendimento à Mulher do Espírito Santo (DEAM/ES), a
delegacia especializada de Vitória funcionou numa sala da superintendência da
Polícia Civil do estado, onde não só era de difícil acesso para as vítimas, mas
também a execução das atividades judiciais era feita dentro de condições
mínimas. Esse quadro só mudou no ano de 2003, quando a unidade foi
transferida para um espaço físico próprio e independente, que consiste em uma
casa residencial adaptada para funcionar como delegacia.

A DAPPI, por sua vez, constitui-se na primeira e única delegacia


especializada do tipo do Estado. É de criação mais recente, datando de 02 de
setembro de 2010, passando a funcionar em dezembro de 2010. Por isso, as
fontes aqui utilizadas referem-se mais especificamente ao período de dezembro
de 2010 a dezembro de 2012.

Com a criação da DAPPI, foi extinto o Núcleo de Proteção e


Atendimento à Terceira Idade (NUPATI), que segundo Lizete de Souza
Rodrigues (2006), tinha sede na Delegacia da Mulher de Vitória e contava com
o apoio do serviço de Disque Denúncias, através do qual realizava o
levantamento dos delitos e o encaminhamento para exames, laudos médicos,
atendimento psicossocial e para outros órgãos competentes.

A DAPPI está localizada em Vitória, mas atende, além da capital do


estado, a todos os demais municípios que compõem a Região Metropolitana da
Grande Vitória, a saber, Cariacica, Fundão, Guarapari, Serra, Viana e Vila Velha

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e, por vezes, algumas cidades do interior. O seu trabalho principal consiste em


receber denúncias de crimes praticados contra pessoas idosas, homens e
mulheres, entendidas nesse contexto como aquelas que possuem 60 anos ou
mais. Está instalada no térreo do prédio da Chefatura da Polícia Civil, localizado
no Bairro de Santa Luiza, em um espaço de 25 m2, que, segundo informações
dos funcionários, anteriormente, funcionava como um almoxarifado. Ou seja,
assim como a DEAM em seus primeiros anos de existência, não possui espaço
214
próprio.

Análise das denúncias registradas na Delegacia Especializada no


Atendimento à Mulher e na Delegacia de Atendimento e Proteção à Pessoa
e Idosa de Vitória – ES, 2002 – 2012

Na cidade de Vitória, no período entre os anos de 2002 e 2010 (recorte


ao qual se limita o levantamento feio pelo LEG-UFES), a DEAM/Vitória
registrou 12.255 casos de violência contra as mulheres que residiam na cidade.
Esse número pode ser considerado expressivo, já que o censo da Fundação
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) do ano de 2010 apontou
que a capital do estado contava com aproximadamente 327 mil habitantes, dos
quais aproximadamente 128 mil eram mulheres que tinham entre 18 e 65 anos
(faixa etária atendida pela delegacia especializada). Pode-se concluir que no
período analisado aproximadamente 9,5% da população feminina de Vitória foi
vítima de violência, destacando que esse percentual diz respeito apenas às
mulheres que registraram o fato na delegacia especializada, sendo importante
enfatizar o alto índice de subnotificação desses casos.

Ao selecionar os casos nos quais os atos de violência denunciados


foram cometidos contra mulheres acima de sessenta anos observa-se um total de
214 casos, o que corresponde a, aproximadamente, 1,74% do total de denúncias.
A princípio esses números não parecem expressivos devido a sua baixa
representatividade diante das denúncias feitas por mulheres nas demais faixas
etárias, grande maioria dos registros. Todavia, faz-se necessário que outros
fatores sejam considerados no estudo desses números como, por exemplo, a

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invisibilidade dessas mulheres e as dificuldades que elas enfrentam na busca da


denúncia da violência sofrida.

No que diz respeito ao levantamento realizado na DAPPI, foi


contabilizado um total de 719 boletins de ocorrência, referente ao período de
dezembro de 2010 a dezembro de 2012. A princípio, esse número também pode
parecer reduzido, entretanto, é preciso evidenciar alguns fatores para que se
compreenda o seu alcance. Em primeiro lugar, a existência da DAPPI ainda não
215
é amplamente conhecida pela população capixaba. Acredita-se que desde a sua
inauguração, os casos de violência contra os idosos e idosas passaram a ser
melhor divulgados, sendo frequentes notícias nos jornais locais a esse respeito,
contudo, está longe do ideal e o fato de situar-se dentro do prédio da Polícia
Civil, sem um espaço próprio que a torne mais visível, também dificulta o acesso
à instituição.

Ademais, a delegacia atende a um público bastante específico, pessoas


a partir dos 60 anos, que, em determinados casos, possuem debilidades físicas e
psíquicas, impossibilitando sua locomoção até a delegacia. Por tudo isso e outros
elementos a serem explorados mais adiante, é preciso destacar que esse número,
apesar de significativo, não corresponde a dimensão real do fenômeno da
violência contra idosos e idosas, dimensão essa desconhecida dada a
subnotificação dos casos.

Daquele total, 711 boletins estão distribuídos pelos sete municípios que
compõem a Região Metropolitana da Grande Vitória, a saber, Vitória, Vila
Velha, Cariacica, Serra, Viana, Guarapari e Fundão, sendo que os quatro
primeiros lideram com os números com respectivamente, 305, 154, 136 e 101
boletins registrados. Os outros oito boletins correspondem aos municípios que
não fazem parte da jurisdição da DAPPI, localizados nas regiões norte e sul do
estado, como é o caso de Castelo, Mimoso do Sul, São Mateus e Cachoeiro de
Itapemirim, dado que demonstra que há uma demanda por esse tipo de serviço e
por novas unidades da Delegacia do Idoso no Espírito Santo.

O enfoque desse trabalho é sobre a cidade de Vitória e seus 305 boletins


registrados durante o período de dezembro de 2010 até dezembro de 2012, em

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especial, aqueles em que as vítimas são mulheres. Vale salientar que do primeiro
para o segundo ano de existência da DAPPI ocorreu um aumento de cerca de
13% no número de registros, o que não quer dizer que tenha ocorrido um
aumento da violência contra os idosos e idosas, mas que casos de violência
contra idosos e idosas começaram a ser denunciados.

Ao se analisar os boletins de ocorrência registrados em Vitória, uma


primeira classificação introduzida foi a por sexo das vítimas. As mulheres
216
aparecem enquanto vítimas em 205 dos 305 boletins de ocorrência registrados
pela DAPPI referentes à cidade de Vitória, ou seja, mais de 67% do total. Os
homens figuram enquanto vítimas 96 denúncias e, em 4, a DAPPI foi procurada
pelo casal ou por um dos cônjuges para denunciar a violência que ambos vinham
sofrendo, especialmente, por parte do filhos e netos. Nesses casos, o investigador
responsável pelo atendimento registrou apenas um boletim para as duas vítimas.

Assim, é possível observa que, no período de dois anos, a DAPPI


registrou, proporcionalmente, mais denúncias de violência contra mulheres
idosas (205) do que a DEAM/Vitória, que no período de nove anos registrou 214
ocorrências. Nesse ponto, retoma-se a questão da invisibilidade da mulher idosa
citada anteriormente. Acredita-se que antes da criação de delegacias
especializadas em atendimento ao idoso(a), tais casos eram menosprezados, por
se diluírem no universo de ocorrências registradas em delegacias comuns ou
DEAMs, das quais as denúncias que ganham realce são aquelas em que a vítima
é jovem, o que de certa forma pode contribuir para o desestímulo à denúncia e a
subnotificação.

Além disso, deve-se citar que, por meio da observação do cotidiano da


DAPPI, no período de levantamento dos dados, foi possível perceber que não
foram raros os episódios em que mulheres chegaram à DAPPI encaminhadas
pela DEAM, sob o argumento de que após fazerem 60 anos só poderiam ser
atendidas na primeira. Entende-se aí uma necessidade de centralizar as
denúncias, contudo, fica o sentimento de que a DEAM não é mais o lugar dessas
mulheres, pois passam a ser definidas somente pela sua condição de idosa e não
de mulher, numa atitude de nivelamento da experiência do envelhecimento para

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homens e mulheres. Não surpreenderia, inclusive, se algumas dessas mulheres


desistissem da denúncia no trajeto de uma delegacia a outra, o que talvez
tornasse o número referente à DAPPI até maior.

Com relação à idade das vítimas, tanto nos casos da DEAM quanto da
DAPPI, percebe-se que tratam-se de mulheres pertencentes a todas as faixas
etárias, dos 60 aos 94 anos, com uma maior concentração nas primeiras idades
da velhice. Concorrem para tanto, não só o fato de existirem mais mulheres
217
idosas nessas faixas etárias em Vitória, como por possuírem melhores condições
de se dirigirem até a delegacia. O que faz com que as próprias vítimas se
qualifiquem também enquanto noticiantes na maioria das denúncias. Nas
demais, devido à idade avançada da vítima, dificuldade de locomoção, por
motivo de doença e outros, o noticiante é um terceiro, como um parente ou um
vizinho.

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Tabela 1 – Idade das mulheres idosas vítimas de violência – DEAM/Vitória e DAPPI

Faixa etária DEAM (2002 - 2010) DAPPI (2010 - 2012)


60 – 64 anos 99 38
65 – 69 anos 57 46
70 – 74 anos 25 31
75 – 79 anos 21 31
80 – 84 anos 08 20 218
Acima de 85 anos 04 9
Não fornecido - 21
Total 214 1961

Fonte: Sistematização dos pesquisadores, a partir dos dados dos boletins da DEAM/Vitória e
da DAPPI.

Vale ressaltar que a estrutura dos boletins da DAPPI não segue um


padrão, sendo frequente a presença de determinados dados em alguns registros
e em outros não, ao menos de forma clara e evidente. Por exemplo, quando a
idade da vítima não é apresentada durante sua caracterização, mas no histórico
do fato, ao fim do boletim, o que torna uma leitura preliminar da fonte
indispensável. Nos casos em que falta a idade, mas consta a data de nascimento,
essa informação é facilmente depreendida tendo como referência o ano de
registro do boletim. Mas, existem aqueles casos em que as informações
simplesmente não são encontradas em qualquer parte do boletim, tornando-se o
“não fornecido”, como irá se observar, um elemento constante das tabelas
subsequentes.

1
Em nove dos boletins analisados, a idade não corresponde a do público a ser atendido
pela DAPPI, superior a 60 anos. O que explica que o total apresentado na tabela não
corresponda ao mencionado antes, ou seja, 205 boletins de ocorrência. Constatou-se que
essas denúncias correspondiam a situações de perda e extravio de documento e perda
de aparelho celular, ou seja, serviu-se da Delegacia de Atendimento e Proteção à Pessoa
Idosa de Vitória como uma delegacia comum, afastando-a de suas competências.

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Outros dados que se considera imprescindíveis para um perfil mais


completo dos envolvidos como cor e escolaridade, aparentemente, não são itens
obrigatórios nos boletins da DAPPI. Somente no manuscrito este campo está
presente, em relação ao autor, mas em raros casos é preenchido. Chama-se a
atenção, principalmente, para o campo cor ou etnia que inexiste na
caracterização das vítimas nos boletins de ocorrência. Esse dado é especialmente
importante levando-se em consideração a invisibilidade social e política da
219
mulher negra e da violência racial (LINDOSO, 2004).

Por isso, os dados apresentados na Tabela 2 dizem respeito apenas aos


boletins de ocorrência da DEAM, sendo essa informação obtida por meio da
autodeclaração da vítima. Considerando que, conforme consta no Dossiê
Mulheres Negras (MARCONDES et al, 2013), a população negra é composta
por pessoas que declaram ter a cor da pele preta e parda, os boletins de ocorrência
registrados na DEAM/Vitória se equivocaram ao descrever a cor dos envolvidos
baseando-se nas alternativas branca, parda e negra, quando deveriam ter
utilizado, na nomenclatura desse campo, as opções branca, parda e preta.

Tabela 2 – Cor das mulheres idosas vítimas de violência – DEAM/Vitória, 2002 – 2010

Cor Vítima
Branca 105
Negra 18
Parda 86
Não fornecido 05
Total 214

Fonte: Sistematização dos pesquisadores, a partir dos dados dos boletins de ocorrência da
DEAM/Vitória.

De todo modo, chama atenção o fato das mulheres idosas brancas


aparecerem mais enquanto vítimas nos boletins da DEAM do que as pretas e
pardas, ainda que com uma margem de diferença reduzida, especialmente, em

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relação às últimas. Poder-se-ia conjecturar que tal predominância seja, em


primeiro lugar, uma consequência da dificuldade de acesso aos serviços do
Estado e de uma maior longevidade dentre as pessoas brancas do que negra. O
que parece se confirmar a partir de dados do projeto “Retrato das desigualdades
de gênero e raça”, desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada,
IPEA, (tabela 3).

220
Tabela 3: População feminina e sua distribuição segundo cor/raça aos 60 anos ou mais - Brasil,
2002 e 2012

Cora/Raça 2002 2012

Branca 5.676.513 7.819.896

Preta 590.659 1.116.559

Parda 2.783.917 4.953.593

Amarela 73.297 121.017

Indígena 16,475 33.910

Total 9.140.861 14.044.975

Fontes: dados do projeto “Retrato das desigualdades de gênero e raça” do IPEA, sistematizados
pelos pesquisadores.

Os números da tabela 3 apresentam não só uma tendência geral de


aumento da população idosa feminina em todos os grupos de cor/raça, como uma
maior concentração da população feminina com 60 anos ou mais na categoria
“Branca”, concentração que equivale a um número maior do que o das demais
categorias somadas. E ainda que tais dados sejam baseados na forma como as
pessoas se veem, ou seja, na autodeclaração, não se pode perder de vista os
índices de violência que vitimizam a juventude negra e a dificuldade de acesso
da população negra aos serviços de saúde e infraestrutura social, que terminam
por contribuir para que essa tenha uma menor expectativa de vida em relação à
população branca, como apontado no Dossiê “Mulheres Negras” (2013).

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Em relação à escolaridade, a análise tornou-se bastante comprometida,


uma vez que a coleta desse dado não ocorreu por todo o período. Até o ano de
2007, essa não era uma informação requerida da vítima no momento da
denúncia. Os resultados apresentados na Tabela 4 demonstram como essas
informações aparecem de forma vaga na análise dos dados dos boletins de
ocorrência.

221
Tabela 4: Escolaridade das mulheres idosas vítimas de violência e dos autores –
DEAM/Vitória, 2002 - 2010

Escolaridade Vítima
Analfabeta 19
Fundamental Completo 12
Fundamental Incompleto 74
Médio Completo 26
Médio Incompleto 07
Pós-graduada 03
Superior Completo 16
Superior Incompleto 01
Não fornecido 56
Total 214

Fonte: Sistematização dos pesquisadores, a partir dos dados dos boletins de ocorrência da
DEAM/Vitória.

Mais de 38% das mulheres que procuraram pela DAPPI durante o


período de dezembro de 2010 até dezembro de 2012, são viúvas (Tabela 5), o
que pode ser justificado pela já mencionada longevidade feminina, que é maior
do que a masculina, como também pelo costume dos homens de casarem-se com
mulheres mais jovens, vindo a falecer antes delas. Em seguida, aparecem as

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casadas, com 22%, nas quais incluem-se também as amasiadas, as divorciadas,


com 10%, e as solteiras, com 8%.

Já nos boletins da DEAM, a diferença entre mulheres casadas e viúvas


é proporcionalmente menor, sendo que o número das casadas supera o das
viúvas.

Tabela 5: Estado civil das mulheres idosas vítimas de violência e dos autores – DEAM/Vitória 222
e DAPPI, 2002 - 2012

Estado civil DEAM/Vitória DAPPI

Casada 70 46

Divorciada 27 22

Separada 09 -

Solteira 41 18

Viúva 65 78

Não fornecido 02 41

Total 214 205

Fonte: Sistematização dos pesquisadores, a partir dos dados dos boletins de ocorrência da
DEAM/Vitória e DAPPI.

É importante lembrar que essas mulheres, nascidas entre as décadas de


1920 e 1950, foram educadas sob a égide de uma ideologia de gênero que
instituía o casamento e a maternidade como o destino feminino. Após as
transformações econômicas e sociais ocorridas nas primeiras décadas do século
XX, como o declínio da família patriarcal, tal ideia foi travestida de uma nova
roupagem (BESSE, 1999), mas até, pelo menos, os anos de 1970, o matrimônio
continuou a ser visto como uma forma de garantir status e segurança econômica,
inclusive entre as mulheres capixabas (NADER, 2008). Dessa forma, não é de

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se surpreender que o vínculo conjugal esteja presente de alguma forma na vida


da maior parte delas, seja no passado ou no presente.

As informações sobre a profissão das vítimas presentes nos boletins da


DAPPI são imprecisas 67 delas se declararam aposentadas e 26, pensionistas
(Tabela 6), de modo que não é possível identificar qual função desempenharam
antes de adquirir o benefício. Considerando que as pensionistas recebam o
benefício em razão do óbito do cônjuge e não tenham declarado outro tipo de
223
vínculo empregatício, é possível que dependessem economicamente dele. De
qualquer maneira, o fato da profissão “do lar” aparecer em terceiro lugar e dentro
do grupo de “outros” ainda identificar-se exemplos como doméstica, copeira,
merendeira e até professora demonstra que a educação que receberam também
influenciou em suas oportunidades de trabalho.

Contudo, percebe-se que há uma diferença entre o perfil profissional


das mulheres que procuraram a DEAM/Vitória e as que se encaminharam até a
DAPPI, conforme pode se verificar na Tabela 6:

Tabela 6: Profissão das mulheres idosas vítimas de violência – DEAM/Vitória, 2002-2010;


DAPPI 2010-2012

Profissão da Vítima DEAM/Vitória DAPPI

Nº de Ocorrências Nº de
Ocorrências

Açougueira 01 -

Administradora 01 -

Advogada/Bacharel em direito 04 -

Agente de 01 -
polícia/investigação/presídio

Agente fiscal 02 -

Ajudante de cozinha/padaria 01 -

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Aposentada 66 67

Artista Plástica 01 -

Assistente social e técnica 02 -

Autônoma 04 -

Auxiliar Administrativo e de 01 -
contabilidade 224

Auxiliar de decoração 01 -

Auxiliar de enfermagem 02 -

Auxiliar de serviço gerais 08 -

Cabelereira e manicure 02 -

Comerciante 04 -

Copeira 01 -

Corretora de vendas 01 -

Costureira 11 -

Desempregada 03 -

Diarista 01 -

Do lar 51 10

Doméstica 06 -

Faxineira 02 -

Funcionária pública 08 04

Manicure 01 -

Maquinista 01 -

Médica/dentista/cirurgiã 01 -

Merendeira 01 -

Passadeira 01 -

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Pensionista 05 26

Pescadora 02 -

Professora 07 -

Recicladora 01 -

Salgadeira 01 -

Servidora Pública 02 - 225

Sucateira 01 -

Técnica de enfermagem 02 -

Vendedora ambulante e autônoma 01 -

Outros 00 12

Não fornecido 02 86

Fonte: Sistematização dos pesquisadores, a partir dos dados dos boletins de ocorrência da
DEAM/Vitória e DAPPI.

Nas denúncias feitas na DEAM/Vitória constatou-se que há maior


incidência de mulheres idosas que ainda permanecem no mercado de trabalho,
ao passo que há uma queda nesses números no compartivo com os registros da
DAPPI. É seguro afirmar que, de modo geral, no perfil da mulher que procura a
DEAM/Vitória para realizar uma denúncia predominam os números de vítimas
que estavam ativas no mercado de trabalho. Segundo o levantamento do
LEG/UFES, aproximadamente 70% das denúncias feitas da DEAM/Vitória
entre os anos de 2002 e 2010 traziam vítimas que exerciam profissões
remuneradas. Essa porcentagem diminui vertiginosamente quando selecionamos
os casos em que a vítimas tinham mais de 60 anos de idade, conforme exposto
na tabela acima, mas ainda é um número superior ao apresentado pelos registros
da DAPPI.

Por fim, procedeu-se à análise do vínculo entre vítimas e autores.


Conforme se observa na Tabela 7, há um grande número de pessoas sem grau de

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parentesco com a vítima, como desconhecidos, vizinhos, conhecidos e


instituições2. Entretanto, ao somar-se os casos em que os autores possuem algum
grau de parentesco com a vítima, como filhos, netos, cônjuges, genros, noras,
sobrinhos, irmãos e até mesmo os “múltiplos” onde enquadram-se as denúncias
que apresentam mais de um autor, com diferentes tipos de vínculo, conclui-se
que a violência contra mulheres idosas é praticada, predominantemente, em
âmbito familiar e doméstico.
226
Tal conclusão corrobora o paradoxo, compartilhado por Nader (2007,
p. 9), de que “o lugar que melhor deveria proteger suas mulheres, do ponto de
vista das relações de gênero, envolvendo afetividade e segurança, é o que as trata
pior”. Além disso, o receio em denunciar ou levar o caso adiante é muito grande
e a coerção sofrida na relação familiar com o autor da violência, o medo do
rompimento dos vínculos familiares, do abandono e da solidão, implica numa
resistência à denúncia das violências sofridas, contribuindo para a
subnotificação.

Poder-se-ia conjecturar que os cônjuges não aparecem tanto enquanto


agressores, pois muitas dessas mulheres são viúvas, entretanto, isso não quer
dizer que não exista a violência conjugal contra mulheres idosas. Inclusive, nos
boletins da DEAM, os casos em que os autores são cônjuges e ex-cônjuges são
mais numerosos que os casos que os filhos figuram como autores. Outra hipótese
é que a manifestação da violência de gênero em idade mais avançada seja
também uma continuidade de violências vivenciadas em épocas anteriores. Ou
seja, o fato das mulheres estarem denunciando naquele momento uma violência
filial, não as livra de terem sofrido anteriormente ou talvez até pela vida toda a
violência conjugal.

Todavia, é traço característico da violência contra mulheres idosas, que


a diferencia da violência praticada em outras etapas da vida da mulher, a
predominância de gerações consanguíneas, tal como filhos e netos, enquanto
agressores.

2
Instituições como bancos e hospitais que se recusam ou se omitem com relação aos
cuidados e direitos básicos da idosa.

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Tabela 7: Vínculo entre a vítima e o autor – DEAM/Vitória, 2002 – 2010; DAPPI, 2010-2012

Vínculo DEAM/Vitória DAPPI

Filho(s) e Filha(s) 51 44

Desconhecidos 01 32

Vizinho(s) e vizinha(s) 05 27 227


Cônjuge e ex-conjuge 59 16

Conhecidos 1 14

Genro e ex-genro, nora e ex- 17 12


nora

Instituição - 6

Múltiplos 03 6

Sobrinho(s) e sobrinha(s) 07 5

Neto(s) e Neta(s) 10 4

Irmão(s) e irmã(s) 14 4

Parentes indiretos 10 -

Outros 26 -

Não fornecido 11 35

Total 214 205

Fonte: Sistematização dos pesquisadores, a partir dos dados dos boletins de ocorrência da
DEAM/Vitória e DAPPI.

Considerações finais

Apesar da variedade de dados fornecidos pelos boletins das duas


delegacias especializadas, na análise aqui apresentada alguns dados não foram
utilizados por, entre outros motivos, se mostrarem inconclusivos. É o caso do

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local de moradia da vítima. A cidade de vitória conta com aproximadamente


oitenta bairros que se dividem, atualmente, em nove regiões administrativas e a
diversidade encontrada, não só nessas regiões como também nos bairros, impede
que seja traçado um perfil socieconômico da população que ali habita, fazendo
com que uma análise a partir do local de moradia dessas mulheres se torne
inconclusiva ou, no mínimo, problemática.

A omissão dos dados faz pensar ainda que o próprio trabalho de


228
investigação das denúncias pode ser prejudicado, caso, por exemplo, o policial
responsável pela apuração do fato não seja o mesmo responsável pelo registro
da ocorrência. Conjectura-se que a ausência de dados que caracterizam não
somente a vítima, mas, especialmente, os autores(as), seja resultado de uma
dinâmica complexa que envolve tanto a negligência e o despreparo dos
profissionais designados para essas delegacias, dos quais se espera um
tratamento especializado, como da descrença em relação ao desdobramento das
denúncias, haja visto que um número reduzido delas dá origem a inquéritos
policiais. Tal realidade pode ser explicada pela ineficiência da lei em reprimir
casos de abusos contra idosos e pelo desejo das vítimas e/ou noticiantes de não
levar o caso adiante. Nesse sentido, uma possibilidade de pesquisa seria a de
avaliar a aplicabilidade da lei na experiência da delegacia a partir de
depoimentos dos policiais civis e dos usuários e usuárias da instituição, bem
como a análise dos desdobramentos das denúncias nas instâncias judiciais.

REFERÊNCIAS

BESSE, Susan K. Modernizando a desigualdade: reestruturação da ideologia de


gênero no Brasil. São Paulo: EdUSP, 1999.

FREITAS, Lúcia. Representações de papeis de gênero na violência conjugal em


inquéritos policiais. Cadernos de Linguagem e Sociedade, 12(1), 2011, p. 128-
152. Disponível em: <www.periodicos.unb.br>. Acesso em: 28 nov. 2014.

LINDOSO, Mônica Bezerra de Araújo. A violência praticada contra a mulher


idosa e os direitos humanos. In: Direitos Humanos no cotidiano jurídico. São

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Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 2004. (Séries


Estudos n. 14). Disponível em: <www.pge.sp.gov.br>. Acesso em: 22 jun. 2013.
P. 71-101.

MARCONDES, M. M. et al. (org.). Dossiê mulheres negras: retrato


dascondições de vida das mulheres negras no Brasil. Brasília: Ipea, 2013.

NADER, Maria Beatriz. Paradoxos do progresso: a dialética da relação mulher,


casamento e trabalho. Vitória: Edufes, 2008. 229

___________. Cidades, aumento demográfico e violência contra a mulher: o


ilustrativo caso de Vitória-ES. Dimensões: Revista de História da UFES, Vitória,
n. 23, p. 156-171, 2009.

___________. Mapeamento e perfil sócio-demográfico dos agressores e das


mulheres que procuram a Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher
Vitória (ES). 2003-2005. Fazendo Gênero. Florianópolis, p. 1-8, ago. 2010, p. 2.
Disponível
em:<http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/site/anaiscomplementares#M>.
Acesso em: 1 jan. 2015.

RODRIGUES, Lizete de Souza. A Política Nacional do Idoso: o caso de Vitória


(1994-2004). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História
Social das Relações Políticas. Centro de Ciências Humanas e Naturais,
Universidade Federal do Espírito Santo. 2006. Disponível em:
<www.historia.ufes.br>. Acesso em: 22 jun. 2013.

WAISELFISZ, J. J.. Mapa da violência: homicídios e juventude no Brasil. Rio


de Janeiro: CEBELA/FLACSO, 2014. Disponível em
<http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_AtualizacaoHomicid
ios.pdf> Acesso em 25 de jan. de 2015.

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CORPOS MARCADOS, CRIMES SILENCIADOS: VIOLÊNCIAS


SEXUAIS NO CONFLITO ARMADO COLOMBIANO

Ana Taisa da Silva Falcão*

A Colômbia passa, neste momento, por mais uma tentativa de


estabelecimento de um acordo de paz e fim do conflito armado. Como afirmou
230
o próprio Presidente, Juan Manuel Santos, nuestro deber principal para
construir la paz es proteger los derechos de las víctimas… Sus derechos a la
justicia, a la verdad, a la reparación y a que nunca más se vuelvan a repetir las
atrocidades que sufrieron1. É um momento em que as atenções nacionais e
internacionais se voltam para a Colômbia, o que faz de trabalhos como o que
estamos apresentando aqui, uma ferramenta importante para que espaços
acadêmicos fora da Colômbia possam também discutir os acordos pós-conflito,
com o rigor teórico e metodológico que a historiografia pode oferecer.

A partir da observação da violência sexual em tempos de guerra como


um fenômeno histórico, partimos para o estudo de caso no conflito armado
colombiano, destacando os seguintes pontos: 1) a violência sexual e
deslocamento forçado de mulheres no marco do conflito armado, 2) as histórias
de vida de mulheres vítimas de violência e/ou deslocamento forçado como
crimes cometidos no conflito armado2.
Compreender a violência de gênero e enfrentá-la é um
fenômeno de ampla complexidade. É fundamental conhecer
seu devir histórico, suas diferentes formas, interconexões e

*
Doutoranda em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História Social
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS-UFRJ). Mestre em História
Política pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (PPGH-UERJ).
1
Juan Manuel Santos. 24 de agosto de 2016. Discurso do Presidente após o anúncio do
acordo final entre governo e as FARC-EP. Bogotá. O discurso inteiro pode ser lido em:
http://es.presidencia.gov.co/discursos/160824-Alocucion-del-Presidente-Juan-Manuel-
Santos-sobre-el-Acuerdo-Final-con-las-Farc
2
Para efeitos desta pesquisa e, destacamos que um dos nossos principais horizontes
teóricos que se assenta na busca por apresentar os elementos socioeconômicos do
conflito armado desde a ofensiva contrainsurgente das elites colombianas, a fim de
garantir do desenvolvimento capitalista no país, violando a população economicamente
mais vulnerável.

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interdependências, seus contextos, as respostas que tem dado


a política pública e as que tem apresentado a sociedade civil
– em particular o movimento de mulheres e feministas –, e a
normatividade e a legislação tanto nacional como
internacional para preveni-la e sancioná-la. Cabe sinalizar que
nas diferentes expressões do feminismo se encontram apostas
teóricas e políticas para revelá-la. Entre elas, são importantes
as que relacionam os âmbitos privado e público. Assim
mesmo, nos contextos exacerbados pela presença de conflitos
armados, as manifestações de violência para a vida das
mulheres são agudas e nosso país é exemplo disso3.
231
O caminho seguido para apresentar este problema fundamenta-se no
levantamento da memória das mulheres vítimas do conflito e/ou deslocamento
forçado, organizadas em movimentos de mulheres e de deslocados4. Nos
interessa saber se (e como) os movimentos de mulheres e as organizações de
deslocados forçados tem contribuído para pressionar o Estado a efetuar respostas
institucionais que visem a reparação dos atos violadores, bem como a superação
das estruturas desiguais daquele país5.
La magnitud de la violencia sexual contra las mujeres,
relacionada con el conflicto en Colombia, no ha sido aún
entendida completamente. Es un crimen con un alto nivel de
sub-registro. Cuando es denunciado las mujeres encuentran
grandes obstáculos para acceder a la justicia, incluyendo
altísimos niveles de impunidad. Sin embargo, a pesar de estos

3
LEÓN, Magdalena. Bibliografias sobre Violencia de Género. Bogotá: Fundo de
Documentacion Mujer y Género “Ofélia Uribe de Acosta”, Escuela de Estudios de
Género, 2011, p.5.
4
Para a realização deste trabalho, durante o período de 9 a 26 de agosto de 2016,
estivemos em contato direto com mulheres vítimas de violência e deslocamento forçado
que são atendidas pela ANDESCOL. Durante este período levantamos cerca de 5 horas
de gravação, divididas em 18 entrevistas. É de nosso interesse, assim como da própria
organização, que não possui um fundo documental das pessoas que são usuárias dos
seus serviços, de darmos seguimento ao levantamento de memória das vítimas que
iniciamos durante estas primeiras visitas.
5
No dia 24 de agosto de 2016, o governo de Juan Manuel Santos e representantes das
Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (FARC-EP)
assinaram o último comunicado conjunto da Mesa de Negociações, em Havana, com o
acordo final do conflito armado entre governo e as FARC. A partir desse momento, tem
início a corrida pelo Plebiscito que vai referendar (ou não) o Acordo Final. Sendo o SIM
o vencedor do referendo, tem início um processo de acordos pós-conflito, com
implementação de políticas públicas de garantias de não repetição, dentre elas, os
julgamentos dos crimes contra os direitos humanos ocorridos durante o conflito armado.
O Texto integral do Acordo Final de Havana pode ser lido em:
https://www.mesadeconversaciones.com.co/sites/default/files/comunicado-conjunto-
93-la-habana-cuba-24-de-agosto-de-2016-1472079906.pdf

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obstáculos y el gran costo personal, las mujeres colombianas


están alzando su voz y exigiendo el derecho a la verdad, la
justicia, la reparación y garantía de no repetición. Al alzar su
voz, ellas se enfrentan con amenazas y riesgos a su integridad
física y la de sus familias. Estos riesgos se extienden a las
defensoras de quienes apoyan a los sobrevivientes. Sin
embargo, sin el apoyo y el trabajo dedicado de las defensoras
y las organizaciones que ellas representan, ninguno de estos
casos sería juzgado6.

A contradição entre a alta produção de relatórios, informes e trabalhos 232


acadêmicos sobre a violência sexual e deslocamento forçado, de um lado, e os
altos índices de subnotificação e impunidade para tais crimes, de outro, segue
ainda carente de maiores investigações interessadas em observar o caráter
histórico dessa contradição entre teoria e prática. Outro elemento, igualmente
contraditório, muito presente nas narrativas das mulheres sobre suas
experiências enquanto vítimas de violação e/ou deslocamento forçado é a
questão da pobreza, antes e depois de seu contato com a violência. O que nos
leva a reforçar a importância de se debater as origens da violência na Colômbia
a partir da análise da promoção e manutenção da desigualdade decorrentes do
desenvolvimento capitalista nos países de capitalismo hipertardio, dependente e
periférico7.

6
SISMA MUJER; ABCOLOMBIA; USOC. Colombia: mujeres, violencia sexual en el
conflicto y Proceso de Paz. Noviembre de 2013, p.1.
7
Característica do processo de acumulação capitalista em toda a América Latina, com
pequenas diferenças ligadas às especificidades locais de cada país, que, de um modo
geral, são países que introduziram-se no sistema capitalista internacional de maneira
associada aos países de capitalismo central. Tal associacionismo colocou nossas elites
regionais na posição de “acionistas minoritários” dentro da lógica do capital
multinacional e associado, cumprindo a função de mantenedores da lógica – histórica –
colonialista através do controle das classes trabalhadoras, com ofensivas
contrainsurgentes, lançando mão do aparelho do Estado e de seus exércitos privados
para tentar inviabilizar as lutas operárias contra a exploração e desigualdade. Para saber
mais sobre a opção burguesa latino-americana pela via contrainsurgente, ver:
ESTRADA ÁLVAREZ, Jairo. Transformaciones del capitalismo en Colombia.
Dinámicas de acumulación y nueva realidad. In: ASTORGA (2012). Y ESTRADA
ÁLVARES, Jairo. Acumulación capitalista, dominación de clase y rebelión armada.
Elementos para una interpretación histórica del conflicto social y armado. Informe
Comisión Histórica del Conflicto y sus Víctimas. Habana. Febrero, 2015.
FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação
sociológica. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. LEMOS, Renato. Contrarrevolução e
ditadura: ensaio sobre o processo político brasileiro pós-1964. In: Marx e o Marxismo.
V.2, n.2, jan/jul 2014. VEGA, Renán. Injerencia de los Estados Unidos,

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Violência sexual: na guerra ou na paz, esse ato de extrema brutalidade


segue como um dos crimes mais silenciados de todo o mundo. Na busca por
tentar compreender esse fenômeno, o presente trabalho parte de uma perspectiva
teórica amparada no gênero como categoria analítica, pois, “se as mulheres são
violadas na guerra por serem mulheres e são violadas nas ruas, nos lares, por
serem mulheres, o fio condutor dessa violência é o gênero”8. Em termos teórico-
metodológicos, consideramos a utilização da categoria gênero, para descrever os
233
processos de violência sexual em tempos de guerra, um recurso de extrema
importância, pois procura dar conta das continuidades e descontinuidades da
desigualdade entre homens e mulheres. Trata-se, portanto, de um esforço
epistemológico de (re)pensar discursos identitários consolidados cultural e
socialmente. Em outras palavras, encaramos o desafio de “pensar na importância
da sexualização do discurso historiográfico9”.

Porém, a desigualdade de gênero, sozinha, é insuficiente para dar conta


dos processos de mercantilização da guerra (e por que não, da “paz”?) e dos
corpos das mulheres, em especial das mulheres negras, pobres, indígenas e
campesinas. Por esse motivo, violência sexual e deslocamento forçado são
conceitos acompanhados, aqui, de forte subsídio teórico com base nas categorias
desigualdade social, desenvolvimento capitalista, concentração fundiária,
conflitos de classe, colonialismo e racismo.

O enfoque de gênero e raça/etnia na análise dos deslocamentos


compulsórios no marco do conflito armado colombiano se explica: devemos nos
apoiar numa percepção das consequências da Colonização para os processos de
violência contra as mulheres, especialmente as mulheres negras e indígenas na
contemporaneidade. Para nós, a violação das mulheres, a criminalização e
marginalização dos povos indígenas e afrocolombianos resultam da manutenção

contrainsurgencia y terrorismo del Estado. In: Informe de la Comisión Histórica del


Conflicto y sus Víctimas. Habana, 2015.
8
THEMIS – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero. Da Guerra à Paz: os Direitos
Humanos das Mulheres. Instrumentos Internacionais de Proteção. Porto Alegre, 1997,
p.5.
9
RAGO, Margareth. “Descobrindo historicamente o gênero”. In: Cadernos Pagu, n. 11,
pp. 89-98, 1998, p. 90.

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das estruturas coloniais, em que os processos de “racialização” e “sexualização”


dos corpos femininos se convertem em violência sexual no marco do conflito
armado10. Ou seja, a violência sexual contra as mulheres, especialmente
indígenas e afrocolombianas não é entendida aqui como uma invenção do
conflito armado; ela é, outrossim, a continuação de uma dominação histórica dos
seus corpos.

No que tange às questões estritamente militares, dois conceitos são


234
fundamentais para o desenvolvimento desta pesquisa. São eles: arma e guerra.
Cada qual apresentará seus respectivos desdobramentos de acordo com a
violência perpetrada contra as mulheres que serão estudadas. Sobre a noção de
guerra, dialogando com Clausewitz (1979), esta tem como “propósito imediato,
derrubar seu oponente de modo a torná-lo incapaz de oferecer qualquer
resistência. A guerra é, pois, um ato de violência destinado a forçar o inimigo à
nossa vontade”11. Compreendemos assim, a guerra como uma sucessão de atos
violentos que atendem a um objetivo pré-determinado. Sobre este ponto e
dialogando com a concepção de guerra como um mal necessário em Kant,
Bobbio (2003) nos apresenta a noção de guerra como “um mal que deve
acontecer não porque é o efeito de uma causa, mas porque é o meio para atingir
um fim desejável”12. Tanto em Clausewitz, quanto na análise de Norberto
Bobbio, a guerra é um meio pelo qual se objetiva atingir um propósito final.
Lança-se mão do recurso irrestrito da violência para submeter o inimigo aos seus
interesses. E o propósito da guerra é, em geral, um propósito político, pois,
segundo Clausewitz, a guerra é um meio pelo qual a política se manifesta. Tanto
as táticas quanto as estratégias empregadas no teatro da guerra objetivarão atingir
o propósito político pelo qual os inimigos iniciaram um embate violento.
Se trata de violación étnica como una política oficial de
guerra: no solo como una política del placer masculino
desenfrenado; no solo como una política para envilecer,
torturar, humillar, degradar y desmoralizar a la otra parte; no
solo como una política de hombres que intentan ganar

10
SALDARRIAGA FLÓRES, 2013, p. 26-7
11
CLAUSEWITZ, Carl Von. Da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 1979, p.73. (Grifo
do autor).
12
BOBBIO, Norberto. O problema da guerra e as vias da paz. São Paulo: Editora
UNESP, 2003, p. 89.

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ventajas y espacio frente a otros hombres. Se trata de


violación por orden superior: no fuera de control, sino bajo
control. Se trata de violación hasta la muerte y la masacre,
para matar o hacer que las víctimas prefieran estar muertas.
Se trata da violación como exilio forzoso, para obligar a
abandonar el hogar y no regresar jamás13.

Por “arma”, compreendemos os diversos meios violentos pelos quais a


guerra se manifesta, com o objetivo de derrotar o inimigo, de anular as suas
possibilidades de defesa. Isto porque, “a guerra é um ato de força e não existe 235
qualquer limite lógico para o emprego desta força14”. Em outras palavras, todos
os “meios”, entendidos aqui como “armas”, são empregados desde que seu
intuito seja destruir o inimigo.

Logo, se a guerra é uma luta armada travada no interior de uma unidade


política – no caso colombiano, um Estado – e arma é todo o meio utilizado com
a intenção de agredir e/ou eliminar fisicamente o inimigo, tentaremos comprovar
com este trabalho que a forma como as mulheres colombianas, em especial as
indígenas e afrocolombianas, são violentadas neste conflito armado – através da
utilização sistemática da violência sexual –, pode ser caracterizada como uma
arma de guerra. Sendo assim, os corpos dessas mulheres se transformam num
campo de batalha, principalmente porque as agressões sexuais partem de todos
os lados e, ao mesmo tempo, seus corpos também se configuram como espólio
de guerra.

A disputa geopolítica no território colombiano, em busca de


concentração de terras, seja para sua utilização como rota do narcotráfico, como
propriedade dos terratenientes, ou para o acirramento do capitalismo
extrativista, onera as comunidades campesinas através da prática do
deslocamento forçado. Em função disso, pretendemos comprovar que o
deslocamento se dá a partir da violação sexual das mulheres ou perigo de que ele
ocorra. Isso porque é notório o caráter político e estratégico que as violências
sexuais cometidas contra as mulheres alcançam, pois os combatentes lançam

13
MACKINNON, Catherine A. “Crímenes de Guerra, Crímenes de Paz”. RAWLS,
John; RORTY, Richard. De los Derechos Humanos, Trota, 1998, p. 94.
14
CLAUSEWITZ, 1979, p. 77.

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mão da prostituição forçada, da escravidão sexual, do abuso sexual, do estupro


etc., com o objetivo de semear o terror nas comunidades a fim de forçar a fuga
de zonas geograficamente estratégicas, ou mesmo para a apropriação dessas
terras para aumentar os latifúndios15.

Desse modo, supomos que os processos de justiça e reparação que se


implementaram até o momento, ao dar ênfase na violência pela violência,
hipertrofia o conflito armado desde sua capacidade de violação, jogando luz nos
236
“soldados” dos grupos armados e nas violações dos direitos humanos que
cometeram, ao mesmo tempo que, como consequência dessa caçada aos
violadores, invisibiliza e, logo deixa impunes os financiadores da violência16. Ou
seja, cremos que os processos de judicialização da violência do conflito armado,
apesar de contribuírem para a visibilização dos crimes de guerra, transforma o
conflito e suas práticas violadoras em um fim em si mesmo, não procurando
resolver os problemas estruturais (de desigualdade de classe, gênero e raça) e as
lógicas econômicas que criam e mantém conflitos armados.

Violência contra a mulher no conflito armado: processos de violação e


memória

Há um esforço por parte de intelectuais17 e defensores dos Direitos


Humanos18 de denunciar as violações dos direitos das mulheres na Colômbia e

15
ANISTIA INTERNACIONAL, 2011, p. 5.
16
Soma-se a essa “empresa” de capital criminal o financiamento, manutenção e
reprodução do conflito armado, gerando terror, força de trabalho ilegal e violência
sistemática contra a população civil. Para uma visão mais ampla que quem são e como
atuam os grandes empresários das guerras, ver: VEGA CANTOR, Renán. Los
economistas neoliberales: nuevos criminales de guerra. El genocidio económico y
social des capitalismo contemporáneo. Bogotá: Impresol, 2010.
17
Para a realização deste artigo destacamos dois trabalhos em especial: MEERTENS,
Donny. Ensayos sobre tierra, violencia y género: hombres y mujeres en la historia rural
de Colombia (1930-1990). Universidad Nacional de Colombia, Centro de Estudios
Sociales, 2000; e YEPES, Olga Cecilia Restrepo. “¿El silencio de las inocentes?:
Violencia sexual a mujeres en el contexto del conflicto armado”. In: Opinión Jurídica,
vol. 6, n. 11, pp. 87-114, enero-junio de 2007.
18
O volume de trabalhos realizados por organizações colombianas (estatais ou ONGs)
e internacionais é vasto, mas destacamos aqui alguns estudos especiais: ACNUR.
Desplazamiento Forzado en Colombia: derechos, acceso a la justicia y reparaciones.

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oferecer propostas teóricas e metodológicas de se compreender e enfrentar a


violência sexual. As pesquisadoras colombianas intensificam sua participação
nos debates sobre o conflito armado, a partir da década de 1990, com o objetivo
de denunciar as violações dos direitos humanos das mulheres, em que a violação
de seus corpos se converte em objetivo militar. Num contexto em que o conflito
armado modifica suas estratégias de combate, deixando o ataque direto entre
combatentes a segundo plano, passando a priorizar a disseminação da violência
237
contra a população civil, “as mulheres deixam de ser só objeto de agressão
sexual, e passam a ser tanto objetivo militar como de colonização física19”.

Numa pesquisa realizada entre os anos de 2001-200920, em diversos


municípios em que havia a incidência de grupos armados em conflito, seja
exército, polícia, insurgência ou paramilitares, foi constatado que cerca de
489.687 mulheres foram vítimas de alguma forma de violência sexual durante
os nove anos do estudo.

Se trata de um tipo de violência que, em tempos de paz ou de guerra,


sua quantificação é frequentemente difícil, pois em geral as vítimas tendem, por
medo, estigmatização ou ameaça, a não denunciarem o ocorrido. Existem
diversos relatórios e trabalhos publicados na Colômbia sobre a violência sexual
no conflito armado, todos afirmam, entretanto, que as limitações relacionadas à
subnotificação da violência sexual ainda é uma barreira a se enfrentar.

Num estudo que aponta a incidência da violência sexual no conflito


armado, de 1985 até 2013, com base no Registro Único de Vítimas (RUV),
apenas 1.754 mulheres declararam ter sofrido violência sexual.
Las 1.754 víctimas incluidas en el RUV (733 entre 1985 y
2012, más 821 sin año de ocurrencia identificado) contrastan
con las 96 confesadas por los paramilitares en sus versiones
libres en el marco de la Ley 975 del 2005 y las 142

Colombia, 2007; ANISTIA INTERNACIONAL, 2004, op. cit.; e GMH. ¡Basta ya!
Colombia: Memorias de guerra y dignidad. Bogotá: Imprensa Nacional, 2013.
19
CORREAL, Diana Gómez; OBREGÓN, María Emma Wills. “Los movimientos
sociales de mujeres (1970-2005). Innovaciones, estancamientos y nuevas apuestas”. In:
ASTORGA, p. 271.
20
CAMPAÑA - Violaciones y otras violencias: saquen mi cuerpo de la guerra.
Violencia sexual en contra de las mujeres en el contexto del conflicto armado. Primera
Encuesta de Prevalencia - Resumen ejecutivo, 2011, p.9.

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documentadas por varias organizaciones de Derechos


Humanos para el Anexo Reservado del Auto 092 del 2008 de
la Corte Constitucional sobre violencia sexual21.

Apesar dos números sobre violência sexual seguirem subnotificados e


com altos índices de impunidade para os violadores, as iniciativas de memória
demonstram que, fora do ambiente oficial de denúncia, as mulheres se sentem à
vontade e desejam falar de suas experiências de violação. Tomamos como
exemplo o testemunho de uma das mulheres vítimas de violação e deslocamento 238
forçado que nos cederam suas histórias de vida.
Em 2005 sofri meu segundo deslocamento forçado, foi num
domingo de agosto, quando por volta das cinco da tarde
chegaram três homens encapuzados em nossa casa e eu estava
com minha filha de 14 anos. Meus outros filhinhos não
estavam na casa no momento. Foi quando chegaram os
homens encapuzados e me levaram para fora, onde ficavam
as bananeiras e eu fui violada... E a minha filha, quando eu
voltei para a casa, também havia sido violada. No dia
seguinte, juntamos nossas coisas e nos mudamos para um
vilarejo rio acima22.

As experiências de violação e, muitas vezes consequentemente,


deslocamento forçado de mulheres compõem um conjunto de violações dos
direitos humanos cometidos durante o conflito armado. No caso que citamos
acima, a vítima reconheceu seus violadores como membros de um grupo
paramilitar do Departamento de Meta. Casos como este são muito frequentes
quando se faz um levantamento do conflito desde os testemunhos das vítimas,
sem estigmatiza-las.

Observando o exemplo de outros países que passaram por processos


pós-conflito e de reparação às vítimas, como Guatemala23 e Peru24, podemos

21
GMH. ¡Basta ya! Colombia: Memorias de guerra y dignidad. Bogotá: Imprensa
Nacional, 2013, p.78.
22
Entrevista cedida à autora no dia 21 de agosto de 2016. Bogotá.
23
Sobre a violência sexual na guerra guatemalteca, ver: FULCHIRÓN, Amandine. “La
denuncia de la violencia sexual cometida durante la guerra en Guatemala”, presentada
en Seminario de LASA, San José, Costa Rica, marzo, 2006.
24
O recorte de gênero do relatório da Comissão da Verdade do Perú, especificamente
sobre as mulheres que foram vítimas de violência sexual, pode ser lido em:
http://www.cverdad.org.pe/ifinal/pdf/TOMO%20VI/SECCION%20CUARTACrimen

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levantar a hipótese de que os trabalhos da Comissão da Verdade25 na Colômbia


podem apresentar respostas mais eficientes ao problema da violência sexual que
segue, inclusive, com um alto índice de impunidade.

Deslocamentos forçados femininos: resistência em novos espaços


geográficos

Para tratar do conceito de deslocadas, nos baseamos na definição 239

estabelecida na Colômbia pela Lei 387, de 1997, aprovada pelo Congresso da


República, na qual deslocada é
Toda pessoa que se tenha visto forçada a migrar dentro do
território nacional abandonando sua localidade de residência
ou atividades econômicas habituais, porque sua vida, sua
integridade física, sua segurança ou liberdade pessoais foram
vulneradas ou se encontram diretamente ameaçadas, por
ocasião de qualquer das seguintes situações: conflito armado
interno, distúrbios ou tensões internas, violência
generalizada, violações massivas dos Direitos Humanos,
infrações ao Direito Internacional Humanitário e outras
circunstâncias emanadas das situações anteriores que possam
alterar drasticamente a ordem pública26.

es%20y%20violaciones%20DDHH/FINALAGOSTO/1.5.VIOLENCIA%20SEXUAL
%20CONTRA%20LA%20MUJER.pdf.
25
A Comissão da Verdade é um dos mecanismos extrajudiciais criados para garantir a
investigação e posterior reparação dos crimes contra os Direitos Humanos praticados
no conflito armado, que inciará seus trabalhos no marco dos acordos pós-conflito com
as FARC-EP. Essa Comissão da Verdade faz parte do Acto Legislativo 1º del 2012. Ver:
http://www.alcaldiabogota.gov.co/sisjur/normas/Norma1.jsp?i=48679. Igualmente
importante é a Ley 975 del 2005. Ver: http://www.fiscalia.gov.co/jyp/wp-
content/uploads/2013/04/Ley-975-del-25-de-julio-de-2005-concordada-con-decretos-
y-sentencias-de-constitucionalidad.pdf. A lei 975/2005, conhecida como “ley de justicia
y paz, [foi o] marco legal que regió los acuerdos entre el gobierno y los grupos
paramilitares, creó una complexa institucionalidad de transición que incluyó una
comisión de la verdad con funciones relacionadas con la reparación de las víctimas y
la reintegración de los desmovilizados”. JARAMILLO, Isabel Cristina. Las formas
institucionales para buscar la verdad estructural: a propósito de la creación de una
(otra)comisión de la verdad em Colombia. GARCÍA, Helena Alviar; JARAMILLO,
Isabel Cristina (orgs). Perspectivas jurídicas para la paz. Bogotá: Ediciones Uniandes,
2016, p.439.
26
Lei 397, de 18 de junho de 1997. Disponível em:
http://www.secretariasenado.gov.co/senado/basedoc/ley/1997/ley_0387_1997.html.

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Do mesmo modo que os processos de deslocamento respondem às


mudanças nas configurações do conflito armado, que por sua vez,
"historicamente se associa com a migração forçada dos habitantes de uma
determinada região ou localidade27". Ou seja, conflito e deslocamento forçado
mantém uma relação mútua e constante de interação, o que gera, com muita
frequência, novos ciclos de deslocamento de populações já deslocadas.

Em entrevistas realizadas com mulheres deslocadas forçadamente pela


240
violência, para a realização deste projeto, o tema dos múltiplos deslocamentos
foi uma constante. Dois tipos de deslocamento apareceram com mais frequência:
1) pela pobreza e, consequentemente, necessidade de buscar emprego em outras
localidades, que em geral eram os primeiros deslocamentos dessas mulheres e;
2) pela violência, seja através de ameaças diretas à vida das mulheres ou sua
família, seja pela morte de parentes pelo conflito, ou por massacres coletivos em
suas cidades. Em alguns casos, a mesma pessoa havia passado por cerca de
quatro deslocamentos, somando a procura por trabalho e a fuga da violência28.

As narrativas demonstram que o deslocamento forçado na Colômbia já


assumiu um caráter vicioso, que, acima de tudo, afeta aos mais pobres, os mais
vulneráveis, aqueles que ao fim e ao cabo, não estão ligados diretamente ao
conflito armado, mas que, por serem reincidentemente violados por ele, fogem
de um lugar ao outro em busca de paz. As cifras do deslocamento variam
frequentemente, mas estima-se em torno de três a quatro milhões o número de
pessoas deslocadas forçadamente ao longo dos últimos 30 anos. Destes quatro

27
MEERTENS, 1997, p.1.
28
As entrevistadas habitam em bairros cujas casas foram entregues pelo governo
colombiano em 2015, que ficam em áreas bem distantes do Centro de Bogotá. Um
conjunto se chama Margaridas e outro, dome do bairro, inclusive, chama-se Porvenir.
Das 18 entrevistadas, 12 haviam de deslocado forçadamente pela violência mais de uma
vez, oito haviam saído de suas casas migrado para outras cidades a procura de emprego,
ainda na adolescência, sendo vítimas de deslocamento forçado pela violência já fora de
seus lugares de origem. Apenas uma havia mudado de cidade para estudar. A maioria
delas não chegou a completar o Ensino Fundamental; uma nunca frequentou a escola, é
analfabeta; e outra frequentou, mas tão pouco que também não é alfabetizada. Antes do
deslocamento, cerca de metade das entrevistadas trabalhava com plantação de alimentos
e a outra metade como domésticas, com exceção de uma – que vendia ouro – mas, já na
condição de deslocamento forçado, em Bogotá, apenas uma – a que vendia ouro – não
trabalhou como doméstica.

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milhões, cerca de 70% são pessoas de origem campesina, indígena e


afrocolombiana29.
As comunidades negras ou afrocolombianas são titulares do
direito especial ao território, este é um dos direitos [...] dos
mais afetados pelo deslocamento. Para a população
afrocolombiana o território é um elemento central de sua
cultura e sua identidade étnica, por esta razão, o deslocamento
de que são vítimas atenta contra sua existência como grupo
étnico30.
241
Para as mulheres afrocolombianas, a experiência de deslocamento
forçado, que se conjuga com o deslocamento pela pobreza, tem especiais
características de (históricas) violências raciais. A indigência é outro ponto
presente nas narrativas, como por exemplo o caso de Violeta31, mulher negra,
jovem, mãe de três filhos meninos, que nasceu no Departamento de Chocó, lugar
de forte ascendência afrodescendente. Violeta viveu em seu município até os 16
anos com seus avós (seu pai abandonou a família muito cedo e sua mãe foi viver
em outra cidade, para trabalhar). Em seu relato, a pobreza é uma presença
constante, porque “ali se aguentava muita fome, passávamos muita fome,
inclusive perdi minha irmã para a fome, pois teve uma forte anemia, depois
leucemia32”. Quando ocorreu seu processo de deslocamento pela violência,
Violeta estava grávida e com um filho pequeno. Ao chegar em Bogotá, dormiu
na rua com seu filho e grávida por dois dias, sem comida. Em seu depoimento,
Violeta nos contou que viu muitas mulheres na mesma condição que a sua, na
rua, com seus filhos.
Si se tiene en cuenta que un 48 % de los desplazados eran
pequeños propietarios, que un 43 % carecían de propiedades
(CODHES, 1997), y que en muchos casos debieron
abandonar sus pocas pertenencias o venderlas a precios

29
ACNUR. Desplazamiento Forzado en Colombia: derechos, acceso a la justicia y
reparaciones. Colombia, 2007. p. 28.
30
SALDARRIAGA FLÓRES, Nora Isabel (org). Mujer, negra y desplazada: triple
victimización en Colombia. Medellín: Ediciones UNAULA, 2013, p. 15-16.
31
Nome fictício. Todos os nomes das entrevistadas foram modificados para sua
segurança e de suas famílias. Suas regiões de origem, no entanto, são verdadeiras.
32
VIOLETA. Entrevista cedida à autora em 20 de agosto de 2016. Bogotá.

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irrisorios, no es de extrañar que queden obligados a insertarse


en la ciudad en condiciones de absoluta pobreza33.

A conjunção entre violência e pobreza na realidade das mulheres


deslocadas necessita de estudo aprofundado sobre os processos de violação e
deslocamento forçado feminino no conflito armado colombiano, desde a
observação de suas memórias e percepções sobre estes eventos, comparadas com
os programas de assistência (governamentais e não-governamentais), reparação
242
e justiça. É necessário que se observe até que ponto os programas de reparação
e justiça tem alçado contribuir para a transformação da condição de deslocadas,
logo, envoltas em pobreza e, em alguns casos, indigência das mulheres na
Colômbia. Quando dizemos transformação da sua situação de pobreza, não nos
referimos apenas às políticas de assistência e/ou ajuda humanitária. Queremos
saber se há projetos que efetivamente tem por objetivo contribuir para o
desenvolvimento socioeconômico deste setor da sociedade.

Conclusão: o caráter econômico do conflito armado

Como já foi exposto, este trabalho representa um ensaio, um compilado


de ideias iniciais sobre um tema ainda em processo de pesquisa: o conflito
armado colombiano e suas implicações para os corpos das mulheres.
Introdutório e ainda inacabado, este ensaio levanta hipóteses acerca das
especificidades da política e economia colombianas que servem de pano de
fundo para o conflito mais antigo do nosso continente, que por sua vez viola de
forma sistemática, através da violência sexual e do deslocamento forçado, a
milhões de mulheres.

Não é possível esboçar conclusões sobre os desdobramentos num


cenário de pós-conflito do que foi exposto neste momento, mas em linhas gerais,
podemos apontar caminhos interpretativos e, com muito cuidado, algumas
conclusões preliminares. Para compreender o processo de acumulação de capital

33
BELLO, Martha Nubia. Las familias desplazadas por la violencia: un tránsito abrupto
del campo a la ciudad. Revista de Trabajo Social. No. 2. Bogotá, 2000, pp.113-123,
p.115.

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na Colômbia, é necessário levar em consideração a associação existente entre as


dinâmicas de acumulação (de terras e de capital) e o uso irrestrito da violência,
que produz “uma maquinaria do terror, da morte e do extermínio físico e moral,
produzindo o disciplinamento e o controle social baseado na violência”34.

A associação entre o capital nacional e o capital internacional se dá


mediante duas vias, que caminham lado a lado, sendo, por um lado, a
manutenção da dependência econômica frente ao capital estrangeiro e suas
243
respectivas alianças estratégicas com os Estados Unidos, seja pela entrada de
capital de empresas americanas ou pela entrada de capital militar, com a desculpa
de combater os “inimigos internos”. Por outro lado, temos o desenvolvimento de
uma economia cada dia mais voltada para as atividades ilícitas do capital, a
saber: o tráfico de pessoas, drogas e armas, bem como a extração ilegal de
recursos naturais. Soma-se a essa “empresa” de capital criminal o financiamento,
manutenção e reprodução do conflito armado, gerando terror, força de trabalho
ilegal e violência sistemática contra a população civil.

Diversos são os motivos para a existência – a longa existência – do


conflito armado na Colômbia. É importante lembrar que inúmeras estratégias
dos atores armados e/ou políticos são responsáveis pelo desencadeamento do
conflito e sua posterior manutenção e reprodução. “Por exemplo: a questão
agrária, a debilidade institucional, a profunda desigualdade de renda, a tendência
ao uso simultâneo de armas e urnas ou a presença precária ou, em algumas
ocasiões, traumática do Estado nas muitas regiões do território nacional”. Todos
estes elementos, juntos, garantem o que um dos relatores da Comissão Histórica

34
ESTRADA ÁLVARES, Jairo. Op. Cit., p.128.

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do Conflito e suas Vítimas35, o professor Leongómez, chamou de “postergação


indefinida de mudanças necessárias”36.

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35
A CHCV tem como origem um acordo entre os representantes do Governo
colombiano e os delegados das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC-
EP), adotado em 5-10-2014 pela Mesa de Diálogos em Havana. A Comissão foi formada
com a missão de produzir um informe sobre as origens e as múltiplas causas do conflito,
os principais fatores e condições que tem facilitado ou contribuído para a sua
persistência, bem como os efeitos e impactos do mesmo sobre a população. O Informe
completo pode ser acessado em: https://www.mesadeconversaciones.com.co/comision-
historica.
36
LEONGÓMEZ, Eduardo Pizarro. Una lectura múltiple y pluralista de la historia.
(Relatoría). Informe de la Comisión Histórica del Conflicto y sus Víctimas. Havana,
2015, p.6.

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DA CONSTRUÇÃO DOS SABERES À PRÁTICA – REFLEXÕES


DECOLONIAIS SOBRE A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA NO BRASIL

Inara Fonseca*

Introdução
Na manhã seguinte do parto o médico passou na porta da
enfermaria e gritou: ‘Todo mundo tira a calcinha e deita na 249
cama! Quem não estiver pronta quando eu passar vai ficar sem
prescrição!’. A mãe da cama do lado me disse que já tinha
sido examinada por ele e que ele era um grosso, que fazia
toque em todo mundo e como era dolorido. Fiquei com medo
e me escondi no banheiro. E fiquei sem prescrição de remédio
pra dor. P. atendida na ala do serviço público da Maternidade
Pró-Matre de Vitória-ES. (PARTO DO PRINCÍPIO –
MULHERES EM REDE PELA MATERNIDADE ATIVA,
2012: 137)

Violência de gênero no parto e aborto, violência no parto, abuso


obstétrico, violência institucional de gênero no parto e aborto, desrespeito e
abuso, crueldade no parto, assistência desumana/desumanizada, violações dos
Direitos Humanos das mulheres no parto, abusos, desrespeito e maus-tratos
durante o parto são termos utilizados para descrever as violências ocorridas na
assistência do ciclo gravídico-puerperal ou do abortamento.

Diversas pesquisadoras brasileiras (Hotimsky, 2002, 2007; Aguiar,


2010; Diniz, 2015; Tesser et al, 2015) têm apontado os muitos abusos que as
mulheres suportam no momento do parto. Apesar dos avanços nas discussões,
no Brasil a violência obstétrica não é tipificada em lei sendo a definição proposta
pela legislação aprovada na Venezuela, primeira latino-americana com esse teor,
a que será utilizada neste trabalho. Assim, temos que:
Entende-se por violência obstétrica a apropriação do corpo e
dos processos reprodutivos das mulheres por profissional de
saúde que se expresse por meio de relações desumanizadoras,
de abuso de medicalização e de patologização dos processos
naturais, resultando em perda de autonomia e capacidade de

*
Jornalista. Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal
de Mato Grosso. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura
Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso. Bolsista CAPES.

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decidir livremente sobre seu corpo e sexualidade, impactando


negativamente na qualidade de vida das mulheres (Tradução
da autora, República Bolivariana de Venezuela, 2007: 30).

De acordo com a pesquisa Mulheres brasileiras e gênero nos espaços


públicos e privados - 2010, realizada pela Fundação Perseu Abramo, uma em
cada quatro mulheres no Brasil sofre algum tipo de violência no momento de
parirem. Diniz (2015) aponta que o levantamento e a divulgação dos dados foram
um divisor no país, já que após a publicação o termo violência obstétrica saiu da 250
esfera acadêmica e ganhou visibilidade midiática. A autora também destaca que
o debate sobre a temática é considerado recente e permeado de imprecisões,
sendo necessária a ampliação das pesquisas e abordagens sobre.

Este trabalho é parte de uma pesquisa de doutorado, ainda em


andamento, e tem como objetivo demonstrar como a construção de um saber
obstétrico eurocentrado é fundamental para constituição do cenário de violência
de gênero institucional enfrentado pelas mulheres grávidas no Brasil. Para isso,
tratamos do desenvolvimento da prática obstétrica dialogando com alguns
conceitos derivados da perspectiva decolonial e da crítica feminista através da
revisão bibliográfica.

Nos últimos 10 anos, a Medicina Baseada em Evidências tem


desenvolvido estudos profícuos na tentativa de deslegitimar algumas práticas
enraizadas nos saberes obstétricos (reproduzidos pela maioria das faculdades de
Medicina), como a episiotomia, e de propagar novas alternativas para as práticas
de parturição. Entretanto, há poucas pesquisas que tentem compreender a
realidade da violência obstétrica brasileira a partir dos estudos decoloniais, ou
seja, relacionando o modelo de assistência ao parto contemporâneo com a
racionalidade técnica fruto de uma subjetividade eurocentrada.

A colonialidade do poder

Dussel (1992) explica que o primeiro momento da constituição


histórica da Modernidade deu-se entre 1492 e 1636. Para o filósofo, ao tratar do
fato Habermas comete um equívoco ao apontar que apenas a Revolução

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Francesa, a Reforma Protestante e o Iluminismo foram constitutivos da


Modernidade. Dussel defende que foi justamente o descobrimento e a conquista
da América que permitiram a constituição do ego moderno.

De acordo com Dussel, antes do descobrimento, o mundo para a Europa


Ocidental se dividia em três partes: Europa-África-Ásia. Sendo a segunda, na
perspectiva eurocêntrica e racista, indigna de constar na história universal devido
ao caráter bruto que sua população se encontrava e a última em processo de
251
desenvolvimento. É entre 1502 e 1506 que, ao descobrir uma quarta parte na
Terra, a Europa “produz uma autointerpretação de si mesma” (DUSSEL
1992:41) – de provinciana e renascentista, ela torna se moderna. Assim, com o
surgimento da Modernidade, a Europa Ocidental constitui-se como centro do
mundo e coloca todas as demais culturas como periféricas.

Quijano (2005) afirma que três fatores colaboraram para esse


eurocentramento: 1) controle do ouro das colônias na América que assegurava
uma posição de privilégios; 2) vantajosa localização na vertente do Atlântico por
onde eram feitas as rotas do mercado mundial; 3) controle do mercado mundial
(capital comercial, trabalho e recursos de produção) devido a progressiva
monetarização que os metais preciosos da América estimulavam e permitiam.
Do eurocentramento, surgia uma relação assimétrica entre o centro e as demais
periferias, tanto na produção de conhecimento como na distribuição do poder.

A noção de colonialidade do poder, conceito criado por Quijano (1989),


é amplamente utilizada pelos autores decoloniais para denunciar a persistência
de estratégias de dominação coloniais após o fim do processo de colonização dos
países da América Latina. De acordo com Castro-Gómez e Grosfoguel (2007) o
conceito decolonial surge para transcender o discurso de que com o fim das
administrações coloniais ocorre a transformação das antigas colônias em Estado-
nação.
A expressão “colonialidade do poder” designa um processo
fundamental de estruturação do sistema-mundo
moderno/colonial, que articula os lugares periféricos da
divisão internacional do trabalho com a hierarquia étnico-
racial global e com a inscrição de migrantes do Terceiro
Mundo na hierarquia étnico-racial das cidades metropolitanas

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globais. Os Estados-nação periféricos e os povos não-


europeus vivem hoje sob o regime da “colonialidade global”
imposto pelos Estados Unidos, através do Fundo Monetário
Internacional, do Banco Mundial, do Pentágono e da OTAN.
As zonas periféricas mantêm-se numa situação colonial, ainda
que já não estejam sujeitas a uma administração colonial.
(GROSFOGUEL, 2008:16)

Os estudos decoloniais apontam que se a política imperialista de


colonização se findou, as estratégias de relações de poder produzidas por ela
252
permanecem na América Latina. Shohat e Stam (2006) ao tratar do
eurocentrismo contemporâneo convergem com a perspectiva decolonial ao
afirmarem a existência de resíduos do discurso colonialista na atualidade. Para
Shohat e Stam o discurso colonial presente hoje, principalmente na América
Latina, funciona como “regimes de verdades (..) encapsulados em estruturas
institucionais que excluem certas vozes, estéticas e representações” (Idem:44).
Assim como na teoria decolonial, os autores apontam que a vozes
subalternizadas são justamente aquelas alvo do racismo - ancorado em estruturas
materiais e inserido em configurações de história de poder.

De acordo com Quijano a noção de poder que temos hoje se relaciona


com a consolidação da América como o primeiro espaço/tempo de um padrão
de poder de vocação mundial. O autor explica que a constituição da América e
o desenvolvimento do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado estruturam
a colonialidade do poder, pois elementos coloniais da forma de distribuição do
poder passam a ter um alcance mundial. Com os dois processos históricos
convergidos e associados estabelece-se a raça (suposta distinção na estrutura
biológica que coloca uns em função de superioridade em relação a outros) como
eixo fundamental do novo padrão de poder. Para Quijano, a ideia de raça,
constituída dentro da relação Europa/centro→colônia/periferia, legitimou e
reforçou as relações de dominação e exploração impostas pelas conquistas
europeias, possibilitando assim a formação de hierarquias entre os saberes
específicos de cada grupo racial. Utilizaremos os argumentos derivados da
colonialidade do poder não para falar de raça, mas de uma das relações de poder
mais antigas: a dominação de gênero, exposta aqui através da análise do modelo

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hegemônico de assistência ao parto e sua relação com o quadro de violência


obstétrico existente no Brasil.

O eurocentrismo na colonialidade do parto

Historicamente, as práticas de parturição nem sempre estiveram


centralizadas. Robbie Davis-Floyd (1984) narra que apenas no século XVIII,
acompanhando uma série de transformações na atenção à saúde de um modo 253

geral, o parto começa a ser vivenciado através da lógica do pensamento científico


ocidental. Até então, os partos eram uma experiência feminina, na qual as
mulheres eram auxiliadas por outras mulheres (parteiras, mães, irmãs, amigas,
etc.) através de chás, rezas, massagens e rituais próprios de cada cultura. Nesse
cenário, o parto era um evento privado, familiar e exclusivista (homens não eram
bem-vindos) e os conhecimentos eram repassados para cada mulher através da
história oral e da memória, ou seja, através da própria prática. O parto, portanto,
era encarado como uma questão biológica, social e cultural.

Com advento da modernidade, é estabelecida uma ordem “correta e


natural” para parir instituindo-se assim uma hierarquização dos saberes. Brigitte
Jordan (1993) explica que o saber obstétrico, originário das primeiras faculdades
de Medicina europeias, inseriu-se na sociedade de forma autoritária
deslegitimando e desautorizando outras formas de conhecimento. De acordo
com Brenes (1991), o conhecimento obstétrico apropriou-se do saber tradicional
das parteiras, para logo depois bani-las da assistência ao parto corroborando para
a hierarquização dos saberes e propagação da racionalidade técnica
eurocentrada.

Assim como a história do desenvolvimento da clínica médica obstétrica


europeia é marcada por violências e relações assimétricas, a da brasileira
também é por estratégias de dominação. Del Priori (1993) narra que o modelo
civilizatório de normatização dos corpos femininos é feito no Brasil Colônia
majoritariamente através dos discursos e das práticas da Igreja e dos médicos.
Com a necessidade de dominar a colônia, o modelo europeu é transportado para

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o Brasil, “o trópico dos pecados”, e para as mulheres a maternidade torna-se


sinônimo de remissão. No âmbito das práticas de parturição, o parto com mínimo
de dor e com o corpo nu das mulheres indígenas é associado ao pecado. A autora
narra que o discurso religioso era apoiado pelo normativo médico que ao estudar
o funcionamento do corpo da mulher compreendia que ele servia apenas para
um propósito: procriar. E gerar de uma maneira específica, circunscrita nas
práticas morais e éticas desenvolvidas pela ciência europeia.
254
Dussel (1992) aponta que a colonização da vida cotidiana da população
indígena foi o primeiro processo europeu de modernização. Os ataques aos
saberes locais eram a prática necessária para a conquista e a domesticação do
modo como os nativos viviam e reproduziam a vida humana. Era necessário
alienar o Outro como o Mesmo para dominá-lo. Mignolo (2010:12) aponta que
a matriz colonial do poder “é uma estrutura de níveis entrelaçados”, assim há
colonialidade em vários níveis, incluindo nos saberes. A colonialidade do saber
está diretamente ligada com a dimensão epistemológica. Quijano explica que
para legitimar a epistemologia colonial eurocentrada os colonizadores exerceram
operações para o controle das subjetividades: 1) expropriaram as populações
colonizadas; 2) reprimiram as formas de produção de conhecimento dos
colonizados; 3) forçaram a aprender a cultura dos dominantes.

A expansão do colonialismo europeu expandiu a perspectiva


eurocêntrica do conhecimento e com ela a naturalização das relações coloniais
entre europeus e não europeus. Assim, a epistemologia colonial se espalha: a
perspectiva europeia racionalista deve se impor a outras visões de mundo. O
processo de invisibilidade e alienação das formas de existências não-europeias
(indígenas e negros) é fundamental para compreensão de como ainda hoje
admitisse a “ideologia eurocêntrica sobre a modernidade como uma verdade
universal” (Quijano, 2005:24). Da colonização construiu-se a América Latina
atual que embora jamais se constituirá como o Mesmo insiste em identificar-se
com o ideal eurocentrado. Excluindo e deslegitimando as práticas cotidianas das
populações a margem do sistema mundo patriarcal e capitalista, ainda que novas

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identidades ditas nacionais tenham sido assumidas com o fim do período


colonial.

No caso do parto, com o eurocentrismo “como modo de produção e de


controle da subjetividade e, em especial, do conhecimento” (QUIJANO,
2005:10), a experiência da parturiência torna-se engendrada pela racionalidade
técnica e quaisquer outras vias que não sejam a medicalização no parto são
reprimidas. O reflexo dessa lógica é claramente visualizado nos dados
255
estatísticos sobre as práticas de parto no Brasil. Ainda que sejamos fruto da
mistura de raças, a diversidade de saberes na partenagem desaparece quase que
totalmente para reinar nos espaços públicos ou privados a biomedicina. Saberes
científicos desenvolvidos no início da obstetrícia se perpetuam e ao mesmo
tempo se atualizam com novas práticas cada vez mais tecnocráticas, como a
cirurgia cesariana como método mais seguro de parturição.

De acordo com o Estado Mundial de la infancia 2014, pesquisa


realizada pelo Fundo das Nações Unidas pela Infância (UNICEF), e com a
Pesquisa Nacional sobre Parto e Nascimento Nascer no Brasil, realizada pela
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), vinculada ao Ministério da Saúde e
divulgada em 2014, o Brasil é campeão mundial em cesárea com
aproximadamente 50% dos nascimentos mediante essa prática na esfera pública.
Em clínicas privadas, os nascimentos por cesárea alcançam cerca de 90%. A
realidade brasileira acompanha a de quase toda América Latina, o México, por
exemplo, fica em 2º lugar no ranking das cirurgias cesáreas com 46%, seguido
pela Columbia (44%) e pela República Dominicana (42%).

No Brasil, de acordo com Abramo (2010), 25% da população feminina


passou algum tipo de violência durante a assistência ao parto. Das que pariram
na rede pública 27% sofreram violência, na rede privada 17% e em ambas 31%.
Entre as causas para os altos índices de violência durante a assistência ao parto
aparecem o grande número de cesarianas e a formação dos profissionais. Sobre
ambos aprofundaremos nos próximos tópicos.

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A cesariana: uma invenção da modernidade

Odent (2004) narra que em seu nascimento a cesariana foi vista como
um recurso tecnológico incrível para salvamento da vida de mães e bebês, porém
a técnica era somente utilizada quando a parturiente possuía alguma questão
patológica que impedisse o parto via vaginal. As primeiras cesarianas não eram
vistas como seguras: a incisão clássica era vertical (de dois centímetros abaixo
do umbigo até dois centímetros acima do osso pubiano) e tinha sérios riscos de
256
infecção, obstrução intestinal e sangramentos uterinos em gestações posteriores.
O ponto de virada desse imaginário deu-se a partir da 2ª Guerra Mundial com a
corrida pelo desenvolvimento tecnológico. Descobriu-se por volta da década de
50, uma nova técnica (incisão transversal ou corte de segmento inferior uterino)
e a cirurgia cesárea se desenvolveu rapidamente acompanhando as mudanças
que ocorreram na própria medicina.

Além dessa mudança, o desenvolvimento dos primeiros antibióticos, de


métodos analgésicos mais seguros e a substituição de tubos de borracha por
plásticos nas transfusões colaboraram também para a criação do imaginário
social de uma cirurgia segura. De acordo com Odent, a técnica utilizada na
cesariana hoje permanece semelhante a desenvolvida em 1950.

A partir dessas transformações, Odent narra que progressivamente a


cirurgia passou de uma operação de salvamento para algo rotineiro. De
importâncias faculdades de medicina de Londres e da América do Norte
obstetras discursavam em favor da cesariana alegando ser um salto evolutivo
para a humanidade.

No Brasil, Rezende (1984: 37) narra que até 1915 a cirurgia cesariana
era realizada raramente e à maneira clássica, ou seja, incisão vertical. Devida à
escassez do procedimento o autor explica haver pouco material documentado
sobre a técnica. É com o surgimento das escolas de obstetrícia que a cesariana
se desenvolve e popularizasse. A fundação da Maternidade do Rio de Janeiro,
em 1904, é apontada como um marco que impulsiona à “modernização da
assistência obstétrica” (Rezende 2006: 102). Acompanhando o desenvolvimento

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europeu é em 1955 que a primeira cesariana por incisão vertical (ou de


Pfannestiel) é realizada no Brasil.

Com os resultados positivos da nova técnica praticada pela equipe da


Maternidade do Rio de Janeiro, é propagada a ideia pelos médicos de que “a
cesárea abdominal atingiu as culminâncias de aperfeiçoamento técnico”.
(Rezende 1987: 858). O autor segue a narrativa argumentando ser a cesariana
uma evolução linear, progressista e racional sendo, portanto, óbvia sua ampla
257
utilização. A difusão da cirurgia e as transformações biomédicas das práticas são
apresentadas como etapas de um processo evolutivo previsível e necessário. É o
parto cirúrgico o adequado para os novos tempos modernos. O parto via vaginal
é coisa do “passado”. Não é válido para as novas mulheres civilizadas e equipe
médica que fiquem nas mãos da imprevisível natureza. São construídas
palatinamente subjetividades diferenciadas para cada procedimento. A cirurgia
representaria o moderno, o higiênico, o seguro. O parto vaginal o primitivo, o
sujo, o caos.
A velha arte dos partos transfigurou-se, e tendo-se despojado
da operatória de arrancamento, seu outrora campo único,
limitou os atos extrativos, disciplinou-os e deu-lhes
suavidade. A espera resignada e fatalista do parto vaginal
pôde ser derrogada com o desenvolvimento da fisiopatologia
da contração uterina que permitiu governá-lo, encurtar-lhe as
fases, monitorá-lo, induzi-lo; mediante o aperfeiçoamento da
anestesiologia, tornando-o indolor, e, através dos préstimos
da operação cesariana, cristalizada em técnica de
simplicidade extrema (REZENDE 2006: 2).

Em 1977, o debate sobre a cesariana eletiva entra em cena e é


justamente na América Latina que a cirurgia por agendamento tem sua origem.
Odent chama atenção para o fato de que são nos países da América Latina, com
destaque para o Brasil, que as cesarianas elevaram-se mais rapidamente. O
intelectual enxerga uma ligação entre o fato com a perseguição sofrida pelas
parteiras desses locais.

Cardoso (2015) explica que Lélia Gonzalez se aproxima do pensamento


decolonial ao criticar a ciência Ocidental como a única autorizada enquanto

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saber. Para a intelectual, a hierarquização dos saberes é justamente fruto do


modelo universal eurocentrado (e, por conseguinte, branco).
Disto decorre que a explicação epistemológica eurocêntrica
conferiu ao pensamento moderno ocidental a exclusividade
do conhecimento válido, estruturando-o como dominante, e
inviabilizando, assim, outras experiências do conhecimento.
Segundo a autora, o racismo se constituiu “como a ‘ciência’
da superioridade eurocristã (branca e patriarcal), na medida
em que se estruturava o modelo ariano de explicação”.
(CARDOSO 2015: 971)
258

Fica claro que a construção sócio-histórica da clínica médica obstétrica


acompanhou a lógica de dominação racial colonial. A partir do exposto podemos
afirmar que as práticas hegemônicas de assistência ao parto constituem um saber
autoritário (Jordan, 1993; Davis-Floyd, Sargent, 1997) e excludente de outras
práticas. O saber autorizado, o da biomedicina, é parte constituinte da formação
médica – tida como uma das causas da violência obstétrica no Brasil.

O parto e a colonialidade de gênero


“Vou dar logo no cu!” Fala de um médico plantonista em
resposta a um pedido realizado no meio da noite para
prescrição de medicação para dor na cicatriz da episiotomia.
Prescreveu um anti-inflamatório via retal. Maternidade Pró-
Matre, Vitória-ES. (PARTO DO PRINCÍPIO – MULHERES
EM REDE PELA MATERNIDADE ATIVA, 2012: 138)

No ano de 2000 dois importantes fatos ocorreram para o possível


melhoramento da condição das mulheres grávidas brasileiras: 1) o Brasil, junto
com mais 189 países, assinou o compromisso de redução de 75% da mortalidade
materna até 2015; 2) políticas públicas de humanização a assistência da saúde
sexual e reprodutiva das mulheres começaram a ser instauradas e incentivadas
pelo Ministério da Saúde. Entretanto, o impacto dessas iniciativas não assume
materialidade visto que permanecemos com elevadas taxas de mortalidade
materna e de violência obstétrica. De um lado temos, entre 2000 e 2009, um
coeficiente de mortalidade materna no país de 65,13 mortes maternas a cada 100
mil nascidos vivos, sendo o parto e o puerpério responsáveis por 17,1% dos
óbitos maternos (FERRAZ e BORDIGNON, 2012). Do outro, humilhações,

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constrangimentos, procedimentos médicos sem autorização, negligências,


mordaça e restrição de informações no cotidiano das práticas de parturição
brasileiras.

Davis-Floyd assinala que, na Modernidade, o parto deixa de ser


vivenciado como um ritual de passagem, o qual acarreta transformações
corporais, familiares e sociais, para se restringir à dimensão biológica. Essa
visão anatomopatológica imposta ao longo dos últimos séculos, principalmente
259
no Ocidente, através de políticas estatais e do desenvolvimento da clínica
médica, transforma o hospital no único local para o momento do parto. Se a
instituição do hospital como local oficial da assistência ao parto pode ser
considerada um dispositivo de colonialidade do saber (na medida que colabora
na produção e manutenção da hierarquização dos saberes), também pode ser de
colonialidade de gênero.

Ao normatizar e engendrar o corpo feminino num modelo único


inventando a partir de um imaginário eminentemente masculino, embora se
afirme científico, o médico torna-se protagonista do evento e não a mulher. Uma
relação assimétrica entre curador e paciente é então estabelecida. Vale ressaltar
que a mulher durante anos não teve espaço dentro das universidades, assim o
desenvolvimento do conhecimento médico especializado obstétrico foi
eminentemente masculino.

A antropóloga também argumenta que o atual modelo hegemônico,


intervencionista e tecnocrático, no campo da parturição reproduz a lógica do
patriarcado: construindo o imaginário social do corpo da mulher como um ente
fraco que necessita da intervenção e controle da tecnologia masculina. Assim, o
nascimento passa para o controle do homem branco médico, as intervenções no
corpo feminino são legitimadas e práticas que desfavorecem a parturiente são
instauradas sendo propagadas até hoje. Davis-Floyd demonstra que muitas das
práticas obstétricas que ocorrem rotineiramente nos hospitais não são
cientificamente eficazes, mas sim rituais simbolicamente fortes que reafirmam o
domínio da ciência masculina. Como exemplo, temos a posição litotômica
(mulher deitada de costas com as pernas erguidas e abertas) a qual, se facilita

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que o médico apare o bebê no momento do expulsivo no parto normal, em nada


favorece a parturiente, já que a força da gravidade ajudaria a mulher grávida a
expelir o bebê caso ela estivesse de cócoras ou em pé.

Se as relações de poder foram instauradas no campo da parturição tanto


para as mulheres do centro (europeias) quanto para as da periferia (latino-
americanas), por que as realidades obstétricas se diferem tanto? Por que nas
estatísticas sobre cirurgias cesarianas e violência obstétrica os países da América
260
Latina ocupam os primeiros lugares?

Lugones (2014) afirma que a dicotomia central da Modernidade


colonial se localiza na hierarquia dicotômica entre o humano e o não humano.
No processo de colonização toda a população indígena e negra era vista como
animais bestializado, ou seja, não humanos. A autora explica que a leitura do
colonizador dos corpos se dava pelo dimorfismo aparente da forma, assim os não
humanos poderiam ser machos ou fêmeas, mas não se atualizavam em homens
e mulheres.
Começando com a colonização das Américas e do Caribe,
uma distinção dicotômica, hierárquica entre humano e não
humano foi imposta sobre os/as colonizados/as a serviço do
homem ocidental. Ela veio acompanhada por outras
distinções hierárquicas dicotômicas, incluindo aquela entre
homens e mulheres. Essa distinção tornou-se a marca do
humano e a marca da civilização. Só os civilizados são
homens ou mulheres. Os povos indígenas das Américas e
os/as africanos/as escravizados/as eram classificados/as como
espécies não humanas – como animais, incontrolavelmente
sexuais e selvagens. O homem europeu, burguês, colonial
moderno tornou-se um sujeito/ agente, apto a decidir, para a
vida pública e o governo, um ser de civilização,
heterossexual, cristão, um ser de mente e razão. A mulher
europeia burguesa não era entendida como seu complemento,
mas como alguém que reproduzia raça e capital por meio de
sua pureza sexual, sua passividade, e por estar atada ao lar a
serviço do homem branco europeu burguês. (LUGONES,
2014: 936)

Ao apontar a não humanidade da população colonizada a autora


defende que “a consequência semântica da colonialidade do gênero é que
“mulher colonizada” é uma categoria vazia: nenhuma mulher é colonizada;
nenhuma fêmea colonizada é mulher” (LUGONES, 2014: 939). Se Beauvoir

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(1980) enunciava que torna-se mulher através da construção social, Lugones


surge afirmando que indígenas, negras, latino-americanas sequer se enquadram
na categoria universal de mulher, sendo necessária a criação de outra categoria
para as especificidades das mulheres que passaram pelo processo de
colonização.

Lugones (2008) cita estudos sobre tribos nativo-americanas


ginecocráticas focadas no espiritual nas quais a fêmea é altamente valorizada
261
pois simboliza o princípio da deidade feminino, como consequência desse
pensamento a equidade entre os sexos era preservada. La Vieja Mujer Araña, La
Mujer Maíz, la Mujer Serpiente, la Mujer Pensamiento son algunos de los
nombres de creadoras poderosas. (Lugones, 2008:89). Além das sociedades
ameríndias, a autora também traz uma pesquisa sobre a sociedade africana
Yoruba, onde não havia um sistema de gênero institucionalizado tendo surgido
apenas após a colonização relações de gênero binárias e hierárquicas. Antes, os
corpos femininos e masculinos podiam ser obinrin ou okunrin não sendo
construídos biologicamente.

A autora traz os exemplos para demonstrar como, antes da colonização,


muitas sociedades não se organizavam socialmente através da lógica de gênero.
O que nos leva considerar que se o patriarcado foi fundamental para
desenvolvimento e constituição do capitalismo na sociedade europeia, a
colonização foi fundamental para o desenvolvimento e constituição do
patriarcado em muitas sociedades da América Latina que tiveram, assim, suas
bases estruturais modificadas. Lugones aponta que rapidamente os machos
colonizados incorporaram a lógica de gênero do colonizador e passaram a
subjugar aquelas que seriam pares. Dentro de uma conjuntura de opressão seria
a oportunidade dos homens não humanos estabelecerem uma relação de poder e,
quem sabe, se atualizarem em homens.
Com a dominação colonial, as tribos ginecocráticas sofrem
transformações importantes, e chegam a ser destruídas para se
tornarem tribos patriarcais. As mudanças nas bases das
instituições vigentes, causam impactos extremamente
negativos, que podem ser a dizimação de populações pela
fome, doenças, e rompimento das estruturas sociais,

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espirituais e econômicas. (LUGONES, 2007, p. 199, tradução


minha).

Para nós o pensamento de Lugones parece fundamental para uma


compreensão da realidade obstétrica atual. Com o eurocentrismo como
subjetividade hegemônica, fica claro que a colonialidade do poder, do saber e do
gênero se materializam diariamente no Brasil. Suspeitamos, e usamos o verbo
em face do caráter ainda inicial da pesquisa, que as fêmeas latino-americanas
262
ainda não se atualizaram em mulheres. Talvez essa hipótese explicasse a
naturalização sistêmica da violência obstétrica (e de outras formas de violência),
do controle dos corpos femininos e da mercantilização do parto através das
cirurgias cesarianas. Muito tem sido produzido a respeito do papel da formação
dos médicos para a propagação e manutenção das violências obstétricas,
acreditamos que uma mudança real só se dará se começarmos a discutir a raiz
dos eixos que norteiam nossa subjetividade científica colonizada.

De acordo com Haraway (1995) a pretensa objetividade do saber


científico qualifica as pontuações de mulheres, principalmente feministas, como
o saber dos “Outros” e o dos homens, “masculinistas”, o saber “Mesmo”. Assim,
o privilégio de um ponto de vista universal estaria com eles, os homens. Kunzru
(2016), em entrevista com Haraway, narra que a autora enxerga um viés
masculinista da cultura científica. Para Haraway as questões políticas, incluindo
as das mulheres, estão corporificadas na tecnocultura. “A tecnologia não é
neutra. Estamos dentro daquilo que fazemos e aquilo que fazemos está dentro de
nós. Vivemos em mundo de conexões – e é importante saber quem é que é feito
e desfeito”. (Kunzru 2016:32). Enquanto o único saber autorizado na obstetrícia
for o biomédico, construindo em uma lógica de dominação racial e de gênero,
permaneceremos não-humanas.

Considerações finais

Os estudos sobre as práticas de parturição demonstram que


aparentemente a violência obstétrica no Brasil não diferencia classe ou idade:
basta que seja fêmea. Estatisticamente, o país é campeão em cirurgias cesarianas

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e em violência obstétrica tendo o fato sido classificado pela Organização


Mundial da Saúde (OMS) como epidêmico. Apesar dos dados, a naturalização
do saber biomédico como única alternativa legítima tem fortalecido a
racionalidade técnica dentro das práticas de assistência ao parto, na medida que
contribui para um processo de “patologização” do parto através da construção
de uma cultura de medo que desqualifica o corpo feminino como sujeito de sua
própria experiência.
263
Através do cruzamento das perspectivas antropológicas e decoloniais,
fica claro que: 1) o modelo hegemônico de assistência ao parto impossibilita a
diversidade de experiências e simbolismos relativos a tal evento; 2) a
biomedicina pode ser compreendida como um projeto de colonialidade e,
portanto, produtora de assimetrias e relações de poder; 3) a colonialidade do
gênero se materializa no cotidiano das práticas de parturição colaborando para
naturalização da violência obstétrica.

Um provérbio africano afirma que “até que os leões tenham seus


próprios historiadores, as histórias de caça continuam glorificando ao caçador”.
Dialogando com Davis-Floyd, acreditamos ser necessário construir novas
perspectivas teóricas-práticas de assistência ao parto que valorizem o
conhecimento da mulher sobre o seu próprio corpo e a diversidade de saberes
existentes, descolonizando as relações de gênero e de saberes. Mais, se o
eurocentrismo – como estratégia de dominação colonial – permanece nas
obscurecências da Modernidade faz se mais do que necessário construir uma
teoria de gênero crítica não-eurocentrada. Só será possível despatriarcalizar, se
primeiro nos descolonializarmos.

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E ESSE CORPO, DE QUEM É? O ABORTO NO BRASIL E O DEBATE


SOBRE SUA DESCRIMINALIZAÇÃO

Marcela Boni Evangelista*

Iniciando a discussão

A pergunta que nos motiva nesta reflexão é permeada por interessantes 267
paradoxos. Ao questionarmos: “E esse corpo, de quem é?” nos dirigimos às
mulheres e é sobre este ponto de vista que pretendemos tratar a temática do
aborto. Importante enfatizar, contudo, que a mesma pergunta feita aos homens
ou pessoas que se definem por outros recortes de gênero guarda importantes
aspectos, os quais não serão trabalhados nesta ocasião. Nosso tema norteador é
o aborto, mais estritamente os chamados abortos induzidos ou provocados.
Aborto é aquilo que é eliminado quando da interrupção de
uma gravidez. O processo que resulta no aborto chama-se
abortamento. A interrupção da gravidez pode se dar por
causas naturais, os chamados abortos espontâneos, ou por
ação voluntária da mulher, ajudada ou não por outra pessoa.
Nestes casos, fala-se em aborto provocado ou induzido.
(VILLELA & BARBOSA, 2011, p. 11)

Neste sentido, acionamos esta experiência na medida em que envolve o


pressuposto da tomada de decisão, o que requer o agenciamento sobre o próprio
corpo. Corpo este que teoricamente pertenceria às mulheres. No entanto, se
atentarmos para a concretude das experiências de aborto e seu estatuto de crime
na sociedade brasileira, verificamos contradições, algumas das quais serão aqui
esboçadas.

O impedimento de sua realização por mecanismos legais, em primeiro


momento, destitui as mulheres do poder de decidir sobre o que acontece em seus
corpos. Mas não se trata unicamente de aspectos legais ou judiciais. Questões
como a religiosidade, a ética, a educação moralizante de uma sociedade

*
Doutoranda no Programa de História Social da Universidade de São Paulo (FFLCH-
USP) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

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patriarcal, além das relativas às relações de gênero, são elementos que compõem
um cenário de restrições ao domínio do próprio corpo pelas mulheres.

Partiremos de dois paradoxos. O primeiro emerge da existência de um


corpo individual que, entretanto, é dominado pelo Estado e por elementos que
integram uma educação moralizante que prevê a existência de papeis sociais
específicos para mulheres e homens. O segundo ilumina uma situação em que
ao mesmo tempo em que se retira da mulher a liberdade de decidir pela
268
interrupção voluntária da gravidez (IVG), confere a ela responsabilidade
irrestrita nos cuidados com métodos contraceptivos e com a prole.

Sendo assim, a pergunta que parecia simples encontra inúmeros


entraves para ser respondida. Mesmo a mulher que brada a máxima “meu corpo,
minhas regras” convive com uma realidade social em que este posicionamento
não é suficiente para que haja a garantia de que tem total controle sobre seu
corpo. São exemplares as represálias direcionadas para grupos feministas que
levantam esta bandeira, alvos de críticas e mesmo ações violentas por parte de
grupos opositores. E o que dizer em relação às mulheres que não compartilham
desta agenda militante? É possível que encontrem ainda maiores dificuldades
para fazer valer ações e decisões que destoam do que é considerado normativo.
Independente disso, vivemos uma realidade em que a prática de abortos
induzidos se mantém em números exorbitantes, ainda que os dados partam de
estimativas, já que não existem registros oficiais.
Um estudo recente sobre a magnitude do aborto no Brasil
estimou que 1.054.242 abortos foram induzidos em 2005. A
fonte de dados para esse cálculo foram as internações por
abortamento registradas no Serviço de Informações
Hospitalares do Sistema Único de Saúde. (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2009, p.14)

Não pretendemos oferecer conclusões ou respostas fáceis, mas antes


adentrar ainda mais este universo de contradições que se projeta nas experiências
individuais. Ou seja, cada história permite entrever paradoxos, o que ilumina ao
invés de obscurecer o que nos trazem as experiências sobre aborto.

E qual o caminho a ser trilhado?

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Utilizamos o suporte teórico e metodológico da história oral para


acionar as experiências de mulheres sobre o aborto induzido, através de
entrevistas de história de vida, o que significa considerar menos as informações
objetivas do que os processos de construção narrativa envoltos por
subjetividades (MEIHY & HOLANDA, 2010, MEIHY & RIBEIRO, 2011).

Além disso, lançamos mão de elementos da História e suas discussões


atentas à crítica aos universalismos e à ideia de um suposto sujeito universal cujo
269
molde atravessaria as temporalidades. Como ilumina Maria Odila Leite da Silva
Dias
Libertar-se de categorias abstratas e de idealidades universais
como “a condição feminina” é uma preocupação que
decididamente enfatiza o interesse em desconstruir valores
ideológicos e em perseguir trilhas do conhecimento histórico
concreto que, reduzindo o espaço e o tempo a conjunturas
restritas e específicas, permitem ao estudioso a re-descoberta
de papeis informais, de situações inéditas e atípicas, que
justamente permitem a reconstituição de processos sociais
fora do seu enquadramento estritamente normativo.
Documentar o atípico não quer dizer apontar o excepcional,
no sentido episódico ou anedótico, mas justamente encontrar
um caminho de interpretação que desvende um processo
importante até ali invisível, por força da tonalidade restrita
das perguntas formuladas tendo em vista estritamente o
normativo. Encontrar a trilha e a perspectiva que ilumina a
terceira margem do rio é um modo de renovar o conhecimento
e nunca é bastante chamar atenção para o quanto podem ser
renovadores os estudos feministas. (DIAS, 1992, p. 40)

Aceitamos, neste sentido, o trato com as subjetividades e contradições


inerentes à concretude das experiências vividas, buscando estabelecer conexões
com outros momentos históricos e como estes se projetam na
contemporaneidade, considerando suas transformações.

No que diz respeito aos significados do corpo feminino - nosso ponto


de partida - é inegável a verificação da manutenção de concepções construídas
ao longo do tempo, como é o caso do papel social de mães atribuído às mulheres.
Evidentemente este estatuto apresenta mudanças em diferentes conjunturas e
temporalidades. A nós interessam especialmente as transformações

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impulsionadas pelos movimentos feministas, sobretudo, a partir da segunda


metade do século XX.

O debate sobre o corpo que desde então vem tomando forma esteve
fortemente presente na agenda feminista e dos movimentos de mulheres. A luta
pelo direito à autonomia dos corpos femininos encontrou, no entanto,
abordagens distintas e, por vezes, contraditórias mesmo no âmbito destes
movimentos.
270
A centralidade do corpo é vista em diversos momentos. A
popularização da pílula como método anticoncepcional garantiu a ampliação do
controle sobre o número de filhos, ainda que seu uso não tenha sido desde o
princípio feito da maneira adequada por todas as adeptas. No entanto, a
possibilidade de escolha diante da maternidade gradativamente permitiu às
mulheres novos espaços de atuação dentro e fora do ambiente doméstico.

O planejamento familiar pode também ser considerado integrante desta


tendência, uma vez que estabelece condições para a discussão sobre o acesso à
informação por parte das mulheres no que diz respeito à saúde reprodutiva e,
consequentemente, ao número de filhos. O objetivo desta proposta, importa
lembrar, se refere ao contexto familiar e na maioria dos casos se dirige às
mulheres de baixa renda, supostamente necessitadas de conhecimentos e,
principalmente, controle da natalidade.

Finalmente, chegamos ao aborto. Embora permanentemente na agenda


dos movimentos feministas, apresenta abordagens diversas, que merecem maior
atenção. Duas vertentes nos parecem centrais (Birolli, 2014): a primeira lida com
o aborto a partir da perspectiva da saúde reprodutiva e se alinha aos pressupostos
do planejamento familiar. Seria, deste modo, alternativa para garantir o
equilíbrio necessário à vida familiar, onde a mulher mantém seu papel voltado à
maternidade. Assim, diante do número de filhos ou das condições materiais para
receber mais um, o recurso ao aborto se mostraria uma alternativa válida.

Outra corrente defende a ideia de liberdade e autonomia sexual e, neste


sentido, se refere a um uso libertário do corpo no que diz respeito à atividade

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sexual e às experiências relacionadas à sexualidade já mais distanciadas da ideia


de reprodução e de família. O fato é que temos o corpo como protagonista de
conflitos, debates e discussões íntimas, mas também de âmbito social e coletivo,
o que complexifica a pergunta que nos serve de mote. Afinal, a quem pertence
este corpo?

É neste espaço contraditório por natureza, que se dá a experiência do


aborto. Território de disputa que envolve interesses que se estendem do nível
271
pessoal ao estatal. Em qualquer destes âmbitos entrevemos a produção de
discursos que buscam legitimar ou não o direito das mulheres sobre a decisão
relativa ao aborto.

Para estabelecer a presente reflexão nos basearemos em experiências de


mulheres que optaram pela interrupção voluntária da gravidez. Quais são suas
motivações e como operam com as consequências práticas e simbólicas da
decisão tomada? De que maneira lidam com seu próprio corpo e como
verbalizam suas reflexões observadas em perspectiva a partir da entrevista de
história de vida?

Amelinha

A clandestinidade que marcava os corpos sob a ditadura. O aborto


seguro em meio à clandestinidade.
Fiquei longo tempo na clandestinidade e foi nessa época que
fiz um aborto. Tive a necessidade de fazer. Tinha dois filhos
e era clandestina! Não havia razão para ter mais um filho, eu
via que não tinha condições objetivas para criar uma criança.
Mal conseguia criar os dois que tinha, imagine mais um! Um
companheiro médico fez o aborto em mim em uma casa, com
todas as condições e me deu toda a atenção necessária.

O paradoxo da vida em democracia sujeita aos riscos da criminalização.


Fiz um aborto seguro embora vivesse na clandestinidade! O
paradoxo é que hoje vejo mulheres precisando fazer um
aborto e tendo que fazer de forma insegura e clandestina,
mesmo sabendo que vivemos uma democracia! Ainda assim,
o aborto continua clandestino! Algo que deveria ser entendido
como um direito humano fundamental é realizado na
clandestinidade! No meu caso, o aborto foi clandestino

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porque eu era clandestina! A vida nos havia empurrado para


isto, a ditadura não permitia que fosse diferente. Hoje vejo
mulheres enfrentando a mesma ditadura, mas em outro
sentido, precisando fazer clandestinamente o aborto e
sofrendo gravíssimas consequências!

A militância que busca libertar os corpos das mulheres através do


conhecimento que leva ao empoderamento.
No caso do aborto, fiz várias campanhas em escolas! É
importante que isso faça parte da educação. Por exemplo, 272
esses dias, fui com meu marido ao oftalmologista para ver a
situação da catarata e a médica falou que se ele quisesse
operar, ela faria a cirurgia. Mas, na opinião como médica, ela
não o faria agora porque ele precisaria melhorar o diabetes
para ter uma cicatrização mais adequada. Quer dizer, o corpo
é dele. Ele é quem decide se vai operar agora ou não.
No que diz respeito ao aborto, eu nem queria discutir. É uma
questão de foro íntimo e não o Estado que deve legislar. Se
uma pessoa está grávida e entende que não pode levar adiante
a gravidez, faz-se um aborto com todas as condições para sua
saúde física e mental. A gente precisa discutir isso melhor. É
um assunto de foro íntimo, mas deve ser tratado também do
ponto de vista social e político. Ou seja, é preciso garantir que
se fale sobre o assunto sem sofrer ameaças ou ser
criminalizada. Porque agora nem falar sobre o assunto é
permitido!
Num momento com tanto meio de comunicação como
celulares, e-mails é um absurdo que não se possa falar sobre
aborto. Uma pessoa que precisa recorrer ao aborto não pode
falar sobre isso porque pode ser ameaçada e acaba se
arriscando em clínicas clandestinas, como aconteceu com a
Jandira. Quem atendeu essa moça? Com certeza gente de má
índole porque esconder o corpo de uma pessoa, para mim, é
uma maldade, uma perversidade que não tem classificação!
Esconder o corpo é como tirar a humanidade da pessoa! Mas,
estas pessoas não são chamadas de bandidos! A mulher que
faz aborto é...

Deborah

Um corpo em busca de complemento. A solidão como porta de entrada


para uma vulnerabilidade que leva ao risco do não planejado.
Quando soube que estava grávida, o pior foi a decepção do
fato literalmente concebido... O cara disse que o máximo que
poderia fazer era visitar uma vez por mês e ligar de vez em
quando. Por um lado eu queria para poder segurar ele... Por
outro, via que não tinha a estrutura que eu queria. Ainda não
era totalmente independente e, se voltasse grávida para São

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Paulo, teria que morar na casa do meu pai, coisa que ele
jamais admitiria. Tinha a opção de tirar porque não queria
decepcionar meu pai, mas também não queria ter um filho de
um babaca!

As sensações físicas e as marcas sentimentais.


Quando minha menstruação atrasou, fiz vários testes. Sabia
que podia ser porque já não estava tomando remédio e pedia
para ele não gozar dentro, mas ele insistia. Atrasou uma
semana, fiz teste de farmácia e quando deu positivo não
acreditei! Pensei: “Está errado!”. Até que a ficha caiu... Liguei 273
para ele, que perguntou se eu queria ter e, se quisesse, ele não
poderia ficar comigo... Aí tomei a decisão de tirar.
Ele foi ao médico comigo e lá o ginecologista deu parabéns e
aquele “blá blá blá”... Quando saímos do consultório, disse
que não queria ter se fosse nessa situação, que para mim não
era satisfatória, e ele correu atrás do remédio, o Citotec...
Perguntou para o pessoal do trabalho e todo mundo ficou
sabendo... Mas ele acabou conseguindo.
Quando chegou o remédio, apliquei como tinham falado. Mas
o processo todo envolve muita dor! Cólicas absurdas! Para
aliviar, tomei banho e vi o embrião, porque sangra bastante,
absurdamente! Tanto que quando fizeram a curetagem,
falaram que não tinha mais nada. Graças a Deus, deu tudo
certo! Felizmente, tinha convênio em hospital particular, o
que é uma segurança a princípio, para não deixar nenhuma
sequela grave.
No dia seguinte [...] Ele me acompanhou – era o mínimo que
podia fazer – e depois, quando saímos de lá, ele foi para um
bar beber... Isso porque ele tem dois filhos!

O corpo que almeja o futuro de uma família ideal.


Penso no futuro, e próximo, que fique claro! Quero ter uma
família, conseguir alguém legal, companheiro, constituir uma
família... Mas a família certa, com companheiro de verdade,
aquele que vive junto, curte junto e quando eu estiver para
baixo, ele me erga, e quando estiver feliz, ele compartilhe.
Mas, sei que é beeeeem difícil!

A reflexão e a dúvida sobre o futuro. Como será quando outro filho


vier?
Essa é uma situação que precisa ser muito bem pensada
porque levamos para o resto da vida. Pode ter sequelas físicas,
como não poder ter mais filhos ou mesmo perder o útero! Mas
também de não saber lidar quando outro filho nascer... “Será
que vou me sentir mal porque já tirei um? Será que quando
nascer vai vir o arrependimento? Olha o que eu fiz!” Não sei
nem dizer qual pode ser o sentimento... Caso tenha um filho,

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não consigo imaginar se vou amar duplicado ou vou me sentir


extremamente mal pela atitude anterior... Sei que não é uma
atitude correta, mas naquele momento era a decisão mais
adequada, sem dúvida! O futuro se encarregará de trazer o que
tiver de ser... Tenho certeza que, como em tudo que faço, darei
o melhor de mim!

Vanessa

Desde garota, antenada em relação ao corpo e à sexualidade. Menos


pela mãe e irmãs do que pelas revistas direcionadas ao público adolescente. 274

Assim construiu terreno seguro para iniciar a vida sexual, sempre amparada por
métodos preventivos.
Minha consciência vinha das revistas que a gente lia na época,
Capricho, Atrevida, que não lembro se eram semanais ou
mensais, mas eu comprava todas! E o que eu sabia vinha daí!
Depois tive um namorado que fiquei por uns cinco anos e ele
era mais velho... Eu tinha 16 e ele uns 22 anos. Começamos a
ter relações, claro, e sempre tive esse cuidado de usar
camisinha... Lembro que depois da minha primeira relação fui
ao ginecologista... Muito por causa das orientações dessas
revistas, porque minha mãe não conversava esses assuntos
comigo... As revistas falavam que depois da primeira relação
precisava fazer exame Papanicolau e marquei sozinha minha
primeira consulta... Comecei a tomar pílula, mas como
esquecia, passei para a injeção... Depois de um tempo voltei
para a pílula... Mesmo com irmãs mais velhas, essas
conversas não rolavam...

Tal preocupação foi relaxada com a estabilidade do namoro em idade


um pouco mais avançada. Instabilidade no uso do método e a sensação de que
“comigo não vai acontecer...”. Mas aconteceu! E sem muita dúvida, em função
da situação financeira pouco estável, o aborto seria a decisão adequada.
Depois de brigas com meu namorado da época, acabamos
terminando. Em uma festa acabei ficando com o meu atual
namorado, que até então era meu amigo... Não sei quanto
tempo depois de namoro, a gente já não estava tomando
muitos cuidados com relação à gravidez... Como nas minhas
relações anteriores eu sempre esquecia de tomar o remédio,
passava meses sem tomar e depois começava de novo, chegou
um momento que parei de vez... Achava que não ia
engravidar... Olha que idiota! De onde tirei essa ideia?!
Eu ficava naquele método do coito interrompido, até que um
dia acabou acontecendo... Desconfiei porque a menstruação
atrasou... A gente usava esse método, mas às vezes passava...
Bem irresponsável mesmo... Não cheguei a tomar nem a

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pílula do dia seguinte porque estava naquelas de que não ia


acontecer nada, totalmente despreocupada... Totalmente
irresponsável! Diferente de quando eu tinha 16 anos!
Estava com 24 anos e quando desconfiamos lembro que nem
quis fazer o teste de farmácia que, na época, falavam que era
duvidoso. Fui direto ao hospital e o resultado do exame de
sangue foi positivo! Quando a médica viu minha cara de
decepção, até tentou dar uma força porque estava numa idade
bacana e poderia ser bom...
Meu namorado tinha ido comigo, mas ficou esperando lá
fora... Quando eu saí e ele viu minha cara de decepção, saímos
de perto das pessoas e eu chorei... Chorei porque não queria 275
ter um filho naquele momento. Já tinha até falado para ele que
eu queria tirar se fosse esse o resultado...

Tentativas frustradas e o corpo em sofrimento a cada equívoco nos


métodos abortivos. Isto certamente as revistas não explicavam. E o tempo
passava...
Naquele mesmo momento falei isso e ele não se contrapôs.
Ele apoiou porque também não queria... A gente já tinha
ouvido falar daquele remédio Citotec e a questão era como
arrumar! Ele conversou com uns amigos e um deles falou que
conseguia porque trabalhava em hospital...
A gente pagou a quantia estipulada e pegamos o remédio...
Fui tomar o remédio em casa e não queria que ninguém da
minha família soubesse! Lembro que ainda tomei um chá que
me fez passar muito mal! Vomitei muito! Era um chá abortivo
que, teoricamente, ajudaria, mas passei mal e vomitei muito!
E o remédio não fez nenhum efeito! Não sei se fiz errado ou
se o remédio era falso, mas, enfim, não fez efeito... Não
lembro nem se o remédio vinha em uma caixinha... Era tanta
ansiedade! Mas não parecia algo falsificado quando
compramos. Achei muito estranho não fazer nenhum efeito,
nenhuma cólica, nada... Só fiquei vomitando...
Então decidi que deveria contar para minha mãe... Teria que
contar porque não queria mesmo ter um filho... E foi muito
difícil arrumar esse dinheiro porque a gente vivia muito duro!
A situação era realmente muito apertada e decidimos que não
era o momento. Contei para a minha mãe e disse que não
queria ter um filho, essas coisas... E foi uma amiga dela que
arrumou outro remédio... Era o mesmo Citotec, mas dessa vez
eu teria que tomar um via oral e o outro deveria inserir na
vagina, coisa que não fiz da primeira vez...
Tivemos que pedir dinheiro emprestado. Ele pediu para o
irmão dele, porque a gente não tinha, e eu falei para a minha
mãe. Então, foram duas pessoas da família que ficaram
sabendo, mas que não se opuseram. Pelo contrário! O irmão
do meu namorado foi correndo no banco tirar dinheiro e
minha mãe ficou desesperada, dizendo que eu tinha que fazer
isso mesmo... Acabei fazendo isso em casa...

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Foi uma experiência horrível! De muita dor! Imagino que seja


como a dor do parto! A contração era tão forte que nem
consigo explicar! Uma dor muito grande! E ainda solta o
intestino, então ficava no banheiro o tempo todo com aquela
dor, suando muito e saía sangue... Achava que ia morrer! Foi
tão, tão ruim que não gosto nem de lembrar!!! Tentei apagar
isso da minha memória... Mas não deu...

O aborto incompleto e a necessidade de recorrer ao serviço público de


saúde. Espaço onde seu corpo não mais lhe pertence, tornando-se lugar de
276
disputa de poderes médicos. A agressão sofrida demonstra a vulnerabilidade à
qual estão sujeitas muitas mulheres... Além disso, o expressivo despreparo do
corpo médico para atender à situação.
E não acabou aí... Senti que não tinha acontecido
completamente... Voltei para São Paulo e fui ao HU... Não
tinha convênio médico e pensei que se fosse em algum
hospital público na minha cidade, não seria atendida. No HU,
por ser aluna, seria atendida... Falei que tinha tido um
sangramento durante a noite e me levaram para um ultrassom.
Fui atendida por duas médicas super legais que falaram que
eu não poderia mais usar calça jeans, me deram conselhos
como se eu fosse mãe... Fiquei me sentindo mal porque já
sabia... Fizeram o ultrassom e viram o feto, ou embrião, tinha
um mês, não sei como se fala... Enfim, viram que não tinha
mais vida, não respirava mais, não tinha batimentos... Elas
perceberam nessa hora que eu tinha provocado alguma coisa,
até porque deve acontecer vários casos...
Me mandaram para outra médica para fazer outro
procedimento para ter certeza. Essa médica nem olhou na
minha cara! Eles ficam muito bravos com isso! Ela nem olhou
na minha cara e falou: “Já tá morto mesmo”, e assinou um
papel... Pensei até que teria que fazer um teatrinho, mas
ninguém me perguntou nada... Tiraram as próprias
conclusões...
E se não tivesse sido como foi? O tratamento seria o mesmo?
Fiquei pensando nisso...
Mas, como não saiu, eu teria que fazer aquela curetagem,
então fui internada no mesmo dia. O procedimento era o
mesmo que tentei fazer... Tomar o Citotec e inserir na vagina
para ver se saía sozinho... Fiquei lá durante a noite e tinha
muito sangramento e chorava muito! As pessoas mais legais
eram as auxiliares de enfermagem que me ajudavam a tomar
banho, me apoiavam e davam um apoio moral...
De repente veio um médico... O mais escroto dos médicos!
Acho que é aquele que vai vendo todos os pacientes... Ele foi
ver... Ah o que é isso... Ele foi colocar o dedo na minha
vagina, achei que ele ia fazer o exame de toque ou coisa
assim... Mas estava tão dilatado que ele colocou a mão inteira!

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Ele tirou o feto, ou o embrião, e nesse momento eu fechei


meus olhos... Mas ele queria porque queria me mostrar... E
ele falava: “Olha aqui seu filho! Olha aqui!”. Eu não abri os
olhos, não olhei... Mas ele queria me mostrar! Olha, que
violência!
Um lugar onde deveria ter gente preparada, mas onde eles
abominam! Para mim foi um momento de muito sofrimento!
Apesar dessa dor, posso dizer que não me arrependi... Mas
também não sei se quase não morri...

Algumas reflexões 277


Três histórias... Trajetórias muito distintas em relação à temporalidade,
mas também aos universos vivenciados por suas protagonistas. Estas, em maior
ou menor medida, envolvidas nos debates políticos de seu tempo, apresentam
em comum a necessidade de interromper uma gravidez não desejada ou
planejada.

Fica claro que, a despeito das contingências, suas vidas são atravessadas
por uma estrutura que foge ao seu domínio no que diz respeito ao que fazer diante
da necessidade do aborto. Primeiramente, pois paira sobre suas histórias um
conjunto de leis e normas sociais que, independente de suas vontades,
influenciam suas decisões. Seja em termos práticos, como o acesso aos métodos
para viabilizar a interrupção da gravidez, seja no nível da intimidade e das
convicções pessoais, que implica em complexos dilemas envolvendo questões
morais e éticas.

A história de Amelinha, cuja participação política é incontestável,


mostra o paradoxo do aborto em contexto democrático. Tendo sido sua
experiência pessoal sob a ditadura, teve acesso à segurança do procedimento
realizado por um companheiro gabaritado para tal. Sua atuação intermitente
chega aos nossos dias apontando que, mesmo na democracia, a clandestinidade
é determinante e explica tristemente os números de mortes e sequelas para as
mulheres que recorrem ao aborto. Sua luta denota a necessidade de ressignificar
estas experiências.

Deborah viveu a situação da gravidez não planejada em outro contexto


político. Sua condição social garantiu o acesso aos cuidados pós aborto. Mas a

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experiência começou de forma ilegal, com a aquisição do Citotec. Apesar da


ilegalidade, é visível a facilidade de acessar esta alternativa. O seu caso, contudo,
apresenta dilemas diferentes, mais íntimos que coletivos. A relação com o
companheiro e o desejo de construir uma família nos moldes considerados por
ela adequados são os componentes de sua reflexão. O que aconteceu com seu
corpo não parece ser a maior preocupação. O incômodo se projeta para o futuro
e questões morais surgem como centrais. O que seu corpo sentirá em nova
278
experiência é determinante de suas atitudes e expectativas, acenando para uma
complexa interpretação da experiência vivida. Sua história é prenhe de
elementos que atentam para a restrição da liberdade sobre o corpo. Se foi livre
para decidir, não parece confortável com a decisão. Seu corpo lhe pertenceu
naquele momento, mas continua à mercê de convicções que se operam a partir
de uma ética condicionada por normas sociais do que é certo ou errado.

O caso de Vanessa, embora tenha vivido o aborto já passada a


adolescência, remete a um universo de sensações que resgatam este período.
Afinal, construiu seu arsenal de precauções bastante jovem e consciente de suas
supostas responsabilidades. Embora não seja nosso foco, o papel desempenhado
pelas publicações voltadas para este público sugere sua relevância e mesmo
eficácia. De maneira muito clara, contudo, imprime em nossa reflexão algo
bastante comum, que é a crença de que as coisas só acontecem com os outros ou
mesmo que métodos pouco ortodoxos, como o coito interrompido, são
suficientes para evitar a gravidez.

O ponto crucial de sua experiência é, contudo, a situação a que muitas


mulheres se encontram expostas quando praticam o procedimento do aborto por
conta própria. Mais uma vez o acesso ao Citotec se mostra a alternativa mais
prática e eficaz em nossos dias. A falta de instruções de como proceder mostra,
entretanto, que não temos tanta informação quando o assunto é o aborto.

A necessidade de recorrer ao serviço público de saúde nos parece, neste


caso, o maior entrave. Diante de um saber de poucos, ficam expostas às relações
de poder ali estabelecidas. O corpo médico, o qual deveria atuar independente
de percepções pessoais, configura em nossa análise a ampla falta de poder sobre

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o próprio corpo quando enfrentando os detentores do poder sobre a saúde.


Encontramo-nos diante de uma vítima daqueles que deveriam materializar o
socorro e o cuidado. A arbitrariedade e a violência vivida por esta mulher, que
reproduz tantas outras experiências, problematiza de maneira profunda nossa
pergunta inicial. Neste caso, há a explícita falta de domínio e controle sobre o
próprio corpo que, a despeito de uma decisão tomada de maneira supostamente
livre, se encontra diante de questionamentos e violações que extrapolam o nível
279
pessoal que inicialmente pensamos envolver o aborto. O corpo da mulher
definitivamente não lhe pertence quando está diante do outro...

Este “outro” pode ser um, pode ser muitos... O Estado, o companheiro,
o médico... Ainda que a decisão seja tomada e encontre apoio, não garante que
sua vida esteja livre de riscos, preconceitos e julgamentos...

Ainda assim, milhares de mulheres seguem decidindo pelo aborto.


Como dizer, então, que este corpo não lhes pertence? É necessário pensar na
possibilidade de desvitimizar estas mulheres que desafiam os poderes
estabelecidos, mesmo com tantas dificuldades e dilemas...

Finalizamos menos com uma conclusão ou ponto final do que com uma
sugestão para refletir sobre o tema do aborto na contemporaneidade. Afinal, esse
corpo, de quem é?

REFERÊNCIAS

BIROLI, Flávia. O debate sobre aborto. In: MIGUEL, Luis Felipe. BIROLI,
Flávia. Feminismo e Política. São Paulo: Boitempo, 2014.

DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Teoria e método dos estudos feministas:
perspectiva histórica e hermenêutica do cotidiano. In: COSTA, Albertina de
Oliveira. BRUSCHINI, Cristina. Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa
dos Tempos; São Paulo: Fundação Chagas, 1992.

MEIHY, José Carlos Sebe Bom. HOLANDA, Fabíola. História oral. Como
fazer, Como pensar. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2010.

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MEIHY, José Carlos Sebe Bom. RIBEIRO, Suzana Lopes Salgado. Guia prático
de história oral. São Paulo: Contexto, 2011.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. 20 anos de pesquisas sobre aborto no Brasil.


Brasília: Ministério da Saúde, 2009.

VILELLA, Wilza. OLIVEIRA, Eleonora Menicucci de. SILVA, Rosalina


Carvalho. Aborto e saúde mental. Direito de decidir. Múltiplos olhares sobre o
aborto. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. 280

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GÊNERO E HISTÓRIA ORAL: UM ESTUDO DA PROSTITUIÇÃO EM


CARAPEBA (1960-1980)

Maria Beatriz Nader

Mirela Marin Morgante**

Em finais da década de 1960, a cidade de Vitória vivia um período de 281


crescimento demográfico e urbano, em uma dinâmica de modernização da
economia capixaba. As indústrias se desenvolviam, cresciam os serviços
terciários e as atividades do Porto de Vitória e do Porto de Tubarão eram
intensas. Incentivos fiscais foram postos em ação para atrair investimentos
estatais e estrangeiros, aumentando ainda mais o parque industrial de Vitória
(NADER, 2008). Com a Política Nacional de Erradicação dos Cafezais, grande
contingente populacional advindo do interior capixaba se estabeleceu na capital,
atraídos pelas possibilidades de trabalho que as indústrias nascentes ofereciam
(SIQUEIRA, 2010).

A população de Vitória crescia consideravelmente e o governo estadual


de Cristiano Dias Lopes Filho (1967-1971) empreendia um verdadeiro processo
de modernização do estado e de sua capital. As ruas do centro de Vitória eram
cada vez mais frequentadas, principalmente por pessoas com razoável poder
aquisitivo, que iam fazer compras e se divertir nos estabelecimentos modernos
da capital (NADER, 2008). Conforme a revista Espírito Santo Agora, em uma
publicação de janeiro de 1982, na perspectiva de afastar do convívio cotidiano
da sociedade aquilo que ela mesma criou de ruim, de "limpar" a cidade, o
governador decidiu confinar as prostitutas em uma região específica afastada do


Professora do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História
Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo. Coordenadora
do Laboratório de Estudos de Gênero, Poder e Violência (LEG/UFES). E-mail:
marxis@terra.com.br
**
Doutoranda em História Social das Relações Políticas na Universidade Federal do
Espírito Santo. Vitória, Brasil. Integrante do Laboratório de Estudos de Gênero, Poder
e Violência (LEG/UFES). Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Beatriz Nader. E-mail:
mirela_marin_@hotmail.com

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centro, chamada de São Sebastião e muito conhecida na época como "Carapeba".


Hoje o local se situa no bairro de Novo Horizonte, no município da Serra (ES).

Ao que parece, assim que Cristiano Dias Lopes entrou no governo do


estado em 1967, baixou um decreto expulsando as prostitutas e as donas de
"pensão alegre" do centro de Vitória. Tal fato é narrado pelas memórias das
mulheres que exerceram o meretrício em São Sebastião e de outras pessoas que
viveram no período tanto freqüentando a região quanto ouvindo falar a respeito,
282
e, ainda, por uma reportagem jornalística produzida e dirigida por Amylton de
Almeida em 1978 no local. Maria José Marques, ex-prostituta de São Sebastião
cuja memória será foco privilegiado de análise deste artigo, também relata esse
processo de expulsão das meretrizes do centro. Chamada normalmente apenas
por Zezé, ela relata que teve que sair da boate 78 que trabalhava no centro, pois
os policiais tiraram as "donas de casa" de lá, de maneira que ela precisou
encontrar outro local de trabalho. Mas ela não se direcionou imediatamente São
Sebastião. Foi para uma boate chamada Casa Nova, em Jardim Camburi, onde
hoje – segundo relata – é o Banco do Brasil. Contudo, a Casa Nova também não
podia existir naquele local e acabou tendo que fechar as portas. Assim, Zezé foi
para São Sebastião – também chamado de Carapeba –, diretamente para a boate
de uma cafetina que se chamava Ivanilde.

Estabeleceu-se em São Sebastião um verdadeiro "território do prazer"


– como se refere Margareth Rago (1991) –, concentrando diversas casas de
prostituição, boates, bares e pequenos dormitórios de algumas mulheres
meretrizes. Mas, em princípios da década de 1980, o projeto de confinamento da
prostituição em São Sebastião iniciou um processo de decadência. As ruas
centrais de Vitória voltaram a ser frequentadas por protitutas e São Sebastião já
não era a única região concentradora das atividades que envolviam o mercado
do sexo (ESPÍRITO SANTO AGORA, 1982). Segundo a narrativa de Zezé, com
chegada da Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST) próxima da região, as
famílias começaram a se estabelecer por ali e a prostituição em São Sebastião
foi acabando, dando origem ao bairro de Novo Horizonte. Como ela diz: "eles
tiraram São Sebastião e colocaram Novo Horizonte".

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O ideal de confinamento da prostituição não conseguiu adentrar a


década de 1980, evidenciando o fracasso da tentativa de instituir e delimitar as
fronteiras da "zona boêmia", como era chamada a região. Em finais dos anos de
1980, o "território do prazer" de São Sebastião estava em pleno processo de
extinção e as mulheres que aí exerciam a prostituição tiveram que procurar
alternativas de sustento.

Não foi somente em Vitória onde houve o afastamento das zonas de


283
prostituição dos centros urbanos, tendo como parâmetro um ideal de
higienização e de ordenamento social cujo foco primeiro era a prostituição. Esse
fenômeno acompanhou o final do século XIX e todo o decorrer do século XX
em diversas cidades brasileiras, em conformidade com o avanço da urbanização
nos respectivos locais. São Paulo (RAGO, 1991), Rio de Janeiro (LEITE, 2005),
Londrina (BENATTI, 1996), Itajaí (SANSONOWICZ, 2010) e Florianópolis
(FERRARI, 2008), são alguns exemplos de cidades onde houve o confinamento
da prostituição em um território específico geralmente afastado dos centros
urbanos, em um verdadeiro imbricamento entre territorialidade e exclusão social
proporcionada pela configuração de uma nova "geografia do prazer".

Em diversas cidades brasileiras ao longo do século XX, mas


principalmente a partir de 1950, assistiu-se a uma dinâmica de regulamentação
e intervenção por parte do poder público sobre o mundo da prostituição. Pautado
em um projeto de ordenamento social, cujos princípios básicos eram a
higienização do centro das cidades e a garantia da moral e dos bons costumes da
família burguesa, o poder público confinou a prostituição em territórios
específicos, geralmente afastados dos centros urbanos e pouco habitados, onde
era possível exercer o controle médico e policial. Magali Engel (2004) explica
que, principalmente a partir de finais do século XIX, a medicina social brasileira
manifestou uma preocupação crescente com a sexualidade, tratando de temas
como o amor, o casamento, a prostituição e o aborto. Essa "vontade de saber do
cientista" se inseria em uma busca de normatização da vida cotidiana das
cidades, por meio da definição dos limites de uma "sexualidade sadia", do
controle e da disciplinarização dos corpos e dos comportamentos sexuais.

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É evidente que tais mecanismos de controle social tinham como base


uma concepção biologizante de gênero, de naturalização dos papéis sociais de
mulheres e de homens na sociedade brasileira. Mas os porta-vozes do corpo
social sadio não apenas se inspiravam no gênero enquanto categoria essencialista
e dual, como também auxiliavam sistematicamente no processo de construção e
reconstrução das identidades de gênero binárias. A medicina social apropriava-
se da naturalização do gênero, forjando distinções entre os sexos de maneira a
284
impelir os sujeitos sociais a buscarem continuamente sua identificação de
gênero, que estava estritamente relacionada com a organização social como um
todo.

Nesse sentido, o ideal de identidade feminina compreendia o papel


social de boa esposa, mãe e dona de casa, enquanto os homens deveriam se
adaptar ao seu papel de provedor econômico da família, um ser ativo, viril e
racional. Nessa construção sempre relacional de gênero qualquer identidade que
fugisse à norma seria considerada como doente e transgressora. Daí a
prostituição ser considerada uma doença social, verdadeira afronta à moralidade
pública, uma completa distorção do papel social feminino, uma depravação, uma
decadência, um perigo urbano. Mas também, necessária, lugar privilegiado de
exercício da atividade viril masculina, espaço ao mesmo tempo de preservação
da moral e dos bons costumes das mulheres honradas. Como salienta Simone de
Beauvoir (1980), na visão masculina historicamente construída sobre a mulher,
esta não é considerada de maneira positiva, mas de forma negativa, é o outro e,
enquanto tal é o mal, que é, contudo, necessário ao bem. Por meio desse outro,
o homem ascende ao todo, mas também se separa do todo "[...] é a porta do
infinito e a medida de minha finidade. É por isso que a mulher não encarna
nenhum conceito imoto; através dela realiza-se sem cessar a passagem da
esperança ao malogro, do ódio ao amor, do bem ao mal, do mal ao bem"
(BEAUVOIR, 1980).

A proposta deste artigo se insere precisamente na percepção e na


vivência de uma ex-prostituta acerca dessas contradições de gênero construídas
e reproduzidas por uma sociedade de dominação masculina. Como afirma Roger

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Chartier (1990, p. 59), os mecanismos de disciplinarização de corpos, condutas


e pensamentos não submete o sujeito "[...] à todo-poderosa mensagem ideológica
e/ou estética que supostamente o deve modelar". Há espaço para uma
reapropriação, uma reinterpretação ou mesmo uma resistência aos discursos. É
aí que incide o lugar de articulação entre as subjetividades dos sujeitos e as
representações, as práticas e as posições-de-sujeito construídas pelos porta-
vozes dos ideais da burguesia: médicos, sanitaristas, policiais e criminólogos. É
285
nessa dinâmica de formatação discursiva e simbólica das relações de gênero e
suas reinterpretações pelos agentes sociais, que deve ser pensada a história de
vida, carregada de subjetividades, de uma ex-meretriz da zona de confinamento
da prostituição na segunda metade do século XX, na Região Metropolitana de
Vitória.

Para tanto, a história oral será utilizada como fonte e método de


pesquisa, na modalidade da história oral de vida ou relato biográfico. Essa é uma
particularidade relevante da pesquisa, haja vista que a maioria dos estudos sobre
a prostituição no Brasil se utilizou de fontes como periódicos, discursos médicos
e criminológicos, documentos oficiais e algumas entrevistas com pessoas que
vivenciaram o período de territorialização da prostituição, mas muito
dificilmente foram entrevistadas as próprias prostitutas. Como salienta José
Carlos Sebe B. Meihy (2015, p. 76), é necessária a "[...] inclusão das vozes das
prostitutas no concerto analítico que preza seus testemunhos. Sob a pena de ser
mais um 'cruel silenciamento', a historiografia, sem o protagonismo dos
implicados nessa atividade, é passível de se tornar 'outro' – mais um – discurso
autoritário".

Nesse sentido, elegemos o testemunho da Maria José Marques, a Zezé,


para analisarmos a subjetividade representativa de uma mulher que exerceu o
meretrício em uma região formatada especificamente para este fim, nos anos de
1960. Sua trajetória de vida será esboçada, em um constante paralelo com as
normatizações sociais da época e levando-se em consideração a natureza
infindável, variável, artificial e parcial das fontes orais (PORTELLI, 1997).

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História oral de vida de uma ex-prostituta de Carapeba

Maria José Marques nasceu em 1947 em Alpercata, interior de


Governador Valadares. Foi a primeira filha mulher de 4 irmãs e nasceu depois
de 2 irmãos. Sua mãe era costureira, e morreu quando tinha 9 anos, com um
neném na barriga. Ela diz que a parteira que a matou pois não sabia fazer o parto.
Não poderia ter sido por uma questão de falta de recurso, afinal, na roça muitas 286
mulheres tinham até 15 filhos, porque a mãe dela não poderia? Ela demonstra
uma inconformidade com a morte da mãe. Quanto ao pai, era agricultor. Zezé
diz que ele era muito "sem vergonha", depois da morte da mãe passou a se
relacionar com uma mulher casada que morava perto de onde moravam. Além
disso, ela descobriu depois de bastante tempo que o pai teve duas filhas com a
avó dela. E acrescenta: "na roça as mulheres são iguais éguas minha filha, não
estão nem aí. Não pode ver uma pica dura. Isso pode falar?".

Certo dia, o pai deu algumas facadas em um homem e teve que fugir da
polícia. Ele então foi para central de Mantena, trabalhar como meeiro na roça.
Não pôde levar as crianças porque saiu com pressa, fugindo da polícia, mas
mandou alguém para buscá-las. Quando chegou lá, ele começou a se relacionar
com uma mulher. Zezé então decidiu ir embora, porque ela e os irmãos não
gostavam dessa mulher, e voltou a morar em Governador Valadares. De acordo
com ela, foi lá que ela "se achou", era uma menina e se formou, deixando de ser
virgem. Ao que parece, foi nesse período que os irmãos foram se separando, e
cada um foi para um local distinto, muitos foram para o Mato Grosso. "Depois
foi separando tudo, tudo acaba né." Percebe-se uma nostalgia, um lamento, uma
saudade do período em que vivia com os irmãos e a família.

Nota-se em Zezé um sentimento dúbio em relação ao pai. Ora ele era


"sem-vergonha", bebia muito, tratava mal a família, ora era um bom pai. Qual
seria o ideal de paternidade que permeia a subjetividade de Zezé? Beber, tratar
mal as crianças e a mãe, dar facadas em um homem, fugir da polícia, manter
relações sexuais indiscriminadamente, deixar que as crianças fossem embora do
lar e se separassem, esses aspectos não parecem influir na boa reputação que o

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pai teve aos olhos dela. Simplesmente por ele estar presente, não agredir
fisicamente a mãe e os filhos (porque os irmãos moravam perto) e trabalhar no
sítio e depois como meeiro, parece ter sido suficiente para Zezé ter guardado
uma recordação positiva do pai. Há uma naturalização dos papéis sociais de
gênero na narrativa de Zezé, como se fosse natural o comportamento paterno, na
mesma medida em que há uma culpabilização sobre a mulher pela sexualidade
aflorada do pai: "na roça as mulheres são iguais éguas minha filha, não estão
287
nem aí. Não pode ver uma pica dura". O motivo pelo qual a "pica estava dura"
ela não questiona.

Não foi possível delinear com clareza a trajetória de Zezé em


Governador Valadares, mas alguns elementos ficaram perceptíveis. Ela teve sua
primeira relação sexual com um médico que era bem mais velho, mas era bonito
e ela não se esquece do nome: Gilberto. Com ele, acabou engravidando, mas por
conta de ter ido para um hotel de prostituição, o médico não quis levar adiante o
relacionamento, motivo pelo qual ela diz que era para ela ter sido rica, mas que
não se arrepende de nada. Zezé diz que o conheceu quando estava atravessando
a ponte para ir para a casa onde trabalhava, ele veio a cavalo ou de carro e ela
pulou para dentro. "Eu era nova e era o capeta".

Fica evidente a idealização romântica de Zezé do encontro com esse


médico, aspecto característico das memórias sempre ressignificadas. Além
disso, Zezé culpa a mulher mais uma vez pelo comportamento masculino,
quando diz de maneira bastante natural que ele não quis assumir o filho por ela
estar se prostituindo. Provavelmente, ela já o fazia antes de conhecê-lo. Zezé
assume em diversos momentos de sua narrativa os estereótipos de gênero.

No hotel, ela diz que conheceu uma dona de boate de Vitória da


Conquista, que pegou ela e outras mulheres e levou para outro hotel nesta cidade.
Na época ela estava grávida de poucos meses do segundo filho, mas ela era muito
jovem e, conforme salienta, "dona de casa gostava de menininha, não gostava de
mulher velha não". Nesse período, ela teve dois filhos, um morreu e o outro ela
deu para uma mulher quando ele era bem pequeno. Ela diz que não gosta de falar

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do outro filho que teve, ninguém soube da existência dele. As pessoas sabiam
que ela teve um que faleceu, e não do outro que ela deu quando era bem novinho.

De Governador Valadares, Zezé foi para Colatina. Ela conta que uma
mulher a viu trabalhando no parque e quis levá-la para Colatina. Ela ficou
devendo para a mulher o valor da passagem e da diária. Mas Zezé não quis ficar
em Colatina, uma amiga a chamou para ir para Vitória, pois lá seria possível
ganhar em dólar com os estrangeiros. Então, elas fugiram de trem de madrugada,
288
caso contrário a mulher não deixaria elas saírem por conta da dívida.

Em Vitória, Zezé foi morar e trabalhar na rua General Osório, em uma


boate chamada 78, cuja dona se chamava Dalila. Ela diz que não gostava muito
de lá porque tinham muitos marinheiros. Eles eram bonitos, mas muito
bagunceiros e queriam manter relações sexuais com ela gratuitamente, de
maneira que ela não conseguia ganhar dinheiro suficientemente.

Até que a boate 78 teve que fechar as portas e Zezé precisou arranjar
outro local para trabalhar. Ela apresenta dois fatores para o fechamento da boate
no centro: primeiro, eles tiraram as donas de casa do centro e mandaram todas
para São Sebastião, segundo, porque a filha de Dalila era muito bonita e cobiçada
por um policial (policial era ruim naquela época). Contudo, ela não queria ficar
com ele, o que fez com que o policial mandasse fechar a boate.

Zezé foi então para uma boate chamada Casa Nova, em Jardim
Camburi. Mas também fecharam lá porque não podia ter boate naquele local.
Assim, Zezé foi para São Sebastião, diretamente para a boate da Ivanilde,
"aquela velha muchibenta. Mas ela era linda, linda, parecia uma bonequinha, de
louça. Como a pessoa acaba, né". De acordo com ela, Ivanilde era dona e também
"pegava homem". Só mulheres poderiam ser donas de boate, aos homens era
interditado.

Os estereótipos de gênero e de geração estão presentes a todo momento


na fala de Zezé. Ela se refere à velhice como um momento de degradação física
e psicológica sem se dar conta que ela também está enfrentando esse período na
vida e ainda em uma cadeira de rodas. Ela faz questão de frisar que a dona da

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boate também se prostituía, ela não estava ilesa dessa condição que ela
enfrentava, apesar de ser dona.

A boate da Ivanilde era freqüentada por muitos estrangeiros, tinha um


cozinheiro homossexual e muitas mulheres trabalhando. Ela buscava as
mulheres na Bahia, negras provavelmente, e fazia um embelezamento nelas. À
noite, Zezé conta que não as reconhecia, "pareciam umas bonecas". Depois, as
meninas precisavam pagar para a Ivanilde, segundo a Zezé, logo que saíam de
289
um programa realizado em um dos quartos da boate. Mas o caso de Zezé foi
diferente, ela chegou por iniciativa própria na boate e não ficou com dívidas com
a cafetina. Nesse momento da entrevista, Zezé demonstra preocupação em não
mostrarmos o que ela nos contou para a Ivanilde.

Zezé conta que a cafetina controlava bastante as mulheres da boate. Não


deixava elas ficarem com qualquer homem, queria que elas consumissem
bebidas alcoólicas para dar lucro para a casa – que não fosse cerveja, pois não
era lucrativo, teria que ser bebidas do tipo rum com coca-cola ou gim com fanta
– e instituída a obrigação das meninas ficarem no salão até o horário de fechar a
boate, às 2, 3 horas da madrugada. Além disso, Ivanilde brigava com as mulheres
no salão, como Zezé relata: "tinha mulher lá que ela arrancava a peruca dela,
deixava a mulher de pico de fora no meio do salão, quando o salão estava assim
de gente". Para Zezé, a cafetina ainda roubava os homens das mulheres, "sem
vergonha ela". Apesar disso, Zezé diz que se dá bem com a Ivanilde. O prédio
da Ivanilde que era boate, hoje são quitinetes alugadas para famílias ou pessoas
isoladas.

Zezé não nos relata muito como ela mesma se portava no salão da boate
em Carapeba, o que sentia, como vivia. A única narrativa que faz em primeira
pessoa é do momento do boteco, em que saía para beber com uma amiga. Mas
do cotidiano no salão, antes de descer para o salão, seus sentimentos, ela omite
ou negligencia. Se refere a "elas", como se ela mesma não fizesse parte daquilo,
como se fosse diferente. E ela acredita mesmo que era diferente das demais, pois
não devia nada à cafetina, se considerava auto-suficiente, independente.

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Os estrangeiros chegavam na boate e davam muito lucro para as


prostitutas. Elas podiam mesmo sair com eles, pegavam o taxi e saíam da boate.
Claro, o estrangeiro deveria pagar um valor para a cafetina para poder levar uma
de suas mulheres para fora da boate. Zezé conta que "os gringos que você botasse
a mão nele, ninguém mais punha, aquele era seu". Eles levavam as mulheres para
hotéis: "nós íamos para os hotéis mais os gringos, mas tinha que pagar para sair".
"A gente ia de taxi. Às vezes iam dois casais, quando os gringos tinham amigos".
290
Zezé conta que os estrangeiros eram muito bonitos, em alguns casos ela
tinha até vergonha de entrar em restaurante com eles. Acrescenta que já namorou
o Gerson Camata. Mas apesar de serem bonitos, Zezé diz que não sentia prazer
na relação sexual com os estrangeiros, só pensava no dinheiro que iria conseguir.
Ela acrescenta que era muito nova, não sabia o que era sentir prazer e excitação.
E conclui: "hoje que eu sinto tesão, agora é tarde".

Quando se refere aos momentos de saídas com os estrangeiros, Zezé


utiliza a primeira pessoa, demonstrando um papel ativo nessas dinâmicas.
Diferentemente dos processos que ocorriam nos salões e nos quartos da boate,
quando se trata das saídas de São Sebastião, Zezé torna-se sujeito. Torna-se
alguém que se diverte, ganha dinheiro, anda de taxi. Uma pessoa como outra
"qualquer", mas não uma prostituta. Parece que seu problema em se colocar
como sujeito ativo dentro de São Sebastião, de falar em primeira pessoa, se
relaciona à uma problemática em se identificar com a prostituição, em se encarar
positivamente como uma prostituta naquela época.

Quanto ao ato sexual propriamente dito, Zezé diz que os estrangeiros


não queriam sacanagem, mas os brasileiros sim, eles diziam tudo o que queriam
que elas fizessem com o pagamento que iria dar. Não obstante a afirmação de
que os estrangeiros não queriam sacanagem, Zezé diz em outro momento que os
gregos gostavam de manter relações sexuais pelo ânus e preferiam as mulheres
brancas com bunda grande e não mulheres da cor dela. Quanto aos japoneses,
ela diz que eles tinham o órgão sexual de pequeno porte. Em outra boate
chamada Atlântica, Zezé diz que só aceitavam as mulheres que fossem

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"completas", ou seja, que praticassem a sexualidade sem limites, utilizando as


artimanhas eróticas necessárias ao ofício.

Zezé conta essas questões como uma espécie de curiosidades. Ela mais
uma vez não se coloca na narrativa, não diz o que fazia e o que não fazia. Faz
questão de se manter fora da narrativa que ela mesma produz.

As ruas de Carapeba eram particularmente movimentadas na época da


CST, nas sextas-feiras, quando os homens estavam indo viajar para a casa de 291
suas esposas e passavam por ali antes. Os ônibus iam pegar esses trabalhadores
e fazer esse trajeto. Nos outros dias, os homens não podiam transitar pelas ruas
durante o dia, "se não a polícia metia o cassete". Somente na parte da noite lhes
era permitido circular pela região. Quanto às mulheres, podiam andar livremente
durante o dia e à noite teve épocas em que era proibido sair na rua depois das 22
horas.

Em certo momento, Zezé começou a namorar quem viria a ser seu


marido durante cerca de 30 anos. Ele era taxista, "grandão" e bonito, ficava com
as mulheres e era temido por elas. Zezé continuou a trabalhar na boate da
Ivanilde, mas começou a morar fora, em uma casa alugada, porque "morar em
boate naquela época e ter amante não dava não. Eu tinha que pagar o quarto toda
vez que ele entrava". Foi depois de bastante tempo junto com ele que Zezé
engravidou e teve seu filho. Com ele, Zezé diz que sentiu prazer na relação
sexual, assim como com outros homens que teve antes dele, exceto com os
estrangeiros.

Mas Carapeba chegou ao fim e Zezé saiu de lá com o marido. Ela diz
que não foi somente por ter acabado a zona que ela saiu, mas também porque o
marido a tirou de lá: "ele falou para mim: não, vamos parar e me tirou de lá".

Zezé atribui o término de Carapeba à chegada da CST, pois começaram


a chegar e se estabelecer as famílias, originando o nome de Novo Horizonte no
bairro. "Eles tiraram São Sebastião e colocaram Novo Horizonte". Segundo ela,
depois que se tornou Novo Horizonte, se a polícia pegasse um homem andando
por lá durante o dia eles retaliavam.

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Rio de Janeiro
Ed. Anpuh-Rio
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É interessante notar que Zezé emprega a terceira pessoa sempre que se


refere as medidas que foram tomadas para fundar ou acabar com São Sebastião,
ou para aquilo que foge de sua capacidade de entendimento. Ela não sabe quem
criou a zona e nem quem acabou com ela. As explicações de caráter político-
institucional não existem em seu leque de possibilidades de compreensão. Para
entender um fenômeno ela se refere à questões de âmbito privado, como quando
acabou a boate 78 no centro de Vitória, como quando o marido tirou ela de São
292
Sebastião. Tal análise reflete um campo de possibilidades disponíveis às
mulheres de sua época, que não sabiam ler e escrever e eram pobres. O próprio
gênero feminino foi construído como estando em um mundo a parte do
masculino, voltado para o privado, para a família, para as motivações
psicológicas, diferentemente do mundo dos homens, público, racional, viril.

Ela faz questão de se mostrar diferente das prostitutas de São Sebastião,


ela não brigava com outras mulheres, não apanhava de homens, não devia nada
para a cafetina. No entanto, no decorrer da narrativa ela vai se revelando, conta
um caso em que brigou com uma mulher por causa de um homem, conta que
apanhava, que tinha que se esconder da cafetina.

Hoje Zezé diz que não está "nem mais feliz, nem menos feliz. Eu pra
mim eu vivi tudo o que eu tinha pra viver, mas ainda tenho muito o que viver".

Considerações finais

Ciente das possibilidades e dos inconvenientes da História Oral, da


mesma forma que de seu caráter valoroso para a História do Tempo Presente, do
Cotidiano e das Mulheres, estas também enquanto parte dos "esquecidos da
história", o estudo aqui desenvolvido a utilizou como fonte e método de
pesquisa. Especificamente, realizou uma aproximação analítica com a história
oral de vida de uma ex-prostituta de São Sebastião, atentando-se para o aspecto
subjetivo, para as versões individuais dos fatos da vida. É uma narrativa de
memória sujeita às contradições, imprecisões e ajustes característicos da fala e
da lembrança, de maneira que as narrativas "[...] apenas se inspiram em fatos,

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mas vão além, admitindo fantasias, delírios, silêncios, omissões, distorções”


(MEIHY; HOLANDA, 2007, p. 34).

A memória de Zezé evidencia mesmo como é difícil estabelecer as


fronteiras entre o individual e o grupo, como salientou Alessandro Portelli
(1997), como a "verdade" pessoal pode coincidir com a imaginação
compartilhada. Mas a presença constante de estereótipos de gênero, de geração
e de classe social na narrativa de Zezé demonstra em que medida sua
293
subjetividade coincide com um imaginário social que está em consonância com
os princípios da dominação masculina. Mas tais estereótipos entram em
contradição com a sua vivência pessoal da prostituição e mesmo da velhice e da
pobreza. Ela então procede se distanciando do que ela mesma considera
reprovável e atribui aos outros os estereótipos. Ao mesmo tempo, Zezé não se
nega em falar sobre o assunto. Assume seu passado e seu presente. Fala palavras
de baixo-calão e critica a sociedade.

Seria necessário aprofundar na análise da história de vida de Zezé,


assim como de sua inserção dentro do "território do prazer" de São Sebastião.
Mas de qualquer forma, foi possível uma aproximação analítica frutífera, que
estabeleceu as relações entre os acontecimentos propriamente ditos, o referencial
teórico e metodológico, as pesquisas elaboradas sobre a temática e a história oral
de vida propriamente dita.

REFERÊNCIAS

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Nova Fronteira, 1980.

BENATTI, Antonio Paulo. O centro e as margens: boemia e prostituição na


'capital mundial do café' (Londrina: 1930-1970). 1996. 241f. Dissertação
(Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1996.

CHARTIER, Roger. A história cultural:entre práticas e representações. Rio de


Janeiro: Bertrand Brasil; Lisboa: Difel, 1990.

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ENGEL, Magali. Meretrizes e doutores: saber médico e prostituição no Rio de


Janeiro (1840-1890). São Paulo: Editora Brasiliense, 2004.

FERRARI, Maryana Cunha. Vila Palmira: prostituição e memória na grande


Florianópolis nas décadas de 1960 a 1980. 2008. 126f. Dissertação (Mestrado
em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal
de Santa Catarina, Florianópolis, 2008.

LEITE, Juçara Luzia. República do Mangue: controle policial e prostituição no 294


Rio de Janeiro (1954-1974). São Caetano do Sul: Yendis Editora, 2005.

MEIHY, José C. S. B.; HOLANDA, Fabíola. História oral: como fazer, como
pensar. São Paulo: Contexto, 2007.

MEIHY, José C. S. B. Prostituição à brasileira: cinco histórias. São Paulo:


Contexto, 2015.

NADER, Maria Beatriz. Paradoxos do Progresso: a dialética da relação mulher,


casamento e trabalho. Vitória: EDUFES, 2008.

PORTELLI, Alessandro. “O que faz a história oral diferente”. Proj. História,


São Paulo, n. 14, p. 25-39, fev.1997.

SANSONOWICZ, Onice. Dona Josefa mudou-se. Aqui mora família – códigos


e práticas da prostituição em Itajaí (SC) nas décadas de 1950 a 1980. In:
FÁVERI, Marlene de; SILVA, Janine Gomes da; PEDRO, Joana Maria (Orgs.).
Prostituição em áreas urbanas: histórias do tempo presente. Florianópolis:
Editora UDESC, 2010.

SIQUEIRA, Maria da Penha Smarzaro. Industrialização e empobrecimento


urbano: o caso da Grande Vitória – 1950-1980. 2. ed. Vitória: Grafitusa, 2010.

TREVISAN, Luiz (Org.). Os filhos do arbítrio: prostituição nas ruas, ecos da


incorporação, o "tititi" do verão. Espírito Santo Agora, Vitória, ano XI, n. 64,
p. 1-82, jan.1982.

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HIGIENIZANDO A FEMINIDADE: ESPOSAS, MÃES E


INFANTICIDAS ATRAVÉS DOS DISCURSOS MÉDICOS NO RIO DE
JANEIRO, 1834 – 1924

Jhoana Gregoria Prada Merchán*

Introdução
295
Os discursos médicos ilustrados do século XVIII que foram criados na
Europa e que logo se trasladam a suas colônias americanas, assim como os de
produção própria, começaram a difundir-se graças a jornais, manuais y literatura
com a intenção de estabelecer uma renovada mirada à feminidade, sentenciando-
a como hegemónica e universal. Com esse novo matiz, se começou por
enquadrar à mulher em seu próprio corpo, especialmente em seu órgão
reprodutor: o útero. Este órgão serviu para explicar o comportamento feminino
e assumira-o como altamente instável e imaginativo, donde ao mesmo tempo as
discussões sob as doenças da mulher como a histeria, loucura e incluso a
criminalidade também foram definidas e relacionadas com as mudanças
originadas em seus órgãos reprodutivos.

Baseando-se em um fato biológico, os médicos interpretaram a função


feminina para com a sociedade por meio da maternidade como uma circunstância
natural. Por essa razão, cresceu o interesse por tentar instruir à mulher sob a
melhor forma de exercer seu papel para contribuir com o progresso e a nova
ordem social. Neste sentido, não todas as mulheres eram boas mães, pois ainda
que algumas tinham a capacidade de parir, não todas eram verdadeiramente
mães, coisa que só se completaria com a existência do sentimento maternal e a
lactação.

A mãe ilustrada foi preparada para configurar a família moderna


burguesa, que separou igualmente as funções dos espaços públicos e privados,
confirmando-se ainda mais a diferenciação sexual e onde também deviam

*
PPGHIS/UFRJ/Bolsista Capes.

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prevalecer os sentimentos e o cuidado dos filhos no interior do lar dirigido


estritamente por indivíduos femininos. Deste modo, os médicos se converteram
em pedagogos sociais que abandeiravam uma sociedade amplamente higiênica
com componentes higiênicos, intervindo para isso em temas tão íntimos ou tão
privados como o sexo entre os casais. A mulher se converteu no centro de
atenção destes especialistas, porque através de ela se originava a reprodução de
indivíduos que deviam ser considerados como úteis e saudáveis. Portanto, a ideia
296
principal dos denominados discursos higiênicos foi a de evitar os chamados
“males sociais” dentro dos quais se incluíam as altas taxas de mortalidade
infantil e os crimes como o aborto e os infanticídios.

Questões de mulher
A especialíssima tarefa que ela é chamada a executar na
grande obra da constituição das sociedades, justifica
plenamente a extrema importância que se deve ligar ao seu
estado bastante complexo visto que a ele se prendem muitos
(porque não dizer todos?) problemas sociais (ARAUJO, 1883,
p 7).

O grande interesse dirigido ao estudo da mulher, fixou sua atenção


basicamente em sua função social entendida como reprodutora. Precisamente, é
o aspecto biológico e as mudanças que se produzem no corpo feminino os que
genrearam discussões sob a forma “higiênica” de fazer de aquelas boas esposas,
mas sobretudo boas mães, sem deixar de lado o obsessivo interesse pela relação
moral que acarreavam todas essas transformações durante o processo de
crescimento feminino.

As cargas que se lhe impuseram, foram tais, que basicamente se


estabeleceu que seu comportamento físico e sobretudo moral determinariam o
progresso e futuro da sociedade. Os médicos, especialmente, foram aqueles que
se enfocaram na pedagogia da higiene para intervir, orientar e dirigir os
processos sociais fundamentados na definição de “sociedade higiênica”, que,
portanto, continha cidadãos higiênicos que ratificariam uma reprodução social e
biológica o mais perfeita possível. Desta forma, o médico se apropriou do

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discurso moralizador em favor de conter os chamados “males sociais” e


pretendendo a ansiada “sanidade social”.

Dentro dessa “sociedade higiênica”, seus componentes mais


importantes não podiam deixar de ser higiênicos, assim, a família e o casamento,
se perceberam como principais objetivos a regulamentar através do discurso
médico. A preocupação destes, cresceu a partir da segunda metade do século
XIX no Brasil, onde os debates e discussões sob tais assuntos se fizeram
297
evidentes dentro das Faculdades de Medicina das Universidades Federais do Rio
de Janeiro e da Bahia, ademais da Academia Imperial de Medicina. O
estabelecimento e separação das funções sexuais dentro da sociedade deu como
resultado a intervenção e definição do destino feminino como imposto pela
natureza e confirmado pela sociedade.

O florescimento feminino: a puberdade

O casamento, a família e a maternidade adquirem um novo matiz de


interpretação, conservando certos aspectos tradicionais acerca de sua conceição
e ao mesmo tempo se adicionam novos elementos considerados como
apropriados para o melhor desenvolvimento social em função da reprodução
biológica. Primeiramente, o casamento, como tradicionalmente se concebeu,
seguiu atendendo-se como monogámico e de união permanente.
Equivalentemente, continuou interpretando-se como a base da sociedade e por
outro lado, esse novo matiz incluiu questões como um casamento mais por
afinidade e não por interesse, além de procurar um balance na idade do casal,
baseada logicamente numa idade positiva para a reprodução.

Ao mesmo tempo, o casamento foi exposto como uma forma de união


que só trazia benefícios para ambos sexos, mais especialmente para a mulher,
englobando neste sentido melhoramentos físicos e morais. O casamento se viu e
utilizou como remédio para muitas atitudes consideradas como desviadas tais
como a masturbação, a depravação, o celibato, a histeria e certas doenças
entendidas como de exclusividade feminina como as desordenes produzidas em

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seu organismo como consequência das alterações e transformações ocorridas em


seu útero.

Com referência a essas desordenes, a puberdade foi como uma etapa


física e moral muito importante para a mulher. Esse período se relacionou
intimamente com a diferencia sexual que representa a mulher e que a fazia apta
para a reprodução biológica. Durante a puberdade, se descreveu às mulheres
como altamente instáveis, pois estas experimentavam diversos sintomas do
298
“chamado da natureza”; ali, ela sofria de exaltações, palidez, aparecimento de
sua primeira menstruação, náuseas, sincopes, suores, melancolia, sentimentos
suicidas, entre outros.

Ante o aparecimento da puberdade, a mulher começava a sentir


interesse-desejo pelo sexo oposto, o que implicava que em ela também deviam
nascer sentimentos de amor e pudor. Igualmente, este período se considerou
como o causante de certas doenças como a histeria, ninfomania e loucura, razão
pela qual se pensou que a excessiva exposição de aquelas à sociedade e sua
assistência a espetáculos que representassem paixões, a música, a leitura de
romances e novelas podiam ser perniciosas. (ROHDEN, 2001, p. 122).

Conjuntamente com a puberdade, a menstruação foi classificada como


ponto chave dessa transformação natural. Este fluxo se descreveu com vários
nomes, tais como regras, luas, flores, purgações, trabalhos, épocas ao mesmo
tempo determinou a boa ou má saúde feminina (ROHDEN, 2001, p.121-122).
Períodos menstruais irregulares foram atribuídos como a causa de diversos
desordenes físicos e intelectuais; pelo contrário, períodos normais significavam
o primeiro passo para a realização de uma mãe sã. Para os médicos, a chegada
da primeira menstruação era de suma importância, tanto, que aconselhavam que
não podia ser antecipada ou tardia, por isso, foram várias as indicações
higiênicas dirigidas às adolescentes com a finalidade de que tiveram um
completo desarrolho de seu sistema reprodutivo.

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Esposa e mãe por excelência

O elemento essencial para compreender que uma mulher estava


capacitada para o casamento foi sem dúvida a puberdade. Ter uma puberdade
perfeita-completa era considerada a época ideal para o casamento, com idade
aconselhável que variava entre os 18 e 25 anos. O relevante e no que os
especialistas concordavam era na realização de um exame pré-nupcial para
avaliar se a mulher estava completamente pronta para esse estado. Para
299
(VIANNA, 1852), se consideraram indispensáveis para a união os seguintes
requisitos: a) idade, b) disposições anatômicas dos órgãos reprodutores, c) estado
psicológico normal dos contraentes, d) legitimidade da pessoa, e) certeza de sexo
y f) educação moral, sobretudo nas mulheres.

O casamento foi de tal relevância para a reprodução social que os


médicos intervieram com seus discursos higiênicos e marais em assuntos tão
íntimos do casal como o sexo marital. Ressaltavam a importância desta união,
os benefícios que trazia, suas desvantagens e como devia ser o ideal de
casamento higiênico. Propuseram teorias em função do porquê devia ser
impedido em alguns indivíduos com doenças como a loucura, sífilis,
tuberculoses, aneurismas, deformações e porquê era recomendável para outros
quando este curava o melhorava certas atitudes nervosas, muito mais nas
mulheres.

Do mesmo modo, (VIANNA, 1842) propõe que o casamento fazia com


que pouco a pouco os sintomas da histeria feminina desapareceram e com isso a
mulher podia chegar a seu cometido de esposa virtuosa e mãe. Contrariamente,
(ROZA, 1876) expõe que o casamento é o fundamento da família e a base da
sociedade, e por essa razão: “A mulher histérica é absolutamente incompatível
com a união conjugal; abstraindo mesmo da fatal herança que legaria a sua prole,
evidentemente estaria acima de suas forças, o papel nobre e digno de mãe de
família” (ROZA, 1876 p.72). Contudo, propõe o seguinte: “A estatista oferece a
influência benéfica do casamento sobre a mortalidade, a natalidade, a
criminalidade, a alienação mental e a tendência ao suicídio” (ROZA, 1876 p. 4).
De acordo com (LISBOA, 1870):

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Quase todos os práticos são acordes em considerar as afeções


histéricas, que se manifestam nas virgens e nas viúvas, como
consequência da privação do casamento. Com efeito é de
intuição, que as mulheres, principalmente as bem casadas, são
ordinariamente isentas de tais afeções, ao passo que elas são
muito comuns nos lugares onde existe o voto de castidade, por
exemplo, nos conventos... em todos estes casos o casamento
é de utilidade manifesta; e talvez seja ele o único remédio
capaz de debelar tão grandes males (LISBOA, 1870, p. 4).

Como se aprecia, havia contradições entre os médicos em quanto ao 300


benefício ou não que podia produzir o casamento, especificamente na cura de
algumas doenças consideradas quase sempre de exclusividade feminina como a
loucura e a histeria. A pesar de isso, a maioria dos especialistas consultados
tinham grandes expectativas em quanto ao proveito do casamento, não só como
um ente reparador de males físicos, senão também os de caráter moral. Por essa
razão, uma mulher apta biologicamente para a reprodução tinha seu estado ideal
dentro da união conjugal, despreciando-se, ao mesmo tempo aquelas cuja
castidade e seu estado de solteira as impossibilitava em teoria da honrosa tarefa
de ser mãe.

Sendo o casamento o fio condutor até a mais preciosa tarefa feminina,


se esperava que dentro de ele ocorresse a “milagre” de converter-se em mãe: “A
mulher como personificação mais grandiosa das razoes de ser da Humanidade,
tem como sagrada, e mais de todas, a sublime condição de ser mãe”
(CARVALHO, 1924 p. 11). Ao mesmo tempo, a maternidade se assume como
bandeira para propiciar e determinar –através da intervenção do Estado- a
diferenciação dos sexos e seu papel para com a sociedade. A maternidade,
adquire tanta vantagem que se relaciona diretamente com o progresso e a
civilização da pátria. O compromisso das mães com o Estado estava selado com
esse nobre lavor de criar e educar a uns filhos capazes de desenvolvesse
socialmente como homens e mulheres úteis ao país: “A defesa da maternidade é
a defesa da Pátria e da raça; é a defesa da humanidade na sua existência mais
vital, na sua verdadeira essência, no seu todo principal [...]” (CARVALHO, 1924
p. 13).

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De acordo com a medicina, a mulher tinha que receber um tipo de


educação adequada a sua futura ocupação de esposa, porém muito mais de mãe.
Se promove e exige o florescimento do amor maternal, que conjuntamente com
a lactação deviam ser fatos primordiais no cuidado dos filhos. A lactação foi de
tão grande proporção, que também podia julgar-se como imprudente ou negativa
de acordo ao tipo de mulher que amantasse, chegando ao ponto de atribuísse-lhe
vícios e perversões.
301

Mulher, criminal em potência

Para meados do século XIX, muitos especialistas começaram a


preocupar-se por como entender o crime. A partir desse momento, se instaurou
a teoria da “degenerescência” que entendeu o crime como o resultado de um
psiquismo, de uma perturbação mental que finalmente conduzo ao entendimento
do mesmo como fruto de uma natureza individual. O crime começou a julgar-
se como produto de uma doença e como atributo pessoal. Assim, se relacionaram
os comportamentos delitivos a um certo biodeterminismo aprimorado pelas
teorias da Escola Positiva o Escola Antropológica do Direito.

O crime feminino se entendeu como uma patologização de seu


comportamento, onde ao mesmo tempo se começa a explicar as diferencias entre
os homens e as mulheres com base em seus órgãos sexuais. Em função disso, se
concebeu à mulher como um ser dominado pelos seus órgãos de reprodução
sexual: os ovários e o útero. Precisamente, a partir do século XIX, graças ao
campo da ginecologia, se começou a vincular os distúrbios ginecológicos com
os mentais. Essa ideia também se fiz presente no campo psiquiátrico, que
estipulou definições sob o comportamento patológico feminino como causa
fisiológica e anatômica das mulheres.

Durante este século, também se abrem debates sob doenças como a


histeria, apreciada como a consequência de uma instabilidade nos órgãos sexuais
femininos. De tal modo, a histeria se assumiu como um padecimento que afetava
maioritariamente às mulheres, e a mulheres solteiras ou viúvas especialmente. A

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sexualidade foi o elemento de maior importância para que, por exemplo, os


seguidores da teoria da alienação pensassem a ideia da histeria como
potencialmente feminina. Portanto, partiam do preceito de que o desejo sexual
feminino era nulo, e tomavam essa consideração para estabelecer condutas
normais ou patológicas (RINALDI, 2015, p. 75).

Já para finais do século XIX, algumas teorias médicas apontavam a que


a atividade sexual trazia benefícios no tratamento da histeria. Igualmente,
302
também se pensava que a falta de ela podia desencadear o histerismo. A ideia
proeminente, era que a mulher devido a sua natureza estaria mais próxima à
loucura em comparação com seus pares masculinos, sendo o elemento principal
desencadeador da histeria o ciclo menstrual. Ao mesmo tempo, a gravidez, o
parto e o pós-parto foram considerados estados durante os quais as mulheres
eram mais propensas a desenvolver desequilíbrios mentais.

Precisamente, os profissionais do direito e da medicina no Brasil, ao


momento de entender e debater a criminalidade feminina, se basearam na ideia
de que a “natureza feminina” podia determinar um comportamento perigoso.
Estes especialistas pensavam que as alterações fisiológicas das mulheres podiam
afetar seus nervos, conduzindo-as ao crime. Especialmente, durante a fase
reprodutiva, o corpo feminino sofria tais alterações que induziam basicamente a
um corpo perigoso e instável, que de acordo com alguns de eles, só era possível
achar sua redenção através do exercício da maternidade.

A desordem do parto e o infanticídio

A loucura puerperal foi um tema amplamente discutido, sobretudo para


finais do século XIX e princípios do XX. Este estado, considerado tão delicado
para a mulher recebeu vasta atenção por parte dos médicos-legistas em função
dos distúrbios que se apresentavam na mulher grávida, parturiente ou pós-
parturiente que podia conduzi-a muitas vezes ao crime, especialmente ao
infanticídio. Para (FRANCO, 1877) a loucura puerperal podia manifestar-se:
[...] durante a prenhes, no momento do parto, após o
delivramento, e durante o aleitamento; compreende assim o

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conjunto das perturbações mentais que podem ter lugar nas


três diferentes fases das funções geradoras –gestação,
parturição e lactação. Entre os casos de loucura puerperal os
que se desenvolvem depois do parto são os mais numerosos
(FRANCO, 1877, p. 38).

De acordo com este mesmo autor, a loucura puerperal tinha dois tipos
de causas: a) as predisponentes, onde se incluem a herança, anemia, estado moral
da mulher, estados anteriores de loucura, idade e sexo da conceição –sobretudo
303
quando era masculino era mais predisponente- y b) as ocasionais, tais como, ação
simpática do útero, emoções morais, lactação, eclampsia, primeira menstruação
despois do parto, ação mecânica do útero, dor, lóquios, cloroformização
(anestesia). Igualmente, expressa que a loucura puerperal podia manifestar-se
em três formas: a) mania, que incluía sintomas como insônia, ideias falsas,
delírios e atos agressivos, b) melancolia, onde a mulher podia experimentar um
sentimento de tristeza e depressão, y c) monomania, apresentando a mãe ideias
únicas ou de um único tipo.

Os debates médicos sob a loucura puerperal, incluíram os efeitos


nocivos ou não que a educação podia ter na mulher e deste modo desenvolver
com mais facilidade um estado de alteração mental. Para alguns autores como
(SANTOS, 1878) a educação feminina era predisponente à histeria:
É de importância capital a educação, considerada como causa
predisponente das manifestações histéricas[…] A educação,
que recebe, em geral a mulher, nela determina a ociosidade
plástica e a atividade espiritual, existência essa que actua de
modo desfavorável sobre seu organismo (SANTOS, 1878, p.
28).

Concorda com isso (ARAUJO, 1883), formulando o seguinte: “A


educação é uma causa predisponente geral de loucura, isso é incontestável e se
revela nas mulheres em que esse efeito da educação física e moral chamado
nervosismo é muito fácil de verificar” (ARAUJO, 1883, p. 55). Se põe de
manifesto que uma mulher durante um estado de loucura puerperal está movida
por um sentimento de excessiva paixão. Contudo, era especialmente a mulher
que se encontrava em um estado de gravidez ou de pós-parto a que era mais
vulnerável a desordenes emocionais: “A mulher prenhe pode sentir-se impelida

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a vários atos estranhos. A mulher parida e a que aleita sente-se impelida a matar
e de preferência ao recém-nascido [...]” (ARAUJO, 1883, p. 69).

Para alguns destes autores, as mulheres que se achavam baixo o efeito


da loucura puerperal estavam alienadas e a alienação metal eximia à acusada de
total responsabilidade. Portanto, a loucura puerperal e seus efeitos podiam serve-
lhe perfeitamente como atenuante a uma infanticida. Pelo contrário, outros
criticavam fortemente as mães que assassinavam a seus filhos:
304
A mulher, cuja organização se presta tão admiravelmente ao
amor maternal, ao instinto de conservação de sua prole,
também pode ser como os demais homens, a monstruosa
infanticida a mentirosa desvergonhada, e a egoísta que com
subterfúgios busca espoliar ao condenar ao imerecido opróbio
(AZEVEDO, 1852, p. 3).

O tema do infanticídio e suas infanticidas foi um assunto bastante


debatido com calorosas discussões e afirmações bem contundentes em
reprovação moral por este tipo de crime. Não é de estranhar-se que isso haja sido
assim, pois é bem sabido que delitos desta natureza sempre criam consternação
devido a sua tipicidade tão excepcional onde a atuação criminal da mãe se julga
e se compadece, mas também se reprova a morte de uma criatura recém-nascida:
O mundo acusa a mulher de haver matado o fruto de sua
maternidade –é um crime, um crime horrendo! Que fazer? O
Juiz não crê nas lagrimas sentidas de aquela que se defende
de monstruosa arguição; acorde o médico; vê, examina,
interroga e pensa; seus gestos, sua placidez, sua mudez e
ansiosamente interroga pela mãe que implora perdão: o
médico em fim da a sentença divina, o juiz a sanciona com a
da humanidade (AZEVEDO, 1852, p. 8).

Precisamente, se nota dentro destas discussões que o infanticídio foi um


tema escabroso e de difícil comprovação; para o médico, ressaltavam algumas
impressões no Código Criminal Brasileiro de 1830 quando não se especificava
o tempo em que se devia considerar uma criança como recém-nascida, atendendo
a que o infanticídio se precisou como a morte dada de forma violenta a um
recém-nascido. Assim, resultava uma ação bastante complicada para os
médicos-legistas comprovar um infanticídio:
É por sem dúvida difícil e melindrosa a posição do médico-
legista, sempre que tem que emitir o seu juízo em um caso de

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infanticídio; ele porém deve sempre ter uma das mãos na


balança da justiça e na outra o grande livro da ciência
(CARVALHO, 1870, p. 14).

Para os médicos era de suma importância a autopsia que realizavam nos


recém-nascidos para poder determinar se a criatura era de nove meses ou menos,
se havia nascido recentemente, se era completamente saudável, se nasceu vivo
ou não e qual teria sido a causa de sua morte, e por tanto estabelecer se houve ou
não infanticídio. Ao mesmo tempo, se lhe presentavam dificuldades ao avaliar à 305
acusada porque deviam determinar se a mesma havia estado gravida, se havia
tido um parto recente e comprovar a ligação de uma criança assassinada com sua
suposta mãe infanticida. Essa delicada tarefa se fazia já o suficientemente
espinhosa para o médico-legista que argumentava que era muito mais trabalhoso
determinar tais fatos quando o cadáver do recém-nascido se encontrava em
avançado estado de putrefação.

Equivalentemente, se contavam como causas dos infanticídios a honra,


a miséria e a escravidão, por isso se recomendava uma boa educação religiosa e
moral como os meios mais eficazes para evitar tais atos. Desta forma, o tema da
educação feminina entra em discussão; para alguns especialistas era prejudicial
porque podia alentar a loucura e a histeria, e para outros era benéfica para evitar
crimes geralmente ocorridos por causa das perturbações mentais como os
infanticídios.

Outro ponto que se põe em evidencia ao analisar as teses é que os


infanticídios eram apreciados como crimes comuns na cidade de Rio, embora
também reconheciam a dificuldade para descobri-os e muito mais para julga-os:
“Podendo-se considerar o infanticídio uns dos crimes mais frequentes na
sociedade; é com tudo um de aqueles que mais facilmente escapam a ação da
justiça” (CARVALHO, 1870, p. 14).

Consequentemente, se deduzia que os infanticídios eram habituais


porque era frequente achar muitos infantes nas ruas e em outros lugares da
cidade. Quando esses recém-nascidos eram achados mortos, a polícia era
acionada e os enviavam ao necrotério para fazer os exames que quando

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revelavam uma morte sobrevinda de um crime, geralmente não se descobriam


aos culpáveis. Se contrariamente a criatura se encontrava com vida, se
conformavam com envia-os à casa de expostos. Desta maneira, os médicos
criticavam as altas taxas de mortalidade de recém-nascidos e a ineficiência o
desinteresse por parte das autoridades em inquirir estas situações, que alegavam
ser muito provavelmente consequências de infanticídios não investigados:
O Sr. Dr. Souza Lima tratando deste assunto em um artigo que
escreveu no primeiro número da Revisita dos Cursos Praticos 306
e Theoricos no ano 1885, assim se exprime: “Desde que me
ocupo com o estado de assunto desta natureza, desde que
como lente de Medicina Legal, há oito anos, acompanho os
movimentos dos tribunais judiciários e das estatistas policiais
da corte, não me lembro de ter visto uma só vez algum levado
a barra do Jury para responder pelo crime de infanticídio
(MARANHÃO, 1890, p. 13).

Se perguntavam, ironicamente, os médicos-legistas, se em um país


que preconizava a civilidade e progresso, os crimes de infanticídio não existiam.
Outros, ao contrário, estavam convencidos de sua inexistência:
É possível, sim; mais creio que devem ser raríssimos os casos
de infanticídio aqui nesta capital, porque temos a roda dos
enjeitados que eu reputo o meio mais eficaz para impedir este
crime. Efetivamente sendo as principais causas do
infanticídio –a honra e a miséria- ninguém precisa assassinar
uma criança desde que pode leva-a a roda, a onde se apagam
os vestígios de desonra e onde acha abrigo e alento a
indigência (MONTECLARO, 1890, p. 20).

O ponto neurálgico dos debates sob infanticídios se relacionava com


sua penalização, especialmente dentro do Código Penal brasileiro de 1890 e sua
principal atenuante, a honra:
Aqui no Brasil, parece a este respeito e em relação aos outros
países civilizados do mundo atravessamos uma idade de ouro,
porque não há memória recente ou remota de que tal delito
tenha sido debatido na barra dos tribunais, ao passo que em
outras nações, como a França são precisas leis
excepcionalmente severas para o punir (JORGE, 1884, p. 5).

Os médicos-legistas, faziam duras críticas aos artigos referentes ao


infanticídio, sobretudo dentro do Código Penal de 1890, onde se estabeleceu um
tempo determinado de sete dias para designar o termino recém-nascido –com o

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qual muitos não estavam de acordo e se aderiam ao pensamento do Dr. Souza de


Lima quem expressava que um recém-nascido era aquele que não excedia de 24
horas de nascido- e em quanto as penas que eram relativamente mais brandas em
comparação com outros países europeus como França e Portugal onde se
manteve a pena de morte. Ao mesmo tempo, se criticava o castigo imposto ao
infanticídio em comparação com o homicídio; alegando, alguns que na mãe
infanticida sempre havia premeditação e superioridade de forças, ademais de
307
permanecer sempre comprovada a inocência da vítima. Incluso, referindo-se ao
infanticídio Honoris Causa, por exemplo, (PACHECO, 1983) considerava que
devia ser punido com severidade:
Que dirá a sociedade em cujo seio está a mulher devassa
infecionada com sua moral corrompida? Que dirá o tribunal
que tem de julgar uma criminosa que não se importou de
praticar o mais hediondo de todos os crimes que ela podia
cometer (matar a seu próprio filho) com tanto que ocultasse
ao marido ou ao meio em que vivia o produto maternal das
relações que com prazer e muito consencionalemente ela
entretive, aparentando assim dotes que nem de longe possuía?
(PACHECO, 1893, p. 9).

O ponto central das controvérsias surgia quando se debatia a moral e a


honra de uma mãe infanticida:
Seria o motivo exclusivamente de ordem moral, ocultar a
desonra própria? Não é possível!? O legislador enganou-se a
si próprio, não refletiu convenientemente ou pensou
erradamente: porque, em primeiro lugar, si a mulher procurou
se ver livre de seu filho, para ocultar a desonra, é este um
argumento contraproducente, não tem razão de ser, visto que
essa mulher não tem honra alguma nem coisa que de ela se
aproxime, pois que já ela não a possuía quando entreteve
relações que não podia ter. Em segundo lugar, preguntaremos
nós, a quem queria ela ocultar, ao marido ou a meio em que
vivia? (PACHECO, 1893, p. 10-11).

Para certos especialistas, a mulher infanticida merecia não só uma


condena dura, senão inclusive a pena de morte:
Toda mulher que comete o infanticídio para ocultar a desonra
própria (na frase do legislador), deve ser punida com a pena
última de nosso código, trinta anos por tanto, isto porque
infelizmente já não existe a pena de morte de que somos
apologistas (PACHECO, 1893, p. 12).

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A honra, muito alegada nos juízos de infanticídio, serviu para que


muitos casos para abrandar a pena da acusada, contudo, de acordo com a maioria
das teses revisadas, estes autores eram contrários a esta ideia: “[…] onde há
honra não será preciso a intervenção caritativa do legislador, assim como, onde
ela não existir, por mais expresso que seja o véu com que se encubra a
devassidão, o escândalo sempre aparecerá” (PACHECO, 1893, p. 19). Para estes
profissionais, alegar vergonha não justificava a atuação de uma mãe assassina; a
308
julgavam incapaz de defender uma honra que já tinha por perdida ao cometer o
pecado amoroso e, portanto, era impossível refugiar-se em uma coisa que já não
existia:
Ainda neste ponto nos parece injusto o Código Penal
brasileiro. Que a lei atenue a cumplicidade de uma mulher que
pratica um crime para evitar a causa de sua desonra, é logico,
é natural; mas que considere menos criminosa que qualquer
outro individuo a mãe que rouba a vida a um ser frágil e
inocente, não para evitar, mais para ocultar a sua desonra, que
pela letra do código legislador já supõe existir, e com efeito
existe, é absurdo, é revoltante (MARANHÃO, 1890, p. 10).

A mãe infanticida que usava como atenuante o querer salvaguardar sua


honra, de acordo com João Gonçalves Lopes Filho, era duplamente criminal:
“Tal vez haja nisto uma razão de ser, porem entendo que seria uma agravante,
pois ai seriam dois crimes: um da honra e outro do infanticídio, e ainda mais, a
mãe matando a criança encobre a desonra?” (LOPES, 1898, p. 9). Ao mesmo
tempo, (LEITÃO, 1903) alegava:
[…] não consideramos a honoris causa como uma
circunstância atenuante. É que achamos inteiramente bárbaro
o fato de procurar-se ocultar a desonra cometendo-se um
crime que, só por si, e muito mais repelente do que a falta que
ele propõe ocultar (LEITÃO, 1903, p. 16).

Continua o mesmo autor:


[...] acharia como nós, justa a exasperação da pena para punir
uma mãe que, pelo próprio fato do crime, provou ser indigna
deste nome, pois colocou o seu amor materno abaixo dos
preconceitos sociais, privando-se do mais doce instinto da
natureza, votando-se a infâmia depois de ter envergonhado a
si e aos seus (LEITÃO, 1903, p. 18).

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Outro ponto importante que estava relacionado diretamente com a


honra, tem que ver com a legitimidade do recém-nascido e sua identidade como
peso ante a lei:
No parto é a sociedade grandemente interessada para poder
determinar as ligações a sua legitimidade, porque delas
dependem todas as relações do estado de família ou de cidade,
e até as vezes de liberdade (Azevedo, 1852: 19). Declaram-se
legítimos, filhos nascidos após a época marcada pela
natureza; declaram-se ilegítimos os nascidos em iguais
circunstancias; uns são legítimos porque a reputação de sua 309
mãe é ilibada, outros ilegítimos porque a mãe não provou na
conduta a virtude social de seu estado (AZEVEDO, 1852, p.
26).

Para estes especialistas, uma gravidez ilegítima não dava à mãe a


categoria de honrada:
Com efeito o filho nascido de uma prenhes ilegítima, não é a
causa da desonra de sua mãe, ele representa apenas a
consequência natural da falta em que esta caio. É a mulher
que tentando praticar semelhante crime não desarma seu
braço diante do filho, que em linguagem muda, mas eloquente
implora compaixão para sua inocência, que esquecendo os
sagrados deveres de mãe, vibra o golpe de marte sobre o
produto inconsciente de sua falta, revela o mais requintado
instinto de perversidade (MARANHÃO, 1890, p. 11).

No que se refere à identidade jurídica do recém-nascido, alguns autores


como (MONTECLARO, 1890) especifica que a privação de uma vida ainda
vacilante de uma criatura acabada de nascer não podia ser comparada com a
perdida de uma vida adulta, como sucedia no caso do homicídio:
[…] pode-se igualar o dano produzido pela supressão de uma
criança ainda ameaçada em sua existência, pela própria
contingencia da idade, de um ente, que se tem capacidade
jurídica, ainda não teve deveres cívicos, e que ainda não foi
útil a ninguém, ao acusado pela supressão de um adulto, de
um chefe de família, suponhamos, que é útil à sua família, a
sociedade, a pátria e a humanidade? O dano imediato o
reflexo no infanticídio será igual ao do homicídio
(MONTECLARO, 1890, p. 15).

Começa desta forma as defesas em função do infanticídio Honoris


Causa. Estes manifestos foram realmente estranhos, já que de vinte teses

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consultadas sob infanticídio, só dois doutorandos se expressaram em favor desta


ideia. Justamente, o primeiro deles é (NEVES, 1839), quem sentença o seguinte:
Merece muita atenção e humanidade, tanto de parte do
médico legista, como do magistrado, que impõe a pena, o
estado moral da mulher acusada do crime de infanticídio:
tanto mais que este crime é mais vezes cometido por
mulheres, não de condição baixa, mais por aquelas de uma
honra e reputação imaculadas. Estas, possuídas por
sentimentos nobres, excogitam imensos meios para encobrir
sua prenhes e dar à luz debaixo de todo o segredo; então, não
é raro que se exponham involuntariamente ao risco de 310
extinguir a vida de seu filho. Sim, o susto, o receio de perder
sua honra e de patentear sua fraqueza excitarão sua alma e
produzirão em seu organismo um estado como de alienação.
De certo um tal estado deve antes suscitar-nos compaixão do
que ódio e vingança (NEVES, 1839, p. 48).

Se põe de manifesto a importância de tomar em conta a loucura


puerperal:
O crime supõe necessariamente razão, liberdade e vontade;
por quanto sem o abuso destas três faculdades morais não se
pode admitir um crime. O parto é algumas vezes tão
tumultuoso, tão perigoso, em uma palavra tão oposto a
natureza, que perturba todo o organismo, suspende, por mais
o menos tempo, o curso da vida, transtorna o uso de todas as
faculdades do corpo e da alma. Que sucedera então a esse
amor, a essa ternura materna, a esse sentimento moral, que
fazem com que uma mãe prodigalize os cuidados ao menino,
que deu à luz, e que o aguarde de acidentes, que ameaçam sua
débil existência? (NEVES, 1839, p. 51).

Conjuntamente, se argumenta a suposta pouca perigosidade que


representava uma infanticida para a sociedade; em primeiro lugar porque o
infanticídio era um tipo de crime passional, de alienação mental, com um motivo
único, que seria pouco provável de repetição e segundo porque o dano que
causava à sociedade era mínimo, privando-a de uma vida sem identidade:
O assassinato de uma criança inspira piedade, consideração,
mas não produz medo nem terror, não produz em todos os
cidadãos uma certa desconfiança sobre a própria segurança
individual porque são, difíceis a sua repetição e a sua
difundibilidade (MONTECLARO, 1890, p. 15).

Continua o autor em sua defesa:

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Os motivos que levam a um indivíduo a assassinar uma


criança são sempre especiais, ao passo que múltiplos são os
que podem leva-o a praticar um homicídio. É por isso que o
infanticida não é tão perigoso à sociedade quanto o homicida
(MONTECLARO, 1890, p. 15).

Por essa razão, a infanticida merecía uma pena mais branda:


Que tribunal terá coragem de condenar a pena última a uma
raparinga filha de pais honrados que, seduzida por promessas
ilusórias e caricias falazes de um D. Juan, caindo-lhe na
armadilha, tenha concebido, mas que depois, envergonhada, 311
arrependida, angustiada por mil agruras, assassina a criança
nascida, para ocultar a sua desonra? (MONTECLARO, 1890,
p. 15-16).

O segundo autor que faz uma defesa explicita à mãe infanticida


desonrada é (OLIVEIRA, 1898), quem propõe uma interessante ideia sob a
conceição social da honra:
Sim; são as falsas ideias de honra, medo, o pavor diante o
estigma da família, dos amigos, da sociedade, que levam
muitas e muitas infelizes, vítimas das seduções espalhadas
nessa mesma sociedade que, entretanto, se julga tantas vezes
com direito a ser cruel, são tais falsas ideias de honra mantidas
pelo pervertido meio social, que levam ao infanticídio muitas
e muitas desventuradas (OLIVEIRA, 1898, p. 16).

Em definitiva, as discussões sob o infanticídio e suas causas se fazem


mais intensas na segunda metade do século XIX para traspassar essa discussão
até a primeira metade do século XX. Assim, se percebe que não foi consonante
e tampouco fácil de tratar este tema porque haviam muitos elementos em jogo,
sobretudo os de ordem moral. Neste sentido, é claro que a defesa da honra de
uma infanticida era delicada porque chegava ao extremo de ser tão ambivalente
como os mesmos juízos e sentenças. Defesas e detratores envolvem as disputas
destes especialistas em medicina legal, onde fundamentalmente começavam as
controvérsias, que sem dúvida alguma se faziam mais complexas ao momento
de julgar a uma mãe infanticida.

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Considerações finais

Através da análise destes valiosos textos se tem um reflexo muito claro


do pensamento médico do século XIX e princípios do XX para a cidade do Rio
de Janeiro. A chamada higienização social se converteu em um ponto quase
obsessivo para estes especialistas na busca por curar os “males sociais”.
Portanto, foi a mulher o alvo de atenção, a ela se dirigiram todas as miradas ao
compreender-se que era através de elas e de seu estudo que se podia construir a
312
ordem e o progresso social. Assim, a feminidade se relacionou diretamente com
a reprodução e a maternidade como destino de todas aquelas mulheres que
serviam de modelo social.

Parece interessante que temas relacionados basicamente com a


reprodução biológica feminina (puberdade, menstruação, maternidade,
menopausa) hajam sido abordados por especialistas em medicina não só desde o
ponto de vista físico, senão também moral. A moralidade feminina estive em alta
estima porque sinônimo de uma mulher honrada era o de uma esposa submissa
e mãe abnegada. Ao mesmo tempo, as perturbações e certas doenças como a
histeria e a loucura se consideraram quase estritamente de ordem feminino por
ser esse corpo muito mais instável e passional que o masculino.

Obedecendo a transtornos ocorridos nos órgãos sexuais femininos se


entendia que uma mulher era mais propensa ao desequilíbrio, mas também à
perigosidade, tanto, que era mais predisposta ao crime. Graças a estas novas
interpretações, a mulher permaneceu enquadrada não como um ser inferior, mas
sim como um ser muito diferente que por natureza estava destinada à papel da
maternidade. A utilidade da mulher se enfocou essencialmente em sua função de
mãe e por isso, por exemplo, as infanticidas eram mães que escapavam
grandemente de esse ideal feminino. ¿Então, como tratar médica e moralmente
a uma mulher que assassinava a seu próprio filho? Indiscutivelmente, a
motivação e o posterior castigo eram pontos neurálgicos de aquelas discussões
judiciais, onde a resolução dos médicos-legistas foi determinante.

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ROMPENDO O SILÊNCIO: VOZES DE MULHERES AGREDIDAS NO


INTERIOR DE MINAS GERAIS

Érika Oliveira Amorim*

Maria Beatriz Nader**

Introdução 319
Um dos efeitos da História Social, que emergiu no século XX, foi o de
ampliar o mapa do conhecimento histórico e legitimar novas áreas e sujeitos de
investigação. As transformações da historiografia favoreceram a inclusão das
mulheres e da abordagem de gênero nos estudos históricos. A presença das
mulheres na Historiografia vem crescendo nas últimas décadas e permitindo o
enfoque do cotidiano e a emergência de uma pluralidade de protagonistas. Dessa
maneira, a produção historiográfica abandona a centralidade do sujeito universal
para abordar experiências coletivas e individuais e, ainda, as subjetividades de
mulheres, transpondo o silêncio e a invisibilidade as quais estavam relegadas.

Com o estudo do cotidiano feminino emergem relações de poder


existentes no âmbito privado, diluídas nas relações de trabalho e na família, nas
quais permite‐se conhecer problemas sociais enfrentados por elas, como a
violência que se manifesta de diversas formas e atinge todas as classes sociais.

Assim, o presente texto analisa de que maneira a dominação masculina é


reproduzida na sociedade e como, por meio da transmissão cotidiana de valores,
são reforçadas as relações de poder, legitimando a violência masculina praticada
contra as mulheres.

*
Doutoranda em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do
Espírito Santo (UFES), bolsista Capes. Professora no Curso de História da Universidade
do Estado de Minas Gerais (UEMG), Unidade Carangola. E-mail:
erikaoamorim@hotmail.com
**
Professora Titular do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do
Espírito Santo (UFES). Coordena o Laboratório de Estudos de Gênero, Poder e
Violência (LEG/UFES). E-mail: marxis@terra.com.br

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Tendo em vista que o fenômeno da violência tem-se manifestado de


forma crescente em cidades de pequeno porte, no interior do país, o lócus desse
estudo é o município de Carangola-MG, localizado na Zona da Mata do Estado.
Os modos de vida em cidades menores conferem estreita relação entre espaços
públicos e privados, mútuo controle, julgamento moral e intensa recriação
narrativa das ações de indivíduos e suas famílias, reforçando discursos
normativos patriarcais.
320
A pesquisa também analisa os dados do Sistema Único de Saúde (SUS),
através do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), do
Ministério da Saúde, que fornece os registros de atendimento por violência
doméstica contra crianças, mulheres e idosos. Nesse texto, são apresentados os
dados de 2014, fornecidos pela Secretaria Municipal de Saúde da localidade
analisada.

Família e patriarcado

O patriarcado caracteriza-se por habilitar os homens a dominar as


mulheres e representa uma das causas da opressão feminina, contribuindo para
o controle da sexualidade, do papel reprodutivo e da atuação das mesmas na vida
política e social.

Para Bruschini (1990), o patriarcado é um sistema sócio-político que


subjuga as mulheres subordinando-as à realização de serviços domésticos aos
membros da família. Essa autora considera que o papel da família como agência
socializadora tem sido enfatizado por correntes de pensamento, tal como a
“Teoria da Ação Social”, de Talcott Parsons. De acordo com esse teórico, o
indivíduo incorpora gradualmente um conjunto de regras e normas de conduta,
sendo reflexo da vida social que experiencia.

No Brasil, em função do legado colonial agrário e escravocrata, o modelo


de família patriarcal foi se estabelecendo e se ajustando a realidades e
especificidades de diferentes regiões do país. Emergiu no Nordeste colonial
brasileiro, na sociedade açucareira descrita por Gilberto Freyre (2004) como um

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extenso grupo composto pelo núcleo conjugal e uma ampla rede de agregados,
escravos, parentes, concubinas e bastardos. Com o passar do tempo, o
patriarcado foi alterando sua configuração, mas manteve suas premissas
pautadas no poder e na autoridade masculinos. Com o advento das
transformações do século XIX e o início da industrialização, o formato das
famílias brasileiras foi modificado para um modelo de família conjugal,
perdendo as funções econômicas e políticas que detinha e passa a concentrar
321
suas atribuições específicas de procriação e disciplina do impulso sexual
(BRUSCHINI, 1990, p. 63).

O modelo de família urbana, com valores típicos da sociedade burguesa,


surge no contexto da abolição da escravidão, da crescente imigração e o
desenvolvimento industrial, do século XIX. Percebem-se neste período, algumas
alterações nas configurações familiares, como, por exemplo, o casamento das
mulheres que antes era realizado na faixa etária de 12 a 18 anos e passa a ser
feito entre os 18 e 24 anos. Azzi (1987) nos diz que tal mudança decorre de uma
maior preparação cultural da mulher para a vida. Disserta ainda que nesse
período a infidelidade masculina vai deixando de ser praticada abertamente, o
número de filhos passa a diminuir, mas a virgindade continua a ser apregoada,
fazendo com que o controle das jovens, por parte dos pais fosse mantido.

Esse modelo de família pautado nos ideais burgueses começou a ser


detentor de seus próprios códigos morais, tendo em vista que cada família se
tornou um núcleo isolado e restrito. Na obra “Família e conflito conjugal”
Carmine Martuscello (1992) discorre sobre dois tipos de estruturas familiares: a
aristocrática e a burguesa, e como a família burguesa tornou-se um microcosmo
e estabeleceu mais autonomamente seus critérios de comportamento e
funcionamento, em comparação com a família aristocrática. Para a autora, essa
diferenciação colocou a família cada vez mais como célula independente e
isolada, trazendo autonomia ao mesmo tempo em que trouxe alheamento e
solidão. Acrescenta ainda que, com a modernização da vida familiar a mulher
arcou com o ônus da restrição de sua atuação social. Nesse novo arranjo a vida
familiar exigia um tipo de mulher dedicada ao cuidado dos filhos e com a

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organização da casa, da mesma forma em que sua sexualidade prestava-se mais


a atender aos desejos do homem do que aos seus. Na família conjugal moderna,
a mulher seria a esposa afetiva, ainda submissa ao marido, o qual deveria ser o
único provedor do lar. Essa nova configuração familiar transformou a mulher
em “rainha do lar” e fortaleceu a hierarquia com relação a papéis femininos e
masculinos, determinando ao homem a função de chefe da casa e à mulher, sua
subalterna e dependente.
322
O patriarcado reforça discursos normativos de papéis sociais. Não
designa especificamente o poder do pai, mas o poder dos homens ou do
masculino enquanto categoria social. Nesse sistema de organização social as
mulheres são hierarquicamente subordinadas aos homens e os jovens são
subordinados aos homens mais velhos.

Analisado como um tipo de dominação tradicional de Weber (2000), o


patriarcado caracteriza-se pelo poder exercido pelo senhor, se orienta pela ideia
dos dominados por um sistema de normas baseadas na autoridade pessoal,
fundada nas crenças, nos costumes, na autoridade, na obediência que se faz de
forma espontânea, sem relação com princípios jurídicos, e dessa forma, torna-se
inquestionável pelas tradições. Para Weber (2000) a dominação é um caso
especial de poder e um dos elementos mais importantes da ação social. O autor
define a dominação como uma possibilidade de impor ao comportamento de
terceiros a vontade própria. Dessa forma, o patriarcado se caracteriza, na esfera
econômica, por um sistema de produção baseado na organização familiar, e na
esfera política como um sistema de comando sob a autoridade do patriarca no
interior da família.

Mesmo com as transformações pelas quais a família tem passado nos


últimos anos e com novos arranjos familiares em construção, ainda há que se
caminhar para uma mudança equitativa entre homens e mulheres. Isso porque,
na medida em que a família e a relação entre os sexos mudam, percebe-se que a
ideia do patriarcado cristaliza a dominação masculina, o que impede pensar a
mudança.

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Dominação masculina: corpo feminino, poder e violência

A sociedade investe na naturalização do papel social da mulher como


mãe e responsável pelos afazeres domésticos, bem como pela socialização dos
filhos. Nessa lógica o espaço doméstico foi sendo desvalorizado da mesma
forma que todo o tipo de trabalho ou atuação nele. No âmbito privado a
dominação masculina se faz presente e é reiterada pelo patriarcado enquanto
sistema de exploração.
323
Na família, a hegemonia masculina se ancora no patriarcado como
sistema de “dominação-exploração”, como considera Saffioti (1987). Para a
autora, a dupla dimensão do patriarcado está presente tanto quando a mulher
desempenha o papel de dona de casa quanto no de trabalhadora. No primeiro ela
é explorada pelo marido, nas atribuições domésticas, e no último, ao ser obrigada
a aceitar menores salários é explorada pelo empresário capitalista.

Pierre Bourdieu (2005) ao analisar a dominação masculina através da


descrição etnográfica da sociedade cabila disserta que o corpo é o lugar onde se
inscrevem as disputas pelo poder. É nele que o capital cultural está inscrito e o
sexo define se os indivíduos serão dominados ou dominadores. Concepção que
é amplamente debatida por feministas como Simone de Beauvoir (1970), Donna
Haraway (2004) e Judith Butler (2003).

Segundo Bourdieu (2005), nessa estrutura, o corpo representa o lócus


onde se inscrevem as disputas pelo poder, é a materialização da dominação que
é feita de uma forma natural, está “na ordem das coisas”. Nesse processo de
naturalização da dicotomia homem x mulher instituições como a Escola, a Igreja,
o Estado e a Família representam as estruturas que têm o poder de moldar a
sociedade. A conseqüência de tais representações sociais engendradas pelo
capital simbólico é, para Bourdieu (2005), o quase consenso de que a mulher é
o ser menos capaz, o sexo frágil que precisa de um protetor e, além disso, ainda
hoje é relegada a seu papel de reprodutora. Ao homem, é reservado o atributo da
virilidade, da força, da proteção. O autor destaca que a virilidade é entendida
como capacidade reprodutiva e sexual que proporciona distinção na esfera
pública, em oposição à mulher, cuja honra é considerada negativa como também

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são negativas suas armas: a astúcia diabólica e vingança. A exaltação masculina


está diretamente relacionada à virilidade construída e validada por outros
homens e seu reverso, segundo Bourdieu (2005), é motivo de vergonha.

O modelo binário marcado institucionalmente, o corpo como ordem


instituída (diferença biológica como justificativa da diferença socialmente
construída entre os gêneros) e a imposição da visão androcêntrica na estrutura é
destacado no trecho:
324
A força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela
dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como
neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que
visem a legitimá-la. A ordem social funciona como uma
imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação
masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão social do
trabalho, distribuição bastante estrita das atividades atribuídas
a cada um dos dois sexos, de seu local, seu momento, seus
instrumentos; é a estrutura do espaço, opondo o lugar de
assembléia ou de mercado, reservados aos homens, e a casa,
reservada às mulheres; ou, no interior desta, entre a parte
masculina, com o salão, e a parte feminina, com o estábulo, a
água e os vegetais; é a estrutura do tempo, a jornada, o ano
agrário, ou o ciclo da vida, com momentos de ruptura,
masculinos, e longos períodos de gestação, femininos
(BOURDIEU, 2005, p. 18).

E assim, a diferença biológica entre os sexos, especificamente a diferença


anatômica entre os órgãos sexuais, pode ser vista como uma justificativa natural
para a diferença socialmente construída entre os gêneros, e, principalmente na
divisão social do trabalho. A definição social dos órgãos sexuais é, para
Bourdieu (2005), não apenas um simples registro de propriedades naturais, mas
sim um produto de uma construção efetuada à custa de uma série de escolhas
orientadas. Nessa perspectiva, o homem e a mulher são vistos como duas
variantes, superior e inferior, da mesma fisiologia. Essas relações de dominação
irão se estender para as áreas do trabalho e consequentemente nas relações
sociais e, ainda se fazem presentes, sobretudo no meio rural. O sistema de
valores produzido pela sociedade e reproduzido nas relações familiares afirma a
situação de dupla exploração da força de trabalho feminino e legitima a inserção
da mulher na produção sem questionar a divisão sexual do trabalho doméstico.

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A dominação masculina e o patriarcado legitimam o poder dos homens


de determinar a conduta das mulheres e por estarem naturalizados nas relações
sociais criam permissividade com relação a violência cometida contra as
mulheres. No Brasil são inúmeros os casos de feminicídios veiculados pela
mídia, que alcançam grande apelo popular devido à maneira pela qual são
noticiados, nos quais a violência é justificada pelo tipo de roupa que a vítima
usava ou por não seguirem o comportamento desejado e imposto pela sociedade.
325
A força da ordem masculina pode ser aferida pelo fato de que ela não
precisa de justificação, como nos afirma Bordieu (2005). A violência simbólica
está de tão forma incorporada na relação de dominação que parece ser algo
natural. É por meio dessa dominação simbólica que a sociedade tolera a violência
praticada, pois passa a ser baseada em punições ao que é tido como desvio. Desse
modo, o corpo da mulher é visto como propriedade masculina e instrumento de
poder.

Michele Perrot (2003, 2012) trata sobre a historicidade do corpo da


mulher e como ele marca a existência feminina pela onipresença nos discursos
médicos, de poetas ou políticos e também das imagens de toda natureza
(quadros, esculturas) que povoam as cidades. É por meio dele que o poder
masculino é exercido e demarcado, pela violência:
o corpo feminino pode receber “corretivos” pelo chefe da
casa, como uma criança indócil, pelo chefe da casa,
depositário da ordem doméstica. Quem ama castiga. Bater na
mulher é uma prática tolerada, admitida, desde que não seja
excessiva. Se os vizinhos escutam os gritos de uma mulher
maltratada, não interferem. O homem deve ser o rei em sua
casa” (PERROT, 2012, p. 48-49).

A supremacia masculina perpassa todas as classes sociais, nos


contingentes populacionais brancos e não brancos e é construída socialmente,
pautada em padrões de comportamento e representações de poder. O poder nas
relações homem-mulher se materializa na violência sutil1, física, sexual, moral,

1
Conceito desenvolvido pela historiadora e pesquisadora Maria Beatriz Nader (2006).
Trata-se de um tipo de violência que é abstrata, impalpável, além de ser somente
percebida pela pessoa que a experimenta. Não deixa marcas físicas no corpo, mas magoa

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patrimonial. Violência essa que faz parte do processo de construção da


masculinidade desde os tempos mais remotos.

Schnoor (2013) nos apresenta que, no Brasil entre o período Colonial e


Imperial, grupos masculinos compostos por homens brancos livres deviam
conhecer uma mulher antes dos 12 anos e ter sífilis, nesse período da vida, dava
a eles a imagem de homens. O autor acrescenta ainda que durante o século
XVIII, com o avanço das estradas e maior circulação de pessoas e mercadorias,
326
a masculinidade passa a teatralização em lugares públicos. Tal fato se dava pela
obediência que os subordinados e escravos deviam dar a outro homem. Essa
autoridade, na maioria das vezes, era realizada através da violência.

Com o avançar do tempo, no período republicano, a construção da


masculinidade continua a ser reforçada e pautada na virilidade. Nesse período,
com a urbanização dos grandes centros, novos modelos de masculinidade e
virilidade passaram a ser valorizados. Nos novos padrões, ser homem era ter um
corpo preparado para operar máquinas, consideradas extensões do corpo
masculino. Possuir um automóvel era sinal de poder, o homem dominando a
máquina. Outro fator de exibição da masculinidade do período estava na posse
das modernas pistolas Colt, garantia de defesa do homem e de sua família
(SANT´ANNA, 2013).

No século XX, com o impacto do feminismo e da inserção das mulheres


em diversos segmentos do mundo do trabalho, a mídia incorpora relevante
ferramenta produtora de esquemas dominantes do que é “ser homem”. O
surgimento do debate nacional sobre sexualidades masculinas e femininas
dissonantes fez com que as revistas passassem a orientar estilos de vida, padrões
de consumo e a pedagogização dos corpos dos sujeitos.

Na atualidade, a masculinidade continua a ser construída pela sociedade


e difundida pela indústria cultural, reforçada pela publicidade, pelos esportes e
redes sociais. A violência como forma de manutenção do poder permanece
atrelada a virilidade e ao “ser macho”.

e transforma o interior da vítima. A humilhação e o constrangimento são dois exemplos


que podem ser destacados como violência sutil.

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A pesquisa de Novaes (2013) confirma a constatação da masculinidade


como produção discursiva que modela atitudes, comportamentos e sentimentos.
Aqueles que seguem esse discurso podem ser considerados “homens de
verdade”. Nessa pesquisa, as academias de luta, a violência e a valorização dos
atributos força física ganham relevância e o corpo do homem é portador de um
status de poder. O estudo leva a compreender que, no século XXI, novos
dispositivos sociais disseminadores de discursos produtores de subjetividade
327
servem como referência para a constituição de masculinidades. Nos discursos
dos entrevistados, percebeu-se a cristalização da hierarquia e a dominação
masculina, introjetada por mulheres que frequentam a academia atraída pelos
homens que lá treinam.

Hanna Arendt (2011) afirma que nada mais comum que a combinação
entre a violência e poder. Para a historiadora o poder emerge onde quer que as
pessoas se unam e que é legitimado pelo fato desta união. Onde um domina
absolutamente, o outro está ausente. A violência aparece onde o poder está em
risco, mas deixada a seu próprio curso, conduz à desaparição do poder
(ARENDT, 2011, p. 73).

O grande sustentáculo da violência contra as mulheres está no


componente cultural da sociedade, que prescreve um comportamento ideal para
homens e mulheres.

Quando o homem pratica algum ato de violência contra a mulher está


exteriorizando sua incapacidade de verbalizar seus sentimentos de frustação ou,
ainda, porque está respondendo aos estereótipos patriarcais que insistem em
permanecer na sociedade (NADER, 2006).

Dessa mesma forma, Arendt (2011) afirma que a violência advém da


raiva que aparece quando há razão para supor que as condições poderiam ser
mudadas, mas não são. O uso da violência multiplica o vigor humano e pode ser
justificável, mas nunca será legítimo. Recorrer à violência em face de condições
ultrajantes é extremamente tentador, completa a autora.

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Os dados da pesquisa

O município de Carangola está situado na Zona da Mata de Minas Gerais,


na confluência com os Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo, com uma
população de 32.296 habitantes2, sendo 16.604 mulheres. Essa cidade não possui
Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) e os casos são
atendidos pela Delegacia de Polícia e encaminhados para o Ministério Público,
que por sua vez, direciona as mulheres para atendimentos psicossociais no
328
3
Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) .

Uma forma de identificar o número de casos de violências ocorridas nos


municípios brasileiros é através do Sistema de Informação de Agravos de
Notificação (SINAN), do Ministério da Saúde, que fornece os registros de
atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS) por violência doméstica contra
crianças, mulheres e idosos. A notificação da violência doméstica, sexual e/ou
outras violências foi implantada no SINAN, do Ministério da Saúde, em 2009.
A notificação deve ser realizada de forma universal, contínua e compulsória, nas
situações de suspeita ou confirmação de violências envolvendo crianças,
adolescentes, mulheres e idosos, atendendo às Leis 8.069 (Estatuto da Criança e
Adolescente), 10.741 (Estatuto do Idoso) e 10.778 (notificação compulsória de
violência contra a mulher), quando do atendimento ambulatorial das mulheres
nos hospitais e unidades de Pronto Atendimento. A notificação é realizada pelo
gestor de saúde do SUS, mediante o preenchimento de uma ficha de notificação
específica (WAISELFISZ, 2015, p. 12).

A fim de conhecer os dados referentes a violência na cidade de


Carangola, foi solicitado junto a Secretaria Municipal de Saúde o acesso aos
dados do SINAN. Foram franqueados os registros dos anos 2014 e 2015. No ano

2
Dados populacionais do Censo Populacional realizado pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, e, seguindo a previsão deste Instituto, a
população estimada nos dias atuais seria de 33.412 habitantes.
3
O Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) é uma unidade
pública estatal, de abrangência municipal ou regional, referência para a oferta de
trabalho social a famílias e indivíduos em situação de risco pessoal e social, por violação
de direitos, que demandam intervenções especializadas no âmbito do Sistema Único de
Assistência Social (SUAS) (BRASIL, 2011).

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de 2014 houve 43 registros de violência contra a mulher e em 2015 foram 33


casos. Optou-se por analisar os dados do ano de 2014 devido ao número maior
de ocorrências, comparado ao ano anterior.

O gráfico 1 demonstra quem são os agressores apontados nos


prontuários:

Gráfico 1 – Agressores 329

Agressores
25

20

15

10

0
ex- ex-
namor descon cônjug
genro irmão pai namor cônjug amigo
ado hecido e
ado e
Agressores 1 1 1 1 2 4 5 5 23

Fonte: Dados da pesquisa (2016)

Percebe-se que em todos os registros os agressores são do sexo masculino


e que, exceto os que são categorizados como “desconhecidos”, os outros 38
agressores possuem algum tipo de relação de proximidade com as vítimas. Tal
fato denota que os conflitos estão circunscritos ao ambiente doméstico e que
envolvem pessoas que compõe o âmbito das relações pessoais das mulheres.

O espaço doméstico é o local onde as relações de poder e dominação mais


se manifestam. É nele que ocorre a maior incidência nos casos de violência

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contra a mulher, que preferencialmente, é cometida por pessoas conhecidas


(WAISELFISZ, 2015).

As relações autoritárias e de dominação se desenvolvem no interior da


família e se reproduzem na sociedade. Assim, a família é o lugar do adestramento
para a adequação social (BRUSCHINI, 1990, p. 55). Nesse espaço os homens
utilizam seu poder de dominação para ajustar condutas femininas que não sejam
compatíveis com os códigos morais patriarcais nos quais foram adestrados e
330
agem com violência para colocá-los em prática.

Violência e agressividade fazem parte da dinâmica identitária masculina


tendo em vista que tais atributos compreendem o recurso dos quais lançam mão
na iminência da perda do poder que exercem. Dessa maneira, pode-se afirmar
que a violência e o poder estão imbricados nas relações sociais.

Os números apresentados pela pesquisa, referentes a violência praticada


por homens que estão diretamente relacionados às vítimas tendem a ser
naturalizados fazendo com que esses casos sejam tratados como problemas de
foro privado, gerando banalização da violência perante a sociedade.

Os dados permitem ainda lançar questionamentos a respeito de quem


seriam esses “desconhecidos”, apontados pelas vítimas. Será que de fato eram
mesmo “desconhecidos’? Por se tratar de uma cidade de pequeno porte, as
pessoas estão muito próximas umas das outras e suas relações sociais e
profissionais também. Alegar que a agressão foi cometida por um
“desconhecido” poderia ser uma maneira de se resguardar quanto ao julgamento
moral da comunidade? Seria uma forma de proteção quanto a possíveis
represálias?

Essa pesquisa possui muitas perguntas a serem respondidas e é por isso


que a História Oral constitui-se como ferramenta fundamental para encontrar as
respostas. Em sua fase inicial de realização de entrevistas tem-se conversado
com mulheres que são atendidas no CREAS.

O contato com duas entrevistadas permitiu constatar que a violência é


cometida por pessoas próximas a elas. Uma sofreu violência sexual do pai e,

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posteriormente do marido. A outra entrevistada sofria violência física do filho,


usuário de drogas. Nesse contato prévio e ainda incipiente percebeu-se a
disposição das depoentes em participarem da pesquisa, principalmente “para que
outras mulheres se encorajem a denunciar e buscar ajuda” – como afirmou uma
delas.

Dessa maneira, esse trabalho que se desenvolve e utiliza a história oral


de mulheres que sofreram violência em cidades de pequeno porte abre
331
possibilidades para se debater a realidade vivenciada por elas e os
enfrentamentos os quais estão submetidas cotidianamente.

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SACERDOTES “CONVERSANDO COM MOSSOS E MININOS EM


LUGARES EXCUSOS”1: A SODOMIA CONTRA CRIANÇAS EM
PORTUGAL NO SÉCULO XVII

Veronica de Jesus Gomes*

334
Concluamos numa palavra: Lucien Febvre, durante os dez
últimos anos de vida, terá repetido: ‘história ciência do
passado, ciência do presente’. A história dialética da duração,
não é à sua maneira, explicação do social em toda a sua
realidade? E portanto do atual? Valendo sua lição nesse
domínio como uma proteção contra o evento: não pensar
apenas no tempo curto, não crer que somente os atores que
fazem barulho sejam os mais autênticos; há outros e
silenciosos.

(Fernand Braudel, 1992, pp. 58-59)

De criança e de violências na Época Moderna

Qual era a concepção de criança e de infância no Portugal Seiscentista,


quando sacerdotes cometeram atos sexuais com meninos? Quais foram as
estratégias utilizadas para atraí-los? Onde aconteceram as agressões sexuais?
Como os meninos foram vistos pelos inquisidores? Essas são algumas reflexões,
ainda incipientes, que este artigo busca responder, ao analisar, a partir das
contribuições dos conceitos de “violência de gênero” e “violência simbólica”, os
contatos sexuais com meninos de alguns padres portugueses, dentre eles, Santos
de Almeida, João de Mendonça da Maia e João Botelho – os dois últimos, além
de sacerdotes, eram também mestres – condenados à fogueira pelo crime de
sodomia pelo Tribunal de Lisboa na primeira metade do século XVII. Suas ações
retratam uma forte relação de poder, que não se diferenciam muito do que
acontece nos dias atuais, e que refletem “uma manifestação de ‘potência’, um

1
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, Processo 5007.
*
Doutoranda em História Moderna na Universidade Federal Fluminense. Bolsista do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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ato de dominação” masculina, que relaciona sexualidade e poder (BOURDIEU,


2014, pp. 38-39)

Atualmente, as crianças são vistas como seres que necessitam de zelo e


proteção. A prática de violência sexual contra elas e os adolescentes é
caracterizada como as “atividades sexuais com um adulto, ou com qualquer
pessoa um pouco mais velha ou maior, nas quais haja uma diferença de idade,
de tamanho ou de poder, em que a criança é usada como objeto sexual para
335
gratificação das necessidades ou dos desejos do adulto”, “sendo ela incapaz de
dar um consentimento consciente por causa do desequilíbrio no poder ou de
qualquer incapacidade mental ou física”2. Entretanto, no Portugal da Idade
Moderna, a concepção de infância era muito distinta da hodierna e a criança não
era pensada como um ser inocente que carecia de proteção e de cuidados. Silva
Monteiro (2006, p. 227) lembra que as crianças apareceram como confitentes e
denunciadas nos livros das visitações inquisitoriais ao Brasil. O mesmo ocorreu
com os meninos que aparecem nos processos aqui estudados e “sua presença fica
clara também nos regimentos inquisitoriais, em que, mesmo usufruindo de
cuidados especiais, a criança não estava isenta de possíveis diligências”.

De acordo com Guimarães Sá (2010, p.73), Ariès não diferenciou a


infância e a adolescência, questão avançada por Natalie Zemon Davis e
reforçada por autores que se dedicaram especificamente à adolescência,
autonomizando tais estudos relativamente à infância. Para a autora, algumas
fontes portuguesas diferenciaram as duas fases da vida, ainda que esses limites
sejam fluidos: “havia fronteiras cívicas, jurídicas e religiosas entre estas duas
idades, embora nem todas forçosamente coincidentes umas com as outras”. As
fontes eclesiásticas, a exemplo das constituições sinodais, assinalavam que a
menina depois dos doze e o menino depois dos catorze anos, poderiam ter
vontade própria. O Regimento inquisitorial de 1552, confirmado pelo de 16133,

2
Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes. 1ª Vara de Infância e da Juventude
do Distrito Federal. Disponível em <
http://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/glossarios-e-
cartilhas/violenciaSexual.pdf> Acesso em: 20 de agosto de 2016.
3
MONTEIRO, Alex Silva. O pecado dos anjos: a infância na Inquisição portuguesa,
séculos XVI e XVII. In: FEITLER, Bruno; LIMA, Lana Lage da Gama; VAINFAS,

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determinava que os “menores de idade de discrição” – “os quais anos de


discrição são catorze no varão e doze na fêmea”4 – não eram obrigados a abjurar5
publicamente.

A historiadora Lana Lage (2006, p. 237) sublinhou a importância de se


pensar a maneira pela qual cada sociedade relaciona criança e sexualidade e
como o conceito de infância é elaborado em cada cultura. Para Philippe Ariès
(1981), tanto na Idade Média, quanto no início dos tempos modernos e ainda
336
durante muito tempo, especialmente nas classes populares, as crianças
misturavam-se aos adultos. Segundo Guimarães Sá (2011, p. 73) havia “uma
circulação de crianças que as apartava cedo da convivência exclusiva com a
família biológica respectiva”. Elas poderiam ser entregues aos cuidados de amas
de leite, aos mestres de um ofício, empregadas como criados domésticos ou de
lavoura, emigrar, ser enviadas para um colégio, ficarem sob os cuidados de
outros nobres para serem educadas, ou ainda residirem no paço régio. Tais
modalidades parecem obedecer ao lugar social por elas ocupado, a exemplo do
menino Pantaleão, criado do sacerdote Santos de Almeida (ANTT, IL, Proc.
6587), que, em 1645, confessou seus contatos sexuais com a criança: “o servia
de lhe faser alguns mandados hu’ minino que se chama Pantalião e seria então
de seis annos”. O menino era filho de uma mulher pobre, que também prestava
serviços para o padre. Esse cenário certamente deixou as crianças em situação
de vulnerabilidade, facilitando as práticas sexuais forçadas.

Ronaldo (orgs.). A Inquisição em Xeque. Temas. Controvérsias. Estudos de Caso. Rio


de Janeiro: EDUERJ, 2006, pp. 227-228. Monteiro destaca que o Regimento de 1640
estabelecia que o menino menor de dez anos e meio e a menina com menos de nove
anos e meio não abjurariam nem publica nem secretamente na mesa. Entretanto, havia
a possibilidade de que abjurassem na mesa, sem que tivessem atingido a discrição:
“porque nestes termos a malícia supre a idade, conforme o direito”. Idem, p. 229.
4
Regimentos do Santo Ofício da Inquisição de Portugal – 1552 e 1613. In ASSUNÇÃO,
Paulo de & FRANCO, José Eduardo. As Metamorfoses de um Polvo. Religião e Política
nos Regimentos da Inquisição Portuguesa (Séc. XVI-XIX). Lisboa: Prefácio, 2004, p.
112.
5
O mesmo que confessar e detestar o erro em matérias de fé. BLUTEAU, Raphael.
Vocabulario Portuguez e Latino. Coimbra, 1712-1728. Disponível em <
http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/abjurar> Acesso em 31 de ago. de
2016. Verbete: abjurar.

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Termos distintos foram utilizados, na documentação analisada, para se


referir às crianças e aos adolescentes abusados sexualmente pelos sacerdotes e
tanto a Inquisição quanto os denunciantes parecem ter diferenciado a infância e
a adolescência. Nos processos dos padres Santos de Almeida e João de
Mendonça da Maia apareceram os verbetes “minino”, “mosso” e “mancebo”
para designar os indivíduos por eles molestados ou com quem se relacionaram
sexualmente. A palavra “Minino” caracterizou a criança de 6 anos e “mosso”, a
337
de 10, 11, 12 ou 13 anos. Até o momento, não encontramos o verbete “criança”,
que, no dicionário do padre Raphael Bluteau (1728), aparece grafado de duas
formas: “CRIANÇA de peyto” e “criança”, que é o mesmo que “menino”, ambas
descrições muito vagas.

O verbete “menino” significa tanto o “rapaz, que ainda não chegou aos
sete annos de idade”, quanto o menino dos sete até aos catorze anos. Em suma,
ao mesmo tempo em que poderia ser uma “criança muito pequena”, poderia
tratar-se de um “rapaz pequeno”6. Ambiguidade que pode estar vinculada ao que
Ariès7 caracterizou como uma peculiar imprecisão das idades, muito comum
antes do século XVIII. O verbete “moço”8 é fluido e o dicionarista admite que é
“relativo”, podendo designar indivíduos de catorze ou quinze até os vinte e cinco
anos. O termo “mancebo” é o mesmo que “moço”, segundo Bluteau, que
acrescentou que a etimologia da palavra poderia significar escravo: “chamamos
assim ao moço, que nos serve, ainda que seja livre”9. Tais imprecisões levaram

6
Bluteau, remetendo-se ao verbete “moço”, faz referência ainda ao “moçosinho”, que
era “muito moço. Adolescentulus”. Itálico no original. BLUTEAU, Raphael.
Vocabulario..., op. cit. Disponível em <
http://www.brasiliana.usp.br/dicionario/edicao/1 > Acesso em 01 de jun. de 2015.
Verbetes: menino, moço e moçosinho.
7
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1981, p. 30. Apesar de tal consciência, o tradicional costume quanto à imprecisão das
idades não se extinguiu inteiramente.
8
“Moço” também poderia designar os criados. SÁ, Isabel dos Guimarães. As crianças...,
op. cit. p. 75. O verbete “mocidade” é definido como a “idade do homem dos vinte &
cinco annos atè os trinta, ou quarenta”. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario..., op. cit.
Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/dicionario/1/mo%C3%A7o >
Acesso em 01 de jun. de 2015. Verbetes: moço e mocidade.
9
Bluteau afirmou também que a idade do homem mancebo variaria entre 30 e 40 anos.
Vale a pena mencionar ainda o termo “rapaz”, que é muito vago e não se refere a uma
idade precisa, mas às suas ocupações: “moço, criado de alguem, ou lacayo, porque de

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Guimarães Sá (2011, p. 76) a reconhecer as contradições e atitudes confusas


quanto às idades da vida existentes ainda no início do Setecentos.

Foi a partir do século XVIII, que transformações importantes ocorreram


e mudaram a perspectiva quanto à infância e a educação de crianças, que
“passaram a ser percebidas como sujeitos instituídos de uma ‘natureza’ infantil,
possuidoras de características específicas próprias para a idade”. Passaram a ser
“vistas como ‘inocentes, frágeis, imaturas, maleáveis, naturalmente boas, seres
338
que constituem promessa de um futuro melhor para a humanidade’”, que
“precisavam agora de proteção do mundo adulto” (JANE, 2006, pp. 203-204).
A partir de então, intensificou-se o controle familiar dos corpos infantis e a
criança, futuro adulto, foi “transformada em problema comum para os pais, as
instituições educativas, as instâncias de higiene pública” (FOUCAULT, 1993, p.
232).

Ainda que a diferenciação entre infância e adolescência pareça ter


existido antes mesmo do século XVIII, é notável a ideia de cumplicidade e de
culpa pelos atos de violência sofridos e a ausência de reconhecimento do crime
sexual perpetrado contra os meninos. Lana Lage (2006, p. 246) sublinhou a
questão em sua análise do processo do padre português João da Costa, que
violentou vários meninos e jovens e foi condenado à fogueira na década de 1670,
pelo Tribunal de Goa, na Índia, por sodomia. A autora declarou que, para a
Inquisição, todos eram cúmplices do sacerdote e os inquisidores não
consideraram suas idades ou se tinham sido violados, o que parece estar atrelado
à concepção de infância existente naquela época. Da mesma maneira, nos
processos aqui analisados, os inquisidores viram os meninos como “cúmplices”
dos padres e não como vítimas dos abusos.

É importante ressaltar a internalização, o trabalho de inculcação da ideia


de culpa, realizado durante muito tempo pela Igreja, e que emerge do
depoimento das vítimas. É o que se depreende da confissão do menino João da

ordinario estes taes saõ rapazes, ou rapagões”. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario..., op.
cit. Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/1/rapaz> Acesso em 27
de jul. de 2015. Verbete: rapaz. Há também o impreciso verbete “rapagaõ”, que poderia
referir o moço que ainda não tinha barba, bem como o que a tinha.

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Costa (11, 12 anos), abusado sexualmente pelo padre e seu mestre, João Botelho,
na década de 1630. Buscou a Mesa Inquisitorial com seu pai, aconselhado pelo
confessor, para se acusar. Jurou, sobre os santos evangelhos, dizer a verdade de
suas culpas e “pedia perdão e misericórdia’”. O contexto evoca o conceito de
“violência simbólica”, colocado por Bourdieu (2014, p. 60). O sociólogo francês
descreve que “a força simbólica é uma forma de poder que se exerce sobre os
corpos, diretamente, e como que por magia, sem qualquer coação física; mas
339
essa magia só atua com o apoio de predisposições colocadas, como molas
propulsoras, na zona mais profunda dos corpos”. Uma das formas eficazes dessa
força simbólica “repousa claramente em um trabalho prévio de socialização
religiosa (catecismo, frequência ao culto e, sobretudo, imersão precoce em um
universo impregnado de religiosidade)”. Essa era exatamente a atmosfera
religiosa, muito marcada pela culpabilização, respirada pelo menino João.

No processo, não aparece a ideia de violência ou a de que o menino foi


vítima e o inquisidor o vê como “cúmplice”, assim como “as outras pessoas”
(leia-se outros meninos violentados pelo padre). O inquisidor quis saber qual
razão o moveu a fazer a denúncia, se o padre estava em seu perfeito juízo ou se
estava “tomado do vinho, ou de outra algua’ paixão”, se lhe queria mal e lhe
tinha ódio, ou se com ele teve “alguas’ differenças”. Por um lado, parece ter
pensado que o menino, por algum motivo, teria raiva do padre e,
consequentemente, inventado a história. Por outro, pensava que Botelho não
estaria em seu perfeito juízo quando violentou as “pessoas” e não levou em
consideração a relação de força ali existente. Por último, o inquisidor lhe disse
que “elle tomou m.to bo’ conselho em vir a esta Mesa confessar suas culpas, E
que viva m.to acauteladam.te E não torne a cair nellas por sere’ m.to graves, E de
grande offensa de nosso Senhor porque será castigado rigurosamente o que
prometteo comprir”. João da Costa, como os outros meninos, além de
violentados, foram culpabilizados pela instituição inquisitorial. Ou seja, as
vítimas foram “culpabilizadas pelas ações violentas que se abateram sobre seus
corpos” (RAGO, 2013, p. 217). Perspectiva ainda bastante enraizada na
sociedade, que costuma culpar a vítima pelas violências sofridas, o que
demonstra que “os quadros mentais também são prisões de longa duração”,

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indicando “as mesmas permanências ou sobrevivências no imenso domínio


cultural” (BRAUDEL, 2014, p. 50).

A violência sexual cometida por padres contra meninos

Frequentemente, membros de diferentes gradações na hierarquia da


Igreja Católica são acusados de crimes sexuais contra crianças e adolescentes em
diferentes países do mundo. Esse tipo de violência não é um fenômeno 340

contemporâneo e as características dos abusos sexuais, isto é, as estratégias


utilizadas pelos violadores, os locais onde ocorreram as agressões, a
invisibilidade de tais práticas e a culpabilização das vítimas, se vistos a partir da
perspectiva da longa duração (BRAUDEL, 1992), parecem não ter se alterado
muito, apesar das transformações quanto à ideia de criança e de sentimento com
relação à infância.

O historiador francês Robert Muchembled (2012, p. 7) inicia o primeiro


capítulo de seu livro História da Violência – Do fim da Idade Média aos nossos
dias questionando: “O que é a violência?”. A palavra, segundo o autor, surgiu
no começo do século XIII, em francês, derivada do latim vis, que designa
“força”, “vigor”. Dentre outros significados, um descreve muito bem as
situações analisadas neste texto: “ela define, também, uma relação de força
visando a submeter ou a constranger outrem”, uma vez que as práticas sexuais
de sacerdotes contra meninos no Portugal Seiscentista foram caracterizadas por
uma intensa relação de poder. Elas envolveram um ou mais homens adultos,
pertencentes (ou não) aos quadros eclesiásticos, que ofereciam e davam coisas –
dinheiro, comida, promessas, ensino gratuito – com a intenção deliberada de
atrair indivíduos muito mais jovens e, não raro, pobres. Tais assimetrias
incluíram a violência física, a “violência simbólica”, ou a “violência sutil e quase
sempre invisível” (BOURDIEU, 2014, p. 57), e também a “violência de gênero”,
que abrange “toda e qualquer forma de agressão ou constrangimento físico,
moral, psicológico, emocional, institucional, cultural”, “que tenha por base a
organização social dos sexos e que seja impetrada contra determinados

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indivíduos, explícita ou implicitamente, devido à sua condição de sexo ou


orientação sexual” (SARDENBERG, 2011, p. 1).

Embora tenham se relacionado com meninos de pouca idade e os


denunciantes tenham assinalado a extrema proximidade dos padres com
meninos, o delito dos sacerdotes, pelo qual três deles foram julgados e
condenados à fogueira, foi o de sodomia, ou o ato sexual anal com emissão de
sêmen dentro do ânus, crime sob jurisdição inquisitorial, não importando se tinha
341
sido cometido com criança ou com adulto, e aos inquisidores só interessava se
tinha sido ou não consumada.

Apesar de alguns processos inquisitoriais não estarem ainda transcritos


integralmente10, os indícios presentes na documentação mostram que suas
condutas sexuais foram similares às dos seculares. Paulo Braga (2011, pp. 201-
202), que em artigo sobre os mestres de meninos no Portugal Moderno,
mencionou quatro processos por sodomia, entre 1654 e 1723, registrou o caráter
das práticas sexuais de dois processados, sempre ativos sexualmente com seus
alunos, que “umas vezes iam dormir a casa do mestre outras vezes era depois de
terminadas as lições, quando os outros estudantes tinham saído, que os actos se
consumavam”. Um dos alunos relatou que seu mestre “o convencera a dormir
em sua casa várias vezes”. A passividade emerge do depoimento de um
estudante, que revelou que “tornou o ditto Padre Frey Thomas [...] a metter seu
membro viril no vazo trazeiro delle confitente e dentro derramou semente”
(BRAGA, 2011, p. 201, nota 19).

As situações são semelhantes às dos sacerdotes aqui estudados. Dois


deles também eram mestres – João Botelho e João de Mendonça da Maia – e,
assim como nos casos investigados por Paulo Braga, particularmente no caso de
João Botelho, os castigos físicos acompanharam as relações sexuais forçadas e
as estratégias e os locais onde ocorreram as violências, como veremos, são
análogas.

10
Frei Manoel do Sacramento, processado em 1694 e em 1697, cometeu sodomia com
José Lopes, de 13 anos, mas seu processo ainda não foi transcrito. ANTT, IL, Proc.
3966-1 e ANTT, Inquisição de Évora, Proc. 4461.

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Frei João Botelho (ANTT, IL, Proc. 7118), 43 anos, pertenceu à Ordem
dos Jerônimos, de onde foi expulso, e no momento de sua prisão, em 1638, era
mestre da Capela de Santo Antônio, em Lisboa. O primeiro a denunciá-lo foi o
“moço estudante” João da Costa, de 11 para 12 anos, que, acompanhado de seu
pai, um almocreve11, buscou a Mesa Inquisitorial para “desencarregar sua
consciência”. O menino relatou que os contatos sexuais tinham começado havia
cerca de um ano, na casa do eclesiástico, onde ele dava aulas de solfa12. Numa
342
ocasião, estando ele e Luis Viegas, “estudante moço de pouca idade”, filho de
uma palmilhadeira13, Botelho o mandou arriar as calças, deitou o menino de
bruços e “se pós encima mettendo lhe pello seo vaso traseiro primeiro hu’ dedo
e depois o seo membro viril”. O menino contou ainda que Viegas, além de
testemunha dos atos, também passava pelos mesmos constrangimentos, e havia
poucos dias, o mestre mandou seus cinco ou seis alunos, que incluíam os filhos
de um sapateiro e de uma taverneira, despirem-se noutro aposento. O
depoimento de João da Costa é revelador e destaca a violência física, sexual e
psicológica a que seus corpos foram submetidos. Os corpos dos meninos eram
expostos e se tornavam “objeto do ataque sexual e do prazer sádico” (RAGO,
2013, p. 79) dos violadores. Trata-se de uma “violência de gênero”, tal como
define Sardenberg (2011, p. 1), em que um sacerdote, um homem mais velho,
agredia sexualmente seus jovens alunos.

João narrou ainda que o frei “fechou a porta pdentro com aldrava”, em
seguida, voltou a submetê-lo sexualmente e teve o cuidado de limpá-lo com sua
camisa. Botelho, ainda de acordo com a testemunha, tinha “por costume quando
os estudantes não sabe’ lição mandallos desattacar, E porse sobre elles”. A ação
do padre denota “uma prática de punição e humilhação, que reflete

11
O termo almocreve, segundo Bluteau, define quem levava “bestas de carga de huma
parte a outra”. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario..., op. cit. Disponível em: <
http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/almocreve> Acesso em 31 de ago. de
2016. Verbete: almocreve.
12
As notas musicais. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario..., op. cit. Disponível em: <
http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/solfa> Acesso em 25 de ago. de 2016.
Verbete: solfa.
13
Mulher que palmilha meias. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario..., op. cit. Disponível
em: <http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/palmilhadeira> Acesso em 29 de
ago. de 2016. Verbete: palmilhadeira.

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representações [...] patriarcais dos papéis de gênero na[quela] sociedade”,


demonstrando que “tem sido sempre um homem a ocupar o lugar do poder”
(RAGO, 2013, pp. 79-83). E, particularmente nesse tipo de relações
assimétricas, homens e sacerdotes. Neste caso, mais especificamente, um padre
e mestre de meninos, elementos que evocam o forte poder que Botelho exercia
sobre seus alunos, que, não raro, parecem ter pertencido a famílias humildes. Os
contatos sexuais forçados levaram, segundo o menino João da Costa, vários
343
estudantes a deixarem a escola, a exemplo de Joseph, “maior de corpo que elle
confitente”, que era filho de um chapineiro14 lisboeta.

Em 17 de março de 1638, o menino Luis Viegas foi chamado à presença


do inquisidor e disse ter 14 anos. Confirmou o quadro de violências física e
sexual a que o mestre de música submetia seus alunos, acrescentando detalhes
da agressão ao menino João da Costa: “disce o ditto seu Mestre, ao d.º João da
Costa, que se recolhesce pª dentro q’ o queria açoutar e logo se recolheo co’ elle,
e fechou a porta, e elle testemunha sentio q’ o d.º seu Mestre açoutava ao d.º
João da Costa o qual gritava” e completou: “sahindo pª fora lhe disce a elle
testemunha, que o ditto seu Mestre se puzera em cima delle, e que lhe não disce,
per que parte, mas que esca fora a cauza de grittar”. Disse ainda que o mestre
João Botelho, quando queria açoitar os meninos recolhia cada um num aposento,
fechava a porta e “se algu’ chega a expreitar logo o açouta tambem”.

Uma vez que os castigos físicos eram “entendidos na época como um mal
necessário” (BRAGA, 2011, p. 206), as agressões sexuais podem ter sido
compreendidas por Luis Viegas, assim como pelos outros meninos, de maneira
diferente. Ele disse que quando tinha cerca de 13 anos, o padre o recolheu no
aposento de costume para açoitá-lo (o que não parece ter-lhe causado nenhuma
surpresa), desatacou suas calças, o deitou de bruços e “penetrandoo, teve tão

14
Segundo Antonio de Moraes Silva, chapineiro era o oficial que faz ou vende chapins.
Um chapim era o “calçado de 4. ou 5. solas de sovereiro para realçar a estatura, de
mulheres. SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Lingua Portugueza –
recompilado dos vocabularios impressos ate agora, e nesta segunda edição novamente
emendado e muito acrescentado, por Antonio de Moraes Silva. Lisboa: Typographia
Lacerdina, 1789/1813. Disponível em: < http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-
br/dicionario/2/chapineiro > Acesso em 29 de ago. de 2016. Verbete: chapineiro.

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grande dor elle testemunha q’ o não pode sofrer, e logo se levantou, dizendolhe
q’ o mettesce [?] antes a assoutes, e lhe não fizesce aquillo” (ANTT, IL, Proc.
7118, grifo meu). A violência, que continuou por cerca de meia hora, pode ter
sido entendida como uma forma de punição, dada pelo mestre àqueles que não
sabiam a lição, sem conotação sexual para Viegas, já que ele tentou, em vão,
permutar o castigo.

Disse que não contou sobre as situações violentas a ninguém, nem à sua
344
mãe, por “pejo” “que tinha, e per entender que elle estava mal”. Sua fala é muito
reveladora e esclarece seus medos, a vergonha e a culpa (assim como no caso do
menino João da Costa) pelos atos cometidos contra si. Tais sentimentos e ações
nos remetem ao conceito de “poder simbólico”, de Bourdieu (2014, p. 61), para
quem
os atos de conhecimento e de reconhecimentos práticos da
fronteira mágica entre os dominantes e os dominados, que a
magia do poder simbólico desencadeia, e pelos quais os
dominados contribuem, muitas vezes à sua revelia, ou até
contra sua vontade, para sua própria dominação, aceitando
tacitamente os limites impostos, assumem muitas vezes a
forma de emoções corporais – vergonha, humilhação,
timidez, ansiedade, culpa – ou de paixões e de sentimentos –
amor, admiração, respeito –; emoções que se mostram ainda
mais dolorosas, por vezes, por se traírem em manifestações
visíveis, como o enrubescer, o gaguejar, o desajeitamento, o
tremor, a cólera ou a raiva onipotente, e outras tantas maneiras
de se submeter, mesmo de má vontade ou até contra a
vontade, ao juízo dominante, ou outras tantas maneiras de
vivenciar, não raro com conflito interno e clivagem do ego, a
cumplicidade subterrânea que um corpo que se subtrai às
diretivas da consciência e da vontade estabelece com as
censuras inerentes às estruturas sociais.

É interessante notar, na perspectiva de membros da comunidade, a


ausência de perplexidade quanto às agressões sexuais sofridas pelos jovens
vítimas do padre e mestre João Botelho. Viegas assinalou que outro mestre de
música não queria receber, na sua escola, os estudantes que tinham sido
discípulos de João Botelho “pella má fama que tem” e que um pai tirara seu filho
da escola pelo mesmo motivo. Não parece haver preocupação quanto à violência
sofrida pelos meninos e praticada pelo padre que, segundo os garotos, tinha
“muito roim fama”, que o chamavam de “somitigo” e de “fanchono”. A atenção,

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ressaltamos, é com o perigo de que os estudantes fossem “contaminados” pela


sodomia e, assim como o sacerdote, ficassem infamados pelo “mau pecado”.

Condenado à fogueira no auto da fé celebrado em Lisboa no dia 10 de


julho de 1644, João de Mendonça da Maia, 45 anos, era, além de sacerdote,
mestre escola na Colegiada de Valença do Minho. Várias testemunhas
mencionaram que ele tinha “má fama de tratar com mossos e rapazes bem
parecidos de pouca idade”. Ainda não sabemos as idades dos meninos, mas os
345
denunciantes afirmam que João da Maia costumava ser visto “tratando e
conversando com mossos e mininos em lugares excuzos, e he publico que uza
com elles do peccado nefando” (ANTT, IL, Proc. 5007). Os termos “moços” e
“meninos” certamente demonstram uma diferenciação das fases da vida, como
já indicado. Uma plêiade de estudantes emerge das denúncias, mas ainda não
está claro que idade eles tinham.

Ao que tudo indica, o padre tinha uma casa onde costumava levar os
jovens para jogar e ali os acometia sexualmente. Ao menos um de seus
denunciantes, o padre Manoel da Costa, cerca de 30 anos, disse que João de
Mendonça gastava e despendia com os “mossos e rapazes”. Disse ainda que
havia treze ou catorze anos, um seu parente Balthezar de Barros, foi convidado
pelo padre para dormir com ele numa estalagem. Não sabemos a idade de
Balthezar, mas como queria uma licença, uma autorização, de Manoel, pensamos
que pudesse ser mais jovem. O padre voltou a convidá-lo, dizendo que “hera sua
honra ir elle”, mas Barros disse, “chorando”, ao seu parente que não voltaria à
estalagem porque o padre “pegara delle, e quisera com ele com metter o peccado
nefando de sodomia”, o que o levou a sair da cama e dormir vestido. Mais uma
vez, a violência é explicitada: o jovem chora ao se lembrar do ocorrido e o verbo
“pegar” traduz a experiência agressiva: “pegar de alguem”15 era, segundo
Bluteau, o mesmo que “prender”. Uma denunciante afirmou que um homem lhe
disse que numa noite ouvira um “rapas que trazia o dito João de Mendoça gritar
em casa disendo deixaime João de Mendoça”.

15
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario..., op. cit. Disponível em:
<http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/pegar > Acesso em 29 de ago. de
2016. Verbete: pegar de alguem.

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Mendonça da Maia, para atrair os jovens, alguns filhos de viúvas,


sobrinhos de lavadeira, se valia da casa, onde jogavam e conversavam. Suas
estratégias parecem ter incluído convites para sua casa com pretexto de mostrar-
lhes cartas, sua horta, lhes oferecia comida e bebida, dinheiro. O padre Manoel
Leite denunciou que o clérigo
conversava com mininos em lugares escusos, e que elle
testemunha ouvira diser à Catherina solteira Lavandeira das
freiras de santa clara [...], que tendo em sua caza hum moço
per nome Amador, o qual era bem pareçido e q’ o padre João 346
de Mendoça o vinha buscar alguas’ vezes e persuadia a que
quisesse ir com elle a folgar a hua’ caza que tinha fora desta
Villa em lugar escuzo Junto a hermida de santa Catherina, e
que lá o persuadia com mimos e palavras amorosas a que
quisesse dormir em sua caza (ANTT, IL, Proc. 5007).

Os abusos sexuais, ao menos em alguns casos, parecem ter se perpetuado


por anos a fio. É o que parece ter acontecido com o prior Antonio Furtado da
Rocha. De acordo com um dos amantes do padre Vicente Nogueira, cônego da
Sé de Lisboa, Rocha foi menino para sua casa e teria se tornado padre porque
Nogueira o “puzera naquelleestado perq m(t)ºs annosdormiraCom elleperdetras”
(ANTT, IL, Proc. 4241). Situação que se assemelha à do padre mestiço Bernardo
Serrão, condenado à fogueira, em 1612, pela Inquisição de Goa, que “seduziu”
o mestiço Felipe da Costa. O garoto, quando tinha 11, 12 anos, foi com seu pai
para Chaul, onde, nos dois primeiros anos andou na escola e no estudo e logo
depois o pai o colocou como moço do coro da sé daquela cidade, onde padre
Serrão era beneficiado. Desejoso de entrar para o serviço eclesiástico, acabou
“seduzido” pelas promessas do padre, que dizia que lhe daria a certidão para
tomar as ordens quando fosse tempo. Pobre, sua situação piorou após a morte de
seu pai, e acabou por viver amancebado com o padre, que lhe dava algumas
coisas, por mais de dois anos. Ao que parece, espacial e temporalmente, o caráter
dos envolvimentos sexuais praticamente não se alterou e as violências sofridas,
sejam elas físicas, psicológicas e simbólicas, são muito semelhantes ao que
ocorre ainda hoje.

Outro padre, cujo círculo de sodomias envolveu crianças foi Santos de


Almeida, de 66 anos. Condenado à fogueira, em 1645, o sacerdote confessou

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que estando, à noite, na cama, entre os lençóis, com o padre Francisco Dias
Palma
e com hu’ mosso que se chamava então Joseph, e agora he
frade do Carmo e não deve ser professo ainda e não tinha pay
não lhe sabe o nome e era natural do Porto, [...] o ditto Jozeph
natinha [?] may e tinha pay e seria então de doze annos e
estando todos tres na mesma cama iazia [?] no meio o ditto
Jozeph e estava com o rosto virado pera elle confitente e então
procurou o ditto Francisco Dias Palma metter seu membro
viril no vaso trazerio do ditto Jozeph e assi o entendeo elle
confitente perq o ditto mosso se doeo [?] e enfadou, e elle 347
testemunha bem sentio que o ditto Francisco Dias pellos
meneos tratara de faser o sobreditto, e então elle confitente
tomou o ditto mosso e o pos pera a outra parte da cama
ficando elle confitente no meio (ANTT, IL, Proc. 6587, grifo
meu).

Almeida, em seu depoimento, deu a entender que tentou proteger o


menino, mudando-o de lugar, para evitar as investidas do padre Dias Palma. Mas
um de seus parceiros, Manoel Coelho, deu outra versão ao caso:
Disse mais q’ havera tres annos se achou elle confitente em
casa do ditto Padre Santos de Almeyda e estando deitado na
cama com elle e com hu’ mosso que chamão Joseph que então
seria [?] de dez ou doze annos alvo do rosto, e magro espigado
Cabello castanho filho de hu’ homem que vivia logo por baxo
das casas do ditto padre Santos de Almeyda em hu’ becco
quando vão [?] p.ª S. Christovão e lhe não sabe o nome, e
somente lhe dizia o ditto Jozeph q’ seu pay era solicitador de
causas, e estando assi todos tres deitados na cama metteo elle
confitente seu membro viril na boca do ditto mosso, E não
está lembrado se derramou semente dentro ou não mas mais
lhe parece q’ não e então o ditto mosso Joseph metteo
[rasurado] seu membro viril na boca do ditto Santos de
Almeyda obrigado do ditto Santos de Almeyda, e o ditto
Santos de Almeyda vio a elle confitente tãobem metter seu
membro viril na boca do ditto Rapas, E q’ não passou mais
cousa algua’ (ANTT, IL, Proc. 6587, grifo meu)

Desse testemunho emerge uma profunda assimetria: três (e não dois)


homens bem mais velhos, dois deles padres, e um menino de cerca de 10, 12
anos, deitados sobre a cama. É necessário ressaltar que Coelho afirmou que
Santos de Almeida obrigou o garoto a introduzir seu pênis na boca do sacerdote
e ele, o próprio Coelho, inseriu o seu na boca do menino. Embora não tenha
empregado a palavra “obrigar” em seu depoimento, é clara a situação de poder

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a que os três submeteram o garoto. Ainda que não saibamos o motivo que levava
Joseph à casa de Almeida, o cenário é violento, dominador e hierárquico.

O padre Santos de Almeida revelou ainda ter praticado contatos sexuais


com outros meninos, a exemplo do supracitado Pantaleão e o Lemos. O primeiro,
que tinha cerca de 6 anos, era “filho de hua’ mulher pobre q’ tãobem servia as
vezes a elle confitente a qual não sabe o nome [...], e indo o ditto minino de
ordinario a sua casa, por vezes tomou elle confitente com sua boca o membro
348
viril do ditto Pantalião, e co’ este não passou mais”. Com o último, disse que
“hia a sua casa hu’ mosso que se chamava Lemos e não lhe sabe o nome da pia,
e não tinha pay e morava com sua may [...] e parecia gente honrada e recolhida”.
Embora não seja uma regra, quase sempre os meninos não tinham um dos pais.
Almeida afirmou que o Lemos tinha 12, 13 anos, “com o qual Lemos cometteo
elle Confitente per alguas’ oito vezes pouco mais ou menos o ditto pecado pella
boca, mettendolhe o ditto Lemos o membro viril nella a [?] elle confitente”.
Neste caso também não fica claro como o padre atraiu o Lemos, que, ao que tudo
indica, costumava ir à sua casa. Mas com relação à Pantaleão, é óbvia a situação
de sujeição do menino, que lhe prestava serviços. Filho de uma mulher pobre,
sua criada, de quem o sacerdote sequer sabia o nome.

Todas as práticas sexuais aqui analisadas constatam a forte relação de


poder existente entre os sacerdotes e os meninos numa época em que estava
ausente o sentimento da infância e muito menos o de criança inocente. Revelam
a “violência de gênero” e a “violência simbólica” a que os garotos foram
submetidos. Foram culpabilizados pelas agressões sexuais sofridas, o que nos
leva a “lembrar os traços que a dominação imprime perduravelmente nos corpos
e os efeitos que ela exerce através deles” (BOURDIEU, 2014, p. 62). Basta
recordarmos o “pejo” do garoto Luis Viegas e a concepção inquisitorial que via
as vítimas como “cúmplices”, anulando “quase toda responsabilidade do
opressor” e jogando “uma vez mais a culpa sobre o oprimido” (Apud Bourdieu,
p. 64).

As estratégias utilizadas pelos sacerdotes não se distinguiram das que se


valeram os seculares para concretizarem seus desejos sexuais. Os locais onde

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ocorreram as situações de violência, quase sempre a casa do padre – embora


pudessem acontecer em estalagens, como no caso de João de Mendonça da Maia,
que ainda mantinha uma casa onde ia jogar com os garotos – revelam notáveis
permanências que ainda hoje se mantêm. Um exemplo do Portugal
contemporâneo descreve bem a persistência dos abusos praticados por
sacerdotes e a conhecida falta de credibilidade nos testemunhos das vítimas por
parte da justiça. Em 2013, foi publicado que alguns alunos do Seminário Menor
349
do Fundão, localizado no Distrito de Castelo Branco, presenciaram os abusos
cometidos pelo padre Luís Miguel Mendes, acusado de 19 crimes sexuais.
Segundo o processo, os meninos o viram várias vezes na cama das vítimas.
Afirmaram que, às vezes, fingiram dormir, porque tinham medo que fossem
notados e se tornassem alvo de atos sexuais. Disse uma vítima de 13 anos:
“Pensava que eles já tinham adormecido e que não tinham visto o que ele me
fez, só depois percebi que afinal se aperceberam de que o padre foi à minha
cama”16. O panorama de continuidade nos remete a Braudel (2014, p. 51), que
assinala que “velhos hábitos de pensar e de agir, [são] quadros resistentes, duros
de morrer, por vezes contra toda lógica”.

REFERÊNCIAS

Fontes manuscritas

Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa, Processos: 4241; 5007; 6587;


7118.

Bibliografia

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Renascença ao Século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar, 1981.

16
Cf. em < http://www.cmjornal.pt/portugal/detalhe/fingiam-dormir-para-fugir-a-
padre-pedofilo> Acesso em 31 de ago. de 2016.

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Acesso em 29 de ago. de 2016.
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1999.
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XVIII. Alguns contributos com base em fontes inquisitoriais. In Estudios
350
Humanísticos. Historia, nº 10, 2011, pp. 197-208. Disponível em <
https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=3783296 > Acesso em 23 de
ago. de 2016.

BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a História. São Paulo: Perspectiva, 2014.

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VIOLÊNCIA DE GÊNERO EM BARBADOS: NOTAS SOBRE


FEMINICÍDIO NO SÉCULO XX

Elaine P. Rocha*

Segundo dados das Nações Unidas1, uma em cada três mulheres é


vítima de violência perpetrada por parceiros, no mundo inteiro. A violência física
352
contra mulheres e meninas afeta não apenas o seu corpo, mas a sociedade em
geral. Ela vem associada a depreciacão, e muitas vezes à auto-depreciação e
baixas expectativas, que levam ao abandono escolar, pobreza, gravidez precoce
e/ou indesejável e morte prematura.

As questões relacionadas à violência de gênero, quando associadas a


abordagens raciais são, em geral, vistas como relações de conflito nas quais as
questões de gênero são agravadas pela submissão de um grupo racial a outro.
Assim, grupos de luta contra o racismo quando abordam a questão de gênero, o
fazem sob o argumento da vitimização de mulheres pertencentes a grupos raciais
vitimizados pelo racismo de homens pertencentes a grupos considerados
racialmente privilegiados. Entretanto, este estudo realizado na pequena ilha de
Barbados, localizada no Caribe inglês, vem desafiar os pressupostos políticos. É
preciso notar que a intenção não é desqualificar a dupla subordinação de
mulheres pertencentes a grupos racialmente discriminados e nem desacreditar a
violência de gênero de motivação racialista. Apenas apresento este trabalho
como uma contribuição para discutir a violência que mulheres negras sofrem nas
mãos de homens negros, utilizando Barbados como um estudo de caso.

De acordo com o Banco Interamericano de Desenvolvimento, Barbados


apresenta um dos mais baixos percentuais de crimes de morte deste continente.
Nos últimos 15 anos, a média anual de homicídios esteve por volta de 10

*
Elaine Pereira Rocha é doutora em História Social pela USP, mestre em História pela
PUC-SP e mestre em História Cultural pela University of Pretoria (Africa do Sul).
Atualmente é chefe do Departamento de História e Filosofia da University of the West
Indies, campus Cave Hill, Barbados, onde leciona desde 2007.
1
http://www.unwomen.org/en/what-we-do/ending-violence-against-women/facts-and-
figures

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assassinatos para cada 100 mil habitantes por ano; isto num país que tem 280 mil
habitantes. A incidência de outros crimes, como roubo e estupro é também
considerada muito baixa2, o que torna Barbados um destino particularmente
atrativo para turistas, que vêm em busca de suas praias e mar calmo. Estes dados,
apresentados pelo Banco Internacional de Desenvolvimento, contrastam com o
relatório apresentado em 2001 pelo Caribbean Regional Tribunal on Violence
against Women3, segundo o qual, mulheres e meninas são a maioria das vítimas
353
da violência doméstica, que infelizmente é parte da cultura caribenha, sofrendo
abusos físicos, sexuais e psicológicos nas mãos de parceiros e familiares.

Para esta apresentação, selecionamos alguns crimes que vitimizaram


mulheres em Barbados, como uma amostra do baixo status social das mulheres
barbadianas, mas principalmente como exemplos da cultura de abuso físico que
vitimiza essas mulheres.

O primeiro crime a ser estudado, e que inspirou esta pesquisa, é o


assassinato de Milllie, em 1916, que entrou para o folclore musical da ilha,
através da canção “Millie Gone to Brazil”, de autor desconhecido. A canção
relata a morte de uma jovem, cujo corpo foi encontrado dentro de um poço,
esfaqueada no pescoço e enrolada em arame farpado. No refrão a pergunta:
Millie foi pro Brasil? Pobre Millie! Em referência às buscas feitas pela ilha à
procura da jovem. Para se ter uma ideia da popularidade dessa música, pode-se
comparar à brasileira “Amélia, mulher de verdade”, que fala sobre a posição
submissa de uma mulher em relação ao marido e que virou um grande sucesso
carnavalesco, atravessando quase um século de popularidade.

O primeiro passo para investigar a morte de Millie, que muitos locais


diziam que era um fato verídico foi buscar a data em que a canção surgiu. Muitos
dados indicaram o início da década de 20, ainda que os dados históricos

2
Bailey, Corin. Crime and violence in Barbados. IDB series on Crime and Violence in
the Caribbean. Relatório Técnico, Junho, 2016.
https://publications.iadb.org/bitstream/handle/11319/7774/Crime-and-Violence-in-
Barbados-IDB-Series-on-Crime-and-Violence-in-the-Caribbean.pdf?sequence=1
3
“Gender based violence in the Caribbean”. UNWomen.
http://caribbean.unwomen.org/en/caribbean-gender-portal/caribbean-gbv-law-
portal/gbv-in-the-caribbean#sthash.jU0EVGPk.dpuf

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indicassem a possibilidade de que o crime tivesse ocorrido alguns anos antes.


Para isso, a pesquisa histórica sobre a emigração de barbadianos para o Brasil
contribuiu grandemente.

Na música, o autor faz referência ao fato de que o assassino de Millie


dizia a todos que ela teria partido de Barbados para o Brasil. Os estudos sobre
essa corrente migratória aponta para o seu ápice entre 1907 e 1915, período mais
ou menos relacionado à construção da Ferrovia Madeira-Mamoré, que atraiu
354
esses imigrantes caribenhos. A busca, nos relatórios coloniais – lembrando que
4

Barbados era colônia inglesa e que só se tornou independente em 1966 – moveu-


se, então em ordem decrescente, iniciando em 1920.

Os dados sobre o crime confirmaram a baixa criminalidade em


Barbados. Entre 1902 e 1908 foram registrados apenas seis casos de assassinato,
entre 1910 e 1920 encontramos 16 assassinatos, entre 1920 e 1924 aconteceram
9 assassinatos, sendo que nos anos 1915 e 1920, 5 pessoas foram assassinadas,
fato que alarmou as autoridades e a população. Em 1916 aconteceram apenas
dois crimes de morte, ambos contra mulheres muito jovens, uma delas era
Millicent Gittens, assassinada em 1º de dezembro de 1916. Havíamos
encontrado a Millie da canção popular.5

Millicent Gittens tinha por volta de 20 anos, era empregada doméstica


e órfã, sua parente mais próxima era uma irmã, vendedora ambulante que vivia
a uma relativa distância da casa dos patrões de Millie, onde ela residia. Millie
tinha um namorado, James Bailey igualmente jovem, que trabalhava na destilaria
de rum, localizada a aproximadamente 2 km da residência de Millie. Era um
parceiro ciumento. O casal foi visto no final da tarde de 1º. de dezembro, uma

4
ROCHA, Elaine & ALLEYNE, Frederick. “Millie Gone to Brazil” Barbadian
migration to Brazil in the early 20th century” in Journal of the Barbados Museum &
Historical Society. Vol. 58, December 2012, pp. 1-42.
5
Nesta pesquisa foram examinados os Relatórios Anuais da Colônia, chamados Blue
Books, referentes aos anos: 1901, 1902, 1903, 1904, 1905, 1906, 1907, 1908, 1913,
1914, 1915, 1916, 1917, 1918, 1919, 1920, 1921, 1922, 1923. Foram ainda consultados
a Official Gazette (Diário Official) de abril de 1917 que traz a transcrição de uma sessão
da Assembleia Colonial onde o crime foi discutido e o jornal The Agricultural Report
de dezembro de 1916 a maio de 1916. Todos os documentos fazem parte do acervo do
Barbados National Archives.

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sexta-feira, caminhando na estrada que beirava a praia. Um amigo de James


chegou para conversar e caminhou com eles por alguns metros. Após seguir um
pouco mais adiante, o casal também decidiu retornar, era noite sem lua e o mês
de dezembro marca o início do inverno no hemisfério norte. Ainda que Barbados
não enfrente invernos severos, os dias são um pouco mais curtos e uma brisa
mais fria pode soprar do oceano, nada que convidasse ao prolongamento do
passeio. Uma testemunha, um pescador, viu o casal e notou que o homem estava
355
agitado. Chegou a brincar com os dois: “os pombinhos estão se preparando para
farrear à noite, hein?”. Ao que James teria respondido: “Que nada, eu vou é matar
essa aqui, daqui a pouco!”. Chegou a mostrar a faca que trazia no bolso.

Na manhã seguinte, os patrões notaram que Millie não estava em casa


e que seu quartinho não aparentava que alguém teria dormido ali. Todos os seus
pertences estavam no lugar, inclusive o pouco dinheiro que a empregada vinha
economizando. A irmã de Millie se alarmou e chamou a vizinhança para as
buscas, avisando também as autoridades. James repetia a todos: “Millie foi para
o Brasil. Tomou um barco e fugiu!”.

No quarto de Millie, um passaporte, poucos vestidos. A irmã insistia


que Millie nunca teria viajado sem se despedir. Sim, elas tinham uma irmã que
havia anos teria ido para o Brasil, mas nunca mais tiveram notícias. Millie
esperava em vão por uma carta, que um dia chegaria com um endereço e o
convite para ela também partir para o Brasil. Mas não havia nada. Também
nenhum navio havia partido na manhã de 2 de dezembro para o Brasil, nenhum
navio saiu do porto naquele dia. James insistia que Millie havia ido para o Brasil.
Ele até ajudou nas buscas.

No meio do dia, começou a contar que Millie tinha um outro homem,


que lhe dava presentes e que este homem a teria levado para o Brazil.

No terceiro dia encontraram o corpo de Millie, jogado dentro de um


tanque abandonado da destilaria, enrolado em arame farpado (talvez algumas
pedras para segurar o corpo tivessem escapado do arame e caído no fundo) e um
corte profundo no pescoço. O sangue em volta do tanque denunciou o lugar.
James tentou fugir, alguns homens o alcançaram.

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No julgamento chegou a dizer que Millie tinha um amante. Nenhuma


testemunha pode confirmar. Ele disse não saber o nome, descreveu vagamente o
estranho homem. Uma mulher disse que lavava roupas na manhã de 2 de
dezembro quando James apareceu e pediu uma camisa emprestada, ele estava
sujo de sangue.

A questão que se levanta aqui é por que Millie não tentou fugir, não
pediu socorro, mas caminhou obedientemente e em silêncio até o local da sua
356
execução. Uma das explicações me foi dada por um amigo barbadiano: a cultura
local entre as classes populares, de uma violência física e verbal, na qual o
agressor ameaça a vítima de morte. Quase como uma expressão sem
consequências, na maioria das vezes. Então Millie não teria acreditado na
ameaça?

A outra vítima de assassinato em 1916, na noite de 13 de agosto, era


uma jovem de mais ou menos 18 anos chamada Helen Baxill, trabalhadora rural
que foi encontrada morta pelas amigas no quartinho onde morava, com a cabeça
esmagada com uma pedra, que estava abandonada perto do corpo. As
testemunhas acusaram o chofer Fitzherbert Saimpson, que trabalhava na mesma
fazenda e que havia sido, até recentemente amante de Helen. As moças – Helen
e as amigas – estavam indo a uma espécie de quermesse, quanto Fitzherbert
chamou Helen para conversar. A vítima então deixou as companheiras com a
promessa de voltar em seguida, mas nunca mais regressou. Várias outras
testemunhas acusaram Fitzherbert de ameaçar Helen de morte várias vezes nos
dias que antecederam sua morte. A polícia fez a denúncia, mas Fitzherbert foi
absolvido por falta de provas.

Mais uma vez, pergunta-se por que Helen teria concordado em se


encontrar sozinha, em seu quarto, com um homem que já havia ameaçado matá-
la diversas vezes?

A historiadora Jamaicana Erna Brodber refere-se ao status inferior,


equivalente ao da criança, que as mulheres caribenhas negras estavam
submetidas. Examinando a sociedade Jamaicana entre 1907 e 1914, ela cita o
caso de Meme, de 20 anos de idade, que foi esbofeteada na rua por um homem

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que “nem era de sua família”, pelo delito de estar assobiando em público, algo
condenado pelos costumes daquela sociedade, que ditava que apenas homens
poderiam assobiar. A agressão física, longe de provocar revolta na vítima, fez
com que ela imediatamente reconhecesse o delito e se desculpasse com o
agressor.6

A historiografia do Caribe inglês aponta para um longo período de pós-


abolição (1837-1937), caracterizado pela manutenção do sistema da lavoura
357
monocultora para exportação, pela dependência do trabalhador negro do
empregador rural, devido ao fraco desenvolvimento urbano e à ausência de terras
livres para o plantio. A exploração das famílias negras coloca mulheres e
crianças como maiores vítimas, devido à ausência de habilidades profissionais
vendáveis, como carpintaria, metalurgia, trato com cavalos, etc., como era o caso
de homens que conseguiam, com o emprego dessas habilidades escapar ao
sistema de exploração rural e partir para outros lugares, em busca de melhores
oportunidades. De fato, desde as últimas décadas do século XIX até a metade do
século XX, as ilhas caribenhas eram lugares de emigração, predominantemente
masculina o que deixava mulheres como chefes de família e filhos submetidos a
situação de pobreza e abandono. Nesses casos, muitas mulheres submetiam-se a
maridos e amantes violentos e adúlteros, na esperança de manter em casa um
provedor.

Ao focalizar este estudo na ilha de Barbados, é possível estabelecer


aquela sociedade como um "estudo de caso", por tratar-se de um grupo
relativamente isolado e de uma população que hoje se encontra em torno de 280
mil pessoas, sendo 198 mil habitantes em 1908. A violência doméstica é um
problema que persiste por séculos, ainda que tenha sido negligenciado por
muitos anos, a não ser que tivesse resultados fatais. Estudos realizados por
Comissões Sanitárias para examinar as condições de vida em Bridgetown nas
primeiras décadas do século XX denunciaram a prevalência de famílias
chefiadas por mães solteiras, o abandono das crianças não reconhecidas por seus

6
BRODNER, Erna. The second generation of Freeeman in Jamaica, 1907-1914.
Gainsville, University Press of Florida, 2004, p. 21.

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pais ou simplesmente negligenciadas e a pobreza dessas família, que viviam no


que no Brasil chamamos de cortiços, dividindo espaços sem qualquer
privacidade, com mães deixando seus filhos pequenos em casa, muitas vezes sob
a supervisão da criança mais velha, o que levava ao estupro e abuso sexual dessas
crianças, além da morte prematura por doenças, por inanição, ou pela violência
doméstica.7

Numa sociedade em que até hoje a punição de crianças por chibatas nas
358
escolas é comum e considerada normal, a violência física contra crianças é parte
da cultura e a violência de gênero é também prevalente, sendo que apenas nas
últimas décadas as campanhas contra este tipo de violência têm surtido efeito.
Em geral, as autoridades apenas entram em ação quando acontecem vítimas
fatais. O historiador Hilary Beckles refere-se a uma histórica violência e
depreciação da mulher negra, desde o período escravista quando as escravas
eram vendidas por preço muito mais baixo que os homens.

A análise da violência contra as mulheres negras por seus próprios


parceiros (também negros), deve ser analisada numa perspectiva muito mais
ampla, na qual se considere também a violência como parte do cotidiano e das
normas culturais. Da mesma forma, é necessário considerar as reminiscências da
sociedade patriarcal, na qual a hierarquia estabelece valores para indivíduos
baseando-se em sexo, classe e raça.

Em Barbados – e no Caribe em geral – a educação para as classes mais


pobres foi estabelecida através de governos e igrejas nos anos que se seguiram à
abolição, 1837, de forma gradativa. Nos primeiros anos do século XX,
encontramos mais de 1300 crianças matriculadas em escolas públicas de ensino
primário, com um certo equilíbrio entre os sexos dos estudantes, porém a escola
secundária tem um número muito reduzido de meninas em comparação aos
meninos. Além do fato de que a educação mesmo pública não é acessível a todos,
pelos custos indiretos envolvidos: vestuário, alimentação e mesmo a

7
INNISS, Tara. “’This Complicated Incest’ Children, Sexuality and Sexual Abuse
during Slavery and the Apprenticeship Period in the British Caribbean.” In Sex, Power,
and Slavery. Eds. Gwyn Campbell and Elizabeth Elbourne. Routledge UP, 2014.”

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possibilidade de a criança dedicar-se somente aos estudos, que pode onerar


várias famílias. A regra, em geral, era de que as famílias priorizassem a educação
dos meninos em detrimento da educação feminina, da mesma forma que as
tarefas domésticas recaíam pesadamente sobre as meninas. Tem-se, então, já nos
primeiros anos de socialização, o estabelecimento de uma hierarquia na qual as
meninas têm um status inferior ao dos meninos.

Nos dois crimes analisados anteriormente, as mulheres mostraram-se


359
submissas a seus algozes, não houve, em nenhum dos casos uma tentativa de
reação, contra-ataque ou fuga, ainda que as duas vítimas gozassem de boa saúde
e fossem jovens, portanto capazes de resistir, teoricamente.

A pesquisa levou à análise de um outro crime, também envolvendo


barbadianos, mas que dessa vez ocorreu em Porto Velho, entre os trabalhadores
da Madeira-Mamoré. Em julho de 1924, John Miggs, barbadiano de 54 anos,
matou sua esposa, Christine Minggs, também barbadiana de 36 anos, com quem
havia se casado menos de três meses antes, com várias facadas. Os ferimentos
atingiram predominantemente o rosto, pescoço e peito da vítima.

O crime chocou a comunidade de imigrantes pela violência, e o longo


processo revela a premeditação em detalhes, quando o executor preparou o álibi
e o ataque com certa antecedência. Ainda que não tenhamos tempo para
examinar em detalhes mais um crime, é necessário dizer que, segundo as
testemunhas, Christine e John mantinham um relacionamento complicado e
violento, com muitas brigas e (mais uma vez) ameaças de morte, só que neste
caso, segunto o depoimento de John, Christine também havia dito que mataria o
marido.

Na noite do crime, John e Christine mais uma vez tiveram uma briga,
na qual John, já bêbado, acusava Christine de haver colocado veneno na sua
pinga. Ele, então, saiu e foi para o hospital em busca de socorro, sendo
diagnosticado como mal-estar estomacal não relacionado a envenenamento. No
hospital ele contava a quem quisesse ouvir, que sua esposa estava tentando mata-
lo. Em casa Christine foi dormir com uma faca ao lado da cama (para defender-
se?). Mas não imaginava que o marido voltaria para ataca-la no meio da noite.

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O corpo de Christine e as condições da casa de madeira em que vivia


mostravam indícios de intensa luta. Christine tentou reagir e defender-se, chegou
a ferir o marido, chegou a aproximar-se da porta para fugir. Mas não conseguiu
sobreviver ao ataque.8

Seria possível que a experiência da emigração, e a vida como imgrante


num país tão diferente culturalmente e tão distante do seu tivesse dado a
Christine um certo poder, levando-a a desafiar a autoridade do marido? O caso
360
de Christine indica a necessidade de uma maior investigação nas vidas das
mulheres imigrantes, principalmente daquelas que imigraram sem família, como
é, em geral, o caso das poucas mulheres que chegaram ao Brasil vindas do
Caribe. A imigração feminina independente também aconteceu das ilhas
caribenhas para o Panamá, Estados Unidos e Inglaterra, indicando um
apoderamento por parte dessas mulheres. Contudo, a cultura da violência segue
com elas.

Ao final do presente trabalho, a grande pergunta é se seria possível


trabalhar com a impotência masculina, não no sentido sexual, mas no sentido de
poder econômico, político e social, em sociedades em que os negros são
considerados inferiores, e que este senso de auto-afirmação do próprio valor
levasse esses mesmo homens discriminados a agirem violentamente contra suas
parceiras. Estendendo este questionamento, deve-se examinar o papel dessas
mulheres na reprodução dessas dinâmicas e na apliacação da norma sociocultural
que atribui ao homem adulto o poder de punir suas mulheres.

A proposta é trazer à tona elementos comuns a todos esses crimes e que


possam lançar alguma luz na condição de vida de mulheres de camadas e grupos
raciais considerados subalternos.

8
Arquivo Histórico do Poder Judiciário de Rondônia. Processo Crime, doc. 003/1925,
caixa 17. Agradeço a colaboração de Nilza Menezes, que possibilitou o acesso a esta
documentação.

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361

ST 3A
Gênero, Sensibilidades e
Poder

Coordenação
Profa. Dra. Ana Carolina Eiras
(UFG)

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AS REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO E O PROJETO POLÍTICO


REPUBLICANO NO PERIÓDICO GOIANO O LAR (1926-1932)

Danielle Silva Moreira Dos Santos*

Introdução

A cena desenrola-se dentro de um espaçoso cômodo, provavelmente no 362


interior de uma confortável residência. Pinturas recobrem as paredes em tom
alaranjado e no outro canto a porta aberta permite a entrada de raios solares que
banham todo ambiente. Em primeiro plano uma mulher sentada amamenta
tranquilamente a criança em seu colo enquanto outras duas, também sentadas,
estão concentradas, dedicadas ao trabalho de costurar uma enorme bandeira que
já recobre quase todo chão da sala. Um bebê no canto inferior, coberto por parte
da bandeira, repousa sobre uma almofada branca e brinca com uma estrela que
provavelmente seria costurada junto à bandeira. Em segundo plano, uma senhora
sentada atrás da porta, escondida na penumbra, também se dedica à costura da
bandeira. Uma moça em pé acaricia seu filho nos braços. Aparentemente todos
os personagens da cena são mulheres, exceto por uma figura masculina que
quase passa despercebida sentada bem no canto, ao lado de uma mesa que porta
uma imagem de Nossa Senhora e um pequeno quadro que seria de Tiradentes.
Várias gerações de uma mesma família branca e abastada, dividindo o mesmo
espaço, envolvidas com o propósito de costurar a bandeira republicana. No chão,
caixas e materiais de costura, além do mastro, apoiado sobre uma cadeira,
aguardando para receber a bandeira que tremularia pela primeira vez no céu
brasileiro. No centro da obra, uma criança, de aproximadamente quatro anos,
cabelos loiros e aspecto angelical que parecia estar bisbilhotando e brincando
abraçada com a bandeira, faz uma pausa para olhar diretamente e fixamente para

*
Mestranda pelo programa de pós-graduação em História da Universidade Federal de
Goiás, integrante do Grupo de Estudo e Pesquisa em Gênero GEPEG/UFG e bolsista
Capes.

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os espectadores. A obra descrita, A Pátria do pintor Pedro Bruno1, idealiza o


momento da confecção da primeira bandeira republicana pelas filhas e esposa de
benjamim Constante.

363

Figura 1. A Pátria (1919) de Pedro Bruno. Óleo sobre tela. 1,90 m x 2,78 m. Museu da República,
Rio de Janeiro.

A obra traduz a tentativa de implantação de um imaginário simbólico a


cerca da república no Brasil recém-inaugurada2. A obra em questão não é nosso
objeto de análise, mas partimos dela para introduzir nossas reflexões sobre a
participação feminina na construção da república nascente. O quadro é uma
metáfora sobre a construção do novo governo. E o que enxergamos nesse
processo de construção? Mulheres, brancas, da elite, inserida em um espaço

1
Pedro Bruno nasceu em 14 de Outubro de 1888 no Rio de Janeiro. Foi pintor escultor
e paisagista. Estudou na escola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro. A obra A
Pátria rendeu-lhe o prêmio de viagem ao estrangeiro em 1919. O pintor carioca faleceu
em 1949. (Biografia disponível em: http://www.dezenovevinte.net/bios/bio_pb.htm.
acesso em Jun/2016).
2
José Murilo de Carvalho, em seu livro Formação das almas, reflete sobre a elaboração
e construção do imaginário entorno de símbolos cívicos, como a bandeira e o Hino
Nacional e heróis como Tiradentes, em meio aos embates entre republicanos de um lado
e de outro, os monarquistas e opositores do novo governo.

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privado e com a tutela masculina tecendo um dos mais importantes símbolos


cívicos até hoje.

Para fazer oposição à monarquia, representada pela figura masculina do


rei, a figura feminina foi muito utilizada, no final do século XIX e início do XX,
como encarnação do novo governo no Brasil (CARVALHO, 1990). A república
se revelada nas imagens, pinturas e charges; ora como uma mulher majestosa,
segura e imponente, ora como desencorajada, prostituída e decadente3. Em um
364
4
momento em que a impressa brasileira ganhava força e incremento , essas
imagens da república-mulher circularam intensamente pelo país, alcançavam e
influenciavam a opinião pública, através das páginas tanto de jornais
simpatizantes quanto de jornais opositores. Os textos, crônicas, desenhos,
fotografias e propagandas contidas nas páginas da imprensa, no começo do
século XX, revelam aos historiadores os discursos que atuaram na tentativa de
esboçar uma ‘‘nova’’ mulher brasileira.

As representações de gênero, mas especificamente as representações do


feminino, que são nossa principal preocupação, são construídas, mantidas e
legitimadas através de discursos. Segundo o pensador Roger Chartier (1987), as
representações não são construídas de maneira ingênua ou desinteressadas, elas
propiciam práticas políticas e sociais e são fruto da ação de grupos dominantes
que buscam impor práticas, valores, condutas e modos de ser. Segundo a
historiadora Carla Pinksy (2013) as representações do feminino vão definir o
papel da mulher na sociedade, bem como determinar, em cada época, as várias
instâncias da vida social, política e privada das mulheres, influenciando, por
exemplo, as políticas públicas, as determinações religiosas e jurídicas, a
educação, oferta de emprego e etc. Através das representações podemos
‘‘identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada

3
Sobre o fracasso da tentativa dos intelectuais brasileiros de representar a república
como uma mulher, como ocorreu na revolução francesa ver José Murilo de carvalho,
Formação das almas, p.87.
4
Tania de Luca (2008) explica que século XX inaugurou uma nova forma de produção
de jornais. Agora motivados pelo lucro os donos de empresas jornalísticas e tipografias
passaram a incrementar as técnicas de produção, com materiais mais modernos, papéis
mais resistentes e elaborados e aperfeiçoaram também a distribuição.

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realidade social é construída, pensada, dada a ler’’ (CHARTIER, 1987, p.17).


Sendo assim ao observarmos as representações femininas contidas nos discursos
da imprensa no começo do século XX temos como objetivo tentar vislumbrar “o
que se da a ler” quanto ao feminino nesse momento da história brasileira.

O início do século XX foi um momento de grandes transformações


políticas e sociais, estamos nos referimos não apenas às inúmeras revoltas que
marcaram a chamada república velha, a fundação da universidade do Rio de
365
janeiro em 1920, a Semana de arte moderna em São Paulo, a revitalização da
cidade do Rio de Janeiro, a fundação do partido comunista em 1922, o início da
coluna prestes em 1925 e revolução de 1930. Mas também ao que tange aos
direitos femininos, foi momento de transformações e conquistas com a intensa
articulação do movimento feminista, em favor de direitos sendo o principal, o
direito ao voto e a candidatura. No rio de janeiro foi criado em 1922, pela bióloga
Bertha Lutz, a Federação Brasileira pelo Progresso feminino. A FBPF contou
com o apoio de vários estados, inclusive Goiás onde em 1931 foi fundada a
Federação Goyana pelo Progresso Feminino. Toda essa movimentação
feminina encontrou respaldo na imprensa, vários jornais escritos ou não por
mulheres, se preocuparam em refletir sobre a atuação feminina e estabelecer
limites para as suas conquistas.

Desde o século XIX, por todo Brasil, várias mulheres se reuniram e


ousaram a escrever sobre elas e para elas, marcando a inserção das mulheres no
jornalismo alternativo (CASADEI, 2011). Criado por Joana Paulo Manso de
Noronha em 1852 no Rio de Janeiro, O jornal das senhoras, foi o primeiro
periódico feminino escrito por mulheres no Brasil. Pelas palavras de sua própria
criadora, O jornal das senhoras tinha por objetivo “de propagar a illustração, e
cooperar com todas as suas forças para o melhoramento social e para a
emancipação moral da mulher” (NORONHA, 1852, n º1, p.1 apud BARBOSA,
2003, p.2).

Seguindo esse mesmo objetivo de promover o melhoramento e o


progresso feminino, surge no século seguinte na cidade de Goiás, antiga capital
do estado de Goiás, o Jornal O Lar. Esse ‘‘jornalzinho’’, como era

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carinhosamente chamado por suas idealizadoras, circulou em Goiás entre os anos


de 1926 e 1932, deixando de circular em 1931 e retornando em 1931, por
motivos financeiros segundo consta em suas próprias páginas. Antes da
existência desse jornal existiu também em Goiás, outro chamado A Rosa, que
teve um período de circulação menor. Ambos os jornais circularam na cidade de
Goiás na primeira metade do século XX. Ambos, além de voltarem-se para o
bello sexo, também foram dirigidos e produzidos por ele. A existência desses
366
jornais indica uma tentativa por parte das mulheres no sentido de instruir e
aconselhar outras mulheres. É interessante constatar também que os dois são um
exemplo de que a imprensa feminina não se restringiu aos grandes centros
urbanos. As mulheres do interior e do sertão brasileiros também demonstraram
o desejo de serem ouvidas. Contudo as mulheres que tomaram a iniciativa de
produzir os jornais, assim como às mulheres presentes no quadro A Pátria, com
o qual introduzimos esse texto, são um tipo feminino específico; brancas,
burguesas e católicas. Nas páginas de O Lar, assim como na pintura, não é
possível notar a presença nem ouvir as vozes das mulheres negras e pobres.
O Lar era o espelho da alma das mulheres goianas burguesas,
pois eram elas que frequentavam as escolas e aprendiam a ler
e a escrever. O Lar representa unicamente essas mulheres, as
quais reportavam ao feminismo trazendo referências
nacionais de Berta Lutz e o consideravam um movimento
importante, que estava acontecendo em diferentes regiões do
país e também em Goiás (DE PAULA, 2014, p.51).

A diretora era Oscarlina Alves Pinto e praticamente todo corpo editorial


era formando por jovens escritoras da elite goiana, assim como Oscarlina. A
colaboração masculina acontecia com menor frequência. Dentre as principais
colaboradoras podemos citar Altair de Camargo, Ophelia do Nascimento, Yeda
do Nascimento, Maria Ferreira Azevedo, Genezy de Castro, Graciema Machado,
Floracy Artiaga e tantas outras.

O Lar, assim como outros jornais e revistas goianas do período, tinha


como objetivo divulgar as potencialidades do estado, colaborando assim com o
desenvolvimento político e cultural de Goiás. Além de ser um importante veículo
para disseminação de ideias femininas a respeito da própria existência, uma

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existência sensível as mudanças políticas e sociais do momento. Mudanças essas


embaladas por ideias modernizantes, principalmente no sul e sudoeste do estado,
que previam uma modernização política para colocar fim ao predomínio das
oligarquias5, uma modernização na estrutura econômica com a inserção
paulatina do estado ao capital nacional e uma modernização no âmbito cultural,
que previa novos comportamentos e novas posturas para um novo Brasil.

367
A mulher nas páginas da imprensa

O próprio nome do jornal analisado – O lar, – demonstra a relevância do


ambiente privado na vida feminina. Era entorno desse espaço que giravam as
principais preocupações destas mulheres. Nas primeiras décadas do século XX
‘‘a família continuou a ser considerada como núcleo irradiador do ordenamento
social’’ (DINIZ, 2013, p.61). O homem garantia o sustento econômico e a
mulher cuidava da manutenção e higiene da casa e da educação dos filhos.
A integração familiar á ordem foi um dos objetivos mais
arduamente perseguidos pela medicina higienista. Neste
sentido, elaborou uma política de saúde que cuidava de mudar
os hábitos e os valores nocivos da tradição, de estabelecer
uma nova ética das relações afetivas que orientasse o
comportamento dos indivíduos em todas as circunstâncias da
vida privada e social. (MURICY APUD HERSCHMANN,
1994, p.27).

Quando não fazia referência ao ambiente privado, os jornais femininos


normalmente recebiam nomes de flores como A camélia, A rosa e O lírio. Uma
alusão à natureza feminina, caracterizada pela doçura, pureza e beleza
representadas pelas flores. Ao longo de toda nossa fonte, inúmeros são os textos
que associam mulheres e flores.

Maio, em especial é o mês das flores e da virgem Maria. A religiosidade


cristã católica é outra marca do jornal. Todas as escritoras eram católicas, sendo

5
Existe um debate sobre a circunstância da revolução de 30 em Goiás, para alguns
autores como Chaul tratou-se de fato de uma alternância de poder, segundo outra linha
que privilegia os continuísmos temos Palacin e Arrais, sendo que segundo Arrais, a
revolução de 30 foi marcada pelo patrimonialismo, conservadorismo e clientelismo,
destoando dos discursos de progresso e modernização. (DINIZ, 2013).

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assim o jornal também servia para fortalecer os princípios cristãos. O divórcio,


por exemplo, que colocava em perigoso o sacramento sagrado do matrimônio,
era veementemente combatido. Maria, mãe de cristo era o maior exemplo
feminino a ser seguido. Um exemplo de amor, resignação e cuidado com a
família.

A beleza também era um assunto muito discutido, textos sobre beleza


preenchiam a maior parte dos números, uma boa esposa não deveria descuidar
368
da aparência, como forma de agradar ao marido e manter a felicidade do
casamento. Mas nessa busca constante por se manter bela, as mulheres deviam
ter todo cuidado com a moda, considerada uma ‘‘rainha caprichosa que escraviza
as mulheres’’. O uso excessivo de maquiagem, roupas curtas, principalmente
dentro da igreja era considerado um escândalo.

Segundo Sávia Bastos Diniz (2013) no contexto em questão a imprensa


reafirmou-se como instrumento de construção e validação de modelos de
comportamento. As representações da imprensa feminina brasileira no recorte
temporal no qual circulou o jornal dividiam se em dois eixos: um deles era o da
representação que enalteciam a mulher como mãe e esposa; e o outro mais
voltado à reivindicação de direitos e emancipação feminina (BUITONE, 1981,
apud CASADAI, 2011). Retornando à fonte, podemos perceber a convivência
desses dois tipos de representações. O ‘‘bom feminismo’’ era o responsável por
garantir as negociações entre deveres tradicionais da mulher e suas aspirações à
vida pública. Esse feminismo devia ser capaz de conscientizar a mulher sobre
suas capacidades políticas e sociais, mas que não permitisse à mulher, esquecer-
se que seu papel primordial ainda era desempenhado dentro de casa. O
feminismo radical era o oposto ao ‘‘bom feminismo’’, pois transformava as
mulheres em homens, o que era totalmente inaceitável.
Entre as questões sociais, uma das quais tem agitado o espírito
moderno, desde a aurora indecisa do armistício de 1918, é a
avalanche das novas correntes feministas que, na América
como na Asia e, principalmente, na Europa, empolga a
atenção dos graves homens votados aos estudos dos
phenomenos sócio-politicos [...]. Entre nós, no Brasil, tudo
indica que o problema feminino será resolvido,
paulatinamente sem saltos nem abalos pertubadores da ordem
social, dando-se a mulher, com prudentes restrições a

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principio, o direito do voto e de eleição; abrindo-lhes caminho


para todas as posições compativeis com seu sexo e condição.
Leo Lynce, 30 de Outubro de 1926.

As conquistas femininas estavam ganhando o consenso entre grande


parte dos intelectuais, contudo essas conquistas deveriam ser alcançadas sem
comprometer a ordem social. Frente à modernidade e aos avanços técnicos,
alguns valores principalmente relacionados à família deveriam prevalecer e se
fortalecer. O matrimônio fosse civil ou religioso era uma etapa fundamental na 369
vida de um cidadão. Defendido pela Igreja, pelo Estado e pelos cientistas, o
casamento representava etapa superior das relações amorosas, [...] proclamado
‘‘garantidor da saúde da humanidade’’, o melhor remédio para o corpo e para a
alma e se constituía uma das maiores fontes de ‘‘estabilidade social’’. (MALUF;
MOTT, 1998, p.386).

A política e a mulher, substantivos femininos

O jornal servia de suporte para as produções literárias das moças goianas,


mas também tinha um caráter noticioso. Em suas páginas eram retratados
acontecimentos da cidade, do estado, do Brasil e até do mundo, contudo o
cenário político turbulento de instabilidade entre as oligarquias locais em Goiás,
que era escancarado nos jornais ‘‘masculinos’’6, praticamente não aparecia nas
páginas de O Lar. Por outro lado, quando o assunto era a política, haviam muitos
defensores e defensoras do sufrágio feminino e da participação da mulher nas
eleições como candidata, desde que isso não interferisse nas suas obrigações
sagradas de mãe e esposa. Algumas escritoras protestaram contra o estigma de
que a mulher se preocupa apenas com coisas fúteis,7 e chegaram a defender que
algumas características femininas consideradas naturais, como sensibilidade, a
paciência, a doçura e a propensão ao cuidado do outro, - fosse o marido os filhos
ou a própria casa-, eram elementos que faltam para restaurar a seriedade na

6
Sobre a política através da imprensa em Goiás nesse período ver Cristiano Alencar
Arrais, Mobilidade discursiva: O periodismo político e Goiás, 2013.
7
O Lar, 1 de Outubro de 1927.

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política. A mulher, na medida do possível, seria uma solução frente os casos de


corrupção que pareciam arraigados na política nacional. A mulher devia não só
reivindicar seus direitos, mas abraçar seus deveres como patriota.
Não consiste o patriotismo somente em amar a patria, porém
em fazer por Ella tudo quanto estiver ao nosso alcance, em
nós esforçar com insistência para o engrandecimento dessa
terra querida [...] coube à mulher goyana, dando exemplo de
patriotismo, levando avante com este nobre intuito, o
engrandecimento da nossa terra, trabalhando em prol do nosso
Goyaz tão querido! E’ natural que para vencer, seja preciso 370
luctar!
Avantes, sempre com os olhos fitos no bem que desde feito,
surgirá para a geração futura, a esperança da Patria!
Oscarlina Alves Pinto, 15 setembro de 1926.

Nos anos seguintes da proclamação da república houve um empenho por


parte da elite intelectual em legitimar o novo governo. Ao longo do jornal a data
de 15 de novembro sempre é lembrada e exaltada como um importante momento
da nossa história8, contudo socialmente a república no Brasil, apesar de significar
um rompimento e renovação na política, manteve a hierarquia e as desigualdades
sociais (CARVALHO, 1990), justamente por isso era necessário não apenas
consolidar a república brasileira e suas instituições, mas também criar uma nova
nação, onde as diferenças sociais fossem camufladas sob o estigma da união e
da homogeneidade do povo brasileiro. Sendo assim os intelectuais do período
também se dedicaram a desenvolver um projeto político que envolvesse os
indivíduos, um projeto no qual a nação abraçasse o governo. José Murilo de
Carvalho (1990), explica os projetos políticos discutidos no Brasil nesse período;
o primeiro inspirado no liberalismo anglo saxão e na independência dos estados
unidos, o segundo veio da frança, mais precisamente do jacobinismo francês, e
o último era o modelo positivista. Todos os modelos importados de experiências
políticas exteriores ao Brasil. Características desses projetos, principalmente o
Frances e o positivista podem ser percebidos em nossa fonte. A influência
francesa acontece através de poemas e textos que exaltam eventos como a
tomada da bastinha e o fim do antigo regime na frança. As ideias positivistas

8
O Lar, 15 de Novembro de 1926.

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também estão bastantes presentes, principalmente através da defesa constante do


estado, da família e dos costumes brasileiros.

O Brasil vivia um clima de modernidade, as transformações políticas e o


desenvolvimento técnico deixavam transparecer a sensação de que o tempo
corria vertiginosamente.
No afã do esforço modernizador, as novas elites se
empenhavam em reduzir a complexa realidade social
brasileira, singularizada pelas mazelas herdadas do 371
colonialismo e da escravidão, ao ajustamento em
conformidade com padrões abstratos de gestão social
hauridos de modelos europeus ou norte-americanos. Fossem
esses os modelos da missão civilizadora das culturas da
Europa do norte, do urbanismo cientifico, da opinião pública
esclarecida e participativa ou da crença resignada na
infalibilidade do progresso (SEVCENKO, 1998, p.27).

Podemos considerar que a nação moderna não é uma entidade abstrata e


sim ‘‘um fenômeno político-cultural de intervenção sobre o corpo do indivíduo
para forjar o corpo coletivo da nação’’ (FLORES, 2007, p.68), nesse sentido o
corpo feminino também estava a serviço da nação colaborando com o bom
desempenho da pátria, como fica claro no texto A cultura physica no mundo
feminino:
Para que a mulher constitua a especime de valor, seja sadia,
forte, linda e vigorosa, é mister que não se descure de sua
educação physica, e por meio da gymnastica [...] procure
esthetizar e robustecer o corpo, desenvolver e revigorar o
organismo. A gymnastica tende não somente a aperfeiçoar o
delineamento do corpo, mas ainda a communicar aos que a
praticam o constante enthusiasmo da formosura e da sanidade
corporal, o cultivo da força e da alegria.
A gymnastica é, no mundo feminino, um dos complementos
essenciais a sua saúde e vigor, robustez e alegria.
Mas, para que a mulher cresça convicta dos bens produzidos
pela sciencia esthetica, é preciso que esse gosto lhe
desenvolvido desde creacinha nas escolas [...].
Cabe pois, aos mestres a sublime missão de educar para a
Pátria uma geração sadia e forte, athetica e bella.
(Grace Machado, 15 de abril de 1927)

Intelectuais brasileiros como Dr. Renato Kehl, Raimundo Nina


Rodrigues e Raimundo Batista Lacerda dentre outros, juntos ao governo no
início de século XX, estavam empenhados em discutir as ideias eugênicas que

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chegavam ao país desde metade do século XIX. Essas ideias seriam como um
antídoto para sanar o problema da mestiçagem no Brasil – embranquecendo o
país, tornando-o mais parecidos com as nações europeias desenvolvidas e
combatendo comportamentos que acentuavam a degeneração da nação, como
alcoolismo, o vício em jogos, a lascívia e a loucura. Dentre os métodos
oferecidos pela eugenia para embelezar e aprimorar a não maculada pela
mestiçagem, estavam o escotismo e aulas de educação física, práticas que
372
deveriam ser incentivadas desde a infância, já nas escolas. Nesse momento o
governo também demonstra uma grande preocupação com a educação, como
uma forma de educar os jovens para uma nação forte e desenvolvida.

A mulher que garantia sua saúde física e a saúde física de sua prole
estava, portanto colaborando com o futuro da nação. A preguiça e as doenças
eram questões que preocupavam o governo brasileiro, durante a primeira metade
do século XX as preocupações médicas e sanitárias fizeram com que a saúde se
tornasse uma questão política e moldaram a identidade brasileira.9

Conclusão

O comportamento feminino começou a mudar sensivelmente no começo


do século XX; na moda os cabelos longos davam lugar aos curtos, os decotes
aumentavam e as saias subiam, além disso, algumas moças já estudavam e se
formavam; professoras, médicas, advogadas; cada vez mais mulheres das classes
mais abastadas circulavam sozinhas por ruas, antes povoadas por mulheres
pobres e trabalhadoras atrás de sustento. Se por um lado essa mudança na rotina
das mulheres era acusada de corromper a moral e prejudicar a ordem social, por
outro lado as mulheres galgavam lentamente novos espaços e novos papéis. No
interior do Brasil essas mudanças também eram percebidas, e a imprensa serviu
de placo para as discussões sobre o comportamento dessa mulher moderna.
Realmente já se nos apresenta um tanto acentuado o
movimento da mulher em nosso paiz. Vemol-a, de norte a sul,
a infiltrar se por quase todos os ramos da actividade humana.

9
Para aprofundar na questão da saúde na primeira república ver Noé Freire Sandes,
Nação, políticas de saúde e identidade, 2002.

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Se temos mulheres em casa, cuidando dos seus sagrados


deveres de família, temol-as tambem entre outras
modalidades da vida, nos bancos academicos, nos
escriptorios, no magisterio, nos esportes, no commercio, no
sacerdocio da medicina e da advocacia, no jornalismo e nos
mais altos da administração publica. [...]
(Graciema Machado, agosto de 1926.)

Havia uma consciência de estar-se vivenciando um momento totalmente


novo, que o dever de deixa para trás nosso passado escravista e nossas raízes
373
colonial. Nesse contexto expressões como moderno e modernidade faziam parte
do vocabulário jornalístico. Como explica Herschmann e Pereira (1994).
Moderno, modernidade, modernismo ou mesmo modernização são categorias
específicas, que vão ocupando amplo espaço no campo intelectual, constituindo-
se em palavras de ordem significativas no começo do século XX, chegando a
ganhar um uso quase obrigatório no ambiente intelectual de então (p.15). Essa
aura de modernidade construída sobre a tríade da medicina, da educação e da
engenharia10, repercutiu nas cidades através da imprensa e dos jornais que, com
suas crônicas e artigos, suscitavam debates entre intelectuais e especialistas e
criavam uma opinião pública acerca do moderno. Através da imprensa ‘‘nas
crônicas, artigos e propagandas, representações do ideal familiar tradicional, de
acordo com o projeto de um estado moderno e civilizado, eram divulgadas’’
(DINIZ, 2013, p.59).

O progresso no sentido técnico e político é um elemento exaltado. Goiás


recebia as linhas férreas e o telégrafo, a capital já contava com a presença de
automóveis, cinema e teatro, o que deixava a população eufórica e espantada
com tanta novidade. Entretanto, quando o assunto eram os costumes e o
comportamento feminino, o progresso e a modernidade deveriam ser
experimentados com cautela. O ‘‘modernismo’’, como se denominava o
conjunto de novos costumes, principalmente de influencia estrangeiras como as
danças e a moda, era acusado constantemente de deturparem a moral feminina.
Como fica evidente na coluna chamada Fora do Lar publicada no número 29,

10
Herschmann e Pereira no livro A invenção do Brasil Moderno; Medicina, educação
e engenharia nos anos 20-30, explicam como a modernização no Brasil aconteceu pelo
viés da educação, da ciência e da engenharia.

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onde a autora, de pseudônimo de A indiscreta, relata sua opinião sobre o


comportamento das moças nos bailes e o papel inapropriado que essas se
prestam, dançando as tais ‘‘danças modernas’’ como requebrados, tangos,
maxixes, fox trot e charlestons, mantendo grande proximidade com os rapazes e
ignorando as advertências de seus responsáveis. A figura paterna como chefe do
lar, é sempre responsabilizada pelo comportamento inadequado das filhas.
Antigamente, os bailes eram mais animados, é verdade; mas
as danças menos exaggeradas; assim mesmo nunca uma moça 374
frequentava sozinha essas reuniões e os seus pares eram
sempre apresentados ou acceitas pelos paes.
Hoje, não; tudo é moderno, tudo é progresso.
As moças, nas barbas dos seus paes, vão fazendo o que lhes
vem a cabeça, sem temerem reprehensões, nem castigos;
certamente porque sabem que o progresso em que estamos
não admite mais essas drogas antiquadas.
(15 de Outubro de 1927)

A novidade é condenada quando o assunto é o comportamento feminino,


como segue explicando A indiscreta em outra publicação: ‘‘O gosto acentuado
por tudo que é novidade e modernismo, muitas vezes nos traz infelicidades.
Sejamos moderadas e cautelosas nos nossos costumes e modo de trajar’’11.
Dentro e fora do lar, a mulher encontrava maneiras de se dedicar ao país, fosse
educando os filhos, cuidando da casa, mas também reinventando o voto e o
espaço público. A ‘‘nova mulher’’ do século XX, continha em si muitas
características da tradição cristã e dos valores de suas antepassadas, mas diante
das mudanças que ocorriam em todo mundo e no próprio país, essa mulher
brasileira, dos grandes centros e também do interior, viu a necessidade e
aproveitou o momento para romper silêncios e marcar presença em espaços antes
não ocupados por elas. É um momento da história brasileira marcado por
continuidades e rupturas, onde a mulher precisa lidar com essa tensão entre o
público e o privado, o moderno e o tradicional, para definir sua atuação como
mulher, como mãe, mas também como cidadã. Fosse dentro do ambiente privado
costurando a nova nação ou na rua reivindicando novos direitos políticos a

11
31 de Janeiro de 1298.

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mulher, como explica Oscarlina, ‘‘nos nossos dias já não é um ser inútil à
sociedade e à senda literaria; ella quer lutar, quer ser proveitosa ao seu paiz’’.12

REFERÊNCIAS

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de 1920 a 1935. Monografia bacharel em história Universidade Federal de Goiás
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CARVALHO, Maria Meire de; SANT’ANNA, Thiago. Ações culturais e


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12
30 agosto de 1929.

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BELAS, RECATADAS E DO LAR? : UMA ANÁLISE SOBRE AS


PERSONAGENS DE ORGULHO E PRECONCEITO, DE JANE
AUSTEN

Isabela Brasil Magno*

Sobre a autora e o contexto da obra


378
Jane Austen nasceu em Stevenson, no condado de Hampshire, em 16
de dezembro de 1775 e aos 41 anos não conseguiu sobreviver a uma enfermidade
desconhecida, que hoje acredita-se que fosse a doença de Addison. Após o
falecimento de seu pai, ela, junto à irmã e a mãe, tiveram que se mudar para
Chawton, pois as leis inglesas garantiam o direito à herança somente ao filho
primogênito, o que serve como justificativa para sua constante preocupação com
a condição financeira das mulheres (MOURA, 2015). A autora pertencia à baixa
nobreza, chamada de “middle-class”, além disso, seu pai era pároco, fatores que
lhe permitiram oportunidades raras para as mulheres daquele período, como o
acesso à educação e a uma infinidade de livros, o que também explica sua ampla
abordagem acerca da instrução feminina.

Entre seus principais romances estão Orgulho e Preconceito, Razão e


Sensibilidade, A Abadia de Northanger, Lady Susan, Mansfield Park, Emma e
Persuasão. Por se tratar de um contexto em que a escrita feminina não era bem
reconhecida, Austen, como muitas mulheres contemporâneas a ela, tais como
Sarah Fielding, Frances Burney e Ann Radcliffe, publicou seus primeiros
trabalhos com o pseudônimo “A Lady” e, como as outras, só assumiu seu nome
quando já estava mais estabelecida (MOURA, 2015). Outra dificuldade que as
escritoras enfrentavam em relação à autoria era pelos dispositivos legais, que
exigiam a autorização do marido para a publicação, o que só mudou na França
em 1965. No entanto, isso acabou não atingindo Austen, por ela ser solteira.

*
UFPR.

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Ela lançava seus livros através do esquema de comissão, pelo qual ela
arcava com os custos dos exemplares, caso não fossem vendidos. Seu primeiro
romance, Razão e Sensibilidade, esgotou na primeira edição, em 1811, lhe
rendendo um pagamento não muito grande, mas suficiente para ela seguir nessa
carreira, pois via no mercado editorial uma fonte de renda, rompendo com a ideia
de que ela não era profissional (MOURA, 2015). Apesar de isso ter se tornado
seu sustento, enquanto viva, suas obras nunca alcançaram muito sucesso nas
379
vendas. Só foi vista como uma grande escritora a partir de 1870, com a
publicação de “Memoir of Jane Austen”, pelo seu sobrinho James Edward
Austen-Leigh, que deu visibilidade para a figura e as memórias da sua tia, o que
permite uma reflexão acerca do reconhecimento de Jane Austen ter começado
através da escrita de um homem e não pela sua própria escrita, indicando como
o paternalismo sempre foi determinante em sua vida. Foi em meados do século
XX, com uma crítica do professor D. W. Harding, em 1940, que a escritora
entrou para o hall dos nomes da literatura inglesa, permanecendo assim até hoje
(MOURA, 2015).

Tendo em vista certos fatos da vida da autora, é possível fazer uma


leitura interpretativa que vai além da história narrada em Orgulho e Preconceito.
No artigo produzido por Sandra Mônica do Nascimento (2012) é apresentado o
autor Fredric Jameson, o qual propõe uma análise literária que permite a
percepção de aspectos contextuais, a fim de auxiliar na compreensão da obra.
Segundo Jameson (1992) citado por Nascimento (2012, p.2) há um primeiro
nível de interpretação, advindo da leitura do “conteúdo manifesto do enredo”,
ou seja, uma etapa em que se identificam os aspectos aparentes, superficiais da
obra. O segundo nível consiste no que ele nomeia por “estratégias de
contenção”, no qual o leitor deve atentar para certos pontos passíveis de críticas,
que vão permitindo o entendimento de fatores mais subjetivos da escrita,
carregados de significados e simbolismos intrínsecos, não identificáveis no
primeiro momento. Ele exemplifica com os casamentos apresentados por
Austen, cada qual representando uma perspectiva da autora para a sua obra. Por
fim, o terceiro nível seria uma “análise estética”, a qual liga esses fatores às
questões contextuais, propiciando correlações e a melhor apreensão da obra, não

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somente como um romance literário, mas como um reflexo da experiência e do


contexto de Jane Austen.

Esse modelo de interpretação foi utilizado por Nascimento (2012) e


apesar de servir a um trabalho literário, também ajuda no trabalho histórico.
Através desse, percebe-se como a autora retrata, em sua escrita, o contexto que
ela vivia, pois isso gera com seu público leitor certa identificação com a
narrativa, aproximando a obra com a sociedade em que se inseria. Ou seja, apesar
380
de se tratar de uma ficção, ela representa a vida daquele período. No entanto,
Austen usa dessa estratégia para expressar suas opiniões, de forma sutil, para que
a obra não sofresse total rechaço, mas ainda assim criticando e questionando
paradigmas sociais vividos por ela.

É importante considerar que a autora viveu o período das Revoluções,


a Francesa e a Industrial. Essas geraram mudanças significativas na sociedade,
deu visibilidade para as lutas políticas e sociais das mulheres, inclusive, a
escritora Mary Wollstonecraft, com seu livro “Uma Reivindicação pelos Direitos
da Mulher” (1792), serviu como grande referencial para Austen. Gradativamente
as mulheres foram adentrando ao mercado de trabalho, o que evidenciou ainda
mais a desigualdade de gênero, já que o trabalho feminino era altamente
explorado; e apesar disso, a mentalidade machista continuava imperando. É claro
que todo esse cenário de alguma forma reflete nas obras da autora e alguns
pontos específicos servem como exemplo disso: a questão financeira feminina
(como já dito anteriormente); a construção do casamento, como algo natural na
sociedade; a limitação da mulher graças à sociedade paternalista; enfim, uma
série de experiências da autora, que estão implícitas na sua escrita. Assim, tendo
em mente que a história e o contexto de Jane Austen eram determinantes em seus
trabalhos, a seguir serão abordados, com mais detalhe, as características da sua
escrita, juntamente com seus significados.

ISBN: 978-85-65957-07-6
Rio de Janeiro
Ed. Anpuh-Rio
Atas do II Encontro Nacional do GT Estudos de Gênero
Rio de Janeiro, 27 e 28 de outubro de 2016.

Teoria feminista sobre gênero e escrita: o que é a escrita feminina?

Antes de adentrarmos a análise das personagens, das críticas e da


experiência da autora como mulher e escritora, em seu contexto, é importante
analisar a questão da teoria feminista sobre gênero e escrita. Muitas de nossas
problematizações e reflexões sobre a obra de Jane Austen advêm da leitura
desses ensaios teóricos, que trazem uma nova leitura sobre a questão de gênero
na Literatura, sobre o papel exercido pelas mulheres nessa área, sobre as
381
peculiaridades de uma escrita feminina, e sobre como a visão feminista da
literatura feita pelas mulheres atua na desconstrução dos cânones literários
masculinos e tradicionais.

Elaine Showalter (1994) é uma crítica literária estadunidense, fundadora


da teoria crítica feminista denominada ginocrítica. Essa teoria é caracterizada
por defender a existência de um processo de escrita literária exclusivamente
feminina; possuidora de uma essência única, e especificidades que só podem ser
encontradas nessa literatura. Em sua definição original, Showalter escreveu:
A segunda forma da crítica feminista produzida por esse
processo é o estudo da mulher como escritora, e seus tópicos
são a história, os estilos, os temas, os gêneros e as estruturas
dos escritos de mulheres; a psicodinâmica da criatividade
feminina; a trajetória da carreira feminina individual ou
coletiva; e a evolução e as leis de uma tradição literária de
mulheres. Como não existe um termo em inglês para este
discurso crítico especializado, inventei um termo gynocritics
(ginocrítica). A ginocrítica oferece muitas oportunidades
teóricas, o que não acontece com a crítica feminista.
(SHOWALTER, 1994, p.29)

Rompendo com o paradigma inicial das outras teorias feministas, que


apenas mostravam a feminista como leitora de textos que levassem em
consideração as imagens e estereótipos das mulheres na literatura, a ginocrítica
concentra-se em uma escrita exclusivamente feminina. Tem o propósito de
redefinir as diferenças que nascem nas experiências biográficas e nos modos de
expressão que sempre marcaram a condição feminina.

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É interessante ressaltar que a ginocrítica faz uso de quatro modelos que


podem influenciar nas diferenças presentes na escrita das mulheres. São eles o
modelo biológico, o linguístico, o psicanalítico e o cultural.

A perspectiva biológica abrange a importância do corpo como fonte para


a imaginação. As teorias linguísticas questionam sobre as diferenças do uso da
língua por homens e mulheres; e também se a fala, a leitura e a escrita são
marcadas por gênero. Em termos psicanalíticos, a questão da falta, da visão da
382
mulher como mãe-filha, e o envolvimento do gênero nas percepções de
diferença, identidade e preferência sexual são muito abordados. No âmbito
cultural, é possível perceber as diferentes experiências femininas através do
tempo; além de poder compreender como as mulheres são percebidas pelo grupo
dominante, como elas se percebem, e como percebem os outros. Essa perspectiva
cultural torna-se importante, pois engloba todas as outras categorias, retratando
a ginocrítica em sua essência. Assim, não poderia faltar a fala de Showalter sobre
esse tema em específico.
Uma teoria cultural reconhece a existência de importantes
diferenças entre as mulheres como escritoras: classe, raça,
nacionalidade e história são determinantes literários tão
significativos quanto gênero. Não obstante, a cultura das
mulheres forma uma experiência coletiva dentro do todo
cultural, uma experiência que liga as escritoras umas às outras
no tempo e no espaço. É na ênfase na força que liga a cultura
das mulheres que esta abordagem difere das teorias marxistas
da hegemonia cultural. (SHOWALTER, 1994, p.44)

A ginocrítica é considerada por esta autora como o mais completo


modelo cultural para o estudo da escrita de autoria feminina, porque nela não
vemos apenas a história feminina dentro da tradição crítica, mas também dentro
da tradição masculina, e, consequentemente, dominante. A escrita feminina
transita entre as duas tradições; e, por isso, não pode ser estudada afastadamente
ao contexto em que foi criada.

Além disso, esse modelo nos apresenta uma outra perspectiva da história
literária; uma vez que situa tanto as escritoras individualmente (e suas
particularidades biográficas, sentimentos, impressões) como também os diversos
períodos em que suas obras se encontram – e as diversas relações que se pode

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estabelecer entre esses aspectos. A ginocrítica analisa o que as mulheres


realmente escrevem e não o que escrevem sobre elas, e, muito menos, o que elas
deveriam escrever.

Para a pensadora, a ginocrítica oferece muitas oportunidades teóricas,


pois “ver os escritos femininos como assunto principal força-nos a fazer a
transição súbita para um novo ponto de vantagem conceptual e a redefinir a
natureza do problema teórico com o qual nos deparamos”. (SHOWALTER,
383
1994, p.29) A ginocrítica adentra o território feminista, considerado também
como "território selvagem", apresentando não só uma discussão de gênero, e
como ele interfere na escrita das mulheres, mas apresentando também uma
abordagem cultural daquelas mulheres que se arriscaram a escrever (em muitos
momentos em que essa atividade era vista majoritariamente com olhares
masculinos). Responder a questionamento de "quem eram elas?", "em que
contexto da sociedade estavam inseridas?", "em que sentido suas produções se
unem?", tornou-se mais importante do que a simples (porém não desnecessária),
categorização e distinção de gênero.

Nessa mesma perspectiva de buscar um “outro lugar” para a escrita


feminina, e desconstruir os parâmetros masculinos da produção literária, Sandra
M. Gilbert e Susan Gubar apresentam a ideia de que o autor, e,
consequentemente, a autoria, sempre foram temas tratados como masculinos
(GILBERT; GUBART, 1998). Assim, com a criação literária não seria
diferente. Sempre foi o homem quem participou da escrita literária renomada,
do cânone. Tradicionalmente, a criação segue uma metáfora de paternidade, em
detrimento da maternidade; uma vez em que a mulher sempre foi considerada
como "criadora de matéria"; enquanto o homem criava a "cultura, o
conhecimento". As mulheres não criam culturas; por isso, sempre ocuparam os
espaços excludentes do contexto da escrita literária. Elas são apenas criaturas, e
não criadoras.

Por isso a entrada das mulheres na escrita literária foi um problema. A


mulher sempre foi vista pelos olhos masculinos que, obviamente, nunca a viram

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como parte do centro de atrações da literatura, mas sim como pessoas que sempre
estariam atrás dos homens. Sempre seriam inferiores.

A criação literária feminina, apesar de possuir muitas características de


conformismo, possui também uma essência de resistência e enfrentamento ao
contexto opressor e patriarcal ao qual estavam inseridas. A entrada das mulheres
na cultura escrita, e principalmente as produções femininas do século XIX
registrou o momento de uma desconstrução das imagens femininas anteriores,
384
assim como a construção de novas imagens (como uma forma de "sair do espelho
que as distorcia" socialmente).

As mulheres nunca foram consideradas virtuosas, capazes, criadoras,


literárias. Essas eram características estritamente masculinas. No entanto, o mais
interessante da história feminina, e, principalmente, da trajetória feminista, é que
o desafio nunca foi visto como algo inalcançável. O espaço feminino no cânone
ainda é visto como algo minoritário; mas de que serve o centro, se apenas
contornando-o elas já conseguem modificar um cenário historicamente desigual?

Análise da obra e da construção dos personagens

Antes de se aprofundar na análise do livro convém abordar o cenário


literário contemporâneo a Jane Austen. Gubar e Gilbert (1998) afirmam que no
final do século XVIII e início do século XIX permeavam nas construções
literárias, de autoria predominantemente masculina, o estereótipo de
personagens femininas como essencialmente belas, puras, piedosas e
principalmente passivas, “anjos do lar”. As autoras alegam que uma personagem
mulher não retratada nesses termos frequentemente era a vilã da história,
concebida como um verdadeiro “monstro”. Os homens por sua vez seriam
representados como corajosos e ativos. Nas obras analisadas por essas estudiosas
a relação estabelecida entre as figuras femininas e masculinas era quase sempre
a oposição entre amantes e amadas, aqueles que agem e as que ficam à espera
(GILBERT; GUBART, 1998).

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Como já foi abordado no início do trabalho, a relação entre literatura e


cultura é intrínseca. Tendo isto em vista, estes estereótipos representariam não
só concepções pessoais dos autores, mas sim toda uma cultura que tentava
estabelecer os papeis de gênero na sociedade inglesa do século XIX. Uma leitura
cuidadosa de toda a obra de Jane Austen permite a percepção de que a autora
não fazia coro a essa visão de mundo, ao contrário, teria construído suas
personagens em oposição a essa idealização de seus colegas de profissão.
385
O enredo de Orgulho e Preconceito gira em torno do relacionamento
estabelecido entre Elizabeth Bennet, uma moça sensata da “middle-class” e Mr.
Darcy, um rico aristocrata - à primeira vista extremamente esnobe. A história
inicia com o desprezo mutuo que ambos nutriram um pelo outro em seu primeiro
encontro, passa pela construção de um sentimento de afeição, e finaliza com
consolidação de seu amor, além de retratar vários sub-enredos protagonizados
pelas quatro irmãs de Elizabeth.

A obra tem como três principais temáticas o amor, o casamento e a


instrução feminina, elas se confundem e muitas vezes confundem os leitores que
analisam a trama de maneira superficial. A temática que enfatiza as relações
matrimoniais a e vida doméstica das personagens pode ser enxergada por alguns
leitores como exemplo da frivolidade da escrita de Jane Austen, todavia, os que
fizeram e fazem tal avaliação cometem o erro que a autora explicita no seu
primeiro romance: julgar pelas primeiras impressões. Segundo Elaine Showalter,
“não pode haver escrita ou crítica totalmente fora da estrutura dominante” (1994,
p.50), sendo assim, quando retrata a banalidade da vida doméstica e a competição
matrimonial na sociedade inglesa, Jane Austen permeia suas obras com a
realidade em que vivia, com a cultura em que estava inserida, e ao contrário do
que muitos afirmam, quando retrata esses temas a autora não compactua com
eles e sim os expõe ao ridículo.

Elizabeth, não é definitivamente um “anjo do lar”, é um ser crítico


racional que expões suas opiniões. Não possui autonomia plena - enquanto
solteira depende do pai para sobreviver e quando casada do marido - mas impõe
sua vontade nas mais diversas ocasiões e decide sobre as questões importantes

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da sua vida. Jane, irmã mais velha de Elizabeth, poderia ser identificada
possivelmente como um “anjo do lar”, pois é retratada como uma moça boa,
doce, calada, educada, com grande amabilidade para com as crianças. Entretanto,
na construção da trajetória de Jane, Austen deixa claro que corresponder a esse
estereótipo não seria garantia de felicidade, ao contrário do que era pregado em
outras obras. Pois é consequência da passividade de Jane, de sua reserva e
discrição, seu recato, que a personagem é afastada de seu amado na metade do
386
romance, e até praticamente as últimas páginas do livro sofre por essa separação.

A crítica aos papéis de gênero de Jane Austen ultrapassa as


personagens femininas e também se faz presente nas masculinas. Os homens em
Orgulho e Preconceito também não seguem um modelo de perfeição e a
virilidade. Mr. Darcy está longe de ser o príncipe encantado, suas maneiras rudes
e arrogantes presente em várias passagens do livro deixam isso bem claro. O
futuro marido da protagonista precisou reconhecer seus erros e se livrar de
grande parte de seu orgulho para poder possuir tal título. Mr. Bingley, o par
romântico de Jane, apesar de ter muitas qualidades que poderiam transformá-lo
no ideal de príncipe, assim como sua amada, pena por conta de seu gênio
demasiado bom que o deixa vulnerável à manipulação.

A construção de personagens tolas por parte da autora é também uma


das estratégias utilizadas para criticar a cultura de gênero de seu contexto. A
propósito, o humor, em especial em sua forma irônica, é apontado por várias
teóricas literárias e outras estudiosas feministas, em destaque Gabriella
Castellena (1994), como uma forma da escritora mostrar sua discordância em
relação aos padrões de comportamento estabelecidos na sociedade da Inglaterra
do século XIX. Jane Austen, seguindo uma linha de pensamento de autoras como
Mary Wollstonecraft que remetam a importância de uma educação racional para
meninas e mulheres, apresenta em sua história de que maneira uma instrução
intelectual falha ou uma ausência total de instrução afetam a constituição destas.
Entre as personagens que se situam no segundo caso mencionado estão Mrs.
Bennet, Lydia e Kitty, respectivamente mãe e irmãs da heroína. Mrs. Bennet é
apresentada como uma mãe defeituosa, a falta de racionalidade na sua relação

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maternal teria gerado um indivíduo pouco inteligente como Lydia. Em quase


todas as passagens do romance essas personagens são retratadas de maneira
cômica, ridicularizadas. Não há figuras maternas positivas em Orgulho e
Preconceito, justamente pela falta de educação que lhes era atribuída.

Jane Austen parece “cree que las mujeres han estado aprisionadas de
forma màs efetiva por la mala educación que por las paredes” (GILBERT;
GUBART, 1998, p.147). Essa “educação ruim” que trata Austen nos romances
387
é a educação presente em livros didáticos destinados às mulheres, referenciados
por Gubart e Gilbert (1998), que estabeleciam as normas de comportamento que
deviam seguir filhas da Inglaterra. Segundo Maria Clara Pivato Biajoli (2013) o
escracho cômico das falas e das atitudes da personagem Mary Bennet, que tenta
sempre parecer muito instruída segundo as normas destes manuais, é uma crítica
a esse didatismo fervoroso, e no sentido racional, vazio.

Também o amor em Orgulho e Preconceito não é semelhante nem ao


dos romances tradicionais e nem ao das cartilhas comportamentais, e isso se deve
principalmente a diferente concepção da autora sobre os papeis femininos e
masculinos. Como já foi mencionado, Mr. Darcy desprezou Elizabeth na
primeira vez que a viu, e ela correspondeu a isso com igual desprezo. É
interessante notar que o sentimento que Mr. Darcy passou a possuir sobre
Elizabeth nasceu principalmente pela admiração da inteligência da moça, e não
pelos seus dotes casamenteiros, como bordar e cantar, tão glorificados em outras
obras escritas. Diferente das heroínas dos romances tradicionais, Elizabeth não
ficou passiva a suas pretensões amorosas, ela fez do desejo por um casamento
baseado no amor parte de sua agencia enquanto sujeito no mundo. De acordo
com Biajoli (2013, p. 6), nas obras de Austen “a busca pela felicidade como um
direito, em especial no casamento e, mais ainda, também das mulheres, torna-se
então uma ideia altamente radical”. Ao recusar duas propostas de matrimônio e
não se intimidar com a pressão que sofria por parte de seus familiares para
realizar tal união, Elizabeth se afirmou enquanto uma pessoa que possui vontade
própria e que por ela guia sua vida, e não pelos valores que eram difundidos pela
sociedade patriarcal inglesa.

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O casamento em Orgulho e Preconceito é inclusive um dos principais


pontos da crítica aos valores que pautavam as relações de gênero dessa
sociedade. Para Gilbert e Gubart (1998), o foco de Jane Austen nos matrimônios
e “el silencio sobre el resto de temas se convierte en una especie de declaración,
porque las ausencias en su ficción prueban los deficientes que son las vidas de
las jóvenes y las mujeres” (GILBERT; GUBART, 1998, p.139). Ao fixar grande
parte de sua escrita à competição que existia para se conseguir um marido, a
388
autora mostrou o absurdo de uma sociedade que afirmava ser o casamento a
única alternativa de realização pessoal para as mulheres. Isso fica evidente na
trajetória da personagem Charlotte Lucas, melhor amiga de Elizabeth, que por
ser mulher solteira aos 27 anos aceita uma proposta de casamento por puro
desespero e se une a uma personagem descrita como totalmente desagradável,
Mr Collins. Fica claro com o prosseguimento da narrativa que Charlotte nunca
conseguirá viver a plenitude de um casamento como o de Elizabeth e Mr. Darcy,
e, portanto, de ser feliz.

Segundo Nara Luiza do Amaral Dias (2015), essa oposição entre o ideal
de mulher pregado pela sociedade do final do século XVIII e inicio do XIX e a
concepção de Jane Austen sobre o papel e os direitos das mulheres está bem
definida no confronto da heroína Elizabeth com Lady Catherine, membro da
aristocracia (DIAS, 2015). Lady Catherine seria a personagem que por
excelência poderia ser intitulada de a guardiã da moral e bons costumes. Não só
ela estaria de acordo com os padrões de gênero como seria uma das suas grandes
defensoras. É valido ressaltar que esta figura é uma das antagonistas, se não a
maior, de Orgulho e Preconceito. Em vários momentos Elizabeth vive
momentos conflituosos com essa nobre, mostrando o seu descontentamento, e,
portanto, o descontentamento de sua autora, em relação ás concepções
conservadoras que permeavam os pensamentos de Lady Catherine sobre as
mulheres.

Jane Austen ao usar a palavra escrita exerceu a sua autonomia, a da


racionalidade, e com isso criou na literatura um espaço todo seu, um lugar aonde
essas banalidades da vida social inglesa foram retratadas de forma crítica. Muitas

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vezes esse espaço foi mal interpretado, por vezes “despolitizado”, como afirma
Biajoli (2014) no título de seu artigo. Em outro texto seu, esta autora foi enfática
em relacionar a perda do caráter crítico da obra de Austen com a sua crescente
popularidade e adaptação para outros meios de entretenimento que passaram a
veicular as suas obras como simples histórias de amor. (BIAJOLI, 2013).
Todavia, como esse trabalho procurou demonstrar com uma breve análise das
personagens de Orgulho e Preconceito, o lugar de Jane Austen sempre foi o de
389
crítica, tanto da cultura de gênero da sua sociedade quanto da literatura em que
se apoiava nessa cultura.

REFERÊNCIAS

Fonte Primária:

Austen, Jane. Orgulho e preconceito. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Referências bibliográficas:

BIAJOLI, Maria Clara Pivato. Leituras Conservadoras de Orgulho e


Preconceito: Despolitizando Jane Austen, p.1-11. 2013. Disponível em:
<HTTP://www.fazendogenero.ufsc.br/10

BIAJOLI, Maria Clara Pivato. A popularidade de Orgulho e Preconceito e a


perda de uma Jane Austen crítica. Expressão: Revista do centro de artes e letras,
Santa Maria, v. 18, n. 12, p.143-155, dez. 2014.

CASTELLANOS, Gabriela. Laughter, War and Feminism Elements of Carnival


in Three of Jane Austen's Novels. Peter Lang Publishing. Introduction, p.1-6.
1994.

DIAS, Nara Luiza do Amaral. A razão em Jane Austen: classe, gênero, e


casamento em Pride and Prejudice.2015. 160 p. Dissertação Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo.
2015.

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GILBERT, Sandra M. & GUBAR, Susan. La loca del desván. La escritora y la


imaginación literaria del siglo XIX. Valencia: Editora Cátedra, 1998.

MOURA, Fernanda Korovsky. Capítulo 2: Jane Austen e o seu tempo. In: A


sensibilidade de Marianne Dashwood: um olhar feminista sobre a personagem
de Jane Austen. Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Curitiba, 2015.

NASCIMENTO, Sandra Mônica do. Uma leitura dos casamentos no romance


Orgulho e Preconceito (1813) de Jane Austen. Universidade Federal de São 390
Carlos. 2012.

SHOWALTER, Elaine. A crítica feminista no território selvagem. In:


HOLLANDA, Heloísa Buarque de. (org). Tendências e Impasses: o feminismo
como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

WOLLSTONECRAFT, Mary. A Vindication of the Rights of Woman, With


Strictures on Political and Moral Subjects. London: Joseph Johnson, 1792.

Versão utilizada: WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos direitos da


mulher. São Paulo: Boitempo, 2016.

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LEGISLADORAS EM AMÉLIA RODRIGUES – BAHIA: POLÍTICA,


EDUCAÇÃO E PRÁTICAS DE CARIDADE (1972 – 1982)

Brena Oliveira Pinto

Localizado no Recôncavo da Bahia, o município de Amélia Rodrigues


foi emancipado em 1961 do município de Santo Amaro da Purificação, e uma
década depois, no ano de 1972, foram eleitas as primeiras mulheres vereadoras. 391
De lá para cá, nota-se uma participação expressiva das mulheres na política local,
principalmente no Legislativo, uma vez que todas as legislaturas após 1972
tiveram, pelo menos, uma mulher eleita. Na última eleição municipal1, por
exemplo, dos onze vereadores eleitos, três eram mulheres.
O objetivo deste trabalho é debater a participação das vereadoras que
foram eleitas no período entre 1972 e 1982, partindo da análise dos espaços que
elas ocupavam antes de se tornarem legisladoras, além de problematizar de que
forma esses espaços contribuíram para sua projeção no campo da política.
Amélia Rodrigues tem sua história atrelada à atividade canavieira,
desde quando ainda era uma Vila e, posteriormente, distrito do município de
Santo Amaro da Purificação. Durante muitas décadas as usinas e demais
atividades originadas da cana de açúcar foram o pilar da economia de Amélia
Rodrigues, como relatado em matéria do Jornal Feira Hoje, de 1976:
O principal fator da economia é a atividade agro-açucareira
do município: Aliança, na Vila da Mata da Aliança, é a maior
de todo o Estado, a Usina Itapetingui, no povoado de
Itapetingui, fabrica o melhor açúcar da região, mais ou menos
4 mil operários e trabalhadores braçais aí se instala.
Sete alambiques destilam a melhor aguardente produzida no
Norte Nordeste do Brasil, o principal é Boa Esperança, que,
com instalações modernas, tem capacidade para produzir até
25 mil litros, existem outros com menos produção, excelente
qualidade.2


Licenciada em História e Mestranda do Programa de Pós-graduação em História da
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), bolsista CAPES. Email:
brenapinto@yahoo.com.br
1
Dados do TSE, referentes às eleições de 2014. Disponível em:
http://www.tse.jus.br/hotsites/catalogo-publicacoes/pdf/relatorio_eleicoes/relatorio-
eleicoes-2012.pdf. Acesso em: 23 de setembro de 2016.
2
Feira de Santana: Jornal Feira Hoje, 27 de março de 1976, p. 02.

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Essa relação tão estreita entre o município e a atividade açucareira, no


que diz respeito aos aspectos econômicos, contribuiu para a formação de uma
sociedade desigual e no campo da política, o resquício da política patriarcal e
assistencialista, onde a referência de poder e representatividade era o proprietário
da usina, o sucessor do senhor de engenho.
Com a falência de muitas usinas, o município assistiu a uma
392
desaceleração no crescimento da sua população, motivada pela saída de homens
que iam trabalhar nas usinas em outras cidades ou estados, deixando suas
famílias em busca de melhores condições de vida. Essa dinâmica favoreceu a
ascensão da mulher no papel de chefe da família, a pessoa que mediava os
problemas domésticos e administrava as finanças enviadas pelo marido. Mesmo
quando não havia o deslocamento dos seus parceiros para outros lugares, muitas
delas também passaram a ter a necessidade de trabalhar para complementar a
renda familiar, como demonstra o relato abaixo, registrado em um livro de
memórias de uma moradora do município:
Tiveram uma banca quando o jogo do bicho ainda não era
proibido.
A Usina São Bento fechou, caiu o movimento e não dava mais
para viver de negócio. Um compadre e amigo conseguiu um
emprego para o marido, num escritório da Usina Aliança,
mas, com a família numerosa, ela precisava continuar
ajudando. Já vinha há muito tempo trabalhando como
professora leiga, ensinando particular.3

Compreender essa dinâmica favorece o entendimento sobre como a


mulher passa a se destacar em um cenário onde sempre vigorou a política
patriarcal, fazendo da política a extensão do seu lar, onde a população era objeto
de seu zelo e cuidado. Para Ana Alice Costa em As donas no poder4, muitos
mandatos femininos na esfera municipal eram uma missão a ser cumprida no
âmbito familiar, o que se pode verificar tanto no que motiva as mulheres a
participarem da vida política como também à sua forma de atuarem. O que

3
SILVA, Perolina da Costa Pinto. Memória de uma menina risonha. Salvador: EGBA,
2013.
4
COSTA, Ana Alice Alcântara. As donas no poder. Mulher e política na Bahia.
Salvador: NEIM/UFBA – Assembleia Legislativa da Bahia, 1998.

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contribui também para explicar a inexistência em seus discursos e em suas


legislaturas de pautas históricas do movimento de mulheres em nível estadual e
nacional.
Michelle Perrot ao tratar do “espaço da mulher”, sobretudo no século
XIX, contribui para o debate da inserção da mulher nos espaços públicos na
Europa, destacando não apenas uma segregação de gênero, mas também de
classe no que diz respeito às sociabilidades europeias nesse período:
393
Os grandes magazines, o salão de chá e a igreja são três
lugares importantes de sociabilidade para as mulheres de certa
condição. As mulheres das classes populares, que circulam
mais livremente, encontram-se na rua, no mercado e na
lavanderia5.

Nesse período, apenas os homens deveriam participar, concorrer e


debater a política. Para as mulheres europeias do século XIX, analisadas pela
autora, independente da classe social a que pertencia, era vedada até mesmo a
observação dos fatos políticos, explicitando a segregação sexual deste espaço:
Os homens têm, em todo caso, sua sociabilidade própria, onde
o jogo, o esporte e a política ocupam um lugar de honra.
Círculos e cafés na França, clubes e pubs na Grã-Bretanha os
reúnem. À medida que esses lugares supostamente se
politizam, as mulheres deles são excluídas.6

Em Amélia Rodrigues notam-se dois espaços importantes de atuação


das mulheres amelienses e que serão objetos de análise neste trabalho: a
educação e a religião. A igreja, onde se desenvolviam, entre outras coisas, as
práticas de caridade tidas como atividades tipicamente femininas, e o magistério,
uma profissão que também já tinha passado por um processo de feminilização
no Brasil. É a partir desses espaços, que se busca compreender as estratégias
dessas mulheres, que possibilitou sua projeção no campo da política, mesmo que
não tenha se configurado uma ruptura com os grupos hegemônicos locais e com
as relações sociais e políticas já estabelecidas.

5
PERROT, Michele. Mulheres públicas. São Paulo: Fundação Editora da UNESP,
1998, p. 38.
6
Ibidem, p. 41

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Rio de Janeiro, 27 e 28 de outubro de 2016.

A década de 1970 ficou marcada no Brasil como um período de lutas e


de contestação à ordem imposta por um governo ditatorial. Além da conjuntura
nacional, havia internacionalmente um momento propício que favoreceu o
surgimento de diversos movimentos, que propunham um novo olhar sob a
sociedade, em uma perspectiva progressista e mais à esquerda. Rachel Soihet
traz um panorama sobre esse período em nível nacional e internacional:
Nos anos 1960/1970, boa parte do mundo parecia estar “de
ponta-cabeça”. Naqueles anos irrompera a rebelião 394
contracultural nos Estados Unidos, estendendo-se à Europa,
em especial à França, na qual tornou-se emblemático o Maio
de 1968, cuja tônica incidia na contestação aos valores
tradicionais e à sociedade de consumo típicos do capitalismo,
sem esquecer as críticas ao “socialismo real”. Também na
América Latina dominava a efervescência, dando lugar à
Revolução Cubana em 1959, acompanhada pela
movimentação de estudantes e trabalhadores, em busca de
transformações naquelas sociedades desiguais,
movimentação em grande parte frustrada pela sucessão de
golpes militares. Por outro lado, ainda nos Estados Unidos,
desencadearam-se, naqueles anos, a luta dos negros em busca
dos direitos civis, seguidos pelos protestos contra a guerra do
Vietnã, emergindo, igualmente, a rebelião de mulheres.
Assim vem à tona uma nova vaga feminista nos Estados
Unidos e na Europa, a qual também se manifestou no Brasil
[...]7

Entre as mulheres, foi cada vez mais crescente a organização de grupos


que coletivamente pensavam o papel da mulher nesta sociedade, como uma
resposta à onda conservadora instalada no Brasil a partir dos anos de 1960. Desta
forma, o movimento feminista passa a ter mais visibilidade, como demonstra a
historiadora Céli Regina J. Pinto:
[...] na Europa e nos Estados Unidos, cenários de grande
efervescência política, de revolução de costumes, de radical
renovação cultural, enquanto no Brasil o clima era de ditadura
militar, repressão e morte. Mesmo assim, aqui como lá na
virada para a década de 1970, mas primordialmente ao longo
desse período, surgiu e se desenvolveu o movimento
feminista.8

7
SOIHET, Rachel. Feminismos e antifeminismos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013, p. 124
8
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Ed.
Fundação Perseu Abramo, 2003, p. 43.

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Céli Regina ainda destaca a dificuldade de tratar as questões feministas


diante do cenário que se apresentava no Brasil naquele momento, a que Soihet
vai denominar de antifeminismos, pois eram movimentações no sentido de
deslegitimar as pautas e demandas do feminismo. Isso se dava tanto no próprio
campo da esquerda, que considerava secundário tratar das demandas das
mulheres no momento em que o Brasil vivenciava uma ditadura, como também
nos setores conservadores que via o feminismo como uma ameaça ao seu
395
discurso da moral e dos valores da família. Céli R. Pinto analisa esse momento:
O feminismo brasileiro nasceu e se desenvolveu em um
dificílimo paradoxo: ao mesmo tempo em que teve de
administrar as tensões entre uma perspectiva autonomista e
sua profunda ligação com a luta contra a ditadura militar no
Brasil, foi visto pelos integrantes dessa mesma luta como um
sério desvio pequeno-burguês.
A grande maioria das militantes feministas nos primórdios do
feminismo no Brasil esteve envolvida ou foi simpatizante da
luta contra a ditadura no país, tendo algumas delas sido presas,
perseguidas e exiladas pelo regime.9

O feminismo não se manifestou de forma homogênea no Brasil, e na


década de 1970 as mulheres também ocupavam espaços diferentes daquelas que
faziam frente à ditadura e que associavam o feminismo a um movimento mais
libertário, que dava ênfase ao corpo, à sexualidade e ao prazer.
As principais teorias feministas colocam a necessidade de uma
identidade de gênero como um meio de fortalecimento do movimento feminista,
porém Judith Butler, a partir de uma leitura que descontrói essa identidade, nos
fala da possibilidade de haver política sem que seja necessária a constituição de
uma identidade fixa, de um sujeito a ser representado, para que essa política se
legitime. Ao mesmo tempo, ela propôs repensar as restrições que a teoria
feminista enfrenta quando tenta representar mulheres. Butler amplia as
possibilidades de entendimento da atuação das mulheres, que, embora
vivenciassem um mesmo tempo, experimentam realidades diferenciadas, a partir
de outras influências sociais, como as questões referentes à classe e à etnia.

9
PINTO, 2003, p. 45

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Ao falar da mulher enquanto sujeito de representações, a autora critica


o conceito em uma perspectiva estável e permanente. Para Butler:
[...] é tempo de empreender uma crítica radical, que busque
libertar a teoria feminista da necessidade de construir uma
base única e permanente, invariavelmente contestada pelas
posições de identidade ou anti-identidade que o feminismo
invariavelmente exclui10.

A análise trazida por Butler nos ajuda a compreender as especificidades


396
que influenciaram a atuação das mulheres em Amélia Rodrigues, destacando que
na década de 1970 nem toda dinâmica feminina nos levava a uma luta contra o
sistema, embora não se deva deixar de considerar que mesmo nos seus espaços
de vivências, essas mulheres tenham experimentado momentos de transgressão
a um modelo de sociedade que estava posta para elas.
A historiadora Adriana de Oliveira Silva ao falar sobre as mulheres de
elite de Itabuna no início do século XX, também observa a distinção nos espaços
de atuação desses sujeitos, a partir de uma perspectiva de gênero:
O modelo de progresso em que se inspiraram as elites
itabunenses havia desenhado imagens idealizadas para cada
um membro deste setor. Num primeiro momento, aos homens
se incumbiam a política institucional e os cargos
administrativos; às mulheres serviu o papel de educadoras,
ordenadoras do lar e modelos de abnegação em nome das
questões sociais.11

As mulheres que se inseriam na política ameliense representavam


interesses específicos nesta sociedade, sendo também consideradas como
“mulheres de elite”, não apenas por sua condição financeira mais privilegiada,
mas pelas práticas sociais que as definiam. Ao analisar as mulheres de Itabuna
no início do século XX, Adriana O. da Silva relata um pouco sobre essas
experiências:
Apesar de sintonizadas com um papel de performances de
gênero muito bem demarcadas em seu tempo, como o
cumprimento dos papéis familiares e a extensão deles para a

10
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio
de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003, p. 23
11
SILVA, Adriana de Oliveira. Damas da sociedade: caridade, política e lazer entre
mulheres de Itabuna (1924 – 1962). (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual
de Feira de Santana, 2012, p. 19

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vida pública, algumas mulheres apontaram para outros


fazeres no campo social. A escrita e a política foram alguns
deles12.

O processo de reivindicação pelo desmembramento da então Vila Traripe


de Santo Amaro teve, entre tantas pautas, a melhoria da educação como pano de
fundo. Os cidadãos daquela localidade demonstravam insatisfação pela
negligência do poder público santamarense para com os moradores,
desconsiderando, principalmente, a sua necessidade de dar continuidade aos 397
estudos.
O historiador Amós de Souza relata esta realidade:
[...] a insatisfação da população, justificando-se pela
precariedade dos serviços públicos mantidos pela prefeitura
de Santo Amaro numa localidade onde se concentrava sua
principal fonte de rendas e tributos no momento, tornava-se
mais evidente na educação, já que as famílias eram obrigadas
a fazer migrar seus filhos para a sede do município e outras
cidades no momento em que a formação escolar desses jovens
atingia os limites da educação primária. Contando apenas com
as escolas primárias isoladas e multi-seriais, a população local
se encerrava os estudos no final do 5º ano do primário ou
transferia-se, na busca da sua continuidade, o que demandava
mais despesas para essas famílias13.

Entre os emancipacionistas, o discurso em torno da educação era o que


legitimava a necessidade da desvinculação entre Santo Amaro e a Vila Traripe.
Entre eles, a educação estava sempre vinculada a uma perspectiva de futuro e
progresso e seus discursos encontraram uma receptividade por parte da
população local. Durante toda a década de 1960, a educação esteve no centro das
discussões e disputas no Brasil. Porém, nem sempre a prática refletia os
discursos e os investimentos em educação tinham como principal intuito
fortalecer os projetos políticos daqueles que estavam no poder, onde a
preocupação com a qualidade de ensino e a formação do cidadão ficava em
último plano.

12
SILVA, 2012, p. 18.
13
SOUZA, Amós da Cruz. Comemorações e fotografias: práticas de inovação
pedagógico-cultural e os afro-brasileiros na Escola Maria Teófila – Amélia Rodrigues
– Bahia. (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual da Bahia: 2007, p. 114.

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O debate em defesa da educação estava presente no discurso não apenas


entre os emancipacionistas, mas também entre os primeiros administradores do
recém-nascido município, porém em outra perspectiva, diferente daqueles que
defendiam uma reforma política educacional em nível nacional.
Em entrevista a um jornal de grande circulação regional, o então prefeito
Mário Souza, faz referência à atenção desprendida pela sua gestão à educação
municipal:
398
Mario Souza diz que foi inspirado “nas origens do
Município”, na figura divina da “Mãe Mestra”, é que
procuramos imprimir na nossa administração, um trabalho
dedicado à educação. Os convênios assinados com as
entidades governamentais, federais e estaduais, e os nossos
próprios recursos, nos possibilitaram construir uma boa
estrutura educacional.
Construiu seis salas no Colégio Luiz Viana Filho, um prédio
em Mata Velha e, possivelmente, a criação do curso
pedagógico. A prefeitura mantém convênios com a Secretaria
de Educação e Cultura e o Mobral.
“Dentro de dois anos não haverá no Município de Amélia
Rodrigues um analfabeto” afirma o prefeito. Foi lançado um
índice impressionante de alfabetização considerado o maior
do Estado, dos 933 indivíduos matriculados na primeira etapa
para o Mobral, 583 foram alfabetizados.14

Em entrevista recente, Sr. Mário Souza ressalta que a educação foi uma
das prioridades da sua gestão, embora observa-se que nesse período a referência
que se tinha em “pensar educação” no município estava limitado, quase sempre,
na construção de prédios, ainda que houvesse nacionalmente um debate mais
amplo em torno dessa temática:
Minha prioridade, que era o pedido do povo, era o estádio, né?
Todo mundo precisava, o estádio, tal... E o colégio! Lembro
que nós fizemos o [Colégio] Arlete Magalhães, dei uma ajuda
muito grande nesse [Colégio] Navarro de Brito, fiz diversas
salas, e aquele que hoje é [o Colégio Antônio] Pinto... na
época a gente tinha Berimbau que tinha o colégio, e nós não
tínhamos nada! Então ai, o resultado...15

14
Feira de Santana, Jornal: Feira Hoje, 27 de março de 1976 (sábado), p. 02.
15
Depoimento de Mário do Nascimento Souza. Entrevista concedida em 09/06/2015,
em Amélia Rodrigues-BA

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O historiador Amós de Souza contribui para a compreensão do cenário


educacional do município e de como as relações políticas interferiam nas
decisões referentes a essa temática. O autor fala das ações e investimentos em
determinadas escolas, que tinha à frente das suas direções e coordenações
pessoas ligadas aos grupos políticos presentes no município.
Sob a denominação de Escolas Reunidas Maria Teófila,
surgiu o grupo escolar representando a nova realidade da rede
estadual de ensino, pondo fim às escolas isoladas e
adequando-se à nova realidade política e cultural do país, 399
entre os ideais de nacionalismo, modernização e o clima tenso
de discussão das reformas sociais. Nesse sentido, ao mesmo
tempo em que a(s) Escolas Reunidas Maria Teófila traz a
marca do prestígio como primeiro grupo escolar da rede
estadual na localidade, vinculada aos processos de
emancipação e às ações de lideranças políticas ou de uma elite
local, representou, desde a sua criação, o projeto de uma
educação popular16.

Em sua grande maioria, o que se observava nas escolas existentes em


Amélia Rodrigues no período era um projeto político-pedagógico que tinha
como principal função atender aos interesses das forças hegemônicas que
atuavam nacionalmente e que tinham nos líderes locais também os seus
representantes. Muitos documentos e relatos falam sobre os desfiles cívicos ou
das festas com caráter folclórico e comemorativo que eram realizados. Em uma
das entrevistas, uma professora comenta sobre a atuação da diretora (que
também se tornou vereadora) da escola em que trabalhava:
Ela era uma diretora muito dinâmica... sempre fazia de tudo
pra escola ter aquele mundo de desenvolvimento. E ela
promovia assim, umas festas, sempre em São João tinha as
quadrilhas, dia das mães, dia dos pais... sempre tinha aquele
momento na escola porque ela... não é que obrigasse, nem
determinasse, mas é que ela fazia com que os professores
interagissem com a ideia das festas...17

A disputa entre os líderes políticos locais refletia no campo educacional,


desde a captação de recursos frente ao governo estadual, como também na
indicação de cargos de direção. Geralmente esses cargos eram ocupados por

16
SOUZA, 2007, p. 15
17
Depoimento de Marli Arão. Entrevista realizada em 11/05/2016, em Amélia
Rodrigues/Bahia.

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pessoas de confiança, em sua maioria mulheres, que além do conhecimento


técnico-profissional, se tornavam também suas apoiadoras políticas. Essas
disputas se refletem no relato de Amós de Souza ao falar da fundação da escola
Maria Teófila:
Além da adequação ao novo sistema de educação do país que
encerrava a trajetória das escolas isoladas e o modelo das
classes multisseriadas, administradas por professores pagos
pelo estado, mas estabelecidos em suas próprias
dependências, a escola representou, também, na sua fundação, 400
um reforço ao próprio processo emancipatório da cidade,
permanecendo ao longo de sua história sob a influência
política de Gervásio Bacelar que, vindo a ser o primeiro
prefeito da cidade de Amélia Rodrigues no decorrer desses
acontecimentos, doou o terreno e levantou recursos junto aos
governos estadual e federal para a construção do prédio e lhe
deu o nome de sua primeira professora. Os vínculos políticos
na fundação da escola, contudo, transformados em obstáculos
e motivadores de uma disputa política e partidária no interior
da cidade emancipada na mesma época, determinaram a
restrição de investimentos na mesma desde o final da década
de 1960 até a primeira metade da década de 198018.

As mulheres eram elementos importantes na execução dos projetos locais


na área da educação, tanto no âmbito da escola como também em cargos
estratégicos para a efetivação do projeto que elas representavam e/ou apoiavam.
Nos registros das sessões da Câmara de Vereadores, já nos primeiros anos de
gestão do município recém-emancipado, consta a denúncia por parte de um
vereador que questiona o fato do então prefeito ter nomeado a primeira dama
para um cargo de confiança na Secretaria Municipal de Educação:
[...] Sr. Presidente franqueou a palavra, dela fazendo uso o
vereador Sr. Antonio Rosa, tecendo comentários a respeito de
uma portaria do Sr. Prefeito nomeando a sua esposa para o
cargo de Diretora de Educação e Assistência Social deste
município, cujo ato além de ilegal não consulta os interesses
do município de Amélia Rodrigues.19

O envolvimento das mulheres educadoras no campo da disputa política


se consolidava no cargo da direção escolar, e ficava evidente nos discursos dos

18
SOUZA, 2007, p. 15
19
CÂMARA DE VEREADORES DE AMÉLIA RODRIGUES. Ata das sessões.
Amélia Rodrigues: 31 out 1963.

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edis, que na Câmara de Vereadores representavam o grupo que estava no poder


ou na fala daqueles que faziam o papel de oposição.
A senhora presidente franqueou a palavra, usando-a o
vereador Ranulfo Maia para elogiar as comemorações
realizadas nesta cidade pela passagem do dia das crianças;
afirmou ter ficado contente com o brilho da festa, destacando
a atuação do Colégio Luiz Navarro de Brito, foi realmente
comovente. Em seguida, já que ficou franqueada a palavra,
fez uso o vereador Gervásio Rocha para endossar as palavras
do colega Ranulfo no que se refere o desfile realizado pelo
colégio [...] um trabalho excelente, realizado com amor e 401
dedicação por sua Diretora Professora Creuza Paim Oliveira,
conseguiu sacudir não só as crianças como também os adultos
que se encontravam nas avenidas20.

Em outra oportunidade, o vereador volta a destacar o trabalho da diretora,


recém-nomeada, em detrimento a outra que provavelmente representava o
projeto opositor:
Congratulou-se com a Direção do Colégio Luiz Navarro de
Brito pela brilhante festa que promoveu por ocasião da
passagem do dia da criança. Agora o colégio está realmente
entregue a pessoas competentes e dedicadas, assim sendo,
outra coisa não se poderia esperar. Tenho certeza que as
professoras Creusa e Clarice irão recuperar em todos os
aspectos aquele estabelecimento de ensino21.

A partir da documentação e dos relatos de pessoas que vivenciaram o


período, percebe-se que a atividade docente era de fato um facilitador para
entrada e atuação das mulheres no campo da política. Não necessariamente elas
se tornariam uma grande militante e defensora da educação, uma vez que não há
registros de debates amplos sobre esse tema nos espaços legítimos, como a
Câmara de Vereadores, por exemplo. Porém, nota-se daquelas educadoras que
depois se enveredaram pela atuação política, uma participação mais ativa,
incisiva e atuante, ainda que a educação não fosse a sua principal plataforma, em
um município que apresentava tantas outras demandas.

20
CÂMARA DE VEREADORES DE AMÉLIA RODRIGUES. Ata das sessões.
Amélia Rodrigues: 11 de outubro de 1979.
21
CÂMARA DE VEREADORES DE AMÉLIA RODRIGUES. Ata das sessões.
Amélia Rodrigues: 18 de outubro de 1979, p. 21v.

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Nas atas da Câmara Municipal, se observa algumas defesas pontuais,


geralmente referente a algum fato que girasse em torno da educação, como por
exemplo a falta de transporte escolar, ou o atraso de salário dos profissionais de
educação mas não há registros de um debate mais intenso sobre a qualidade da
educação, seus programas e a condição da educação a nível local.
O estado de vulnerabilidade social em que vivia uma parcela significativa
da população interferia bastante na atuação legislativa. Mesmo aquelas
402
lideranças forjadas em outras áreas, como a educação, acabavam direcionando a
sua atuação para o assistencialismo, como nos traz o relato de uma professora
que vivenciou uma das legislaturas pesquisada. Ao ser questionada sobre a
principal área de atuação ou bandeira de luta da vereadora, a depoente responde:
[...] eu acho que ela vivia mais assim, mais pra ajudar as
pessoas. Acho que o foco dela principal era... ela gostava,
tinha aquele prazer em ajudar as pessoas mais carentes,
entendeu? Na educação... eu não lembro muito da atuação
dela na educação... não lembro assim... no momento assim,
não lembro!22

Amélia Rodrigues é um município com forte presença religiosa,


sobretudo cristã, uma vez que a localidade nasce da doação de uma sesmaria aos
padres beneditinos (1622), que são reconhecidos como responsáveis pelo
povoamento da região. Não é à toa que o maior distrito que deu origem ao
município, é denominado de São Bento do Inhatá, uma referência aos seus
fundadores. Outro aspecto importante a ser observado é a desigualdade social,
acentuada pelos anos de escravidão vivenciados na região do Recôncavo Baiano,
onde Amélia Rodrigues está localizada. Com uma população hegemonicamente
negra e mestiça, e tendo a cana-de-açúcar como principal atividade econômica,
o município apresenta índices sociais que acusam a desigualdade, a pobreza, o
desemprego, o analfabetismo.
Os aspectos sociais favoreceram a predominância de uma política
paternalista e assistencialista, onde inicialmente era representada pela figura do
dono da usina e depois se reflete entre os representantes municipais no Executivo

22
Depoimento de Marli Arão. Entrevista realizada em 11/05/2016, em Amélia
Rodrigues-BA

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e no Legislativo. Segundo Andréia da Rocha Rodrigues, a filantropia praticada


por setores hegemônicos da sociedade correspondia aos interesses de classe
desses grupos. A autora ainda faz a distinção entre caridade e filantropia:
A caridade abrigava-se à sombra de princípios morais
inspirados no Cristianismo, enquanto a filantropia
concentrava-se em valores políticos agregados ao prestígio
social, adquiridos pela intervenção mais direta dos setores
favorecidos economicamente nos problemas comuns ao
universo das camadas empobrecidas23.
403
Sobre este tema, contribui com esta análise Jeovane de Jesus ao afirmar
que
A religião de forma geral é capaz de produzir um campo
simbólico de relações de forças, até mesmo força política, em
que os sujeitos não apenas da hierarquia, buscam através de
sua ação não só no campo religioso, mas também no político,
manter a hegemonia de seu grupo, ou buscar a ascensão do
mesmo na sociedade24.

Isso fica evidenciado no relato de Alaíde Paim, primeira vereadora


eleita em 1972 ao tratar das práticas filantrópicas vivenciadas através da igreja
católica e da sua infuência diante da sociedade ameliense:
Eu pedia, e o povo não me negava! Considerava, né? Porque
meu pai e mamãe era dono de muita coisa, essas terras todas
aqui, aquelas ruas de lá, Pinun, aquela fazenda que tinha lá,
tudo era dele. Tinha fazenda lá do lado de lá do cemitério. Ele
era de Coração de Maria, fazenda lá também... quer dizer, era
uma família conhecida a nossa.25

A historiadora Adriana de Oliveira, que pesquisa as práticas de caridade


entre as mulheres de elite em Itabuna no início do século XX também debate
sobre a relação entre as atividades filantrópicas e a política e de que forma essas
práticas contribuíam para a manutenção do poder de um determinado grupo
hegemônico naquela sociedade.

23
RODRIGUES, Andréa da Rocha. A Infância Esquecida: Salvador 1900-1940.
Salvador: EDUFBA, 2003, p. 101.
24
JESUS, Jeovane de. O vírus vermelho e o terço na ponta do fuzil: cristãos amelienses
entre fé e política (1965 – 1985). (monografia de conclusão de curso). Universidade
Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, 2013, p. 21
25
Depoimento de D. Alaíde Paim das Virgens. Entrevista concedida em 26/04/2013,
em Amélia Rodrigues-BA.

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A benemerência em forma de filantropia ganhou importância


entre as elites de Itabuna a partir da emancipação política da
cidade em julho de 1910. Na cena pública, advogados,
engenheiros, fazendeiros e comerciantes disputavam a
atenção da população e os cargos administrativos da cidade.
A institucionalização da caridade passou a ser uma
necessidade política urgente26.

Adriana de Oliveira também discorre sobre como as mulheres se


ajustaram no protagonismo das práticas assistencialistas, como um espaço
404
naturalizado para o público feminino, mas que permitia a elas uma ação mais
direta com o mundo público e na dinâmica da política.
Além das demarcações de gênero, a atuação social das
mulheres foi atravessada pelos códigos da classe social a que
pertenciam. Nem todos os lugares, nem todas as ações lhes
eram autorizadas. A caridade e a filantropia, por sua vez,
foram essencialmente entendidas como atividade feminina. A
partir da benemerência e do assistencialismo formaram
algumas agremiações de mulheres. Através das associações
de caridade, puderam responder aos problemas sociais,
unindo preceitos cristãos aos interesses de dominação de sua
classe27.

Embora o envolvimento em ações de caridade e filantropia esteja


associado a uma ideologia que ressaltava o comportamento feminino baseado no
maternalismo, a partir de um discurso que reforçava a ideia de que o âmbito
privado era mais apropriado para mulher e que sua função maior era cuidar do
bem estar dos filhos e da família, se faz necessário ampliar a análise sobre o
lugar da mulher na sociedade.

Maria Lúcia Mott discorre sobre a ressignificação desses espaços e a


forma como as mulheres atuavam nele, a partir do século XX e de como as
atividades desenvolvidas no espaço privado influenciaram naquelas que davam
a elas projeção pública, inclusive na política:
Na virada do século XX, o reconhecimento da importância
das mulheres devido à maternidade já estava solidificado na
sociedade brasileira e era aceito por homens e por mulheres.
O discurso das esferas separadas tinha cumprido seu papel. Se
essa qualidade – a “natureza feminina” – foi usada em muitos
casos para segregar as mulheres ao lar e como argumento para

26
OLIVEIRA, 2012, p. 16
27
OLIVEIRA, 2012, p. 17

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impedir a obtenção de direitos civis, políticos, econômicos,


intelectuais e sociais, começou também a ser usada num
sentido inverso: para lhes abrir as portas e levar as aptidões
maternas para fora de casa, para o exercício de determinadas
profissões consideradas próprias às mulheres, como a
assistência social compatível com a “missão altruística” das
mães e, até mesmo, para o exercício dos direitos políticos
devido a uma “moralidade” específica ao sexo feminino.

Em Amélia Rodrigues, as práticas filantrópicas foram importantes para


a entrada das mulheres no campo da política. Em sua grande maioria eram 405

mulheres brancas, casadas, católicas e com posição de destaque nessa sociedade.


Algumas eram apenas donas de casa e dividiam os serviços do lar com as ações
de caridade em sua paróquia; outras trabalhavam fora de casa, como professoras
ou na área de saúde, mas a filantropia estava presente também no exercício da
sua profissão.

O trabalho realizado tendo como principal beneficiado um público de


maior vulnerabilidade social, dava a essas mulheres um respaldo que as
legitimaram a ter um destaque nas disputas eleitorais, inicialmente no papel de
esposas e filhas dos líderes locais, e depois como cabos eleitoras, como afirma o
Sr. Mário Souza, que foi prefeito em Amélia Rodrigues, na década de 1970, ao
ser questionado sobre a participação das mulheres em suas campanhas eleitorais:
[...] teve uma ajuda muito grande! Tanto na parte da saúde,
como na educação. Inclusive daquela época ainda tem Cleuza
Paim, que foi de minha época, foi diretora lá e que ajudou
muito. [...] as mulheres do meu tempo, realmente, botou
Amélia para caminhar... as festas eram feitas por elas. Um
tempo muito, muito, muito...! E na área da saúde então...
naquela época não era como hoje que tem hospital como
Feira, tinha que fazer por aqui mesmo. E a gente fazia com as
mulheres daqui.28

D. Alaíde Paim, vereadora eleita em 1972, relata como se deu a sua


entrada na política formal, através de um convite do Sr. Mário Souza, então
candidato a prefeito da cidade, feito ao seu marido, que já tinha sido
anteriormente candidato a vereador, mas não obteve êxito:

28
Depoimento de Mário do Nascimento Souza. Entrevista concedida em 09/06/2015,
em Amélia Rodrigues-BA

ISBN: 978-85-65957-07-6
Rio de Janeiro
Ed. Anpuh-Rio
Atas do II Encontro Nacional do GT Estudos de Gênero
Rio de Janeiro, 27 e 28 de outubro de 2016.

[Foi] Doutor Mário Souza! Não sei, porque teve...


consideração... viu... aí ele pediu, ele falou com Derval assim
“Derval, olha, eu não tô vendo assim muita gente que queira,
deixe Alaíde ser candidata a vereadora. Porque Alaíde é assim
muito querida, todo mundo gosta dela... e...”. Eu falava com
todo mundo, e tal, era assim... Aí Derval ficou assim... mas
ele não me proibia de nada! Não me proibia assim... ele disse:
“o que é que você acha?”. Eu disse: “você é quem sabe, se
você quer...”. Pronto, aceitei! Aí começamos a fazer
campanha... com os padres aqui que só você vendo! Quando
às vezes vinha um ou outro assim, dizendo: “olhe, na senhora
eu voto, mas em Seu Mário eu não voto!” . Eu dizia: “então 406
não vote em mim! Se não votar nele, não vote em mim!”.
Minha campanha era assim... não prometia nada! Só fazia
dizer: “olhe, se eu puder fazer alguma coisa, eu vou fazer!
Agora, se não puder não me cobre, porque o prefeito não sou
eu! Não posso garantir que ele vai fazer”29.

Nota-se no relato da vereadora a fidelidade que havia entre ela e o seu


líder político, e que as relações ultrapassavam o âmbito da política e permeavam
as relações familiares. Além disso, o depoimento dado por Alaíde Paim nos
revela uma intenção no seu ato em aceitar o convite, que não necessariamente se
conote o fato de se intensificar a participação da mulher na política, mas que teve
um papel de representar a sociedade da qual ela fazia parte, a ponto dela própria
destacar que contou com a participação dos padres (e consequentemente, da
comunidade católica) em sua campanha.

O objetivo maior dos líderes locais era capitanear para suas


candidaturas a popularidade dessas mulheres, através das ações de caridade
realizadas no espaço da igreja ou de suas profissões. Em um desses relatos, a
Sra. Alaíde Paim comenta uma das suas ações beneficentes, que teve início com
o dinheiro que sobrou da realização de uma formatura do magistério:
Eu fui em Santa Bárbara, lá com meu carro, botando
combustível... não tirei nada do dinheiro da festa. Ai todo
mundo sabia quanto era, que estava no banco, tudo... ai
comprei peru, comprei porco, comprei carneiro, mas foi coisa
que só você vendo! E sobrou... sobrou como o quê!! Eu disse
“olha, não vai ter cerveja! Vai ser champagne!” Já na mesa
todas as toalhas, um jarro, flores, tudo... tudo na mesa!
Menina, não teve quem desse conta! Aí, depois, sobrou
dinheiro... aí os meninos: “então vamos dividir!”. Eu disse:

29
Depoimento de D. Alaíde Paim das Virgens. Entrevista concedida em 26/04/2013,
em Amélia Rodrigues-BA.

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“não! Não vamos dividir! Nós vamos fazer o Natal da criança


pobre!”. Pronto... aí, peguei cinco... botei no carro, que eu
dirigia, né? Botei no carro... e ele trabalhava lá em Feira... de
lá foi que ele foi me encontrar, a gente lá... foi até nas
Pernambucanas, não há mais... era ali onde é a Insinuante, né?
Aí compramos o pano, porque não tinha roupa pronta naquela
época, né? Pano pra roupa pra menina, pra menino e
compramos uma porção de brinquedos pra dar aos outros que
não tinha mais... não tinha assim tanto dinheiro... eu sei que
foram quatrocentos e cinquenta crianças que receberam [...]
Não... brinquedo foi mais! Aí eu não sei... de tanto que eu já
não sei mais!30 407

Ainda que não representem uma ruptura na estrutura social da qual


faziam parte, em que predominavam um modelo de sociedade patriarcal,
desigual e assistencialista, ao adentrarem na política, essas mulheres se
propuseram a representar justamente esta sociedade, uma vez que elas próprias
tinham um papel de destaque, ainda que outras formas de submissão ficassem
subjugadas.

Ao observar a atuação dessas mulheres como vereadoras, nota-se que


ainda que tenham sido importantes no sentido ampliar a participação feminina
em espaços importantes de decisão e representatividade, elas esbarravam nos
limites postos pelo tempo e pela sociedade da qual faziam parte. Em Amélia
Rodrigues, as mulheres não se propuseram a romper com as forças hegemônicas
que ali estavam, mesmo porque elas próprias faziam parte.
Por fim, espera-se ter contribuído para repensar o papel da
representação da mulher e também da política como mais um espaço de
empoderamento feminino, porém, não o único. Ainda que a participação da
mulher, em alguns contextos, seja um prolongamento da sua função no âmbito
familiar e até mesmo de fortalecimento de um projeto político que não dialoga
com as pautas do feminismo, não se pode deixar de considerar a importância das
mulheres ocupando os mais variados lugares sociais. Além disso, a participação
das mulheres nesses espaços cumpre uma função de incentivar outras mulheres
a estarem participando legitimamente dos mesmos.

30
Depoimento de D. Alaíde Paim das Virgens. Entrevista concedida em 26/04/2013,
em Amélia Rodrigues-BA.

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REFERÊNCIAS

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Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CÂMARA DE VEREADORES DE AMÉLIA RODRIGUES. Atas das Sessões.
Ano de 1963.
COSTA, Ana Alice Alcântara. As donas no poder. Mulher e política na Bahia. 408
Salvador: NEIM/UFBA – Assembléia Legislativa da Bahia, 1998.
COSTA, Ana Alice Alcântara. O feminismo e a consciência de gênero entre
vereadoras baianas. In: Ritos, mitos e fatos: mulher e gênero na Bahia. Salvador:
NEIM/UFBa, 1997.
FAZENDA, Ivani Catarina Arantes. Educação no Brasil anos 60 – o pacto do
silêncio. São Paulo: Edições Loyola, 1988, 2ª edição.
Feira de Santana, Jornal: Feira Hoje, 27 de março de 1976
JESUS, Jeovane. O vírus vermelho e o terço na ponta do fuzil: cristãos
amelienses entre a fé a política (1965 – 1985). 2013 (monografia de conclusão
de curso). Universidade Estadual de Feira de Santana, 2013.
MOTT, Maria Lúcia. Maternalismo, políticas públicas e benemerência no Brasil
(1930-1945). In: Cadernos Pagu, São Paulo: Unicamp, nº 16, 2001.
OLIVEIRA, Vanessa Araújo. Construindo Amélia Rodrigues: discursos sobre
identidade local (1961 - 1990). 2009, 53f. (monografia de conclusão de curso).
Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana.
PERROT, Michelle. Mulheres públicas. São Paulo: Fundação Editora da
UNESP, 1998.
PINTO, Brena Oliveira. Mulheres e legislaturas no município de Amélia
Rodrigues (décadas de 1970 – 1980). Disponível em:
http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1434415034_ARQUIVO_A
RTIGOANPUHBrenaOliveiraPinto.pdf. Acesso em: 30 nov. 2015.
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Ed. Fundação Perseu Abramo, 2003.

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REIS FILHO, Daniel Aarão. 1968, a paixão de uma utopia. Rio de Janeiro:
Espaço e Tempo, 1988.
RODRIGUES, Andréa da Rocha. A Infância Esquecida: Salvador 1900-1940.
Salvador: EDUFBA, 2003
SILVA, Adriana de Oliveira. Damas da sociedade: caridade, política e lazer
entre mulheres de Itabuna (1924 – 1962). (Dissertação de Mestrado).
Universidade Estadual de Feira de Santana, 2012.
409
SOIHET, Rachel. Feminismos e antifeminismos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013.

SOUZA, Amós da Cruz. Comemorações e fotografias: práticas de inovação


pedagógico-cultural e os afro-brasileiros na Escola Maria Teófila – Amélia
Rodrigues – Bahia. (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual da
Bahia: 2007

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LITERATURA, DESEJO E RELAÇÕES DE GÊNERO:


SENSIBILIDADES AMOROSAS EM ANÁLISE

Ana Carolina Eiras Coelho Soares*

O presente trabalho busca analisar o livro intitulado “Uma delícia por


dia” escrito por Clotilde Massa e publicado pelas Edições Paulinas, pensando-o
410
como uma obra produzida e traduzida para ensinar e alertar as mulheres sobre os
seus espaços e possibilidades de atuação na sociedade. A obra de Clotilde Massa,
que foi traduzida sem que houvesse nenhuma atribuição ao tradutor, já estava
em sua terceira edição em 1954. Portanto, presume-se que foi uma obra bastante
consumida principalmente pelas leitoras ligadas aos preceitos cristãos, público-
alvo da editora que desde 1931 instalou-se no Brasil com a missão de
evangelização e promoção da cultura cristã no seio das famílias.

O livreto possui 126 páginas e assemelha-se a um diário de conselhos


para fortalecer o espírito das mulheres cristãs. Com pequenas seções que
poderiam ser lidas rapidamente pela manhã, ou a qualquer momento do dia, o
tom de cada seção visava claramente ensinar-lhes bons comportamentos,
sentimentos e atitudes perante sua família. No total constam 61 seções diminutas
cujos títulos variavam entre adjetivos e intenções que beneficiariam as leitoras,
tais como “Prudência”, “As virtudes femininas”, “Para encontrar marido”. Neste
sentido, os textos presentes vão moldando a maneira pela qual a leitora deveria
aprender a sentir sua feminilidade e adequar-se ao modelo de uma mulher
decente.
A adequação ao ideal da mulher de prendas domésticas,
responsável pela harmonia do lar, que exerce um “poder nos
bastidores”, reforça a situação de hegemonia masculina na
distribuição desigual de poderes entre homens e mulheres na
sociedade. Este ideal atribui à mãe de família capacidades de
heroína para abnegação, sacrifícios virtuosos em função do

*
Bolsista pós-doc do PPGAS/UNB pela FAPEG/CAPES, Professora do Programa de
Pós-Graduação em História/Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás,
Coordenadora do GT Regional de Gênero - Seção Goiás, Coordenadora do Grupo de
Estudos e Pesquisas em Gênero/FH-UFG/CNPq. Email: anacarolinaufg@gmail.com

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marido e dos filhos, além de desfavorecer a participação


feminina no mundo do trabalho. (PINSKY, 2014, p. 288)

Dentro desta realidade, as mulheres teriam uma natureza predisposta aos


sentimentos e seriam biologicamente inferiores aos homens tanto pelo menor
tamanho do cérebro – como buscaram demonstrar no século XIX os positivistas
Lombroso e Ferrero – quanto pela sua incapacidade mental de desenvolver
grandes raciocínios intelectuais, conforme as técnicas de craneometria aplicadas
411
por Tito Lívio de Castro no Brasil em 1887. A mulher seria um ser em
desenvolvimento. E, portanto um ser inferior que precisava ser constantemente
ensinada e instruída sobre o seu lugar no mundo. O único espaço de
empoderamento feminino era o lar. E mesmo nele, ela deveria saber como se
portar para que não perdesse o marido e soubesse como instruir os filhos e filhas.

Com isso a década de 1950 vivencia um aumento considerável de


publicações preocupadas com a segurança contra as opiniões subversivas das
feministas. No imaginário das relações de gênero “uma delícia por dia” lutava
contra “um pecado por dia”, a feminista destruidora de lares, da família e das
boas regras cristãs. Exemplo disso pode ser observado nas seções “O tédio”, “A
missão da mulher”, “Cuidado na escolha”, “Os bons livros”, “Exibição”, “As
virtudes femininas” e “O cinema” (importante inovação tecnológica que causava
furor em toda a América Latina e poderia servir como desviador da boa conduta
decente feminina).

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412

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413

Índice do livro “Uma delícia por dia” (2ª edição 1954)

Neste trabalho analiso algumas seções selecionadas tais como: “Os bons
livros”, Cada qual como Deus o quer”, “A missão da mulher”, “A exibição”, “O
cinema” e “Pequenas flores de todos os dias” de maneira a articular o contexto
histórico vivenciado na América Latina – de um discurso de recrudescimento
dos movimentos sociais feministas pós-segunda guerra mundial – para
compreender porque bons livros, cuidado com o cinema e virtudes precisam ser
ensinadas reforçadamente às boas mulheres brasileiras.

No entanto, antes de adentrar a análise interna da fonte é preciso analisá-


la de maneira externa. A primeira observação é a capa do livro. Uma mulher
sorridente olha para um horizonte azul com um sorriso estampado no rosto e
flores brancas e rosas caem ao seu lado. É uma delícia para os olhos a capa. A
serenidade da imagem produz uma fala imagética de alegria e paz. Os cabelos

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morenos ligeiramente ondulados – típicos do biotipo feminino latino – mas a tez


branca, quase pálida revela a beleza e os cuidados com a pele que a mulher deve
ter. Nada de sol, já dizia Helena Rubinstein no início do século XX!
(...) como se partilhasse um tesouro misterioso e precioso, ela
pega de baixo do balcão um pequeno pote de creme e passa
no rosto da cliente. (...) “Não peguem sol, é um desastre para
o rosto. Usem suas sombrinhas, seus chapéus.” (...) Beleza é
poder, o mais importante de todos, até” (FITOUSSI, 2013, 49-
72)
414
O pior inimigo da mulher – o Sol – ganha tons de preconceito racial aqui
na América, uma vez que a década de 1950 é um momento delicado, pois ao
mesmo tempo em que se vivencia pelo menos no Brasil pós-getulista um
discurso de maior integração social entre brancos e negros, unidos pelo trabalho
e pela figura do trabalhador honesto, a brancura é uma das prerrogativas da
beleza.

A beleza branca é, ao longo de todo século XX, exaltada em maior ou


menor escala e sinônimo de status. E certamente para se criar empatia com o
público a capa do livro deveria expor uma bela moça feliz e satisfeita com sua
linda vida florida. É a perfeita representação iconográfica da mulher latina,
branca, higienizada que da brancura de sua pele à brancura de sua vestimenta
representava a pureza da delicadeza de uma “delícia” por dia que ela poderia
proporcionar a todos os membros de sua família sendo a filha, irmã, mulher,
esposa e mãe com a perfeição esperada, desejada e pretendida por todas as
mulheres decentes.
Moças e senhoras “de família”, ao sair para se divertir,
deveriam preocupar-se em com fazer boa figura em público
(...) não indo muito além das igrejas, dos cafés e confeitarias
“bem freqüentados”, dos passeios públicos higienizados, dos
bucólicos piqueniques e dos bailes em casa e clubes de
“respeito”. (MIGUEL e RIAL In PINSKY e PEDRO, 2014,
p. 154)

Nada na capa desta edição é desprovido de intenção. As flores


representam novamente a graça, a elegância e pureza da alma feminina, mas por
conter flores brancas e rosas tendiam a demonstrar um cenário colorido, pois as
rosas em tons rosados são mais desabrochadas mostrando que essa moça já não

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é criança e está em busca de se tornar o destino esperado por todas as mulheres


cristãs latinas: uma boa esposa. Era sempre preciso confluir toda a atenção para
sua aparência sem se deixar levar pela vaidade e saber o momento de se mostrar
sem se deixar levar pela soberba.

415

Capa do livro “Uma delícia por dia” edição de 1954

A empatia deveria vir também do fato de ter sido uma mulher quem
escreveu tais conselhos. E não qualquer mulher, mas uma mulher estrangeira.
Não consegui localizar nenhuma biografia de Clotilde Massa, mas foi possível
apreender que ela era italiana e que foi bastante atuante no mundo literário, tendo
traduzido uma série de livros tais como “La Casa de Enrico Bordeaux” para a
editora Pia Societtá San Paollo (sucursal da Edições Paulinas) e escrito um
romance intitulado “Il Cavaliere dei Sogni”. Era portanto, uma mulher, escritora,

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que preconizava uma fala cristã moralizadora com cavaleiros dos sonhos. Cabe
um questionamento: ela existiu de fato ou foi um homem que se utilizou desse
pseudônimo para aproximar-se do público feminino? São as questões da edição,
levantadas por Roger Chartier, que se colocam preementes aqui. No livro
aparece um prefácio do tradutor, mas esse não assina seu escrito. Se Clotilde
Massa existiu recai no que Michelle Perrot aponta como o esquecimento ou o
apagamento de uma história das mulheres, uma vez que seus livros, suas
416
traduções e seus escritos estão espalhados e sem nenhuma informação
catalogada a respeito1. Se ela era um pseudônimo masculino, recai o mistério da
autoria. Nesse sentido, os estudos de Roger Chartier apontam as questões que
recaem sobre a edição e a noção de autoria. O livro passa a ser uma obra
apropriada pela editora que, através de sua filosofia católica cristã, dissemina
uma maneira certa de comportamento, mas simultaneamente pertence a uma
autora – mulher e bastante atuante para a editora da Società di San Paolo, ou
seja, uma representação da boa mulher educada dentro dos moldes cristãos.
Representação, segundo Chartier, pensada quer como algo
que permite “ver uma coisa ausente”, quer como “exibição de
uma presença” (...) Se a noção de representação é vista por
Chartier como a “pedra angular” da Nova História Cultural, o
conceito de apropriação é o seu “centro”. (...) Chartier afirma
que o objetivo da apropriação é uma “uma história social das
interpretações, remetidas para as suas determinações
fundamentais”, que, insiste o autor, “são sociais,
institucionais, culturais”. (VAINFAS In: CARDOSO e
VAINFAS, 1997, p. 154)

Neste sentido, analisaremos a obra de Clotilde Massa como parte de uma


produção que se pensa como modeladora de subjetividades e sentidos para a
formação das mulheres latinas brasileiras nas décadas de 50 e 60. É uma obra
que visa retirar os perigos do “ócio da alma” através das “leituras sãs” para as
boas moças da sociedade brasileira. Entende-se que esse movimento coabitou
com discursos diversos no ambiente pós-guerra, mas foi um forte baluarte tanto
na América do Norte para reforçar a necessidade do retorno das mulheres ao lar

1
Em contato telefônico com a Editora Paulinas e Editora Paulus fui informada que não
há nenhum registro da existência dos livros e da autora nos catálogos da editora. Acesso
realizado em 02 de Março de 2015.

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– diminuindo assim a competição do mercado de trabalho – quanto para impedir


os avanços de discursos que poderiam colocar em cheque o modelo de família
mononuclear socialmente aceito. Como diria Clotilde Massa
A alma juvenil entra a duvidar, errando de doutrina em
doutrina: Deus se torna para ela o “Deus da boa gente”, aquele
que tudo permite, que tudo tolera. Ou então, Deus é a natureza
inteira, a árvore, a pedra, a nuvem... O mundo e Deus são
feitos da mesma substância e assim se confundindo a obra
com seu Autor, perde-se, neste torvelinho de idéias , a luz que
deveria servir de guia, os princípios que representam a 417
salvação. (MASSA, 1954, p. 35, “Os Maus Livros”)

Ler é um ato perigoso, portanto. A mulher precisa ser doutrinada para


não confundir a verdadeira religião cristã com os demais discursos, que também
religiosos, e muitas vezes crentes em Jesus Cristo, reconheciam a santidade da
vida e de tudo que habita a Terra conosco. Contestar a supremacia total do Deus
católico era um mau pensamento para uma boa moça. O movimento hippie que,
lentamente espraiava-se pelas Américas era uma ameaça aquilo que a autora
considerava a verdadeira fé.

Mas, “Cada qual vai como Deus o quer”, como nos diria Clotilde e assim
valia mais a mulher que cuidava não apenas de sua aparência externa, mas do
espírito, lendo bons livros, sendo prendada para as tarefas domésticas e
aprendendo a ser uma boa esposa, mãe e cidadã.
A missão da mulher na família é principalmente a de semear
a paz ao redor de si. Cabe a mãe apaziguar as contendas entre
os pais e filhos; à filha aplainar as dificuldades entre os pais,
à irmã, manter o equilíbrio entre os irmãos” (MASSA,1954,
p. 59)

Ela é considerada pela autora – e por vários discursos anti-feministas


católicos em meados do século XIX – praticamente um anjo que Deus formou
para trazer o que falta à belicosidade masculina. É a representação da cuidadora
e mantenedora do lar. Nesse sentido, era preciso controlar todo tipo de atividade
social disponível para as damas, uma vez que seu ofício doméstico era de
extrema relevância para o funcionamento saudável da sociedade. Com isso, o
cinema recebe um pequeno capítulo próprio. Era um fator preocupante para a
família cristã.

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Um comportamento feminino desviante (ou “desviado” por


alguém) ameaça a honra familiar, a moral estabelecida e,
finalmente, as próprias relações de gênero justificadas por
esta. Os conceitos de “honra”, “reputação”, “respeitabilidade”
são utilizados como referências que estabelecem e legitimam
a hierarquia que favorece o masculino. (PINSKY, 2014, p.
125)

O cinema é um perigo, assim como a leitura desenfreada e sem condução.


Pelas películas as mulheres poderiam consumir ideias indesejáveis e formar
418
opiniões a respeito da vida que não coadunavam com os preceitos cristãos. A
vida feminina precisava ser regulada para o seu próprio bem. A crítica à má
influência do cinema tinha como argumento central a possibilidade do consumo
de indecências e, a partir de meados do século XX no Brasil passaram a ter
sessões de filmes exclusivos para moças e senhoras. Mesmo assim, na obra de
1954 a autora Clotilde Massa afirma
Geralmente os enredos dos filmes são incompatíveis com a
realidade da vida; se em certas passagens houvesse um pouco
de poesia, evocariam as velhas fábulas de outrora...
Mas, poesia, quase não há. O cinema é hoje fonte de lucro,
para produtores, organizadores e atores, que encontram aí o
velo de ouro e se contentam com a prosa...
Por que o cinema tanto agrada às jovens? Porque trata de
amor; esta é a razão. O amor é feito para elas. Mas quando o
amor se apresenta sob aspectos perigosos e desprovidos de
pudor, o caso muda de aspecto.
A imoralidade unida à anormalidade é uma péssima escola,
que as jovens não deveriam freqüentar. (MASSA, 1954, p. 99-
100)

Nessas publicações há sempre um grande temor de que as mulheres


pensem por conta própria. Como elas são seres frágeis, submissos e
influenciáveis, poderam se transformar – por conta de sua fragilidade e fácil
influência – em seres nefastas devoradores da família e dos bons costumes. Os
livros, a aparência externa, os cuidados com o lar, as prendas domésticas e os
cuidados com a moral e os bons costumes eram e são bastiões e redutos das
mulheres latinas até os dias atuais.

É preciso pensar que a história que se narra no pós-guerra não inclui essas
“adequações” aos sentidos das boas moças, porque houve uma naturalização
dessa fala no cotidiano. Essa aqui é uma história das mulheres no feminino. É a

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narrativa de uma mulher que procura doutrinar outras mulheres a agir da maneira
que ela e um grupo religioso inteiro consideravam corretos. Um grupo bastante
hegemônico na América e no Brasil e que conseguiu de várias maneiras moldar
as subjetividades de milhares de moças que acreditavam que deveriam pensar,
agir, sentir e viver daquela maneira para serem felizes. É a atuação do poder
simbólico na história para a construção de uma pedagogia de sentimentos2.

A vida no feminino deveria ser bem conduzida e regrada em sentimentos


419
que as fizessem felizes por estarem cumprindo seus deveres sociais. Em
contrapartida, os homens seriam felizes em assumir outros deveres, como ser o
provedor econômico da família, e dessa maneira todos sairiam ganhando nas
relações sociais. Mas é nesse discurso que se fundamenta a desigualdade da
possibilidade de atuação das mulheres e quaisquer atos desviantes eram vigiados
e regulados como impróprios. Causariam a desgraça da família, manchariam a
honra dos seus membros e certamente trariam a tristeza de todos.

As relações entre os gêneros se fundamentam em discursos que não


seguem lógicas racionais stricto sensu em falas que revelam uma mistura de
sentimentos, sensações e pitadas de fragilizadas argumentações que deveriam
ser racionais, mas se baseiam mais naquilo que se pretende representar do que
necessariamente naquilo que são3. Em outras palavras: em representações.
Afinal, mulheres não são inferiores ou mais frágeis que os homens, mas
reiteradamente esse ainda é o discurso predominante na sociedade latina
ocidental.

Temo arriscar que leio uma obra de 1950 que poderia facilmente ter sido
escrita em na primeira década do ano 2000. Inúmeros são os sites, blogs e livros
que se disseminam, tais como a “a Bíblia da Mulher” que reproduzem ad
infinitum esse mesmo discurso moralizador. Claro, estamos em outros tempos e

2
Sobre esse conceito ver: Ana Carolina Eiras Coelho Soares. Moça Educada. Mulher
Civilizada, Esposa Feliz: Relações de Gênero e História em José de Alencar. Bauru:
EDUSC, 2012.
3
Essa é uma discussão muito intensa, ver: SCOTT, JOAN W. Os usos e abusos do
gênero. Tradução: Ana Carolina Eiras Coelho Soares. Projeto História, São Paulo, n.
45, pp. 327-351, Dez. 2012.

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outros discursos convivem com esses. Mas há ainda muita luta pela frente.
Escrevo pensando nas gerações futuras de mulheres latinas: Que nada as
detenham, que nada as conformem, que nada as diminuam!

REFERÊNCIAS

Fonte:
420
MASSA, Clotilde. Uma delícia por dia. São Paulo: Editora Paulinas, 1954.

Bibliografia:

CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (org.) Domínios da História:


Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

FITOUSSI, Michèle. A mulher que inventou a beleza: a vida de Helena


Rubinstein. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.

MATOS, Maria Izilda S. de. Por uma História da Mulher. São Paulo: EDUSC,
2000.

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MULHERES BRASILEIRAS E COLOMBIANAS: ESCREVENDO


SOBRE O CORPO FEMININO E O PRAZER NA LITERATURA
EROTICA NA METADE DO SECULO XX

Leidy Carolina Díaz Cardozo*

Introdução
422
Se pretende com esta pesquisa, conhecer a representação do corpo
feminino e o prazer na literatura erótica escrita por mulheres brasileiras e
colombianas, porque como acontece na sociedade patriarcal, um importante
espaço público historicamente tem sido ocupado principalmente por atores do
sexo masculino, é claramente separada da participação da mulher no espaço
público (STERN, 1999).

É interessante fazer uma análise, a fim de compreender melhor a situação


social das escritoras brasileiras e colombianas a partir de escrever literatura
erótica, representando o corpo feminino e o prazer na metade do século XX, pois
sendo o corpo inerente a própria mulher, o coletivo masculino é quem a
sociedade patriarcal lhes permite falar sobre ele, designar livremente, conceituar,
representar em imagens, descrever em canções, poemas, romances eróticos sobre
o corpo feminino, em breves palavras representá-lo. Então é importante, fazer
uma pesquisa com perspectiva de gênero para seguir reconhecendo as mulheres
como figura histórica, seu papel ativo, complexo e importante digno de análise.

Da mesma forma, se aprofundará, nas mudanças que as mulheres fizeram


na sociedades de origem, porque ambos países Colômbia e no Brasil, apesar de
ter tido o desenvolvimento do café, compartilhar o elemento do “meztizaje”,
tiveram como fator comum o modelo patriarcal na sociedade (KARASCH ,
2005).

O trabalho que fiz isabel morant historia de las mujeres en españa y


américa latina, história de trabalho das mulheres na espanha e na américa latina,

*
Leidydi_az@yahoo.es

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percebe entender a história das mulheres, considerando o que estava


acontecendo deacordo ao contexto. As comparações, ao invés de conexões
envolve o desafio de explicar a história das mulheres, tendo presente processos
que vão além do contexto nacional e que poderiam ser entendidas de um mundo
econômico, político e cultural do Atlântico (ARMITAGE , 2004).

Objetivos
423
Analisar a representação do corpo feminino e o prazer na literatura
erótica escrita por escritoras brasileiras e colombianas na metade do século XX.

Objetivos específicos

Indagar que imaginarios existem sobre a sexualidade la literatura


erotica brasileira e colombiana escritos por mulheres.

Conhecer que tipo de controle existiu frente a escrever literatura erotica


por parte de mulheres.

Identificar as rupturas e as mudanças o que fizeram as mulheres ao


momento de literatura erótica.

Refletir sobre as semelhanças e diferenças sobre literatura erótica


escrita por mulheres no Brasil e na Colômbia.

Metodologia

A abordagem utiliza para esta investigação, é a perspectiva de gênero,


segundo Scott o gênero como construção cultural que muda com o tempo, e
define o comportamento que as sociedades dão a mulheres e homens. As
representaçoes, relacionan o individual e o coletivo quanto no tempo longo até
o mais cotidiano, onde os fatos, ideias, vem de estruturas sociales que
permanecen no tempo. O conceito de gênero da Joan Scott, propôs no seu
clássico artigo Gender: A Useful Category of Historical Analysis, explicar a
persistência das desigualdades sociais e culturais entre mulheres e homens.

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Fontes de investigação

Nesta primeira fase exploratoria referente às fontes, encontrou-se o jornal


O Rio Nu (Rio de Janeiro, 1898-1916), o qual foi um jornal sobre humor picante,
escrito por homens. Este trabalho tem dois leitores masculinos e femeninos,
como diz Schettini o jornal tem histórias que “tem como centro a propaganda
de certas publicacoes entre leitores e leitoras em busca de excitação sexual pura
e simples, ou de salvar um casamento” (SCHETTINI, 2011:316).
424
Neste trabalho, a representação do corpo feminino em imagens, que
projetam que a mulher procura o seu próprio desejo sexual, o que é interessante
no sentido de que o representa como um sujeito de suas próprias necessidades e
não apenas como um objeto de necessidades sexuais do masculino.

Tomando como referência o jornal O Rio Nu, se procurou encontrar um


jornal alternativo na literatura colombiana, para contrastar neste estudo. No
entanto, até hoje foi encontrado uma tese em 2014 de Diana Gutierrez com
Representacion femenina en la literatura ponografica acercamiento a la obra
de Hernan Hoyos, onde ele se aproxima da representação feminina feita pelo
autor, na cidade de Cali, em seus livros refere-se Gutierrez En la ciudad de Cali
durante las décadas de 1960 y 1970 empezaron a circular novelas, crónicas y
reportajes pornográficos del escritor colombiano Hernán Hoyos. En tales libros
la contundente presencia de los personajes femeninos y el tipo de representación
que de ellas allí se llevaban a cabo, parecen ser una extensión de la cultura
popular de la época y, al tiempo, un entretejido de las prerrogativas que confiere
el material porno a sus personajes. Debemos tener en cuenta que, en términos
generales, la imagen de la mujer en la literatura, se había ajustado por
antonomasia al canon cristiano que la beatificaba como mujer digna y pura.
(GUTIERREZ, 2014: 269).

Esta fonte de tanto o jornal O Rio Nu, como a investigação de Diana


Gutierrez, levaram a dar uma olhada até a literatura erótica, porque é
interessante, uma vez que representa o corpo em interação com outro corpo. Para
delimitar o assunto e para gerar contraste, referindo-se ao gênero da literatura
erótica, se encontraram escritoras muito importantes desde na metade do século

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XX quanto de romances, contos como de poesia, mas o foco desta pesquisa é


romance e contos, porque se observa as mudanças dos personagens e os
imaginários sociais respeito ao corpo.

É importante refletir sobre a representação da mulher cristã, que fez


Michelle Perrot la mujer es ante todo una imagen. Un rostro, un cuerpo, vestido
o desnudo. La mujer es apariencias. Y esto se intensifica en la medida en que,
en la cultura judeocristiana, se le asigna el silencio en público. Algunas veces
425
debe ocultarse y otras mostrarse. Hay códigos muy precisos que rigen sus
apariciones y las de tal o cual parte de cuerpo (PERROT 2008, 62).

As escritoras na literatura erótica, entram em contato diretamente com a


questão de uma das necessidades básicas do corpo humano, o prazer, e mas com
um dos personagens principais, a mulher. A participação das mulheres, na
literatura erótica mostra seus pensamentos sobre o corpo, sobre o erotismo, sobre
o amor livre, sentir prazer fora do casamento, tema que mais preocupava a
sociedade patriarcal.

Marco conceitual

O conceito da mulher no século XX na Colômbia, esteve influenciado


por imágenes femeninas de bellas, casadas, madres y solteras, las cuales para
cada una de ellas, habían reglas de conductas que les permitiría cumplir un
buen papel de hija, esposa, madre, hermana, amante, etc. Además, de su
comportamiento en su conjunto de relaciones en los espacios públicos y
privados en cuanto a los hombres (BONILLA em VELAZCO, 2014:16).
Isto foi evidenciado nos manuais de comportamento feminino. As revistas
femininas reforçou o papel das mulheres no casamento para ensinar receitas,
chaves e apoiar ao marido (SILVA, 2012).

O anterior, refletiu o pensamento da época instruir as mulheres em seu


trabalho doméstico buscando o bem-estar do homem, que foi aceite pela
sociedade e foi localizado dentro de preceitos sociais, educacionais, culturais e
morais da época. Catalina Reyes historiadora colombiana em seu artigo Cambios

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en la vida femenina durante la primera mitad del siglo XX, mostra o lar e o
trabalho, como cenários de mudanças na vida das mulheres.

Sobre o tema do corpo das mulheres, até o que se tem pesquisado, estão
as historiadoras brasileiras como Mary Del Priore em sua obra, A História das
mulheres no Brasil conta a trajetória das mulheres desde o Brasil colonial.
Ademais, em Histórias Íntimas – Sexualidade e Erotismo na História do Brasil,
mostra como a sexualidade e a idea de intimidade foram mudando ao longo do
426
tempo, por questiones políticas, económicas e culturais. O livro História do
Corpo no Brasil, vários historiadores brasileiros se referem em seus artigos ao
corpo nu, corpo e santidade, esterilidade, o corpo sedento, corpo morto, vestindo
o corpo, a cólera, suicídio, higiene, o corpo no jornal malicioso, corpo infantil
entre outros. Magali Engel em seu artigo Psiquiatria e feminidade, mostra
repressão dos corpos sujeitos de desejo sexual.

Aprofundando a respeito historiografia feminina, Isabel Morant dirigiu


quatro volumes que compõem um livro de referência sobre a história das
mulheres na Espanha e América Latina, da pré-história até o século XXI,
fornecendo uma base científica para a história mulheres sobre as questões da
educação, família , política, cultura , trabalho, movimentos feministas,
movimentos sociais , os modelos de feminilidade, sexualidade e identidades.

Os artigos da obra de Morant, tem em comum utilizar gênero como uma


categoria de análise e se aproxima a abordar o tema das mulheres a partir de uma
análise global, através da integração de fenômenos que ocorreram além dos laços
políticos e circunstanciais e estaria em diálogo com conexões lingüísticas e
religiosas culturais, vinculando o passado e o presente da Espanha e da América
Latina, o que é referido por Charles Verlinden quanto a civilização Atlântico,
que leva em conta tanto a permanência e transformações culturais, como a
migração com especial atenção a miscigenacao e que faz parte da história das
sociedades.

Na historiografia das mulheres, refere Morant que procurou-se explicar


as diferenças dos sexos; com as explicações que, procuram as origens e as causas
de suas diferenças, e colocaram aos homens na frente a elas como coletivo

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também sexual e detentor do poder. Esta maneira de explicar, as diferenças no


masculino e feminino leva a escrever a história de mulheres desde uma
perspectiva que revele o que as mulheres têm feito, em espaços públicos onde
foram silenciadas, neste caso, como escritoras de literatura erótica.

Literatura erótica e gênero

Respeito ao que se refere com o prazer do corpo, na literatura desde o 427

Antigo Egito, se escreveram tratados, como por exemplo o papiro erótico de


Turín (GARCIA, 2015) que contém cenas do ato sexual. A literatura antiga,
sobre o erotismo se caracteriza pela união do divino (deuses) e o terreno
(humanos), as obras são geralmente manuais de posições sexuais, poesia e teatro.

Os temas se referiam a heterossexualidade, como também ao sexo oral e


lesbianismo. Além disso, existiram as mulheres chamadas hetairas na antiga
Grécia, elas elevaram a prática do amor pela forma de arte e escreveram tratados
como o Artyanassa onde se encontravam posturas que se deviam executar, mas
no século a.de C., as hetairas “fizeram tanto barulho ao lado dos filósofos,
políticos e poetas, quem diriam que nenhuma outra mulher devia ocupar o lazer
dos gregos” (SANCHEZ, 2010: 42). Depois desta referência, dentro da
literatura erótica não se voltou a escutar nomes de mulheres como escritoras,
somente depois dos 30 surge a vanguardista francesa, Anais Nïn como escritora
reconhecida de este tipo de literatura. Suas obras, em forma de diário retratavam
os desejos, preocupações e a forma repressiva como vivia a mulher ocidental.

Sobre as escritoras brasileiras, desde mediados do século XX até a


contemporaneidade, se tem encontrado a Clarice Linspector, Cassandra Rios,
Ana Miranda, Ana Paula Maia, Andréa del Fuego, Ana Ferreira, Állex Leila,
Cecila Prada, Heloisa Seixas, Juliana Frank, Leila Guenther, Luisa Geisler,
Márcia Denser, Marilia Arnaud, Tércia Montenegro. Mas se escolhem as
escritoras na metade do século XX, pois elas abrem o caminho vedado

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antigamente para as mulheres, e também são um referente muito importante para


as novas escritoras do século XXI1.

O fato, que a mulher comece a escrever sobre literatura erótica é a partir


da metade do século XX, surge a partir das transformações do feminismo, o qual
começou a falar sobre o conceito de gênero, que tenta “clarificar su objeto de
estudio y de tener instrumentos analíticos propios para pensar la diferencia o
diferencias sexuales.” (MORANT, 1995:46).
428
Assim, o gênero comeca a fazer parte da história das mulheres, o gênero
“ayuda a descubrir áreas de la historia que habían sido olvidadas. La historia
del género amplía las perspectivas de la historia al establecer, a partir del
interés por las mujeres, una serie de preguntas sobre las relaciones entre los
grupos humanos, que antes habían sido omitidas” (BOCK em MORANT,
1995:50). O conceito de gênero levo a pensar sobre as mulheres como sujeitos
de direitos em todos os sentidos, político, económico, cultural, familiar y sexual.

O tema do corpo feminino e sexualidade reflete uma subordinação de


gênero “que antecede a la de clase implicaba una dialéctica compleja de
complicidad y resistencia práctica. Por motivos de color y clase, así como de
género y familia, las mujeres tenían razones para forjar posturas de solidaridad
con los hombres y aceptar los principios de un orden social patriarcal. (STERN,
1999: 414). Mas por questões práticas de auto- protecção e bem-estar, as
mulheres também tiveram motivos para construir uma cultura de resistência que
embrollaba autoridade masculina e afirmação no campo do condicional.

A questão da sexualidade tem vindo a ganhar interesse, como fala


Barrancos “el desarrollo historiográfico latinoamericano dedicado a las
mujeres, al género y a tópicos concomitantes como la sexualidad (o mejor las
sexualidades) marcó una curva empinada desde inicios de los años 1990”
(BARRANCOS, 2012: 34-35). Tendo presente o anterior, se pretende-se aportar
a história das mulheres respeito ao tema de escrever sobre prazer na literatura
erótica, especificamente aprofundar nas mulheres brasileiras e colombianas, pois

1
Até agora, ainda falta caracterizar muito bem esta parte respeito ao contexto, como
também delimitar bem as escritoras colombianas.

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segundo o sinalado se apresenta como fator em comum na realidade o controle


social, religioso, médico, político y cultural da sociedade patriarcal sobre as
normas e condutas femininas.

A mulher e o prazer

O século XX foi marcado por nova percepção do corpo menos oculta,


uma das mudanças foi a vestimenta, pois marcou uma percepção diferente do 429

corpo feminino. “La vida urbana requería de un cuerpo veloz, ágil ligero y que
se moviera con soltura, de ahí el porqué de los médicos recomendaran la
práctica de ejercicios físico y de deportes, considerados como hábitos
saludables. El culto al cuerpo se dispersaba con la fotografía y el cine
americano, este presentaba un nuevo modelo de belleza femenina, en el segundo
la gordura vista como algo feo e insalubre”. (Silva, 2012).

Esta mudança, levou a que as mulheres poderiam expressar-se de forma


diferente através da roupa. No entanto, também se deu a repressão e vigilância
comportamental, manifestando-se no surgimento de manuais de educação sexual
e revistas femininas, reforçando o papel da mulher dentro do casamento (SILVA,
2012).

O conceito da mulher esteve determinado por “imágenes femeninas de


bellas, casadas, madres y solteras, las cuales para cada una de ellas, habían
reglas de conductas que les permitiría cumplir un buen papel de hija, esposa,
madre, hermana, amante, etc. Además, de su comportamiento en su conjunto de
relaciones en los espacios públicos y privados en cuanto a los hombres”
(BONILLA em VELAZCO; 2014:16). O anterior, foi evidenciado nos manuais
de comportamento feminino. As revistas femininas reforçaram o papel das
mulheres no casamento para ensinar receitas, chaves e apoiar o marido ( SILVA,
2012) . Isso reflete o pensamento da época, instruir as mulheres em seu trabalho
doméstico buscando o bem-estar do homem, que foi aceitado pela sociedade e
foi localizado dentro de preceitos sociais, educacionais, culturais e morais.

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Para os sectores femininos da elite e da classe média, foi aceitado contar


com o serviço doméstico, como citado respeito Reyes o manual educativo 1938
, onde os “Hogares de clase media que sostienen costurera, lavandera, sirvienta
y niñeras”. O serviço doméstico do qual, as mulheres de elite e da classe média
foram fornecidos como mencionado pelo autor, era uma força de trabalho que
veio da migração de mulheres rurais para a cidade e, em alguns sectores sociais
foi responsável pela iniciação sexual dos jovens da casa e a satisfação do senhor.
430
(REYES, 1995:11)

Esta situação das mulheres negadas a sentir prazer, mas si estar em


contato com o seu papel tradicional de esposa e mãe. Pois, dentro do casamento,
no es el disfrute del cuerpo el único factor presente. Dentro de este contrato, el
cuerpo de la mujer tiene un valor económico reproductivo (…). Entonces, la
entrega del cuerpo femenino en el matrimonio claramente puede interpretarse
como la transacción económica de un bien de la que está ausente el término
deseo, claramente presente en la prostitución” (BATAILLE em OSORIO,
2002:407). Um dos papéis das mulheres no casamento , era reprodutiva , mas
isso não está directamente relacionada com o gozo da sexualidade , o desejo
sexual e o prazer de seu próprio corpo.

A imagem feminina que prevaleceu durante a primeira metade do


século XX, foi o legado de mulheres no século XIX, a que se refere Jimenez e
Osorio “la mujer cristiana constituida sobre la figura de Eva y la Vírgen María,
dos modelos prevalecientes en la época colonial” (JIMENEZ e OSORIO em:
VELAZCO, 2014:20). La mujer era identificada como la reina del hogar, en
semejanza con la Virgen María y ubicándola a ocupar el trono del hogar dentro
de la sociedad patriarcal, cuya misión fundamental era procrear y la crianza. A
mulher foi identificada como a rainha do lar, em semelhança com a Virgem
Maria e colocando-o à mulher no trono da casa, além disso dentro da sociedade
patriarcal, cuja missão fundamental era de procriar e a reproducão.

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Conclusões

A obrigação de mulheres, era cultivar um sentimento de vergonha, um


sentimento para o dever moral e reputação para empurrar circunstâncias sociais
que convidam o opróbrio, eles exigiram adotar aparências sociais discordantes
com os estabelecidos por homens adultos honrosas. Essas aparições levaram à
obediência, apoio e aceitação nas relações domésticas com cônjuges, pais e
anciãos; cuidado da reputação e aparência sexual decente : a virgindade de filhas,
431
a fidelidade das esposas, viúvas de abstinência, e respeito para o lugar e o decoro
social cuja versão feminina destacou um sentimento de discrição para proteger
as mulheres e suas famílias.

A sociedade do século XX, exigida uma mulher que não somente se


dedicase apenas para procriação e marentalidade, mas também dedicada ao
trabalho doméstico, educação, disciplina do marido e filhos, à integridade moral
da família e cuidados de saúde, por tanto a mulher foi designada sob o título da
rainha do lar. No entanto, não é suficiente para ver uma mulher que reconhece a
sua própria sexualidade e seu próprio prazer, pois a sociedade patriarcal
determinou que as mulheres devem cuidar de sua beleza física, dar prazer ao
homem, cuidar da família, procriação, e estar ao serviço da sociedade.

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435

ST 3B
Gênero, Sensibilidades e
Poder

Coordenação
Prof. Dr. Getúlio Nascentes da Cunha
(UFG)

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Ed. Anpuh-Rio
Atas do II Encontro Nacional do GT Estudos de Gênero
Rio de Janeiro, 27 e 28 de outubro de 2016.

CORPO, PODER E EMPODERAMENTO: O NÃO-LUGAR E O


DISCURSO DE SI DE LAERTE

Mayllon Lyggon de Sousa Oliveira*

Wéber Félix de Oliveira**

Introdução 436

Michel Foucault, em A história da sexualidade - a vontade de saber trata


da sexualidade enquanto um dispositivo, um conglomerado de discursos
construídos por meio da biologia, ciências sociais, igreja e várias outras
instituições e/ou construções de poder/saber cujo objetivo é criar em torno da
sexualidade uma forma de controlá-la. O próprio autor comenta que esta é
mesmo uma hipótese repressiva? Há no decorrer do tempo indícios históricos,
histórico-teórico e histórico-político que garantam ou, pelo menos, validem esse
processo?

Mais que elencar esses pontos de virada no sentido político, cultural e/ou
teórico social a proposta aqui é encontrar nos discursos que Laerte faz de si
mesmo, por meio de entrevistas concedidas à programas de televisão, indícios
de subversões de locais comum no que tange à sexualidade. Em outro texto,
Foucault (2006) mencionará a sexualidade como uma espécie de super saber
social ao passo que há uma ignorância no âmbito privado. Stuart Hall (2007) ao
recuperar os momentos históricos sociais que desembocaram no sujeito pós-
moderno menciona as lutas do movimento feminista, que estouraram em 1970,
como um processo político onde há uma ruptura entre como deveria ser tratado
a sexualidade em âmbitos públicos e privados, já que através desses
movimentos, segundo o autor, não há mais essa distinção.

*
Graduado em Comunicação Social: Publicidade e Propaganda (Faculdade
Araguaia/GO), Mestrando em Comunicação, Mídia e Cultura – Linha de Mídia e
Cultura (FIC/UFG). Email: mayllon.lyggon@gmail.com
**
Graduado em Comunicação Social: Jornalismo (Universidade Federal de Goiás),
Mestrando em Comunicação, Mídia e Cultura – Linha de pesquisa Mídia e Cultura
(FIC/UFG). Email: weber.imprensa@gmail.com

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Da base ao rebu: um arcabouço

Antes de começar, porém, e por mais que esse não seja o foco desse
trabalho, é preciso que se faça resumidamente o percurso teórico-histórico a
respeito da sexualidade, tal como Foucault expressará em seu livro isso servirá
para localizar a análise proposta e proporcionar um escopo necessário para se
falar de sexualidade sob a perspectiva do não-lugar do Laerte. 437

Em um primeiro momento os mais leigos podem pensar que em torno


do sexo não há discurso. Por ser um tema tabu acabamos por nos controlar e
controlar a todos que nos rodeiam quando temas que envolvem sexo chegam na
roda de debate. Sexo é um assunto relegado a adultos e, sobretudo, no âmago da
alcova.

O que Foucault vem falar, e é isso que torna também o seu trabalho tão
relevante e importante, é que em “em torno do sexo há uma verdadeira explosão
discursiva”, porém, deixe-se claro há também “uma depuração do vocabulário
autorizado”. Isso porque o sexo e a sexualidade, enquanto dispositivos, sempre
estiveram ligados a outros dispositivos, como a confissão dos pecados e a Igreja.

Segundo o autor, a partir do Concílio de Trento há uma troca


progressiva dos manuais de confissões da Idade Média, que garantia que todos
os detalhes fossem expressos, para as confissões com uma maior discrição. A
chegada da Contrarreforma irá reforçar ainda mais essa discrição, em um projeto
que reduz o tempo de confissão, mas que, em contrapartida, estimula o
autoexame da consciência a penitência (FOUCAULT, 2015, p. 19-27).

Vemos então dois tópicos necessários à esse trabalho. Em um primeiro


momento não há uma limitação ao falar de sexualidade, há antes uma
determinação de onde e como isso deve ser falado. Os discursos continuam, o
que muda é a rede de poder/saber na qual esses discursos serão subjugados. O
outro ponto é a progressiva mudança de posição do local de fala. Enquanto
outrora era necessária uma confissão detalhada dos atos, passa-se
progressivamente para uma estrutura em que a confissão é feita interna e

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silecionamente, através de uma análise da consciência. Mais que o discurso, o


importante aqui é que o julgamento inicial não vê mais o padre/Deus como
principal carrasco, esse julgamento partirá da própria consciência, internalizando
a disciplina e o controle da própria sexualidade.

Para além dessa estrutura de controle a que a igreja se serviu, através da


qual práticas não-normativas eram condenadas e relegadas ao fogo eterno, cuja
estrutura de poder foi criada através de discursos e controle de discursos e de um 438
poder saber específico. Há também a interferência do Estado, que criou uma
“polícia do sexo, isto é, necessidade de regular o sexo por meio de discursos
úteis e públicos e não pelo rigor de uma proibição” (FOUCAULT, 2009, p. 28).
A sexualidade passa, então, a ser, também, um elemento de regulação política,
no qual, podem ser controlados a taxa de natalidade, idade do casamento,
nascimentos legítimos e ilegítimos.

Haverá ainda em meados do século XVIII um movimento de criação de


discursos sobre a sexualidade, sua perspectiva (ou função) é contabilizar,
analisar, especificar, classificar, criando um discurso racional e médico
biológico, que incita um o falar do sexo e fazê-lo publicamente, sem um prévio
julgamento de lícito e ilícito, mas com a intenção de “gerir, inserir em sistemas
de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão
ótimo” (FOUCAULT, 2009, p. 27), sendo também recuperado a partir do século
XVIII ou XIX, pelas ciências da psique (psicologia, psiquiatria, psicanálise) e
dar-lhe também roupagens de “doenças dos nervos”, “extravagâncias”, “fraudes
contra a procriação” (ibid., p. 34).

O que se percebe nesses três pontos chaves, e em outros que o autor


expressará no livro, é que houve durante muito tempo um processo sobre o falar
ou não falar do sexo, geri-lo, naturalizar algumas práticas e condenar outras.
Nesse percurso a configuração de um dispositivo de sexualidade acontece
construída através de discursos de várias instituições portadoras de poder-saber
específicos capazes de instaurar um tipo específico de sexualidade, bem como a
norma que deve ser rompida.

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Deleuze (1996) recupera o trabalho de Foucault, com a perspectiva de


dar luz e delimitar (ou esclarecer) o conceito de dispositivo. Para ele, o
dispositivo é,
antes de mais uma meada, um conjunto multilinear, composto
por linhas de natureza diferente. E, no dispositivo, as linhas
não delimitam ou envolvem sistemas homogêneos por sua
própria conta, como o objeto, o sujeito, a linguagem, etc., mas
seguem direções, traçam processos que estão sempre em
desequilíbrio, e que ora se aproximam ora se afastam umas
das outras (DELEZUZE, 1996, p. 83). 439

Veja-se o dispositivo então, resumidamente, como um jogo de linhas


agindo sobre certo aspecto da vida, por meio de instituições ou discursos
específicos. Em uma tentativa de manter uma ordem social específica. Há na
construção desse e de outros dispositivos, linhas e curvas de ações, segundo o
Deleuze (1996). Dentre eles, algumas merecem ser citadas, a saber, a curva de
visibilidade, que dará mais ou menos luz a determinados aspectos, como
acontece/aconteceu, por exemplo, com o discurso religioso sobre a sexualidade
mencionando mais ou menos certos aspectos; há ainda as curvas de enunciação
como um regime de enunciados construídos e que dá origem a determinado
dispositivo em um processo de gerenciamento do que pode ou não pode e como
pode ser dito.

Segundo o autor citado acima, um dispositivo comporta também linhas


de forças, que vão de um ponto singular ao outro nas linhas de luz e enunciação.
Ela se produz em todas as extensões entre uma curva e outra e passa por todos
os lugares do dispositivo. Ela seria uma terceira dimensão do dispositivo sendo
composta por saber e poder. Podemos dizer que é a linha que conhece o
funcionamento das curvas de luz e enunciação e, portanto, é portador de certo
poder saber que o possibilita uma subversão desse sistema do dispositivo, como
acontecerá, por exemplo, com a subversão do próprio sexo feita por Laerte, como
ser verá no seu discurso mais adiante.

Por último, há as linhas de subjetivação, surgida pela necessidade de


suprimir uma crise do pensamento de Foucault, encontrando uma nova
orientação possível para os dispositivos evitando que eles se encerrem nas suas

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próprias linhas. Essa linha diz respeito à dimensão do Si Próprio, que seria,
segundo o autor
não uma determinação preexistente que se possa encontrar já
acabada. Pois também uma linha de subjetivação é um
processo, uma produção de subjetividade, num dispositivo:
ela está para se fazer, na medida em que o dispositivo deixe
ou torne possível. É uma linha de fuga. Escapa as outras
linhas, escapa-lhes. O ‘Si Próprio’ não é nem um saber, nem
um poder. É um processo de individuação que diz respeito a
grupos ou pessoas, que escapa tanto às forças estabelecidas
como os saberes constituídos: uma espécie de mais-valia. Não 440
é certo que todo dispositivo disponha de um processo
semelhante (DELEUZE, 1996, p. 86-87).

Podemos perceber a linha de subjetividade como um processo de


utilização do poder saber constituído a partir das linhas de força para produzi
esse “Si Próprio” um individuo que possui a distinção de transpor as linhas do
dispositivo, superando as linhas de força do dispositivo, atuando e efetivando-se
sobre si mesmo. É através dessa subjetividade, dessa constituição própria e
característica do sujeito que Laerte se posiciona como pertencente a um não-
lugar.

Veja, nas entrevistas selecionadas como amostra para esse trabalho,


Laerte, por vezes se posiciona como homossexual, bissexual, uma mulher falsa,
um homem, uma mulher. Sua proposta não é fazer uma confusão com esses
termos, mas subvertê-los. Encontrar um lugar para si que não lhe seja carcerário
e como todos esses termos ou localizações são característicos e generificados,
possuídos por um grupo de características que o colocam em um lugar estático e
até imutável seu projeto estar no entremeio, no entre-lugar, não lugar mais
aproximado de uma performatividade do que uma construção.

Gamson (2002) vai caracterizar os sujeitos queers como possuidores


(instituidores) de postura de resistência contra as normas generificadas
instituídas socialmente, no qual esse queer seria a diferença que não quer ser
assimilada ou tolerada, mas antes desfrutar da condição marginal (GAMSON,
2002). O queer, enquanto movimento político e um campo de estudo das ciências
sociais, já surge da subversão. Inicialmente utilizado como termo depreciativo,
tal como “bicha” ou “sapatão” no Brasil, o movimento se apropria do termo para

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se fazer. Mais do que isso, uma forma de aceitar a sua própria condição outrora
marginalizada. Segundo Guacira Louro (2006)
a expressão, repetida como xingamento ao longo dos anos,
constituiu-se num enunciado performativo que fez e faz
existir aqueles e aquelas a quem nomeia. Performatividade
instituiu a posição marginalizada e execrada. A posição que
teria de ser indesejada. No entanto, virando a mesa e
revertendo o jogo, alguns assumiram o queer, orgulhosa e
afirmativamente, buscando marcar uma posição que,
paradoxalmente, não se pretende fixar. Talvez fosse melhor
dizer buscando uma disposição, um jeito de estar e de ser. 441
Mais do que uma nova posição de sujeito ou um lugar social
estabelecido, queer indica um movimento, uma inclinação.
Supõe a não-acomodação, admite a ambiguidade, o não-lugar,
o trânsito, o estar-entre. Portanto, mais do que uma
identidade, queer sinaliza uma disposição ou um modo de ser
e viver (LOURO, 2006, p. 45).

Ou seja, mais que criar novas posições ou aceitar se enquadrar num


padrão/posição social específica os sujeitos queers se aceitam nesse não-lugar.
O trânsito entre as normas binárias estabelecidas, criadas e instituídas através de
dispositivos sociais, como a sexualidade. Esses indivíduos percebem e
conhecem as linhas discursivas e de visibilidade estabelecidas nesse processo e
criam formas, dentro do próprio dispositivo e através de condições do próprio
dispositivo, para subverter essas linhas.

O gênero/sexo1 não está pautado em uma construção acabada, mas sim


em um processo de contingência, de performatividade, essa deve ser
compreendida “não como um ‘ato’ singular e deliberado, mas ao invés disso,

1
A distinção entre gênero e sexo foi uma alternativa encontrada por Simone de Beauvoir
(e uma parcela considerável das feministas/pesquisadoras) encontraram para dar um
estatuto ao gênero como objeto de estudos sociais. Butlher (2000), via Foucault (2012),
percebe que o sexo também não é algo exclusivamente biológico. Com a História da
Sexualidade: A vontade de saber pode-se perceber que inclusive o sexo (objeto de
estudo na biologia) se valeu de discursos para ser edificado. Ou seja, ele não é somente
biológico, mas uma construção histórica e política. Neste sentido, a dicotomia
sexo/gênero, encontra-se superada pelo estudo do gênero em Butler. Para ela,
precisamos nos desvencilhar do primado do natural, do biológico. Não existiria algo
somente cultural, mas sempre discursivo, histórico e político. Essas construções
históricas e políticas encontram-se naturalizados. Ou seja, aquilo que é, no fundo,
construção passa a ser considerado natural, é naturalizada. As construções científicas,
os fatos científicos se tornam fatos sociais por esses processos de naturalização.

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como a prática reiterativa e citacional [inserida em um contexto]”, ou seja, “a


reiteração de uma norma ou conjunto de normas” (BUTLER, 2000, p. 167).

É através dessa performatividade dessa sexualidade que os indivíduos


criam representações próprias, criam/estabelecem imagens próprias ou óticas
através das quais querem ser percebidos. É um processo de representação
própria, presente em um jogo de poder-saber. Ressalta-se que não são todos os
indivíduos que possuem esse poder-saber, mas figuras públicas, como é o caso 442
do Laerte, acabam estabelecendo uma imagem que poderá vir a ser também
desses outros indivíduos e, ainda, estabelece uma representatividade, um fator
determinante para um se aceitar e subverter o dispositivo dentro do próprio
dispositivo.

Para fazer sentido o espaço imagético, cultural e de produção de


sentido, é necessário que esse discurso representacional esteja inserido em uma
estrutura imaginativa de entendimento do real, cuja linguagem seja carregada de
elementos simbólicos que são compreendidos por diferentes grupos.

As representações são processos complexos e ativos com interferência


direta na sociedade. Muito embora, os elementos composicionais precisem ser
estudados isoladamente, conforme sua matriz construtiva seja ela informativa,
ideológica ou cognitiva. Assim, os estudos de representação estão voltados para
a matriz da qual parte a mensagem. Estas, por sua vez, estão pautadas na
satisfação do ímpeto humano em se inteirar e modificar o mundo circunvizinho,
cujo processo de criação está baseado em uma crise do seu modelo antecessor.

A representação é construída, assim como a linguagem, por meio da


cadeia de significados em que estão inseridos os indivíduos, logo é por meio das
representações que damos significados, já que é através dos processos
linguísticos/comunicacionais que fazemos usos das coisas, sentimos, pensamos
e dizemos, ou seja, representamos algo que possui algum significado, comum ou
não, à cultura em que estamos inseridos.

É essa busca pelas formas que se constrói o significado que mobiliza a


análise de Hall (1997) a respeito do conceito de representação. Através das

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atribuições que ele faz da constituição da identidade, signos e significados, as


representações possibilitam o funcionamento da linguagem, assim, esta é um
sistema de representação. Aqui, a abordagem do autor prioriza, também, as
consequências da representação através dos discursos e como isso afeta as
condutas, a formação e/ou a construção das identidades e, sobretudo, suas
interpretações sócio-históricas.

Se os significados são atribuídos através do sistema de representação e 443


se os significados são constituídos através da linguagem, é preciso entender os
recursos prioritários para sua interpretação. Daí ao se analisar as representações
é preciso que: a) elas sejam analisadas conforme as formas assumidas pelo
significado; b) se priorize as formas matérias onde circulam os significados
simbólicos. Veja-se, não há resposta única e indizível, mas sempre possíveis
interpretações, que, sendo baseada na subjetividade de quem a analisa, está
passível de transformação, pois os significados estão sempre em processos de
negociação e inflecção e podem ressoar novas situações (HALL, 1997).

Então, se percebe a representação como a utilização da linguagem para


dizer algo significativo utilizando como um processo através do qual o
significado é produzido e intercambiado entre membros de determinada cultura.
Ou na opinião de Silva (2012, p. 91) a representação enquanto um “sistema de
signos, como pura marca material”, “um traço exterior”, “um sistema linguístico
e cultural: arbitrário, indeterminado e estreitamente ligado a relações de poder”.

Em frente ao espelho: as várias possibilidades

Como dissemos previamente, esse trabalho tem por objetivo


problematizar a sexualidade como um dispositivo que é construído histórico e
socialmente, observando, pois, que esse dispositivo funciona como instrumento
de regulação e manutenção de uma chamada ordem social, como nos alerta
Foucault (2015). Para cumprirmos tal objetivo lançamos nosso olhar sobre os
processos sociais e subjetivos que agenciam a construção da identidade do
sujeito. No entanto, partimos nossa análise para o campo em que há processos

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de ocupação de um não-lugar identitário2 queer. De acordo com Louro (1999)


esse processo de ocupação é construído a partir de um posicionamento de
resistência frente às normas e práticas disciplinares sobre os sujeitos, suas
identidades de gênero e de sexo.

Decidimos, assim, fazer uma análise da prática discursiva sobre o


processo de construção desse não-lugar a partir do posicionamento e fala do
cartunista Laerte Coutinho, observando de que forma ao enunciar-se, ele 444
(sujeito) coloca-se em uma posição marginal, em que rejeita, por completo ou
não em alguns momentos, um lugar de assimilação de uma identidade assistida
socialmente ou, em outras palavras, toleradas de acordo com as normas de
categorização. Essa “transgressão” normativa implica com que o sujeito possa
assim transitar livremente sobre diversas identidades, implicando para a não
fixação de um indexador normativo identitário e promovendo, dessa maneira, a
permissibilidade de um processo de mutabilidade dinâmica. A partir desse
aspecto, podemos, então, processar a criação de novos tipos de visibilidades e
sentidos nesse corpo, atravessado por um discurso subversivo às regras de
generificação.

Como objeto de nosso estudo, buscamos fazer uma análise de duas


entrevistas concedidas pelo cartunista a duas redes de televisão brasileiras, a
primeira foi exibida em vinte de fevereiro de dois mil e doze (20/02/2012) pelo
pela Programa Roda Viva da TV Cultura3 em que Laerte Coutinho foi sabatinado
por jornalistas e colegas de trabalho. Já a segunda entrevista foi ao ar um ano
após a primeira, em dezessete de outubro de dois mil e treze (17/10/2013) pelo

2
Stuart Hall (2012) recupera Deleuze, a afirmar que identidade é um conceito sob-
rasura, ou seja, é um conceito que não tem mais a capacidade de descrever os processos
históricos em que estamos inseridos, porém que não possui um novo termo/conceito que
possa expressa-lo. Os estudos queers, como vimos com Guacira Louro (2006), aponta
para um pós-identitário, que seria um processo onde as identidades conhecidas e
instituídas já não são mais suficientes para abarcar, no que tange à sexualidade, alguns
indivíduos que estão à margem e desfrutam dessa condição marginal (GAMSON, 2002).
Por esse motivo e com essa ressalva ainda utilizamos o termo identidade e seus
derivados.
3
Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=QmEGgs5yWCE&feature=youtu.be. Acesso em:
25 de Agosto de 2016

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SBT4, em que foi entrevistado pela jornalista Marília Gabriela para o programa,
já extinto, “Gabi quase proibida”. As duas exibições foram acolhidas como
objeto de análise porque elas enfocaram a construção do sujeito Laerte Coutinho,
apresentando elementos suficientes para este estudo. Quanto à eleição por um
material audiovisual deveu-se exclusivamente por dois motivos. Primeiro,
porque as duas emissoras de TV têm um alcance expressivo junto ao público
brasileiro e segundo, porque a veiculação de imagens corrobora para a
445
compreensão discursiva desse corpo em trânsito, já que ele traz em si elementos
de constituição e visualização do ser.

Mas antes, precisamos explicar de forma sucinta por que decidimos,


assim, pela escolha de Laerte Coutinho, além, é claro de fazermos uma breve
apresentação do mesmo. Laerte Coutinho é cartunista e quadrinista há mais de
quarenta anos. Ele nasceu na cidade de São Paulo em 10 de junho de 1951 e
iniciou o seu trabalho enquanto realiza seus estudos universitários na
Universidade de São Paulo. Profissionalmente, seus traços chegaram ao público
pela primeira vez a partir da revista Sibila onde lançou o seu primeiro
personagem, chamado Leão. Sua atividade não se restringiu apenas a essa
revista, ela passou por outras editorias, colaborou na publicação de tiras cômicas
e charges em jornais de circulação nacional, editou algumas revistas de própria
autoria e lançou alguns livros com seus mais de 10 personagens. Chamando
atenção para a personagem Hugo, em que desencadeou um novo processo de
construção social do cartunista.

Em 2004, o autor lança uma tira em que esse personagem se transveste


de mulher. Tal narrativa, como dissemos, inicia um processo em que Laerte
assumi publicamente uma nova identidade de gênero, passando a se vestir de
mulher. A partir desse momento, Laerte ocupa o lugar aberto pela sua
personagem e se torna uma referência de transformação sócio-identitária no
Brasil, sendo assim, convidado a palestrar e dar entrevistas sobre esse processo
social. Posteriormente, Laerte vem a público novamente em um caso em que ele

4
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7_arzOEb5GI. Acesso em: 25 de
Agosto de 2016.

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foi agredido por uma mulher em um restaurante ao utilizar-se de um banheiro


feminino. Devido, essa trajetória histórica e pelo próprio discurso construído por
Laerte decidimos nos aprofundar em seu texto para explicarmos a existência de
possibilidade de ocupação de um não-lugar do processo de categorização de
gênero do ser humano.

Antes de partirmos para análise, propriamente dita, precisamos


esclarecer porque optamos neste trabalho por uma abordagem discursiva. 446
Primeiro, precisamos dizer que o ser humano é um ser totalmente social e tem a
sua constituição realizada cotidianamente através das relações que ele estabelece
entre ele e a sociedade. O ser humano é um realizador desse processo de
significar-se e significar o mundo exterior a partir da expressão de si por meio
de uma linguagem que lhe é única, logo cria representações sobre as quais os
significados estão instalados. Entendemos que toda forma de comunicação e
expressão é uma ação simbólica e social sobre o mundo e sobre o outro. Para
entendermos esse campo da produção simbólica, seus sentidos e seus
funcionamentos precisamos nos aproximar das formas de construção social que
se dão por processo dentro da linguagem.

Para Manhães (2009), quando um interlocutor se apropria de uma


linguagem para dizer algo, na verdade, ele está, ao mesmo tempo, construindo a
representação de papeis sociais. Isso porque o sujeito “mostra o mundo a partir
de seu ponto de vista para interlocutores em conversas que acontecem em
determinadas situações, que, por sua vez, possuem indicações de tempo e
espaço” (p. 312). O sujeito, assim, ocupa uma posição de fala e por meio da ação
discursiva ele se posiciona no tempo, espaço e também expressa uma dimensão
social e política. O discurso, nada mais é que, a linguagem em movimento.

Orlandi (2005) segue nessa linha ao dizer que a linguagem funciona


como mediadora entre o homem e a realidade. Para ela, é essa mediação que
torna possível “a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a
transformação do homem e da realidade em que ele vive” (p. 15). Ao falar de
mediação, a autora introduz o conceito de discurso. É por meio dele, segundo
ela, que o homem constitui a si próprio e a sua história por meio do trabalho

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simbólico. Entender a produção discursiva é lançar um olhar sobre a produção


de sentidos dos sujeitos, enquanto participantes de uma sociedade. Ou seja, é
observar a forma com que o homem significa o mundo. A significação desse
mundo ocorre de formas diferentes em cada sujeito.

Manhães (2009) nos ensina que o sujeito deixa suas marcas no discurso
e é a partir desses indicadores que os analistas podem acessar o discurso e
compreender, dessa forma, sua construção e seus sentidos. “Ao se apropriar da 447
linguagem e construir um discurso, o sujeito deixa pegadas que nos permitem
identificar sua presença e o modo como foi construindo o enunciado” (p. 313).
O autor complementa ao dizer que a desconstrução de um discurso permite
descobrir a posição do sujeito daquela ação, suas intencionalidades e qual
contexto social o enunciado fora produzido para ser compreendido de uma
maneira e não de outra.

Gostaríamos a partir desse enfoque teórico-metodológico entrar no


texto de Laerte Coutinho e compreender como se dá o processo de construção
social e simbólica desse corpo transgressor. Passando pelas marcas deixadas em
seu discurso, trazer à tona elementos constitutivos do seu Ser enquanto ocupante
de um não-lugar na história social. Ressaltando-se assim, algumas características
desse processo: o corpo como expressão de uma sexualidade e roupas que
vestem esse corpo expressivo, a transitoriedade de identidades de gênero
marcadas pela fala entre o masculino e o feminino sem que se fixe uma
identidade única desse corpo e por fim a constrição desse espaço do não-lugar
que está no limiar das construção normativas de gênero/sexo.

Para além da base, do blush e dos seios: Laerte(s)

Como dissemos anteriormente, nossa análise percorrerá alguns pontos


que nos levarão a entender melhor como esse sujeito Laerte se constrói
diariamente. Para tanto, observamos na sua fala a existência do espaço de
possibilidades. Condições de expressão que fogem dos estigmas de se encaixar
em uma caixinha ou em outra. Primeiramente chamamos atenção para a trânsito

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que Laerte faz entre os campos do masculino e do feminino. Ao longo das duas
entrevistas percebemos que ele utiliza-se de termos dos dois gêneros para referir-
se a si mesmo. Há de forma recorrente o uso de termos femininos: “É, mais
feminina”, “assediada”, “autora”, “eu mesma”, “mijava sentada”, “que nem uma
louca”. Mas, em outros momentos o masculino aparece: “estou vestido” e “eu
mesmo” e em outros a dupla personalidade também é observada: “no papel de
avó” quando ele é perguntado sobre como vai ser tratado agora que ganhará um
448
neto, o quadrinista insiste que essa classificação pode ser usada quando no plural
abarcando as duas identidades, a masculina e a feminina. Mas, também quando
ressalta o uso do seu nome (Laerte) que pode ser usado para referir-se tanto a um
homem ou a uma mulher. É processual, entre os/as transexuais, enquanto sujeitos
que se consideram no corpo errado e sentem repulsa das genitálias, a troca de
nome enquanto um aproximar-se mais do sujeito do devir, alguém que vai se
tornar. Questionado por um telespectador, através da Marília Gabriela, sobre
uma possível troca de nome e também sobre já estar usando o nome Sônia, Laerte
responde: “Eu usei esse nome, Sonia, e durante um tempo eu pensei realmente
em adotar uma identidade de Sonia, identidade claramente feminina, mas eu
gosto de Laerte, gosto do meu nome. Trabalho com ele, ele faz parte do meu
(risos) patrimônio cultural e existe uma senhora Laerte” (COUTINHO, 2013).

Veja-se, temos aí já um indício do seu não lugar. Ele5 não aceita ou se


propõe a construir uma identidade nova, embora tenha tentando e cogitado essa
nova identidade, claramente feminina. Mas, ele prefere manter seu nome e
subverter todos os significados e construções simbólicas criadas, através da sua
própria representação, sobre o seu próprio nome. É posicionar-se em uma
posição que foi, durante muito tempo, construída como masculina, mas que
agora deverá ser vista como feminina, ou no trânsito processual identitário entre
uma e outra. Ele assume assim, ao mesmo tempo o seu ser como em trânsito
entre o masculino e o feminino.

5
O próprio Laerte não se posiciona no seu discurso todo o tempo como ele ou como
ela. Dado que o problema discurso em torno do sexo e gênero não possui, ainda, uma
linguagem possível e Elx não é pronunciável faremos um percurso em que ora
utilizaremos o seu nome, ora utilizaremos pronomes no masculino e ora pronomes no
feminino.

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Isso se torna ainda mais evidente quando, na entrevista à TV Cultura,


ele menciona que tem uma dupla cidadania, quando o apresentador pergunta se
ele gostaria de ser chamado de “senhor, senhora, senhorita”. Ele responde, entre
risos, “eu tenho dito que eu tenho dupla cidadania. Eu mesma falo. Oh! Tá
vendo?! Eu me refiro a mim como no masculino ou no feminino assim”
(COUTINHO, 2012). Na própria enunciação do discurso de Laerte ele utiliza-se
de termos no masculino e também no feminino. Quando lhe foi feita a mesma
449
pergunta no programa de Gabi quase proibida, Laerte a corrige e enfatiza a
predileção por uma identidade feminina, mas ao mesmo tempo continua a usar
termos e palavras que o remetem ao masculino.

Isso poderia evidenciar que Laerte, ao se vestir de mulher, se


posicionaria como uma e se comportaria enquanto a nova posição que, por mais
que ele tente negar, ele assume, mas o ponto é que ela enquanto vestido de
mulher, segundo seu discurso, não o faz no sentido de cross-dresser (termo que
ele considera como uma maneira elitista de se referir à travestis) ele utiliza
elementos do universo que são tipicamente femininos, porque isso lhe dá uma
gama maior para expressão de si. É como ter uma infinidade de possibilidade
contra apenas uma “calça cinza e uma camiseta”. Mas o vestir-se de mulher não
está pautado no fantasiar-se, mas de confabular com o universo feminino. Nesse
segundo momento, quando nos aproximamos da análise de seu vestuário,
percebemos novamente um trânsito entre a mulher e o homem, já que ele opta
pelo uso de roupas femininas, mas também há possibilidades em que essa
expressão do feminino pode ser deixada de lado, dependendo das circunstâncias.
Esse ponto é evidenciado quando ele trata sobre o uso de próteses de seios, em
que momento ele as utiliza para caminhar no universo feminino, mas também há
momento em que prefere não usar. De tal forma quando lhe é perguntado quanto
ao uso de sanitários feminino ou masculino. Ele se diz livre para fazer essas
escolhas a depender da conveniência do momento, assim se aproximando do
universo feminino em certos momentos e em outros do masculino.

Mas ao ser questionado sobre ser do sexo feminino ou se se considera


do sexo feminino ele, antes, explica a questão das convenções de sexo/gênero

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como uma gaiola, uma prisão, construída com base na congruência do “sexo
biológico, identidade de gênero e orientação sexual”, e isso é uma coisa que não
faz sentido (COUTINHO, 2012). Já em outro momento ele afirma que “Eu quero
ser a mulher que eu possa ser. Eu quero ser uma mulher possível, néh! Uma falsa
mulher possível. Eu quero continuar sendo eu” (COUTINHO, 2012, grifo
nosso). Sobre esse assunto ele o cartunista ainda transita entre o biológico
feminino e o masculino quanto a expressão corporal, uma vez que se cogita em
450
fazer uma cirurgia para implantação de seios, mas não a retirada da sua genitália
masculina, o que evidencia traços de duas identidades coabitando o mesmo
corpo.

Aqui, ela assume a sua posição, mas uma mulher falsa, sua proposta
não é emular uma mulher com uma constituição biológica, mas uma mulher
possível, característica por ter nascido com configuração biológica masculina,
mas que durante a sua vida se descobriu mulher, uma mulher que ainda é homem,
mas que também é mulher, que se comporta como mulher, o que ousaremos
chamar de mulher em trânsito. Seu sexo/gênero aqui é como dissemos, através
da Butler (2000) anteriormente, pautado na contingência, numa
performatividade utilizada e aproveitada conforme a sua necessidade, não se
atendo às convenções sociais estabelecidas pelo dispositivo da sexualidade.
Tanto que, em outro momento ele expressará: “Eu posso querer ser uma mulher,
mas eu sou Laerte. Vou ser sempre isso. Mulher ou homem vou ser sempre essa
pessoa” (COUTINHO, 2013).

Ainda sobre essa contingência processual do seu modo de levar seu


gênero/sexo o cartunista afirma que as pessoas devam ser uma coisa só, unívoca.
Ele está aberto a estar no entre, também com relação à sua orientação sexual.
Isso porque, segundo ele, primeiro ele se viu como bissexual, mas que nesse
processo se descobriu homossexual, mas não abandonando o desejo por mulher.
Tanto que, quando a jornalista pergunta se ele se sente atração por mulheres ou
só por homens, mesmo já possuindo uma mudança física aparente ele afirma que
“depende do homem ou da mulher. Eu acho que ambos. Eu estou aberta para
ambas” (COUTINHO, 2013).

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Para finalizar, Marília Gabriela pede uma autodefinição sexual própria


do Laerte, pelo Laerte e ele afirma, após um suspiro: “Sexual não sei. Eu tenho
um mantrazinho pessoal que diz assim: Eu quero deixar de ser um menino
dependente e me tornar uma mulher autônoma. Esse é um mantrazinho que eu
elaborei assim. É uma frase pra ser curtida” (COUTINHO, 2013).

A montação e algumas considerações 451

Vivemos em tempos de tamanha pluralidade que as convenções


estabelecidas em torno da sexualidade já não são mais suficientes para
estabelecer o que deve ou não deve ser feito. Estamos em um constante processo
de subversões de tudo que conhecemos sobre a prática do nosso próprio sexo.
As constituições desse dispositivo estão sendo rompidas dentro do próprio
dispositivo, há um crescente de indivíduos portadores de poderes/saberes que os
torna capazes de subjetivamente modificar e subverter essas convenções e isso é
algo que vem acontecendo há algum tempo e que criam representações que
podem vir a ser representativas para que outros indivíduos estabeleçam suas
próprias relações de poder saber. Veja-se por exemplo a história de Lili Elbe em
filme de projeção mundial, o sucesso da série norte americana Ru Paul Drag
Race, ou a Mel Gonçalves, cantora goiana e mulher trans, apresentando um
programa na TV Brasil, além de vários outros nomes que abriram esse caminho.

É preciso que percebemos esse queer, mais que uma proposta de


(re)inserir no debate todos as siglas que indicam as sexualidades não normativas,
uma proposta de aceitar, fomentar, entender a condição desses indivíduos que
são marginalizados pelas normas generificadas e perceber que eles não querem
ser enquadrados em outras normas, outras terminologias, mas sim promover e
tencionar o pensamento sobre o que entendemos sobre gênero/sexo e todos os
discursos que são criados a partir desses pensamentos.

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LOURO, G. L. (Org.) O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2 ed.
Tradução: T. T. Silva. Bel Horizonte: Autêntica, 2000. p. 112-125.

DELEUZE, G. O mistério de Ariana. Lisboa: Ed. Veja – Passagens,1996.

FOUCAULT, M. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro:


452
Edições Graal, 1988.

___________. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

___________. Sexualidade e Poder. In: MOTTA, M. B. Ética, Sexualidade,


Política: Coleção Ditos & Escritos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
p. 56-77.

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extraño dilema. In: JIMÉNEZ, Rafael M. Mérida. Sexualidade transgressoras.
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LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado – pedagogias da sexualidade.


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MANHÃES, Eduardo. Análise do discurso. In.: BARROS, Antonio; DUARTE,


Jorge. Métodos e Técnicas de Pesquisa em Comunicação. São Paulo: Editora
Atlas, 2009.

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SILVA, T. T. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, T. T.


(Org.). Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2012. p. 73-102.

453

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DISCURSOS DE PODER E INSENSIBILIDADES DE GÊNERO

Elvira Mejia Herrejón*

Introdução

O presente artigo integra a pesquisa sobre a Formação do Professor na


construção de Identidade e de Gênero junto ao Programa de Pós-graduação em 454
Língua e Cultura - Ppglinc da Universidade Federal da Bahia – UFBA; objetiva
contribuir para novas formas de se reportar às narrativas históricas sobre
identidade e subjetividade humana, aborda questões que tangem à sensibilidade
de gênero e aos discursos de poder no âmbito escolar, justifica-se por acreditar
na importância do intercâmbio intelectual a partir do entendimento e da
compreensão sociocultural que envolve significados institucionalmente
produzidos.

O tema “discursos de poder e insensibilidades de gênero”, cujas


reflexões pretendem favorecer a compreensão das representações de identidades
no exercício pedagógico; situa-se no contexto sociopolítico que atinge a
Educação no Brasil atualmente; pretende analisar os efeitos de discursos sobre
diversidade de gênero em relação às práticas pedagógicas, tendo em conta os
efeitos na vida do professor e das coletividades que compõem o Brasil.

A abordagem que aqui se apresenta tem caráter multidisciplinar,


preconiza a pesquisa bibliográfica em artigos, livros e monografias de Mestrado
e Doutorado; subsídios teóricos e epistemológicos que se mostram a favor de
uma educação crítica, reflexiva e inclusiva. A pergunta que deu origem à
pesquisa é: de que forma os discursos de poder sobre gênero influem na prática
pedagógica e como afetam a vida do professor e das coletividades que integram
a sociedade brasileira?

*
Mestranda em Língua e Cultura e Monitora de Espanhol – UFBA; Bacharel em Direito
– UCSAL; Lic. Língua Portuguesa e Literaturas afins – UNOPAR; Técnica em Pesquisa
no Programa de Pós Graduação em Direito à saúde, Direitos Humanos e Direito à
família - PPGDSDHF– UCSAL/CNPq.

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Na procura de respostas adotam-se as seguintes palavras chave:


representação de identidades; discursos de poder; insensibilidades de gênero
desenvolvidas nas três subdivisões que integram o trabalho, quais sejam: 1.
Discursos de poder e insensibilidade de gênero; 2. Representação de identidades
no exercício pedagógico e 3. Políticas de silenciamento escolar.

Discursos de poder e insensibilidades de gênero 455

Questões relativas à diversidade de gênero mostram-se recorrentes na


pesquisa qualitativa, exigem capacidade para compreender as subjetividades que
se entrechocam nas disputas culturais, políticas e sociais e nas dinâmicas
atreladas aos processos históricos que as origina; implica saber que há um
objetivo epistêmico ao querer tirar a sexualidade do campo da inconteste verdade
científica para explicá-la através da história dos discursos, lidando com o
contraditório e com as suscetibilidades do assunto.

Ao abrigo de uma predominante influencia patriarcal e colonial,


sociedades e culturas como a brasileira, perpassada por políticas de intolerância,
discriminação e preconceito reproduz através das suas instituições uma educação
que inviabiliza ou atrasa a vivência das diferenças de forma igualitária ou
democrática.

É reservado a poucas instituições o direito de controlar os corpos e


subjugar as mentes, favorecendo em não poucas ocasiões, a criação de palcos de
terror e vergonha, sem assumir qualquer tipo de arrependimento ou
responsabilidade por tais atos, talvez porque, como afirma Salih (2015, p.143),
a responsabilidade está tingida de impureza desde o princípio.

Assim como a responsabilidade está tingida de impurezas, o está


também a consciência pública, pois como afirma Durkheim (1972, p. 2) a
consciência pública “pela vigilância que exerce sobre a conduta dos cidadãos e
pelas penas especiais que têm a seu dispor, reprime todo ato que a ofende”.
Repressão que se manifesta de várias formas, entre as quais os discursos de poder
das práticas pedagógicas e da escola.

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A Escola nunca foi lugar neutro e sim produto do aparelho ideológico


do Estado que a frágua e manipula para produzir e reproduzir opressões de forma
diuturna. E apesar de a escola se apropriar das diferenças para inflamar
desigualdades, continua a ser, depois da família, o espaço comum de construção
e descoberta de identidade de gênero em fases importantes do desenvolvimento
humano.

O modo como o ser humano se autodefine e os modelos com os quais 456


se identifica podem ser motivo de inquietação ou não, a depender do grau de
reconhecimento e aceitação de cada subjetividade no ambiente escolar; mas
como lembra Bento (2011, p. 558): “o foco explicativo para a constituição das
identidades desloca-se do indivíduo para as genealogias dos discursos, que
limitam a categoria “humanidade” apenas as duas possibilidades excludentes”,
cuja ambiguidade afeta coletiva e individualmente, como a seguir explica
Possenti:
Discursos estabilizados implicam ou supõem mundos
independentes. Discursos instáveis implicam outro tipo de
relação discurso/mundo: não se trata de sustentar que aquele
cria este, mas de uma posição ambígua em relação a ele,
eventualmente de dúvida entre aceitação e rejeição, ou, pelo
menos, de consideração que outros posicionamentos são de
certa forma aceitáveis (POSSENTI, 2016, p. 23).

Discursos, geralmente ambíguos, definem o que é ou não aceitável na sociedade.


Os discursos se distinguem principalmente por duas perspectivas (Orlandi
2007): as normas e as instituições nas quais estão filiados; desse modo, o
discurso científico, o discurso religioso e o discurso político são formas
determinativas em que as instituições, por força da repetição, geram
preconceitos.

Os preconceitos, de acordo com Van Dijk (2015), são socialmente


partilhados, produzidos e reproduzidos, de forma conjunta pelos membros da
sociedade, através dos discursos institucionais, da política, das mídias, da
educação, do ensino e do mercado, de tal sorte que por serem institucionalizados,
esses discursos passam a receber um tratamento doutrinário, como se fossem
verdades a serem perpetuadas de geração em geração.

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O caráter classificatório dos discursos formais contidos na legislação,


na bíblia, no alcorão, no livro didático ou em manuais de medicina e psiquiatria,
entre outros repositórios, também se faz presente nos olhares, nos silêncios e nos
discursos intolerantes do cotidiano. A escola não foge a essa práxis ao se imiscuir
na sexualidade humana e impor a mensagem de fundo que sugere: “ou você é
masculino ou feminino, mas sejamos todos heterossexuais. Nada de
ambiguidade” (BENTO, 2011, p. 558); como se homogeneizar as identidades
457
fosse um ato a ser comemorado.

Comandos institucionais não determinam a identidade e gênero de


ninguém, mas ao fazer alusão conceitual ao binômio homem-mulher, bíblica e
teologicamente reconhecido como referencial único de normalidade, mostra-se,
segundo Scott (1995, p. 92), que “para proteger o poder político, a referência
deve parecer certa e fixa, fora de toda construção humana e parte da ordem
natural ou divina”. Esses argumentos doutrinários e dogmáticos têm sido
longamente utilizados para silenciar divergências de opinião sobre gênero e para
inibir comportamentos que se oponham à ortodoxia.

Na tendência a uniformizar a identidade de gênero reside à crença de


estar lidando com algo de natureza definitiva e rígida, com algo estático, divino
e imutável, mas como afirma Britzman (1996, p. 73) deveríamos argumentar em
favor de uma noção mais complexa e mais historicamente fundamentada de
identidade, uma noção que veja a identidade como fluida, parcial, contraditória,
não unitária; uma noção que veja, portanto, a identidade como envolvendo
elementos sociais, uma vez que:
(...) quando se trata de questões de desejo, de amor e de
afetividade, a identidade é capaz de surpreender a si mesma:
de criar formas de sociabilidade, de política e de identificação
que desvinculem o eu dos discursos dominantes da biologia,
da natureza e da normalidade. (BRITZMAN, 1996, p. 73).

Acredita-se conforme Louro (1999, p. 11) “que a sexualidade não é


apenas uma questão pessoal, mas é social e política”, o que implica em lembrar
com Morin (1996b, 1996 c) que, a grande descoberta do século XX consiste em
a ciência não ser o reino da certeza, e que tudo que se constrói social e

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culturalmente com a participação de vários sujeitos pode ser questionado e


transformado inclusive a partir de instâncias não legitimas de poder.

Há uma legião de segregados, pessoas comuns, que por pura


insensibilidade têm sido rejeitadas e severamente punidas em função de suas
opções de sexo e gênero. Tem se mostrado insensibilidade histórica ao exigir do
corpo social como um todo e de cada um dos seus membros atitudes de
submissão e obediência como formas de controle e vigilância por parte de 458
instituições mantenedoras da ordem preestabelecida. Os resultados de tais
atitudes repressoras apontam para o seguinte:
As proibições e regulamentações dos comportamentos
sexuais, ditados por autoridades religiosas, legais ou
científicas, longe de constranger ou reprimir a sexualidade,
produziram-na e continuam a produzi-la, da mesma forma que
a máquina industrial produz bens e artigos, e, ao fazê-lo,
produz relações sociais. (LAURETIS 1994, apud
HOLLANDA, 1994, p. 220).

Paradoxalmente, na sociedade atual, apesar de o espaço ser


heterogêneo, capitalista e plural, aponta Fonseca (2012, p.8) “aos sujeitos não
cabe muita escolha a não ser escolher seu rótulo. É um multiculturalismo que se
acredita sem necessidade de centro”, mas é, por irônico que pareça de um centro
de poder nada democrático, de onde discursivamente (ORLANDI, 2012) se dá a
projeção da ideologia nos comandos a serem obedecidos.

O gênero constitui uma das formas básicas de dar significado às


identidades políticas e sociais e às relações de poder, afirma Scott (1995, p. 86),
o faz por meio de linguagens e signos acessíveis cultural e socialmente para
forjar subjetividades historicamente legitimadas conforme afirma Haraway
(1994) a seguir:
Toda história que começa com inocência original e privilegia
o retorno ao todo inventa a trama da vida como um exemplo
de individuação, separação, o nascimento do eu, a tragédia da
autonomia, a queda da escritura, a alienação, isto é, a guerra
temperada com a suspensão imaginária no seio do outro. Estas
tramas são governadas por uma política reprodutivo-
renascimento sem falha, perfeição, abstração. (HARAWAY,
1994, p. 277).

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A representação de identidades no exercício pedagógico mostra-se


paradigmática e cheia de incertezas na atual fase de transição no Brasil em que
disputantes correntes de pensamento se posicionam a favor da descolonização e
desdogmatização do conhecimento (SANTOS, 2001) rumo à nova compreensão
da subjetividade (MINAYO, 2000) como parte integrante da singularidade do
fenômeno social.

Assim, tendo evidenciado algumas das formas como à insensibilidade 459


de gênero se apresenta nos discursos de poder, identifica-se um tipo de tolerância
que não quer ser reproduzida. Trata-se da simples atitude que se tem por
homossexuais, travestis, transexuais, muçulmanos, negros, refugiados, índios,
idosos, aleijados, cadeirantes, judeus etc., vistos como seres inferiores; esse
sentimento, além de não ser dignificante, não reconhece a diversidade identitária
como direito legítimo; revela-se apenas como concessão caritativa e anuência
improvisada na ocupação de um espaço que antes ou depois será retirado.

Representação de identidades no exercício pedagógico

A representação de identidades no exercício pedagógico perpassa, entre


outros aspectos, as políticas linguísticas, os interesses sociopolíticos e
econômicos que atingem a Educação brasileira quando a escola se presta à
homogeneização dos indivíduos e indiretamente das coletividades que integram
o país.

Sobre identidade Pimenta (2002, p. 174) entende que “não é algo


imutável, é um processo historicamente situado”, produzido como todo
conhecimento pela educação; consequentemente (MOITA LOPES, 2009) é
possível questionar o quanto de verdade há nessa produção, já que para
Durkheim (1972, p. 3) “toda a educação consiste num esforço contínuo para
impor às crianças maneiras de ver, de sentir e de agir às quais elas não chegariam
espontaneamente”, observação que se constata todas as vezes que os fatos são
vistos tais quais são e tais quais sempre foram.

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O indivíduo, na opinião de Heath (1981), é identificado como sujeito


para formação discursiva por meio de uma estrutura de falso reconhecimento. O
sujeito é apresentado, segundo o autor, como sendo a fonte dos significados dos
quais ele é um efeito. Sendo a produção de conhecimento um processo
historicamente situado, seria necessário olhar para os aspectos socioculturais e
econômicos, religiosos e políticos que produzem os saberes hegemônicos sobre
identidades.
460
Na atualidade há um paradoxo crescente sobre a sexualidade, tanto a
hetero como a homossexual, a transexual etc., está em evolutiva exposição na
mídia, espaço em que, segundo Britzman (1996, p. 85), essas identidades
“emergentes [estão] se tornando mais visíveis, mas menos compreendidas”,
confirmando que a produção de conhecimento não é neutra, dado que esta se dá
a partir de interesses ideológico, político e econômicos, nem os espaços em que
circula o conhecimento são democráticos ou imparciais como aparentam ser.

O conhecimento que se produz e reproduz a partir de critérios seletivos


e discriminatórios instaura a desigualdade social, que no campo das identidades
de gênero se torna uma caça às bruxas, uma perseguição contínua que os
discursos e práticas pedagógicas legitimam; desse modo:
Consentida e ensinada na escola, à homofobia se expressa
pelo desprezo, pelo afastamento, pela imposição do ridículo.
Como se a homossexualidade fosse "contagiosa", cria-se uma
grande resistência em demonstrar simpatia para com sujeitos
homossexuais. (LOURO, 1999, p.29).

A escola, segundo Silva (2011, p. 147) está “[...] constituída e


atravessada por representações de Corpo, Gênero e Sexualidade, ao mesmo
tempo em que reproduz essas representações”, constituindo-se em um espaço
sexualizado e generificado (BRITZMAN, 1996; LOURO, 1999) é responsável
pela educação que, conforme Durkheim (1972) tem justamente por objeto
formar o ser social; podendo-se então perceber, como que num resumo, de que
maneira este ser se constitui através da história.

Para a filosofia moderna, afirma Lefebvre (1983, p.15) “a representação


não é nem a verdade nem o erro, nem a presença nem a ausência, nem a

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observação nem a produção, sino algo intermédio”. Relacionadas com diversos


fenômenos sociais, as representações oscilam entre a maneira em que a
sociedade se organiza, a forma como se vê, se dirige e se libera da pressão
política. Oscila, pois, segundo Lefebvre (1983, p. 92) entre a imaginária por um
lado e a ideologia por outro.

As representações são entendidas por (HALL, 1997a) desde o uso de


signos e símbolos, sob a forma de sons, palavras escritas, imagens produzidas 461
eletronicamente, notas musicais ou objetos, enquanto para Lefebvre (1983, p.88)
“o mundo de representações substituiu todas as referências e tradições através
da linguagem e do discurso”, como aponta este estudo.

Linguagem e representação têm, segundo Hall (1997a, p. 6) a


capacidade de produzir significado, fazendo conexões com o poder, expondo
comportamentos de regulação e promovendo identidades e subjetividades. Na
escola, como diria Lefebvre (1983, p. 99) “as palavras e os sinais, representam a
presença na ausência”, pois esta instituição tem tido o privilégio e o poder de
contribuir para reforçar representações que, no entender de Machado (2001,
p.119), são a palavra-passe que permite o acesso para a atualização textual que
ocorre na construção das identidades.

O poder político (LEFEBVRE, 1983) não é decifrável, já que dispõe de


todos os códigos e os utiliza em rodízios. Por ser representativo acompanha a
vitória da representação em geral e manipula todas as representações. As
identidades geralmente constituídas dentro e não fora do discurso, precisam ser
compreendidas, segundo Hall (2000, p.109), “como produzidas em locais
históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas
discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas”.

A indeterminação ou indefinição de gênero incomoda e horroriza


pessoas e instituições que buscam normatizar e conferir normalidade ao binário
homem-mulher, gerando constrangimento e insegurança nas pessoas não
heterossexuais ao ponto de temerem expor suas identidades por medo à rejeição.

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A respeito dessa atitude questiona Louro (2001, p. 91): “como se


reconhecer em algo que se aprendeu a rejeitar e desprezar? Como, estando
imersos nesses discursos normalizadores, é possível articular sua (homo)
sexualidade com prazer, com erotismo, como algo que pode ser exercido sem
culpa?”. A fiscalização dos corpos anda de mãos dadas com o desejo de silenciá-
los através de normas positivadas ou pelos discursos de reprovação disseminados
socialmente como política do silenciamento.
462

Políticas de silenciamento escolar

Localizar nas instituições, como a escola, a gênese das experiências


identitárias, leva a entender que há uma inversão da lógica tradicional ao dizer
que Bento, (2011, pag. 558): “são as normas de gênero que possibilitam a
emergência de conflitos identitários com essas mesmas normas”, dando a
entender que não são os indivíduos e sim as normas a entrarem em conflito entre
sim; e que na ausência de normas preestabelecidas o conflito identitário não
existiria.

Independente de ser provocado pela normatividade ou pelas pessoas, na


prática pedagógica o conflito existe; as sequelas que a linguagem normatizadora
deixa na vida dos alunos confirmam sua existência, e conforme Benveniste
(2005, p. 286) “é na (e pela) linguagem que o homem se constitui como sujeito”.
Presume-se, portanto que da mesma forma, que há repercussões dos
condicionamentos linguísticos no aluno, as determinações verticalmente
estabelecidas também afetam a vida do professor e das coletividades.

Instituições educacionais, predominantemente submissas aos interesses


do capital, transformam a educação em mera mercadoria, usando-a como moeda
de troco e negociação para enfraquecê-la qualitativamente. É o que tem
acontecido com a educação institucionalizada, notadamente nos últimos 150
anos por ter servido, segundo Mészáros (2008, p. 35), “ao propósito de gerar e
transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes”, traindo
a própria vocação que vai além de transmitir conhecimento.

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A proposta da escola sem partido exprime tanto o enfraquecimento da


educação pública, como o crescimento do sistema privado, fenômenos que
acontecem concomitantemente e segundo Mészáros (2008, p.16) “ao mesmo
tempo em que a socialização se deslocou da escola para a mídia, a publicidade e
o consumo”, afetando a prática pedagógica, a vida do professor e as
coletividades que integram a sociedade brasileira.

Vários autores fazem alusão ao poder institucional que se exerce sobre 463
os indivíduos no ambiente escolar, trazendo reflexões de grande importância
para a produção científica e para as mudanças de paradigmas na sociedade e na
escola, afirma Louro (1999) a seguir:
na escola, pela afirmação ou pelo silenciamento, nos espaços
reconhecidos e públicos ou nos cantos escondidos e privados,
é exercida uma pedagogia da sexualidade, legitimando
determinadas identidades e práticas sexuais, reprimindo e
marginalizando outras”. (LOURO, 1999, p. 31).

Um dos mecanismos de interdição perceptíveis nas narrativas é a


política do silenciamento, este se divide segundo Orlandi (1997, p.24) em
silêncio constitutivo, ao apagar palavras ao falar; e em silêncio local, por meio
da censura, pois por meio de “aquilo que é proibido dizer em certa conjuntura”
que se dá o silenciamento. Orlandi (1997, p.13) entende como censura “qualquer
processo de silenciamento que limite o sujeito no percurso de sentidos”. A autora
entende que o silenciamento está sujeito a injunções sociopolíticas.

Em contraste com o silenciamento Marx e Engels (1989, p.26) afirmam


que “a linguagem só aparece com a carência, com a necessidade dos
intercâmbios entre os homens”. Em contrapartida, é da política do silenciamento
(CORACINI, 2007) que emerge a concepção de sujeito da linguagem como
elemento cindido, fragmentado em função de sua condição.

Na condição de aparelho ideológico, a escola pode tanto favorecer


como inibir processos de inclusão ou exclusão social, o faz na pessoa do
professor em sala de aula, no livro didático e nas práticas e orientações
disciplinarias que coíbem e colocam em desvantagem as representações não
conformadas aos critérios tidos como normais.

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A escola, enquanto instrumento institucional pode reforçar preconceitos


sociais através da linguagem, mas o pode fazer também pelo silenciamento
oficial (falta de discurso institucional) sobre qualquer assunto, particularmente
sobre a diversidade de gênero, como forma tácita de incentivo à discriminação.

Silêncio e interdição se assemelham, segundo Tfouni (1998, p. 6), pois


“é preciso que não se diga tudo para que algo seja possível de dizer” e o dizer
consiste em atualizar certos sentidos e apagar ou interditar outros como acontece 464
diante características físicas, psicológicas, comportamentais, habilidades,
talentos e capacidades (Louro, 1999), que servem para justificar os lugares
sociais, os destinos e as possibilidades próprias de cada indivíduo.

Na discriminação social por diversidade de gênero há um corte de


classe, sendo que as classes dominantes possuem dois polos para mecanizar a
perpetuação das estruturas de dominação (ZIZEK, 1996), o primeiro polo
inscreve-se como os ARE (Aparelhos Repressivos do Estado) e o segundo como
os AIE (Aparelhos Ideológicos do Estado). O primeiro polo, constituído pelo
governo, os tribunais, o exército e a polícia, entre outros; representa os aparelhos
repressores de Estado. Integrado pelas instituições: escola, religião, família,
cultura e informação; o segundo polo interpreta os aparelhos ideológicos de
Estado.

Há uma violência simbólica nas macroestruturas que decidem os


conteúdos que devem ser silenciados e os que devem ser ensinados no ambiente
escolar. Quem obedece às macroestruturas reproduz e sofre violência; é o caso
do professor que no exercício pedagógico cotidiano se alia e torna mais forte o
poder hegemônico ao mesmo tempo em que é vigiado e cindido na sua liberdade
e autonomia.

A violência simbólica se faz presente, de igual forma nas


microestruturas com atitudes moralistas e preconceituosas que reforçam
habitualmente a desigualdade de gênero. A discriminação, o preconceito e o
silenciamento são estratégias de dominação e desigualdade social, consistentes,
acima de tudo, no abuso de poder de umas categorias sobre outras. As esferas

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dominantes, por se acharem superiores, ignoram a existência das dominadas que


procuram resistir tão criativa e tenazmente quanto o poder que as oprime.

As classes sociais são agentes históricos (Eagleton, 1996, p. 187), mas


também são formações materiais estruturais, pois além de entidades carregadas
de intersubjetividade, representam determinados interesses de caráter
ideológico. É por isso que, na opinião de Durkheim (2000, p. 213): “a violência
mesma com que a sociedade reage por meio da censura ou da repressão material, 465
contra as tentativas de dissidência, manifestando com estrépito o ardor da
convicção comum, contribui para reforçar seu domínio”; tornando mais difícil a
mudança de paradigmas.

É pela ideologia de classe que o sistema educacional, muitas vezes


contribui para reproduzir a ordem social dominante, não tanto pelos pontos de
vista que fomenta, mas (EAGLETON, 1996) por essa distribuição regulada do
capital cultural que é uma forma de violência; ou como (BOURDIEU, 1977)
uma forma de violência simbó1ica que atua em todo o campo da cultura, no qual
aqueles a quem falta o “gosto correto” (homossexuais, lésbicas, transexuais etc.)
são discretamente excluídos e relegados à vergonha e ao silêncio.

As construções sociais, normativas ou não, são pressupostos de


emancipação, pois o ato de conhecimento é “fato” e “valor” (EAGLETON,
1996); uma cognição precisa e indispensável à emancipação política
(KOLAKOWSKI, 1978) e nesse caso particular (isto é, o do conhecimento
emancipatório), a compreensão e a transformação da realidade não são dois
processos separados, mas um e o mesmo fenômeno.

O comportamento da autorrotulação de indivíduos e categorias que


sofrem preconceito deriva dos estereótipos, como se explica a seguir:
Indivíduos estereotipados, frequentemente cientes dos
estereótipos imputados a seu grupo, acabam por desenvolver
um alto grau de apreensão quando entram em contato com
outros indivíduos, pois temem que seu comportamento
espontâneo acabe por confirmar os estereótipos. A este
fenômeno chamamos de ameaça do estereótipo (Nunan 2003,
p.23).

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Infere-se que junto à emancipação política, ocorre à cognição da


diversidade de Gênero através de abordagens sociopedagógicas que respondam
às exigências e contingências dos sujeitos que sofrem discriminação por
condições de gênero no espaço escolar e fora dele, devendo ser contempladas as
questões na formação inicial e continuada dos professores.

No contexto político atual do Brasil, a escola, atingida pelo programa


escola sem partido, proposta de lei que obriga as instituições de ensino a afixar 466
1
em todas as salas de aula do ensino fundamental e médio um cartaz com seis
itens, proibindo os professores de emitirem opiniões, concepções ou preferências
ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias ou utilizarem essas
preferências para beneficiar ou prejudicar os alunos; tem sua parcela de
responsabilidade.

Entendemos que apesar de a proibição tácita aos professores representar


um retrocesso democrático, esta não deveria surpreender ou causar
estranhamento, pois se soma às inúmeras atitudes que buscam naturalizar pelo
signo linguístico - na sua forma escrita no caso do cartaz sugerido pelo projeto
de lei Escola sem Partido -, a dominação masculina no mundo real onde se tecem
as relações de poder. Dominação com a qual a escola tem sido conivente e
reprodutora.

O exercício pedagógico mostra-se um discurso subliminar, reprodutor


do discurso oficial que não é neutro nem falto de ideologia. A escola tem se
prestado secularmente à transmissão, muitas vezes distorcida de fatos, entre os
quais as narrativas da colonização e da mestiçagem que no livro didático
perpetuam a ideia de terem sido processos necessários à civilização e à superação
do atraso das populações inferiores, como se afirma a seguir:
A análise histórica e linguística assinala que as categorias
sociais, engendradas pelos dominadores, nascem prenhes de
significados justificativos que se aderem, em menor ou maior
grau, aos respectivos significantes, mesmo quando já se
perdeu a consciência de sua gênese, jamais neutra e pacífica.
(CARBONI e MAESTRI, 2003, p.81).

1
O cartaz consta de seis itens, cujo conteúdo pode ser conferido na íntegra na página:
http://www.programaescolasempartido.org/ consultada no dia 31/07/2016.

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A escola precisa entender que “há liberdade apenas quando


abandonamos a voz dos outros, para assumirmos a nossa, expressão natural e
necessária de nossas necessidades” Carboni e Maestri (2003, p. 10); precisa
também lembrar que “a língua é palco privilegiado da luta de classes, expressão
e registro dos valores e sentimentos contraditórios de exploradores e explorados”
(idem), só então poderá ter credibilidade naquilo que ensina.

Instituições coercitivas, entre as quais se destacam a justiça, a polícia e 467


o exército impõem sua lei de forma incontestável, deixando claro que a palavra
do outro, conforme Bakhtine (1999, p.161) apud Carboni e Maestri, (2003, p.
54), longe de ser “uma informação, uma indicação, uma regra, um modelo, etc.,
ela procura definir as próprias bases do nosso comportamento e de nossa atitude
diante do mundo”; assim, mediante proibições apensadas na sala de aula, quer-
se definir a conduta do professor, usando a monitoria dos próprios alunos na
observância do silenciamento imposto.

As relações sociais de imposição dão origem ao consenso ideológico e


à naturalização da desigualdade, por isso para Carboni e Maestri (2003, p. 8), “a
força de interpretações apologéticas produzidas pelos intelectuais orgânicos do
capital” nasce também dessas relações, desses fatos sociais que se descrevem da
seguinte forma:
O fato social é reconhecível pelo poder de coerção externa
que exerce ou é suscetível de exercer sobre os indivíduos; e a
presença deste poder é reconhecível, por sua vez, seja pela
existência de alguma sanção determinada, seja pela
resistência que o fato opõe a qualquer empreendimento
individual que tenda a violentá-lo. (DURKHEIM, 1972, p. 3-
4).

A pressão cotidiana na escola, essa que em todos os instantes


(DURKHEIM, 1972) sofre a criança é a mesma pressão do meio social
inclinando-se a moldá-la à sua imagem e semelhança, atitude de que tanto os
genitores quanto os professores não são senão representativos e interpostos.

Não obstante a conivência de pais e professores com a pressão que a


escola exerce sobre filhos e alunos, a compreensão que Lima e Gomes (2002)

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têm dos professores se mostra mais otimista que a de Durkheim. Para estes
autores:
O professor como sujeito que não reproduz apenas o
conhecimento pode fazer do seu próprio trabalho de sala de
aula um espaço de práxis docente e de transformação humana.
É na relação refletida e na redimensão de sua prática que o
professor pode ser agente de mudanças na escola e na
sociedade. (LIMA E GOMES, 2002, p. 169).

O fato de o professor ser agente de mudança no contexto escolar e social 468


não implica em negar os efeitos dos discursos de poder na sua vida como
profissional da educação e na vida das coletividades que integram o Brasil; como
entes sociais, uma vez que aprendem a acreditar que não há lugar para a
diversidade de gênero são induzidos ao preconceito, à rejeição e em casos
extremos, à morte.

Situações de constrangimento, tensão e rivalidade só servem para abrir


um abismo maior do que já existe entre teoria e prática, por esse motivo,
coletividades vulneráveis e inseguras, quando se sentem ameaçadas, podem se
tornar um perigo para a sociedade.

Conforme Durkheim (2000, p. 213) “quando uma coisa é objeto de


opinião, a representação que cada indivíduo faz dela extrai de suas origens, das
condições nas quais ela se formou um poder de ação que é sentido mesmo por
aqueles que não se submetem a ela”, aderindo, em última instância, aos
posicionamentos individuais e coletivos dominantes na forma de sintomas como
baixo rendimento acadêmico, disfunções alimentares e de sono.

Sendo apenas algumas das formas mais frequentes de os professores


manifestarem mal-estar e insegurança sobre assuntos polêmicos como a
diversidade de gênero e de política na prática docente. A formação recebida,
normalmente não ensina a fazer uma leitura crítica dos mecanismos de controle
social nem a divergir do discurso oficial.

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Considerações finais

Dado que o significado real de educação, digno do seu preceito, é fazer


os indivíduos viverem positivamente à altura dos desafios das condições sociais
historicamente em transformação2, torna-se imperante admitir que uma das
funções principais da educação formal nas nossas sociedades é produzir tanta
conformidade ou consenso quanto for capaz, a partir de dentro e por meio dos
seus próprios limites institucionalizados e legalmente sancionados3, motivo pelo 469
qual, não deveria surpreender a adesão inconteste da escola à proposta escola
sem partido e a outras formas de interferência possíveis.

Constata-se que os discursos pedagógicos não são neutros nem carecem


de ideologia, mas reproduzem a linguagem oficial impondo padrões
heteronormativos de forma hegemônica sobre alunos, professores e
coletividades cujos efeitos observáveis são o isolamento, irritabilidade,
depressão, rispidez, frustração, baixo rendimento escolar e intolerância, devido
à maioria não estar preparada para fazer uma leitura crítica dos mecanismos de
controle social nem para divergir das autoridades.

Observam-se resquícios de uma visão colonizadora e patriarcal na


imposição de modelos rígidos de vivência sexual e de gênero; são vestígios de
insensibilidade que têm reforçado estereótipos, assujeitado e silenciado sujeitos
que se autorrotulam inadequados e vivem a pressão e uma sociedade que preza
a aparência mais do que a essência das pessoas, sendo obrigadas a uma vida
dupla ou clandestina como formas de sobrevivência.

Conforme foi visto, as disparidades de gênero, com significados


institucionalmente produzidos e interligados, têm se tornado um dos maiores
problemas da educação formal no Brasil; multiplicam-se as narrativas históricas
relativas à identidade e subjetividade humana, especificamente na forma de
discursos de poder que interferem no exercício pedagógico.

2
Mészáros, István. A educação para além do Capital. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2008.
3
_________ (p.45).

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Mais do que soluções, a pesquisa mostra o caráter fugidio e cambiante


do seu objeto, abre, outro sim, um leque de possibilidades de aprofundamento
sobre questões apenas pinceladas, possíveis de serem refletidas a partir das
instâncias não legitimadas de poder, evidenciando dessa forma que a ciência não
é o reino da certeza4 assim como o discurso pedagógico não é o reino da pureza
que nos fizeram acreditar.

470
REFERÊNCIAS

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GÊNERO E PODER: COMO E PORQUE PENSAR AS


MASCULINIDADES NUMA PERSPECTIVA HISTÓRICA

Natanael de Freitas Silva*

Atualmente os estudos de gênero desfrutam de considerável


reconhecimento acadêmico, social e político. Uma vasta, expressiva e
474
impactante produção bibliográfica na área das ciências humanas, além de
revistas acadêmicas, grupos de pesquisas e eventos diversos, tem articulado o
conceito e/ou categoria gênero a uma diversa e significativa série de temas e
discussões teórico-metodológicas como: Gênero e Identidades; Gênero e
Escravidão; Gênero e Racismo; Gênero e Feminismos; Gênero e Família;
Gênero e Saúde; Gênero e Sexualidade; Gênero e Masculinidades; Gênero,
Parentesco e Conjugalidades; Gênero e Poder; Gênero e Sociedade, etc.

Um dos pontos fundamentais dessa proposta analítica é a percepção de


que o gênero, desde os anos 1990, como salienta a historiadora Joana Pedro
(2011), não é mais sinônimo de mulher ou simplesmente de história das
mulheres, porém é um dos modos de compreender e analisar as históricas
concepções de masculinidade(s) e feminilidade(s) e uma forma de evidenciar as
hierarquias entre os sexos, apontando a historicidade do “ser homem” e “ser
mulher” numa determinada sociedade segundo uma relação espaço-tempo.
Deste modo, amplia-se o debate em torno das relações de gênero evidenciando
o seu caráter não natural, denunciando as desigualdades e as históricas opressões
e hierarquias entre os sexos. Em vista disso é que proponho neste texto uma
breve reflexão em torno da seguinte questão. Afinal, o que significa pensar as
masculinidades numa perspectiva histórica? Como elaborar tal experiência como
um objeto de pesquisa? Enfim, o objetivo é estimular o debate, induzir a dúvida,
ao estranhamento, a desnaturalização dos nossos pressupostos heterossexistas e
a desconstrução das hierarquias entre os sexos.

*
Mestrando em História (PPHR/UFRRJ/CAPES). E-mail: natanaelfreitass@gmail.com

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Os estudos em torno das experiências e performances de


masculinidades têm ganhado visibilidade e força acadêmica nos últimos anos.
Temas como virilidade, força, violência, concebidos historicamente como
insígnias da identidade masculina, mais também as concepções de paternidade,
política de assistência social (BARBOSA et al, 2013), corporalidades,
indumentária, sexualidade e saúde masculina (GOMES et al, 2007), vêm sendo
problematizado numa perspectiva interdisciplinar. O sociólogo norte-americano
475
Michael Kimmel1, considerado um dos principais autores dos estudos sobre
masculinidades, em um artigo publicado no The New York Times2, questiona “o
que faz os homens ser homens”? E “como estamos ensinando os meninos a
cumprir esses papéis masculinos”? O que o autor sugere é buscarmos
compreender melhor os mecanismos, as táticas, as práticas e as estratégias que
são engendradas na produção histórica, social e cultural desses sujeitos de
gênero.

Inegavelmente, a maioria desses trabalhos está alocada em áreas como


Antropologia (MONTEIRO, 2000; CECCHETTO, 2004; SCHPUN, 2004),
Sociologia (OLIVEIRA, 2004; MISKOLCI, 2012; ÁVILA, 2014), Psicologia
(NOLASCO, 1993 e 1995; GOMES, 2008; AMBRA, 2015) e, em menor grau,
na História (MATOS, 2001ª; ALBUQUERQUE JR., 2013; PRIORE e
AMANTINO, 2013). Não por acaso, a historiadora Maria Izilda Matos vai nos
dizer, em um texto publicado em 2001, que:
apesar da ampla produção na área de estudos de gênero e [de
suas] instigantes contribuições, pouca atenção é dada à
história dos movimentos feministas e ainda são raros os
estudos na produção historiográfica brasileira sobre as
masculinidades, deixando a impressão de que os homens
existem em algum lugar além, constituindo-se num parâmetro
extra-histórico e universalizante (MATOS, 2001:46, grifo
meu).

1
Professor, fundador e diretor do Centro para o Estudo dos Homens e Masculinidades
em Long Island, Nova York e é criador e editor da revista acadêmica Men and
Masculinities (http://jmm.sagepub.com/).
2
BENNETT, Jessica. Estudos da masculinidade ganham força acadêmica. FOLHA.
05/09/2015. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2015/09/1677524-estudos-da-
masculinidade-ganham-forca-academica.shtml>. Acessado em 03/08/2016.

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No entanto e de modo geral, desconsiderando as especificidades


teórico-metodológicas desses campos do saber, essas pesquisas apontam os
múltiplos processos de produção/construção das históricas experiências de
masculinidades e problematizam o que antes era dado como ‘natural’, inerente à
condição de ‘ser homem’. Como aponta o sociólogo Pedro Paulo de Oliveira, o
vocábulo ‘masculinidade’ surgiu por volta do século XVIII para nomear um
conjunto de práticas distintivas dos sexos. O que o autor enfatiza é o caráter
476
heterogêneo, flexível e instável dessas definições. Para Oliveira, “enquanto
extrato, a masculinidade articula-se, esparrama-se rizomaticamente” (2004:15)
junto a outras categorias como classe, raça, nível educacional e geracional o que
acentua a complexa trama discursiva e não discursiva agenciada na produção das
masculinidades. Em um raciocínio similar, o sociólogo Richard Miskolci afirma
que a “masculinidade, em uma perspectiva cultural, tem significados múltiplos,
variáveis e até mesmo contraditórios. Como bem simbólico altamente
valorizado, em fins do XIX, se associava à honra e à própria nacionalidade”
(2012:62).

Em Meu lar é o botequim: alcoolismo e masculinidade, Maria Izilda


Matos investiga como no discurso médico e musical, entre os anos de 1890 e
1940, em São Paulo, constituiu uma determinada representação do gênero
masculino, em que a imagem do homem como “provedor e bom chefe de
família” era ameaçada pelo consumo de bebidas alcoólicas, produzindo homens
que se distanciavam de um ideal de masculinidade, até então, marcado pelas
insígnias de força, racionalidade, disciplina e controle dos desejos. Em vista
disso, ela vai examinar como o trabalho foi associado ao masculino e que caberia
aos homens se auto realizarem pela prática do mesmo. Consequentemente,
a masculinidade, atribuída ao homem, era relativa e reativa, o
casamento trazia a idéia de contrato: para a mulher, o
provento masculino; para o homem, a fidelidade e os cuidados
femininos. Assim predominava a representação simbólica
ideal da mulher dedicada Às tarefas do lar, enquanto o
trabalhador masculino deveria assumir seu papel de único
arrimo de família (MATOS, 2001ª: 42).

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Ao pensar masculinidade e feminilidade de modo relacional, a autora


nos mostra como a dinâmica das relações entre os gêneros não é algo restrito ao
suposto mundo privado e que numa histórica ordem de gênero existe uma visão
de complementaridade entre os sexos, o que fundamenta o contrato
heterocentrado entre os sujeitos de gênero, justificando uma hipotética função
social dos sujeitos como a própria autora identifica no discurso médico de teor
eugenista, que na época, questionava o trabalho feminino fora do lar,
477
pois este podia ameaçar a estratégia de regeneração social;
[assim] a ausência feminina afetava as tarefas e a higiene
domésticas, podendo abalar a família. Além do mais, se o lar
não fosse aconchegante o homem iria procurar o bar, o
botequim, caindo no alcoolismo (MATOS, 2001ª: 42-43).

Para o historiador Durval Muniz Albuquerque Júnior, tido como uma


das principais referências dos estudos do gênero masculino numa perspectiva
cultural e com ênfase na linguagem e na discursividade, a historiografia de
gênero “vêm sistematicamente pouco focalizando o masculino e as experiências-
de-ser-homem” (2013:22). Lançado pela primeira vez em 2003 - Nordestino:
invenção do “falo”- uma história do gênero masculino (1920-1940) é fruto de
uma reflexão em torno das relações de gênero no Nordeste. Segundo a
historiadora Denise Sant’ Anna, tal obra veio suprir uma lacuna historiográfica
sobre a história do sexo masculino, muito antes do sucesso internacional da
coleção história da virilidade no Ocidente, organizada e escrita pelos franceses
Alain Corbin, Jean-Jacques Courtine e Georges Vigarello.

Em sua análise, Albuquerque Júnior focaliza a invenção do nordestino


como identidade política e cultural no início do século XX. Para ele, “O
nordestino é constituído através do agenciamento de uma série de imagens e
enunciados que constituíam tipos regionais anteriores” (2013:186), logo, este
sujeito histórico será uma figura gestada nos discursos regionalista e
tradicionalista como cordel, literatura e poetas populares, num cruzamento entre
uma identidade regional e uma identidade de gênero. Ainda para o autor, o
nordestino forjado e desejado nestes discursos representava a reserva de valores
tradicionais como virilidade, força e bravura que estavam - na visão da época -
sendo solapados pelo mundo urbano com a entrada das mulheres no espaço

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público, por exemplo, provocando fraturas e desestabilizando uma histórica


hierarquia entre os sexos. Não obstante, o autor reconhece que nessa ordem de
gênero uma nova experiência de feminilidade foi engendrada, enquanto “o
sertanejo seria o cerne da nossa nacionalidade, [...] seria aquele elemento que
não foi modificado pelas influências cosmopolitas. Fora do contato com a
civilização do litoral” (2013:189), a mulher, por sua vez, era uma figura ímpar,
“pareciam ter que se masculinizarem [...] não era apenas o mundo masculino que
478
estava fechado [a elas], mas a própria região parecia excluir o feminino”
(2013:224). Com isso, o autor desconfia de uma visão binária e fixa entre
masculino e feminino, apontando para o seu caráter relacional.

Com forte influencia foucaultiana, pensando nos regimes de verdade e


nos processos de subjetivação dos sujeitos, o autor aponta a historicidade, “as
brechas entre o dizer e o fazer”, as (des)continuidades e as transformações de
uma determinada ordem de gênero no início do século XX, período este em que
“os códigos de gênero começa[ram] a se tornar assunto político, [e] a lei cada
vez mais vai invadir este espaço de intimidade, prescrevendo papéis e
criminalizando práticas antes admitidas” (2013:228). O autor reconhece que
investigar a trajetória dos homens, produzindo o que ele chama de uma outra
“geografia do gênero masculino”, é desconfiar de que os mesmos são uma
categoria homogênea. Do ponto de vista analítico, Albuquerque Júnior rompe
com a tópica de uma história das mulheres que concebia uma distinção rígida
entre espaço público (associado aos homens) e espaço privado (associado às
mulheres), que entendia “as experiências das mulheres e a dominação masculina
de forma homogênea” (2013:21) sem rupturas ou mudanças, e com isso, “a
mulher seria de forma global e sistematicamente excluída e o homem dominador
implacável e excludente” (2013:21-22) forjando a imagem da mulher vítima e
da mulher heroína3.

Do ponto de vista teórico e metodológico, as reflexões de Maria Izilda


Matos e Albuquerque Júnior nos oferece a possibilidade de perceber como uma
determinada sociedade elabora e define perfis de homens e mulheres

3
Cf: PERROT, Michelle. Os excluídos da história. RJ: Paz e Terra, 1988.

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considerados adequados e desejáveis a uma histórica ordem de gênero. Do ponto


de vista analítico ambos não partem de uma dada divisão entre homens e
mulheres, porém, procuram rastrear, por meio de uma análise discursiva, como
são engendrados e subjetivados os indivíduos de gênero apontando que as
hierarquias não estão dadas, mas sim, são historicamente forjadas e significadas
a partir dos múltiplos pontos de enunciação, como a música, o discurso médico,
o cordel e a literatura, contribuindo para uma análise histórica das
479
masculinidades e das feminilidades.

Numa perspectiva genealógica, que não busca as “origens”, mas


“elementos que se aproximam e se cruzam num dado momento e que resultam
em um acontecimento” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2004:82), podemos
identificar que os primeiros estudos sobre os homens surgiram nos anos 1980,
em países anglo-saxões, como EUA e Austrália. Denominado de Men’s studies,
esses estudos emergiram como um dos efeitos do feminismo de “segunda onda”4
- e dos movimentos gay e lésbico-, que tinha entre as suas prerrogativas a crítica
à categoria ‘homem’ como sujeito universal, percebido como o representante de
toda a humanidade, e, até então, não marcado por noções de gênero e raça, e
tendo também como marco a perspectiva de poder nas relações de gênero,
sobretudo aquela apresentada por Joan Scott, para quem o gênero “é um
elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças
percebidas entre os sexos [e é] um primeiro modo de dar significado às relações
de poder” (1990:14). Esses estudos criticaram a noção polarizada entre
masculino e feminino enfatizando a historicidade das identidades e o seu caráter
não universal.

Consequentemente, se percebeu que o gênero como categoria de análise


não “compreende a simples dicotomia masculino e feminino; antes, o gênero
cruza-se com uma rede de elementos vinculados às estruturas de classe, poder e
etnicidade, que estruturam as relações sociais” (CECCHETTO, 2004:57). Deste

4
Sobre as chamadas “ondas” do feminismo, ver: PEDRO, Joana. Traduzindo o debate:
o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. História, São Paulo, v.24, n.1, p.77-98,
2005; PEDRO, Joana. Narrativas fundadoras do feminismo: poderes e conflitos (1970-
1978). Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 26, n. 52, p. 249-272, 2006.

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modo e numa perspectiva interseccional (CRENSHAW, 2002; PISCITELLI,


2008, RODRIGUES, 2013; HIRATA, 2014), se percebe que as relações de
gênero estão imbricadas nas relações de classe e raça, pois esses marcadores
sociais da diferença são oriundos de uma mesma matriz heterocentrada, logo,
masculinidade(s) e feminilidade(s) são entendidos como constructos social e
culturalmente forjados, rizomáticos, relacionais, interdependentes e de múltipla
definição. Por isso, o caráter histórico, datado e político do gênero.
480
Para o antropólogo Miguel Vale de Almeida (CORRÊA, Mariza;
PISCITELLI, Adriana. 1998) os Men’s Studies, inicialmente, assumiram uma
posição ‘revanchista’ em relação ao feminismo e também de vitimização dos
homens e invisibilidade dos homossexuais. Além de serem estudos produzidos
por homens, sobre homens e para homens. Por esse ângulo, podemos questionar
que ‘homem’ seria esse? E o que estava em jogo? Para o antropólogo português,
o revanchismo pode ser caracterizado como o silenciamentos das relações de
poder entre homens e mulheres e a manutenção dos privilégios oriundos da
masculinidade. Nas suas palavras, “não se pode vitimizar os homens, quando
eles estão socialmente no poder” (CORRÊA, Mariza; PISCITELLI, Adriana.
1998:204). Nessa lógica, podemos entender que não pode existir um
masculinismo simétrico ao feminismo. Igualmente, Oliveira afirma que “antes
de ser vítima, o homem é beneficiário do sistema de gênero vigente”
(OLIVEIRA, 2004:190), logo, por estarem/serem inseridos no regime de gênero
historicamente forjado, “os homens podem se sentir sem poder quando se
compara a outros homens, mas nunca quando se comparam às mulheres”
(OLIVEIRA, 2004:218).

Num raciocínio similar, a antropóloga Fatima Cecchetto menciona que


os primeiros estudos sobre os homens ignoravam as relações de poder entre os
sexos, logo, masculino e feminino eram compreendidos como sinônimos de
diferenças inatas, essencializadas. Desta maneira, concepções forjadas em
meados do século XIX que associavam a mulher ao espaço doméstico/ privado,
mantenedora do lar, da educação dos filhos e submissa a figura masculina (pai/
marido), ao mesmo tempo, ao homem historicamente considerado pragmático e

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racional era reservado o privilégio do domínio do espaço público, sedimentavam


uma visão binária entre os gêneros. Sendo assim, “a ausência das relações de
poder nessas análises acabou por legitimar discursos sobre a chamada ‘crise da
masculinidade’” (CECCHETTO, 204:60).

Essa suposta crise da masculinidade se deu, principalmente, entre os


homens brancos estadunidenses que tiveram as suas concepções de
masculinidade desestabilizada pelo avanço dos movimentos feministas e gays. 481
Para Cecchetto, tal “crise dos papéis masculinos pode ser explicada pelo
afastamento da maioria dos homens do padrão percebido e legitimado como
socialmente hegemônico” (2004:61). Semelhantemente, o modelo de
masculinidade norte-americana neste caso era concebido pela aquisição de
“poder, fama e ocultação das emoções” (CECCHETTO, 2004:62). Com efeito,
ao admitir as relações de poder como um elemento constitutivo das relações
entre os gêneros,
emerge no contexto dos Men’s studies a noção de
masculinidade hegemônica como alternativa para se
examinarem as relações entre os sexos. A masculinidade
hegemônica é definida como um modelo central, o que
implica considerar outros estilos como inadequados ou
inferiores (CECCHETTO, 2004:63).

De acordo com o sociólogo Pedro Paulo de Oliveira, “é inegável que o


feminismo veio abalar a idéia de uma masculinidade admitida como natural e,
assim, abriu caminho para o seu questionamento histórico” (1998:108). Como
bem nos lembra a historiadora Margareth Rago, a entrada maciça das mulheres
no campo universitário no final do século XX, não só como estudantes, mas
como produtoras de conhecimento, de certa forma provocou uma “feminização
do espaço acadêmico”, como também desestabilizou uma produção científica
masculina e heterossexista. Elas não só reivindicaram seu lugar na História,
como demandaram novos temas e novas abordagens. O que era considerado
como característico do(s) mundo(s) feminino(s) ganhou visibilidade no relato
histórico como a maternidade, o aborto, a infância e a família, etc. Não obstante,
para além da inclusão das mulheres no discurso histórico, se tratava “de
encontrar as categorias adequadas para conhecer os mundos femininos, para

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falar das práticas das mulheres no passado e no presente e para propor novas
possíveis interpretações inimagináveis na ótica masculina” (RAGO, 1998:92).

Masculinidades hegemônicas, subordinadas, cúmplices e marginalizadas:


considerações sobre um modelo sociológico

Segundo Raewyn Connell5, o termo masculinidade hegemônica foi


482
utilizado pela primeira vez num relatório de 1982 que integrava o projeto de
investigação das hierarquias sociais entre meninos, professores e pais em escolas
australianas. Com esse estudo de campo, foi possível observar a existência de
múltiplas hierarquias entrelaçadas por noções de gênero, tempo e classe, que
consequentemente, denunciavam e visibilizavam as desigualdades sociais
existentes entre os homens. A partir disso, Connell vai dizer que masculinidade
é um constructo não equivalente aos homens, mas à posição ocupada pelos
mesmos numa dada ordem de gênero que varia de acordo com o tempo e a
sociedade. E por isso, numa perspectiva relacional, vai se perceber que as
mulheres também têm um papel crucial na formatação desses indivíduos.
Segundo a autora, masculinidade pode ser definida como uma configuração de
prática “em torno da posição dos homens na estrutura das relações de gênero.
[No entanto] existe, normalmente, mais de uma configuração desse tipo em
qualquer ordem de gênero de uma sociedade” (CONNELL, 1995:188). Logo, a
autora defende que falar de “posição dos homens significar enfatizar que a
masculinidade tem a ver com relações sociais e também se refere a corpos – uma
vez que “homens” significa pessoas adultas com corpos masculinos”
(CONNELL, 1998:188), ou seja, “é reconhecer que as masculinidades são
corporificadas”, visto que as masculinidades em parte são vivenciadas e

5
Cf: CONNELL, Raewyn. Masculinities. Disponível em:<
http://www.raewynconnell.net/p/masculinities_20.html >. Acessado em 04/08/2016.
Desde 2007, as obras de Robert Connell passaram a ser publicadas sob a assinatura de
Raewyn Connell, mulher transexual, socióloga e professora da Universidade de Sydney,
na Austrália. Por isso, ao longo do texto sempre irei me referir à Connell pelo pronome
feminino.

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percebidas a partir de “certas tensões musculares6, posturas, habilidades físicas


[e] formas de nos movimentar” (CONNELL, 1998:189).

Connell entende que o gênero é uma estrutura ampla, complexa e


contraditória, que engloba dimensões como economia, estado, família e
sexualidade, tendo praticamente uma dimensão internacional. Assim sendo, a
autora reconhece que “qualquer forma particular de masculinidade é, ela própria,
internamente complexa e até mesmo contraditória” (CONNELL, 1995:189). 483
Com isso, ela percebe que masculinidade e feminilidade são concepções
cambiantes e presentes na formatação da personalidade dos sujeitos, por isso a
masculinidade não pode ser restringida unicamente aos homens. No entanto, ao
falar da relação de gênero entre os homens, ela sugere que uma masculinidade
hegemônica, pautada na representação do homem branco, heterossexual,
escolarizado, geralmente integrante da elite e cristão, também é marcada por
relações de dominação, marginalização e cumplicidade, por esse motivo, ela
alega que é preciso entender a masculinidade como um projeto que se dá no
constante jogo entre as posições de gênero. E essas posições não são fixas, como
um enquadramento sociológico possa fazer parecer, mas sim, são
intercambiáveis, movediças, porosas e, portanto, precisam ser observadas em
sua dinâmica relacional, não só entre homens e mulheres, mas também entre os
próprios homens.

Connell e Messerschmidt, em artigo publicado originalmente na revista


Gender & Society, em 2005, e publicado no Brasil em 2013 pela revista Estudos
Feministas, defendem que após duas décadas de surgimento do conceito de
masculinidade hegemônica, tal concepção ainda é fundamental para pensar as
relações entre os homens e os processos de subjetivação, no entanto, reconhecem
que o mesmo não “equivale a um modelo de reprodução social”, pois existem
lutas e tensões entre as masculinidades, promovendo múltiplas transformações,
e, reconhecem a necessidade de pensar as hierarquias de forma

6
Cf: CAMPANA, Angela Nogueira Neves Betanho, et al. Drive for Muscularity: Um
Estudo Exploratório no Exército Brasileiro. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Vol. 30, n.
2, p. 213-222, Abr-Jun 2014.

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multidimensional, abandonando uma visão unidimensional da mesma assim


como das características atribuídas ao gênero masculino.

Mais adiante, Connell e Messerschmidt reconhecem que a transposição


de uma noção de hegemonia - utilizada para pensar “a estabilização das relações
de classe”-, para compreender a dinâmica das relações de gênero, gerou alguns
equívocos analíticos, e isso ocorreu pelo seguinte fato:
os escritos de Gramsci focam nas dinâmicas da mudança
estrutural envolvendo a mobilização e a desmobilização de
484
classes inteiras. Sem um foco claro nesse tópico da mudança
histórica, a ideia de hegemonia teria sido reduzida a um
modelo simples de controle cultural. E, em boa parte do
debate sobre gênero, a mudança histórica em larga escala não
está em foco (CONNELL e MESSERSCHMIDT, 2013:243,
grifo meu).

Segundo Mari Izilda Matos, além de reivindicar para si um território


específico, “em face da insuficiência dos corpos teóricos existentes para explicar
a persistência da desigualdade entre homens e mulheres” (MATOS, 1998:69), o
gênero possibilitou novas questões, novas temporalidades, ampliou o
conhecimento do objeto histórico e diversificou a documentação. Porém, o que
considero mais importante para a nossa reflexão é que como categoria analítica
“o gênero apontou a necessidade de se libertar de conceitos abstratos e
universais, bem como, a necessidade de se historicizar os conceitos e categorias”
(MATOS, 1998:71), inclusive ele mesmo, além de aceitar a efemeridade e
transitoriedade dos conceitos e da produção do conhecimento. Em dialógo com
Joan Scott, Margaret Rago reconhece que o gênero como categoria, “não nasce
do interior de um sistema de pensamento definido como o conceito de classes
em relação ao marxismo”, mas, “procede de um campo profundamente diverso
daquele que tinha como horizonte a emacipação social de determinados setores
sociais” (2006:29), entenda-se, o proletariado. Com efeito, e retomo as palavras
de Maria Izilda Matos,
o crescimento da produção historiográfica sobre o gênero, ao
contrário de esgotar as possilibidades, abriu controvérsias,
instaurando um debate fértil. Contudo, alguns problemas de
definição, fontes, método e explicação persistem, e entre eles
a diversidade que envolve a própria categoria gênero
(1998:74).

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Assim, podemos perceber que a categoria gênero não comporta uma


visão estática, estável e ahistórica, tanto de si mesmo, quanto da realidade
investigada. De acordo com sociólogo Márcio Ferreira de Souza, ao fundamentar
a noção de hegemonia a partir da concepção marxista de Gramsci, Connell,
apesar de reconhecer o caráter instável da hegemonia, pois a mesma entende que
os padrões de masculinidade variam local e historicamente, a noção de
485
masculinidade hegemônica tem “como modelo de referência o patriarcado visto
que no âmbito das relações de gênero vai se configurar como processo
dominante dos homens e de subordinação das mulheres” (SOUZA, 2009:125) e
com isso acabaram por naturalizar e universalizar uma histórica concepção de
dominação masculina, basta verificar o modelo sociológico de Bourdieu7, o que
não se apresenta da mesma forma de acordo com cada sociedade numa relação
espaço-tempo. Em suma, como um modo de corrigir esses equívocos, Connell e
Messerschmidt sugerem:
eliminar qualquer uso da masculinidade hegemônica como
fixa, como um modelo trans-histórico. [Pois] esse uso viola a
historicidade do gênero e ignora a evidência massiva das
transformações nas definições sociais da masculinidade
(2013:252).

Assim, as masculinidades hegemônicas não devem ser vistas como um modelo


estanque, mais sim como um arquétipo, um modelo concebido como ideal e
constituído por uma multiplicidade de signos considerados inerentes e desejáveis
a condição masculina. Não obstante, ainda que elas “não correspondam
verdadeiramente à vida de nenhum homem real. Mesmo assim esses modelos

7
Bourdieu, em A Dominação Masculina (2002), vai dizer que a mesma é uma expressão
particular de violência simbólica que inscreve nos corpos e nos sistemas cognitivos dos
indivíduos uma ordem social androcêntrica a partir de uma relação de forças que se auto
sustentam. No entanto, para o autor, se esse sistema está imbricado na linguagem, nas
instituições, na delimitação dos espaços e dos corpos, logo, ele entende que não há
espaço para mudança, agência do sujeito. Por isso, autores como o antropólogo
português Miguel Vale de Almeida (1995), que desconfia da universalidade da
dominação masculina, e o sociólogo francês Daniel Welzer-Lang (2004) que aponta
para a necessidade de buscarmos identificar os diferentes sentidos atribuídos a noção
violência entre os homens e entre as mulheres, vão sugerir outros caminhos para
pensarmos as relações de gênero e as masculinidades de modo dinâmico, irrequieto e
movediço.

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expressam, em vários sentidos, ideais, fantasias e desejos muito difundidos”. E


como efeito, “oferecem modelos de relações com as mulheres e soluções aos
problemas das relações de gênero” (CONNELL e MESSERSCHMIDT,
2013:253). Em verdade, argumentam Connell e Messerschmidt, “o conceito de
masculinidade hegemônica não busca abarcar tudo e muito menos ser uma causa
primeira; é uma forma de entender certa dinâmica no seio de um processo social”
(2013:256). Com isso, podemos entender que a masculinidade não
486
necessariamente significa um tipo determinado de indivíduo, mas, expressa à
maneira como os sujeitos de gênero se posicionam e são posicionados por meio
de práticas discursivas e não discursivas numa histórica ordem de gênero.

De acordo com o sociólogo Márcio Souza, muitos dos autores e autoras


como Luis Cuchinir (1992), Siloé Pereira Neves (1987), Roseli Buffon (1993),
Maria Isabel Mendes de Almeida (1996), Sócrates Nolasco, Mirian Goldenberg
(1991) e João Silvério Trevisan,
que refletiram inicialmente as masculinidades no Brasil
desenvolveram suas argumentações a partir de uma noção de
crise dos homens como uma crise de um padrão de
masculinidade hegemônica, o qual lhes sobrecarregava com o
peso da masculinidade (2009:133).

Nessa perspectiva, acabou-se por focalizar os homens integrantes da


classe média mais escolarizada e intelectualizada, que segundo a antropóloga
Maria Regina Lisboa (1998), estavam inseridos numa lógica individualista e de
forte cunho psicologizante. Já para Fábio Araújo Oliveira, o discurso de uma
suposta “crise da masculinidade” é, em verdade, um efeito discursivo que sugere
“a existência de uma época na qual o homem não vivia uma crise desse tipo, em
oposição à contemporaneidade, onde tal crise emerge”, logo:
o funcionamento ideológico dessa interpretação é criar, de um
lado, um passado como um paraíso, no qual a construção
masculina seria realizada sem grandes conflitos, pois a
identidade de homem estaria muito bem definida, regulada e
aceita pela sociedade, e de outro lado, criar um presente onde
a construção da masculinidade causa conflitos para o homem
(OLIVEIRA, 2015:24-25).

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Em vista disso, ao que se denomina de ‘crise de masculinidade’ eu


identifico como uma de crise da heteronormatividade8, na medida em que a
presença de outras performances de masculinidades, principalmente no espaço
público, complexificam as relações entre os homens e apontam para uma
reelaboração dos modelos instituídos no intuito de incluir essa multiplicidade,
evidenciando o seu caráter histórico, político, social e cultural, imanente às
relações sociais inter-gêneros (homens e mulheres) e intra-gêneros (homens e
487
homens/ mulheres e mulheres).

Considerações finais

Enfim, mediante a essa breve exposição do debate em torno das


masculinidades, cabe agora responder a questão que norteia esse texto.
Primeiramente, como objeto de pesquisa é preciso considerar o caráter
interdisciplinar, como já apontando ao longo do texto, em que o diálogo com a
Sociologia e a Antropologia, por exemplo, se faz necessário, no entanto, como
historiadores/as, não podemos desconsiderar algo fundamental ao nosso ofício:
a historicidade, ou seja, a relação espaço-tempo, as (des)continuidades, as
clivagens, mudanças, transformações e ressignificações recorrentes numa dada
sociedade. Em segundo lugar, é reconhecer que as masculinidades hegemônicas
não são fixas, porém instáveis, socialmente e historicamente localizadas, assim,
se evitar cair num modelo sociológico que busca enquadrar uma dada realidade
num conceito prévio. Em seguida, é considerar as hierarquias nas relações entre
homens e mulheres, mas também entre os próprios homens, percebendo que no
jogo das masculinidades, as posições de subordinação e hegemonia são
constantemente negociadas. Ademais, é ler e incorporar o que uma historiografia
produzida sob uma epistemologia feminista tem a dizer sobre a sociedade e
principalmente sobre os homens. De acordo com o sociólogo francês Daniel

8
Segundo O sociólogo Richard Miskolci (2012ª) e a psicóloga Jaqueline Gomes de
Jesus (2015), a heteronormatividade é a ordem sexual vigente, fundada no modelo
heterossexual, familiar e reprodutivo, entendida como característica de todo ser humano
“normal”. Desse modo, qualquer pessoa que não se adeque a esse padrão é considerada
“anormal”, o que justificaria sua marginalização.

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Welzer -Lang, precisamos abandonar o androcentrismo - que é “a tendência a


excluir as mulheres dos estudos históricos e sociológicos” (WELZER-LANG,
2004, p. 112)-, em nossas reflexões e produções acadêmicas, ou seja, a tendência
a excluir tudo o que se refere às mulheres e também seja escritos por elas. É
reconhecer que “elas vivem e escrevem como um dos componetes do social, e
não como uma especificidade do geral, do normal que supostamente só eles [os
homens] representariam” (WELZER-LANG, 2004, p.112). E por fim, é entender
488
os homens não só como agentes do processo histórico, “mas como produtos
desse mesmo processo [é fazer] a história de homens construindo-se como tal, a
história da produção de subjetividades masculinas, em suas várias formas, a
história da multiplicidade de ser homem” (ALBUQUERQUE JÚNIOR,
2013:23).

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493

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O LAMPIÃO DA ESQUINA: AS DENÚNCIAS DA LGBTFOBIA


INSTITUCIONAL NA DITADURA CIVIL-MILITAR

Rhanielly Pereira do Nascimento Pinto*

Introdução
Sabe-se historicamente que o Estado brasileiro demonstrou uma
494
dificuldade aparente ao que diz respeito lidar com quaisquer manifestações que
não se estabelecessem em um determinado padrão, visto que estes desviantes
possuem uma dificuldade de inserção neste sistema bem como circular entre as
classes dominantes que gerem o Estado. Neste caminho é necessário então que
se percebam quais práticas que o Estado amplamente usou para manter a moral
e o padrão tal qual foram fundados e ainda deixar clara a necessidade de perceber
como a violência contra as pessoas LGBT’s faz parte de um processo que até
hoje é reelaborado e apresentado socialmente.
O texto ainda, na atualidade, é extremamente necessário pois permite
que se faça uma reflexão sobre o momento político atual da democracia
brasileira que está a se desfalecer. Além disso, existe uma clara ascensão de uma
direita ultraconservadora que impede o movimento LGBT de continuar a sua
luta por direitos e participação social nos rumos do país. Dessa maneira,
estabelecer as formas que o Estado propôs na ditadura é permitir a reflexão sobre
como a democracia e a sociedade de maneira geral conseguiu lidar com a questão
LGBT nos últimos 31 anos. Há de se perceber então que evidenciar estes
processos históricos é permitir explicar e refletir se há hoje um cenário
ligeiramente parecido com o da formação da primeira onda LGBT nos fins da
ditadura.
Para tais reflexões será necessário utilizar o jornal Lampião da Esquina
1978 -1981 com o intuito de expor as denúncias das mais diversas violências
tanto do estado quando da sociedade para com a comunidade LGBT durante a

*
Graduando em História pela Universidade Federal de Goiás – Regional Catalão e
integrante do Grupo DIALOGUS ( Estudos Interdisciplinares em Gênero, Cultura e
Trabalho), e-mail: rhaniellypereira@hotmail.com

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ditadura. Deste modo, estabelecer uma reflexão sobre as recentes notícias que
envolvem a violência a este grupo tendo como base o momento e o processo de
luta do movimento LGBT.

O Lampião em cena

No ano de 1978 as luzes do Lampião da Esquina acendem e o Rio de


Janeiro torna-se o polo de uma discussão sobre a identidade GLS1 no Brasil. E a
495
partir de uma luta conjunta de grupos como o SOMOS a existência de uma
comunidade gay se torna possível. Esse momento marca o início de um
movimento político da construção da identidade gay e também da luta e
resistência, contra a ditadura no Brasil. Para entendermos a importância do
jornal é possível trazer em cena que em seu número piloto a intenção da
existência de um jornal de homossexuais para o público GLS é clara.
Para acabar com essa imagem padrão, LAMPIÃO não
pretende soluçar a opressão nossa de cada dia, nem pressionar
válvulas de escape. Apenas lembrará que uma parte
estatisticamente definível da população brasileira, por
carregar nas costas o estigma da não reprodutividade numa
sociedade petrificada na mitologia hebraico-cristã, deve ser
caracterizada como uma minoria oprimida. E uma minoria, é
elementar nos dias de hoje, precisa de voz. (TREVISAN,
1978, nº 0, p. 2)

É possível concluir que a intenção do jornal era buscar desmarginaziar


um imaginário sobre a identidade gay, criado por uma sociedade fortemente
religiosa e heteronormativa, além de também evidenciar as práticas opressivas
que faziam a sociedade e o Estado reproduzir sobre o que se tornaria a
comunidade GLS. É importante destacar ainda que o jornal surge em uma fase
nova do país na qual se entende na historiografia uma dita reabertura política e
sobre ainda por uma onda de reformulação da esquerda política. E era este o
momento político que possibilitou uma nova onda de imprensa, a chamada
imprensa alternativa no país.

1
A este ponto procurou-se utilizar o termo correto para a época visto que a discussão
da transexualidade não havia ainda sido discutida nem pensada pelo movimento que
define a primeira onda.

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Há de se destacar que a criação dessa identidade gay fazia parte também


de um movimento mundial conhecido popularmente como o maio de 1968 e que
apenas tem seus reflexos intensificados nos fins da década de 1970 no Brasil.
Esse momento histórico levou ao questionamento sobre os padrões e também
propiciou uma revolução sexual que junto ao contexto político nacional, a
formação de diversas mídias alternativas, e tornou possível questionar a leitura
imposta pela classe dominante sobre o que é a sexualidade e suas limitações.
496
Está chamada contracultura mundial propicia a partir de 1975 a criação
de um jornal para o público homossexual. Politicamente esse movimento
possibilitou uma reflexão e contestação sobre as práticas sociais e sobre as
formas de analisar o mundo. É neste sentido que o corpo editorial do Lampião
vive esse momento e bebe dessas influências fortemente tanto que em seu
número piloto a interpretação mais clara é a tentativa de trazer a comunidade
Gay uma identidade possível. Sobre este período Silva nos esclarece:
O conjunto de manifestações - que afloraram durante o
período da contestação - produziu novas formas do indivíduo
se relacionar com o mundo. Esse clima contribuiu para a
eclosão de novas formas de atuação política, onde a ênfase
recaia sobre a afirmação da liberdade. Os novos movimentos
rechaçavam a sisudez da esquerda tradicional, questionando
suas normas de disciplina e de organização. Esse espírito
resvalou críticas sobre todas as estruturas que suprimissem o
valor positivo da liberdade. (SILVA, 1998, p.61)

No entanto antes de continuar nossa análise é necessário deixar claro


que o Lampião da Esquina surge após sucessivas tentativas, as vezes bem-
sucedidas ou não, de criação de uma mídia alternativa para discutir o mundo e a
cultura GLS. De uma maneira ou de outra, todos esses folhetins ou jornais
possibilitaram uma abertura para o que viria a ser o Lampião. Jorge Caê
Rodrigues nos deixa claro que desde a década de 1960 a tentativa sobre os jornais
GLS e nos elucida que:.
No Rio, tínhamos, de raríssima circulação, as publicações
Snoob, Le Femme, Suburbio à Noite, Gente Gay, Aliança de
Ativistas Homossexuais, Eros, La Saison, O Centauro, O Vic,
O Grupo, Darling, Gay Press Magazin, 20 de Abril e O
Centro; em Niterói existiam Oas Felinos, Opinião, O Mito;
em Campos havia o Le Sophistique; na Bahia contava com O
Gay e O Gay Society, O Tiraninho, Fatos e fofocas, Baby

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Zéfiro, Little Darling, e Ello. Segundo os editores do


Lampião, eram jornais que versavam sobre amenidades e
badalações sociais, sem esquecer de falar de acontecimentos
culturais, reportagens e classificados. Eram jornais feitos por
alguns amigos para seus amigos. Nem por isso eram vistos
como algo menor. (RODRIGUES, 2014. p.89)

O Lampião é neste sentido um fruto de uma soma de resistências


individuais em um período em que a opressão do estado se configura de maneira
contundente e é a partir dessas práticas violentas e da institucionalização do que 497
veremos adiante ser a criminalização da homossexualidade durante o período
ditatorial. Para ainda nos fazermos valer do jornal é preciso evidenciar como as
notícias e reportagens do Lampião eram organizadas, como na realidade o jornal
se subdividia.
O jornal possuía sessões sobre literatura, arte e cinema como a parte
que se destinava ao mundo da cultura. Além disso, eram feitas entrevistas com
figuras de peso da época ou ainda algumas personalidades com carreira em
ascensão para falar sobre o contexto ao qual estavam inseridos além de trazer
também em cena discussões sobre feminismo, diversidade sexual e as lutas
políticas. Em outras sessões é possível ler as denúncias sobre a violência policial
e das instituições que o Estado mantinha para dar manutenção social ao sistema
e assim como qualquer outro instrumento de resistência, o corpo editorial do
jornal bem como amigos próximos foram também exemplos dessa violência.
Podemos exemplificar como estas denúncias se deram a partir da
primeira trazida pelo Lampião em seu número piloto sobre a demissão de Celso
Cúri, um jornalista que possuía uma boa repercussão em São Paulo, intitulada
de “Demissão, processo, perseguições. Mas qual é o crime de Celso Cúri?”, essa
primeira reportagem tem um peso porque ela configura a estética do que seriam
as próximas denúncias bem como deixa claro um cunho de resistência à ditadura
mesmo entendendo que de maneira geral para alguns membros do conselho
editorial não entendessem ou dissessem sobre uma militância GLS.
A denúncia presente neste número foi clara e possibilitou o Lampião
afirmar qual o propósito e o modelo do sentido e significado do próprio nome
do jornal. Iluminar a escuridão existente a partir das perseguições aos GLS e

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também trazer à público uma existência para além da imagem de pederastia,


comportamento burguês e marginal associado aos LGBT’s. Nesta primeira
reportagem é possível perceber as dinâmicas sociais colocadas naquele tempo e
como a lgbtfobia havia se institucionalizado.
Esse é o aspecto que cumpre a fala e o propósito do jornal. A partir dos
próximos números o jornal cumpre este compromisso e traz em cena denúncias
sobre o machismo, sobre as várias demissões de homossexuais e também a
498
negação do direito a estudar de alguns alunos que tivessem comportamento
homossexual. Durante os 42 números do Lampião o jornal vai ser marcado por
várias dessas denúncias além das páginas que se relacionam como cultura GLS
num sentido de mostrar para o público em geral e aos próprios GLS que a
identidade e o espaço de vivência da comunidade poderia ser mais do que era
amplamente considerado.
A esse ponto em linhas gerais é possível concluir que o Lampião traz
em cena a discussão da homossexualidade num discurso palpável a várias classes
sociais e ainda a possibilidade de expressar como a comunidade GLS se
encontrava naquele período, das dificuldades aos próprios espaços de
sociabilidade e ainda estabelecer a união com outras minorias e grupos que
surgiam naquele momento a procura de direitos (RODRIGUES, 2014).

Lgbtfobia institucionalizada: as denúncias do Lampião

Para entender a institucionalização da lgbtfobia é necessário aqui deixar


claro que não se pretende ser anacrônico a este ponto. Na década de 1960 e 1970
é sabido que a categoria LGBT não havia entrado em discussão visto que, era
entendido como comportamento homossexual quaisquer outros modos de viver
a sexualidade que não fossem heterossexuais e hegemônicos é deste ponto em
que nos pautamos ao explicar que o “homossexualismo” compunha todos estes
grupos citados na terminologia mais comum atualmente.

Partindo deste esclarecimento é necessário também que possamos


perceber qual foi o mecanismo utilizado para a institucionalização das

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homossexualidades. Dessa forma o Relatório Nacional da Comissão da Verdade


nos informa que:
A associação entre homossexualidade e subversão foi um dos
conceitos básicos a sustentar a ideologia do regime militar e
servir como justificativa para os vários tipos de repressão
sobre a sociedade brasileira e, especificamente, a gays,
lésbicas e travestis nos anos 1960 e 1970. Essa ideologia que,
foi adotada oficialmente pelo Estado durante a ditadura em
nome da segurança nacional, tem as suas origens nas ideias
integralistas e católicas ultraconservadoras dos anos 1930.
(COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, v.3, 499
p.301)

A partir dessa teoria de Segurança Nacional a ditadura propôs uma


“caça às bruxas” e os direitos de socialização aos quais não eram legalizados
nem discutidos foram mais que marginalizados, como de costume, o direito
humano ao trabalho, ao acesso à educação de qualidade e ainda mais os espaços
de vivência entre as pessoas LGBT’s foram violentamente esmagados. Dessa
forma o Lampião traz para a imprensa e denuncia várias destas práticas e além
disso propicia uma interpretação a posteriori que relacionada a historiografia
demonstra que é essa a afirmativa que não possibilita a formação da primeira
onda do movimento GLS junto com a chamada Revolução Sexual na década de
60 e vai se estabelecer apenas no fim da ditadura.

Como já dito antes o Lampião possui uma história de resistência em seu


próprio surgimento e a ele estão relacionadas as mesmas comuns práticas de
opressão da época. Em um caso específico em seu primeiro número, o piloto, o
jornal descreve a demissão do jovem Celso Curi. Este jovem, em 1977,
compunha uma coluna chamada “A Coluna do Meio” promovida pela “Isto É”,
onde a coluna chegara com uma proposta de discutir a homossexualidade e em
suas demonstrar em último aspecto a capacidade dos homossexuais para além da
identidade conhecida até então.

Fato é que, em 1977, Curi havia sido despedido com a prerrogativa de


uma crise financeira da revista. A este fato o Lampião deixa claro que:
Coincidentemente, nessa mesma época noticiava-se a
segunda audiência de um processo até então desconhecido:
desde outubro de 1970, o Ministério Público do Estado de São
Paulo apresentava denúncia contra o autor da Coluna do

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Meio, como incurso no artigo 17 da Lei número 5.250 (Lei de


Imprensa). “Artigo 17: Ofender a moral e os bons costumes.
Pena: detenção de 3 (três) meses a 1(um) ano e multa de 1(um)
a 20(vinte) salário-mínimos de região. (TREVISAN,1978, nº
0, p. 6)

De maneira lógica é possível perceber o argumento de que esse tipo de


penalidade se configurava em todo o cenário da imprensa e em outros meios,
mas a grande curiosidade é o fato de que o Lampião além de denunciar o
500
processo em si trazia consigo de maneira explícita como o processo foi mudando
ao longo dos inquéritos dos promotores onde o discurso dos bons costumes
parecia ter sido alterado com o que o jornal dizia “problema de
homossexualidade”. A esse respeito é possível perceber como de uma maneira
clara o Estado rearticulou suas ações e ainda colocou em cheque o sistema penal
evidenciando que o Código Penal de 1940 sequer vinha com uma proposta em
que a homossexualidade fosse uma contravenção. É preciso perceber então como
a política interna do Estado possibilitou uma caça às bruxas aos homossexuais.

É necessário que se observe que no mesmo período de publicação do


número piloto do Lampião houve uma abertura de inquérito policial que durou
12 meses com o mesmo pretexto da Lei da Imprensa, e que dessa maneira todos
os editores haviam sido indiciados e apesar de arquivado o caso este seria um
dos pretextos que em 1981 faria com que o Lampião fechasse as portas, segundo
a Comissão da Verdade.

Além desta censura podemos ainda nos comprometer a dizer que o


acesso à educação também fora dificultado pela ditadura a pessoas ditas
homossexuais. Em seu segundo número o jornal traz como denúncia um
processo onde matrículas foram negadas por alguns alunos terem um
comportamento homossexual. Desta maneira o jornal informa que dos 2.250
alunos da Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte, 30 alunos tiveram a
sua renovação de matrícula negada por manterem uma conduta homossexual.
Evidentemente o diretor tentou desmentir toda a situação, mas o Lampião
denunciava que “ há sérios indícios de que a escola andou colecionando
denúncias sobre alunos seus, forçando-os a pedir transferência por praticarem o

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homossexualismo ou apenas porque seriam homossexuais.” (AUGUSTO,1978,


n.2, p.3)

Ainda nesta mesma noticia o Lampião faz um gancho sobre a violência


policial aos gays no Nordeste e nos aponta a carta de um leitor que afirma que
“nas boates onde os rapazes alegres se encontram houve uma batida policial
deixando assim um clima de inquietação guei da cidade”. (AUGUSTO, 1978,
n.2, p.3). Deste modo há de se concluir que também os espaços de socialização
501
do mundo gay foram fortemente alterados.

Sobre este ponto a Comissão da Verdade informa a existência de uma


política de limpeza nas grandes capitais onde as travestis começaram a sofrer
uma intensa repressão associadas a essas batidas e claramente há de se perceber
que este tipo de violência havia sido agora transpassado do mundo dos direitos
ao tipo de violência física.

Somada a essa política de limpeza a obra “Ditadura e


Homossexualidades” traz como tema em um dos seus capítulos exatamente um
estudo sobre essas táticas opressivas efetuadas por agentes do Estado. E sobre
os espaços de socialização a partir de 1960 Luiz Morando evidencia que na
cidade de Belo Horizonte assim como em outros municípios houve uma
cooperação dentro das várias instituições e comissões de segurança no intuito de
fazer uma campanha moralizadora dentro da cidade e a partir desta política
somam-se várias as prisões e a persistência da retirada dos trabalhos das travestis
visto que estas começaram também a ser impedidas de se apresentarem nas
boates e a partir de meados da década de 1970 os shows das travestis pareciam
ter sumido das capas dos jornais.

Ainda, em a partir da Comissão da Verdade é sabido que em São Paulo


essa mesma política havia sido instaurada e ao que se diz respeito a perseguição
aos LGBT’s se davam muito mais por um caráter ideológico que
necessariamente um perigo dos status do Estado. A partir daí sabe-se que muitas
das apreensões foram relacionadas a outras pequenas práticas. Sobre essas
operações em São Paulo é possível definir que:

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O método utilizado pelas forças de segurança era realizar


batidas policiais em locais frequentados pelas pessoas LGBT,
especialmente as travestis, que eram levadas “para
averiguação” as dependências policiais, tendo por
fundamentos legais a contravenção penal de vadiagem e a
prisão cautelar prevista no Código de Processo Penal de 1941,
então em vigor. Segundo consta de declaração do delegado à
imprensa, de 300 a 500 pessoas eram levadas por dia para
delegacias. (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE,
2014, v.3, p.301)

502
Desse ponto em diante fica clara a institucionalização da lgbtfobia a
partir dessas táticas de violência e repressão com as retiradas das oportunidades
de acesso ao trabalho, a educação e a socialização dos indivíduos da futura
comunidade LGBT. Como um último processo ainda de exemplificação da
retirada dos direitos das pessoas deste grupo o relatório da Comissão também
nos informa a perseguição a 15 diplomatas do Itamaraty com a demissão destes
também por uma conduta homossexual.

É preciso destacar por último que este processo se desenvolveu a partir


da leitura social sobre o que era a identidade LGBT e a vivência da sexualidade
deste grupo. De maneira geral, hegemonicamente era percebido que havia uma
marginalização sobre este comportamento e ainda essa percepção se ligava de
maneira profunda às ordens religiosas brasileiras. A partir daí não é surpresa
perceber na ditadura uma promoção moralizadora que colocava todo o grupo em
um caráter de subversão enquanto a resistência, no início, consequentemente a
esquerda tivesse uma leitura em que o comportamento não heterossexual fosse
consequentemente mais uma das mazelas da burguesia.

Finalmente sobre essa discussão é possível perceber que o Lampião traz


outras inúmeras notícias que expõem a institucionalização de uma política contra
LGBT’s. A partir daí é necessário que possamos refletir sobre o presente e
analisar este ponto como um processo histórico a fim de perceber se a ou não
uma reformulação ou uma reapresentação deste tipo de política.

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A lgbtfobia nos dias de hoje

É possível perceber que o tema sexualidade e a discussão de gênero


ganharam notoriedade pela luta dos movimentos sociais sejam LGBT’s sejam
feministas. A partir daí a ideia que se tinha era a de um avanço radical nas
relações sociais e também dos grupos para com o Estado. No entanto a atualidade
na qual estamos inseridos é possível perceber uma profunda crise do estado
democrático de direito é necessário que apontemos as discussões sobre como os
503
direitos, a educação, ao trabalho e a socialização dos LGBT’s estão sendo
vivenciadas.

A partir daí é interessante terem em mente que os modos da luta desses


grupos foram diversificados e alcançados a um certo ponto positivamente, mas
a questão que se coloca a partir daí é a relação que se têm entre movimentos
sociais, Estado e o capital. Ao que se sabe na historiografia é possível perceber
que a leitura que se têm e a interpretação dessa absorção do grupo LGBT foi
possibilitada apenas quando o capital enxergou nestes sujeitos uma possibilidade
de um grupo consumidor específico. Há uma inclusão de fato da comunidade ao
meio mais há também consequentemente um mercado em ascensão que se utiliza
das especificidades da cultura deste grupo, mas as questões sociais parecem ter
se reelaborado e configurado de uma maneira tal a dizer que a lgbtfobia social é
institucional.

Não é raro que se percebam em cidades de médio e grande porte a


realocação dos pontos de prostituição e também da visível violência por elas
sofridas. A este ponto os noticiários podem confirmar a tese. São várias as
notícias que relatam a violência policial para com as travestis. E também não é
raro perceber em campanhas eleitorais e em grupos políticos que estabelecem
como metas de governo a extinção de secretarias que são destinadas a pensar a
saúde pública e segurança e escola.

As manchetes são sempre num mesmo sentido, a marginalização LGBT


e a esse caso nos parece que há uma reestruturação da lgbtfobia institucional.
Visto que assim como na ditadura não havia em específico uma discussão
nacional ou como lei a demissão, as batidas policiais e as expulsões de colégios.

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Na ditadura havia uma estrutura de uma ideologia conservadora que ainda parece
ser bem representada nos dias de hoje. Podemos citar a expulsão de um casal gay
que se beijava dentro de uma escola e a diretora nesse caso expôs:
Na conversa que o aluno teve com a diretora, que foi gravada
com um telefone celular, ela afirma que, para continuar na
escola, o jovem precisará passar pelo crivo de um conselho
formado por professores, estudantes com mais de 18 anos e
pais de alunos. De acordo com o que a diretora disse ao
garoto, a situação será avaliada e este conselho irá “julgar” se
ele deve, ou não, permanecer na escola. O veredito só será 504
dado quando o aluno retornar da suspensão, na próxima
quinta-feira, dia 9. (DIÁRIO DA UNIÃO, 2015)

Nesse caso é possível evidenciar a mesma questão do julgamento de


valor presente na política de guerra a subversão proposta na ditadura. E ainda
sobre a violência é possível perceber e ter como evidência ainda que o Brasil é
o país que mata mais travestis no mundo sendo este o grupo de maior risco,
Entre janeiro de 2008 e março de 2014, foram registradas 604
mortes no país, segundo pesquisa da organização não
governamental (ONG) Transgender Europe (TGEU), rede
europeia de organizações que apoiam os direitos da população
transgênero. “Infelizmente, são pouquíssimas [transexuais e
travestis] que conseguem passar dos 35 anos de idade e
envelhecer. Quando não são assassinadas, geralmente
acontece alguma outra fatalidade”, conta Rafaela Damasceno,
transexual que luta pelos direitos dessa população.
(CAZARRÉ, 2015)

Sobre o momento ao qual nos inserimos é necessário então que


possamos perceber que a lgbtfobia é expressa muito mais como um problema
social ao qual o Estado se manifesta de acordo com a própria sociedade. Ainda
as práticas de violência das instituições e os acessos aos direitos foram
possibilitados muito mais pela luta dos movimentos sociais que são cunhados a
partir da década de 1970 do que realmente uma leitura e uma percepção do
Estado como capaz de observar estes sujeitos como capazes e participantes para
além de um mundo específico ao qual o Lampião vem derrubar.

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Conclusão

Por mais polêmico que pareça tentar entender a participação e a


vivência LGBT dentro do estado brasileiro é necessário a revisitação do
surgimento do próprio movimento num sentido de possibilitar percepções mais
elaboradas sobre as problemáticas colocadas ao presente. É necessário pois,
perceber que a institucionalização que evidenciamos tanto no passado quanto no
presente não se dá por meio de leis e, portanto, ela não deve ser entendida da
505
maneira mais denotativa. O caráter institucional da lgbtfobia é dialético porque
passa por um processo histórico e apresenta nos dias atuais reformulações com
as mesmas origens.

Por último, que se perceba que tanto na ditadura quanto no regime ao


qual estamos imersos a lgbtfobia é uma política do Estado, no passado com um
intuito de luta contra a subversão e o seu caráter moralizador, mas também a
institucionalização a partir da omissão de políticas que realmente não possuam
um caráter paliativo. Deste modo é possível perceber que tanto no passado
quanto no presente não há uma lei contra LGBT’s, a grosso modo, e sim um
processo que apresenta a sociedade brasileira como possuidora de um projeto
arcaico para o país. Como um exemplo é possível citar o projeto de lei que coloca
a homofobia como crime, este útlimo tema que já havia sido abordado como
conclusões do relatório da Comissão da Verdade e evidencia um modelo de
sociedade e também o modelo contraditório da relação capital e Estado, em que
o capital insere LGBT’s, mas o Estado continua se omitindo e reproduzindo
marcas que são percebidas desde a ditadura.

REFERÊNCIAS

AUGUSTO,P. Más notícias do Nordeste. Lampião da Esquina. n.2, p.3-4,


jun.1978.

CAZARRÉ M. Com 600 mortes em seis anos, Brasil é o que mais mata travestis
e transexuais. Agência Brasil. 2015. Disponível em
<http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2015-11/com-600-

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mortes-em-seis-anos-brasil-e-o-que-mais-mata-travestis-e>. Acesso em 8 de
agosto de 2016.

COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório da Comissão Nacional da


Verdade. Brasília. v.3, 2014 p.300-311. Disponível em: <
http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/ Volume%202%20-
%20Texto%207.pdf >. Acesso em 10 de agosto de 2016.

DIÁRIO DA UNIÃO. Diretora suspende alunos gays após beijos em escola. 506
Sul21.2015. Disponível em :< http://www.sul21.com.br/jornal/diretora-
suspende-alunos-apos-beijo-gay-em-escola/ >. Acesso em 5 de agosto de 2016.

FACCHINI, R. Movimento homossexual e construção de identidades coletivas


em tempos de AIDS. In: PARKER,R, et al.(org). Construções da sexualidade:
gênero, identidade e comportamento em tempos de AIDS. Rio de Janeiro:
Pallas,2004.

RODRIGUES, J. C. Um Lampião Iluminando Esquinas Escuras da Ditadura. In:


GREEN,J; QUINALHA, R; Org(s). Ditadura e Homossexualidades. São Carlos.
EdUFSCAR. 2014.p.83-124.

SILVA, C. Reinventando o Sonho: História Oral de Vida e Homossexualidade


no Brasil Contemporâneo.1998. 554 f. Dissertação (Mestrado em História
Social) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas. Universidade de
São Paulo. São Paulo. 1998.

TREVISAN. J.S. Demissão, processo, perseguições: mas qual é o crime de


Celso Curi?. Lampião da Esquina. N.0, p.6-8, abr.1978.

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O TEATRO-FÓRUM COMO EXERCÍCIO DE PENSAMENTO


POLÍTICO: UM CAMINHO PARA DEBATER AS RELAÇÕES DE
GÊNERO

Weyber Rodrigues de Souza*

Considerações iniciais
507
Não é de hoje que o Teatro, enquanto área do conhecimento, tem
demonstrado interesses por temas políticos e sociais. Seja na educação, na
dramaturgia, na montagem cênica e/ou performativa, a linguagem teatral é
utilizada para abordar, analisar e criticar diferentes concepções e conceitos
presentes em nossa sociedade. Augusto Boal, autor de grande referência na área
teatral, desenvolveu várias propostas engajadas nessa concepção. Dentre elas o
Teatro-Fórum. Trata-se de uma ação estético-pedagógica capaz de permitir aos
sujeitos envolvidos a possibilidade de refletir sobre as cenas do espetáculo e
intervir de maneira crítica e reflexiva.

A partir desse princípio, surgiu a ideia de se pesquisar e discutir as


possibilidades que o Teatro-Fórum apresentam para promover debates sobre as
relações de gênero, questões estas consideradas importantes para o progresso
científico, cultural, político e econômico da humanidade. A decisão por essa
temática decorreu por conta do grande número de casos de desrespeito e
preconceito de gênero que presenciei e presencio na condição de docente em
uma escola pública da rede estadual de ensino da região metropolitana de
Goiânia-Go. Ainda, estudos recentes realizados sobre o Teatro do Oprimido de
Augusto Boal no curso de graduação em Artes Cênicas, oferecido pela Escola
de Música e Artes Cênicas da UFG, e em um curso de atualização em 'Gênero

*
Acadêmico do 2º período do curso de Educação Física da Universidade Federal de
Goiás/Campus Goiânia (FEFD/UFG); Especialista em Gênero e Diversidade na Escola
pela Universidade Federal de Goiás/Campus Catalão (GDE/UFG-RC); Graduado em
Artes Cênicas pela Universidade Federal de Goiás (EMAC/UFG); Graduado em
Geografia pela Pontifícia Universidade Federal de Goiás (PUC-GO).

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no Ambiente Escolar', oferecido pela Faculdade de Educação da UFMG,


contribuíram consideravelmente para a escolha desse tema.

Ainda sobre isso, a busca pelo entendimento das contribuições do


Teatro escolar para a formação discente em gênero se intensificou com a minha
inserção no curso de Gênero e Diversidade na Escola, promovido pela
UFG/Campus Catalão, momento pelo qual verifiquei tamanha carência da
temática gênero na literatura da pedagogia do Teatro. Vi, nesse percurso, que o
508
Teatro, assim como as demais disciplinas que compõem o currículo escolar,
possui um papel importante no combate à desnaturalização das desigualdades de
gênero quando trabalhadas sob essa ótica. E, sendo assim, deduzi que o Teatro-
Fórum seria um procedimento didático-pedagógico capaz de contribuir
significativamente com o trabalho de professores/as na escola rumo a construção
de conhecimentos valorativos referentes aos conteúdos de gênero.

Portanto, o que proponho, reconhecendo a complexidade dessa questão,


é a aproximação da temática gênero com as atividades teatrais desenvolvidas na
escola. Assumir isso implica em aceitar que o Teatro escolar se caracteriza como
um grande facilitador pedagógico junto aos alunos/as devido a sua capacidade
de reinvenção e teor lúdico presente nas diferentes propostas e atividades de
ensino, assim como demonstram as principais obras da pedagogia do Teatro em
autores como: Japiassu (2001); Reverbel (2009); Cafe (2010); Novelly (2012);
Telles (2013); dentre outros.

No que tange aos procedimentos metodológicos, em primeira instância,


realizei uma pesquisa bibliográfica objetivando a construção de um referencial
teórico consistente sobre gênero e Teatro escolar. Averiguei conceitos,
questionamentos e posicionamentos de diferentes autores em livros, teses,
dissertações e artigos preocupados em discutir o Teatro-Fórum e as questões de
gênero. Apesar da pequena existência de trabalhos que versam sobre esse
assunto, consegui absorver formas de se trabalhar a temática gênero dentro da
proposta de Augusto Boal, fato que me instigou e contribuiu para a escrita do
texto teatral a qual se refere o parágrafo seguinte.

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Enfim, em decorrência desse trajeto, elaborei um texto dramático


sugestivo que poderá ser utilizado por professores/as para o trabalho com gênero
na escola. A intenção, ao disponibilizar o referido texto dramático, não é a de
apresentar uma receita eficaz e apta a solucionar todas as questões envolvendo
gênero, mas sim de apontar caminhos, perspectivas e possibilidades de um
trabalho pedagógico que pode despertar resultados relevantes para a construção
de uma sociedade mais justa e respeitosa.
509

Teatro-Fórum e gênero: uma aproximação possível

Refletir sobre as questões que envolvem as relações de gênero tem se


tornado uma atividade útil e necessária para a construção de uma sociedade mais
justa, a fim de evitar a reprodução de pensamentos machistas e patriarcal tão
presentes em nossa cultura. Por se tratar de um tema abrangente, as relações de
gênero têm ganhado lugar de pesquisa, investigação e discussões em diferentes
áreas do conhecimento.

Dentre essas áreas, por conta de sua capacidade de reinvenção e


interação com os sujeitos, o Teatro oportuniza a discussão de temas sociais e
políticos bastante relevantes para o exercício da cidadania. Trata-se de um fazer
cênico engajado na ruptura de sistemas impostos pelos grupos dominantes de
nossa sociedade. Em meio a isso, Augusto Boal se destaca entre os teóricos do
Teatro preocupados em provocar debates no sentido de construir uma
consciência política e social com os sujeitos envolvidos/as no processo.

Em específico, Boal desenvolveu uma série de procedimentos, hoje


conhecidos mundialmente, para o trabalho de atores/atrizes e professores/as de
Teatro com preocupações voltadas para a libertação, a opressão, a repressão, a
exploração e o questionamento do sistema social vigente. Diante do exposto,
nota-se possibilidades de o Teatro conjurar intervenções cênicas para o combate
à desnaturalização das desigualdades de gênero também na escola.

Pautado nisso, o referente trabalho se debruçou sobre a teoria do Teatro-


Fórum desenvolvida por Augusto Boal, que consiste em um fazer teatral onde a

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relação palco e plateia mudam completamente. Centrado em sua teoria, pode-se


dizer que a principal característica dessa forma de expressão teatral
[...] é a quebra dos limites entre palco e plateia, entre atores e
o público, por meio da possibilidade dos espectadores
entrarem em cena no lugar dos personagens que eles julgam
oprimidos. A estrutura de uma peça de Teatro Fórum
constitui-se na configuração clara de uma situação de
opressão. A apresentação serve para iniciar o debate com a
plateia sobre a situação de opressão apresentada. Os próprios
espectadores, dando sua opinião sobre a situação, entram em
cena para interpretarem o personagem oprimido e agem 510
sugerindo estratégias para a solução dos problemas de
opressão enfrentados (MST, 2005, p.20).

É interessante notar, segundo essas formulações, que o Teatro-Fórum é


um instrumento que permite ao indivíduo vivenciar uma experiência de opressão
e, a partir dela, criar mecanismos para amenizá-la. E, numa perspectiva de
aprofundamento de ideias e análises das possibilidades que o Teatro-Fórum
apresenta para a promoção de diálogos sobre as relações de gênero, debrucei-me
sobre duas das principais obras de Augusto Boal. A primeira intitulada 'A
estética do oprimido', publicada no ano de 2009, e a segunda denominada 'Teatro
do Oprimido e outras poéticas políticas', publicada no ano de 2005.

Tão importante quanto essas ideias são as discussões realizadas por


Grossi (2004) ao analisar o conceito de gênero desenvolvido por várias autoras
da vasta tradição dos estudos de gênero em diferentes correntes de pensamento
humano. Segundo Grossi (2004), as pensadoras de concepções pós-modernas de
gênero são mais abrangentes ao afirmarem que,
[...] o gênero pode ser mutável; e que existem múltiplos
gêneros, e não apenas o masculino e o feminino. Esta corrente
tem estudado particularmente os indivíduos que mudaram de
sexo, os transgêneros, e tem refletido de forma sistemática
sobre a forma como indivíduos não-heterossexuais se vêem
no mundo. Para elas, o fato de haver machos e fêmeas
biológicos é só uma questão de contingência, contingência
que pode ser mudada graças às novas tecnologias médicas que
permitem subverter a ordem "natural" deste corpo. Operações
de mudança de sexo permitem tirar ou pôr seios, fazer ou tirar
um pênis, construir uma vagina, etc. Da mesma forma,
operações plásticas e ingestão de hormônios podem criar
caracteres sexuados, produzir homens e mulheres, mais ou

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menos femininos ou masculinos. (GROSSI, 2004, p. 05, grifo


nosso)

Em concordância com a afirmação realizada pela autora, é válido frisar


que as questões de gênero envolvem não apenas os heterossexuais, mas também
os homossexuais, bissexuais, travestis, transgêneros, transexuais, entre outros.
Trata-se, na verdade, de várias relações humanas. Ainda sobre o assunto, Filho
(2007) em seu texto intitulado "A resposta gay" tece algumas reflexões
511
pertinentes. Amparado em outros pensadores, o referido autor salienta que
[...] "gênero" é uma construção histórica e social que se
configura numa relação com o que, em cada cultura e época
histórica, se define como sendo a identidade sexual, os papéis
sexuais, ideias de masculinidade, feminilidade, etc. (...), e
mais importante ainda como adverte Judith Butler (2003), não
se reduzindo o "gênero" nem o "sexo" a apenas "dois", como
se a "construção" cultural/social se desse sobre o "dado" pré-
existente, "fixo" e "imutável" dos sexos anatômicos
"naturais". Nesses termos, uma definição ainda prisioneira da
ilusão binarista que separa os gêneros humanos em apenas
"dois", a partir de derivá-los do sexo biológico, pela "crença
numa relação entre gênero e sexo, na qual o gênero reflete o
sexo ou é por ele restrito" (FILHO, 2007, p. 03).

No que diz respeito a ideia binária de gênero, é ainda comum encontrar


tal pensamento em nossa sociedade. Infelizmente, é perceptível a forma como
esse conceito se ampara em diferentes posicionamentos. Seja por tradição, por
preceitos religiosos ou por convicções pessoais, elas estabelecem regras e
condutas do que é aceito e considerado "normal". Desse modo, as diferenças
assumidas por um indivíduo ou grupo se tornam fatores de discriminação,
preconceitos e desigualdades. Logo, os que fogem desse padrão social, de forma
geral, são marginalizados e excluídos. Contudo, enquanto instituição que
promove a formação de indivíduos para o exercício da cidadania, a escola precisa
propor atividades didático-pedagógicas que objetivam romper estereótipos e
preconceitos relacionados à temática gênero. Sem ressentimentos, é preciso que
se diga que a escola não pode ser omissa em relação a essas questões, tampouco
ignorá-las, pois,
[...] a implantação de ações com vistas à promoção da
equidade de gênero, identidade e orientação sexual e ao
enfrentamento ao sexismo e à homofobia encontra respaldo

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nas propostas de ações governamentais relativas à educação,


conscientização e mobilização contidas no Programa
Nacional de Direitos Humanos II (de 2002), no Plano
Nacional de Políticas para as Mulheres (2004), no Programa
Brasil sem Homofobia (2004) e no Plano Nacional de
Educação em Direitos Humanos (2006) gestados a partir de
lutas e transformações que receberam maior impulso desde a
promulgação da Constituição Federal de 1988 (BRASIL,
2007, p.22).

Tal descrição contribui para reforçar a necessidade e o amparo legal 512


oferecido à escola para o desenvolvimento de ações pedagógicas preocupadas
em provocar debates que norteiem a formação de uma consciência política e
social no que tange às diferenças de gênero. Sendo assim,
[...] se admitimos que a escola não apenas transmite
conhecimentos, nem mesmo apenas os produz, mas que ela
também fabrica sujeitos, produz identidades étnicas, de
gênero, de classe; se reconhecemos que essas identidades
estão sendo produzidas através de relações de desigualdade;
se admitimos que a escola está intrinsecamente comprometida
com a manutenção de uma sociedade dividida e que faz isso
cotidianamente, com nossa participação ou omissão; se
acreditamos que a prática escolar é historicamente
contingente e que é uma prática política, isto é, que se
transforma e pode ser subvertida; e, por fim, se não nos
sentimos conformes com essas divisões sociais, então,
certamente, encontramos justificativas não apenas para
observar, mas, especialmente, para tentar interferir na
continuidade dessas desigualdades (LOURO: 1997, p. 85,
grifos da autora).

Como se vê, a narrativa de Louro (1997) demonstra preocupações


intrínsecas ao posicionamento político da escola e do professor/a em se tratando
do ensino de gênero. De todo modo, Bortolini et al. (2014) ao discutir sobre a
atuação pedagógica de professores/as no que tange às relações de gênero revela
que
Grande parte das/os educadoras/es reconhecem um
desconforto em si, uma sensação de incapacidade (técnica e
pessoal) em lidar com o tema, mas ao mesmo tempo trazem a
intenção de desconstruir alguns paradigmas próprios que
percebem como preconceituosos e querem buscar novas
formas de compreender e de se relacionar com esses sujeitos,
transformando não só suas relações interpessoais, mas
também sua prática pedagógica (BORTOLINI et al., 2014,
p.08, grifo nosso).

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De fato, ocorre que essa realidade, a do desconforto, faz parte da cultura


docente mesmo daqueles/as que tiveram acesso a uma formação acadêmica em
gênero e diversidade na escola, pois, romper com elementos de uma cultura
padronizada não é tarefa fácil, principalmente porque desde os primeiros anos
de vida somos instruídos a assumir um determinado padrão de gênero,
apreendendo o que é considerado "normal" e "aceito". Em outras palavras,
[...] ainda pequenas, somos ensinadas a assumir as
513
características de gênero, de acordo com determinada
concepção cultural. Bonecas, jogos de chá, estojos de
maquiagem e muitos tons de rosa para as meninas; armas,
carros, bolas, cores fortes e jogos agressivos para os meninos.
Essa insistência na separação de meninos e meninas não está
só na ideia de que homens e mulheres são - e devem ser -
naturalmente diferentes, mas de que confusões nos gêneros
possam provocar confusões na orientação sexual
(BORTOLINI et al, 2014, p.54, grifo nosso).

Como se vê, essa insistência social e, muitas vezes, escolar é fruto da


visão binarista de gênero. Como consequência, entende-se erroneamente que as
atividades desenvolvidas pelos indivíduos nos anos iniciais são responsáveis
pela construção de masculinidades e feminilidades. Louro (1997), já havia
demonstrado preocupações referentes a isso. Segundo a autora,
A separação de meninos e meninas é, então, muitas vezes,
estimulada pelas atividades escolares, que dividem grupos de
estudo ou que propõem competições. Ela também é
provocada, por exemplo, nas brincadeiras que ridicularizam
um garoto, chamando-o de "menininha", ou nas perseguições
de bandos de meninas por bandos de garotos (LOURO: 1997,
p.79).

Essa percepção é de fundamental importância para que se compreenda


que as desigualdades sociais presentes em nossa cultura são frutos de uma
construção histórica pautadas no âmbito biológico e sexual. Portanto, enquanto
docentes que se preocupam com o modo pelo qual as relações de gênero se
estabelecem em nosso meio, devemos desmistificar ideias engajadas em
privilégios e preconceitos, objetivando amenizar os problemas envolvendo
violência de gênero, intolerância, desigualdades e práticas homofóbicas. Sobre
esse último, principalmente, é oportuno dizer que

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Tratamentos preconceituosos, medidas discriminatórias,


ofensas, constrangimentos, ameaças e agressões físicas ou
verbais tem sido uma constante na vida escolar e profissional
de jovens e adultos LGBT. Essas pessoas vêem-se desde cedo
às voltas com uma "pedagogia do insulto", constituída de
piadas, brincadeiras, jogos, apelidos, insinuações, expressões
desqualificantes - poderosos mecanismos de silenciamento e
de dominação simbólica (JUNQUEIRA, 2009, p.17).

Em síntese, tenho convicções de que o Teatro possui um papel


fundamental no processo de conscientização política dos sujeitos envolvidos 514

com essa área do conhecimento humano. Seja na escola, através de suas


atividades pedagógicas na promoção da educação social, artística e estética, seja
no palco, através de procedimentos didáticos de (trans)formação dos sujeitos ou
de encenações de performances cênicas, o Teatro apresenta-se como um
mecanismo de grande relevância na produção do saber e fazer humano, pois:
Quando o indivíduo, como sujeito, participa de atividades
teatrais, adquire a oportunidade de se reconhecer e se
redescobrir dentro de um determinado grupo social, de
maneira responsável, criativa e humana. Nesse contexto, ele
legitima os seus direitos e estabelece relações entre o
individual e o coletivo, aprendendo a ouvir e acolher
pensamentos alheios, bem como a desenvolver suas próprias
opiniões. Tudo isso precisa ocorrer, necessariamente, com o
respeito às diferenças culturais, sociais, sexuais e
idiossincráticas (MAIA, 2010, p.79).

Somado a tudo que foi exposto, o trecho acima, de forma geral, retrata
a visão de que o Teatro-Fórum pode contribuir de forma significativa no
processo de formação do educando/a, sendo capaz de ampliar a percepção de
mundo dos envolvidos/as em relação às questões de gênero. Essa, de maneira
geral, é a leitura que tenho feito acerca do Teatro e de seu posicionamento
político no espaço escolar na (re)construção de conceitos estereotipados sobre
gênero. Nesse sentido, entendendo a multiplicidade da temática em âmbito
escolar, reforço a importância desse saber e fazer humano como facilitador
pedagógico para a discussão das questões que envolvem as relações de gênero.
Enquanto disciplina ou procedimento metodológico, é dever dessa área do saber
promover discussões pertinentes para a construção de conhecimentos valorativos
e, assim, revelar o seu papel intrínseco na formação do cidadão/cidadã.

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Teatro-Fórum na escola: uma proposta metodológica de estudo de gênero

Pensar a escola como um espaço da diversidade e local onde as


manifestações das diferenças se dão com maior intensidade nos coloca diante de
um grande desafio. Digo isso porque, enquanto docente e concluinte do curso de
pós-graduação em Gênero e Diversidade na Escola, ainda sinto certo desconforto
ao trabalhar a referida temática na sala de aula. Enfatizo isso porque entendo que 515
não é tarefa fácil romper com os elementos tradicionais de nossa cultura. Do
mesmo modo, compreendo que não podemos cruzar os braços e fazer vista
grossa diante dos casos absurdos de opressão relacionados à temática gênero no
ambiente escolar.

De fato, desenvolver atividades didático-pedagógicas com vistas para a


formação em gênero e diversidade na escola é dever de professores/as
comprometidos com um processo de ensino-aprendizagem de maior significado
social, no qual os envolvidos/as possam, durante sua trajetória de vida, realizar
escolhas de maneira responsável, respeitosa e apta ao exercício da cidadania.
Amparado nesses preceitos, descreverei nos parágrafos seguintes os passos de
uma proposta de ensino de gênero pautada no Teatro-Fórum de Augusto Boal e
que poderá ser utilizado por professores/as em suas atividades pedagógicas na
escola. Como docente de escola pública, entendo os desafios e limites da
profissão na educação básica. E, por isso, ao descrever a referida proposta
pedagógica, levei em consideração os diversos elementos, facilitadores e
dificultadores, característicos da educação pública no mundo atual.

A princípio, elaborei e apliquei a referida proposta de ensino em turmas


de segundo e terceiro ano do Ensino Médio. A escolha por esse público se deu
pelo fato de ser a faixa estudantil com o qual trabalho há mais de seis anos.
Ainda, em tons de esclarecimento, a produção da peça teatral presente na
proposta de ensino baseou-se em minha trajetória de vida e de uma professora
da escola a qual estou modulado. Eu, homossexual assumido apenas para alguns
amigos, colegas de trabalho e, agora, para os leitores desse artigo, enfrentei e
enfrento muitas dificuldades quanto à aceitação de minha orientação sexual. A

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referida professora e colega de trabalho, residente desde a infância na cidade de


Nova Fátima-Go, lésbica assumida e a pouco tempo casada, foi inspiração para
a criação de uma das personagens principais do texto teatral da proposta em
questão. Fundamentando-se nesses históricos de vida, a trama da peça visa
demonstrar momentos de opressão oriundas da cultura tradicional e binarista de
gênero.

Em se tratando da proposta pedagógica de ensino, enfatizo que o


516
primeiro passo a se fazer consiste em selecionar os alunos/as que desejam
participar da montagem cênica e, em seguida, apresentar-lhes o texto dramático.
Após isso, recomendo ensaiar com os alunos/as as três cenas que constituem a
peça em um momento no contra-turno para evitar o conhecimento antecipado e
fragmentado da proposta pelos membros da comunidade escolar.

Mesmo que o professor/a não tenha o conhecimento das técnicas de


encenação, é válido lembrar que o objetivo maior da atividade não está na
performance cênica. Tampouco no julgamento das técnicas, mas sim em incitar
uma discussão rumo à ampliação do olhar que os alunos/as possuem acerca dos
padrões estabelecidos em nossa sociedade no que tange às questões de gênero.

Em continuidade, após os ensaios, o professor/a poderá apresentar a


peça nas salas de aulas ou propor um momento cultural no pátio da escola com
convite estendido para todas as turmas da unidade escolar. Isso vai depender da
realidade da escola, do tempo disponível, do espaço físico, da organização e
planejamento do professor/a. Ainda, é importante salientar que a terceira cena
da peça não possui um 'final' com soluções prontas e acabadas, justamente para
atender ao conceito de Teatro-Fórum.

Em síntese, assim que a peça chegar no 'final', o narrador deverá entrar


e congelar a cena. A partir daí, a recomendação consiste em solicitar a
participação da plateia/público na solução do problema em questão. Ao fazer
uso desse procedimento, o professor/a notará o surgimento de diferentes posturas
e concepções, algumas mais aceitáveis que outras. E, como prática norteadora, é
interessante o professor/a fazer o colhimento dessas ideias e ir, ao longo da

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atividade, tecendo comentários a fim de mediar a discussão e partir para o


diálogo aberto.

De modo geral, acredito que o texto dramático apresenta elementos


importantes para serem discutidos em sala de aula, como por exemplo: a
padronização de jogos e atividades escolares para meninos e meninas; a visão
errônea de que meninos e meninas devam desenvolver atividades destinadas a
seus sexos para se evitar confusões na orientação sexual; a homofobia e a
517
violência; a heteronormatividade; as desigualdades nas relações de gênero; a
intolerância de gêneros; dentre outros. Enfim, com esses e outros propósitos,
segue abaixo o texto dramático em questão.

***************************************************************

A CULPA É SEMPRE DOS INOCENTES

Personagens

ANINHA

CRISTINHA

JEFER

NARRADOR

PEDRO

TIELLY

PRÓLOGO

A cena se passa em um colégio público de uma cidade do interior de Goiás com


pouco mais de oito mil habitantes. Novos na pequena cidade, Aninha e Jefer,

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personagens principais dessa trama, são impedidos pela escola de realizarem


certas atividades pedagógicas por serem considerados 'diferentes' pela
comunidade escolar.

CORO
518
Entra as personagens batendo palmas, dançando e cantando a paródia da
música 'Xote da alegria' do grupo Falamansa.

Se um dia alguém falou para negar o que eu sou


Não sei se vão me aceitar
Pois não aprenderam o que é respeitar
E se acaso você diz que temos que seguir a matriz
Vê se fala sério
Pra que negar sua alma?

É só vivermos em harmonia
E deixe de lado a tirania
Dance o xote da minoria ha he he... um dê run dê run dê

NARRADOR (em tons de mistério)

Narrador interrompe a apresentação, retirando todos/as da cena e começa a


discursar.

Caras pessoas grandes e caras pessoas pequenas. Esta é uma história que
aconteceu há muitos anos, mas também é uma história que continua acontecendo
todos os dias. A história daqueles que são vítimas e daqueles que são praticantes.
Prestem atenção, bastante atenção, pois você pode ser a próxima vítima ou quem
sabe é o praticante e nem sabe. Essa história aconteceu em uma escola onde nem
todos viviam felizes para sempre. Vou deixar que as personagens contem essa

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surpreendente história. Se ajeitem nas cadeiras... respirem fundo e guardem os


celulares que a cena vai começar.

PRIMEIRA CENA - A TRISTEZA

ANINHA
519
Misericórdia, nem jogar bola com os mano eu posso. Tudo nessa escola só posso
fazer o que esse povo diz. (Imitando alguém) Isso não é coisa de menina... Você
é mocinha e não pode... (Irritada) Háaaaaaaa eu estou cheia disso viu.

JEFER

O que foi Aninha, você está tão pra baixo hoje. Alguém te maltratou?

ANINHA

É isso não Jefer, eu tô cansada das pessoas dessa escola. Nunca me aceitam do
jeito que eu sou. E o pior é que nem me deixam fazer o que eu gosto. Nem jogar
futebol com os meninos eu posso.

JEFER

É isso não Aninha, é que eles não querem que você saia correndo pela quadra da
escola e acabe caindo e se machucando.

ANINHA

Deixa de lero lero Jefer. Se fosse assim, os meninos nem poderiam jogar também
porque iriam se machucar. Eu queria estar na sua pele pra poder jogar e ser feliz
sem ninguém ficar me criticando ou me impedindo de fazer as coisas.

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JEFER

Eu sei disso Aninha. Sou seu amigo e nós sabemos perfeitamente como é difícil
ser diferente num lugar onde nem tudo é aceito. Quem sabe um dia
encontraremos um lugar onde possamos ser aceitos do jeito que somos?

ANINHA
520
Éh, quem sabe?!

SEGUNDA CENA - ARMANDO A BATALHA

CRISTINHA

Ai que raiva daquela Aninha. Ela é toda machona... e ainda se acha a tal. Olhem
lá pra ela gente. É um horror!

PEDRO

Não é só ela não Cristinha. É ela e aquele tal de Jefer. Olha lá, o cara consegue
ser mais mulher que a Aninha... (Fazendo caras e bocas) 'Cê é louco cachoeira'.

TIELLY

Eu vou lá tirar satisfação com eles agora. Eles são a vergonha da nossa escola.
Já estão até falando em mandar eles embora da cidade. Minha prima é filha do
pastor João, o vereador que mora lá perto da sua casa Pedro.

PEDRO

Háaaa o João, eu sei quem é.

TIELLY

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Então, ele falou que esses dois aí são coisas do demônio e que estão dando um
jeito de tirá-los da nossa cidade porque já tem gente até mudando daqui com
medo deles influenciarem outras pessoas.

CRISTINHA

Não, gente, calma. Vamos ficar quietos. O recreio já está acabando e a chata da
coordenadora está nos observando e pode nos dar advertência. Ela já não está 521

muito boa com a gente tem dias... Já sei, vamos deixar para o final da aula. Aí, a
gente cerca eles lá na esquina perto do bar do seu Zé. Aí, aproveitamos e
ensinamos pra eles o que é ser homem e o que é ser mulher.

PEDRO

É isso aí galera. Boto fé que hoje esses dois viram gente ou vão morrer de
apanhar. Eu vou chamar toda a galera lá da minha sala pra ir também.

TIELLY

Há, eu também vou chamar umas pessoas fortinhas para nos ajudar. (Risos de
maldade).

TERCEIRA CENA - O CONFRONTO

NARRADOR

Embaixo de uma árvore, próximo do bar do seu Zé, a turma de Tielly esperam
ansiosos por Aninha e Jefer. Os dois caminham conversando desatentos sem
perceber o que estaria por acontecer. Quando menos esperavam
bummmmmmmm.

TIELLY

Onde os esquisitinhos pensam que vão?

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CRISTINHA

Passando a mão no cabelo de Aninha. Um esquisito de cabelo grande. Passando


a mão no cabelo de Jefer. E uma esquisita de cabelo curto.

PEDRO
522
Com um cassetete na mão. Eu tô achando que eles estão indo encontrar o pai
deles.... o tinhosooo.

ANINHA

O que vocês querem? Nos deixem em paz.

TIELLY

Em paz nós ficaremos quando vocês dois... as aberrações da cidade....


desaparecerem. E nós estamos aqui para dar uma ajudinha nesse processo.

TODOS DO GRUPO DE TIELLY

Risos sarcásticos e maléficos.

JEFER

Mas pra que isso gente? Nunca fizemos nada com vocês, nem mesmo
conversamos. Somos inocentes de qualquer acusação, seja ela qual for.

TIELLY

Inocentes uuuuuuuuuuuu, pois bem, sabiam que A CULPA É SEMPRE DOS


INOCENTES?

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FINALIZAÇÃO/INÍCIO DO DEBATE

O narrador(a)/mediador(a) congela a cena e convida os espectadores para


intervir nela assumindo o papel das personagens oprimidas. A partir daí, o
narrador(a)/mediador(a) segue o trabalho de discussão e orientação à partir da
interação da plateia/público.
523

***************************************************************

Considerações finais

Como se viu no percurso desse trabalho, o Teatro-Fórum apresenta


possibilidades pertinentes para o trabalho pedagógico na escola com vistas ao
desenvolvimento de uma consciência política e social referente às questões de
gênero. É válido que se diga, também, que o papel social dessa área do saber e
fazer humano é tão importante quanto as demais disciplinas que compõem o
currículo escolar ao passo que demonstra sua finalidade intrínseca na formação
do cidadão/cidadã rumo ao exercício da cidadania.

Em síntese, ensinar a pensar sobre gênero utilizando a linguagem teatral


na escola é um dos caminhos, entre tantos outros, que pode trazer resultados
significativos para a construção de uma sociedade mais justa. Como
consequência disso, o simples fato de demonstrar que sempre houve um
determinado modelo, mesmo que de forma (in)visível presente até nos livros
didáticos e na cultura dita como 'universal' a ser seguida, se caracteriza como um
grande avanço no processo de ensino e aprendizagem escolar. Digo isso porque
entendo que esse exercício de reflexão se configura como o primeiro passo para
a construção de conhecimentos valorativos referentes a temática de gênero. E,
sendo assim, atividades pedagógicas consistentes e com propósitos específicos
podem contribuir para desnaturalizar algumas ideias engajadas em preconceitos,
privilégios, diferenças e desigualdades. Tudo isso, claro, objetivando demonstrar

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que as relações de gênero não se reduzem ao biológico, mas exige pensar e


questionar as relações de poder presentes em nossa cultura.

Por fim, tais discussões precisam ser realizadas nos espaços escolares a
fim de promover uma formação para a diversidade. Por envolver assuntos
relacionados às questões de gênero, sexualidade, orientação sexual e relações
étnico-raciais, a temática diversidade é, ainda, considerada tabu por muitos que
compõem a comunidade escolar. Como instituição formadora, é dever da escola
524
e das disciplinas que compõem o seu currículo propor ações que intensifique o
seu debate. Em específico às questões de gênero, a escola precisa criar ações
didático-pedagógicas que contribua para ampliar o olhar dos sujeitos sobre os
padrões estabelecidos para homens, mulheres, gays, lésbicas, bissexuais,
travestis, transexuais, transgêneros, entre outros. Contudo, acredito que é preciso
encarar isso como parte de nossa profissão como docentes e que a ausência dessa
temática no currículo pode trazer consequências danosas à comunidade escolar.

REFERÊNCIA

BOAL, Augusto. A estética do oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

_____________. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro:


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BORTOLINI, Alexandre; MOSTAFA, Maria; COLBERT, Melissa; BICALHO,


Pedro Paulo; POLATO, Roney; PINHEIRO, Thiago Félix. Trabalhando
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FILHO, Alipio de Sousa. A resposta gay. In: JUNIOR, Francisco de Oliveira


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GROSSI, Mirian P. Masculinidades: uma revisão teórica. Antropologia em


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Florianópolis: UFSC, 2004, v.75.

JAPIASSU, Ricardo Ottoni Vaz. Metodologia do ensino de teatro. Campinas: 525


Papirus, 2001.

JUNQUEIRA, R. D. Diversidade sexual na educação: problematizações sobre


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LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. Petrópolis: Rio de


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526
ST 4
Relações de gênero,
interculturalidade e memória

Coordenação
Profa. Dra. Jaqueline Zarbato
(UFMS)

Prof. Dr. Losandro Tedeschi


(UFGD)

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Ed. Anpuh-Rio
A HISTÓRICA INEXPRESSIVA REPRESENTAÇÃO DAS MULHERES
NAS ACADEMIAS CIENTÍFICAS BRASILEIRAS E NO PRÊMIO
NOBEL

Marcel de Almeida Freitas*

Introdução

Ao longo da história o sexo feminino em geral permaneceu alijado do 527

livre pensamento e as mulheres que ousaram transgredir este preconceito, via de


regra, eram condenadas à morte, ao isolamento ou à loucura. Aristóteles, ícone
do saber ocidental, afirmava na Grécia Antiga: “o macho é, por natureza,
superior e a fêmea inferior”. Durante a inquisição medieval, chamadas de
feiticeiras, as mulheres insubmissas eram excluídas da sociedade e, em inúmeros
casos, queimadas vivas. Ao contrário, os homens que levavam a cabo os
primeiros passos da ciência tal qual se conhece hoje eram vistos como sábios,
enquanto que a curiosidade e inteligência na mulher eram vistos como atributos
demoníacos.

Sob o Iluminismo, a Revolução Francesa não cogitava que seus ideais,


igualité, fraternité, liberté, também devessem ser estendidos ao sexo feminino.
No século XIX, o psicólogo positivista Gustave Le Bon afirmou que “nas raças
mais inteligentes, como é o caso dos parisienses, existe um grande número de
mulheres cujo cérebro se aproxima mais em tamanho ao dos gorilas que ao dos
homens”. Para a maioria dos pensadores da época tal inferioridade era óbvia e
incontestável, e ele continuava: “sem dúvida existem algumas mulheres que se
destacam (...), mas são tão excepcionais quanto o aparecimento de qualquer
monstruosidade” (CHARYTON et alii, p. 95).

Atualmente a situação se alterou bastante. Mulheres não enfrentam


mais barreiras legais no acesso a educação, mas isso não significa que não
existam impedimentos na inclusão feminina na educação, especialmente no nível
superior. No campo científico ainda vigora a visão de que as ciências exatas são

*
Sociólogo, doutorando em Educação, FaE, UFMG; marcel.fae.ufmg@gmail

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de domínio masculino e há toda uma hierarquia simbólica e burocrática não


oficial nas relações de poder de gênero dentro dessas áreas. De fato, apesar da
grande porcentagem de mulheres no ensino superior, poucas delas estão nas
engenharias, na Física e na Matemática, por exemplo. Assim, as intelectuais que
ingressam nessas áreas são sujeitadas a visões estereotipadas do que é o
profissional da ciência (MELO e OLIVEIRA, 2006).

Diante disso, neste texto discorre-se sobre o inexpressivo número de 528


mulheres membros das academias científicas no Brasil, desde a fundação dessas
primeiras instituições, e sobre alguns aspectos da Teoria do Reconhecimento de
Axel Honneth pertinente à temática (SAAVEDRA E SOBOTTKA, 2008);
ademais, são trazidos números referentes à participação feminina no prêmio
Nobel que apontam que tal fenômeno de segregação não se restringe ao Brasil.

Mulheres nas academias de ciências

Melo e Casemiro (2003) apresentam sua contribuição para essa


temática fazendo a análise da participação de mulheres em duas importantes
academias científicas nacionais: a Academia Brasileira de Ciência e a Academia
Nacional de Medicina. As autoras salientam que o maior acesso à educação não
necessariamente significa maiores salários e o acesso aos postos de poder para o
sexo feminino. Pelo contrário, apesar de as mulheres chegarem em maior número
ao ensino superior, elas ainda recebem menos pelas mesmas funções, têm que
lidar com uma jornada dupla de trabalho e não estão suficientemente presentes
nos sistemas políticos e sociais de poder científicos.

No entendimento desse problema, as pesquisadoras utilizam o conceito


de gênero. Segundo a ótica das relações de gênero, as diferenças entre homens e
mulheres não são de origem biológica, mas de caráter histórico, social e cultural,
se firmando na desigualdade da distribuição de poder entre ambos. Com isso,
mulheres, em geral, estão ausentes das esferas de tomada de decisão de ordem
coletiva que interferem na dinâmica social. Tais padrões, num movimento de
perpetuação desse modelo patriarcal, reafirmam sistemas históricos que

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determinam papeis assimétricos entre os sexos. Portanto, “gênero não é o mesmo


que sexo. Sexo refere-se a uma condição biológica, diferente de se comportar de
acordo com um modelo restrito de masculinidade ou de feminilidade”
(TEIXEIRA, 2010, p. 85).

O mundo científico e tecnológico não é uma exceção a essa lógica


generificada. A educação só atingiu um caráter universal no século XX, até então
as mulheres eram analfabetas em sua maioria e estavam restritas ao ambiente 529
doméstico. A ciência, por sua vez, alcançou progressos impressionantes nos
últimos duzentos anos, mas esses avanços sempre foram associados a conquistas
masculinas. É sob o peso desse argumento que Melo e Casemiro (2003) analisam
as trajetórias dessas duas academias científicas e estudam a ausência histórica e
persistente de mulheres em sua composição.

É indiscutível que a crescente inclusão de mulheres no mercado de


trabalho foi seguida pela ampliação de sua inserção nas instituições de ensino
superior. Esperar-se-ia que, com a ampla participação numérica da mulher no
ensino superior, essa inclusão se refletisse também nos centros produtores de
ciência e de tecnologia no Brasil (MELO e CASEMIRO, 2003). Contudo, apenas
a inserção macroestrutural das mulheres não vem se mostrando suficiente para
que um maior número delas atinja postos de liderança em pesquisas ou
desempenhem poder nas instituições. Tal sub-representatividade também pode
estar vinculada ao surgimento da autoconfiança no sujeito, que começa nos
primeiros anos de vida, sendo a base sobre a qual se edificam as relações sociais
entre indivíduos adultos, conforme a Teoria do Reconhecimento de Axel
Honneth, que
(...) vai além e sustenta que o nível de reconhecimento do
amor-próprio é o núcleo fundamental de toda a moralidade
(...), portanto, este tipo de reconhecimento é responsável não
só pelo desenvolvimento do auto-respeito, mas também pela
base de autonomia necessária para a participação na vida
pública (SAAVEDRA e SOBOTTKA, 2008, p. 11).

Desta maneira, sob o ponto de vista das identidades subjetivas, o exíguo


número de cientistas mulheres que integram as academias científicas advém de
dois fenômenos psicoculturais interconexos: 1- por um lado elas ainda não são

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vistas, por seus pares masculinos, totalmente como iguais, por mais que os
discursos oficiais e institucionais verbalizem o contrário; 2- correlativamente,
esses e outros fatores fazem com que, no imaginário feminino, inclusive das
cientistas, elas rejeitem se inserir em tais associações porque não se reconhecem
como legítimas representantes de tais instituições, ou então, em decorrência do
modo como foram educadas (menos competitivas, menos ‘agressivas’) não
coadunam com alguns preceitos e valores pertinentes a tais agremiações.
530
Logo, recuperar a memória e a trajetória dos nomes das mulheres nas
ciências brasileiras não só fortalece a identidade feminina, mas também estimula
as novas gerações a se guiar por exemplos positivos (MELO e CASEMIRO,
2003). Isso porque, em geral, quando se pronuncia a palavra cientista, a primeira
representação imagética que vem a mente das pessoas é de um indivíduo do sexo
masculino, idade avançada, branco (europeu ou norte-americano) e com a
aparência transloucada (CHASSOT, 2003). Por esse motivo, abordar a
invisibilidade das mulheres que fizeram carreira dentro delas é uma forma de
combater a discriminação femininas nas ciências.

Academia Nacional de Medicina

A Academia Nacional de Medicina (ANM) foi fundada em 1829, sendo


uma das mais antigas instituições científicas do Brasil. Originalmente Sociedade
de Medicina do Rio de Janeiro, tinha o objetivo de agenciar o aperfeiçoamento
da prática médica no país. Em 1835, a instituição ganha o título de instituição
oficial do Império e se torna a Academia Imperial de Medicina (PAULINO
NETTO et alii, 2004). De início funcionou no histórico edifício em estilo
neoclássico da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, sendo presidida
pelo médico-cirurgião Joaquim Cândido Soares de Meirelles. A primeira sessão
oficial aconteceu em 1830 com a presença do Imperador D. Pedro I, que
compareceria recorrentemente m diversas ocasiões posteriores. Anualmente,
desde 1831, publica a revista Anais da Academia Nacional de Medicina, o
periódico científico mais antigo ainda em atividade no Brasil.

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Foi somente com a proclamação da República, em 1889, que a


instituição ganhou o título de Academia Nacional de Medicina. Esta, de acordo
com o seu estatuto, tem um número fixo de sócios, cem Membros Titulares, e
um número não fixo de Membros Eméritos e de Membros Honorários (nacionais
e estrangeiros). No período da fundação da instituição, mulheres não
frequentavam faculdades no Brasil. Suas pioneiras só foram aceitas nestes
espaços a partir do ano de 1879, sendo as faculdades da Bahia e do Rio de Janeiro
531
as primeiras a admitirem alunas no curso de Medicina (MELO e CASEMIRO,
2003).

A primeira mulher membro da Academia Nacional de Medicina foi a


francesa naturalizada brasileira Maria Josephine Mathilde Durocher (1802-
1893), parteira licenciada pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e a
primeira mulher a assinar textos científicos na área médica no país. Praticou
durante sessenta anos uma ocupação habitualmente atribuída às mulheres, a de
parteira. O ofício era visto somente como uma extensão das funções que as
mulheres já possuíam, como a reprodução e o cuidado com as crianças. A
Medicina oficial via as parteiras como despreparadas e incapazes, mas estas
realizavam a maioria dos partos e ainda eram responsáveis pelos cuidados com
a saúde da mulher.

Durocher era encarada como uma praticante excepcional do seu ofício,


mas, mesmo assim, sua admissão na ANM foi vista com desconfiança por
alguns. Apesar disso, foi nomeada membro adjunto em 1871 e membro titular
em 1885. A cientista Marie Curie (1867-1934) foi a segunda mulher a receber o
título de membro da Academia Brasileira de Medicina. Em sua visita ao Brasil,
em 1926, recebeu também o título na Academia Brasileira de Ciências. A
homenagem era um esforço no caminho de promover a ciência no Brasil. A
terceira mulher eleita foi a médica e deputada federal paulistana Carlota Pereira
de Queiroz (1892-1982).

Estas três pioneiras só tiveram uma sucessora em 1971, a quarta mulher


eleita, Gertrudes Meissner, membro honorário estrangeiro. Depois dela, dez anos
se passaram para que a quinta mulher fosse eleita: a médica carioca Maria

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Brasília Leme Lopes (MELO e CASEMIRO, 2003). Quando as autoras


escreveram o artigo a Academia de Medicina contava com quatro médicas: Léa
Ferreira Camilo-Coura, Anna Lydia Pinho do Amaral, Anadil Vieira Roselli e
Talita Romero Franco. Apenas estas e as cinco já citadas compunham todo o
quadro de mulheres membros dessa Academia até 2003.

Tal constatação confirma que não resolve o problema da discriminação


sexual apenas que, numericamente, mais mulheres ingressem nos cursos 532
superiores para que mais alunas se interessem pela ciência, pois, o caso da
Medicina é típico: elas estão praticamente pari passu com os homens no que
respeita ao alunado de graduação e de bacharéis na área, no entanto, a
representatividade das mulheres nesse campo científico ainda está aquém e as
que se introduzem nessa área científica têm menores oportunidades de acesso.
Talvez uma das explicações para esse fato seja o não reconhecimento (tácito,
implícito e inconsciente) e, no extremo, o preconceito e a discriminação da
sociedade em relação às mulheres no fazer da ciência, mecanismo este que é
mais bem entendido à luz do Interacionismo Simbólico:
A identidade é atribuída pela sociedade, mas é preciso que o
contexto social assegure sua manutenção, à medida que as
outras pessoas estejam dispostas a reconhecer o sujeito como
aquela pessoa que ele está sendo (aquela identidade). Cada
vez que o indivíduo se liga a pessoas que sustentam suas auto-
interpretações, ele confirma sua identidade. (...). É nessa
perspectiva que o papel do preconceito precisa ser analisado
– uma séria conseqüência do preconceito é fazer com que o
indivíduo se torne aquilo que a imagem preconceituosa afirma
que ele é (BARBOSA e BREGUNCI, 1990, p. 56).

Também é interessante destacar que em seus primórdios houve um


negro (seria ‘mulato’ no linguajar do senso comum) entre seus primeiros
presidentes, tendo tido 4 mandados (não sequenciais) entre 1829 e 1848,
enquanto que nenhuma mulher foi presidente desta academia até o presente
momento. Quanto ao número atual de membros do sexo feminino, 5 (cinco),
representam exíguos 5% dos 100 membros titulares e eméritos e são elas: Eliete
Bouskela, Lea Ferreira Camilo Coura, Mônica Roberta Gadelha, Patrícia Rieken
Macedo Rocco, Talita Romero Franco.

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Academia Brasileira de Ciências

A partir dos anos 1990, o Brasil presenciou grande avanço nos seus
índices de escolarização, seja pelos fatores de uma vida escolar mais longa ou
porque houve mais vagas em universidades; as mulheres se viram no cerne desse
progresso de ampliação da escolarização superior. Atualmente elas estão em
maior número nas instituições universitárias e disputam com os homens pelos 533
mesmos postos de trabalho. Contudo, o universo escolar e o profissional ainda
são distintos para ambos os sexos. Há carreiras vistas como tradicionalmente
femininas e há carreiras encaradas como tipicamente masculinas. A composição
da Academia Brasileira de Ciências é característica deste fenômeno de caráter
cultural e também socioeconômico.

A Academia Brasileira de Ciências (ABC) foi fundada em 1919,


também no Rio de Janeiro, com o título original de Sociedade Brasileira de
Ciências. Recebeu em 1921 a sua recente denominação e consta em seu estatuto
o objetivo de “contribuir para o desenvolvimento da Ciência e Tecnologia, da
educação e do bem-estar do país” (MELO e CASEMIRO, 2003, p. 123). A
composição atual da Academia consta com dez seções (áreas): Ciências
Matemáticas, Ciências Físicas, Ciências Químicas, Ciências Biológicas,
Ciências Biomédicas, Ciências da Saúde, Ciências Agrárias, Ciências da
Engenharia e Ciências Humanas. Os membros permanentes são divididos em
três categorias: Titulares, Estrangeiros e Colaboradores. De caráter temporário
existe o posto de Membro Institucional, aberto a pessoas jurídicas.

Quando da publicação do artigo das pesquisadoras (em 2003), dos 571


sócios da ABC, apenas 56 eram mulheres (9,8%). Do número geral de membros,
58% deles são membros titulares, o posto com maior reconhecimento dentro da
instituição. A participação feminina nesses postos mais altos era de apenas 7,8%.
Tal fato demonstra como ainda é pequeno o reconhecimento do papel da mulher
nas áreas de Ciência e de Tecnologia (MELO e CASEMIRO, 2003).

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Comprovando o peso do campo da biomedicina para a ciência nacional,


é observado que a maioria dos acadêmicos e acadêmicas da ABC está
concentrada nessa área. Dentre a parcela feminina da Academia, a superioridade
nas ciências biomédicas é mais elevada. As acadêmicas dessa área
correspondiam, àquela época, a 35,7% do total de membros do sexo feminino, o
que confirma a feminilização crescente dessa área, o mesmo ocorrendo com as
ciências químicas e biológicas. Já nas seções de Ciências de Saúde, Ciências
534
Agrárias e Ciências da Engenharia, a participação feminina era nula em 2003,
sendo que, com exceção do campo da saúde, as três últimas são áreas
tradicionalmente masculinas, possuindo ainda obstáculos simbólicos e
psicológicos para a entrada das mulheres.

Apesar dessa situação, representando alteração mais recente no quadro


da ABC, a partir de 2001 a seção de Ciências Humanas abriu as portas para a
entrada de um maior número de mulheres na Academia. Na seção de Ciências
Humanas a participação das mulheres é mais proporcional, visto que elas
representam um terço do total. Melo E Casemiro (2003) atribuem essa forte
presença ao fato de que o estudo das Humanidades ainda ser visto pela sociedade
como um dos atributos próximos dos atributos considerados femininos: a
docilidade e a interação com o outro.

O avanço também se refletiu no geral quadro de membros da ABC, mas


a participação feminina ainda é mínima. São 1009 homens e só 66 mulheres na
história da Academia Brasileira de Ciências no século XX. Ainda na década de
1990 a taxa de crescimento da participação feminina foi de 106%. Mesmo assim,
a ABC ainda pode ser considerada um espaço masculino, pois, somente 6,5%
dos acadêmicos eram mulheres em 2003 e havia áreas em que não há nenhuma
representante (MELO e CASEMIRO, 2003).

No presente, a distribuição de mulheres nas distintas áreas científicas


da ABC, a partir da que tem menor percentual de mulheres para a que tem mais
é a seguinte, ressaltando que as áreas de Ciências da Terra e Agrárias foram
aglutinadas assim como as áreas de Ciências da Saúde e Biomédicas:

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535

No que tange à história da mulher na Academia, a primeira mulher a


receber um título, dez anos depois da criação da instituição, foi Madame Curie
em 1926. No mesmo ano foi homenageada outra cientista alemã, mas dessa vez
uma que trabalhava no Brasil: a doutora Maria Emilie Snethlage. Naturalista e
diretora do Museu do Pará, seus estudos sobre aves brasileiras prestaram grande
contribuição para a história natural do país. Somente dez anos depois a Academia
elegeu outra mulher, a norte-americana naturalizada brasileira Carlota Joaquina
de Paiva Maury, paleontóloga. Todas as três, no entanto, foram eleitas para um
posto intermediário, o de membro correspondente.

Diante disso, pode-se considerar que, genuinamente, a primeira


brasileira a ser eleita membro da ACB foi a Professora Marília Chaves Peixoto,
como Membro Associado na seção de Ciências Matemáticas em 1951. Em
seguida, na década de 1960, veio a professora da Universidade de São Paulo,
Martha Vannucci, uma zoóloga.

A próxima questão trazida por Melo e Casemiro (2003) é a notável


concentração de acadêmicos eleitos na região Sudeste do Brasil. Sendo uma
instituição nacional, a ABC deveria abranger mais igualmente todo o território
nacional. Não é o que se observa. A distribuição desigual de recursos no sistema
universitário e o consequente desenvolvimento científico e tecnológico que o
seguem revelam um quadro que confirma o padrão geral da distribuição do PIB
nacional. Na região Sudeste trabalha 89% das acadêmicas eleitas. A grande

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maioria delas é docente em universidades públicas, tais como UFRJ (com 15


representantes) e USP (com 11 membros).

O artigo de Melo e Casemiro (2003) ainda analisa estrutura de poder


vigente na ABC. Observa-se que as mulheres têm uma taxa de participação
muito reduzida quando comparada com sua participação nos postos de liderança
dos Grupos de Pesquisa do CNPq. Somente uma mulher participou da direção
da Academia Brasileira de Ciências na sua história, a cientista Johanna 536
Döbereiner. Engenheira agrônoma de origem alemã, a doutora Döbereiner foi
umas das mais importantes cientistas do Brasil, indicada ao prêmio Nobel de
Química em 1997 pelos seus estudos para o desenvolvimento da cultura da soja.

Interessante é constatar que, no imaginário coletivo se atribui, ainda que


indiretamente, a falta de mulheres nas academias científicas à própria mulher,
ou seja, à sua extrema modéstia e/ou baixa autoestima profissionais, processo
que fica evidente quando Melo e Casemiro (2003, p. 121) citam o discurso do
presidente da Academia Nacional de Medicina na posse da doutora Anadil Vieira
Roseli: “Outras colegas existem com méritos para se tornarem acadêmicas. O
que lhes falta é o desejo de que se apresentarem. Que o façam.”

O problema desses argumentos é que quando se assume que a questão


se restringe ao desejo das mulheres, não se considera fatores culturais e
micropolíticos que continuam criando barreiras invisíveis para a participação das
mulheres e que, para destruir essas barreiras, é necessária determinação política
e mudanças na mentalidade social. A ascensão das mulheres nas ciências
médicas é ilustrativa da Teoria do Reconhecimento já aludida, não obstante
ainda existam menos mulheres desenvolvendo pesquisas nesse campo e,
sobretudo, exercendo poder em tal campo se comparadas aos homens.

De fato, em termos numéricos e de conquista de legitimidade, a Teoria


do Reconhecimento explica, em parte, o que se sucedeu nesta área em relação à
diminuição do estigma que cerceia a mulher nas ciências naturais:
Assim que a tradição hierárquica de valoração social,
progressivamente, vai sendo dissolvida, as formas individuais
de desempenho começam a ser reconhecidas. Honneth parte
do princípio de que uma pessoa desenvolve a capacidade de

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sentir-se valorizada somente quando suas capacidades


individuais não são mais avaliadas de forma coletivista
(SAAVEDRA e SOBOTTKA, 2008, p. 13).

Em relação ao Prêmio Nobel, a distribuição por sexo ao longo do tempo


foi a seguinte até os dias de hoje, desconsiderando-se os prêmios relativos à paz
e à literatura, já que não se configuram como campos científicos:

537

Somando-se todos os prêmios Nobel até hoje concebidos, incluindo-se


os quesitos Nobel da Paz e Nobel de Literatura, os números são ainda mais
fortemente desfavoráveis ao sexo feminino, pois dentre um total de 851 prêmios
apenas 44 foram entregues a mulheres, o que perfaz um exíguo total de 5,17%
(CHARYTON et alii, 2011). Um fato interessante é que Marie Curie foi a única
pessoa até hoje a receber prêmios em duas categorias diferente, no caso em
Física e em Química.

Conclusões

É indubitável que a sociedade se modificou, e milhares de mulheres


começaram a ocupar espaços antes monopólios masculinos, como é o caso dos
esportes, da política, das forças armadas, da ciência. No entanto, se hoje já são
vistos muitos casos positivos, proporcionalmente à fatia que representam da
população, a inserção das mulheres nesses campos ainda é injusta. Além disso,
muitas das que enveredam pelo campo científico, para não atrair o assédio sexual
ou para enfrentar o preconceito, abrem mão de sua feminilidade, transformando-

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se num ‘pastiche’ de homem, adotando o que a sociedade estipula como condutas


masculinas (CHASSOT, 2003).

Ademais, ainda persiste na sociedade, desde o ensino fundamental até


o universitário, passando pela mídia, sólidos estereótipos concernentes ao que é
um ‘legítimo’ cientista – homem, branco, com cabelo desgrenhado, impaciente
e com óculos de lentes grossas – ao mesmo tempo em que não são difundidos
exemplos positivos de mulheres que tenham se destacado nas ciências. O 538
estereótipo do sexo feminino como um ser frágil contribui para cercear as
discentes ao campo das humanidades, das artes e, na melhor das hipóteses, nas
ciências naturais, à área da saúde – Enfermagem, Odontologia, Fisioterapia etc.
– visto que é recorrente a ausência de mulheres cientistas dentro da Medicina
(haja vista que seus cursos de graduação apresentam quase paridade entre
homens e mulheres), por exemplo.

Sendo assim, apesar da crescente escolarização das mulheres nas


últimas décadas e do aumento da participação delas no mercado de trabalho,
preconceitos e discriminações – hoje mais simbólicos e culturais que jurídicos
ou burocráticos – advindos da secular cultura patriarcal, ainda desestimulam as
mulheres se inserir nos diferentes campos científicos e, uma vez dentro deles, as
impedem de ascender na carreira tanto quanto os homens. Ao lado da dupla (ou
tripla) jornada de trabalho, dos menores rendimentos por igual função e da sub-
representatividade no sistema político, entre outros fatores, a inexpressiva
participação das mulheres nas ciências naturais é outro indício de que
estereótipos de gênero até o presente atuam fortemente na sociedade.

Mesmo sendo inegável a grande participação das mulheres nas Ciências


Humanas, Sociais e da Saúde é importante o esforço de identificar quem são as
mulheres dos sistemas científicos e tecnológicos: além dos números, é
importante conhecer suas trajetórias acadêmicas e biografias pessoas. Os valores
que apregoam uma ‘natureza feminina’ ligada a características como docilidade
e submissão fortalecem essas barreiras invisíveis que boicotam as formas de
viver das mulheres. Elas recebem salários mais baixos, atuam mais comumente

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em setores de serviços e, na indústria, são mais encontradas nos ramos de


manufatura (LETA, 2003).

Com efeito, o esforço na direção de analisar o fenômeno da baixa


participação das mulheres nas áreas científicas e tecnológicas é um primeiro
passo para incentivar mais mulheres a adotar uma carreira científica e campos
tradicionalmente ocupados por homens. É com essa intenção que é relevante o
estudo da (ainda pequena) participação feminina nas Academias de Medicina e 539
Ciências. Sendo assim, as mulheres, enquanto grupo, só galgarão melhores e
mais postos significativos nas ciências naturais, principalmente nas ciências
exatas e da terra, quando a situação abaixo for mais consolidada e o sexo
feminino for visto não como inferior ou igual, mas como equivalente ao
masculino:
A solidariedade na sociedade moderna está vinculada à
condição de relações sociais simétricas de estima entre
indivíduos autônomos e à possibilidade de os indivíduos
desenvolverem a sua auto-realização (...). Para que os atores
sociais possam desenvolver um auto-relacionamento positivo
e saudável, eles precisam ter a chance simétrica de
desenvolver a sua concepção de boa vida sem sofrerem os
sintomas das patologias oriundas das experiências de
desrespeito (SAAVEDRA e SOBOTTKA, 2008, p. 14).

Relativamente ao Prêmio Nobel, a exígua percentagem de mulheres


agraciadas com esse laurel se coaduna com os parcos índices de representação
feminina nas academias científicas brasileiras, embora esses índices estejam
aumentando lentamente, tanto nacional quanto internacionalmente, o que
demonstra a exigência urgente de políticas públicas em educação voltadas à
equiparação entre os sexos, assim como vem sendo feito no Brasil, por exemplo,
concernente à questão racial com os programas denominados Ações Afirmativas
para a inclusão de mais negros, indígenas e seus descendentes no ensino superior
e nas ciências.

REFERÊNCIAS

CHARYTON, C.; ELLIOTT, J. O.; RAHMAN, M. A. ; WOODARD, J. L.;

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Ed. Anpuh-Rio
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Rio de Janeiro, 27 e 28 de outubro de 2016.

DeDIOS, S. Gender and science: women Nobel laureates. Journal of Creative


Behavior, 45, p. 203-214, 2011.

CHASSOT, A. A ciência é masculina? Porto Alegre: Editora Unisinos, 2003.

GOULART, Í. B.; BREGUNCI, M. G. C. (1990). Interacionismo Simbólico:


uma perspectiva psicossociológica. Revista em Aberto, ano 9, 48, p. 51-60, 1990.

INEP. Trajetória da Mulher na Educação Superior Brasileira - período de 1991


540
a 2004. Brasília: MEC, Governo Federal do Brasil, 2007.

LETA, J. As mulheres na ciência brasileira: crescimento, contrastes e um perfil


de sucesso. Estudos Avançados, v. 17, n. 49, 2003. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010340142003000300016&script=sci_ar
ttext&tlng=en. Acesso em: 10/11/2004.

MELO, H. P.; CASEMIRO, M. C. P. A ciência no feminino: uma análise da


Academia Nacional de Medicina e da Academia brasileira de Ciência. Revista
Rio de Janeiro, 11, 117-133, 2003.

MELO, H. P.; OLIVEIRA, A. B. A produção científica brasileira no feminino.


Cadernos Pagu, 27, p. 301-331, 2006.

PAULINO NETTO, A.; PORTO, J.; SANTOS, O. R. História da Academia


Nacional de Medicina. Acta Medica Misericordiæ, 7(1), p. 7-10, 2004.

SAAVEDRA, G. A.; SOBOTTKA, E. A. Introdução à Teoria do


Reconhecimento de Axel Honneth. Civitas, v. 8, 1, p. 9-18, 2008.

TEIXEIRA, A. B. M. Distinção de Gênero e seus Reflexos na Rotina Escolar de


Docentes e Discentes. In: TEIXEIRA, A. B. M. (org.). Temas Atuais em
Didática. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

TEIXEIRA, Adla B. M.; ABREU, Luana B.; FREITAS, Marcel de A. Estudos


de Caso Mulheres na Educação Superior Brasileira: estudo de caso sobre
trajetórias acadêmicas profissionais em cursos de Física. Relatório Parcial de
Pesquisa. Belo Horizonte: GSS/FAE/UFMG. Agência Financiadora: CNPq,
2012.

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GÊNERO E AÇÕES POLÍTICAS CONSERVADORAS NO BRASIL E


NO ESPÍRITO SANTO: A “IDEOLOGIA DE GÊNERO” EM
QUESTÃO1

Elda Alvarenga*

Erineusa Maria da Silva**

Fábio Luiz Alves de Amorim***


541

O texto apresenta-se como um ensaio bibliográfico. Configura-se como


uma tentativa acadêmica, política, mas também militante de evidenciar um
nefasto movimento em curso (em escala cada vez mais ascendente) no Brasil.
Esse movimento, passa, infeliz e necessariamente, pelos processos educativos.
Nesse sentido, objetiva compreender as ações políticas atuais em torno da
discussão de gênero e diversidade sexual, em especial as tocantes a denominada
“ideologia de gênero”, bem como as tensões e as implicações desse debate para
a compreensão do papel da escola e dos/as professores/as no que se refere às
relações sociais de gênero e à diversidade sexual.

Interessa a esse ensaio problematizar o termo “ideologia de gênero” e


as intencionalidades político-religiosas que recaem sobre o mesmo e
problematizar as teorias curriculares que compreendem a diferença como algo a
ser valorizado, potencializado e não marginalizado, repudiado e extirpado das
escolas. A partir desses pressupostos, retomamos os conceitos de gênero,
diversidade sexual e da diferença social, histórica e academicamente produzido
nos últimos anos e relacionamos ao movimento atual de retrocesso da educação
para a diferença.

Já há algum tempo a nossa práxis político-pedagógica tem como marca

1
Outra versão deste texto foi publicada no Blog Brasil em 5 minutos em 2015.
*
Mestra em educação. Nucaphe/PPGE/UFES. Professora da Faculdade Estácio de Vila
Velha.
**
Mestra em educação, NEPE/PPGE/UFES.
***
Mestre em Educação. ANFOPE/PPGE/UFES. Professor da Faculdade Estácio de
Vitória.

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a valorização de conteúdos e práticas curriculares que evidenciam o direito à


diferença e que explicitam a naturalização de hierarquias e de desigualdades de
classe, de raça/etnia e de gênero. Nossas ações se direcionam por um movimento
de desnaturalização dessas relações que tem sido legitimado socialmente e
também pela escola. Em sentido inverso, e cada vez mais explícitos, vemos
crescer no Brasil alguns movimentos de resistência a essa proposta que começam
a nos inquietar.
542
No curso desse debate social, caiu em nossas mãos, quase que por
acaso, um exemplar da Revista Comunhão (nº 215, de junho de 2015). De pronto
nos deparamos na capa com a manchete da entrevista com o Pastor Presidente
da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, Silas Malafaia: “batalha contra a
ideologia de gênero”. Apesar de dolorida, a leitura nos ajudou a entender, apesar
de não aceitarmos, porque ainda é tão complicado o debate de temas como
gênero e diversidade sexual no Brasil. O diálogo entre essas e algumas outras
matérias jornalísticas produzidas no último período, levou-nos, de forma mais
incisiva, a escrever esse texto. Assim, inicialmente faremos um movimento no
sentido de compreender o cenário atual em que se encontra o debate em torno do
papel da escola no que se refere às relações sociais de gênero e à diversidade
sexual; a seguir buscaremos desmitificar as interpretações que têm sido
veiculadas na mídia em relação às temáticas de gênero e diversidade sexual.

No Brasil, essa discussão ganha volume quando, em 2014, vemos serem


retomadas as forças sociais conservadoras, que se organizaram mais fortemente
contra o que passou a ser chamado de “ideologia de gênero”. Essas forças,
expressas por alas conservadoras católicas e neopentencostais, por meio de seus
líderes religiosos e líderes parlamentares representantes na Câmara e no Senado,
afirmam estar ocorrendo “uma conspiração internacional que quer ‘perverter’ as
crianças, ensiná-las a ser gays e destruir a família dita tradicional” (REIS, 2015,
p. 1) e de que a ideologia de gênero, ao contrário de respeitar o “pressuposto
antropológico de uma visão integral do ser humano, fundamentada nos valores
humanos e éticos, identidade histórica do povo brasileiro [...] vai no caminho
oposto e desconstrói o conceito de família, que tem seu fundamento na união

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estável entre homem e mulher” (CNBB, 2015, p. 1).

Sob essa alegação, pode-se assistir em nível nacional um ataque a


denominada, por essa ala conservadora, “ideologia de gênero” que afirmam se
fazer presente no Plano Nacional de Educação e nos Planos Estaduais e
Municipais de educação. Sob uma estratégia perversa, sorrateiramente,
promoveu-se a troca do termo “igualdade de gênero” por “ideologia de gênero”,
conseguindo adesões de setores mais conservadores da sociedade para a retirada
543
dos termos gênero e sexualidade desses planos de educação. Nessa linha de
atuação, esse setor conseguiu “minar” um importante instrumento orientador da
política educacional do país. O que já se apresentava nos debates provocados
pelo deputado Marco Feliciano (PSC-SP) da comissão de direitos humanos do
senado e, na atualidade da câmara, parece ter ganhado força e avança sobre as
conquistas históricas referentes às questões de gênero e diversidade sexual. Uma
das investidas desse pensamento conservador afetou diretamente a educação
quando na votação do Plano Nacional de Educação em 2014 o plenário aprovou
a retirada do termo gênero de todas as metas ali postas.

Esse movimento de tensão em torno das questões de gênero parece se


apresentar como um fenômeno internacional alavancado principalmente pelas
alas conservadoras de neopentencostais e católicos. Na Itália, o foco foi o
Family Day ocorrido na Praça de São João em Roma, quando pessoas portavam
cartazes com slogans como: "Tirem as mãos dos nossos filhos", "nascemos
homem e mulher", "parem o gênero nas escolas", "o gênero é o esterco do diabo".
Tal situação provocou a filósofa italiana Michela Marzano, professora da
Universidade de Paris V - René Descartes a escrever o artigo2 intitulado “A
cruzada contra o gênero, o fantasma que agita os católicos” que foi publicado no
jornal La Repubblica, em 22 de junho de 2015.

Seguindo semelhante orientação, no Espírito Santo também houve


manifestações por parte da Igreja Católica, representada pelo arcebispo de

2
O artigo foi traduzido por Moisés Sbardelotto e está disponível em:
<http://midiareligiaopolitica.blogspot.com.br/2015/06/grupos-religiosos-
conservadores-reagem.html>. Acesso em 10 jul. 2015.

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Vitória, Dom Luiz Mancilha Vilela, por meio de uma entrevista a um jornal
local. Vilela afirma dentre outras coisas que a inclusão da “ideologia de gênero”
nos planos nacional e estaduais de educação “destrói a família”. Alega também
que nessa lógica, professores e professoras são proibidos de tratarem as crianças
como menino e menina. Essa carta certamente foi um divisor de águas para o
debate que no momento estava em curso na medida em que ganha legitimidade
social pela voz da igreja. Nota-se também que se fizeram presentes diversos
544
líderes de igrejas protestantes. Com e por isso, as plenárias ocorridas na
Assembleia Legislativa e nas Câmaras Municipais de Vereadores da Grande
Vitória para a aprovação dos planos Estadual e Municipais de Educação foram
palco de grande debate em torno da questão e em todas as sessões as votações
realizadas os deputados e vereadores apontaram para a retirada de qualquer
alusão a política de igualdade de gênero dos planos de educação.

Na capital capixaba, mesmo com as inúmeras tentativas de diálogo da


Secretaria Municipal de Educação com a Câmara Municipal, a versão final do
Plano Municipal de Educação foi aprovada desprovida de toda e qualquer
menção a gênero, diversidade e relações etnicorraciais. Após a derrota da
proposta apresentada pelo Conselho Municipal de Educação, que fazia constar
em seu texto as questões de gênero e diversidade sexual, a Secretaria Municipal
de Educação promoveu uma reunião com diversos líderes religiosos e com a
bancada religiosa (assim assumida) da Câmara, para explicitar quais os
parâmetros de debate sobre essas temáticas nas escolas municipais de Vitória.
Assessores/as dos/as vereadores/as presentes nessa reunião afirmaram que, por
um lado, foi explicada a proposta da Secretaria de Educação de manutenção dos
termos gênero e diversidade no plano municipal e, por outro, o que a Câmara
entendia como ideologia de gênero. No entanto, o Plano não foi alterado, ou seja,
tornou-se omisso quanto às relações sociais de gênero, da diversidade sexual e,
inclusive, porque era citado em mesmo texto que as questões de gênero e
diversidade sexual, também as questões etincorraciais foram excluídas. No
município de Serra, Grande Vitória, os vereadores Carlos Augusto Lorenzoni
(PP) e Jorge Luiz da Silva (SDD) chegaram a propor uma Lei Municipal (PL
124/15) proibindo no âmbito do Município, em escolas públicas e particulares,

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“a promoção da diversidade de gênero, disseminar materiais pedagógicos que


promovam igualdade de gênero, orientação sexual e identidade de gênero”
(SERRA, 2015, p. 1).

Semelhante ao ocorrido na Câmara municipal de Vitória, em Cariacica,


Vila Velha e Viana, e muito provavelmente na maioria dos municípios
capixabas3, excluiu-se dos textos dos planos municipais de educação qualquer
alusão aos termos gênero e diversidade sexual. Dessa forma, pode-se afirmar
545
que, lamentavelmente, a difusão equivocada dos pressupostos de gênero e da
diversidade sexual foram fundamentais para essa violação explicita da
autonomia dos sistemas municipais de educação e uma afronta ao papel social
dos professores e das professoras.

Antes mesmo de nos recuperarmos do “golpe” contra o plano estadual


e municipais de educação, fomos surpreendidos com a aprovação do Projeto de
Lei 6853/2013 na Comissão Especial do Estatuto da Família. De autoria do
deputado federal Anderson Ferreira (PR-PE), “institui o Estatuto da Família e
dispõe sobre os direitos da família, e as diretrizes das políticas públicas voltadas
para valorização e apoio à entidade familiar”. Ao limitar os arranjos familiares
aos que são compostos pela união entre homens e mulheres, o Estatuto exclui
cercade 25% de arranjos familiares que fogem ao modelo nuclear de família
(Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais).
Para justificar a relevância do projeto, afirma Ferreira:
O que existe hoje é uma tentativa de imposição de uma
ideologia de gênero, passando a ideia de que a família
tradicional não dá certo, enquanto os outros arranjos
familiares são a melhor alternativa. E não é verdade. A família
tradicional é a base da sociedade e assim continuará sendo. (O
Tempo, 4/10/15)4

Mais uma vez há uma apropriação distorcida do conceito de gênero e


da diversidade para justificar posições reacionárias e excludentes. Percebe-se

3
Estamos ainda em processo de levantamento desses dados.
4
Disponível em: http://www.otempo.com.br/novo-estatuto-exclui-25-das-
fam%C3%ADlias-brasileiras-1.1128840). Acesso em 04/10/15.

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que essas iniciativas ressoam em muitos espaços e tempos e, como não poderia
deixar de ser, resvalam nos processos educativos e no trabalho cotidiano de
professores e professoras. Nesse sentido, recuperar a compreensão que o campo
de estudo de gênero faz a respeito da construção do termo como uma categoria
de análise, torna-se importante para desqualificar o que se denomina como
ideologia de gênero.

A apropriação que fazemos de gênero, alinha-se a enunciação proposta


546
por Scott (1995). Para ela, a preocupação teórica com o gênero como categoria
analítica só emergiu no final do século XX. O termo surgiu num momento de
grande efervescência epistemológica e tomou a forma, em certos casos, da
mudança de um paradigma científico para um paradigma literário entre os/as
cientistas sociais. Gênero faz parte da tentativa empreendida pelas feministas
contemporâneas de reivindicar um novo terreno para explicar as persistentes
desigualdades entre homens e mulheres. Scott (1995) afirma que o termo gênero
começou a ser utilizado pelas feministas como uma maneira de se referir à
organização social da relação entre os sexos. A aparição inicial do termo deu-se
com as feministas inglesas e norte americanas, que desejavam enfatizar o caráter
fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo e o aspecto relacional
das definições normativas da feminilidade. Para essas feministas, as mulheres e
os homens eram definidos reciprocamente e não poderiam compreender
qualquer um dos sexos por meio de um estudo completamente separado.

Referências e pioneiras na promoção do debate em torno do gênero no


Brasil, Faria e Nobre (1995) enfatizam a necessidade de se compreender o
conceito de “gênero” para a desconstrução das desigualdades entre os sexos.
Para elas,
O conceito de gênero procura explicar as relações entre
homens e mulheres; ele surgiu após muitos anos de luta
feminista e de formulação de várias tentativas de explicações
teóricas sobre a opressão das mulheres [...] Esse conceito
coloca claramente o ser mulher e ser homem como uma
construção social a partir do que é estabelecido como
masculino e feminino e dos papéis sociais destinados a cada
um. Por isso gênero é um termo emprestado da gramática, foi
a palavra escolhida para expressar a construção social do
masculino e feminino” (FARIA; NOBRE, 1995, p.29-30).

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As autoras apontam ainda a diferença entre gênero e sexo biológico.


Para elas “sexo é a marca bio-anátomo-fisiológica, a caracterização genital e
natural, constituída a partir da aquisição evolutiva da espécie humana como
animal” (FARIA; NOBRE, 1995, p. 32). Por outro lado, gênero aparece como
uma categoria de análise que coloca o homem e a mulher como seres relacionais
e não em oposição binária. Gênero é visto como um “conceito relacional, ou seja,
547
que vê um em relação ao outro” e busca superar o caráter binário da análise das
relações entre homens e mulheres. Gênero parte do pressuposto que as relações
estabelecidas entre os sexos são relações de poder e de hierarquização dos
homens sobre as mulheres. Nesse sentido, o conceito pretende referir-se ao modo
como as características sexuais são compreendidas e representadas socialmente.

Semelhante ao que fez Joan Scott, Judith Butler historicizando o corpo


e o sexo, avança para pensar que a “natureza biológica” de homens e de mulheres
oferece um campo limitado de problematizações para se pensar as práticas
sociais humanas. Assim, afirma que em nossa sociedade se estabelece uma
“ordem compulsória” que fixa o sexo biológico fora do campo social (portanto
fixa-o nas diferenças biológicas), exigindo uma comunicação total entre um
sexo, um gênero e um desejo que são marcados obrigatoriamente como
heterossexuais. O conceito trazido por Butler desestabiliza a matriz
heterossexual. Essa talvez seja a grande questão contra a qual se colocam os
grupos religiosos: a não aceitação do fato de não haver uma coerência completa
entre o sexo, a identidade de gênero e o desejo; e de haver pessoas que estão
apresentando esse fato como forma de desnaturalizar o padrão heteronormativo.

No que se refere a diversidade sexual o que temos defendido não é o


fim da família nuclear, heteronormativa, mas ampliar o conceito de família e
possibilitar que os seres humanos construam os seus afetos sem as amarras do
Estado. Observa-se nas matérias veiculadas em torno desse debate que esse setor
da sociedade entende a ideologia de gênero como a que determina a ausência do
sexo desde o nascimento até sua decisão sobre por qual deles “optar”: masculino
ou feminino. Equivocam-se ao dizer que queremos definir (ideologicamente) os

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comportamentos sexuais, pois, ao contrário de entender a sexualidade apenas


pelo viés biológico, o que os pressupostos de gênero e da diversidade sexual
questionam é o direito ao exercício de liberdade dos afetos, da sexualidade e do
próprio corpo, ou seja, um direito humano.

Diferente do que vem sendo postulado pelos religiosos de plantão, o


gênero não afirma que os seres humanos são naturalmente iguais, mas que não
devem ser socialmente desiguais. É justamente o inverso. O conceito de gênero
548
se apresenta para denunciar que somos diferentes, não apenas do ponto de vista
biológico, mas fundamentalmente pelas construções sócio-culturais a que
estamos envolvidos em nossas interações. Somos diferentes sim, mas diferença
não deve ser contraposto a desigualdade e sim a homogeneização. Igualdade
deve ser oposta a desigualdade. Nesse sentido, apesar de diferentes, não
podemos transformar essas diferenças em desigualdades e impedir as pessoas de
acessarem direitos sociais a que todo ser humano tem, independente de sua
condição social ou orientação sexual. As conquistas obtidas nos últimos anos
foram conquistas justamente de pessoas que lutaram contra essa ideologia que
pretendia “encaixar” essas diferenças, impedindo que as pessoas que não se
enquadravam pudessem viver suas vidas como um direito social. É preciso
afirmar: o conceito de gênero é contraideológico.

Incomodou-nos, de modo especial nas matérias veiculadas a confusão


que segmentos religiosos fazem com conceitos (gênero, diversidade sexual,
etc.), construídos no último século e que tanto nos ajudam a compreender a vida
humana para além de sua definição biológica. Nos últimos anos, vez por outra,
somos atropelados/as por movimentos reacionários que insistem na manutenção
de uma estrutura hierárquica de sociedade, pautada na moral sexista,
heteronormativa e excludente.

Como nem tudo está perdido, vimos pipocar em todo o país inúmeras
manifestações de repúdio a esse movimento reacionário. Dentre eles podemos
citar, em se tratando de dispositivos legais, a Resolução Nº 12 do Conselho
Nacional de Combate à Discriminação e Promoções dos Direitos de Lésbicas,
Gayz, Travestis e Transexuais – CNCD/LGBT e a Portaria Nº 916 do Ministério

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da Educação. Também vimos movimentos de professores/as reafirmando a


responsabilidade social e científica dos processos educativos na luta contra toda
a forma de discriminação.

A vida na escola nos oferece diversos e diferentes repertórios, por meio


de suas experiências, identidades e culturas próprias. Esse contexto foi se
tornando cada vez mais evidente, principalmente a partir do processo de
democratização das políticas educacionais e com a participação significativa dos
549
movimentos sociais na produção de políticas públicas de educação voltadas para
o gênero e para a diversidade sexual.

As reflexões aqui apresentadas abordam demandas desafiadoras à


educação, logo, aos sujeitos praticantes da escola, em um momento delicado da
política brasileira. O debate acerca das políticas educacionais em curso está
marcado por disputas emblemáticas no campo das ações afirmativas,
especificamente no que diz respeito às questões de gênero e sexualidade. De um
lado o conservadorismo de parte dos legisladores e, de outro, as lutas em prol de
políticas específicas para as ações afirmativas versus as lutas por espaços e
tempos democráticos e plurais.

Nesse contexto, um aspecto a ser problematizado é o debate a respeito


da diferença, pois aparece de forma superficial na medida em que é abordada
como diversidade, o que acreditamos não conseguir abarcar as exigências da
sociedade multicultural, fortalecendo a perspectiva de existência de uma
identidade coletiva única. Essa fragilidade do uso do conceito de diversidade é
traduzida, na fronteira das “[...] disputas internas e externas ao governo pela
definição de projetos educacionais propondo modos distintos de responder às
demandas de movimentos sociais no reconhecimento de suas múltiplas
diversidades” (MOEHLECKE, 2009, p. 484).

Bhabha (1998) nos auxilia a pensar a diferença como forma processual


de enunciação da cultura, a qual se estabelece na tensão dos enunciados e os
repertórios de enunciação, os quais apresentam-se nos mais variados contextos
escolares e educacionais. Percebemos, assim, que a superficialidade com que se
colocam as questões da diferença, reflete o grau de importância e seu caráter de

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“corpo estranho” no elenco principal das áreas de conhecimento, disciplinas,


etapas e modalidades de ensino. Esse papel de coadjuvante da diferença, ou até
de figurante, parece ter uma conotação de que “as questões estão ditas e está
contemplando o que prescreve a legislação”, mas e a realidade do diferente?

A inclusão da temática, por exemplo, da homossexualidade como um


direito é marcada por disputas e resistências não só na produção das políticas
públicas, mas também nos cotidianos escolares. É recorrente o discurso proposto
550
de uma identidade rotulada, nesses processos, as pessoas homossexuais são
tratadas como se fossem iguais e vivessem suas sexualidades da mesma forma.
Essa identificação coletiva da homossexualidade ainda excluída na escola, não
conseguiu ter garantido o seu direito de ser diferente, nem o reconhecimento nas
políticas educacionais devido à construção heteronormativa da sociedade,
atravessada por fatores religiosos e conservadores.

Nessa perspectiva, os usos que se faz, tanto nos discursos, quanto na


legislação do conceito de diversidade, e o costumeiro uso do termo como
sinônimo de diferença, se materializa nos cotidianos escolares. Assim,
consideramos o que nos alerta Macedo (2006) a respeito dos projetos
educacionais multiculturais, advogando por uma política da diferença,
Sustento que, embora eles surjam como resposta ao caráter
multicultural da sociedade, tendem a fixar a diferença
transformando-a em diversidade. Com isso, acabam por não
dar conta de atender aos anseios que se propõem a responder.
Não quero com isso desqualificar soluções multiculturais que
vêm sendo criadas para lidar com propostas discriminatórias.
Entendo, como Spivak (1994), que, embora algumas
categorias que fixam a diferença não se sustentem do ponto
de vista teórico, foram até agora as únicas possibilidades com
as quais pudemos construir políticas antidiscriminação.
(MACEDO, 2006, p. 333).

Essa reflexão relacionada ao que Linhares (2009) aponta a respeito do


tempo que vivemos com suas inseguranças, dúvidas, polêmicas e ambivalências
é um processo que vem crescendo freneticamente, embaralhando as fronteiras
entre acertos e erros, entre relatividades crescentes e dogmatismos sem medida,
o que faz com que conviver seja também confrontar medos e esperanças, não

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podemos deixar de apontar uma quase unanimidade quando se trata de afirmar a


relevância escolar.
[...] ricos e pobres, brancos, negros, indígenas, gays, lésbicas,
homo e heterossexuais, judeus e palestinos, e, todos nós,
mestiços, crianças, adultos e idosos, camponeses e citadinos
demandados por escolas, nelas investindo, por considerá-las
necessárias, indispensáveis mesmo, para alguma
possibilidade de futuro planetário, vital e humano
(LINHARES, 2009, p. 25).
551
Em torno da escola são produzidos desejos, que vem se expandindo,
arraigado no imaginário social e, que vem por isso mesmo, sendo legitimada
para produzir um discurso concordante, que opera na direção de acelerar as ações
imediatistas da escola, atropelando as criações, os entendimentos de outro tipo,
nos desafios deste tempo que nos constitui e que aceita reproduções de modelos.
Dessa forma, as trajetórias escolares, as práticas curriculares e a composição dos
processos diferenciadores das/nas relações dos sujeitos se constituem para além
das normatizações e leis instituídas. Os movimentos curriculares cristalizados e
encenados na escola, com efeito, sempre vigilante, visível e automático do poder,
funcionam como processos disciplinares. Nesse sentido, os cotidianos escolares
configuram-se como um observatório político produtora de corpos dóceis
atravessados por estratégias punitivas e disciplinares, que permite o
conhecimento hierarquizado nas relações contrapostas de sentimentos e desejos
de suas práticas sempre vigiadas e controladas.

Nesse movimento localizado de contradições, formas de ver e enxergar


o outro e a si mesmo, nos efeitos e desdobramentos, nos enfrentamentos audíveis
ou silenciados da vida na escola vemos práticas e discursos preconceituosos que
tentam conter a visibilidade da diferença, operando-se numa rede de poder na
qual aqueles que subvertem esta ordem tornam-se “alvo de um desejo
desenfreado de normalização” (RODRIGUES, DALLAPÍCULA, BARRETO,
2012, p. 157). Nessa ótica disciplinar, com a qual fomos “formados para entrar
na forma” (ANDRADE, 2012, p.61), reside e são modelados os currículos no
tocante à diferença. Há muito para avançarmos a contrapelo das convenções
disciplinadoras corporificadas nos desejos e práticas, muitas vezes (ou quase

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sempre), criminalizadas da vida dos sujeitos nos cotidianos escolares, por meio
de condutas propostas, axiologicamente, oriundas das relações de poder que
determinam os padrões conservadores das relações de gênero em nossa
sociedade. O que ainda se configuram em ações educativas fragmentadas para
“tratar” questões que precisam ser analisadas em sua complexidade e diferença.

As possibilidades de consolidar conceitos como gênero, diversidade


sexual e diferença na definição de políticas públicas para a educação e, logo
552
desestruturar a produção heteronormativa vem, apesar dos percalços e desafios,
fortalecendo-se com o alargamento significativo dos direitos sociais e humanos
e, com destaque à atuação e lutas dos movimentos sociais (feministas e LGBT5).
Porém, com o avanço das forças religiosas e conservadoras, esse processo torna-
se um dos desafios mais difíceis na agenda educacional e política do país.
Seguimos conclamando professores e professoras a continuarem realizando as
discussões de gênero em acordo com os cursos e políticas de gênero que viemos
realizando nos últimos anos e assim avançar na construção de uma sociedade
mais justa e igualitária.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Luma N. Hierarquia, disciplina e panoptismo: uma cartografia do


espaço escolar. In: BARRETO, Maria A. S. C. RODRIGUES, Alexsandro
(Orgs.). Currículos, gêneros e sexualidades: experiências misturadas e
compartilhadas. Vitória-ES, EDUFES, 2012.

BHABHA, H. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

CNCD/LGBT. Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoções


dos Direitos de Lésbicas, Gayz, Travestis e Transexuais. Resolução Nº 12, de 15
de janeiro de 2015, estabelece parâmetros para a garantia de acesso e
permanência de pessoas travestis e transexuais [...].Brasília, 2015

CNBB. Nota da CNBB sobre a inclusão da ideologia de gênero nos Planos de

5
Sigla que designa “Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e
Transgêneros”, grupo que compõe o movimento civil por direitos sociais igualitários.

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Educação. Disponível em: <http://www.cnbb.org.br/imprensa-


1/noticias/16732-cnbb-divulga-nota-sobre-a-inclusao-da-ideologia-de-genero-
nos-planos-de-educacao>. Acesso em 10 jul. 2015.

LINHARES, Célia F. Portinari na escola. Outras pontes e fronteiras para


aprendizagem. In: O Escritor - Revista da UBE – União Brasileira de Escritores
– nº. 121 – Julho de 2009.

MACEDO, Elizabeth. Por uma política da diferença. Cadernos de Pesquisa, v. 553


36, n. 128, maio/ago. 2006.

MALAFAIA, Silas. Eu sou um pastor que luto para praticar a palavra de Deus
[...]. Comunhão. Espírito Santo. p. 12-16, Julh. 2015. Entrevista concedida a
Sânnie Rocha.

MEC. Ministério da Educação. Portaria Nº 916, de 09 de setembro de 2015,


institui Comitê de Gênero, de caráter consultivo, no âmbito do Ministério da
Educação. Brasília, 2015.

MOEHLECKE, Sabrina. As políticas de diversidade na educação no Governo


Lula. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 39, n. 137, p. 461-87, maio/ago. 2009.

O TEMPO. http://www.otempo.com.br/novo-estatuto-exclui-25-das-
fam%C3%ADlias-brasileiras-1.1128840). Acesso em 04/10/15.

REIS, Toni. A “ideologia de gênero”, a equidade e os planos de educação.


Disponível em: <http://www.anped.org.br/news/a-ideologia-de-genero-a-
equidade-e-os-planos-de-educacao>. Acesso em 10 jul. 2015.

RODRIGUES, A.; DALLAPICULA, C.; BARRETO, M. P. S. C. Expressão de


sujeitos de poder nas marcas culturais e nas políticas da vida. In: BARRETO,
Maria A. S. C. RODRIGUES, Alexsandro (Orgs.). Currículos, gêneros e
sexualidades: experiências misturadas e compartilhadas. Vitória-ES, EDUFES,
2012.

SCOTT, Jean. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e


Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 9-17. jul./dez. 1995.

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SERRA. Câmara Municipal de Vereadores. Projeto de Lei PL 124/15. Proíbe


no âmbito do Município da Serra-ES a promoção da diversidade de gênero nas
escolas públicas e particulares. Serra, 2015.

554

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A GUERRA DO CONTESTADO VISTA DE UMA PERSPECTIVA DO


GÊNERO: MEMÓRIA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

Larissa Urquiza Perez de Morais*

Introdução

Cem anos atrás, no sertão do Brasil, uma guerra camponesa chegava ao 555
fim. O ano de 1916 marca a fase final da Guerra Sertaneja do Contestado,
conflito que envolveu os moradores da área contestada pelos Estados de Santa
Catarina e Paraná em um processo que, na época, já durava mais de 60 anos.
Entre o Combate do Irani – considerado o marco inicial da Guerra, em outubro
de 1912 – e a destruição e massacre dos últimos redutos caboclos pelas forças
do Exército, foram quatro anos (1912-1916) de ofensivas e batalhas que matou
milhares de pessoas de ambos os lados da Guerra.

Foi uma luta camponesa pela terra, pela vida, pelo direito de plantar e
colher, pela construção de uma sociedade onde todas as pessoas seriam iguais e
segundo os ensinamentos do Monge João Maria, “quem tem mói, quem não tem
mói também e no fim todos ficarão iguais” 1. As mulheres da Guerra do
Contestado são diversas, são múltiplas. Personalidades e almas consideradas
puras dentro dos redutos caboclos do período conflito, elas alcançaram posições
de liderança que não são observadas em outras disputas pela terra do período.
Papéis femininos foram reconstruídos e realocados dentro da lógica camponesa
do Contestado antes, durante e depois da Guerra, chegando até nós a esperança
de uma sociedade onde se viva no respeito à igualdade e a vida.

*
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPEGEO) na Universidade
Federal do Paraná, sob orientação do Prof. Dr. Adilar Cigolini, vinculada ao NUPOTE
(Núcleo de Estudos em População e Território) da UFPR, Curitiba, Paraná. Email:
lahurquiza@gmail.com.
1
Essa mensagem/preceito figura no imaginário da população do Contestado desde o
período anterior ao início da Guerra. Seria a ideia de uma sociedade igualitária,
alternativa àquela em que se vivia na região, onde a maioria dos caboclos, que viviam
como posseiros, foram expulsos de suas terras pela entrada do imperialismo americano
durante a configuração da recém-criada República do Brasil.

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Ao afirmar isso, colocamos a memória como a principal fonte na


construção de identidades, visto que a “dupla” memória/identidade possuem
uma relação dialética, como afirma o antropólogo Joel Candau 2 pois a memória
é uma instância que nos molda, é também por nós moldada conforme o lugar da
onde estamos falando.

Esse trabalho nasce de uma inquietação em relação às experiências de


mulheres durante a Guerra do Contestado. O silêncio sobre essas mulheres ainda
556
é de se questionar. Por que não falar de Maria Rosa, líder adolescente de
guerreiros caboclos? Por que não falar das habilidades em combate de Chica
Pelega? Por que não questionar esses papéis e os lugares que todas as mulheres
ocuparam dos redutos do Contestado? Até poderíamos questionar e historicizar
esses papéis de gênero em uma Guerra camponesa de grande dimensão como é
o caso do Contestado, porém essa questão ficará para trabalhos futuros.

Desde o ano de 2012 diversos eventos, palestras, lançamentos de livros,


celebrações tem sido organizados com mais frequência nas cidades do
Contestado, a fim de rememorar o centenário da Guerra. Com intensa
participação da população e apoio dos órgãos públicos, esses eventos
aconteceram – e estão acontecendo – por uma necessidade de não se esquecer
do massacre dos caboclos pelas forças do Exército. Para trazer visibilidade à
Guerra do Contestado, que não é um simples conflito entre Paraná e Santa
Cataria pelo território como figura na maioria dos livros didáticos escolares -
isso quando há a menção sobre essa guerra. Esses eventos também trazem em
seu projeto a tentativa de chamar atenção do Estado para a situação das cidades
da região, esquecidas pelos governantes, numa movimentação política intensa
para que o próprio Estado e seu exército reconheçam o massacre camponês 3.

2
CANDAU, Joel. CANDAU, Joel. Memória e Identidade. Trad. FERREIRA, Maria
Letícia. 1º Ed., 3º Reimpressão. São Paulo: Contexto, 2016, p. 16.
3
Até a década de 1950, mais ou menos, os escritos sobre a Guerra eram exclusividade
do Exército, tanto de pessoas que participaram na frente militar quanto de observadores
distantes que analisaram a atuação do Exército na região. Outro ponto importante a ser
destacado é que as bases militares do Exército brasileiro continuam a existir em cidades
que um dia foram redutos caboclos. Essa presença militar pode nos levar a afirmar que
há uma espécie de tentativa de controle social por parte do Estado. Sobre o Exército e a
polícia na Guerra do Contestado, ver: RODRIGUES, Rogério Rosa. Veredas de um

ISBN: 978-85-65957-07-6
Rio de Janeiro
Ed. Anpuh-Rio
Atas do II Encontro Nacional do GT Estudos de Gênero
Rio de Janeiro, 27 e 28 de outubro de 2016.

Não há como pesquisar e escrever sobre a Guerra do Contestado e não


falar sobre as lideranças de mulheres nos redutos caboclos e a presença delas no
campo de batalha, lutando por um ideal comum. Grande parte dos pesquisadores
traz a história de Teodora, Maria Rosa e Chica Pelega como grandes ícones da
Guerra, heroínas para os caboclos e caboclas que habitavam aquelas cidades
santas que eram os redutos. Mas pouco se problematizou essa presença tão
latente na organização.
557
Pouco se tem escrito, por sua vez, sobre a memória dessas mulheres na
contemporaneidade. Como trabalhar algo tão lacunoso e pessoal como a questão
da memória na história? Principalmente se estamos falando de períodos
traumáticos que provocam consequências trágicas ao povo de uma determinada
região.

Para esse trabalho, precisei fazer um recorte no que se refere ao número


de obras analisadas. Escolhi os escritos de Maurício Vinhaz de Queiroz e Paulo
Pinheiro Machado, um na década de 1960 e outro mais recente, dos finais da
década de 1990 e que continua sendo um dos maiores pesquisadores sobre a
Guerra do Contestado, respectivamente. Ambos os autores trabalharam os
aspectos políticos, econômicos, culturais, sem discuti-los separadamente, além
das entrevistas feitas com a população do Contestado e alguns sobreviventes do
período da Guerra. Justamente esses pontos é que motivaram a escolha desses
autores para a presente análise.

É importante ressaltar ainda que a parte desse artigo em que discutirei


a memória das mulheres do Contestado é integrante da monografia de conclusão
de curso intitulada “Caminhando Sobre Uma Cova Comum: Memória da
Mensagem do Monge João Maria na Romaria da Terra em Santa Catarina
(2015)” defendida em dezembro de 2015, no Departamento de História-UFPR.
A parte que nos toca configura o subitem “A Presença das mulheres na Romaria
da Terra: Cantando o Protagonismo Feminino”.

grande sertão: A guerra do contestado e a modernização do exército brasileiro. Tese


de doutorado, IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, 2008.

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Além disso, foi recolhido material como romances referentes as


guerreiras, músicas compostas por pessoas da região do Contestado e
informações sobre grupos de dança de mulheres que tem como referência tanto
Maria Rosa quanto Chica Pelega. Portanto, a metodologia empregada nesse
trabalho é de levantamento inicial de fontes e bibliografia para posterior análise
da memória e das representações dessas mulheres no Contestado hoje. Também
gostaria de destacar que a mulher cabocla é múltipla. No sentido que Ivone
558
Gebara emprega, ela é “afroindiolatina” 4 e
Minha fala é a partir delas e com elas. Uma fala marcada pelo
limite de meus olhos – até onde conseguem ver e de onde
vem, pelo limite de meus pés – por onde andaram, pelo limite
de minha cor e situação, pelo limite de minha interpretação,
isto é, a maneira como explicito esse evento novo que chamo
de ‘o acordar da consciência histórica das mulheres’ do
continente comumente chamado América Latina. 5

A presença da mulher na Guerra do Contestado

Quando nos deparamos com a história e a memória da Guerra do


Contestado, é inevitável o surgimento de nomes emblemáticos que configuram
grandes líderes do período de conflito, tanto anterior como durante. Falamos dos
monges Anástas Marcaff, João Maria de Agostini e José Maria; das meninas e
meninos considerados santos – como veremos adiante, a menina Teodora – que
comandavam espiritualmente os redutos nos primeiros anos dos ajuntamentos
caboclos; Chica Pelega, como a guerreira do reduto de Taquaruçu; Maria Rosa
como a líder espiritual e militar de Caraguatá. Houveram muitos comandantes
de briga, porém esse trabalho pretende focar nesses personagens acima citados,
afim de que possamos entender a inevitabilidade de se falar sobre as mulheres
no Contestado.

Grande parte das pesquisas menciona, descreve, pontua a presença e a


experiência feminina durante da guerra, mas ainda há certo silêncio sobre esse
protagonismo. Talvez pela ausência de fontes escritas e pelos relatos imediatos

4
GEBARA, Ivone. Levanta-te e Anda: Alguns Aspectos da Caminhada da Mulher na
América Latina. São Paulo: Edições Paulinas, 1989, p. 3
5
Ibidem, p. 6

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do pós-guerra do Contestado serem exclusivamente de militares. A história oral


e a memória dos caboclos foram rechaçadas por eles mesmos, na provável
tentativa de esquecimento. Para não reviver os horrores do massacre camponês
e por todo o estigma que foi construído em torno da identidade cabocla quando
foram taxados de fanáticos, bárbaros, jagunços, muitas informações
provavelmente se perderam na roda-viva da história.

Por hora, farei uma breve revisão do que consta na historiografia da


559
Guerra sobre as principais mulheres que participaram, lideraram e lutaram nos
redutos contra as forças do Exército. Como já mencionado na introdução, é a
memória sobre essas figuras que nos interessa para o presente trabalho. Portanto,
a intenção é analisar, ainda que brevemente, o que se foi pesquisado sobre essas
questões e discutir a ausência das mulheres na maioria dos escritos.

Começo com a vivência de uma adolescente na liderança dos caboclos.


Maria Rosa era uma menina de aproximadamente 16 anos, que foi “escolhida”
como líder do reduto de Caraguatá por receber o Monge José Maria em sonhos,
e por conta disso, interpretava a vontade deste para a vida e a organização
cabocla naqueles redutos. Mauricio Vinhas de Queiroz, sociólogo que
entrevistou a população da região do Contestado na década de 1960, descreve
Maria Rosa como
Uma adolescente dos seus quinze anos, loura, cabelos
crespos, pálida, alegre, de extraordinária vivacidade. Sobre o
pai, Elias da Serra, ficou apenas a informação de que era
antigo lavrador pelas redondezas. Maria Rosa não sabia ler
nem escrever, mas falava com desembaraço. Andava amiúde
com um vestido branco, enfeitado de fitas azuis e verdes e de
penas de pássaros, de todos os matizes, em profusão. Era ela
quem nas procissões marchava à frente, carregando uma
grande bandeira com a cruz verde. 6

A história oral e a memória contribuíram para que saibamos da


existência de uma grande guerreira menina no sertão do Brasil. Considerada
santa pelo povo, ela foi a líder espiritual, administrativa e militar dos redutos
caboclos da Guerra até ser substituída pelos “comandantes de briga”. Mesmo

6
QUEIROZ, Mauricio Vinhas de. Messianismo e Conflito Social: a Guerra Sertaneja
do Contestado (1912-1916). Civilização Brasileira, 1966, p. 151.

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assim continuou a exercer o papel de receptora de mensagens do Monge. Era


“aquela que tudo via”.

Paulo Pinheiro Machado, por sua vez, em seu livro “Lideranças do


Contestado”, também realizou entrevistas na região do Contestado, porém mais
recentemente, nos finais da década 1990. Maria Rosa então, segundo o autor, era
uma adolescente que em virtude de sua “pureza” espiritual, recebia o Monge
José Maria em sonhos; era reclusa e vivia para orar. Pela primeira vez, uma
560
pessoa que “conversava” com o Monge e dele recebia instruções de como
organizar a sociedade cabocla dentro das cidades santas e como proceder na
ofensiva e resistência militar, não precisava passar pelas deliberações de um
conselho de homens que antes interpretavam as visões dos meninos e meninas
santos7, como veremos adiante.

Veremos na segunda parte deste artigo a memória sobre Francisca


Roberta – conhecida como Chica Pelega – pois a história dessa mulher não figura
nos livros acadêmicos e pesquisas. O motivo dessa ausência, como apontado na
introdução, se deve ao fato de não existirem fontes escritas sobre ela, por
exemplo. Francisca está muito mais presente no imaginário, nos contos e causos
passados de geração em geração do que na historiografia. Machado menciona a
presença dela na resistência do reduto de Taquaruçu, um dos primeiros a se
formar no Vale do Contestado. Segundo o autor “consta” que Chica “morreu
comandando a defesa da ‘cidade santa’” 8.

Memória das mulheres e de mulheres no Contestado

No dia 13 de setembro de 2015 foi realizada, na cidade de Timbó


Grande – SC, a Romaria da Terra e das Águas, com o tema “Redutos de
Resistência, Esperança e Encantamento da Vida”, em virtude do centenário do
massacre do Contestado. Participando da Romaria da Terra foi possível observar
a presença maciça e predominante das mulheres tanto como romeiras quanto

7
MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do Contestado. Campinas: Editora da
UNICAMP, 2007, p. 222.
8
Ibidem, p. 222

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como líderes dos movimentos religiosos e sociais que integravam a celebração:


agentes históricas da história do tempo presente.

As canções que integram o caderno de cantos do evento também


mostram a representatividade das mulheres caboclas, da mulher brasileira, da
mulher indígena, da mulher negra. As moradoras da região do Contestado eram
descendentes de índias e ex-escravas e construíram a identidade cabocla
justamente a partir do encontro de culturas e etnias. Juntando-se a estas muitas
561
mulheres que se concentraram em várias cidades santas durante a Guerra – nos
redutos – também haviam imigrantes ou descendentes dos europeus que
acabaram se estabelecendo na região.

Sobre todas essas guerreiras do cotidiano que são as moradoras do


Contestado hoje, as líderes de Guerra, líderes religiosas e espirituais da Guerra
Sertaneja exercem influência na construção da identidade contemporânea.
Citando e exaltando as figuras de Teodora, Chica Pelega, Maria Rosa e Nega
Jacinta 9, todas são conhecidas pela história e memória coletiva local como
bravas mulheres que simbolizam a luta por terra e pela vida naquele sertão
esquecido do Estado de Santa Catarina. Na Romaria, elas continuam como parte
crucial e representativa dos rumos que a Guerra tomou.

Outra mulher que não é citada nas músicas e pouco lembrada quando
se trata da memória das participantes da Guerra. É Querubina dos Santos, Dona
Quéqué. Quando da formação do primeiro reduto dos caboclos, o de Taquaruçu,
Querubina era responsável pela mediação entre os homens mais velhos e líderes
do povo e a questão espiritual. De acordo com a crença, o Monge apareceria em
sonhos ou em visões para pessoas de coração puro. Segundo Rivanildo da Silva
Lino
Querubina de França, amiga e seguidora de José Maria, era
uma das autoridades na Irmandade de Taquaruçu. Com a
morte do monge, coube-lhe a tarefa de escolher as videntes

9
TRENTO, A. E.; LUDKA, V. M.; FRAGA, N.; C. Guerreiras Imortais do Contestado:
as que tudo viam e faziam durante a guerra de extermínio. Geographia Opportuno
Tempore, Londrina, v. 1, número especial, p. 272-292, jul./dez. 2014.

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que conversariam com o falecido e trariam suas predições


para os devotos 10.

Essa afirmação nos leva diretamente à outra figura feminina, líder


espiritual dos fiéis do monge, ainda no início dos ajuntamentos caboclos. É a
“virgem Teodora”, na época com 11 anos, que “conversava” com o Monge José
Maria, geralmente se afastando do reduto – em algum campo dentro da mata –,
e depois passava suas ordens e missões aos líderes caboclos, que por sua vez,
562
11
condicionavam as ações do povo na formação da Irmandade Cabocla .
Posteriormente, no ano de 1968 – Teodora sobreviveu à Guerra – a menina do
Contestado
Em depoimento a Maurício Vinhas de Queiroz, Teodora
afirmou que as “visões” que tinha com José Maria não
passavam de invenções de seu avô Eusébio e de outras
lideranças, como forma de dirigir o grupo e legitimar suas
decisões. Independentemente disso, as “visões” de Teodora,
traziam uma ligação com o sagrado, estas “visões”,
juntamente com as relações de compadrio e amizade, foram
responsáveis pelo aumento do reduto de Taquaruçu, suas
“visões” foram importantes para aglutinar pessoas em torno
de uma mesma esperança. 12

Independentemente de Teodora ter afirmado que não recebia visões e


não conversava com o Monge, é importante destacar que ela foi a única
sobrevivente que esteve em meio a um grupo restrito de pessoas que decidia os
rumos da Guerra, as ações bélicas e a vida nos redutos. Tirando o período em
que Maria Rosa esteve no comando total dos caboclos, todas as informações e
decisões passavam por esse “conselho” 13
. A vivência de Teodora na Guerra,
para além dos horrores de ser criança e presenciar um massacre, mostra que a

10
TONON, Eloy. Virgens, videntes, guerreiras. Disponível em:
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/virgens-videntes-guerreiras. Acesso
em: Agosto/2016.
11
AURAS, Marli. Guerra do Contestado: A Organização da Irmandade Cabocla. 2ª
Edição. Florianópolis: Editora da UFSC, 1995.
12
SILVA, Nathalia Ferronato. As “Virgens Messiânicas”: participação e influência
das “Virgens” Teodora e Maria Rosa no Contestado (1912-1916). Revista Santa
Catarina em História – Florianópolis – UFSC, v.1, n.1, 2010, pp. 52-62, p. 57.
13
MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do Contestado. Campinas: Editora da
UNICAMP, 2007, p. 220

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crença em meninos e meninas ia além das relações de poder político que se


desenvolviam no seio da organização.

Sobre essa questão das “virgens”, vale a pena ressaltar o que isso
significava na sociedade cabocla. Segundo Tonon,
Mesmo vivendo sob acentuado domínio patriarcal, muitas
mulheres desempenharam papéis importantes no movimento
do Contestado. A começar pelas “virgens”. O monge José
Maria se fazia acompanhar de um séquito delas para auxiliá-
lo nas rezas, nas pregações e no preparo de chás 563
homeopáticos. As “virgens” eram escolhidas por ele e pelas
lideranças dos Redutos – ou Cidades Santas – entre aquelas
que manifestavam piedade e pureza de alma. Não precisavam
ser virgens no sentido biológico, pois havia entre elas
mulheres casadas. Mas as que mais se destacaram eram
adolescentes. A proximidade com o monge lhes dava
respeitabilidade e poder junto à comunidade. Na ausência do
líder religioso, assumiam o papel de videntes. 14

Foram identificadas no Caderno de Cantos da referida Romaria da


Terra, duas músicas específicas que tratam da história de vida de Chica Pelega e
Maria Rosa e mais três canções religiosas que tratam do papel da mulher na
Igreja e na luta pela terra contemporânea. São essas referências a serem tratadas
nesta parte do trabalho, levando em consideração o protagonismo histórico das
guerreiras da época dos combates e seu paralelo com as guerreiras do Contestado
no presente.

A memória coletiva exalta, por meio das músicas, que o papel da


mulher não era essencialmente aquele ligado à família, ao serviço doméstico e
proteção das crianças, ao auxílio dos homens feridos durante batalhas: muito
pelo contrário, essas mulheres estavam no campo de batalha empunhando facão
e revólver ao lado de outras tantas companheiras. Elas estavam na liderança da
“briga”, pensando táticas de Guerra ao lado dos homens, geralmente levando
consigo as suas crianças, demonstrando o poder de todos os braços unidos na
luta.

14
TONON, Eloy. Virgens, videntes, guerreiras. Disponível em:
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/virgens-videntes-guerreiras. Acesso
em: Agosto/2016.

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De Maria Rosa, líder espiritual e militar do reduto de Caraguatá e de


alguns redutos formados posteriormente, a Romaria da Terra exalta sua
memória. Em composição de Vicente Telles, folclorista, cantor, poeta, guardião
da memória do Contestado na cidade do Irani, a música “Maria Rosa” traz a
resistência e o protagonismo feminino durante os conflitos. Podemos observar a
letra que se segue, exaltando Rosa como “guerrilheira juvenil” e fazendo um
paralelo com Anita Garibaldi, uma das líderes da Revolução Farroupilha, ainda
564
durante o período imperial brasileiro:
Maria Rosa entrou na Guerra/ Na terra do Contestado/
Levando Flores no Cabelo/ Comandou o povo armado/
Levando flores no cabelo/ no vestido e no fuzil/ Maria Rosa
foi mistério da bravura juvenil/ Salve a virgem dessa guerra
Santa/ Em sua História o passado se levanta/ Caraguatá é o
seu reduto/ Arma o povo de facão/ Pra vingar Taquaruçu/ Em
nome de São Sebastião/ A guerrilheira adolescente/
Transformou-se em heroína/ Tal como Anita Garibaldi/
Honrou Santa Catarina 15

Mais uma guerreira cabocla é lembrada no Caderno de Cantos da


Romaria da Terra. Ela é Chica Pelega, que lutou no combate em que as forças
do Exército Brasileiro destruíram o reduto de Taquaruçu, matando em sua
grande maioria mulheres, crianças e idosos, que haviam ficado na localidade
enquanto o outro reduto era construído, visto que as lideranças caboclas já
haviam “descoberto” que seriam atacados 16
. O teatro de mulheres que foi
apresentado na segunda parte da Romaria de setembro teve como tema a música
de Vicente Telles, também presente no Caderno de Cantos:
Quem viu Chica Pelega, viu Chispa de raio clareando no
sertão/ Crente na fala do monge, Chica Pelega bradou, monte
comadre/ Traga o afilhado que o tempo de briga é chegado/
Na cidade santa de Taquaruçu/ Quem viu Chica Pelega, viu
fogo no céu e sangue no chão,/ Crente na fala do monge,
Chica Pelega bradou, monte comadre/ Traga o facão, que é
pra defender nosso chão/ Na cidade santa de Taquaruçu/
Quem viu Chica Pelega, viu rasga mortalha piar no sertão,/
Crente na fala do monge, Chica pelega gemeu, monte
comadre/ Que importa a morte se o amor que vier for mais

15
Caderno de Cantos: Romaria da Terra e das Águas de Santa Catarina. “Maria Rosa”
(Vicente Telles), 2015, p. 45.
16
MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do Contestado. Campinas: Editora da
UNICAMP, 2007, p. 224.

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forte/ Se o amor que vier for mais forte/ Na cidade santa de


Taquaruçu/ Lá vem Chica Pelega, vem feito visage ao luar do
sertão,/ Vem a cavalo no tempo, na voz do vento a bradar,
monte comadre/ São Sebastião vem vindo salvar o sertão/
Vem vindo salvar o sertão/ Na cidade santa de Taquaruçu 17.

Sobre Chica Pelega ainda há dois romances históricos que focam em


contar sua vida e muitos outros que tratam da Guerra do Contestado de uma
perspectiva histórica. Um deles é “Chica Pelega: a guerreira de Taquaruçu”,
565
trazendo a história do início da Guerra, a expulsão dos camponeses de suas terras
pela Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande e a madeireira Lumber. Conta,
porém, a história de Chica Pelega, personagem principal da literatura e memórias
caboclas, mulher e curandeira quando chegou com sua família ao reduto de
Taquaruçu. Chica representa a luta cotidiana das mulheres pois ela estava com o
povo e era o povo. Chica é real. A representatividade dessa experiência feminina
traz às mulheres da região, hoje, o reconhecimento de uma identidade e de uma
luta comum, que não teve medo da briga. Do referido romance, gostaria de
destacar a passagem que, de acordo com minha interpretação da memória de
mulheres do Contestado, expressam de maneira contundente quem foi Chica
Pelega do Taquaruçu:
Chica Pelega, nas horas do seu descanso, cismava. A mágoa,
a profunda indignação levara-a aos campos de batalha.
Nascera para ajuda, para servir, para curar. Jamais para matar.
Era forte e decidida, filha da natureza, irmã da floresta,
cuidava da vida, vivia e deixava viver. Por isso ela ajudava e
curava. Homens e animais. Matar, só por extrema necessidade
de vida. E ela matara soldados. Não eram os soldados em si.
Estava em jogo o Dragão contra São Jorge, não havia escolha.
Chica Pelega era cada manhã escura. Chica esfarrapada.
Chica ninguém. Mas de Chica emanava energia indômita, era
grito de cada manhã, era brado da natureza. Ela é plural, ela
são gotas de injustiças pingando rútilas do firmamento, de
cada vertente do cosmos, de cada ramo da floresta, de cada
braço de rio, impossível fingir ignorá-la.
Ela nascera para amar a vida, nascera no contato direto da
terra e das águas do rio, nascera livre para cuidar livremente
da vida e deixar viver. Para matar não viera ao mundo, e nem
nisso encontrara gosto. Ali estava sua mãe, ao pé de si. Com
uma cara de mil dores e os cabelos de algodão. Só tinham uma
à outra, tiraram-lhes tudo o mais. Tiraram-lhes a alegria e o

17
Caderno de Cantos: Romaria da Terra e das Águas de Santa Catarina. “Chica Pelega”
(Vicente Telles), 2015, p. 46.

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futuro, o sorriso e o pouco de haveres. Aquele pouco


suficiente, nem sendo preciso mais. 18

Esse excerto reforça os papéis de gênero e as relações de poder que


implicam, ao dizer que Chica – e aqui podemos incluir a mulher – é destinada a
“servir”, a “curar”, a “ajudar”. Em períodos críticos, como crises e guerras, à
mulher era relegada a função de cuidar daqueles que estavam no combate corpo-
a-corpo. Mas Francisca Roberta é uma mulher que transgride esses papéis pré-
566
estabelecidos, que sai de um lugar “destinado” a ser seu e invade o lugar do
homem. Essa mulher de 100 anos atrás é a mulher cabocla do Contestado
contemporâneo.

Conclusão

Gostaria de pontuar algumas questões importantes e centrais que foram


discutidas nesse artigo. Primeiramente, o protagonismo feminino na Guerra do
Contestado. Tanto Teodora, a menina santa, quanto Maria Rosa e Chica Pelega
tiveram papéis de destaque no decorrer do conflito, principalmente nos três
primeiros anos da Guerra. Segundo que, essas experiências configuram a
memória da presença feminina nos redutos que por sua vez, é um aspecto na
construção das identidades caboclas.

Ser caboclo é um modo de vida; é continuar lutando todos os dias pela


terra e pelo direito de plantar 19. Pela moradia e na luta pelo reconhecimento do
Estado de que a Guerra do Contestado foi um grande massacre da população
camponesa. Como venha afirmando em todos meus trabalhos e falas, não é
necessário recorrer às estatísticas para entender as consequências dessa guerra.
Basta uma visita às cidades da região em questão e observar a paisagem tanto
urbana quanto rural. Uma matéria realizada pelo jornal Estadão – que faz parte
de uma série de pesquisas e notícias sobre o Contestado realizadas pelo mesmo

18
VASCONCELLOS, A. Sanford de. Chica Pelega. Florianópolis: Insular, 2º ed., 2008,
p. 189.
19
Sobre a vivência cabocla e a história do Contestado ver: TERRA Cabocla. Direção:
Marcia Paraiso e Ralf Tambke. Plural Filmes, 2015, 82 min.

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jornal em virtude do centenário do início da guerra – afirmar que a região deverá


continuar a ser uma “ilha de pobreza no Sul do Brasil. Segundo os autores
Em Timbó Grande, 39% das famílias têm renda per capita de
até meio salário mínimo, segundo dados do Censo 2010. A
média em Santa Catarina é de 13,21%. A desigualdade tem
acompanhado o avanço da indústria de pinus no município.
Desde que surgiram as plantações no território do município,
no começo dos anos 1990, a disparidade entre classes
aumentou. A participação dos 20% mais pobres na renda caiu
de 2% em 1991 para 0,9% em 2000 20.
567

A luta do Contestado não acabou. Ela é de toda uma população


marginalizada que crê no Monge, mesmo decorridos mais de cem anos de sua
passagem pela terra. As mulheres se organizam em centros comunitários de
cultura cabocla como por exemplo a Associação dos Caboclos de Lebon Régis
(SC) e na Pastoral Cabocla, com sede na mesma cidade e a primeira do Brasil.
Para a população, o significado da Pastoral
Segundo Maria Inês Ramos, integrante da Pastoral Cabocla
Diocesana em Caçador, a iniciativa de Lebon Régis melhora
a autoestima da região. “Acho que foi para isso que Deus nos
criou, para sermos felizes e convivermos em comunidade; e a
Pastoral Cabocla vem resgatar isso. O que o caboclo tem de
melhor que é esse jeito simples de viver e compartilhar a
alegria. É muito importante que a Câmara de Caçador
participe para nos ajudar fortalecer a nossa caminhada e a
nossa luta”, completa. 21

Outro exemplo de como a memória das guerreiras do Contestado são os


grupos de dança e teatro nas cidades da região organizados por mulheres (Ver
Anexo 1). Diante de todas essas manifestações e exemplos de memória no
Contestado, afirmo que são todas essas mulheres que mantem viva a história de
uma Guerra camponesa que, é permanentemente resignificada e construtora da
identidade da mulher cabocla.

20
Disponível em: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,contestado-a-regiao-
nordeste-de-santa-catarina,834528. Acesso em: Agosto/2016.
21
Disponível em: http://diocesedecacador.org.br/site/primeira-pastoral-cabocla-do-
brasil-reune-se-em-lebon-regis/. Acesso em: Agosto/2016.

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REFERÊNCIAS

AURAS, Marli. Guerra do Contestado: A Organização da Irmandade Cabocla.


2ª Edição. Florianópolis: Editora da UFSC, 1995.

BRESCIANI, S. NAXARA, M. Memória e ressentimento. Indagações sobre


uma questão sensível. Campinas: UNICAMP, 2005.

CANDAU, Joel. CANDAU, Joel. Memória e Identidade. Trad. FERREIRA,


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Revista Santa Catarina em História, Florianópolis - UFSC, v.1, n.1, 2010.

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jul./dez. 2014

VASCONCELLOS, A. Sanford de. Chica Pelega. Florianópolis: Insular, 2º ed.,


2008.

ANEXOS

Anexo 1: Grupo Teatral das Professoras Municipais de Lebon Régis (SC) apresentando-se na
Semana do Contestado – Santo Antonio do Trombudo, com a música “Chica Pelega”,
composição de Vicente Telles. Jul./2015. Autora: Larissa Urquiza.

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MULHER, INTERCULTURALIDADE E HISTÓRIA:


REPRESENTAÇÃO FEMININA NUMA COMUNIDADE
QUILOMBOLA EM CAMPO GRANDE/MS

Jaqueline Ap. M. Zarbato*

Escrever a história das mulheres? Durante muito tempo foi


uma questão incongruente ou ausente. Voltadas ao silêncio da 570
reprodução materna e doméstica, na sombra da domesticidade
que não merece ser quantificada nem narrada, terão mesmo as
mulheres uma história?
(George Duby e Michelle Perrot)

A narrativa, a mulher, a memória

História da Mulher, negra e alforriada. O questionamento de Duby e


Perrot, impulsionam a problematização deste artigo sobre a história da mulher,
negra, alforriada, liderança quilombola, Eva Maria de Jesus. Isso porque, a
situação que muitas mulheres enfrentaram no período pós escravidão, manteve
o panorama de dificuldades, imposições e desigualdades sociais, os quais
inclusive Eva perpassou em sua trajetória.

Assim, este artigo versa sobre a história dessa mulher, negra e alforriada
que migrou do estado de Góias para Mato Grosso. Temos como objeto de análise
premente as narrativas e memórias sobre a história das mulheres, tendo a ex-
escrava Eva Maria de Jesus como foco central com o surgimento da comunidade,
‘Tia Eva’, fundada por esta mulher como contexto histórico em que se
desenrolaram as histórias e memórias. Desta forma, metodologicamente
dividimos o artigo em subtemas, que versam sobre a narrativa da história dessa
mulher, as representações culturais, bem como da constituição da comunidade
‘Tia Eva’. Segundo Santos, (2010, p 249/250) “foi na fazenda Ariranha, de
propriedade de José Manoel Vilela, que nasceu, no ano de 1848, a escrava Eva

*
Professora Adjunta na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/UFMS e de Pós
Graduação em História na UFMT. Pesquisadora e coordenadora do grupo: ensino de
história, memória e patrimônio. Atua com as áreas de Ensino de história,
interculturalidade e relações de gênero.

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(futura Eva Maia de Jesus – “tia Eva”). Criada, desde cedo, para os afazeres
domésticos, a escrava Eva desempenhou várias funções na casa sede da fazenda.
Já jovem assumiu os serviços na cozinha onde fazia vários doces”.

Ao narrar a história de vida da ex-escrava, Santos, (2010, p 254),


destaca que: ‘nos anos de 1870, aos 22 anos, a escrava Eva deu à luz na fazenda
Ariranha a sua primeira filha chamada Sebastiana. Posteriormente, nasceram
Joana e Lázara. Como afirma Seu Waldemar Bento de Arruda,
571
E caiu banha quente na perna dela, da tia Eva. Então ela ficou
com aquele queimado sem cicatrizar, e ficou com mau cheiro
a perna dela, porque eles eram muito enjoado, então ela ficou
trabalhando fazendo sabão. Aí fizeram um ranchinho para ela
lá no fundo do quintal da casa da fazenda, mas ali mesmo
trabalhava, fazia sabão.

A escrava Eva, almejando a liberdade e o sonho de possuir uma terra


que fosse somente dos negros, começou a ser reconhecida, com o passar dos
anos, como benzedeira, conforme assegura Seu Waldemar:
A tia Eva tinha um dom de benzer, porque o dom quem dá é
Deus, a pessoa já nasce com o dom de alguma coisa, naquele
tempo benziam ventre virado, cobreiro, pasto, roça, aquela
coisa toda, e ela era terrível nisso daí. Muita gente buscava
ela, tinha até branco, o pessoal começou a chamar ela de tia
Eva, era tia Eva pra lá e tia Eva pra cá. (Santo, p, 258)

Assim, pode-se dizer que cotidiano de ser escrava, agregava as funções


do trabalho dentro e fora da casa, pois:
a negra é coisa, pau para toda obra, objeto de compra e venda
em razão de sua condição de escrava. Mas é objeto sexual,
ama de leite, saco de pancada das sinhazinhas, porque além
de escrava é mulher. Evidentemente essa maneira de viver a
chamada ‘condição feminina’ não se dá fora da condição de
classe (...) e mesmo de cor. (GIACOMINI, 1982)

Em 1905, já alforriada, iniciou outra caminhada em sua vida, saindo


dos campos de Góias em direção a Mato Grosso. Do percurso árduo, trazia
consigo a esperança desse novo lugar. Eva, juntamente com suas três filhas e
outras pessoas que a acompanhavam rumaram pelas estradas em meio às
fazendas, trilhando um longo caminho até chegar ao que se conhecia ser a
província do Mato Grosso. Congro (2003, p. 23), observa que “em 1872, a quase

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deserta região meridional da então província de Mato Grosso compreendia,


apenas na vastidão dos seus trezentos mil quilômetros quadrados,
aproximadamente, as vilas de Miranda, [...] e Santana de Paranaíba, além das
povoações de Nioaque e Coxim”.

Neste percurso histórico, ao recontar a trajetória da ex escrava, é


importante fundamentar as representações culturais, as narrativas em torno da
memória da comunidade e da própria ‘Tia Eva’. Isso porque, as lembranças
572
individuais e coletivas das pessoas da comunidade contribuem para reforçar
sentimentos de pertencimento, recusa de determinados conceitos e estereótipos,
demarcando neste espaço de vivência, as fronteiras com outros lugares e sujeitos,
assim como, da manutenção dos discursos e representações sobre Eva, a mulher
negra que fundou a comunidade quilombola.

A viagem até Campo Grande, destino final desse grupo, durou alguns
meses, pois o transporte da comitiva era de carros de boi e no meio do caminho
as pessoas tinham que fazer roças para a alimentação da comitiva e até
arrumavam serviços esporádicos. Segundo Seu Waldemar Bento de Arruda ,“aí
tocaram a carreta, cada um deu uma coisa e eles vieram. Aí veio embora do
Estado de Goiás para cá, os crioulos vieram rosando pastos, amansando boi,
fazendo cerca de arame, as crioulas vieram lavando roupa, e vieram naquela luta
tremenda. (...). Eu sei que eles passaram por Coxim e depois chegaram aqui
(Campo Grande). ( Santos, 2010, p 263)

As possibilidades de se abordar a valorização da mulher, contribui, para


entendermos a construção da comunidade tia Eva. Como aponta Costa (2003, p
195), “os estudos das mulheres, a história social e a dos feminismos,
aproximados, serão, agora, os lugares principais de assentamento do conceito de
gênero”. Entendendo e discutindo a complexidade de “ser homem e ser mulher”.
Logo, no fazer da comunidade estão impressas as ‘marcas’ identitárias de sua
fundadora, em que os elementos culturais, a manutenção do espaço, a
conservação da Igreja, as minúcias do cotidiano mantem-se em torno da
representação da mulher Eva, líder da comunidade. Perpassa-se o olhar do outro,
que vê essa mulher, não só como uma referência, mas como uma ‘voz

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autorizada’, o outro que que traz consigo, as heranças culturais herdadas e,


reforça, na ‘sacralização’ da memória da fundadora, o reconhecimento social e
cultural da comunidade.

A mulher, sua análise, sua trajetória, trazem consigo as dimensões das


relações de saber e poder, que se circunscrevem nas relações que perpassam o
público e o privado. Digo isso, porque as instâncias de análise da mulher no
público, foram relegadas ao silenciamento, mas estão presentes na história
573
brasileira. “Se elas não têm o poder, as mulheres, tem, diz-se, os poderes. No
ocidente contemporâneo, elas investem no privado, no familiar e mesmo no
social, na sociedade civil”. (Perrot, 1988, p 167)

Assim, as representações do feminino também estão muitas vezes


definidas, pelo matriarcado que, está no centro das discussões antropológicas do
século XIX (...) “no que se refere ao poder das mulheres existem vários traços
interessantes, perfeitamente enquadrados nas idéias dominantes do século XIX”.
(Perrot, p 187)

E esse olhar sobre o matriarcado, deixa evidente, os espaços de atuação


de muitas mulheres, principalmente das mulheres das camadas populares, que
tem seu protagonismo ignorado, em que atuações como a formação de grupos
culturais, de poder e liderança que são relativizados nas relações de poder. Na
verdade, essa relação de poder, relaciona-se como um dispositivo, conforme
Foucault (1984, p 100):
(...) o domínio do sujeito um conjunto decididamente
heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações
arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições
filosóficas, morais, filantrópicas (...) o dito e o não dito são
elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode
estabelecer entre esses elementos.

Destacar a trajetória das mulheres é uma forma de reforçar a ideia de


que elas têm uma história, da qual são também sujeitos ativos. A intenção em
fomentar a narrativa de uma mulher como liderança, recupera perspectivas
temporais de convivência comunitária, de espaços de sociabilidades, de laços e
estratégias de sobrevivência. Por isso, talvez seja possível admitir que um

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número enorme de lembranças reapareça porque os outros nos fazem recordá-


las; também se há de convir que, mesmo não estando esses outros materialmente
presentes, se pode falar de memória coletiva quando evocamos um fato que
tivesse um lugar na vida de nosso grupo e que víamos, que vemos ainda agora
no momento em que o recordamos, do ponto de vista desse grupo. [...] É difícil
encontrar lembranças que nos levem a um momento em que nossas sensações
eram apenas reflexos dos objetos exteriores, em que não misturássemos
574
nenhuma das imagens, nenhum dos pensamentos que nos ligavam a outras
pessoas e aos grupos que nos rodeavam.

Não nos lembramos de nossa primeira infância porque nossas


impressões não se ligam a nenhuma base enquanto ainda não nos tornamos um
ser social. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não
a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os
mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e com ela, nossas ideias,
nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o passado, no
presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua
diferença em termos de ponto de vista.

Nesse sentido, remontar as lembranças sobre Eva e as estratégias de


sobrevivência, de manutenção da comunidade remetem a preservação da
memória, não só da comunidade Tia Eva, mas principalmente e
fundamentalmente do papel dessa mulher, como ex-escrava, como liderança e a
sua representação cultural na sociedade sul mato-grossense. Como explica
Giacomini (1988, p 66), “as representações que dificilmente poderiam ser
explicadas historicamente sem que consideremos, “a condição de propriedade
privada da mulher na sociedade patriarcal”. Uma condição que “explicaria a
lógica determinante da opressão específica da escrava”.

Sua história de vida marcada como a história de muitas mulheres do


povo, que como define Perrot (1988, p 187):
outros saberes e poderes, principalmente médicos, religiosos
e mesmo culturais. No entanto, o que importa reencontrar são
as mulheres em ação, inovando em suas práticas, mulheres
dotadas de vida, e não absolutamente como autômatas, mas
criando elas mesmas o movimento da história.

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Segundo informações obtidas no Arquivo Público (2015), Eva


mantinha um trabalho de assistência a doentes e grávidas, nas festas da Igreja,
recebia doações e assim, barracas eram erguidas embaixo das mangueiras e nada
era cobrado, pois havia sido obtido por doações; o excedente era dividido na
comunidade. Reconhecer o contexto de atuação dessa mulher, como ação de
liderança cultural, de manutenção da cultura negra, e de construir a comunidade
575
nos permite analisar a importância de Eva na historicidade da comunidade negra
quilombola. As diferentes narrativas dos descendentes de ex-escravos, pontuam
a trajetória e a liderança de Eva, pois segundo Santos ( 2010, p 265)
a tia Eva foi idealizada como uma liderança religiosa. Os
sacrifícios vividos por tia Eva no cativeiro, as promessas que
fez para São Benedito e o seu “dom” de benzer e curar
doenças, formaram uma imagem de tia Eva ligada
diretamente ao campo do sagrado. Como que revivendo o
mito judaico-cristão da terra prometida, tia Eva pediu a São
Benedito uma terra onde os negros poderiam viver em
liberdade sem apanhar – “a terra prometida”. Posteriormente,
iniciou-se um movimento messiânico, tia Eva, com a imagem
de São Benedito, guiou seu povo oprimido em direção à essa
terra. E por fim, tia Eva e Adão (Adão e Eva), juntamente com
seu povo, após os sofrimentos impostos pelo trajeto,
chegaram ao paraíso, a terra sem sofrimento, um espaço
destinado por Deus para a construção do “projeto camponês”.

Percebe-se a simbiose entre a história da comunidade, a narrativa sobre


Eva e a manutenção desse lugar de memória. Isso porque, reconhecer que este
lugar de memória como necessários e contingentes que reunem corpo e alma;
ligados ao passado, ao presente e ao futuro; próximos, ao mesmo tempo em que
distantes; assumindo tanto formas sociais, quanto formas textuais (por exemplo,
nas etnografias e nos ensaios em que foram representados) fazem parte da
realidade étnica da cultura analisada. Desta maneira, os registros dessas
memórias como indícios do passado nos remetem às discussões sobre os
documentos e os monumentos da história, como algo que é produzido, através
do trabalho dos(as) historiadores(as), de modo que “esses materiais da memória
podem apresentar-se sob duas formas: os monumentos, herança do passado, e os
documentos, escolha do historiador” (Le Goff, 2003, p. 526)

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Os estudos sobre as relações de gênero encaminham os primeiros


passos para “sensibilizar” as pessoas envolvidas no contexto cultural e local,
problematizando o padrão de masculinidade e feminilidade, que perpassa os
engendramentos familiares, com posturas que silenciam a pluralidade cultural.
Analisando a relação feminino-masculino, as escolhas, os símbolos e ícones que
envolvem o imaginário sobre, “Tia Eva”, principalmente como impulsionador
de compreensão da diversidade de gênero, como performances culturais que
576
coexistem em diferentes espaços e são protagonizadas por diferentes pessoas,
buscou-se trabalhar com elementos da produção e reprodução deste contexto. No
processo de análise sobre a situação da mulher brasileira, a situação, em
especifico da mulher negra apresentam concepções relacionadas ao período da
escravidão, e assim, apontar a história e cultura projetada a partir de uma mulher
negra, ex-escrava nos remete a novos percursos analíticos sobre que memória
queremos enaltecer. A consciência de que a identidade de gênero não se
desdobra naturalmente em solidariedade racial intragênero conduziu as mulheres
negras a enfrentar, no interior do próprio movimento feminista, as contradições
e as desigualdades que o racismo e a discriminação racial produzem entre as
mulheres, particularmente entre negras e brancas no Brasil [...] é sobejamente
conhecido a distância que separa os negros e os brancos no país no que diz
respeito à posição ocupacional. O movimento de mulheres negras vem pondo
em relevo essa distância, que assume proporções ainda maiores quando o tópico
de gênero e raça é levado em consideração (Carneiro, 2003, p. 120).

A concepção em examinar as relações de gênero, contextualmente e de


considerá-lo um fenômeno histórico se dá porque, “ na historia não é mais a
respeito do que aconteceu a homens e mulheres e como eles reagiram a isso, mas
sim a respeito de como os significados subjetivos e coletivos de homens e
mulheres, como categorias de identidades foram construídos”. Scott (1994, p.
19)

Ainda, seguindo esta concepção “historicizar gênero, enfatizar os


significados variáveis e contraditórios atribuídos à diferença sexual, os processos
políticos através dos quais esses significados são construídos, a instabilidade e

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maleabilidade das categorias “mulheres” e “homens”, e os modos pelos quais


essas categorias se articulam em termos da outra, embora de maneira não
consistente ou da mesma maneira em cada momento, esse seria o
encaminhamento as abordagens históricas. Scott (1994, p 25/26).

A fundamentação do gênero faz-se essencial para ‘desnaturalizar’


práticas, e na comunidade “Tia Eva”, percebe-se algumas determinações nas
relações cotidianas, impetradas e justificadas pelo campo cultural. Essa forma
577
diferenciada de relacionar o saber, poder e representação feminina e de transmitir
a cultura e, com ela, modelos sociais de comportamento e valores morais,
permite romper com os modelos consolidados do que é ser mulher, negra no
Brasil. Michele Perrot (2006, p 212), ao abordar as práticas femininas destaca
que:
As mulheres não são passivas nem submissas. A miséria, a
opressão, a dominação, por reais que sejam, não bastam para
contar sua história. Elas estão presentes aqui e além. Elas são
diferentes. Elas se afirmam por outras palavras, outros gestos.
Na cidade, na própria fábrica, elas têm outras práticas
cotidianas, formas concretas de resistência – à hierarquia, à
disciplina – que derrotam a racionalidade do poder,
enxertadas sobre uso próprio do tempo e do espaço. Elas
traçam um caminho que é preciso reencontrar. Uma história
outra. Uma outra história.

Desta maneira, mais do que analisar, é preciso problematizar o natural,


desconstruir os estereótipos, fundamentar novas relações e pertencimentos faz
parte do universo de ações que se apresentam na escola foi um dos desafios
enfrentados em nossa pesquisa. E que inserem nas mentes e corpos das pessoas,
significados para suas trajetórias, num processo histórico de reformulação de
conceitos e pré-conceitos. Ainda trilhando as análises sobre os espaços de
atuação da mulher, do enfoque sobre o gênero, Marina Maluf em sua obra Ruídos
da memória diz que:
a reconstrução histórica das relações de gênero recupera a
importância dos papéis femininos como novos e diferenciados
objetos de conhecimento que necessariamente interferem na
construção de um saber histórico. O confronto entre a história
das mulheres e a história dominante, entre temporalidades,
conteúdos e sujeitos diferenciados, apresenta uma
privilegiada oportunidade para o historiador repensar os

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parâmetros que informam a interpretação histórica. (Maluf,


1995, p.19)

O processo de construção das narrativas e memórias favorece as


concepções de identificação com o grupo cultural, mas também das produções
de discursos que superam as relações de poder, as narrativas podem ser
concebidas como reveladoras de histórias de outros, mas também como
produtoras de histórias sobre si mesmos e sobrem o que acontece à sua volta –
578
“nessa ótica, as narrativas produzem sentidos e ordem às coisas do mundo”,
Larrosa (1996, p.462).

A memória intersubjetiva, partilhada pela oralidade feminina, constrói-


se continuamente uma comunidade de narradoras que buscam uma comunidade
de escutadores, pelo desejo de torná-los eco daquilo que elas se dispuseram a
contar e que durante muito tempo permaneceu vivo na memória familiar ou nas
rodas de amizade que mantiveram. Como afirmou Michael Pollak (1989, p 04):
O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao
esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil
impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo
tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças
dissidentes nas redes familiares e de amizades, esperando a
hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e
ideológicas.

Recuperar elementos da formação da comunidade, da perseverança e


insistência em liderar de Eva Maria de Jesus, nos remete a restituição que a
memória faz, a qual diz respeito às situações e relações, necessidades e interesses
experimentados. “As imagens reconstituídas pela memória são pontos de vista
socialmente situados sobre o passado. É o exercício que determinadas práticas
sociais, e o conceito que a sociedade elabora sobre as práticas, que produz
testemunhos de homens e mulheres sobre o passado” (Maluf, 1985, p 85).

A fluidez da memória, das representações culturais, bem como das


minúcias do cotidiano, possibilita diferentes narrativas que se circunscrevem em
tempo históricos diferenciados, seja nas reconstruções simbólicas de uma
comunidade que tem sua importância histórica devido a figura feminina, seja
pelos diferentes depoimentos que remetem às experiências diárias, a

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acontecimentos individualizados, que carregam consigo outras representações.


É importante perceber que mesmo após a morte de Eva, a liderança na
comunidade, continuo sendo feminina, ficando com sua filha Sebastiana.
Segundo o relato do Sr Sérgio Antônio da Silva (2015, p 03):
No dia 11 de novembro de 1926, com 78 anos de idade,
faleceu em São Benedito, a ex-escrava Eva Maria de Jesus,
tia Eva. “Ninguém sabia falar de que ela morreu. Foi uma
doença desconhecida. Ela sabia que iria morrer. Minha mãe
contava que ela dizia isso. (...). Mamãe falava que quando ela 579
faleceu em 1926 a cidade toda parou e pessoas de destaque a
reverenciaram

Pode-se dizer que a história e a própria concepção que as pessoas da


comunidade tem sobre Eva Maria de Jesus, a caracterizam como uma ‘mulher-
farol’, que aglutinou em torno de seus ideais, um papel de liderança, em meio a
discursos e práticas masculinas. Assim, as mulheres, como exemplo a própria
Eva, representam mais aos devaneios dos discursos e não a ação de suas práticas.
Pois o foco se detém pouco sobre as mulheres singulares, desprovidas de
existência e mais sobre “a mulher” entidade coletiva e abstrata à qual se atribuem
as características habituais. Sobre elas não há uma verdadeira pesquisa, apenas
a constatação de seu eventual deslocamento para fora dos territórios que lhe
foram reservados. (Perrot, 1989, p.10).

Assim, analisando as estratégias cotidianas do processo de socialização


das mulheres negras, percebe-se que localizar suas estratégias e espaços de
confronto e atuação, permite localizar as vozes femininas do passado, com suas
heranças culturais, as experiências da escravidão, das redes de solidariedade.
Beatriz Nascimento, (2008, p 128) relata que:
A mulher negra na sua luta diária durante e após a escravidão
no Brasil, foi contemplada como mão de obra, na maioria das
vezes não qualificada. Num país em que só nas últimas
décadas desse século, o trabalho passou a ter o significado
dignificante o que não acontecia antes, devido ao estigma da
escravatura, reproduz-se na mulher negra “um destino
histórico”. É ela quem desempenha, em sua maioria os
serviços domésticos, os serviços em empresas públicas e
privadas recompensadas por baixíssimas remunerações. São
de fato empregos onde as relações de trabalho evocam as
mesmas da escravocracia.

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O conhecimento sobre a importância do papel feminino numa


comunidade, se estende sob novos olhares da visibilidade ou invisibilidade das
lideranças femininas na história brasileira, que tem sido analisada nos últimos
tempos, com a valorização da história e cultura africana e afro brasileira. Neste
caso, específico de nosso projeto de pesquisa, temos uma comunidade
remanescente quilombola, fundada por uma mulher, o que remete a importância
dos papéis femininos em interface com as relações africanas e afro brasileira.
580

Representação e entrecaminhos das narrativas

Umas das proposições ao analisar a história de Tia Eva, como mulher e


liderança parte do entendimento do conceito de representação. Compreender
como as representações culturais são construídas, a partir da percepção de si e
do outro, inserindo-a num campo dos saberes sociais, do imaginário, das ações
dos sujeitos sociais e de como se empenham em entender e dar sentido ao mundo
em que vivem.

As representações podem ser entendidas como classificações e divisões


que organizam a apreensão do mundo social como categorias de percepção do
real. “Identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma realidade
social é construída, pensada, dada a ler. A representação que os indivíduos e os
grupos fornecem inevitavelmente através de suas práticas e de suas propriedades
faz parte integrante de sua realidade social” (CHARTIER, 1990, p. 16).

Nesse sentido, a representação que as pessoas da própria comunidade


têm sobre esse espaço e sua manutenção permitem também diferentes ‘olhares’
sobre a liderança de Eva. E neste processo, a inserção da comunidade como um
espaço remanescente quilombola, foi sendo aos poucos valorizada como não só
espaço de resistência, mas de imbricamento das ações coletivas do grupo que
adveio com a ex-escrava Eva Maria de Jesus. Como explica Munanga, (2001,
p. 25):
A palavra quilombo tem a conotação de uma associação de
homens, aberta a todos sem distinção de filiação a qualquer
linhagem, na qual os membros eram submetidos a dramáticos
rituais de iniciação que os retiravam do âmbito protetor de

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suas linhagens e os integravam como co-guerreiros num


regimento de super-homens invulneráveis às armas de
inimigos.

A proximidade da comunidade quilombola com o a cidade de Campo


Grande traz diferentes características para a análise do ‘lugar de memória’, pois
as transformações no cenário urbano impelem modificações na comunidade.
Porém, a manutenção de práticas e costumes, assim como a preservação das
edificações, do busto em homenagem a “Tia Eva”, evidenciam que as memórias 581
individuais e coletivas se conectam com a história dessa ex-escrava, como
representante dos grupos afros, de um tempo marcado pela cultura escravagista.
Um tempo histórico que demarca o liame entre a superação da escravidão e
manutenção da construção da comunidade. Como aponta Santos, (2012, p 24):
A escravidão, a migração e a própria tia Eva estão imbricadas
na memória coletiva dos seus descendentes; é como se
existisse uma linha temporal, construída pela memória, que
liga os eventos passados vividos por tia Eva aos dias de hoje.
Essa linha, resgatada pela memória coletiva, estabelece um
vínculo dos atuais descendentes com a escravidão, com a
migração e com tia Eva. A memória não está dentro deles, são
eles que se movem dentro dela. Nesse sentido, tempo e espaço
não são coisas separadas, pois assim como o tempo constrói o
espaço, o espaço constrói o tempo.

Em 1906, Eva Maria de Jesus, construiu a igreja de São Benedito, no


córrego Segredo, era a segunda igreja erigida no município. Por causa da Igreja,
a comunidade ficou conhecida como São Benedito. “Analisando simbolicamente
o percurso de tia Eva até chegar a Benedito, percebe-se que esse local era um
espaço do sagrado, constituído por meio da promessa feita no tempo da
escravidão por tia Eva a São Benedito” (Santos, 2010)

O espaço da comunidade, como um ‘lugar de memória’, que preserva a


história da líder da comunidade, uma mulher, que estabeleceu as relações com
as outras pessoas, que demarcou num contexto histórico datado, seu lugar como
mulher, com líder de uma comunidade quilombola, como influencia para os
outros grupos.

A narrativa sobre a representação feminina numa comunidade, bem


como a sua representação simbólica, a construção do contexto histórico, a

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concepção da comunidade como ‘lugar de memória’ e da tradição herdada da


fundadora da comunidade, Eva Maria de Jesus, fundamentam diferentes relações
culturais, a confluência de discursos sobre a valorização da ‘líder feminina’, ou
na permanência de estereótipos relacionados a comunidade por sua representante
ser uma mulher.

A construção dos elementos que identificam os grupos culturais, as


características identitárias que denotam a interculturalidade presente na
582
comunidade e sua relação com a sociedade sul mato-grossense impõem no
contexto histórico-cultural padrões de comportamento que ultrapassam
gerações.

Isso fica evidente, pois mesmo com as modificações no espaço físico


da comunidade, ainda permanecem elementos relacionados ao processo de
valorização da cultural popular, dos hábitos herdados. Pode-se perceber que na
constituição de espaços como a comunidade “Tia Eva”, operam-se dispositivos
de saber e poder, que ora definem as relações, alianças, ora definem as
resistências. Isso porque conforme Foucault (1993, p.102): “o dispositivo de
aliança se estrutura em torno de um sistema de regras que define o permitido e o
proibido, o prescrito e o ilícito; o dispositivo de sexualidade funciona de acordo
com técnicas móveis, polimorfas e conjunturais de poder”.

Talvez por isso, pontuar as discussões no campo das narrativas e das


memórias para compreender as relações de saber/poder, nos encaminhe a
percepção sobre o sentimento de pertencimento. Pois a memória assume o papel
de integração e reforço de sentimento de estar no grupo. Já que a memória,
essa operação coletiva dos acontecimentos e das
interpretações do passado que se quer salvaguardar, se
integra, como vimos, em tentativas mais ou menos
conscientes de definir e de reforçar sentimentos de
pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de
tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias,
regiões, clãs, famílias, nações etc. (Pollak, 1989: 9).

O contexto histórico de constituição da comunidade esta


fundamentalmente relacionado a trajetória da mulher “Eva”, imbricando
significados e representações, assim como estereótipos e preconceitos. Segundo

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os dados do relatório da Fundação Cultural Palmares (2006), que faz o


levantamento e definição de comunidades quilombolas no Brasil, a história da
comunidade se confunde com a própria história de Eva Maria, ‘tia Eva’.
Werneck (2008, p 80/81) nos diz sobre estes espaços: “Os quilombos aparecem
em relatos da história do país ao longo de toda a experiência colonial. Eram
territórios livres para aquelas e aqueles que lograram escapar do regime
escravocrata, ocupando muitas vezes regiões de difícil acesso do estado
583
colonial”.

Ao suscitar a narrativa histórica sobre a contribuição cultural de uma


ex-escrava que fundou uma comunidade, se impulsiona a reflexão e
aprofundamento sobre as representações do feminino, das relações de gênero e
de poder. O Decreto 4.887/03 conceitua, em seu artigo 2º, “as comunidades
quilombolas ou remanescentes das comunidades dos quilombos, os grupos
étnico-raciais, segundo critérios de auto atribuição, com trajetória histórica
própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de
ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida e
que a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será
atestada mediante autodefinição da própria comunidade”.

As identidades afrodescendentes ou negras são múltiplas e variadas.


Podem ser consideradas como positivas ou negativas, relacionadas com a auto-
imagem que os indivíduos fazem de si e dos outros. Para Moura (2004), os
quilombos ficaram no imaginário brasileiro como agrupamentos de africanos
fugitivos que desejavam reproduzir uma vida comunitária semelhante à vida na
terra de origem, o continente africano. Quilombos contemporâneos são terras
habitadas por populações negras que nestes territórios se estabeleceram,
cultivaram, beneficiaram, criaram família e raízes, ali encontraram paz, refúgio
e fizeram história.

A valorização e manutenção de uma memória histórica que enaltece


essa mulher, ex-escrava, que assumia papeis e funções na comunidade, recupera
também outros elementos de um passado que mistura-se as ações do presente,
com reminiscências de eventos, sentimentos e ações que focalizam no papel de

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“Tia Eva”, não só como mulher, mas como uma liderança e referência na
comunidade, mas também contra o processo [...] de banalização [...] das
sociedades e de seu meio”.

Algumas considerações...

Empreender a abordagem sobre a representação feminina, de uma ex-


escrava, que instituiu uma comunidade, hoje denominada comunidade 584

remanescente quilombola exacerba as possibilidades de análise sobre as relações


de gênero e poder feminino na sociedade brasileira. Isso porque, ainda que a
comunidade persista na atualidade, o contexto histórico em que foi instituída a
comunidade passou por diferentes engendramentos e ações de poder. A
resistência dos grupos afros no Brasil, tem sua historicidade marcada pelas lutas
em torno das liberdades, da manutenção de seus direitos.

Desta maneira, ao investigar a historia de Eva Maria de Jesus, bem


como das relações estabelecidas na comunidade Tia Eva, sejam no âmbito das
relações de gênero, de religião, de poder inscrevem um mosaico de diálogos,
superações, dificuldades, lutas, permanências, transformações que trazem
consigo as narrativas dos diferentes. Nas relações de gênero no espaço da família
e da religião, definir submissão imposta às mulheres como uma violência
simbólica ajuda a compreender como a relação de dominação, que é uma relação
histórica social e linguisticamente constituída, é sempre afirmada como uma
diferença de ordem natural, radical, irredutível e universal. O essencial é
identificar para cada configuração histórica os mecanismos que enunciam e
representam como natural e biológica a divisão social dos papéis e das funções
(SOIHET, 1989). A função, o papel e a representação da mulher nas esferas de
trabalho, da religião, da casa são temas discutidos historicamente, desde o
surgimento da palavra gênero, a partir da sua classificação como categoria de
análise socialmente imposta sobre um corpo sexuado (Scott, 1995:04).

Em se tratando do papel da mulher negra na sociedade brasileira,


incorpora elementos estereotipados, passando uma imagem positiva do homem

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e negativa da mulher. No caso que encontramos nas comunidades negras em


Mato Grosso do Sul, trata-se de um embate político de projetos em esferas
globais, nacionais e locais. Na instância global ocorre o acionamento de
afirmação de identidades, onde o clamor pelo direito às diferenças serve muitas
vezes mais como 'slogan' para venda de mercadorias, do que, propriamente pela
conquista de direitos. No cenário nacional brasileiro temos um forte movimento
questionador de nossa identidade mestiça por parte de grupos organizados no
585
movimento negro (para não falar dos indígenas) e ao mesmo tempo permanece
a forte crença popular no mito da miscigenação. O destaque que as lideranças
femininas exercem nas comunidades enseja investigação à parte e a necessidade
de bolsistas mulheres. As narrativas masculinas e femininas são diferenciadas e
dependem do interlocutor, de quem pergunta. Daí a necessidade de jovens
bolsistas mulheres para fazerem entrevistas com as lideranças da comunidade.
Afinal, a modernidade ocidental é masculina e a fragmentação de identidades na
pós-modernidade demanda o estudo do papel feminino nas formações políticas,
outrora relegadas.

Logo, permitir que as pessoas narrem suas experiências, que repensem


seus lugares, como espaços memória, requer uma imersão no que se quer lembrar
e, principalmente no escopo fundamental de uma comunidade que quer
permanecer atuante, enaltecendo a partir da memória de sua fundadora, a ex-
escrava, Eva Maria de Jesus. A história da comunidade partiu dela, se
fundamentou com ela e, permanece hoje como um lugar de memória destinado
a valorizar a história dessa mulher.

REFERÊNCIAS

BAUMANN. Comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.


Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

CARNEIRO, Sueli. Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil.São Paulo:


Selo Negro, 2011.

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CONGRO, Rosário. O município de Campo Grande. Campo Grande: Instituto


Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, 2003

COSTA, J.F. A ética e o espelho da cultura. RJ: Rocco, 1994.

DUBY, Georges; PERROT, Michelle. História das mulheres no ocidente: a


antiguidade. v. 1. Porto: Edições Afrontamento, 1990, p. 7.

GIACOMINI, S.M Mulher e escrava: uma introdução histórica ao estudo da


mulher negra no Brasil. Rio de Janeiro, Vozes,1988, p.66. 586

LARROSA, J. Tecnologias do Eu e educação. In: SILVA, T.T. (Org.). O sujeito


da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 40.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Trad.


Maria Thereza Albuquerquer e J.A. Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1993

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006

NASCIMENTO, GISÊLDA MELO. Grandes mães, reais senhoras. In:


Guerreiras da natureza: mulher negra, religiosidade e ambiente/ Elisa Larkin
Nascimento (org). São Paulo: Selo Negro: 2008

MATOS, Eliane; KASHIMOTO, Emilia. Manifestações religiosas, turismo e


perspectivas de desenvolvimento na comunidade São Benedito-Campo Grande
-MS. In: Cesur em revista:. Rondonópolis: Centro de Ensino Superior de
Rondonópolis, v 3, n 1, 2003

MALUF, Marina. Ruídos da Memória, São Paulo, siciliano, 1995.

MUNANGA, Kabengele. (Org.). História do negro no Brasil: o negro na


sociedade brasileira – resistência, participação, contribuição. Brasília: Fundação
Cultural Palmares-MinC, CNPq, 2004.

PERROT, Michelle. Os excluídos da história. RJ: paz e terra, 1988

POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silencio. Estudos Históricos, Rio de


Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.

SANTOS, Carlos A. B. Plínio dos. Eva Maria de Jesus (tia Eva) : Memórias de
uma comunidade negra. Anuário Antropológico, I | 2012, 155-181.

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SOIHET, Raquel & PEDRO, Joana Maria. A emergência da pesquisa da História


das Mulheres e das Relações de Gênero. Revista Brasileira de História. São
Paulo, v. 27, nº 54, p. 281-300 - 2007

SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e


Realidade, Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 5-22, jul./dez. 1990.

______________. História das mulheres. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita


da História. São Paulo: EDUNESP, 1999. 587

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PELO DIREITO À VIDA: UMA DINÂMICA SOCIAL DE PODER


SOBRE O CORPO

Graciana Martins dos Santos*

Introdução

“Pelo Direito à vida: uma dinâmica social de poder sobre o corpo”. O 588
título deste artigo sinaliza diretamente para o seu tema, que consiste num estudo
teórico sobre quais vidas são dignas de serem enlutadas e a consequente
influência desses olhares no direito de escolha da interrupção voluntária de
gravidez não planejada. Num enfoque feminista, utilizaremos como objeto de
estudo perspectivas sociais e políticas referentes ao direito das mulheres de
interromperem uma gravidez não planejada.

O estudo justifica-se devido ao alto índice de abortos clandestinos e


inseguros realizados no país, que culminam muitas vezes em falecimento das
mulheres a eles submetidas. Na Pesquisa Nacional em Saúde 2013 realizada pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), foi estimado que um
milhão e sessenta e oito mil mulheres com idades entre 18 e 49 anos já tiveram
algum aborto provocado. Não foi perguntado na pesquisa em quais condições o
procedimento foi realizado, mas mesmo assim o instituto pondera que este
número seja uma subnotificação, pois muitas mulheres talvez não relatem suas
experiências em relação ao tema, devido à provável ilegalidade da maior parte
dos procedimentos realizados.

Inclusive, durante a redação final deste artigo, no dia 23 de agosto de


2016, o Jornal Extra1 publicou em seu sítio na internet matéria informando a
morte de Caroline Sousa Carneiro de 28 anos de idade em decorrência da
realização de aborto clandestino realizado numa clínica em Benfica, bairro da

*
Mestre em Memória Social (UNIRIO).
1
Disponível em: http://extra.globo.com/casos-de-policia/jovem-encontrada-morta-
apos-fazer-aborto-em-clinica-clandestina-em-benfica-19981158.html Acesso em
31/08/2016 às 20h

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zona norte da cidade do Rio de Janeiro/RJ. Outras matérias foram publicadas


em decorrência das repercussões da ocorrência, como o depoimento do
namorado da vítima na delegacia e o fechamento da clínica. Nessa série de
publicações, no setor comentários de leitores verificamos depoimentos que
culpam a jovem por matar uma criança, que culpam o namorado dela por tê-la
apoiado na decisão de interromper a gravidez, que atacam o médico responsável
pelo procedimento e que culpam o governo por não legalizar o aborto.
589
Ressaltamos que no âmbito deste estudo, não debateremos sobre a participação
dos homens/pais na decisão da interrupção da gravidez e sobre a atuação de
profissionais de saúde na realização de abortos clandestinos e ilegais.

Para ilustramos as diferentes perspectivas sociais em relação ao tema,


apresentamos as Figuras 1 e 2 a seguir:

Figura 1 – Comentários de culpa gestante

Disponível em http://extra.globo.com/casos-de-policia/jovem-encontrada-morta-apos-fazer-
aborto-em-clinica-clandestina-em-benfica-19981158.html Acesso em 27/08/16 às 22h

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Figura 2 – culpa governo e culpa gestante

590

Disponível em http://extra.globo.com/casos-de-policia/em-depoimento-namorado-
responsabilizou-jovem-morta-apos-aborto-pelo-procedimento-19989467.html Acesso em
28/08/16 às 22h

O primeiro comentário da Figura 1 chega a comparar sujeição ao aborto


pela jovem com o assassinato de uma criança realizado por uma mãe e divulgado
na imprensa dias antes. Nessa perspectiva, o aborto equivale o a interrupção de
uma vida humana. Já no primeiro comentário da Figura 2, verificamos a opinião
de uma mulher que considera como culpado pelo ocorrido o governo, devido a
não legalização do aborto. São diferentes posicionamentos em relação ao mesmo
tema que possui ampla relevância social devido ao impactante número de abortos
realizados no país e a consequente morte de mulheres em decorrência do
procedimento.

Apesar da interrupção da gravidez – que não seja decorrente de estupro,


que não seja de feto anencéfalo e que não seja um risco para a vida da gestante -
ser tipificada como crime de atentado à vida humana no Código Penal brasileiro
em vigor desde 1984, com penalidade de um a três anos de detenção para quem
o realiza, o procedimento segue sendo praticado no país, de forma clandestina e

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ilegal. Também está prevista a penalidade de um a quatro anos para quem


submeter mulher grávida ao aborto sem o prévio consentimento dela.

No documentário intitulado Clandestinas, realizado pela Sempreviva


Organização Feminista e pela International Woman Health Coalization2,
conhecemos a história de mulheres que realizaram aborto não legalizado em
diferentes situações e contextos. Uma dessas mulheres relata que, após abortar
em uma clínica com péssimas condições de higiene, sangrou por dias, pois o
591
procedimento não fora realizado adequadamente. E, com isso, foi em péssimas
condições de saúde a uma unidade de atendimento, conveniada ao Sistema Único
de Saúde do Ministério da Saúde, para ser atendida. Ressaltamos que a
interrupção voluntária da gravidez, em conformidade com o Manual de Atenção
ao Aborto Humanizado publicado em 2005 pelo Ministério da Saúde do Brasil,
é a interrupção da gravidez de até 20ª- 22ª semana e com feto pesando menos de
500g. Se a gravidez for interrompida em período inferior à 20ª semana e com
produto de concepção pesando mais de 500g.

Nesse contexto social, em setembro de 2015, foi aprovado pela


Comissão de Constituição, de Justiça e de Cidadania da Câmara de Deputados a
realização de audiência pública para o debate do projeto de Lei 478/2007
(Estatuto do Nascituro), conhecido como o Estatuto do Nascituro. O pedido de
audiência pública foi realizado pelo Deputado evangélico Marcos Rogério do
PDT/RO. O Estatuto do Nascituro criado em 2007 já passou por uma série de
revisões em seu texto, mas segue visando proteger o nascituro por meio da oferta
à mulher, grávida em decorrência de estupro, ajuda financeira para gerar a
criança. Se a mulher desejar gerar a criança, mas não criá-la, receberá apoio para
encaminhá-la para a adoção. Se a mulher desejar gerar e criar a criança, poderá
pedir pensão alimentícia para o estuprador. O Estatuto é amplamente
questionado por grupos de defesa dos direitos das mulheres, pois propõe que
estuprador seja qualificado como pai de uma criança, gerando um elo familiar
entre a mulher, a criança e o homem, autor do ato violento.

2
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AXuKe0W3ZOU Acesso em
16/12/ 2014 às 22h.

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Soma-se às ações contrárias à legalização do aborto, o Projeto Lei


5069/2013 de autoria do evangélico Deputado Eduardo Cunha, do PMDB/RJ,
em parceira com mais 12 Deputados, que tipifica como crime contra a vida o
anúncio de meio abortivo e prevê penas específicas para quem induz a gestante
à realização do aborto, mesmo em casos previstos na atual legislação. Se esta
Lei foi aprovada, a mulher para ter direito ao aborto legal, em casos de gravidez
decorrentes de estupro, precisará registrar boletim de ocorrência policial e ser
592
submetida a exame de corpo delito (atualmente, a palavra da gestante deve ser
suficiente). Os profissionais de saúde que atenderem às mulheres nessa situação
não poderão orientá-las sobre o aborto legal e, também, não poderão prescrever
medicamentos abortivos. Caso o médico considere a pílula do dia seguinte
abortiva, ele poderá optar por não prescrever a medicação. Com base no exposto,
algumas feministas consideram que esta Lei abrirá precedentes para a proibição
da comercialização da pílula do dia seguinte no Brasil.

Os dois Projetos Lei citados são considerados por feministas um


retrocesso nas conquistas dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. A
organização feminista Católicas pelo direito de decidir publicou originalmente
na Revista Fórum e depois em seu sítio na internet – catolicas.org.br – o
manifesto Deixem as mulheres viverem em paz!, em repúdio ao Projeto Lei
5069/2013. Além das manifestações contrárias aos projetos-leis organizadas por
instituições do terceiro setor, centenas de mulheres foram às ruas na primavera
de 2015 mobilizadas via redes sociais para lutar pelo direito de interromperem a
gestação indesejada e contra a PL 5069/2013. O slogan do movimento em
diversos estados nacionais, incluindo Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte
e o Distrito Federal, foi o: Fora Cunha. Em mobilizações que englobaram
também as acusações contra o Deputado Federal na Operação Lava a jato.3

O Portal G14 realizou um levantamento na Câmara de Deputados


Federais do Congresso Nacional sobre o apoio a PL 5069/2013 e constatou que

3
A maior operação de lavagem de dinheiro já realizada no país.
4
Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/11/maioria-das-deputadas-
se-diz-contra-projeto-de-cunha-sobre-aborto.html Acesso em 30/08/2016 às 15h

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a maioria feminina é contra este projeto. Atualmente, existem apenas 50


deputadas mulheres (são 513 deputados em exercício) na Câmara. Destas, 54%
se declararam contrárias ao projeto. Com base no exposto até o momento,
consideramos que socialmente na esfera política e social grupos defensores do
direito de a mulher interromper a gravidez em quaisquer situações, grupos
defensores apenas da manutenção da legislação atual, grupos defensores de
tornar o acesso ao aborto legal mais difícil do que é atualmente. Apesar da
593
diferente perspectiva, todos os grupos intentam defender a vida. Uns com foco
na vida do nascituro e outros com foco na vida da mulher.

Diante do exposto, refletimos sobre crenças e valores socialmente


compartilhados que apesar de serem culturais adquirem o status social de natural
e biológico. E nesse contexto, o que é uma vida? O feto é uma vida? Defensores
do direito a liberdades reprodutivas são a favor da vida? A mulher que morre em
decorrência de aborto merece ser enlutada? São as questões motivadoras deste
estudo, que se insere num contexto social de altos índices de interrupção
voluntária da gravidez de forma clandestina e ilegal. Para propormos respostas
com certeza in (conclusivas) para estas questões, devido às multiplicidades de
olhares possíveis, organizaremos este artigo em duas seções de
desenvolvimento. Na primeira seção de desenvolvimento, articulo como crenças
e valores sociais são passados de geração em geração adquirindo status de
naturais e biológicos. Bem como, a capacidade dos seres humanos de reconstruir
essas crenças e valores nos processos iteráveis sociais, que constroem e (re)
constroem a memória coletiva. Na segunda seção, reflito sobre o que é uma vida,
o que são seus marcos de reconhecimento e o que a torna digna ou não de ser
enlutada. E, com isso, dialogamos com os conceitos de memória coletiva, de
inteligibilidade, de vida precária e de biopolítica para pensarmos os fundamentos
sociais dos grupos contrários e os fundamentos dos grupos favoráveis ao aborto.

Marcos sociais da memória – maternidade e performatividade de gênero

No livro Los marcos sociales de la memória, redigido durante o


turbulento período entre a primeira Guerra Mundial e a Segunda Guerra

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Mundial, Maurice Halbwachs (2004 [1925]) desenvolve um diálogo entre as


posições do filósofo Henri Bergson e do sociólogo Émile Durkheim que culmina
na concepção do conceito de memória coletiva. Para Bergson, a noção de
duração está atrelada ao indivíduo e à temporalidade, e assim compreende que
existiriam tantas durações quanto consciências individuais. Para o sociólogo, ao
contrário, a noção de duração está atrelada à sociedade, e, assim, compreende
que as durações são resultantes de convenções sociais. Os calendários
594
estabelecem o ritmo da vida das pessoas. Diante dessas concepções, Halbwachs
(2004) opta pela visão racionalista de Durkheim concernente à consciência
coletiva, mas numa leitura contemporânea relativiza este conceito
desenvolvendo um novo campo do saber, a memória coletiva, atrelando-a aos
grupos sociais. Nessa perspectiva, a memória coletiva é tão diversa quanto são
diversos os grupos sociais.

O essencial na teoria da memória coletiva é que uma pessoa se recorda


daquilo que é induzida a recordar, sua memória é auxiliada pela memória de
outros integrantes do grupo social em que a lembrança está alicerçada. Assim,
as lembranças são evocadas na sociedade por intermédio de nossos grupos
sociais, que nos oferecem instrumentos para as reconstruirmos. Os instrumentos
seriam, nesse sentido, marcos sociais. É na medida em que nossos pensamentos
individuais são alocados nesses marcos sociais que somos capazes de reconstruir
uma lembrança do passado de acordo com cada época de nossas vidas em
consonância com o pensamento dominante naquele grupo social. O sociólogo
defende uma composição artificial da memória. Esta, subitamente numa
reconstrução coletiva, se animaria e ganharia vida tornando a imagem
construída, uma lembrança.
É comum que imagens desse tipo, impostas pelo meio em que
vivemos, modifiquem a impressão que guardamos de um fato
antigo, de uma pessoa outrora conhecida. Essas imagens
talvez não reproduzam muito exatamente o passado, o
elemento ou a parcela de lembrança que antes havia em nosso
espírito talvez seja uma expressão mais exata do fato – a
algumas lembranças reais se junta uma compacta massa de
lembranças fictícias. Inversamente, pode acontecer que os
testemunhos de outros sejam únicos e exatos, que eles
corrijam e rearranjem a nossa lembrança e ao mesmo tempo
se incorporem a ela. (HALBWACHS, 2006, p. 32).

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Os seres humanos contam, assim, com uma memória socialmente


construída no processo interativo mediado pela linguagem do “eu” com os outros
sujeitos sociais. A pessoa que lembra e esquece é um ser social. Halbwachs
(2004, p. 103) em Los marcos sociales de la memoria registrou que “La
sociedad, indudablemente, piensa por conjuntos: vincula sus nociones entre
ellas, las agrupa en representaciones más complejas de personas y
595
acontecimientos, inluyéndolas em unas nociones todavía mucho más
complejas”. Neste livro, o autor analisa marcos sociais que se estabelecem no
interior de três grupos sociais: família, religião e classe social. E, assim, ao
segmentar a sociedade em grupos sociais apontando a existência de diferentes
memórias coletivas no seio da sociedade, contribui para o estudo das identidades
sociais.

No grupo familiar, os sujeitos sociais se vinculam por laços parentais,


compartilhando lembranças marcantes para a manutenção dos laços afetivos
entre os parentes. No grupo religioso, seriam os dogmas compartilhados que
estruturam e organizam as lembranças. E no grupo classe social, seriam os
interesses da sociedade como um todo que prevalecem na construção da
memória coletiva. No âmbito desta investigação, destacamos como principal
visão da maternidade em sociedades alicerçadas no pensamento cristão e,
portanto, heteronormativas, a concepção de que ser mãe é dar luz a uma vida.

A especialista em Memória Social, Carmen Lúcia Pereira (2014: p. 66)


descreve que numa perspectiva social a “maternidade é construída na dimensão
simbólica como fato biológico e interpretada como decorrência natural do ato
sexual e da gravidez”. A maternidade, seria dessa forma, uma inclinação natural
a ser exercida pelas mulheres pois estas engravidam como consequência do ato
sexual. No âmbito cultural existem crenças alicerçadas na biologia e em marcos
sociais passados de geração em geração. Estas crenças são norteadoras das
relações de gênero. A especialista destaca que se espelhando na mãe de Jesus, a
Igreja Católica propagou ao longo dos séculos um conceito de mãe serena,
sofrida, amorosa e capaz de se sacrificar pelo filho. Nesse contexto cultural,

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Pereira (2014: p. 68) afirma que “a mulher ideal deve ser santa, casta, abnegada
e pronta a servir ao marido e à família. Assim, aborto é considerado pecado
grave; inaceitável, pois rompe com esse ideário de maternidade”.

Nesse prisma, maternidade já seria exercida no período gestacional. As


mulheres que rompem com essas crenças sociais e não desejam exercer a
maternidade por toda a vida ou num determinado momento e, por isso, decidem
interromperem uma gravidez não planejada, são julgadas e condenadas.
596
Felizmente, mesmo os seres humanos mais radicais sobre algumas questões
podem mudar de ideia, visto que são seres pensantes que conseguem refletir
sobre si mesmo e sobre a existência cultural e biológica. No processo de
interação social, no qual a memória coletiva é construída e (re) construída por
meio da circulação da linguagem compartilhada socialmente, crenças, valores e
conceitos podem e são formulados e (re) formulados.

A memória coletiva está em constante construção por alicerça-se em


seres vivos. Os marcos culturais de memória sobre o ser mulher na sociedade e
sobre o ser mãe são deslocados nos processos de integração social mediados pela
linguagem. Os seres humanos transitam de grupos de afeto ao longo da vida e,
com isso, podem mudar suas referências e, também, suas crenças e seus valores.
Com base no conceito de iterabildiade (na repetição dos signos linguísticos
existe uma força de ruptura, ou seja, quando uma fala é deslocada de contexto,
carrega consigo traços do contexto anterior e os apresenta no novo contexto
gerando ruptura e continuidade) desenvolvido pelo filósofo francês Jacques
Derrida, Judith Butler afirma que na repetição dos valores atrelados a
mulher/feminino e homem/masculino, os sujeitos são subjetivados por meio da
imitação de formas linguísticas convencionais que ultrapassam o contexto
presente.

Assim, a identidade de gênero é um ideal normativo construído por


intermédio de um truque performativo da linguagem socialmente compartilhada
que não apenas descreve o que é ser mulher, mas torna pessoas com
determinadas características físicas e biológicas, mulheres. Na mesma medida
em que não apenas descreve o que é ser homem, mas torna determinadas pessoas

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com características físicas e biológicas, homens. “Em outras palavras, a


‘coerência’ e a ‘continuidade’ da ‘pessoa’ não são características lógicas ou
analíticas da condição da pessoa, mas, ao contrário, normas de inteligibilidade
cultural pelas quais as pessoas são definidas” (BUTLER, 2013, p. 38).

Portanto, é esperado socialmente que uma pessoa classificada


socialmente como mulher tenha um comportamento adequado ao seu sexo,
incluindo – entre outros aspectos culturais - o desejo sexual por homens e o
597
desejo pelo exercício da maternidade. Se essa coerência ocorrer, essa pessoa
possuirá um gênero inteligível, o feminino. “Gêneros ‘inteligíveis’ são aqueles
que, em certo sentido, instituem e mantêm relações de coerência e continuidade
entre sexo, gênero, prática sexual e desejo” (BUTLER, 2013, p. 38). Nesse
contexto, a descontinuidade entre os atributos das identidades de gênero é
prevista nas normas existentes de regulação das coerências desejadas, sendo
constantemente considerado desvio daquilo que seria a condição natural da
pessoa: sexo biológico e gênero culturalmente instituído –
mulher/fêmea/feminino.

Vidas precárias e biopolítica – corpo e sociedade

O exercício da maternidade, numa perspectiva da performatividade de


gênero, não é um desejo nato de pessoas compreendidas como mulheres pela
sociedade, mas um truque performativo da linguagem socialmente
compartilhada que cria uma suposta coerência entre gênero, sexo, desejo, prática
sexual e, também, comportamento social. No processo de interação social,
características sociais, fundamentadas em marcos sociais de memória, podem
adquirir os status de biológicas e naturais, quando, na verdade são construções
culturais.

Existir é ser um sujeito que está sempre em interação com outros


sujeitos e subjugado a organizações sociais e políticas. Um corpo possui
significações sociais. Sem ignorar a capacidade física e biológica das mulheres
de engravidar, o exercício da maternidade como sendo algo comum a todas as

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mulheres é uma designação social, fundamentada em marcos sociais comum a


diversos grupos sociais. Em especial no que concerne aos ideais estabelecidos
socialmente para corpos femininos e também para núcleos afetivos denominados
de família. A dita família nuclear – pai, mãe e filho – apesar de não permearem
nossa sociedade, ainda é valorizada por diversos segmentos sociais, em especial
aqueles mais relacionados à religião.

Num processo social de composição artificial da memória sobre a


598
maternidade, numa reconstrução coletiva sobre gerar e criar uma criança só é
praticamente exposto e valorizado socialmente mães consideradas dedicadas,
abnegadas e amorosas. No Brasil, os índices de famílias monoparentais
chefiadas por mulheres é alto conforme demonstrado em dados publicados em
2001 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). De acordo com o
IPEA (2011), o percentual de mulheres chefes de família aumentou de 22,9%,
em 1995, para 35,2% em 2009. Isso representa no país 21,7 milhões de famílias
chefiadas por mulheres. Sendo que em 1995, 68,8% dessas famílias eram
monoparentais, ou seja, constituídas por mães e filhos e somente 2,8% de
famílias formadas por casais. Já em 2009, 49,4% das mulheres são chefes de
famílias monoparentais e 26,1% de famílias constituídas por casais.

Os dados demonstram como a criação de filhos ainda está muito


centrada nas mulheres. Em casos de separação conjugal, quando a mulher/mãe
não deseja a guarda os filhos, esta é amplamente julgada pela sociedade, sendo
denominada de desnaturada e de sem coração. E, assim, essa mulher passa a não
atender a um dos marcos sociais de reconhecimento de mulheres, aquele
concernente ao desejo do exercício da maternidade de forma amorosa e
abnegada.

No livro Quadros da Guerra, Butler (2015: p. 20) desenvolve o conceito


de que uma vida para ser reconhecida, precisa atender a marcos de
reconhecimento fundamentados em normas sociais, sujeitas às condições de
inteligibilidade (atende aos domínios do cognoscível sendo por isso,
reconhecido), pois circulam na sociedade, que é composta por diversos

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esquemas de inteligibilidade. Podemos mencionar como exemplo: a matriz


heteronormativa. Também existem esquemas referentes à vida e à morte.

E, por isso, ocorrem diversos debates sobre o que estabelece os


primeiros momentos de um organismo vivo e o que determina a morte (morte do
cérebro ou do coração), o que não que dizer que o nascimento e a morte sejam
criações discursivas. Contudo, uma vida ou uma morte pode acontecer fora dos
marcos de reconhecimento, nos quais são em sua maior parte organizadas, e com
599
isso, precisam ser reconhecidas para serem enlutadas, em caso de morte. O
direito de ser enlutada é um pressuposto para toda a vida reconhecida que
importa.

Usualmente, a sociedade está acostuma a pensar que os defensores de


liberdades reprodutivas são favoráveis a liberdade de escolha, enquanto àqueles
que se opõe a elas, são defensores do direito à vida. Para Butler (2015: p.34) “os
que se consideram a favor da vida podem basear seu ponto de vista no argumento
de que o feto é precisamente essa vida que não é enlutada, mas que deveria sê-
lo, ou que é uma vida que não é reconhecida como vida por aqueles a favor do
direito ao aborto”. Entretanto, para a autora, reconhecer o feto como um
organismo vivo, não serve de argumento para a defesa ou para a proibição do
aborto, pois a vida envolve processos de destruição e de degeneração, sem que
ela entre na discussão sobre quais métodos de destruição são eticamente aceitos.
Butler trás para o diálogo dos ideais de defesa da liberdade reprodutiva, o
conceito de biopolítica, termo criado por Michael Foucault.

O poder sobre o corpo centrou-se mais ou menos na metade do século


XVIII como corpo-espécie e, com isso, “a velha potência da morte em que se
simbolizava o poder soberano é agora, cuidadosamente, recoberta pela
administração dos corpos e pela gestão calculista da vida” (FOUCAULT, 2001,
p.152). Os agenciamentos dos corpos ocorridos a partir do século XIX, em
especial no que concerne a sexualidade, foram indispensáveis para o
desenvolvimento do capitalismo, “que só pôde ser garantido à custa da inserção
controlada dos corpos no aparelho de produção por meio de um ajustamento dos

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fenômenos de população aos processos econômicos”. (FOUCAULT, 2001,


p.153).

Os mecanismos pelo qual o biopoder é exercido são anônimos e


flexíveis e; com isso, podem mascarar certas características culturais, tais como
a identidade de gênero que ainda e considerada por alguns grupos sociais como
um aspecto natural e biológico. Para o pensador Michael Foucault (2001),
fundador do conceito biopoder, este tipo de poder funciona como uma teia de
600
dispositivos que atravessa toda a sociedade e da qual não podemos escapar.

In(conclusões)

Diante do aqui exposto, a questão sobre o que é uma vida, apesar de


não ser uma questão discursiva, pode contar com diversas perspectivas na
medida em que uma vida depende de marcos de reconhecimento - que circulam
na sociedade por meio de interações sociais mediadas pela linguagem - para ser
reconhecida como uma vida. Assim como uma vida depende desses marcos
digna de ser enlutada. Reconhecer um feto como um organismo vivo não
pressupõe que ele seja uma vida a ser enlutada ou a ser preservada em quaisquer
condições.

As decisões sobre a destruição ou sobre a degeneração de um organismo


vivo dependem dos valores e das crenças das pessoas com ela envolvidas. Por
exemplo, vegetarianos não comem carnes de animais, pois consideram a vida de
todos os animais enlutáveis. O mesmo valor não é percebido pelas pessoas que
consomem carne de animais nas refeições. Existem pessoas que nasceram em
famílias vegetarianas e ao atingirem a vida adulta continuam sendo vegetarianos.
Outras pessoas também de famílias vegetarianas na infância, podem começar a
comer carne em algum momento da fase adulta. Estamos utilizando essa
preferência alimentar como exemplo de que as pessoas podem compartilhar de
crenças e valores num determinado momento da vida e depois romperem com
eles. A existência humana é dinâmica na medida em que circulamos por

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diferentes grupos sociais num processo interativo que constitui nossa memória
coletiva numa dinâmica cíclica e interruptiva.

Dessa forma, compreendemos que grupos sociais contrários à


interrupção voluntária da gravidez são formados por sujeitos cujos marcos de
reconhecimento abrangem o feto como uma vida a ser enlutada. E isso fica
demonstrado nos dois comentários da Figura 1 apresentado na introdução deste
estudo. A jovem que realizou o aborto é comparada a uma assassina e sua morde
601
de alguma forma é percebida como um “castigo” pelo ato cometido. Apenas a
vida do feto deve ser enlutada nessa circunstância.

Já os grupos sociais favoráveis à interrupção voluntária da gravidez são


integrados por sujeitos sociais cujos marcos de reconhecimento não incorporam
o feto como uma vida a ser enlutada. Podendo, assim, ser destruída em
conformidade com a escolha da mulher que a gera. No caso do Brasil, o aborto
clandestino ou inseguro tem sido um problema de saúde pública devido à
quantidade de mulheres que morrem como consequência da realização do
procedimento em situações precárias e ilegais.

Por isso, que muitas pessoas são a favor que a liberdade reprodutiva
inclua o aborto como uma escolha possível para uma gravidez ocorrida em
quaisquer situações. A vida das mulheres, nessa perspectiva, é enlutável mesmo
quando ela decida não gerar uma criança. O primeiro comentário da Figura 2
representa a opinião de uma pessoa que lamenta a morte da jovem que realizou
o aborto e foi encontrada morta. Essa pessoa culpa o governo pelo ocorrido.

Se coexiste na sociedade diferentes pontos de vista sobre o enlutamento


do feto, por que o aborto só é permitido no Brasil, um Estado-Nação dito laico
na Constituição de 1988, em algumas situações específicas e mesmo assim, com
restrições? Por que não existe a liberdade de escolha para as mulheres? O que
percebemos é que todos defendem a vida, contudo com compreensões
diferenciadas sobre vida, organismo vivo, bem como, o direito a ter uma morte
chorada, lamentada. E devido ao sistema político e cultural que vivemos com
suas raízes na biopolítica, os corpos seguem sendo agenciados por mecanismos

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capitalistas de poder mascarados de aspectos culturais por aspectos biológicos e


naturais.

REFERÊNCIAS

BORBA, Rodrigo. A linguagem que importa? Sobre performance,


performatividade e peregrinações conceituais. In: Cadernos de Pagu n.33, jul/dez
de 2014. p.441 a 474. 602

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.


Tradução de Renato Aguiar. 5° ed. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira,
2013.

____. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Tradução Sérgio


Tadeu de Neimeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha; revisão de tradução
de Marina Vargas; revisão técnica de Carla Rodrigues. 1° ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2015.

____. Vida Precaria: el poder del duelo y la violência. Traduzido por Fermún
Rodríguez. 1° ed. Buenos Aires: Paídos, 2006.

FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de


France (1977-1978). São Paulo, SP: Martins Fontes, 2008.

____. História da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução de Maria Theresa


da Costa Alburquerque e J. A. Guilhon Alburquerque. Rio de Janeiro, RJ: Graal,
2001

HALBWACHS, Maurice. Los marcos sociales de la memoria. Barcelona,


Espanha: Antrophos Editorial, 2004.

____. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2a ed. São Paulo, SP:
Centauro, 2006.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. IBGE


Pesquisa nacional de saúde 2013 Disponível em

http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/pesquisas/pns/default.asp Acesso em

ISBN: 978-85-65957-07-6
Rio de Janeiro
Ed. Anpuh-Rio
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Rio de Janeiro, 27 e 28 de outubro de 2016.

23/01/2016.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. IPEA. Retrato das


desigualdades de gênero e raça. ONU Mulheres, Secretaria de Políticas Públicas
para Mulheres - SPM, Secretaria de Políticas de Promoção de Igualdade Racial
– SEPPIR. 4° ed. Brasília, 2011

____. Avaliando a efetividade da Lei Maria da Penha. Texto para discussão, n.


2.048. Brasília, DF, março de 2015. Disponível em: 603

http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/3538/1/td_2048.pdf. Acesso em
10/09/2015.

PINTO, Joana Plaza. Linguagem, feminismo e efeitos de corpo. In: SILVA,


Daniel Nascimento e; FERREIRA, Dina Maria Martins; ALENCAR, Claudiana
Nogueira de (orgs.). Nova pragmática: modos de fazer. São Paulo, SP: Cortez,
2014, p. 207-230.

____. O corpo de uma teoria: marcos contemporâneos sobre os atos de fala.


Cadernos de Pagu, n. 33, Universidade Estadual de Campinas – Unicamp,
Campinas, SP, n. 5, p. 117-138, jul./dez. 2009a.

____. Atos de autoria: assinaturas rasuras, rapturas. In: Revistas Investigações,


v. 22, n. 1, 2009b.

PEREIRA, Carmen Lúcia Ribeiro. Nosso corpo nos pertence? Construção da


memória sobre o feminismo pelo discurso político. Janeiro de 2014. 319 páginas.
Tese (Doutorado em Memória Social). Programa de Memória Social,
Universidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

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604

ST 5
Perspectivas transculturais e
transnacionais de gênero

Coordenação
Profa. Dra. Ana Paula Vosne Martins
(UFPR)

Profa. Dra. Andréa Mazurok Schactae


(IFPR)

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A MULHER EM SELEÇÃO: REPRESENTAÇÕES TRANSNACIONAIS


NO CONTEXTO DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Renan Reis Fonseca*

Introdução

A Segunda Guerra Mundial se mostrou um momento decisivo para que


605
novas formas de organização social e política pudessem ser vivenciadas por
mulheres e homens, tanto durante o conflito quanto após seu término. A entrada
dos Estados Unidos na guerra, em 1941, marcou o momento em que muitas
mulheres foram convocadas a ocupar, no home front, os postos de trabalho
masculinos, principalmente dentro das indústrias, uma vez que grande parte dos
homens norte-americanos passou a ocupar os fronts de guerra na Europa e nas
demais frentes do conflito. Muitas dessas mulheres que se apresentaram ao
trabalho fabril naquele momento, desde finais do século XIX e início do XX, já
ocupavam diversos setores das indústrias, principalmente os têxteis. O conflito
acentuou as possibilidades e fez com que muitas mulheres se destacassem em
postos anteriormente a elas vedados, como nos setores aéreos e de indústria
pesada.

O papel da mulher na sociedade ganhava, então, novos contornos e


possibilidades e, uma vez que se diferia de momentos históricos anteriores, fez-
se necessário uma rearticulação dessas representações, abarcando, agora, além
dos já tradicionais, novos olhares para e sobre as mulheres. O modo como estas
(re)configurações foram representadas em duas revistas, a norte-americana
Reader’s Digest e sua versão brasileira Seleções do Reader’s Digest, pode
fornecer importantes noções para se compreender questões que nas décadas
seguintes à Segunda Guerra Mundial ganhariam destaque, como a ascensão e
conformação de uma classe média de pretensões universais nos Estados Unidos,
que seria propulsora para uma difusão ainda maior do american way of life em

*
Doutorando do Programa de História Social da Universidade de São Paulo. Professor
de História do Colégio Embraer Juarez Wanderley.

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todo o mundo.1

Dentro dessa proposta, como veremos, o Digest e Seleções


comportaram importantes e, por vezes, destoantes e contraditórias
representações das mulheres e homens a partir dos anos 1940. É importante
destacar que esse papel das mulheres durante o conflito da Segunda Guerra
Mundial tem sido resgatado pelos estudos históricos nas últimas décadas.2

Partindo dessas colocações, é importante compreender, portanto, as 606


formas como as revistas do RDA - Reader’s Digest Association foram capazes
de trabalhar as representações e o papel da mulher em diferentes localidades e
contextos. Um dos aspectos a se observar nas revistas do RDA é a maneira como
eram apresentadas as representações dos papéis desempenhados pelas mulheres,
dando atenção a possíveis permanências na forma como a mulher foi
representada, mas também buscando por possíveis transgressões e/ou repressões
nessas mesmas representações nos contextos vivenciados pelos Estados Unidos
e pelo Brasil, ou seja, de que forma essas abordagens ganharam contornos
transnacionais.

“Você será convocada!” - O papel da mulher norte-americana durante a


Segunda Guerra Mundial

Com a entrada definitiva dos Estados Unidos na Segunda Guerra


Mundial, o Digest, uma revista de variedades, adotou abertamente e de forma
intensa uma proposta editorial que versava diretamente sobre a guerra, trazendo
à tona artigos diferentes voltados para os homens e para as mulheres daquele
contexto. Esse direcionamento indica a proposta política do esforço de guerra do

1
Doravante, Reader’s Digest será mencionada apenas como Digest e Seleções do
Reader’s Digest como Seleções.
2
Sobre a mulher e o contexto da Segunda Guerra Mundial, além da obra citada na nota
anterior, ver: HARTMANN, Susan M.. The Home Front and Beyond: American
Women in the 1940s. Boston: Twayne Publishers, 1982; MAY, Elaine Tyler.
Homeward Bound: American families in the cold war era. New York: Basic Books,
2008; WEATHERFORD, Doris. American Women and World War II. New York:
Castle books, 2008; YELLIN, Emily. Our mother’s war: American women at Home
and at the Front during the World War II. New York: Simon and Schuster, 2004.

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qual a revista fazia parte.3 Destaca, também, que a organização dos papéis
desempenhados pelas mulheres, seja no trabalho ou na organização doméstica,
eram fundamentais para o sucesso dos Aliados, agora liderados pelos Estados
Unidos, contra a ameaça que o Eixo representava.4

De uma maneira geral, muitos dos artigos publicados ressaltavam a


necessidade do trabalho feminino e da contribuição das mulheres no homefront.
Nesse momento, muitas delas precisaram lidar com a mudança de uma estrutura
607
de vida que havia acabado de se reorganizar após os anos de depressão nos
Estados Unidos. Ainda assim, as mulheres tiveram uma participação
fundamental para o sucesso dos Aliados no front de guerra.

A convocação das mulheres para participarem do esforço de guerra


apareceu de diversas formas na revista. A mais direta, no entanto, veio em
fevereiro de 1943, quando no artigo de título You will be mobilized (Você será
convocado), o articulista destaca:
nós devemos utilizar nosso poderio feminino até um ponto
nunca sonhado antes na América. Na Rússia as mulheres
estão lutando; atrás das linhas elas estão fazendo o trabalho
dos homens. Esta é uma das razões pelas quais o exército
russo tem tido uma performance tão magnífica. Recentemente
eu estive em um navio comercial russo e um porto americano
e a capitã e 47 dos 50 tripulantes eram mulheres. Eu não
acredito em mandar as mulheres para a batalha. Mas acredito
que elas possam manejar armas antiaéreas em todas as nossas
cidades costeiras. Algumas podem se ferir, assim como as
enfermeiras se feriram em Corregidor, mas homens e
mulheres estão juntos nesta guerra.5

3
A publicação de Seleções do Reader’s Digest no Brasil, a partir de 1942, compreende
parte desse esforço, assim como a publicação de Seleciones del Reader’s Digest, revista
em espanhol que foi distribuída por toda a América Latina. Ambas foram peças
estratégicas durante a Política da Boa Vizinhança, implementada pelo governo dos
Estados Unidos em relação à América Latina.
4
Diversos trabalhos trataram das diferentes formas de participação das mulheres ao
longo do conflito. Cabe destacar, principalmente: HARTMANN, Susan M.. op. cit.;
WEATHERFORD, Doris. op. cit.; YELLIN, Emily. op. cit..
5
Reader’s Digest (fev. de 1943, p.7-10). Doravante, todas as traduções são de minha
autoria. No original: We must use our womanpower to an extent heretofore undreamed
of in America. In Russia, women are fighting in battle; behind the lines they are doing
men’s work. That’s one reason why the Russian army has performed so magnificently.
I was recently on a Russian merchant ship in an American port and the captain and 47
of the crew of 50 were women. I don’t believe in sending women into battle. But I do
believe they can man anti-aircraft guns in all our coastal cities. Some may be wounded,

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As portas do mercado de trabalho se abriam para as mulheres: elas


poderiam entrar no esforço de guerra e não apenas nas indústrias, mas atuando
na defesa interna. De forma mais modesta, poderia também atuar nas operações
de guerra fora das fronteiras nacionais. Em outro artigo intitulado American
Women in the war (As mulheres americanas na guerra), de janeiro de 1944,
Eleanor Roosevelt exalta a contribuição das mulheres no esforço de guerra, seja
608
no campo de batalha, com as Wacs - Women’s Arm Corps (únicas mulheres
autorizadas a embarcar para o conflito), seja no homefront.6 Em um lúcido texto,
a primeira dama norte-americana daquele momento destaca a contribuição das
enfermeiras, das mulheres que adentraram as grades da indústria, mas também
daquelas que se dedicaram a manter as atividades rotineiras da nação
funcionando. Eleanor Roosevelt contesta a limitada possibilidade de
contribuição das mulheres nos campos de batalha, sugerindo que estas poderiam
contribuir de forma mais intensa:
até agora somente as Wacs puderam ir para o exterior. Isso
me parece ridículo. Esta restrição das atividades dos nossos
outros serviços militares femininos não é devido a nenhum
sentimento do congresso ou das autoridades militares de que
as mulheres não podem realizar este trabalho. É devido, ao
invés disso, a um falso cavalheirismo que insiste que as
mulheres devem ser protegidas dos perigos e dificuldades da
guerra, mesmo contra sua vontade. Algumas mulheres
aceitam este ponto de vista, mas eu acredito que a maioria de
nós preferiria compartilhar integralmente as experiências dos
homens.7

as nurses were wounded at Corregidor, but men and women are in this war together.
Thousands of women now in non-essential work must change their jobs. Millions not
now in jobs must go to work. Those women who cannot work in factories and shops will
perform such essential tasks as caring for children whose mothers are working in
munitions plants. Nurses who have married and retired must resume their profession.
[…] This is a war in which all of us must fight side by side, civilians and military, men
and women, Russians, British, Chinese. A united effort will lift us spiritually. We will
become an undefeatable nation.
6
O artigo foi publicado em Seleções no mês de abril de 1944 com o título de Mulheres
da América ao serviço da vitória. A tradução do artigo simplifica algumas colocações
de Eleanor Roosevelt, por este motivo optei por realizar uma tradução do material
original publicado pelo Digest.
7
Reader’s Digest (jan. de 1944, p. 42-45). No original: So far the Waacs have been the
only ones allowed overseas. This seems to me ridiculous. The restriction on the activities
of our other women’s military services is not due to any feeling of Congress or the
military authorities that women cannot do the job. It is due, rather, to a false chivalry,

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A primeira dama acrescenta que essa participação mais efetiva seria


produtiva para o pós-guerra, uma vez que homens e mulheres seriam capazes de
se reajustar melhor por terem partilhado de experiências semelhantes. Ao se
referir às mulheres que se mantiveram no lar, cuidando do homefront, Eleanor
comenta que: “as muitas centenas de mulheres que não estão fazendo nenhum
trabalho incomum, mas estão cuidando de suas casas calma e eficientemente,
609
estão contribuindo mais para o esforço de guerra do que imaginam.”8 Dessa
forma, a mulher era convocada a ocupar novos espaços, o que levava a
questionamentos que começavam a atingir a estrutura social, mas também estatal
da nação.

Anteriormente à entrada norte-americana no conflito, o Digest, quando


publicava algum artigo sobre o papel da mulher que envolvesse aspectos do
trabalho, em suas mais variadas formas, geralmente as apresentava em profissões
a elas tradicionalmente permitidas e reservadas, tais como secretárias, escritoras,
copy-desks. O ambiente industrial pouco ou quase nunca era referido.
Posteriormente à entrada dos Estados Unidos no conflito, e devido às
necessidades de suprir as lacunas profissionais existentes, o discurso sobre a
apresentação da mulher no ambiente profissional se modificou e passou a
relacionar os mais diversos aspectos do mundo social. Se em 1940 se falava das
secretárias e das clipper girls, a partir de 1942, seria a mulher, agora também na
indústria, dedicada, consciente de sua participação social, que ganharia as
páginas das revistas do RDA.

Em meio a diversas páginas dedicadas à guerra e ao contexto local dos


Estados Unidos, um artigo publicado em fevereiro de 1944 destoa dos demais
no que se refere à representação da mulher. O texto resgata uma mulher do século
XIX e sua luta pelo sufrágio feminino, apresentando-a como uma mulher

which insists that women be protected from war hazards and hardships, even against
their own wishes. Some women accept this point of view, but I believe most of us would
rather share more fully in the experiences of our men.
8
Ibidem, p. 43. No original: the many thousands of women who are not doing any
unusual work, but are simply running their houses quietly and efficiently, are
contributing more to the war effort than they themselves realize.

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exemplar. Trata-se de um texto escrito por Orland Kay Armstrong, intitulado


Susan B. Anthony, Trail Blazer (Susan B. Anthony, a pioneira) dedicado à
pioneira sufragista norte-americana, Susan B. Anthony (1820 – 1906), e
publicado em fevereiro de 1944.9 O texto chama a atenção pela figura retratada.
O artigo foi republicado por Seleções em maio de 1944, com o título de Paladina
dos direitos da mulher.10

Inúmeras páginas do Digest trataram de grandes personalidades que


610
contribuíram para transformações sociais, no entanto, a maior parte delas se
dedicava aos homens. Segundo a própria revista:
o Reader’s Digest tem, nos últimos anos, apresentado uma
galáxia de humanitários e desbravadores sociais que tem
contribuído para o nosso crescimento como nação. Esta é a
dramática história de uma senhorinha vigorosa e ativa que
lutou uma batalha de 58 anos por seu sexo - e ganhou.11

O periodo da Guerra e o estímulo para atuação das mulheres permitia recuperar


mulheres de destaque e que lutavam por inserção da mulher no espaço público.
Susan B. Anthony compôs, juntamente com Elizabeth Cady Stanton e Lucy
Stone, um grupo de mulheres que, obstinadamente, lutou ao longo do século XIX
e início do XX, principalmente, pelo direito ao voto feminino. Por este motivo
ficaram conhecidas como sufragistas, representantes da primeira onda
feminista.12 O artigo, exaltando a trajetória da pioneira, destaca a participação
ativa de Susan Anthony em prol da emancipação das mulheres e termina
salientando que
A cruzada que ela empreendeu continuou. Uma década depois
a Guerra Mundial a deu um novo ímpeto quando as mulheres
tomaram os lugares dos homens em escritórios, lojas e no
campo. Em 1920 e emenda do sufrágio foi ratificada. Em sua
própria terra o programa está quase terminado. Em 1943

9
Reader’s Digest (fev. de 1944, p. 89-92). Sobre a vida e participação de Susan
B.Anthony no movimento sugragista, ver: HYMOWITZ, Carol; WEISSMANN,
Michal. A History of women in America. New York: Bantam Books, 1978.
10
Seleções do Reader’s Digest (mai. de 1944, p. 51-54).
11
Reader’s Digest (fev. de 1944, p. 89). No original: The Reader’s Digest has, in recent
years, presented a galaxy of humanitarians and social pathfinders who have contributed
to our rise as a nation. Here is the dramatic story of the crinoline-clad dynamo who
fought a 58-year battle for her sex – and won.
12
Cf. HYMOWITZ, Carol; WEISSMANN, Michal. op. cit.

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vários estados aprovaram decretos permitindo serviço de júri


e concedendo completos direitos civis às mulheres.
Se Susan Anthony estivesse viva hoje ela estaria maravilhada
de como seus sonhos se tornaram verdade completamente.
Mas ela ainda estaria lutando, pois o progresso é um caminho
sem fim.13

O objetivo do artigo era menos o de tratar da luta pelo sufrágio na virada


do século XIX para o XX e mais o de validar a atuação feminina durante a
Guerra. Buscava apresentar às leitoras o exemplo de uma luta bem sucedida de 611
uma mulher em outro contexto. Com a aquisição de novos direitos de cidadania,
cabia a mulher, agora, lutar para mantê-los diante da ameaça que a guerra
colocava aos Estados Unidos e ao povo norte-americano.

Com a ebulição social que a guerra causava, o Digest se ateve, também,


aos problemas que, segundo a revista, atentavam contra a sociedade e a moral
cristã. Dentre estes problemas, a transmissão de doenças sexualmente
transmissíveis causava preocupação ao governo norte-americano, que via, na
migração de muitas jovens da zona rural para os centros urbanos, uma de suas
causas. Havia um problema a ser resolvido caso o deslocamento e atividade das
mulheres não contribuísse para o que se chamava esforço de guerra. Preocupava
mais a atuação das mulheres nesses casos do que a sua saúde e seu bem estar.
No artigo, de título Trouble on the street corners (Problema das esquinas),
publicado em maio de 1943, a sexualidade feminina é condenada e a mulher é
culpabilizada pela difusão de doenças venéreas.14 Inúmeras jovens, muitas entre
15 e 17 anos, que acabaram trabalhando na prostituição, seriam responsáveis
pela epidemia que assolava a nação.15 O artigo isenta o homem de qualquer

13
Reader’s Digest (fev. de 1944, p. 92). No original: the crusade she had carried on
continued. A decade later the World War gave it added momentum, when women took
the places of men in offices, shops and fields. In 1920 the suffrage amendment was
ratified. In her own land the program is nearly complete. Several states in 1943 passed
acts permitting jury service and otherwise rounding out full citizenship rights for
women. If Susan Anthony were living today she would be astonished at how completely
her dreams have come true. But she would still be crusading, for progress is a path that
has no end.
14
Reader’s Digest (mai. de 1943, p. 43-46).
15
O assunto foi amplamente discutido em: YELLIN, Emily. The “wrong kind” of
woman: prostitutes, unwed mothers, and lesbians. In: YELLIN, Emily. op. cit..

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culpa, seja a de manter relações sexuais com as jovens, seja a de, também, ser
disseminador de doenças. As mães do presente deveriam se responsabilizar,
naquele contexto, pela possível imoralidade das mães do futuro. O artigo
acrescenta que:
a raiz do problema está nos lares americanos. Atrás de toda
garota delinquente, de toda tragédia de promiscuidade e
doença, está a sombra de pais delinquentes. Todo pai em
serviço militar deixa uma responsabilidade dupla para sua
esposa; toda mãe na linha de produção tem um trabalho em 612
dobro para realizar. As mães americanas hoje devem se tornar
profundamente conscientes da importância da vida familiar;
se não estiverem, muitas de nossas mães do futuro terão um
passado sórdido de imoralidade e doenças venéreas.16

O Digest dedicou especial atenção, também, às Wacs: as únicas


mulheres a comporem os quadros do exército e a participarem diretamente nos
fronts de guerra, e que foram de extrema importância ao longo do conflito,
servindo desde funções de escritório até enfermaria. 17 O grupo sofreu inúmeras
críticas ao longo da guerra, sendo, por vezes, acusado de perder a feminilidade
e até de cometer atos lascívos. Muitas mulheres pertencentes ao grupo foram
rotuladas como masculinizadas, o que fez com que uma cruzada contra a sua
participação no embate fosse iniciada. O preconceito dos argumentos é notável:
a mulher que deixa o país para um trabalho como enfermeira, ou seja, junto a
doentes e mutilados, é vista como aquela que perde a feminilidade. No entanto,
o governo norte-americano se preocupou em destacar sua importância e
comprometimento, como visto acima nas colocações de Eleanor Roosevelt. O
Digest apresentou as Wacs em um artigo de título Ladies of the Army (Moças do
Exército) e assim as descreveu:

16
Reader’s Digest (mai. de 1943, p. 43-46). No original: the root of the problem lies in
the American home. Back of every delinquent girl, every tragedy of promiscuity and
disease, stands the shadow of delinquent parents. Every father in uniform leaves a
double responsibility with his wife; every mother on the production line has a double
job to do. America’s mothers today must become more deeply conscious of the
importance of family life; if they do not, too many of our mothers of the future will have
a sordid background of immorality and veneral disease.
17
Para maiores detalhes sobre a participação das Wacs no conflito, ver:
WEATHERFORD, Doris. The military woman. In: WEATHERFORD, Doris. op. cit..
YELLIN, Emily. This man’s Army: Wacs. In YELLIN, Emily. op. cit..

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o motivo por trás dos alistamentos é um homem nas forças


armadas. Namoradas, esposas, mães e filhas desejam
compartilhas as experiências de guerra com seus homens em
serviço militar. Em alojamentos, onde é permitido a Waac ter
três fotos, fotos de homens ultrapassam as outras de duas para
uma. Mas não há estrelas de cinema. Todas as fotos estão lá
por parentesco – de sangue ou do coração.
As Wacs são boas soldadas, mas no temperamento ainda são
femininas [...] E depois da guerra? A maioria das Wacs, claro,
quer se casar e se tornar mãe. Algumas planejam trabalhar nas
áreas para as quais foram treinadas na corporação. Muitas
querem permanecer na corporação e participar da grande 613
reconstrução do pós-guerra no exterior. Elas acreditam que é
apropriado que a mão de uma mulher alimente as crianças
famintas da Europa.18

O artigo deixa clara a intenção de reafirmar que, apesar de comporem


as forças armadas e participarem ativamente no front de guerra, essas mulheres
não perderam sua “feminilidade”, ainda eram motivadas pela paixão e pelo
sonho do casamento, além de estarem atreladas à lógica da família.19 A ideia de
que a mulher pudesse escolher não se casar e não ter filhos não passava pela
lógica da época, o que era reafirmado pelas revistas do RDA. As que se
dedicassem às atividades do pós-guerra assumiriam funções relacionadas ao
inerente senso materno, como alimentar as crianças famintas.

Se durante os primeiros anos do conflito o Digest valorizava o trabalho

18
Reader’s Digest (mai. de 1943, p. 85-88). No original: the reason behind most
enlistments is a man in the armed forces. Sweethearts, wives, mothers and daughters
long to share wartime experiences with their men in uniform. In barracks, where the
Waac is allowed to put up three pictures, photographs of men outnumber others better
than two to one. But there are no movie stars. Every picture is there by right of kinship
– either blood or heart. The Wacs are good soldiers, but in temperament they are still
feminine. […] And after the war? Most Wacs, of course, look forward to marriage and
motherhood. Some plan to work at jobs for which they have been trained in the Corps.
And many want to stay in the Corps and take part in the big postwar reconstruction job
overseas. They think there is something appropriate in a woman’s hand feeding the
hungry children of Europe.
19
O artigo foi reproduzido em Seleções na edição de agosto de 1943 com o título de
Mulheres em passo de marcha. A versão em português anunciava que “as WACs são
bem femininas, mas nem por isto deixam de ser bons soldados”. (Seleções do Reader’s
Digest, ago. de 1943, p. 54) Seleções já havia publicado, em junho de 1943, um artigo
intitulado Mulheres de armas da América, em que abordava a participação das mulheres
norte-americanas no esforço de guerra. O artigo tratou das mulheres que ocupavam
cargos de operárias na Intendência de Armamentos. (Seleções do Reader’s Digest, jun.
de 1943, p. 71-73)

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feminino e a capacidade das mulheres em aprender e se dedicar ao trabalho, a


partir de 1944, visualizando o final da guerra - e com o retorno dos soldados para
casa prontos a ocupar os postos de trabalho, a mulher deveria recolher-se ao seu
papel de dona de casa - a revista começou a apresentar artigos destoantes
daqueles. Em They learned about women - why do women workers act like
women? And what can be done about it? (Eles aprenderam sobre as mulheres
(por que as trabalhadoras agem como mulheres? O que pode ser feito sobre isso?)
614
-, artigo de Gretta Palmer, o discurso se modifica.20 O artigo foi reproduzido,
também, por Seleções em dezembro de 1944 com o título de Vamos aprendendo
algo acerca da mulher.21 As mulheres trabalhadoras no texto são apresentadas
como indivíduos repletos de manias e problemas que estavam comprometendo
o bom andamento do trabalho industrial. O artigo destaca que:

Na Consolidated Vultee Aircraft Corporation, por exemplo,


onde há mais mulheres do que homens empregados, as faltas
ao trabalho entre as mulheres foram cinco vezes maiores do
que a dos homens. Além disso, quatro em cada cinco
mulheres pediram demissão antes de um ano. Recrutar e
treinar mais mulheres para suas vagas foi custoso tanto em
tempo quanto em dinheiro; manteve trabalhadores
qualificados ocupados ensinando ao invés de produzindo.
[...] Mulheres estão principalmente interessadas em serem
mulheres. Seus interesses em qualquer outro tipo de sucesso
fica em segundo lugar. Talvez possa se dizer que, da mesma
maneira, homens estão interessados em serem homens – mas
ser homem inclui se dar bem no mundo dos homens. Ser uma
mulher de sucesso raramente inclui isso.
Trabalhar por um salário é algo que uma mulher faz até: - até
ela encontrar o homem certo, até o bebê chegar, até que seu
marido volte para casa [...] até a guerra ser ganha.
[...] O que vai ser delas quando elas voltarem para suas casas?
“Elas serão melhores esposas e donas de casa,” Senhor
Jackson insiste. “Elas saberão quão cansado um homem está
quando chega em casa. Elas saberão o que é ganhar dinheiro;
significa trabalho duro. Elas terão aprendido o valor do tempo
e como o aproveitar; seu novo conhecimento do valor do
sistema e da ordem serão refletidos da manutenção de seus

20
Reader’s Digest (set. de 1944, p. 105-107). No original: They learned about women
(why do women workers act like women? And what can be done about it?). Como
veremos no próximo subtítulo, o artigo em questão destoa drasticamente da construção
da mulher que trabalhou, nos anos de guerra, nas indústrias de aviões.
21
Seleções do Reader’s Digest (dez. de 1944, p. 86-88).

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lares. Acima de tudo, elas estão aprendendo como é


importante se dar bem com as pessoas – quanto um lar
harmonioso vale, mesmo em termos de eficiência do trabalho
e portanto no pagamento.”22

Foi dessa forma que o Digest apresentou o grupo das mulheres norte-
americanas que trabalharam nas indústrias durante os anos de guerra: se antes
elas se fizeram necessárias ao trabalho fabril, ao término do conflito, poderiam,
novamente, ocupar o lugar em que historicamente “melhor desempenhavam” 615
suas funções - o lar. Segundo o texto, essas mulheres agora estavam cientes do
esforço desempenhado pelo homem na sociedade e no mundo do trabalho, por
terem vivenciado uma experiência similar àquela deles. Em outras palavras,
agora elas sabiam quão dura era a vida do homem. Não era possível esperar algo
diferente: a lógica do período está vinculada exclusivamente à ótica do homem.
Note-se que aqui está se falando de mulheres brancas de classe média. As
revistas são porta-vozes da classe média e dirigidas à classe média, e há pouco,
portanto, sobre a mulher pobre e negra. Segundo a lógica do Digest, só era pobre
- o loser (perdedor) - quem não conseguira com esforço próprio subir na vida.
Resta saber por quanto tempo ainda estariam essas mulheres dispostas a retornar
à lógica familiar, agora cientes dos outros papéis que poderiam ocupar ou
desempenhar em outros espaços sociais que não o lar.

22
Reader’s Digest (set. de 1944, p. 105-107, grifos do original). No original: At
Consolidated Vultee Aircraft Corporation, for example, where more women are
employed than men, absenteeism among the women was five times as bad as among the
men. Also four out of five women quit before they had worked a year. Recruiting and
training more women to take their places was expensive both in time and money; it kept
expert workers busy teaching instead of producing.[…] Women are primariry interested
in being women. Their interest in any other kind of success runs a bad second. Maybe
it could be said with equal truth that men are primarily interested in being men – but
being a man includes making good in a man’s world. Being a successful woman seldom
includes that at all. Working for wages is something a woman does until: - until she
finds the right man, until the baby comes, until her man comes home […] until the war
is won. […] And what will become of them when they go back to their homes?“They
will be better wives and homemakers,” Mrs. Jackson insists. “They will know how tires
a man is when he comes home. They will know what it means to earn money; it means
hard work. They will have learned the value of time, and how to budget it; their new
knowledge of the value of system and order will be reflected in their housekeeping.
Above all, they are learning how important it is to get along with people – how much a
harmonious home means, even in terms of efficiency on the job, and hence in the pay
envelope.”

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Guerra e representações da mulher em Seleções do Reader’s Digest

As dimensões dos conteúdos que eram ou não considerados


transnacionais pelas revistas do RDA - hábeis de serem publicados tanto nas
edições dos Estados Unidos quanto nas do Brasil -, podem ser melhor
compreendidas a partir da análise das representações da mulher também em
Seleções, como - ou não - uma republicação dos artigos já veiculados na versão 616
norte-americana da revista. Para isso, faz-se necessário atentar-se para o fato de
que revistas como Seleções não eram exclusivamente uma tradução do Digest
norte-americano. Como o nome diz, a revista era uma seleção de artigos do
Digest traduzidos para o português que, muitas vezes, sofriam cortes e
adaptações.

Essa proposta de temas que circulavam em âmbito transnacional, no


entanto, revela o quanto Brasil e Estados Unidos carregavam em si imensas
diferenças estruturais, mesmo a intenção de difundir a cultura norte-americana
em território brasileiro sendo grande. Enquanto os Estados Unidos já eram
primeira economia em 1939, sendo que com o final da Segunda Guerra
alcançaram a almejada hegemonia mundial, o Brasil era um país que ainda lutava
para se industrializar. Em terras brasileiras, o deslocamento populacional do
campo acabaria por inchar as grandes cidades. Havia uma concentração no litoral
e zonas desconhecidas no interior, como Goiás e Amazonas, que atraíam a
curiosidade de brasileiros e norte-americanos, o que refletiu em diversos artigos
de Seleções, mas também do Digest.23

Além disso, havia as diferenças culturais, como o fato de os Estados


Unidos serem basicamente um país protestante e o Brasil, católico.
Representações sobre a mulher - o seu papel na família, modelos de conduta,
além de hábitos de consumo - cruzaram fronteiras e foram amplamente
veiculados nos Estados Unidos e no Brasil. As diferenças econômicas e políticas

23
Cf. JUNQUEIRA, Mary Anne. Ao sul do Rio Grande: imaginando a América Latina
em seleções: oeste, wilderness e fronteira (1942-1970). Bragança Paulista: Ed. da USF,
2000.

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entre os dois países também se refletiam no âmbito social. As mulheres nos


Estados Unidos adentraram o mercado de trabalho desde o início do século XX,
principalmente durante a Segunda Guerra Mundial, como apresentado, e esse
deslocamento e maior possibilidade de trânsito, entre o domínio privado e o
público, suscitaram novas formas tanto de se representar as mulheres, quanto de
vivenciar, propriamente, os papéis e relações de gênero.24

O distanciamento entre Brasil e Estados Unidos tornou-se menor em


617
agosto de 1942, quando o Brasil, ainda que no auge do Estado Novo de Getúlio
Vargas (1937 - 1945), declarou guerra à Alemanha e à Italia. Iniciava-se, então,
um momento decisivo para a política e para as relações exteriores brasileiras.
Em pouco tempo o Brasil se aproximou dos Estados Unidos e passou a ser um
dos países estratégicos para a difusão da política e cultura daquele país na
América do Sul. Seleções, neste contexto, foi um espaço de intensa propaganda
para as forças aliadas ao veicular inúmeros artigos sobre o conflito e os seus
participantes.

Grande parte dos números do Digest entre 1942 e 1945 foram dedicados
ao conflito, seus personagens (heróicos ou não), e aos possíveis desdobramentos
futuros. A mesma proporção foi adotada por Seleções, mesmo a participação de
Brasil e Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial ter se dado de forma tão
distinta ao longo daqueles anos, inclusive no que se refere à participação efetiva
das mulheres. Antes de o Brasil entrar no conflito, e mesmo após a sua entrada
o trabalho feminino nas fábricas não ter sido tão destacado, foi a contribuição
das mulheres norte-americanas na indústria bélica que ganhou maior destaque
em Seleções. As mulheres brasileiras pouco foram retratadas.

Em artigo publicado em agosto de 1942, a revista brasileira evidenciou


como o trabalho feminino norte-americano foi importante e fomentou uma

24
Sobre o contexto norte-americano, ver: DIGGINS, John Patrick. The Proud Decades:
America in war and Peace, 1941-1960. New York: W.W. Norton & Company, 1989.
Mais informações sobre a mulher nos Estados Unidos podem ser encontradas em:
CHAFE, William H.. The paradox of change: american women in the 20th century.
Oxford: Oxford University Press, 1992. Sobre a mulher e o contexto da Segunda Guerra
Mundial, além das obras citadas, ver: WEATHERFORD, Doris. op. cit.

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"saudável" competição entre homens e mulheres.25 Intitulado por Seleções como


A mulher acelera a produção de aviões, o artigo havia sido publicado pelo Digest
em junho de 1942 com o título de New women workers speed plane production.
É possivel perceber que a grande maioria dos artigos veiculados sobre as
mulheres e o trabalho no período do pós-guerra foram reproduzidos por ambas
as revistas, o que reforça a percepção de que o papel da mulher no período foi
abordado de forma transnacional.26
618
O texto destacava o crescimento diário da mão-de-obra feminina nas
fábricas destinadas à produção de aviões, salientando a eficiência das mulheres,
que realizavam diversas tarefas com maior rendimento e menos tempo.27 Esta
eficiência estaria sendo benéfica para a produção por gerar uma competição entre
homens e mulheres, pois era usual a prática de substituir um homem de baixa
produtividade por uma mulher. O homem, ofendido, passava a produzir mais.
Tais elementos denotam desigualdades históricas. O homem, tanto no âmbito
privado, mas principalmente no público, não poderia se ver em uma posição
inferior à da mulher, nem mesmo em um contexto emergencial de guerra.

Interessante notar que o artigo em questão destaca o fato de que aqueles


empreendedores que viram a entrada das mulheres no mercado de trabalho com
resistência mudaram de opinião. Tal colocação tinha o claro intuito de também
convencer os leitores. Segundo o texto,
uma razão aliás por que o emprego de mulheres vai dando tão
bons frutos, é que houve efetivamente, na indústria de
aviação, uma sensível mudança em métodos de fabrico. Para
alcançar a produção em massa, muitas operações se
converteram em outras de menor vulto que se prestam mais a
repartir-se, tornando-se por consequência mais monótonas.
Ora, a costura e o tricô tornam as mulheres em geral
habituadas à monotonia. Têm elas, em regra, dedos mais
destros, e são mais pacientes que os homens.28

25
Seleções do Reader’s Digest (ago. de 1942, p. 71-74).
26
Reader’s Digest (jun. de 1942, p. 102-105).
27
Seleções do Reader’s Digest (ago. de 1942, p. 71-74). Como destacado no subtítulo
anterior, o presente artigo apresenta os aspectos positivos da entrada das mulheres no
processo produtivo industrial, enquanto o artigo publicado pelo Digest em 1944 visa
descaracterizar essa construção.
28
Ibidem, p. 72.

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O excerto deixa claro que o sucesso do trabalho feminino nos Estados


Unidos se deve mais às mudanças sofridas no processo produtivo do que, de fato,
à competência das mulheres. Os estereótipos construídos sobre os papéis de
homens e mulheres na sociedade, entretanto, justificariam o sucesso das
mulheres nessas novas funções. O artigo subentende que o homem ativo não se
coaduna bem com funções monótonas, ao contrário da mulher que faz tricô ou
costura. Não havia saída: mesmo entrando no serviço de Guerra, o trabalho da
619
mulher era visto como menor. Com um processo produtivo mais monótono e
simples, as mulheres poderiam assumir tais postos de trabalho. Desta forma,
percebe-se como as concepções de gênero se adaptam a novos contextos
históricos utilizando-se de velhas concepções, nas quais mulheres e homens
possuem características homogêneas e essencializadas, mesmo em contextos tão
distintos. Apesar de realidades díspares entre Brasil e Estados Unidos, o artigo
se mostrou uma peça essencial para o esforço de guerra em ambas as nações.

Sobre o perfil das trabalhadoras, o texto indica uma preferência pelas


mulheres casadas, com maridos mobilizados para a guerra, ou as viúvas, entre
25 e 35 anos, que possuíssem filhos para sustentar. As mulheres com alta
instrução e as "muito bonitas" não eram o alvo das contratações. Percebe-se,
portanto, que as mulheres com tais características eram vistas como
problemáticas pelas indústrias, ou seja, mulheres que poderiam desestruturar as
rígidas hierarquias produtivas e de divisão social do trabalho instauradas. E esse
quesito pareceu valer para ambas as nações.

Outro ponto de destaque na revista Seleções nos anos de guerra foram


os inúmeros artigos de caráter científico publicados que versavam sobre a
realidade de mulheres e homens. Muitos eram assinados por "especialistas",
influentes pesquisadores e médicos. Em um dos artigos, publicado em março de
1942 e assinado pelo renomado médico Alexis Carrel, laureado com o Prêmio
Nobel em 1912, discursos sobre os papéis de mulheres e homens se misturaram
a discursos eugênicos e moralizantes.29

29
Seleções do Reader’s Digest (mar. de 1942, p. 1-5).

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Intitulado Renove seu próprio eu, o artigo aborda a necessidade de uma


vida disciplinada, pois esta levaria à normalidade física, que seria fundamental
para a moralidade social. Segundo Dr. Carrel, falta à "nossa raça [...] injeções de
disciplina, moralidade e compreensão das cousas".30 Para o autor, a
transformação deve vir não do governo, mas dos indivíduos. Importante ressaltar
que neste momento o Brasil vivia o auge do Estado Novo, regime que propunha
um fortalecimento e centralização do poder. Apesar das diferenças no contexto
620
político, artigos como este eram capazes de falar para públicos e países
diferentes.

Em relação a questões concernentes aos papéis de mulheres e homens,


o artigo é enfático: "uma mulher fisicamente capaz de ter uma criança será mais
feliz e mais forte, como pessoa, e mais útil como cidadã, se realmente a tiver" e
conclui apontando que, inversamente, há de ser uma criatura mais fraca, mais
infeliz, menos útil, se se recusa a cumprir esta sua função essencial.31 Assim, da
mesma forma que Seleções era capaz de difundir novas propostas de papeis
sociais para as mulheres - como o que defendia o trabalho da mulher norte-
americana durante a Guerra -, a revista se encarregava também de reafirmar
discursos tradicionais. Carrel utiliza-se de seu status de cientista para prescrever
a conduta correta e aceitável da mulher, advertindo-a do destino de tristeza que
a espera caso decida seguir um caminho diferente. Dessa forma, o artigo reitera
padrões de comportamento ao mesmo tempo em que os associa ao papel social
da mulher a ser desempenhado.

Considerações Finais

O que se pode ressaltar partindo da exposição acima é que discursos,


por vezes divergentes (acesso ao trabalho, retorno ao lar, maternidade), estavam
sendo veiculados durante os anos de conflito e circulando entre Estados Unidos
e Brasil. A essencialização do papel da mulher enquanto mãe, impunha-lhe,
também, um dever enquanto partícipe da sociedade. As revistas, ao relacionarem

30
Ibidem, p. 1.
31
Ibidem, p. 4.

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a possibilidade física/capacidade da mulher de gerar filhos ao seu dever cívico e


as possibilidades de trabalho, por vezes transformavam um dado biológico em
um papel social obrigatório. Essencializavam, portanto, a mulher como
reprodutora por excelência, destacando suas outras atribuições ao longo do
contexto da Segunda Guerra. É importante ressaltar que o apelo à participação
social das mulheres se torna mais evidente após a aprovação de seu direito ao
voto em 1920 nos Estados Unidos e em 1932 no Brasil (abrangência nacional).
621
Neste contexto de guerra, as mulheres deveriam ser lembradas de seu papel
cívico, mas também biológico, evidente, essencial.

Por motivos óbvios, Seleções não trouxe à tona a mulher brasileira no


contexto de guerra. Não houve necessidade da brasileira assumir essa
responsabilidade, mas para a revista, a mulher norte-americana funcionava como
um exemplo a ser seguido pelas leitoras brasileiras. Os artigos que saíram no
Brasil sobre a atuação da mulher norte-americana indicam como devia agir a
mulher em momentos de exceção. Assim como a participação de Estados Unidos
e Brasil foi diversa no que se refere ao conflito, com diferenças extremas nas
atuações em combates, Seleções parece ter se preocupado em trazer à mulher
brasileira mais exemplos da participação da mulher norte-americana em outros
contextos, do que necessariamente no front de guerra. A revista demonstrou,
mais intensamente, o interesse de preparar a mulher brasileira para o pós-guerra,
construindo um imaginário de uma mulher mais ativa socialmente, no entanto,
sem desassociá-la dos atributos do lar e das expectativas de consumo.32 No final
das contas, as novas atribuições e possibilidades se tornavam transnacionais,
pelo menos ao longo do período que durasse o conflito. Com o término da guerra,
Brasil e Estados Unidos, representados por Seleções e Digest, assumiram, grosso
modo, novas propostas discursivas. O que se manteve transnacional, além dos
periódicos, foram as lutas lideradas por mulheres, que cada vez mais

32
Seleções, desde o primeiro número publicado no Brasil, se deteve a difundir produtos
voltados para o ambiente doméstico e para a família, tais como: ar condicionados,
rádios, lavadoras de roupa, geladeiras, máquinas de escrever e de costurar. Por outro
lado, inúmeros produtos, de certo modo inacessíveis ao público, também aparecem nas
páginas de publicidade, como aviões e automóveis.

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ultrapassaram fronteiras.

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A MISSIONAÇÃO NO JAPÃO EM AGOSTINHO DE SANTA MARIA:


UMA PERSPECTIVA DE GÊNERO

Luciana Nogueira da Silva*

Em 1709 veio a lume o livro Rosas do Japam [...], obra religiosa de


cunho laudatório à espiritualidade feminina e que em especial destaca a trajetória
627
de algumas mulheres “japonesas” convertidas ao cristianismo entre 1549 e 1650,
período que convencionou-se chamar de Século cristão no Japão, após termo
cunhado em 1951 por Ralph Charles Boxer1.

Atribuído a frei Agostinho de Santa Maria, religioso professo na


Congregação da Observância dos agostinhos descalços de Portugal, o livro
articula relações de vida, hagiografia, exempla e tratado espiritual a uma
perspectiva histórica sobre a missionação cristã católica no Japão. Intelectual de
“gabinete”, Agostinho de Santa Maria nunca esteve no Japão e produziu a obra
a partir de informações coletadas em produções que circulavam pelo meio
letrado das Ordens. Cita como fontes produções jesuítas como Fasciculus e
Japponicus floribus, suo adhuc mandentibus sanguine (1646), de Antonio
Francisco Cardim (1596-1659); Historia de las missiones que han hecho los
religiosos de la Compania de Iesus. Part.2 (1601), de Luiz de Gusmão (sem
data); e Labor Evangelica, ministerios apostolicos de los obreros de la
Compañia de Iesvs, fvndacion, y progressos de su provincia em las islãs
Filipinas, de Francisco Colin (1592-1660).

Preocupado em informar ao seu leitor o contexto japonês desse período,


Santa Maria, faz, a partir de suas fontes jesuítas, uma “introdução histórica”.
Começa seu relato pela chegada de Francisco Xavier ao Japão, em meados do
século XVI e atravessa todo o “século cristão” enumerando os sucessos e

*
Mestranda em História no PPHR – UFRRJ, Bolsista CAPES. Contato:
luciananogueira1@hotmail.com
1
A expressão “Século Cristão no Japão” foi cunhada pelo historiador britânico Ralph
Charles Boxer que em 1951 publicou o trabalho The Christian Century of Japan, 1549-
1659 que se tornou uma referência para os estudos relacionados à presença jesuíta no
Japão.

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malogros da “empresa da fé” nos governos dos daimyōs2 Oda Nobunaga (1534-
1582), Toyotomi Hideyoshi (1536-1598) e Tokugawa Ieyasu (1543-1616).

Conforme apontado pela historiografia3, em 1614 o governo Tokugawa


reeditou o édito de Hakata, expedido em 1587 pelo daimyō Hideyoshi, o qual
suspendia a autorização para a prática da missionação e determinava a expulsão
dos missionários cristãos do território japonês, medida que influenciou
diretamente as “vidas” das mulheres sobre as quais Santa Maria escreve.
628
Em princípios de 1600, uma viúva japonesa, chamada Julia Nayto,
fundou com mais cinco mulheres, um recolhimento feminino para cristãs na
capital do arquipélago nipônico, Meaco.4 Essas mulheres deixaram suas famílias
biológicas e formaram esta comunidade católica, sob orientação jesuíta, na qual
passaram viver um “apostolado” ativo, exercendo inclusive funções que eram (e
ainda continuam) reservadas aos homens, como por exemplo, a prediga e o
batismo.

De acordo com Agostinho de Santa Maria, havia a pretensão de que o


recolhimento fundado em Meaco se tornasse um convento, no entanto a Santa
Sé nunca o reconheceu como tal. Segundo o autor, apenas essa “formalidade”
do não reconhecimento por parte de Roma diferenciava o recolhimento fundado
por Julia dos “conventos mais reformados da Europa”. Assim, o recolhimento
constituiu-se então como um beatério, no qual as mulheres que ali viveram
professaram seus votos (Pobreza, Castidade e Obediência) e vestiram o hábito
preto informalmente, apenas prometendo obediência aos seus confessores e
orientadores espirituais.

2
O termo significa literalmente “grande nome”. Essa palavra designava aqueles que
tinham poder e influência sobre parte do território japonês. A historiografia tende a usar
o termo senhor feudal para explicá-los, uma vez que a organização política e econômica
do Japão deste período assemelhava-se ao feudalismo europeu sob certos aspectos. Ver:
AMESEN, P. J. The medieval japonese daimyô (The Ôuchi family’s rule ofSuô and
Nagato), New Haven, 1979.
3
Ver: João Paulo Oliveira Costa, 1998, O cristianismo no Japão e o episcopado de D.
João Cerqueira; Alexandra Curvelo e Ana Fernandes Pinto, 2009, O martírio de
cristãos no Japão, uma estratégia dos Tokugawa; Yuri Socrates Saleh Hichmeh, 2014,
O cristianismo no Japão: do proselitismo jesuíta à expulsão da Igreja.
4
Meaco/Miyako significa em japonês, literalmente, capital. Pode-se encontrar
referências a Miyako também como “velha capital” ou “cidade dos samurais”.

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Rosas do Japam [...] localiza-se numa seara próxima ao do famoso


Jardim de Portugal, de Luis dos Anjos5, em que se destacam o relato de vidas
“edificantes” de mulheres com acento no maravilhoso, que viveram, morreram
ou foram sepultadas no reino ou em suas conquistas.6 Segundo já apontaram
Eliane Fleck e Mauro Tavares, a Península Ibérica experimentou na primeira
metade do século XVIII uma multiplicação das publicações de obras religiosas.
No entanto, desde o XVI, as biografias de santos ou beatos, principalmente de
629
mulheres, vinham sendo constantemente escritas e reeditadas.7

Maria de Lurdes Correia Fernandes aponta que esse tipo de literatura


devota, voltada para o elogio da espiritualidade feminina, obteve grande
disseminação durante a alta idade moderna8 e segundo Margareth de Almeida
Gonçalves, além de não permanecerem circunscritas aos reinos ibéricos, essa
vastidão de títulos demonstra que existia um público que extrapolava os muros
claustrais.9

A obra de Agostinho de Santa Maria é, portanto, mais um desses


exemplos que com caráter “pedagógico” constituiu um gênero de escrita bastante
popular na Europa moderna, dirigidos especialmente às mulheres e que deveria
influenciar as práticas de contemplação, oração e meditação não apenas
garantindo a perfeição cristã, mas também controlando os modelos de santidade
populares.

O modelo de comportamento e virtude que o autor oferece às mulheres


reinóis, através do exemplo das cristãs “japonesas”, permanece preso ao ideal de

5
ANJOS, Luis dos, O.E.S.A. 15---1625, Jardim de Portugal: em que se dá noticia de
alguas Sanctas, & outras molheres illustres em virtude, as quais nascerão, ou viverão,
ou estão sepultadas neste Reino, & suas cõquistas/recopilado novamente de vários, &
graves autores, pello Padre Doutor Frey Luiz dos Anjos... Coimbra: em casa de Nicolao
Carvalho, 1626. Disponível em http://purl.pt/14013/3/.
6
Lembremos que, embora o Japão jamais tenha constituído uma colônia portuguesa,
mantendo-se sempre autônomo política e militarmente, o Padroado régio o considerou
sob sua jurisdição. Nesse sentido, a conversão destas mulheres japonesas poderia ser
vista como fruto do trabalho missionário jesuíta português, que durante quase meio
século manteve o monopólio religioso no arquipélago nipônico.
7
Fleck; Tavares, 2015, p.27-50
8
Fernandes, 1994, p. 133-155.
9
Gonçalves, Op. Cit, p.17

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perfeição religiosa vigente na Europa moderna e que por sua vez foram
influenciados pelas normas de comportamento adotadas pós Concilio de Trento
(1545-1563), o qual obrigou alterações no seio das comunidades femininas,
principalmente no que concernia à clausura, quando as medidas de isolamento e
afastamento do mundo secular passaram a ser condição obrigatória, sobretudo,
para os conventos femininos

Para Santa Maria, as beatas de Meaco eram perfeitas, pois eram


630
caridosas, humildes, guardavam o silêncio, eram obedientes e devotas a Cristo,
assíduas nas orações, respeitavam a hierarquia e eram submissas aos desígnios
de Deus. Santa Maria destaca ainda como importante a prática da ascese e da
mortificação na finalidade de fortalecer o espírito frente às fraquezas do corpo,
sobretudo no que tangia a guarda da castidade.

O autor constrói para essas mulheres “japonesas” uma imagem


encaixada aos modelos já conhecidos e representados pelas produções religiosas,
principalmente hagiográficas, sobre as experiências religiosas femininas ao
longo da história do cristianismo. A narrativa dos milagres, curas, visitas
sobrenaturais, premonições, influência sobre forças da natureza são lugares
comuns dos relatos de vidas edificantes como podemos notar folheando, por
exemplo, o já citado Jardim de Portugal. Nesse tipo de obra laudatória da
religiosidade feminina é recorrente a referência a virtudes como paciência,
caridade, mansidão e principalmente a virtude da castidade como marca
distintiva de vida “reta e honesta”. Virtudes que o autor garante estarem
presentes nas vidas “prodigiosas” das suas “rosas japonesas”.

Desde o início do cristianismo, mulheres dedicavam-se a Cristo,


consagrando-se em oração. Hagiografias dos séculos III e IV comprovam
registros de mulheres que viviam como virgens consagradas.10 Esta concepção
de modelo de vida atravessou as épocas influenciando o comportamento das
mulheres, consagradas ou não. Leila Algranti aponta que a virgindade, como

10
Amanda Dias de Oliveira, As constituições dos Conventos femininos de Clarissas e
Concepcionistas do período moderno.

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símbolo de pureza do corpo e por extensão da alma assumiu, desde o início da


vida religiosa feminina, papel de destaque. 11

Para o historiador Roger Chartier, o indivíduo que viveu na sociedade


do Antigo Regime pautava sua vida pela opinião pública, onde ser honrado
significava ter a sua aprovação.12 A honra feminina e a masculina, embora vistas
de formas diferentes, eram ao mesmo tempo complementares. Leila Algranti
ressaltou que durante muito tempo a honra feminina esteve ligada ao pecado da
631
luxúria e suas derivações como o pecado contra a castidade ou a infidelidade no
casamento. Uma mulher “desonrada” não prejudicava apenas a sua imagem, mas
a do marido e da própria família que poderiam declinar socialmente, dependendo
do pecado cometido.

Um dos meios mais eficazes que as famílias encontraram para proteger


suas mulheres foi enviá-las para os conventos. Esses espaços abrigavam não
apenas as religiosas e futuras professas, mas também as órfãs, viúvas e até
mesmo mulheres casadas na ausência de seus maridos. Os beatérios também
constituíram espaços alternativos para aquelas que não desejavam a clausura ou
não fossem aceitas em conventos, devido principalmente a questões
socioeconômicas.

Tanto no reino quanto nos espaços de conquista, muitas mulheres foram


enviadas para a clausura sem qualquer vocação, isso porque o dote a ser pago
pela entrada no convento, em geral, eram mais baratos do que o dote para se
casar. Ser aceita em um convento poderia ser sinônimo de benefício
socioeconômico uma vez que a própria entrada da moça no convento era prova
de superioridade social, pois pressupunha “limpeza de sangue”.13

11
Leila Algranti, 2004 p. 24
12
Chartier, 1990, p. 17.
13
De acordo com Fernanda Olival, a institucionalização da limpeza de sangue vigorou
durante muito tempo na Península Ibérica. A questão estava relacionada aos cristãos-
novos e teria surgido em Castela em meados do século XV e em Portugal mais
tardiamente, no final do mesmo século, embora de forma diferente. No final do século
XV, Portugal proibiu o casamento entre cristãos-novos, como um mecanismo de
controle social e de integração religiosa dos neófitos, na esperança que o cristão-velho
ajudasse o recém convertido a ser um bom praticante do catolismo. Claramente estas
leis não vingaram. Quando a aristocracia buscava casar seus filhos, algumas casas

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A aceitação de moças sem vocação resultava em religiosas descontentes


e desobedientes, um problema que as diretrizes trentinas, expostas na sua 25ª
sessão, tentaram coibir ao proibir que mulheres fossem obrigadas a entrar para a
vida religiosa por decisão de suas famílias. É essa a concepção de
comportamento feminino que vigorava no contexto da formulação de Rosas do
Japam [...]. Às mulheres eram dadas duas opções, dedicarem-se a família,
entenda-se aqui marido e prole, ou a Deus.
632

Século cristão no Japão ou Século das mulheres cristãs no Japão?

Para Santa Maria, a falta de vocação não fazia parte da realidade das
beatas de Meaco. Essas mulheres eram, para o autor, “notáveis vocacionadas
que atenderam ao chamamento à vida perfeita” (RJ, p. 33). Enquanto as famílias
ocidentais enviavam suas filhas para a clausura percebendo o local como um
garantidor de status dentro da sociedade, no Japão a decisão dessas mulheres em
recolherem-se em uma comunidade cristã foi vista como um desacato as
tradições e políticas vigentes no período. O fato do Japão nunca ter se tornado
uma colônia portuguesa, mantendo-se sempre autônomo tanto política quanto
militarmente, contribuiu para que o número de cristãos fosse sempre menor do
que o número de praticantes da religião oficial local, o que tornou a decisão
dessas mulheres muito mais ousada.

Rosas do Japam[...] foi escrito em cinco tratados. Os quatro primeiros


trazem as “vidas” de sete mulheres “japonesas” e uma “coreana” que fundaram
em Meaco, então capital do Japão, um recolhimento para mulheres cristãs.
Pensado para se tornar um convento, o recolhimento constituiu na verdade um
beatério. No entanto, o não reconhecimento por parte da Sé romana talvez tenha
sido fundamental para que as beatas de Meaco tivessem um apostolado ativo,
engajado na busca pelo maior número de conversões. Certamente o

chegavam a consultar as genealogias em até quatro gerações para garantir a pureza do


sangue, um receio que era compartilhado até mesmo pelas camadas mais populares, a
exceção dos escravos. OLIVAL, F. Rigor e interesses: os estatutos de limpeza de sangue
em Portugal. Cadernos de Estudos Sefardistas: Lisboa, nº4, 2004. pp. 151-182.

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posicionamento participativo destas mulheres na missão de cristianização dos


japoneses teria sido dificultado caso o beatério tivesse se transformado um
convento. A questão do reforço da clausura, pós Concilio de Trento, poderia ter
constituído um impeditivo para a ação missionária que abraçaram. Segundo
Santa Maria:
A sua ocupação toda (segundo o seu instituto, que era o de se
conformarem com o zelo, que a Companhia tem da salvação
das almas) era ir com grande ancia, & fervor doutrinar as
senhoras gentias & exortallas a que se convertessem, & 633
recebessem a Fè de nosso Salvador Jesu Christo. E como a
energia das suas vozes, por nascerem do fogo da caridade erão
mais que humanas, erão também maravilhosos os frutos das
suas práticas, & doutrinas. (SANTA MARIA, p. 20, grifos
meus)

Quando os primeiros portugueses chegaram ao Japão em 1543,


encontraram o país em uma fase turbulenta da sua história. Desde a segunda
metade do século XV, o poder central vinha enfraquecendo mediante sucessivas
lutas envolvendo shōguns14 e daimyōs que questionavam o poder central,
enquanto samurais guerreavam entre si, fazendo e desfazendo acordos em busca
de sobrevivência. Totalmente desintegrado, o Japão mergulhou em um caos
social que durou até fins do século XVI, quando se deu o início de uma política
de centralização de Estado.

Oda Nobunaga, segundo Santa Maria, um dos “imperadores” (na


verdade um shōgun) mais receptivo aos missionários, beneficiou-se amplamente
das novas tecnologias trazidas pelo europeu. Entre essas tecnologias a
espingarda transformou de forma efetiva a estratégia bélica japonesa
influenciando diretamente no resultado do processo de unificação, iniciado por
Nobunaga e consolidado nos governos de Toyotomi Hideyoshi e após este, no
de Ieyasu Tokugawa.

14
No período “feudal” japonês o termo Shōgum foi utilizado para designar os grandes
possuidores de terras, mas a partir do século XII, o termo passou a denominar título e
distinção militar concedido diretamente pelo imperador. Na prática os shōguns foram
os verdadeiros governantes do Japão entre os séculos XII e XIX, acumulando os poderes
administrativos e militares.

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Esse período da história do Japão estabeleceu um sistema de governo


pautado pelo controle militar do Estado. Neste sistema onde o poder bélico e a
força militar eram privilegiados, as mulheres foram entendidas como seres
inferiores. Filhas perderam o direito de herdar, privilégio que passou a pertencer
apenas ao filho varão. A mulher casada era absolutamente submetida ao marido
ou ao sogro e na medida em que o poder do homem ia se consolidando como
chefe de família, a mulher passava a ser vista como uma mera propriedade15.
634
Takiko Okamuro nos alerta para o problema de ver de forma
estereotipada a imagem da mulher japonesa deste período, tendendo a colocá-la
como vítima do casamento político. A autora nos lembra que em todos os tempos
e lugares o casamento político foi muito comum e talvez a experiência japonesa
se diferencie das demais por ter sido vista como uma via de amizade e paz com
o adversário. Segundo Okamuro, filhas, irmãs e até mães eram oferecidas aos
inimigos ou superiores que ameaçavam atacar seus domínios. Essas mulheres
constituíam uma espécie de reféns e uma vez quebrada a paz suas vidas estavam
ameaçadas. Ainda de acordo com Okamuro, muitas dessas mulheres, depois de
casadas eram obrigadas a se divorciarem contra a sua vontade para se casarem
pela segunda, terceira ou quarta vez por razões políticas.

Apesar da sociedade japonesa deste período tradicionalmente limitar o


campo de ação feminino, o Japão, sobre o qual escreve Santa Maria, conheceu
mulheres donas de espíritos independentes, algumas se associaram ao
cristianismo como forma de autonomizar-se enquanto outras ganharam destaque
dentro da sociedade nipônica justamente por combatê-lo.

Segundo aponta a historiografia, a religião oficial vigente no Japão


durante o “século cristão” era o Shintō-Budismo, um tipo de “sincretismo” entre
as religiões Budista, que chegou ao Japão vinda da China, em 538, e o Shinto,
religião nativa do Japão, que passaram a ser entendidas não como rivais, mas
como complementares.16

15
Okamura, p. 615
16
Ver: Jorge Henrique Cardoso Leão, 2010, A Arte de Evangelizar: jesuítas, dojukus e
mediação culturais no Japão (1549-1587); também Yuri Sócrates Saleh Hichmeh,

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Em geral no Shintō-Budismo a participação das mulheres era


prejudicada por uma posição discriminatória. Todas as escolas ofereciam pouca
esperança de salvação para as mulheres no pós morte. Por causa da impureza do
sangue menstrual e do parto, todas deveriam sofrer no “lago de sangue” após a
morte. Somente se o primogênito recitasse o ketsubonkyo - um sutra, escritura
canônica, composto na China entre os séculos XII e XIII - pelas suas mães, as
mesmas seriam resgatadas deste sofrimento.
635
No século XVI, o Cristianismo chegou ao Japão trazendo uma
alternativa religiosa, que assegurava às almas das mulheres, assim como a de
seus entes queridos, uma salvação mais autônoma, conquistada através de
orações e boas ações. Entretanto, apesar do atrativo da autonomia na busca pela
salvação, confessar-se publicamente cristã em uma sociedade na qual a opinião
feminina pouco importava significava assumir o risco e as consequencias de uma
decisão pessoal que conflitava com a manutenção do poder de governantes, pais,
irmãos mais velhos e filhos. O Cristianismo permitiu que essas mulheres
escolhessem entre a vida celibatária ou a escolha de um marido dentro da
comunidade cristã, fato percebido pelos japoneses como uma insubordinação aos
costumes nativos.

A recém criada comunidade cristã trouxe novas oportunidades para que


essas mulheres exercessem funções de liderança nos ministérios de ensino,
persuasão, pregação e nos trabalhos de misericórdia. Segundo a pesquisadora
Haruko Nawata Ward, há uma ligação direta entre a proliferação de mulheres
cristãs e a radicalização da política ideológica de perseguição ao Cristianismo
no Japão da primeira metade do século XVII. Ao adotar, em 1607, o
neoconfucionismo como ideologia de Estado, o shogunato Tokugawa
estabeleceu uma sociedade com classes rigorosamente estratificadas e com
segregação de gênero.

Ao tornarem-se ministras da conversão, fazerem voto de virgindade


perpétua e formarem comunidades religiosas, essas mulheres tornaram-se

2014, O cristianismo no Japão: do proselitismo jesuíta a construção ideológica da


perseguição (1549-1640)

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deliberadamente opositoras da política oficial do shōgum, transgrediram as


fronteiras reservadas as mulheres pelo neconfucionismo e representaram um
grande revés para a realização do plano de governo. Ainda de acordo com Ward,
o governo ficou tão alarmado que em 1614, deportaram as beatas de Meaco para
Manila como “perigosas adversárias políticas”.

Mulheres que foram consideradas fracas pela sociedade nipônica


ignoraram a proibição do cristianismo, resistiram a perseguição e suportaram
636
torturas. Em 1619, vinte seis mulheres japonesas estavam entre os 56 cristãos
mortos no grande martírio de Kyoto. A partir desta data, incontáveis mulheres
escolheram morrer pela mão do Estado como criminosas do que renunciar a
religião.

A participação feminina na missão japonesa tem pouco destaque na


historiografia. De acordo com Ward, alega-se a escassez de fontes primárias e o
desafio de reconstruir as vozes femininas a partir dos escritos do sexo masculino.
Das mulheres que falaram ou escreveram seus pensamentos e experiências
religiosas, poucos escritos se preservaram, em parte porque eram produções
femininas e em parte por causa da campanha de eliminação dos vestígios cristãos
durante os anos de perseguição. Os poucos registros que sobreviveram são
fragmentos de cartas, poemas e discursos presentes nas crônicas, principalmente
jesuítas. A maioria das palavras dessas mulheres foram usadas pelos cronistas
como maneira de manifestar a fidelidade dos novos convertidos, a eficácia da
missão jesuíta e da difusão do cristianismo entre os pagãos.

No entanto, a leitura de Rosas do Japam [...] deixa claro que a


participação feminina ia além de testemunhar a eficácia da missão. Segundo
Santa Maria, Julia Nayto e Maria Iga, que fizeram parte do recolhimento de
Meaco, “catequizaram o gentio”. Através de textos produzidos pelos jesuítas,
como manuais, essas mulheres aprofundaram a sua própria espiritualidade e
promoveram missões evangélicas. Ensinaram, pregaram, persuadiram,
batizaram, catequizaram os neófitos na fé e principalmente atenderam outras
mulheres impedidas de ir à igreja.

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De acordo com Santa Maria, as mulheres que optaram por viver no


recolhimento de Meaco “pertenciam a nobreza”, ou seja, a elite local. A leitura
de História do Japão do jesuíta Luis Fróis corrobora a informação de Santa
Maria ao dizer que Julia Naytō pertencia a alta classe de daimyōs. Para Santa
Maria, a condição de nobreza de Julia foi essencial para que ela tivessa acesso
às cortes e às casas mais importantes do Japão, sobretudo aos redutos femininos
onde os missionários jesuítas não podiam entrar. De acordo com o autor:
637
Nos Reinos do Japão é costume, que as grandes senhoras, e
suas filhas não se deixem ver, nem tratar de homens, ainda
que sejam Religiosos; e porque com este meio tinha o
demônio fechadas as portas à conversão destas almas, tomou
Deus por instrumento a Venerável D. Julia para lhas abrir: ia
a visitá-las, e como era pessoa tão ilustre,era bem recebida
delas. Na conversação metia logo discretamente a prática da
leiy do verdadeiro Deus, & Redentor dos homens Jesus
Cristo,e com grande destreza, facilidade, e eficacia; lhes fazia
demonstração da falsidade das seitas do Japão,dos enganos e
embustes de Seus Bonzos, & da verdade de nossa Santa Fé[...]
(SANTA MARIA, pp.20-21)

Dada a comprovada participação feminina na expansão do cristianismo


no Japão e sua ausência, enquanto agentes ativas, nos trabalhos historiográficos
sobre a própria missionação, faz-se necessário estabelecer a sua importância e
dotá-la do seu significado histórico manifestando um rompimento com as
definições tradicionais que de acordo com uma ideologia masculinista
transformam os missionários homens nos principais, senão únicos, responsáveis
pelas conversões dos cristãos nipônicos.

De acordo com Pauline Pantel há três conceitos fundamentais para o


desenvolvimento de uma perspectiva de gênero: assimetria sexual, responsável
peça disparidade entre o poder e o valor atribuídos a cada um dos sexos; as
relações sociais de sexo, que diz respeito a construção das relações sociais; e o
conceito de gênero, referindo-se a existência de homens e mulheres e a divisão
do mundo entre masculino e feminino em uma divisão sexual ou sexuada. 17

17
Silvia Liebel, Demonização da mulher, a construção do discurso misógino do Malleus
Maleficarum.

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Em Rosas do Japam [...], as mulheres não estavam completamente


destituídas de poder, encontraram na religião, seja ela a nativa ou a estrangeira,
maneiras de galgar posições dentro da sociedade a qual pertenciam. Enquanto
Julia Naitō e suas companheiras eram vistas por Santa Maria como exemplos de
virtude, defensoras e mártires do cristianismo, outra mulher japonesa é citada na
obra como uma “Jezabel” justamente por ser uma líder anticristã.

Assim como os nomes japoneses das beatas de Meaco não são


638
mencionados por Santa Maria, também não há em Rosas do Japão [...]
referência ao nome japonês de Jezabel. Obviamente este nome não lhe foi
imposto após batismo cristão, mas um “apelido” dado pelos jesuítas a esta
ferrenha adversária do cristianismo em alusão a Jezabel personagem bíblico do
livro 1 Reis, que ofendeu Javé instaurando o culto ao deus Baal. Santa Maria não
dá grande ênfase a história da “Jezabel japonesa”. No entanto, em Luís de Fróis,
“Jezabel” que é chamada de Otomo-Nata Jezebel, tornou-se adversária declarada
do cristianismo quando o seu marido o daimyō Otomo Yoshishige Sōrin
converteu-se à fé católica. É importante destacar que mesmo divorciada do
marido, “Jezabel” manteve posição de destaque dentro da sociedade nipônica
como líder shinto-budista e opositora do cristianismo.

A leitura de Rosas do Japam [...] nos permite perceber que o lugar


reservado a essas mulheres esta relacionado as visões masculinas a seu respeito
e não aos seus lugares de fala, ação e pensamento. Suas ações estão sempre
permeadas e interpretadas pelo olhar masculino, independente da posição
favorável ou contrária dessas mulheres ao cristianismo. Desse ponto de vista é
essencial filtrarmos esse olhar masculino que nos trazem a experiência feminina
japonesa na missionação cristã e entendermos que essas mulheres, apesar da
coerção social e cultural na qual estavam inseridas, foram autônomas nas suas
escolhas.

Lembremos que o outro, a alteridade, sempre foi um desafio. Em Rosas


do Japam [...], além de ser o “outro”, esse sujeito ainda é feminino, é mulher,
tornando a experiência muito específica. Segundo Bordier, a dominação

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masculina constitui o paradigma de toda dominação,18 dessa sentença podemos


inferir as especificidades das redes de dependência entre dominado e dominante
e a arbitrariedade das construções sociais misóginas. Apesar da notória
participação feminina na conversão de muitos cristãos japoneses o lugar dessas
mulheres é condicionado a tópica corrente do cristianismo que as coloca como
“mantenedoras” da fé, mas não como transformadoras de opiniões.

De acordo com Liebel, o mundo social imprime no corpo dos sujeitos


639
esquemas de percepção e ação que funcionam como uma segunda natureza,
instituindo a diferença biológica entre os sexos em termos desiguais e
discriminatórios, produto de uma relação arbitrária de dominação, fundamentada
na manutenção da ordem social. A mulher constituiria, portanto uma entidade
negativa pelo defeito da ausência das propriedades masculinas, imputando
diferenças sociais historicamente instituídas a uma natureza biológica
funcionando como uma essência de onde se deduzem implacavelmente todos os
atos da existência.

O discurso eclesiástico que perpetua a inferioridade do feminino


cumpre uma função externa de legitimação da ordem estabelecida na medida em
que a manutenção da ordem simbólica contribui diretamente para a manutenção
da ordem política.

Como bem disse Lucien Febvre, o individuo é sempre o que lhe permite
ser sua época e o seu meio social. Na modernidade, como uma continuidade da
época anterior, a mulher viveu sob o estigma da inferioridade, considerada como
culpada pelas mazelas dos homens devido ao estigma de Eva.

Agostinho de Santa Maria é influenciado pelo seu meio social, como


eclesiástico percebe na mãe de Jesus, a Eva transformada em Ave, o modelo por
excelência a ser seguido. Como corrente em sua época vê na mulher o elo fraco
da humanidade. Mais suscetível ao pecado e as “sugestões malignas” a mulher
precisaria ser investida de uma força “varonil” para que pudesse então vencer as
batalhas contra a sua fraqueza inata. Para tal a vida recolhida, a oração contínua,

18
Pierre Bordieu, A dominação masculina. Educação e Realidade, [Porto Alegre], v. 20,
n.2, jul./dez. 1995. p. 176.

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a prática da ascese seriam fundamentais. Nesse contexto, as ações das mulheres


“japonesas” usadas como exemplos são significativas, para o autor, apenas
enquanto cumpridoras desse modelo pré-estabelecido. Suas vozes, mesmo
mescladas a de seus confessores e biógrafos, são apenas reflexos das
interpretações masculinas dominantes. Na perspectiva de Joan Scott, aqui por
nós adotada, não basta apenas dar visibilidade a participação dessas mulheres na
missionação japonesa, mas estabelecer uma reflexão sobre as estratégias dessas
640
mulheres no âmbito político e social sem perder de vista uma conjunção de
igualdade nas quais se incluiriam sexo, classe e raça.

REFERÊNCIAS

Fonte Impressa:

SANTA MARIA, Frei Agostinho de. Rosas do Japam, cândidas açucenas, e


Ramalhete de fragrantes, & peregrinas flores, colhidas no Jardim do Japão, sem
que os espinhos da infidelidade, & idolatria as pudessem murchar, em as vidas
das muyto Illustres Senhoras, D. Julia Nayto, D. Luzia da Cruz, ou Caraviaxi,
& D. Thecla Ignacia, ou Muni, & de suas companheiras, Congregadas em o
Santorecolhimento da Imperial cidade de Meaco, Corte dos Emperadores do
Japam, aonde forão prezas, & padeceão pela Fé muytos tormentos em odio
della; & de donde forão lançadas, & desterradas para a Cidade de Manila em
Filippinas. Lisboa: Officina Antonio Pedrozo Galvão, 1709.

Bibliografia:

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História do livro da leitura na América Portuguesa. (1750-1821). São Paulo.
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BORDIER, Pierre. A dominação masculina. Educação e realidade [Porto


Alegre], v. 20, n.2. jul/dez. 1995.

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ST 06
Gênero e Feminismos:
história, política e educação

Coordenação 643
Profa. Dra. Alcileide Cabral
(UFRPE)

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A QUESTÃO DO FEMININO NA HISTÓRIA DA FORMAÇÃO


PROFISSIONAL TÉCNICA DA REDE FEDERAL DO ESPÍRITO
SANTO

Míriam Albani*

Introdução
644
Contrariando o imaginário de que a mulher sempre se ocupou somente
dos trabalhos domésticos, “a participação feminina no mercado de trabalho
brasileiro tem raízes no período colonial [...]. A sociedade brasileira, que se
pautou no poder masculino, jamais prescindiu da mão-de-obra feminina”
(NADER, 2008, p. 68). Perrot afirma que "nem sempre as mulheres exerceram
ofícios reconhecidos, que trouxessem remuneração" (2016, p. 109). Essas
mulheres sempre enfrentaram preconceitos quanto a seu potencial de trabalho,
mas foram expandindo suas atividades ao longo da história, aproveitando as
oportunidades trazidas pela modernidade, aliadas às mudanças de
comportamento necessárias para a convivência na cidade urbanizada.

É importante mencionar que o percentual de mulheres em Vitória, nos


censos da população capixaba, entre 1872 a 2000, sempre foi maior do que o
percentual de homens, diferentemente do demonstrado no Brasil, onde a
presença feminina é quase sempre superada pela masculina (NADER, 2008).
Segundo essa autora, em Vitória, as mulheres que não conseguiam emprego
recorriam ao mercado informal. No entanto, várias oportunidades de emprego
surgiram e,
[...] foi o comércio e o setor de serviços que abriram maiores
oportunidades de trabalho para as mulheres. Em 1980, o setor
terciário abrangia 41,15% de todos os empregos disponíveis
na cidade e dentro deles enquadravam-se 53,74% da
população feminina economicamente ativa. (NADER, 2008,
p. 79).

*
Mestre em Educação. Instituto Federal de Educação do Espírito Santo - Ifes.
mirialban@gmail.com

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Segundo a Fundação Carlos Chagas (2007) houve um acréscimo de 32


milhões de trabalhadoras entre 1976 e 2007. Na educação em geral e na educação
profissional, em particular, reflete uma inserção pouco diferenciada. Segundo o
Relatório Educação para Todos no Brasil 2000-2015, as matrículas na educação
profissional entre 2002 e 2012 tiveram um aumento do percentual da população
feminina, sendo 48,4% e 53,5% respectivamente. No Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo – Ifes, no ano de 2015, o
645
número de mulheres matriculadas chegou a 47%. Esses dados nos revelam que
as mulheres buscaram se qualificar e conquistaram espaço como população
economicamente ativa e demonstram a importância do seu papel no mundo do
trabalho.

Esse comportamento da força de trabalho feminina no Brasil aponta que


na contemporaneidade a inserção do gênero feminino foi democratizado. No
entanto, na história da educação profissional as mulheres sofreram muitas
restrições, assim como a sua inserção em cursos profissionalizantes e sua
integração ao mercado de trabalho industrial. O número de matrículas no ensino
médio para jovens e adultos trabalhadores do Ifes entre 2001 a 2009, por
exemplo, revela que dos 271 alunos matriculados, 64 eram mulheres. Dessas,
apenas 17 alunas conseguiram chegar ao término do curso técnico (FERREIRA,
2012, p. 280).

Uma análise dessas informações nos indica que as mulheres não


encontraram livre acesso, deparando-se com muitos obstáculos ao seu direito à
educação profissional. Até hoje o trabalho industrial é visto como espaço
masculino onde encontramos um processo de naturalização da exclusão que
tipifica o Ifes como escola de alguns e não de todos. Para grande parte do público
feminino matriculada na educação de jovens e adultos profissionalizante do Ifes,
as dificuldades de inserção, de permanência e de sucesso escolar em cursos de
formação profissional demonstram que seu itinerário formativo é uma trajetória
descontínua e sua inserção no mercado de trabalho com qualificação adequada
torna-se impraticável.

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A partir dessa premissa estabelecemos nosso objeto de estudo que é a


presença das primeiras mulheres no espaço masculino da educação profissional
técnica na antiga Escola Técnica Federal do Espírito Santo na década de 1970,
atual Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo –
Ifes. A inserção dessas mulheres na educação profissional técnica está
intrinsecamente ligada às mudanças sócio-econômicas por que passou o país e o
Estado do Espírito Santo.
646
No cenário econômico nacional, a região Sudeste vivia um acelerado
processo de industrialização na década de 1960. No entanto, o Estado do Espírito
Santo, voltado essencialmente para a agricultura, principalmente para o cultivo
do café, não acompanhava esse crescimento. Nesse período, a queda do preço
do café determinou a erradicação de parte dos cafezais, o que afetou o Espírito
Santo. As consequências dessa erradicação ocorreram no momento em que se
deu o Golpe de 1964, que levou os militares ao poder (SUETH et al, 2009).

Uma interferência no modelo econômico no país começou a ocorrer,


buscando novas bases para o desenvolvimento brasileiro. As indústrias
receberam incentivos fiscais, o que levou, no final da década de 1960 e início da
década de 1970, a um crescimento econômico no Espírito Santo. O Estado
recebeu recursos para a implantação de projetos industriais como a Aracruz
Celulose, a então Companhia Siderúrgica Tubarão (CST) e a Samarco
Mineração e também a ampliação da então Companhia Vale do Rio Doce
(CVRD) e a criação do Centro Industrial de Vitória (CIVIT), dentre outros
projetos que geravam empregos (SUETH et al, 2009).

Nesse período de implantação dos grandes projetos industriais foram


criadas várias possibilidades de empregos. Nesse cenário aconteceu o êxodo
rural e houve um crescimento exagerado da população na Grande Vitória,
fazendo com que a cidade fosse mudando suas características de rurais para
urbanas. Essa população migrava atraída pelas oportunidades de emprego que
surgiam em decorrência da nova fase que o país atravessava (SUETH et al,
2009).

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Nesse contexto, a Escola Técnica Federal do Espírito Santo (ETFES),


atual Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo -
Ifes, localizada na capital Vitória, desempenhou um importante papel, formando
profissionais para atender ao mercado de trabalho, criando cursos de acordo com
a demanda exigida. Os olhares da sociedade capixaba, diante do novo cenário
econômico, voltaram-se para essa escola, que foi criada em 1910 para atender
exclusivamente o público masculino.
647
Num rápido olhar histórico sobre a Escola Técnica Federal do Espírito
Santo pode-se identificar que somente na década de 1950 as mulheres a
frequentaram, mas logo após elas desaparecem da instituição (LIMA, 2010). No
entanto, essas mulheres que se aventuraram no universo masculino do ensino
profissional não concluíram os estudos, revelando o pacto de dominação que
subjugava a mulher na educação profissional e no mercado de trabalho capixaba
naquela época.

Em 1970, uma única aluna estudou naquela instituição e, curiosamente,


em 1971, as mulheres passaram a ocupar 22% das vagas dos cursos técnicos
regulares ofertados pela ETFES, sendo que uma delas passou em primeiro lugar
geral no processo seletivo, conforme constatado em fontes do arquivo do Setor
de Registros Acadêmicos do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes).

Nessa década, as mulheres perceberam a possibilidade de começarem a


entrar no mercado de trabalho que surgia, mas os melhores empregos ainda
cabiam aos homens, ou seja, não estavam preparadas para a concorrência
profissional. Nader (2008, p. 190) discutindo a profissionalização das mulheres,
relata em seus estudos que "o próprio desenvolvimento econômico da cidade
pressionou o sistema educacional existente, que incorporou às escolas um grande
número de mulheres em cursos que antes eram frequentados quase que
exclusivamente por homens”.

O grupo de mulheres que iniciou seus estudos na ETFES e o das que


não conseguiram uma vaga nessa instituição entenderam que não estavam
preparadas para o novo mercado de trabalho e tiveram que buscar
profissionalização numa escola essencialmente masculina. Em decorrência de

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questões de ordem regulatória da sociedade, enquanto os homens eram


preparados para desempenhar atividades públicas, a mulher era educada somente
para o casamento. O magistério e a enfermagem, por exemplo, tradicionalmente
ligados à educação feminina, eram cursos que as mulheres ingressavam quando
não tinham condições de acessar um curso superior (Nader, 2011).

Nesse contexto, delineia-se o tema deste estudo, que são as relações de


gênero em uma escola profissional pensada para homens, partindo da indagação 648
mais geral sobre a forma como foram recebidas essas mulheres que ousaram
adentrar em um mundo masculino, quer seja a instituição quer seja o mercado
de trabalho, durante a década de 1970.

A pesquisa levantou questões para a análise das relações de gênero


ocorridas na ETFES quando da entrada da primeira turma de alunas em cursos
considerados masculinos pela sociedade e sua inserção no mercado de trabalho.
Entende-se ser importante desvelar como foram recebidas e como foi a trajetória
dessas mulheres, que optaram por não seguir mais as carreiras tidas como
femininas pela sociedade, num ambiente onde a predominância masculina se
fazia presente e sua possível inserção no mercado de trabalho.

Desenvolvimento

Desde os tempos coloniais no Brasil, os costumes que se


desenvolveram, seguiam as tradições do modelo português. As relações entre os
sexos foram marcantes durante esse período na sociedade brasileira, que se
estabeleceram, principalmente, estruturadas pelo poder do elemento masculino.

Seguindo o modelo católico, a mulher tornou-se o principal alvo da


disciplinarização do comportamento. À mulher cabia a responsabilidade de
realizar o trabalho doméstico, zelar pela dignidade e providenciar os desejos do
marido, dar-lhe filhos legítimos e educá-los na vida cristã (NADER, 2008).

Desse modo, a mulher exercia apenas a função de mãe e do lar, ou seja,


funções voltadas para o mundo privado. Já o espaço público era reservado às
atividades masculinas. Vale lembrar que as funções atribuídas às mulheres

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(cozinhar, costurar, ensinar) estavam articuladas também à ideia de que se


tratavam de funções maternais, isto é, funções ligadas ao cuidar.

Analisando as questões de ordem regulatória da sociedade, Nader


(2008, p. 125) afirma que “a moral que preparava a menina para o desempenho
das funções domésticas pressionava o comportamento feminino no sentido de a
mulher conservar sua honra e não se indispor com a disciplina patriarcal [...] até
parte do século XX”. 649
Nesse contexto, ao homem era reservado os espaços político e social e
a função de mantenedor do lar. Com isso, ampliavam-se as desigualdades entre
os sexos e a submissão da mulher ao pai e, posteriormente ao marido, já que
dependia financeiramente daqueles e não tinha a mesma participação na
sociedade que os homens.

No âmbito da educação, as relações de gênero variam de acordo com a


época e com o nível de desenvolvimento econômico, político, cultural e
científico pelo qual a sociedade se encontra. Historicamente, podemos afirmar
que a educação voltada para as mulheres surgiu de forma particular, isolada e
excludente na sociedade brasileira.

À época da implantação do sistema republicano, mesmo diante das


transformações socioeconômicas com a urbanização e a industrialização que
enfraqueciam a sociedade patriarcal, o processo educativo perpetuava o sistema
de valores que subordinava a mulher à dominação do homem (FRANCO, 2001).
A educação feminina era no sentido de frear o acesso das mulheres nos espaços
intelectual e social, delimitando seu papel na sociedade e normatizando seus
corpos.

Nos estudos que Franco (2011) realiza é notório o estabelecimento de


um sistema normativo que dificultasse o acesso de mulheres ao processo de
escolarização devido ao temor dos pais de que pudessem ter contato com
assuntos considerados proibidos para elas. No entanto, os costumes no Brasil
começaram a se modificar a partir do século XIX sob a influência de ideias
surgidas na Europa de que era necessário universalizar a escolarização e com as

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mudanças ocorridas em decorrência da vinda da família real portuguesa para a


colônia.

Nesse sentido, possibilitou-se um afrouxamento da estrutura social


brasileira, momento em que o discurso foi se constituindo lentamente, no sentido
de que as mulheres precisavam ser instruídas para que pudessem educar as
gerações futuras. Assim, as mulheres continuaram com a responsabilidade de
formar bons homens, com dignidade e civilidade. 650
No Espírito Santo, a questão tratada, não foi diferente do panorama
nacional. Em 1845 foram iniciadas as atividades da primeira escola para meninas
na capital da província, Vitória. Gradativamente foram sendo ampliadas as
matrículas do sexo feminino que passaram de 26 para 40 no ano de 1852 contra
775 meninos nas escolas de primeiras letras da província (FRANCO, 2011). Foi
somente em 1869 que surgiu a escola de formação para o magistério voltada
exclusivamente para mulheres, que nunca teve um grande número de alunas
matriculadas.

A abertura de escolas normais proporcionou às mulheres um ganho


significativo dentro da sociedade, já que estavam mudando, mesmo que
gradativamente, seu papel social. Segundo Nader (2011, p. 129):
[...] à modernização da infraestrutura econômica das cidades
seguiram-se mudanças notáveis nos costumes sociais tanto da
elite quanto dos estratos sociais mais baixos, pois, com o
aprofundamento da modernização urbana, as mulheres
tiveram oportunidades educacionais e profissionais que lhes
proporcionaram um acesso imediato ao conhecimento de
outras formas de vida que não aquelas apregoadas pelos
discursos que as consideravam naturalmente casadoiras.

Com a necessidade de continuar a educação das crianças que se dava


no lar, as mulheres passaram, então, a ocupar as salas de aula como professoras
do ensino primário. No entanto, várias mudanças estavam por ocorrer e que iriam
abalar as estruturas da sociedade marcada pela delimitação dos espaços sociais.
A partir da segunda metade da década de 1960, houve uma acelerada
urbanização em decorrência da industrialização que impulsionou o êxodo rural.
Pinsky (2012, p. 514) nos relata que "as cidades, mais densamente povoadas por

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conta da migração vinda do campo, aproximavam pessoas e estilos de vida e


favoreciam mudanças aceleradas de comportamento".

A autora ainda acrescenta que "ao longo dos anos de 1960 e 1970, as
diferenças curriculares entre alunos e alunas se dissolveriam, proporcionando
melhores oportunidades às mulheres [...]" (PINSKY, 2012, p. 514).
Notadamente houve um desabrochar feminino, o que contribuiu para alterar os
espaços ora ocupados pelas mulheres, ampliando suas oportunidades na 651
sociedade, quebrando regras e padrões vigentes.

Dessa forma, Scott (1995, p. 75) aponta para uma discussão sobre as
questões que envolvem as pesquisas das relações de gênero:
O termo "gênero", além de um substituto para o termo
mulheres, é também utilizado para sugerir que qualquer
informação sobre as mulheres é necessariamente informação
sobre os homens, que um implica o estudo do outro. Essa
utilização enfatiza o fato de que o mundo das mulheres faz
parte do mundo dos homens, que ele é criado nesse e por esse
mundo masculino. Esse uso rejeita a validade interpretativa
da idéia de esferas separadas [...].

O entendimento de que o termo gênero não tem o mesmo sentido de


sexo, rejeitando o destino biológico, nos encaminham à ideia de que os papeis
sociais desempenhados pelos sujeitos masculino e feminino são fruto de uma
construção social, onde a dominação é exercida pelo homem, induzindo
processos de feminização e masculinização de espaços sociais.

Considerando que as relações entre os sexos são sociais, o termo


"gênero" será utilizado para explicar as mudanças históricas que ocorreram em
relação ao empoderamento feminino dando significado às suas experiências,
pois concordando com Scott (1995, p. 86) "o gênero é um elemento constitutivo
de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos".

Metodologia e natureza das fontes

Foram utilizados como referência para esta pesquisa, os estudos de


Roger Chartier, um dos maiores representantes da História Cultural. Suas

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pesquisas abriram caminhos para estudos históricos com maiores abrangências


e variações, considerando-se que surgiu tendo em vista o esgotamento dos
modelos teóricos globalizantes, nos quais o historiador era dependente da busca
da verdade.

Chartier (1990) utiliza uma história questionadora do social e dos


modos de viver, sentir e pensar como prática atravessada por gestos, espaços e
hábitos e não somente para a obtenção de dados. Esse autor, nos mostra uma 652
história concebida com estruturas em movimento, considerando a cultura como
um conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens na busca e
tentativa de explicar o mundo. Dialoga com o conceito de representação no
sentido de trazer para o presente o passado vivido, podendo construir uma
história social das interpretações, remetidas para suas determinações
fundamentais que são o social, o institucional e, sobretudo, o cultural
(CHARTIER, 1990).

A investigação feita das relações de gênero que foram produzidas na


Escola Técnica Federal e, por conseguinte, a inserção das mulheres alunas no
mercado de trabalho capixaba na década de 1970, implicou em considerar os
aspectos arregimentados como indissociáveis da proposta educativa e do
contexto sócioeconômico espaçotemporal. Aborda-se assim, tanto as
representações simbólicas sobre a mulher quanto o conteúdo dos discursos
normativos presentes na instituição estudada e na sociedade capixaba.

Norbert Elias (1994), em seus estudos acerca da sociedade, define que


os indivíduos que compõem grupos humanos são atores de uma dinâmica que
assume diversas perspectivas numa mesma estrutura, assim, podemos afirmar
que uma sociedade permanece em constante transformação porque é formada
por indivíduos que mudam com relativa rapidez. Elias afirma que os indivíduos
“são diferentes em diferentes épocas e lugares” (1994, p. 118). Dessa forma, sua
constatação nos apontou para a importância de estudarmos as memórias, pois a
partir desse raciocínio foi possível situar as fontes pesquisadas e a obtenção dos
dados.

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Diante disso, foram trazidos à tona os sentidos e as memórias das


mulheres que entraram na escola na primeira turma da década de 1970 e para a
análise dos dados produzidos foram utilizadas as considerações do conceito de
gênero desenvolvidas por Scott. A utilização do conceito de gênero para esta
autora implica em considerar a existência de uma distinção natural, sobre a qual
se instituem relações sociais peculiares em função do tempo e do espaço
(SCOTT, 1995).
653
As memórias das mulheres foram coletadas por meio de depoimentos
gravados e constituíram a principal fonte de obtenção dos dados. Para isso,
aplicou-se um questionário semiestruturado em forma de entrevista, convidando
os sujeitos da pesquisa a falar sobre o que se lembram do período estudado,
expressando com suas próprias palavras fatos, curiosidades, experiências vividas
e situações do cotidiano da escola, comportando-se como um sujeito ativo na
entrevista.

A contribuição das fontes orais possibilitou a aquisição de dados que


ultrapassa o prescrito, trazendo representações e práticas vividas e não
formalizadas. Ao dar voz aos sujeitos da pesquisa, desvelamos a singularidade
de cada história passada e a sua contribuição para a história presente dessas
mulheres. Para Thompson (1992, p. 137), "é então na prática das fontes orais,
liberadoras da palavra e do vivido cotidiano, que as relações entre o privado e o
público podem se esclarecer e se purificar [...]".

Foram realizadas entrevistas com 10 mulheres em um universo de 38


que concluíram os Cursos Técnicos em Edificações, Estradas e Eletrotécnica.
Tilly nos lembra que pesquisadoras da história
fizeram um trabalho de pioneiras ao redescobrir a importância
de fontes históricas como as biografias e os testemunhos
pessoais. As mulheres como atores da história, suas
atividades, suas diferenças de raça, de classe e de origem
nacional, suas concepções de si e do mundo ao redor são, de
agora em diante, fatos da história (1994, p. 59).

A história é constituída a partir da interação dos indivíduos na


sociedade. Dessa forma, os modos de vida, as relações econômicas, o sistema de

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valores, as tradições e as crenças devem ser considerados para a análise do


processo como um todo.

Além das fontes orais, buscou-se a contribuição das fontes escritas. A


colaboração dessas fontes foi determinante para identificar normas, prescrições,
notícias e fatos ocorridos que não foram citados pelos sujeitos da pesquisa. As
fontes escritas estão preservadas e encontram-se sob a guarda do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo – Ifes, atual espaço 654
da então Escola Técnica Federal do Espírito Santo como fichas de matrícula,
atas, jornais da época, folhetins elaborados por alunos e ex-alunos e convites de
formatura.

Levando-se em consideração os objetivos desse projeto, bem como a


natureza das fontes e dos dados coletados, caracterizou-se qualitativamente a
proposta de pesquisa, mais especificamente como um estudo de caso, pois
concordando com Gil (2010, p. 37), essa modalidade de pesquisa permite o
amplo e detalhado conhecimento do estudo de maneira profunda e exaustiva.
Entende-se, dessa forma, que essa metodologia permitiu uma investigação mais
adequada do fenômeno em seu contexto social, proporcionando explorar
situações da vida real, cujos limites não estão claramente definidos.

Análise das narrativas

A análise a seguir foi realizada a partir dos registros das memórias de


mulheres que se colocaram no campo masculino da educação profissional
técnica no início de sua juventude, com idades entre 15 e 17 anos. Todas as 10
mulheres tiveram incentivo de outros agentes para tentarem uma vaga no
processo seletivo para os cursos técnicos da Escola Técnica Federal do Espírito
Santo, como de professoras da escola anterior ou mesmo da própria família.
Conforme mostram os fatos, para a maioria dessas mulheres, não fossem as lutas
femininas da época e o contexto social e econômico do país e do Estado, o seu
destino teria sido a escola normal.

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Podemos perceber que a situação econômica das famílias influenciava


as decisões de trabalho conforme narrativa de uma das mulheres "eu iria fazer
magistério porque era um curso que eu terminava e iria ter um retorno financeiro
[...] era aquele curso de aprender a bordar e costura e, de repente, a gente
começou a olhar tijolo, areia e cimento".

Atraídas pela abertura de uma "turma feminina", viram a oportunidade


de mudar seu destino social pela educação destinada aos homens, pois "[...] o 655
dominado não se liberta se ele não vier a dominar aquilo que os dominantes
dominam. Então, dominar o que os dominantes dominam é condição de
libertação" (SAVIANI, 2007, p. 55). O sistema dual de educação proposto na
divisão de turmas no primeiro ano da entrada dessas mulheres não delimitou seus
espaços dentro da instituição, já que sobressaíam nas atividades e desafiavam o
sistema provando sua condição de igualdade.

Os dados coletados demonstram diferenças entre homens e mulheres


naquela escola, as quais estabelecem tratamentos diferenciados, conforme seu
papel social de gênero, e que ocasionaram espaços de lutas. Foram relações de
poder questionadas por elas, principalmente quando as mulheres que passaram
no processo seletivo podiam escolher vagas somente nos cursos técnicos
considerados mais condizentes com o mundo feminino. Uma das mulheres
narrou a respeito da admissão na escola que "minha amiga queria fazer
eletrotécnica, mas quando chegou lá na hora ficou sabendo que os cursos
destinados para as meninas eram estradas, edificações e agrimensura [...] o
mesmo aconteceu comigo".

Essa mesma mulher acrescenta que "na época procuramos o diretor da


escola e ele também teve interesse em saber da nossa vontade em fazer outros
cursos, e eu sei que fizemos a matrícula, mas antes de começar as aulas nós
fomos avisadas que faríamos o curso de eletrotécnica". Percebemos que o espaço
escolar funcionava como agente de manutenção dos papéis sociais de gênero,
pretendendo diferenciar as inserções dos homens e das mulheres na hierarquia
de poder na sociedade. A busca pelo espaço feminino dentro da escola causou
mudanças nas regras, fazendo com que algumas das mulheres pudessem se

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profissionalizar em cursos em que os homens eram considerados mais aptos,


contribuindo para a modificação da estrutura social.

A entrada das mulheres no cotidiano da ETFES modificou o instituído


no sentido do seu empoderamento, mas também, no sentido de diferenciar o
espaço dessas. Uma das mulheres relembra que nas aulas de educação física "a
gente usava o short e uma saia pregada por cima. Todos os detalhes eram
pensados de como ia ser feito". Outra conta que "os professores de educação 656
física eram homens, aí eles mesmos falaram que tinha que ter uma professora
mulher".

Uma terceira ex-aluna, durante a entrevista, revelou que não se


lembrava com detalhes dos fatos cotidianos, mas lembrou-se de um fato ocorrido
no primeiro dia de aula: "meu primeiro dia de aula eu lembro sim, porque foi
muito engraçado, quando eu estava subindo a escada (eu estudava no segundo
andar), alguém me chamou [...] era o inspetor que ficava controlando os alunos".

A vigilância dos espaços e a diferenciação dos papéis sociais estavam


presentes no interior da escola, embora no tocante às exigências para a formação
do profissional técnica as mulheres revelam que não havia diferenciação nas
atividades, mas eram sempre muito protegidas, conforme esse relato: "eu lembro
que na matéria de topografia que era mais técnica, íamos para o mato e o
professor fazia o grupo de meninos e meninas [...] sempre ficava junto um
menino muito bom, aí colocava de três em três e a cada hora um mexia no
aparelho".

Apesar das mulheres demonstrarem sua capacidade intelectual, a escola


via como necessária a tutoria nas atividades tidas como masculinas, conforme
depoimento acima. O papel do macho protetor estava presente nas relações
sociais cotidianas, demonstrado pela preocupação no cuidado com a fêmea tida
como frágil e vulnerável revelada em diversas lembranças: "tinham um zelo
muito especial", "era supernormal, como se eu estivesse em casa", "havia muita
proteção, nos protegiam de tudo e de todos".

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Passado o tempo como alunas na ETFES, os depoimentos revelaram


que a busca por um espaço no mundo profissional e a conquista da igualdade no
mercado de trabalho teve vários percalços em suas carreiras. A inserção no
mercado de trabalho por meio do estágio foi um intenso campo de lutas para as
mulheres como podemos perceber nos depoimentos: "logo os meninos foram
encaixados. Fiquei sem emprego até encontrar um professor que me perguntou
se eu queria ir para a Vale"; "eu me formei em dezembro e só arrumei estágio
657
seis meses depois porque tinha oferta, mas só que era para homens"; "todos os
meninos foram convocados e o que sobrou depois ficou para as meninas"; "A
Escelsa pegou muitas meninas, mas todos para escritório".

As empresas davam preferência aos homens e essas mulheres somente


conseguiram adentrar o mercado após um longo período de espera e, mesmo
assim, para exercerem atividades mais condizentes com o mundo feminino
dentro daquela determinada área técnica, confirmando a excludente visão social
da mulher no mundo do trabalho daquela época.

Conclusões

Neste texto apresentamos fragmentos das memórias de mulheres em


suas trajetórias como alunas na ETFES, então considerado um reduto masculino,
no início da década de 1970. Percebemos que as relações simbolicamente
construídas entre homens e mulheres naquele espaço escolar foram
ressignificadas pela emergência de um lado social feminino que rejeitou
determinados conceitos produzidos socialmente.

Destacamos esse momento de entrada das mulheres para a


profissionalização técnica considerada masculina, como um rito de passagem, e
que não se deu apenas como uma concessão, mas como um processo de lutas
que provocaram um aumento significativo nos estudos femininos. Dessa forma,
concordamos com Ferreira que foi "por meio dos espaços escolares, que as
mulheres conseguiram ultrapassar as barreiras impostas à sua escolarização

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formal e alcançaram o espaço público, embora, vale ressaltar, que isso se deu
dentro de certos limites impostos pela ideologia dominante". (2012, p. 300)

As mudanças socioeconômicas ocorridas e vivenciadas em Vitória


influenciaram em mudanças de atitudes do gênero feminino, levando as
mulheres a estabelecerem novos paradigmas de comportamento (NADER,
2008). Podemos evidenciar esse fato na postura do grupo de mulheres que
ousaram desvincular-se dos estudos tido como femininos, buscando 658
profissionalizar-se no mundo masculino. As narrativas das ex-alunas da ETFES
apontam que a profissionalização técnica teve um profundo significado em suas
vidas, pois "abriu as portas para as mulheres".

Assim, após esse estudo preliminar, consideramos necessário ampliar


as investigações a respeito da temática aqui proposta, a fim de que sejam
conhecidos os aspectos e fenômenos da vida social na ETFES que levaram às
mudanças nas relações de poder.

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1992.

TILLY, Luise, A. Gênero, história das mulheres e história social. In: Cadernos
Pagu (3) 1994: pp. 29-62.

ISBN: 978-85-65957-07-6
Rio de Janeiro
Ed. Anpuh-Rio
Atas do II Encontro Nacional do GT Estudos de Gênero
Rio de Janeiro, 27 e 28 de outubro de 2016.

DO LAR PARA AS RUAS: O DEBATE PELA CONQUISTA DA


CIDADANIA POLÍTICA E OS MOVIMENTOS FEMINISTAS EM
RECIFE (1920-1934)

Mirella Tuanny Ferreira*

Introdução
661

Em todo o mundo as mulheres estão sub-representadas na


política. O termo deficit democrático de gênero deveria entrar
para a agenda governamental e para o dia a dia da mídia com
o mesmo destaque que os termos deficit público ou deficit
comercial. O passado, infelizmente legou a exclusão das
mulheres dos níveis mais altos de decisão do Legislativo,
Executivo, Judiciário, da hierarquia religiosa e militar, ou
mesmo do poder decisório das grandes corporações. No
Brasil, durante mais de 500 anos os homens monopolizam o
exercício dos cargos de direção política. Com o processo de
redemocratização dos anos de 1980 as mulheres saíram de
taxas de participação próximas de zero para algo em torno de
10% a 15% na média das instâncias municipais, estaduais e
federais (SOUSA, 2011, p. 01).

É inegável que ainda vivenciamos um quadro político no qual mulheres


são sub-representadas. No qual a figura masculina ainda se faz numericamente
predominante e os espaços de poder são restritos. Mas como interpretar tais
dados? Que mundo político é esse, que mesmo após duras e sucessivas
conquistas, ainda exclui tanto a participação feminina do seu cerne?

Ansiando respostas para os questionamentos contemporâneos, este


trabalho trilhou o caminho histórico e partindo da análise documental e da
revisão bibliográfica buscou investigar e analisar os diferentes movimentos
feministas nos principais periódicos do Recife, entre os anos de 1920 e 1934,
bem como suas principais reivindicações com relação à cidadania política e a
reação antifeminista durante o processo de conquista do voto.

*
Mestranda em História Social da Cultura Regional pela Universidade Federal Rural de
Pernambuco (UFRPE) e integrante do Núcleo de Pesquisas em Gênero (NUPEGE).

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Primeiramente é de fundamental relevância pontuar que esta temática e


a própria história do movimento sufragista no Brasil só começou a despertar
algum interesse nos pesquisadores a partir do final dos anos de 1960, em
decorrência da rearticulação do próprio movimento feminista
(KARAWEJCZYK, 2013, p.13). No caso especificamente de Pernambuco e da
cidade do Recife, os estudos ainda se mostram exíguos.

Para tanto, inicialmente esta pesquisa contou com um levantamento e 662


seleção bibliográfica, através do qual investigou-se autore(a)s que retratassem a
política, a economia e o cotidiano do recorte temporal abarcado, como: Manuel
Correia de Andrade, Rostand Paraíso, José Murilo de Carvalho, Alexandre Melo,
dentre outros. Objetivou-se também, o apoio na crítica feminista por meio de
nomes como: Susan Besse, Joan Scott e Alcileide Cabral, autora de trabalhos
pioneiros que versam especificamente acerca da luta pela conquista do voto
feminino em Recife. A pesquisa documental, por sua vez, foi realizada em
bibliotecas e em arquivos físicos e virtuais de Recife e do Brasil, como a
Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ) – Anexo Anísio Teixeira, o Arquivo
Público do Estado de Pernambuco Jordão Emerenciano (APEJE) e a Hemeroteca
Digital Brasileira da Biblioteca Nacional.

Para investigar o recorte temporal proposto, três periódicos recifenses


importantes foram utilizados: A Província, o Jornal do Recife e o Jornal
Pequeno, uma vez que, apresentavam notícias, colunas de opinião e charges
sobre os movimentos feministas em suas edições. Além destes foram analisados
jornais de outros estados, visando compreender melhor como se articulavam os
movimentos e verificar como se procedia a discussão do sufrágio em todos o
Brasil.

Sabemos que por um longo período as mulheres foram impedidas de


atuar politicamente em nosso país, papel este que era restrito apenas aos homens,
dado que:
Só em 1932 a mulher tem enfim o direito de votar e ser votada,
adquirido. Contudo, a legislação não obrigava a mulher a
votar, fazendo com que o movimento feminista se
posicionasse no convencimento das mulheres para se
alistarem. (SILVA, 2012, p. 08).

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Por este motivo, este trabalho se propõe a partir da documentação


coletada e das análises realizadas juntamente as fontes bibliográficas, apresentar
alguns resultados encontrados sobre este processo complexo e importantíssimo
da nossa história, para que esta conquista não seja esquecida ou negligenciada,
nem muito menos interpretada de maneira errônea, apenas como uma concessão.
É preciso desconstruir a ideia muito difundida de que as mulheres puxam os
663
fiozinhos dos bastidores, enquanto os pobres homens, como marionetes, mexem-
se na cena pública (PERROT, 1988, p. 173).

O limiar entre o público e o privado: ser mulher no início do século XX


O prelúdio do século XX foi palco de grandes transformações. Mesmo
com todo enredamento da conjectura republicana, a modernidade pediu
passagem e espalhou-se pelas ruas da cidade do Recife e das grandes capitais
brasileiras.
Ao respirar novos ares, a Veneza Brasileira1 logo tornou-se palco de
decisões administrativas, bem como de debates no poder executivo, legislativo
e na imprensa, visando atender às demandas da economia e promover a
elaboração de um projeto urbanístico2 transformador e progressista. Além de
ocupar a quarta posição no ranking de maior população, os bondes da
Pernambuco Tramways eram considerados os melhores do Brasil, ocorreram
alterações no setor educacional, deu-se maior importância aos clubes esportivos,
bem como à dinâmica dos clubes e blocos carnavalescos (ANDRADE, 1997). O
Recife exalava vivacidade. Como aponta NASCIMENTO, 2013a, “A vida
urbana ganha intensidade, luz, fluidez e velocidade” com as novas invenções
como: o cinema, o avião e a rádio.
As modificações foram inúmeras e não se limitaram apenas ao campo
político e econômico. Apesar de no referido período algumas mulheres
ocuparem aos poucos espaços vistos como genuinamente masculinos – como

1
Essa era uma das denominações literárias da cidade do Recife.
2
Foi na década de 1910 do novo século, no governo de Dantas Barreto, que aconteceu
a destacável modernização da estrutura urbana do Recife, com o plano do engenheiro
Saturnino de Brito (SILVA, 2011, p. 22).

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bares, cafés e clubes – ainda assim eram percebidas com tons de desconfiança.
Em geral, a mulher perante a sociedade pernambucana ainda era refém de muito
conservadorismo, devendo ser submissa ao pai e, ao se casar, igualmente
submissa ao marido. O homem do início do século XX possuía um ideal de
mulher preconcebido, como um modelo a ser seguido pelo sexo oposto.
Neste contexto, gradativamente as mulheres de camadas médias passam
a circular sozinhas, fazendo-se presentes em novos espaços de sociabilidade e
664
em ambientes antes não transitados. A demarcação existente entre atividades
femininas e masculinas, entre o privado e o público, paulatinamente é
transformada. Algo bastante comum no período era a prática do footing: “(...) a
compra de um sapato, a escolha de um tecido, a busca de algum artigo importado,
tudo era, às vezes, um simples pretexto para se ir à cidade. A finalidade principal
era fazer o footing, ou seja, ver e ser vista (PARAÍSO, 2011, p. 177).
Observar e ser observada, frequentar cafés, ir aos cinemas, usufruir da
moda e de diferentes recintos. Todas estas práticas acabam se tornando mais
frequentes no cotidiano feminino, uma vez que “nem todas as mulheres estavam
conformadas com o papel de filhas, esposas, mães e ‘coquetes’. Algumas
queriam mais. Ressignificaram o sentido de ser mulher, fissuraram o conceito”
(LUZ; NASCIMENTO, 2014, p. 04).
É justamente na vigência da Primeira República, regime oligárquico e
liberal, que os movimentos feministas tomaram fôlego no Brasil. Foram décadas
de luta para alcançar a cidadania política, com avanços e recuos (HAHNER,
2003). A entrada no mercado de trabalho, o anseio de estudar e se capacitar
profissionalmente, o sonho de participar ativamente do âmbito político são
apenas alguns dos inúmeros desejos que ganham asas no período. Mais
especificamente no que diz respeito à questão do sufrágio, com a promulgação
da Constituição de 1891, o direito de votar não é explicitamente negado à mulher.
Aliás, sequer esta é citada ou considerada cidadã. Como elucida José Murilo de
Carvalho (2010) há dois tipos de cidadania: a dos cidadãos ativos, possuidores
de direito civis e políticos e dos cidadãos inativos, ou simples detentores dos
direitos civis da cidadania. A mulher se encaixava na segunda categoria, já que
os constituintes entendiam que a mesma não era um sujeito possuidor de direitos.

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Baseada nos preceitos supracitados surge entre políticos e autoridades


da época uma forte oposição às reivindicações das mulheres. Neste cenário,
pairava o medo. O temor de que a liberdade que as mulheres vinham
gradativamente conquistando, se tornasse excessiva e ameaçadora,
comprometendo assim, os cuidados com o lar, com a família e a honra. A
paulatina abertura destas searas faz com que algumas delas protagonizem os
primeiros pedidos de alistamento eleitoral. Estes, por sua vez, indeferidos com
665
explicações pautadas na incapacidade biológica e jurídica atribuídas às mesmas
por grande parte dos constituintes. Esta circunstância gerou a indignação de
inúmeras das que tentaram se alistar e tiveram seus pedidos negados. Entretanto,
os obstáculos não às fizeram cair em resignação. As mulheres persistiram na luta.
Ousaram. Arriscaram-se. Passaram a questionar o que de fato as diferenciava dos
homens a ponto de eliminá-las do âmbito político.
Logo, os movimentos ganham concretude, materialidade. É a partir de
então, que as mais instruídas e de uma condição social mais elevada, resolvem
se organizar e trilhar um árduo caminho em busca da inclusão política e social.
É em meio a este fervilhar de renovações e tentativas de manutenção de
tradições, que duas organizações feministas desabrocham na cena
pernambucana, conquistando notoriedade: a Federação Pernambucana pelo
Progresso Feminino (FPPF) e a Cruzada Feminista Brasileira.

Os movimentos feministas em Pernambuco e suas reivindicações: A


Federação Pernambucana pelo Progresso Feminino (FPPF) e a Cruzada
Feminista Brasileira

Nos anos iniciais da década de 1930, entre as tentativas de manutenção


de tradições e as novidades, duas organizações feministas nascem no cenário
pernambucano e conquistam notoriedade: a Federação Pernambucana pelo
Progresso Feminino (FPPF), dirigida por Edwiges de Sá Pereira3 e a Cruzada

3
Edwiges de Sá Pereira nasceu no município de Barreiros no estado de Pernambuco,
em 25 de outubro de 1885. Teve condições propicias para estudar, diferentemente da
maioria das mulheres daquele período. Ela foi professora, poetisa, escritora e também
jornalista (SILVA, 2012, p.30.)

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Feminista Brasileira, sob a liderança de Martha de Hollanda4. Duas mulheres


imponentes no cenário intelectual como escritoras e poetisas.

A FPPF foi criada em 1931, como uma filial da Federação Brasileira


pelo Progresso Feminino5. Teve origem em 31 de maio do referido ano, quando
Edwiges de Sá “fez um convite, por meio do periódico A Notícia, às senhoras
pernambucanas que se interessam pela reivindicação dos direitos femininos para
uma reunião em sua casa, na Boa Vista, rua do Progresso, n. 71.” 666
(NASCIMENTO, 2013a, p. 06). E a partir daí fundou-se oficialmente a
associação.

Edwiges de Sá acreditava que conquistando a cidadania política, as


mulheres estariam percorrendo a trajetória correta rumo à obtenção de direitos
sociais e civis. Representava uma elite pensante e politicamente atuante.
“Embora não desejasse rupturas, ares revolucionários permeavam sua fala, no
paradoxo em que se colocava o movimento feminista” (NASCIMENTO, 2013a,
p. 10). Outrossim, uma característica peculiar e que deve ser mencionada é o
envolvimento da feminista com a doutrina cristã, defendendo deste modo, os
princípios católicos e sendo contrária ao divórcio. Em seu ponto de vista, as
reivindicações femininas deveriam ser pautadas através no viés cristão. Tal
posicionamento acarretou reflexos na condução e na proposição dos ideais da
FPPF, pois, em sua concepção “o movimento feminista não visa “masculinizar a
mulher” (..) o que se pretende é que seja sempre feminina, aja com aspirações
nobres dentro e fora do lar, consciente de sua personalidade, integralizada na
vida” (NASCIMENTO, 2013a, p.10).

Já a Cruzada Feminista, foi igualmente criada no ano de 1931. Sua


dirigente, Martha de Hollanda, dedicou-se a poesia, ao jornalismo e ao

4
Martha de Hollanda Cavalcanti, de família tradicional, nasceu em 20 de março de
1903, na pequena cidade de Vitória de Santo Antão, próxima da capital do Recife.
(SILVA, 2012, p. 34).
5
Em 1932, já existiam treze filiais da Federação espalhadas pelo país (SILVA, 2012, p.
30).

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feminismo e adotava uma posição mais radical6 com relação aos ideais
feministas. O movimento lutava pelo acesso da mulher ao âmbito político e
caracterizou-se como um movimento de extrema importância para a conquista
do voto, tornando sua representante uma feminista ímpar e muito atuante. Martha
de Hollanda e Celina Nigro foram as primeiras mulheres a se alistar para obter
o direito de votarem e serem votadas em Pernambuco7. O pedido de alistamento
da vitoriense foi noticiado pelo periódico Jornal do Recife, que anunciava:
667
“Valendo-se das prerrogativas constitucionais da República e firmada ainda na
campanha vitoriosa do feminismo brasileiro, a senhorita Martha de Hollanda,
acaba de requerer ao juiz de direito local permissão para ser alistada como
eleitora, para os fins de direito8”.

Com relação aos objetivos almejados pela Cruzada Feminista, pode-se


evidenciar: “estimular o seu espírito de organização orientando-a nos problemas
que, diretamente ou indiretamente possam interessar-lhe, estendendo e
ampliando a sua esfera de ação a todos os círculos civis e políticos” (FREITAS,
2003, p. 122). Diferentemente de Edwiges de Sá, Martha de Hollanda era a favor
do divórcio e não consubstanciava, nem submetia as propostas do movimento
aos valores cristãos. O movimento feminista organizado em Pernambuco
começa cindido, portanto, em duas frentes9 (NASCIMENTO, 2013b).

Discrepâncias e singularidades à parte, não se pode negar que ambos


foram essenciais em um cenário que galgava os primeiros passos para inserção

6
Era ousada no vestir-se. Inventava moda. Roupas extravagantes, penteados inusitados, cores
fortes, decotes pouco comuns à época, roupas feitas em alfaiates e muita maquilagem.
(FREITAS, 2003, p.63-64).
7
Há divergências com respeito a este fato. Pesquisas afirmam que Celina foi a primeira
mulher a obter o direito de votar, porém por outro lado é dada a indicação de pioneira a
Martha de Hollanda (SILVA, 2012, p. 33).
8
Jornal do Recife, 1928, p. 01.
9
Edwiges de Sá declinou do convite de ser presidente de honra da Cruzada Feminista,
fundada por Martha, assim como Martha de Hollanda não aceitou o convite de participar
da Federação Pernambucana, criada por Edwiges. Através de cartas, a vitoriense
explicara a Bertha Lutz, líder da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, a
primeira divergência que nasceu no movimento feminista em Pernambuco, a qual ela
acreditava não ter muito relevo, e que, mantendo os princípios e a “primogeneidade” da
sua ideia, se colocava pronta para “colaborar, coadjuvar quaisquer novas sociedades que
apareçam para nossa defesa moral, social ou política” (NASCIMENTO, 2013b, p. 10).

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da mulher na seara política. Mas afinal, quem eram estas mulheres? O que
reivindicavam? Como conseguiam espaço para evidenciar ao mundo seus
contra-argumentos? Que estratégias utilizaram? Como driblavam e rebatiam as
insolentes críticas antifeministas?

Reivindicações e Estratégias
668
As mulheres que davam dinamicidade aos movimentos feministas dos
primeiros decênios do século XX advinham de vários setores e cargos: eram
mulheres de classe média, educadas, algumas profissionais liberais, casadas,
solteiras (NASCIMENTO, 2013a), professoras, comerciantes, poetisas,
mulheres de políticos influentes.

Os anseios eram inúmeros. Os programas de reivindicações tanto da


FPPF, quanto da Cruzada apresentavam conteúdo de forte cunho político. A
instrução era colocada como via estratégica para a conquista ampla da cidadania
e dos direitos civis, sociais e políticos. Nesse sentido, mostrava-se
potencialmente politizante, sendo o caminho, o solo fértil para outras conquistas.

Se tratando da FPPF, foi lançada em 1931, a Plataforma de Ações da


Federação Pernambucana10, que deixava claro as intenções da associação e
aventava:
1. Promover a educação da mulher e elevar o nível da
instrução feminina; 2. Proteger as mães e a infância; 3. Obter
as garantias legislativas e práticas para o trabalho feminino;
4. Auxiliar as boas iniciativas da mulher e orientá-las na
escolha de uma profissão; 5. Estimular o espírito de
solidariedade e da cooperação entre as mulheres e interessá-
las pelas questões sociais e de alcance público; 6. Assegurar
à mulher os direitos políticos e prepará-la para o exercício
inteligente desses direitos; 7. Estreitar os laços de amizade
com os demais países americanos, a fim de garantir a
manutenção perpétua da paz e da justiça no Hemisfério
Ocidental (NASCIMENTO, 2013a, p. 54).

Com relação à Cruzada Feminista, embora esta se autodeclarasse uma


organização nacional, revelava um programa cujo alcance geográfico era mesmo

10
Lançada por Ilda Solto.

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o Nordeste, ao incluir e nomear a mulher nordestina como sujeito de direitos. Ao


considerar a instrução como ação transversal do programa, pensava-se como a
via que possibilitaria a mulher conquistar “seu justo lugar nas sociedades
civilizadas” (NASCIMENTO, 2013b). Isso também pode ser atestado no
programa do referido movimento publicado pelo jornal A Pilhéria que pretendia:
a) Elevar o nível intelectual e social da mulher nordestina,
assegurando-lhe todos os direitos e promovendo-lhe a
instrução necessária para a conquista de seu justo lugar nas
sociedades civilizadas; b) assegurar as suas prerrogativas 669
civis e constitucionais, facultando-lhe as garantias legislativas
concernentes ao seu trabalho, e as medidas protetoras as mães
e a infância; c) estimular o espírito de organização orientando-
a nos problemas que, diretamente ou indiretamente possam
interessar-lhe, estendendo e ampliando a sua esfera de ação a
todos os círculos civis e políticos; d) provocar o intercâmbio
intelectual com as demais nações a fim de que pela sua ação
homogênea e segura seja mantida a paz e a tranquilidade do
mundo11” (NASCIMENTO, 2013b, p. 11).

Notamos assim, que as diretrizes supracitadas, não divergiam da


plataforma de ações da FPPF, no entanto era mais direta em seus objetivos, além
de elucidar a instrução e a política como campos de convergência, de
dependência. O discurso destas mulheres era latente. Bradavam seu lugar de
cidadãs na sociedade de então, colocavam em cheque o regime em torno da
desigualdade entre os sexos e questionavam principalmente os motivos que as
impediam de ocupar espaços além do lar. Sobre este ponto, FOUCAULT reitera:
“(...) o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de
dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos
apoderar” (1996, p. 10).

Notamos então que as referidas organizações feministas ambicionavam


ir além da questão sufragista. O feminismo que pregavam tinha por objetivo a
equidade entre os sexos, visando uma emancipação apoiada na instrução e na
cidadania sem restrições. Como destacava Martha, “um feminismo que educa,
que protege, que constrói, que realiza, que defende12”. Apesar de todas as
idealizações, o trajeto não foi simples. Foi preciso criar inúmeras estratégias para

11
A Pilhéria, 20 jun. 1931.
12
A Notícia, 11 nov.1931.

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conquistar apoio, reunir cada vez mais adepto(a)s, conseguir espaço nos meios
de comunicação influentes da época, instruir as mulheres acerca da importância
do voto e ainda lidar com as implacáveis críticas antifeministas.

Segundo o dicionário Houaiss13, estratégia significa “a arte de aplicar


com eficácia os recursos de que se dispõe ou de explorar as condições favoráveis
de que porventura se desfrute, visando ao alcance de determinados objetivos”.

Foi exatamente com o intuito de se valer dos meios que dispunham, que 670
as mulheres da FPPF e da Cruzada Feminista Brasileira buscaram estratégias,
formas palpáveis e eficazes de disseminar seus ideais. A intensa utilização da
imprensa e da rádio, desde anos iniciais do século XX14, foram peças-chave no
avanço destas organizações. Assim, os veículos de comunicação eram usufruídos
em prol da conscientização e mobilização de cada vez mais pessoas que
apoiassem a causa do sufrágio feminino, bem como da equidade entre os sexos.

Através dos meios de comunicação supracitados eram anunciadas


reuniões, divulgados feitos, organizadas campanhas filantrópicas, conferidas
palestras, dentre outras atividades. A exemplo disto, o Jornal Pequeno, do dia 29
de janeiro de 1932, avisava aos leitores: “A brilhante escritora Martha de
Hollanda, realizará hoje, às 8 horas da noite, na Rádio Club, uma palestra que
será irradiada15”.

Em meio a gama de estratégias cabíveis ao período, merece destaque a


campanha realizada pela Cruzada Feminista em auxílio às mulheres viúvas
desamparadas, o que consequentemente acarretou a maior proximidade destas
mulheres e o fortalecimento do movimento. No Jornal Pequeno, de 1932, é
possível encontrar várias “chamadas” que clamavam: “Mulheres! Acompanhe a
Cruzada Feminista Brasileira, pedindo, de porta em porta, luz para as choupanas

13
Dicionário de Língua Portuguesa Online Houaiss.
14
Em Pernambuco, as mulheres escrevem nas revistas A Pilhéria, Helios, A Pátria, O
Bem-te-vi, além de conseguir espaço nos principais jornais da capital, como A Província
e o Diário de Pernambuco (LUZ; NASCIMENTO, 2014, p. 09). No interior, pode-se
destacar a participação e atuação de Martha de Hollanda no jornal O Lidador, de Vitória
de Santo Antão.
15
Jornal Pequeno, 29 jan. 1932, p. 01.

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das viúvas desabrigadas!”16. Assim como Martha de Hollanda, Edwiges de Sá


era um exemplo disto, uma vez que presidiu a Associação das Damas de
Beneficência e integrou o Comitê Feminino da Maternidade do Recife.

Nesse sentido, o trabalho filantrópico ampliou a problematização da


exclusão feminina do campo político, visto como estratégico para conquista de
outros direitos e oportunidades. Se para alguns autore(a)s, o trabalho dessas
mulheres de classe média e alta servia para atenuar o conflito entre as classes e 671
promover a ordem social, já que não questionava a hierarquia entre os
gêneros, para outro(a)s era um espaço de reposicionamento pessoal e político
(NASCIMENTO, 2013a). Como aponta PERROT, “(…) a filantropia constituiu,
para as mulheres, uma experiência não negligenciável que modificou sua
percepção do mundo, seu sentido de si mesmas e, até certo ponto, sua inserção
pública” (2005, p. 281).

As nuances do antifeminismo

Em meio a tanto fervor, reivindicações e estratégias para galgar novos


espaços no âmbito público, a crítica antifeminista não se fazia silenciosa e
mostrava-se significativamente diversa e atroz. Enquanto alguns opositores
optavam por proferir ataques diretos ao movimento, outros pleiteavam pela
invalidação de sua mensagem.

Neste contexto, a imprensa veio a desempenhar um papel fundamental,


contribuindo de modo expressivo para a velada vulgarização do feminismo, uma
vez que, “ao popularizar a ideia do feminismo, a imprensa banalizava sua
seriedade e distorcia seu significado. A mensagem transmitida era a de que ser
feminista significava ser moderna e estar na moda; não era necessária nenhuma
transformação fundamental de consciência” (BESSE, 1999, p. 214).

Desta forma, podemos observar que “tais movimentos eram


considerados ondas perigosas de desorganização social e investidas assustadoras
contra a ordem divina e natural” (BESSE, 1999, p. 214-215) por parte do

16
Jornal Pequeno, 27 jan. 1932.

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antifeminismo masculino. Seus discursos eram construídos não apenas


objetivando a apelação emocional do público, mas baseando-se em justificativas
científicas e morais, que por sua vez, visavam impedir que as mulheres
alcançassem a conquista do voto e ocupassem cargos considerados masculinos.

Nessa perspectiva, podemos averiguar que segundo a visão dos


antifeministas, a entrada das mulheres na esfera pública, independente de qual
fosse o segmento, representava claramente uma violação da verdadeira essência 672
feminina, visto que isto seria a principal causa da destruição da harmonia entre
os sexos. O discurso inflamado de um colunista do Jornal A Província, deixa isso
bem claro, quando diz: “A mulher brasileira começa a sonhar com este direito
inútil que os homens possuem: o voto. É um sonho mau (...) A nossa mulher
nunca devia pensar em voto. É o perigo, a iminência de uma morte moral17.

Além disso, os argumentos antifeministas eram majoritariamente


pautados nas questões jurídicas e biológicas. Uns denunciavam a incapacidade
física; outros ressaltavam a diversidade do organismo feminino e a menstruação
como uma barreira para que as mulheres assumissem as tarefas exercidas até
então por homens, havia também os que frisassem e alegassem sua inconstância
psicológica e inferioridade mental. Na coluna escrita por Sylvio Rabello, no
Jornal do Recife, isto é bastante evidenciado quando o mesmo pontua que: “As
investigações antropológicas têm como certo que o cérebro da mulher é inferior
ao do homem em volume e peso (…) é fora de dúvida que há desigualdade
mental dos sexos18.

Talvez o que mais temessem fosse que ao conquistar o voto, as mulheres


se masculinizassem ou abandonassem a esfera do lar, como demonstra o trecho
de uma coluna de opinião no periódico A Reforma (AC): “E, assim, enquanto as
mulheres despacham no ministério, elaboram orçamentos e discutem leis no
congresso, os pobres maridos ficarão em casa, lavando cueiros, banhando as
crianças e fazendo o rol para as lavadeiras19”. O receio do afastamento da figura

17
A Província, 20 jun. 1923, p. 01.
18
Jornal do Recife, 24 jun. 1920, p. 04.
19
A Reforma (AC), 1932, p. 01.

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feminina do lar, também pode ser observado no discurso presente neste trecho
publicado no Jornal do Recife: “(...) Abandonar por completo, a mulher, os
deveres de mãe e o sacerdócio de educadora, na formação dos caracteres sãos, é
se imiscuir em certos caminhos da vida, invadindo uma atmosfera imprópria à
sua existência, é sair dos limites do bom senso20”.

Como já mencionado anteriormente, as estratégias mais recorrentes


para atacar os movimentos feministas concentravam-se na ridicularização e 673
vulgarização do mesmo, o que ocorria muitas vezes por meio de charges, em um
tom satírico e motejador. Como podemos constatar no diálogo abaixo que diz: “-
O Jornal diz que as mulheres andam assanhadas para que passe o voto feminino...
/ - Nós também muito breve temos que nos agitar: vamos passar da sala... p'ra
cozinha.”

Imagem 01: Jornal A Manhã, 24 nov. 1927, p.10.

A presença de charges deste tipo nos principais jornais do período era


bastante recorrente, configurando assim, mais um valioso objeto de estudo para
o(a) historiador(a) em suas análises e pesquisas. Como esclarece LUCA: “O
advento da ilustração foi essencial para o impulso e a diversificação do impresso
periódico, ainda mais em um país onde ainda havia rarefeito público leitor (...)”
(2011, p. 135).

20
Jornal do Recife, 24 jun. 1924.

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Assim, o antifeminismo21 configura-se como um ponto de extrema


relevância para compreender de forma coerente os vieses e emblemas
enfrentados pelas feministas durante esta evolução política e social. No entanto,
é válido lembrar que tais críticas não eram toleradas passivamente. Havia sim
contra-argumentos, bem estruturados e concisos por parte das feministas e de
políticos e intelectuais simpatizantes à causa, embora fossem minoria.

Apesar dos textos e charges em sua grande maioria estamparem os 674


periódicos da época de maneira negativa no que diz respeito aos anseios
feministas, foi possível constatar a partir da documentação coletada, que havia –
embora limitado – espaço para difusão da ideia não só de conquista do sufrágio,
mas de outros âmbitos almejados pelas mulheres. A aspiração por mais triunfos
pode ser constatada na ousada charge intitulada O Partido Ideal... , na qual um
homem e uma mulher se entreolham e conversam: “Ele: Que tal? Não sou um
bom partido? Bem apessoado, elegante, bonito... Hein? Ela: Ora, bom partido, o
senhor! Nós só temos um partido: o da nossa independência. Queremos tudo
partido: os maridos em casa e nós pelas avenidas e no tumultuar do jazz-band22”.

Imagem 02: A Província, 21 dez. 1924, p. 01.

Compreender tais embates contribuiu significativamente para o


enriquecimento da análise acerca do processo de luta pela conquista do direito
ao voto feminino, além de impedir a unilateralidade do conhecimento e da

21
Sobre os antifeminismos e seus argumentos ver BESSE, 1999, p. 214-220.
22
A Província, 21 dez. 1924, p. 01.

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pesquisa, posto que, “precisamos (...) narrar a partir da multiplicidade do olhar e


sentir, dos diferentes lugares, das diversas mulheres, esse rico momento da
história do feminismo no Brasil” (LUZ; NASCIMENTO, 2014, p. 04).

Conclusões

Desde meados do século XIX, as mulheres começaram a tentar romper


675
o cerco que as envolvia e a lutar por seus direitos políticos. Sem dúvida, as
circunstâncias e as mudanças trazidas com a instauração da República, foram
essenciais direta e indiretamente para conferir a estas um maior espaço e
liberdade no âmbito público, ainda que este fosse diminuto. Gradativamente
desbravaram espaços nitidamente masculinos, questionaram verdades em torno
de seu sexo, de seu corpo e de sua inteligência, por meio da palavra escrita, de
entrevistas em rádios, com a publicação de artigos polêmicos, e, na seara da
Justiça, abrindo processos para terem direitos políticos como cidadãs
(NASCIMENTO, 2013b). Dentro deste contexto, os diferentes feminismos que
se confrontaram em Pernambuco na luta pelos direitos igualitários entre os
gêneros configuram-se como elementos cruciais para o rompimento da ideia de
unidade, de onda. Suas existências e trajetos necessitam ser repensados,
redescobertos, ecoados.

Outro elemento passível de análise diz respeito a rede de contradições


na qual estas mesmas mulheres estavam inseridas, uma vez que “estavam
imersas neste mesmo contexto que as forjavam como cidadãs paradoxais, posto
que “o feminismo não é produto das operações benignas e progressistas do
individualismo liberal, mas um sintoma de suas contradições” (SCOTT, 2002, p.
48). Assim, embora muitas destas representantes lutassem por direitos políticos,
acabavam por representar uma parcela pequena da população, que tinha o
privilégio da instrução e de transitar em ambientes tidos como masculinos. Além
disto, algumas estavam presas aos valores cristãos, como vimos o caso de
Edwiges de Sá, fato este que influenciava a tomada de decisões e as condutas do
movimento. No entanto, nenhuma das pontuações supracitadas diminui a
relevância dos movimentos feministas e sufragistas no Brasil e mais

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especificamente em Recife, uma vez que, estas mulheres lutaram em um


contexto histórico limitador e atroz.

Enfim, em 1932 as reivindicações têm êxito. Muito embora o voto não


tenha sido obrigatório para as mulheres inicialmente, sendo necessário o
convencimento de um eleitorado feminino, um grande passo foi dado. Se as
mulheres, mesmo com a garantia de leis, ainda apresentam-se como minoria na
seara política, isso em parte diz respeito à persistente dominação masculina que 676
se faz presente neste meio, bem como ao reflexo de anos de tolhimento de acesso
ao poder.

A História constitui e torna concreta a possibilidade de que a trajetória


dessas mulheres, assim como a de outras, seja conhecida, uma vez que:
Quem lutou, ontem, nesse sentido, desbravou os caminhos do
agora e ajudou a amenizar a aspereza da caminhada. Essas
mulheres renunciaram os esquemas exclusivos de
domesticidade, repressores, diga-se, mas tentadores, à medida
que ofereciam mais serenidade numa alienação de vida. A
elas devemos a grande conquista dos nossos espaços vitais
(INOJOSA, 1984, p.31).

É preciso lembrar as situações degradantes que viveram as mulheres,


durante os séculos e a luta persistente que travaram para, finalmente,
conseguirem se firmar como cidadãs. Ainda há muito por ser conquistado.

Destarte, o direito de votar abriu, sem dúvida, um novo horizonte social


para a mulher. Teria sido o caminho de uma liberação feminina, no sentido de
haver uma participação mais marcante na sociedade (INOJOSA, 1984, p.31). A
mulher perdeu definitivamente seu cômodo lugar de adorno, enquanto assumia
o papel de pessoa humana responsável.

REFERÊNCIAS

Documentos

A Notícia (1931)

A Pilhéria (1931)

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A Província (1923/1924)

A Reforma (AC) (1924)

Jornal do Recife (1920/1924/1928)

Jornal Pequeno (1932)

Obras 677

ANDRADE, Manuel Correia de. Pernambuco Imortal: evolução histórica e


social de Pernambuco. Recife: Editora CEPE, 1997.

BESSE, Susan. Modernizando a Desigualdade: reestruturação da ideologia de


gênero no

Brasil (1912-1940). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999.

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Civilização Brasileira, 2010.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

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mulher no Brasil, 1850-1940. Florianópolis: Mulheres; Santa Cruz do Sul:
Edunisc, 2003.

INOJOSA, Cristina. Martha de Hollanda: feminismo e feminilidade. Recife:


Assessoria Editorial do Nordeste, 1984.

KARAWEJCZYK, Mônica. As Filhas de Eva querem votar: dos primórdios da


questão à conquista do sufrágio feminino no Brasil (c.1850-1932). Porto Alegre,
2013.

LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In:
PINSKY, Carla Bassanezi. (org.). Fontes Históricas. 3. ed. São Paulo: Contexto,
2011.

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LUZ Noemia M. Q. Pereira da. ; NASCIMENTO, Alcileide Cabral. O debate em


torno da emancipação feminina no Recife (1870-1920). Revista Pagu, 2014.

NASCIMENTO, Alcileide Cabral de. O bonde do desejo: o Movimento


Feminista no Recife e o debate em torno do sexismo (1927-1931). Revista
Estudos Feministas, vol. 21, no 1. Florianópolis. Jan/Abr. 2013.

NASCIMENTO, Alcileide Cabral do. De pomba para leoa: Martha de Hollanda


e a Cruzada Feminista Brasileira na luta pela igualdade política entre os sexos 678
(1927-1932). In: XXVII Simpósio Nacional de História – ANPUH, 2013, Natal.
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SILVA, Maria Angélica P. de Lima. Erva militante: Edwiges de Sá Pereira e o


movimento feminista em Recife (1900-1932). Recife, 2011. (Monografia).

SOIHET, Rachel. A conquista do espaço público. In: PINSKY, Carla B. ;


PEDRO, Joana M (Orgs.). Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo:
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SOUSA, Ana Júlia da Silva de. Participação da mulher nos espaços de poder no
Brasil: atuação feminina no executivo, legislativo e judiciário. In: Âmbito
Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 91, ago. 2011. Disponível em:
http://ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=10
148&revista_caderno=24. Acesso em: 06 jan. 2015.

SCOTT, Joan Walach. A Cidadã Paradoxal: as feministas francesas e os direitos


do homem. Florianópolis: Mulheres, 2002.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Recife: SOS
Corpo, 1991.

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EDUCAÇÃO, TRABALHO E VOTO: A LUTA POLÍTICA FEMINISTA


DA FEDERAÇÃO PERNAMBUCANA PELO PROGRESSO FEMININO
(1931-1937)

Emelly Sueny Fekete Facundes*

Introdução
679
Quem fez do homem o juiz exclusivo, se a mulher
compartilha com ele o dom da razão?
Mary Wollstonecraft

É consenso entre as/os historiadoras/es que a luta pela igualdade de


direitos entre homens e mulheres se intensificou a partir do advento da
República, no final do século XIX. Em uma sociedade extremamente
conservadora e patriarcal, as mulheres, que eram tidas como “eternas menores
de idade”, começaram a requerer o direito de votar e serem votadas. Atrelado a
essa reivindicação vinha também o direito à educação formal feminina no
mesmo patamar que a masculina, dando condições para que as mulheres
ingressassem no ensino superior. Era uma luta pela participação na vida pública,
não apenas para cumprir as leis, mas também para formulá-las. Todas essas
ideias foram vistas por boa parte dos políticos, por setores da imprensa, e por
setores da sociedade civil da época, como ameaçadoras da família, da moral e da
reprodução humana.

As opiniões e questionamentos sobre o fazer político, a identidade


nacional e a cultura brasileira entraram em pauta de maneira preponderante na
década de 1920. A Semana de Arte Moderna veio dizer que o Brasil precisava
se entender culturalmente. A organização do Partido Comunista, o movimento
tenentista, e a insatisfação de setores das oligarquias vieram endossar as críticas
ao sistema político que excluía grande parte da população do que deveria ser
uma das conquistas da república, a participação de todos na escolha de seus

*
Mestranda em História Social da Cultura Regional pela Universidade Federal Rural de
Pernambuco. Emelly.facundes@hotmail.com

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representantes através do voto. A palavra voto não queria dizer muita coisa nem
para os mais pobres, nem para os mais ricos, a barreira da alfabetização excluía
a maioria do povo do exercício eleitoral. Votar não era um direito no Brasil.
Mas, apesar de todas as leis que restringiam o direito ao voto
e de todas as práticas que deturpavam o voto dado, não houve
no Brasil, até 1930, movimentos populares exigindo maior
participação eleitoral. A única exceção foi o movimento pelo
voto feminino, valente, mas limitado (CARVALHO: 2008:
42).
680
Essa limitação se dava não somente pelo contexto histórico ao qual o
Brasil passou de império para república, onde o povo não entendia claramente o
significado do voto e a organização da república, mas também pelo
patriarcalismo fortemente arraigado nas organizações familiares. Era uma luta
em duas frentes. Foi depois de 41 anos de promulgada a primeira constituição
republicana brasileira que o direito ao voto feminino foi institucionalizado, no
artigo 2 do decreto nº. 21.076 de 24 de fevereiro de 1932. Entretanto, essa
conquista não veio sem muita luta e organização feminina, que já na primeira
década do século XX começou de maneira organizada com a formação do
Partido Republicano Feminino (que atuava de maneira ilegal, já que as mulheres
não eram reconhecidas como cidadãs), porém, esse partido pioneiro desapareceu
nos fins da década de 1910.

Foi na década de 1920 que a luta pelos direitos políticos das mulheres
ganhou intensidade, década em que Bertha Lutz, intelectual e cientista, “retornou
de Paris e começou a organizar o embrião do que viria a ser a maior expressão
do feminismo da época, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, FBPF”
(PINTO: 2003:21). A FBPF, com sede no Rio de Janeiro, ajudou a fundar outras
organizações feministas e de mulheres, organizando filiais estaduais, como a
Federação Pernambucana pelo Progresso Feminino (FPPF)1, que era presidida
por Edwiges de Sá Pereira. Edwiges também era intelectual, mulher de família
bem relacionada, e membro da Academia Pernambucana de Letras. As mulheres

1
Sempre que forem citadas no artigo as siglas FBPF e FPPF, entenda-se Federação
Brasileira pelo Progresso Feminino e Federação Pernambucana pelo Progresso
Feminino, respectivamente.

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que formavam a FPPF eram mulheres profissionais, advogadas, intelectuais,


professoras que assim como Edwiges, utilizaram das suas relações privilegiadas
com os diversos setores da sociedade para dar visibilidade às suas opiniões,
principalmente na imprensa (SILVA; NASCIMENTO: 2010). Essas mulheres
lutavam por cidadania, mas até 1930 os direitos políticos eram para poucos, os
civis não eram totalmente respeitados, e os sociais nem eram citados na
constituição (CARVALHO: 2008). Diante desse quadro político, lutar por
681
emancipação política e econômica para as mulheres era um ato de coragem. Mas
a década de 1930 veio inaugurar uma ebulição política que levou Getúlio Vargas
ao poder, iniciando assim um período de intensas mudanças sociais. As
feministas aproveitaram essa movimentação para aumentar a pressão na luta em
prol da emancipação feminina. Entretanto, os discursos e ações propostas tanto
pela FBPF quanto pela FPPF demonstram que o entendimento que tinham sobre
a emancipação política feminina ia além do simples exercício do voto. A luta
encampada por essas entidades era pelo reconhecimento da mulher como sujeito
capaz de modificar a realidade e sua inserção na vida pública como agente ativo
dessas modificações.

Os debates sobre a questão de gênero estão cada vez mais ganhando


espaço na sociedade brasileira. Não somente no âmbito acadêmico, mas
principalmente no cotidiano das pessoas, nas discussões em redes sociais e nos
diversos espaços públicos e privados. Essa ebulição de opiniões se dá pela
inquietação social feminina com relação aos papéis de gênero que são impostos
pela sociedade, papéis esses que tornam as diferenças entre os sexos a base para
a inferiorização da mulher. Foi com essa inquietação que as feministas nas
universidades formaram grupos de estudos, apresentaram trabalhos acadêmicos
sobre a História das Mulheres, e pautaram a luta feminista dentro da academia.
E é com essa mesma inquietação que o presente trabalho objetiva problematizar
a luta de mulheres que tiveram grande importância na vida pública
pernambucana. Para isso utilizamos como fontes de análise periódicos como o
Jornal do Recife, o Jornal Pequeno, A Gazeta, Diário de Pernambuco e o Diário
da Manhã, além das Atas das Reuniões da Federação Pernambucana pelo
Progresso Feminino. Procuramos identificar quem eram as mulheres que

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construíram a FPPF, assim como suas ligações sociais dentro da sociedade


pernambucana, buscando problematizar a discussão sobre qual o feminismo
defendido por essas mulheres e as estratégias de luta das mesmas.

A brilhante solenidade

“Aos dez dias do mês de novembro do ano de mil novecentos e trinta e


682
um, realizou-se no salão nobre do Club Internacional do Recife, a posse solene
de primeira diretoria da Federação Pernambucana pelo Progresso Feminino”.
Assim começou a ser escrita a primeira página do livro de Ata de Reunião da
FPPF2. Realizada no Club Internacional do Recife, endereço de pompa da
cidade, a solenidade contou com a presença de personalidades da alta classe
pernambucana, além de representantes dos mais importantes periódicos da
cidade. Odila Porto da Silveira, representante da Federação Brasileira pelo
Progresso Feminino (FBPF), presidiu a mesa de abertura da solenidade,
sacramentando assim a filiação da FPPF á FBPF. O programa apresentado pela
entidade era principalmente voltado para a educação feminina, proteção do
trabalho das mulheres e, até 1934, a luta pelo voto e o alistamento feminino. É
inegável que o esforço inicial para a fundação da Federação Pernambucana se
deve a Edwiges de Sá Pereira, a fundadora e primeira presidente da FPPF.

Edwiges de Sá Pereira era escritora, poetisa, professora, e foi a primeira


mulher membro da Academia Pernambucana de Letras. Desde os anos 1920
escrevia para periódicos femininos. Em 1931 participou do II Congresso
Internacional Feminista, sediado no Rio de Janeiro e organizado pela FBPF,
onde proferiu seu discurso Pela mulher, para a mulher, explanando sua tese
sobre a educação feminina, e no qual, ao regressar para Recife, se espelhou para
fundar a FPPF. É certo que o discurso de Edwiges tinha um ar higienista, típico
da Primeira República, onde via a miscigenação como uma característica
negativa na formação do povo brasileiro. Entretanto, ela acreditava que a
educação igual para todos era o único caminho para transformar o Brasil em um

2
Livro de atas das sessões extraordinárias e de Assembleia Geral da Federação
Pernambucana pelo Progresso Feminino. P.1. FUNDAJ.

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país “civilizado” (CAMPOS: 2008). Sua preocupação com a educação e o


trabalho feminino era refletida na sua análise sobre a necessidade da
emancipação econômica da mulher. Seu discurso trazia a divisão das mulheres
em 3 níveis: as que não precisam e sabem trabalhar; as que precisam e sabem
trabalhar; e as que precisam e não sabem trabalhar (CAMPOS: 2008). Ao
primeiro grupo pertenciam as mulheres de classe alta, que tiveram acesso à
educação mas que tinham um poder econômico que as deixavam em uma
683
situação confortável; o segundo grupo eram das mulheres de classe média, que
também tiveram acesso á educação e precisavam complementar a renda da casa;
o terceiro grupo eram as mulheres de classe baixa, que não tiveram acesso á
instrução mas precisavam trabalhar para sustentar suas famílias. Devido a essa
preocupação com a instrução feminina, a FPPF organizou Cursos de Educação
Política3, a Escola de Oportunidades – que se traduziu nos núcleos de cultura-
voltada para a qualificação profissional feminina, e a organização de uma vasta
biblioteca para tornar a leitura mais acessível as mulheres4.

Por que votar?


Não agem vocês de maneira similar quando forçam todas as
mulheres, ao negar-lhes os direitos civis e políticos, a
permanecer confinadas na família, tateando no escuro?
Mary Wollstonecraft

Edwiges de Sá partilhava da mesma ideia de Bertha Lutz, ambas


entendiam que a mulher precisava se colocar como agente ativo na organização
e administração da sociedade, provando que tinha capacidade intelectual e moral
para pautar seus próprios interesses na política. A questão da moral também era
utilizada para o alargamento do campo de atuação feminina. A primeira vista
esse ponto é paradoxal, já que nesse período a moral vigente impunha que as
mulheres continuassem restritas ao espaço privado, constituído pelos cuidados
com a casa e com os filhos. Entretanto, os discursos dessas mulheres alargavam

3
Federação Pernambucana pelo Progresso Feminino. Jornal Pequeno, 20.02.1933.
Hemeroteca Digital Brasileira.
4
Actividades da Federação Pernambucana pelo Progresso Feminino. Diário da Manhã.
15.11.1935. APEJE.

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o significado do termo “cuidar” e, aos poucos, iam quebrando as barreiras que


delimitavam o espaço público do espaço privado. Ganhou força a ideia de que a
mulher com suas “qualidades femininas”, com uma moral elevada, ajudaria a
construir uma sociedade melhor. Uma grande parte dos políticos não aceitavam
nem a participação e nem concordavam que a mulher tinha capacidade de pensar
a política, apesar de ter algumas vozes que defendiam o direito das mulheres de
participar da vida pública. As mulheres, por sua vez, utilizaram a estratégia de
684
que o parlamento seria uma extensão do lar, e que sua capacidade de cuidar
deveria se estender a todos (SOIHET: 2000). Se falava em trazer as qualidades
femininas da responsabilidade, do cuidado, da moral irretocável para revitalizar
a política que estava entregue a corrupção masculina. A participação feminina
na política surge como um novo elemento na vida pública, trazendo novo ponto
de vista e novas pautas a serem discutidas. Era uma ressignificação do que era
ser mulher. Saindo de um patamar que as colocava como “eternas menores de
idade”, cuidadas por pais e maridos, para um lugar de autonomia, onde além de
obedecerem as leis também iriam formulá-las. Com esse objetivo de intensificar
a conscientização das mulheres para seu potencial político, a FPPF começou uma
forte campanha para o alistamento eleitoral feminino, fazendo chamamentos
públicos nos jornais para o alistamento e oferecendo o Curso de Educação
Política I5. Motivavam as mulheres construindo um discurso que permeava a
melhora nas condições do lar para as mães, o fortalecimento das garantias
legislativas para a mulher trabalhadora, e o estímulo ao patriotismo, tentando
abarcar assim a maioria das mulheres.

É nesse contexto que Edwiges de Sá sai candidata para a Assembleia


Constituinte de 1933 pelo Partido Economista de Pernambuco6. É interessante
ressaltar que o Partido Economista se proclamava defensor das classes
conservadoras7 buscavam apoio dos grandes empresários pernambucanos e de
entidades ligadas ao comércio, como foi o caso da Associação de Comércio de

5
Federação Pernambucana pelo Progresso Feminino. Jornal Pequeno, 20.02.1933.
Hemeroteca Digital Brasileira.
6
As eleições á Constituinte. Jornal do Recife, 30.04.1933. FUNDAJ
7
Pela Política. Jornal Pequeno, 23.01.1933. Hemeroteca Digital Brasileira.

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Pernambuco.8 Entretanto, foi o único partido em Pernambuco a ter uma mulher


dentre seus candidatos. Talvez isso tenha se dado pelo fato de que o cenário
político da época, muito movimentado e cheio de incertezas quanto aos rumos
do governo, tenha feito os dirigentes do partido pensarem que ter o apoio, nem
que fosse mínimo, dessa parcela da população na votação seria interessante para
conseguirem eleger seus candidatos. Isso não implicava em eleger
verdadeiramente uma mulher, mas em ter a simpatia delas para a eleição de
685
outros candidatos da chapa, é tanto que não encontramos o nome de Edwiges em
propagandas eleitorais do partido no jornal.

A defesa da candidatura de Edwiges se deu principalmente na imprensa


através de pronunciamentos de mulheres da Federação Pernambucana. Em
Janeiro de 1933 foi publicado no Diário de Pernambuco um pronunciamento da
FPPF explanando os motivos pelos quais Edwiges tinha sido escolhida por elas
para representar as mulheres na constituinte. Julia Pereira, Aurea Palmeira e
Noemia Xavier foram á sede do Diário de Pernambuco e entregaram a
declaração coletiva da entidade9. Os argumentos em defesa do nome de Edwiges
eram pautados na preocupação com a educação popular, organização da
assistência social, com os interesses do operariado e os altos postulados da Igreja
Católica10. Todavia, apesar dos esforços, Edwiges de Sá não conseguiu ser eleita
para a Constituinte. É curioso observar o paradoxo claro entre a defesa da
emancipação da mulher, tanto econômica, quanto educacional e intelectual, e o
apoio aos postulados católicos. Edwiges era contra o divórcio, apesar de
defender pena igual para homens e mulheres em caso de adultério 11. Algumas
das integrantes da FPPF tinham relações com setores da Igreja, como é o caso
da própria Edwiges de Sá que era presidente da Associação das Damas de
Beneficência (NASCIMENTO: 2011b). Emília Marchesini, que foi secretária-
geral e posteriormente presidente da FPPF, também era ligada ao trabalho

8
IDEM.
9
A quem deverá caber a representação da mulher pernambucana na futura constituinte?
Diário de Pernambuco, 29.01.1933. FUNDAJ
10
Ao eleitorado pernambucano. Diário de Pernambuco, 30.04.1933. FUNDAJ
11
Pesar de defender os postulados católicos e ser contra o divórcio, um fato curioso é o
de Edwiges nunca ter casado e nem ter tido filhos.

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beneficente, onde atuava junto a Associação das Senhoras de Caridade12. Já Ana


de Sá Pereira, irmã de Edwiges e sócia atuante desde a fundação até o
encerramento da FPPF, era professora do Juvenato D.Vital – um dos centros de
formação católica mais conservadores do Brasil, ligado a organização da Ação
Católica em Pernambuco13. Nas falas dessas feministas, pelo menos até 1935,
não encontramos elementos que confrontassem a responsabilidade da
organização familiar na condição de inferioridade da mulher, a família ainda era
686
vista como o lugar feminino, o lar ainda era primordial na vida das mulheres.
Segundo Araújo (2003; 142):
Esta mulher, de classe média ou de elite, escolarizada,
inteligente, exercendo profissão fora do lar, geralmente
integrada a alguma associação feminina de fundo católico,
parecia como que predestinada a elaborar uma dupla missão:
mostrar serem compatíveis as atividades do mundo privado
com as do público; e reconciliar a política com a religião
católica.

Esse discurso conciliatório, que entendia a mulher como companheira do


homem na condução da sociedade, mas sem questioná-lo sobre a opressão que
exerciam sobre elas, era o mais veiculado por essas mulheres. O paradoxo dessas
feministas, que aspiravam o progresso feminino e sua liberdade, mas que não
questionavam o cerne da opressão que vinha do espaço privado, também é
analisado por Nascimento (2011). A autora coloca que mesmo diante dessa
contradição, elas levaram adiante o debate da emancipação e enfrentaram todo
tipo de represálias, e acabaram por politizar a discussão sobre a exclusão da
mulher da vida pública. Essas mulheres viveram em um contexto em que foi
inaugurado um forte movimento católico em resposta a República laica,
chamado A Ação Católica. Esse movimento atuou tanto na área política – com a
Liga Eleitoral Católica- , incentivando a candidatura de pessoas ligadas aos
valores católicos, quanto na área educacional, como resposta ao movimento da
Nova Escola (ALMEIDA:2001). A Igreja buscou no apoio do voto feminino a

12
Uma grande iniciativa da Associação das Senhoras de Caridade. Jornal do Recife,
p.1, 22/10/1937.FUNDAJ
13
Juvenato D.Vital. A Gazeta, 20.09.1931. Biblioteca da Cúria Metropolitana de
Recife.

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arma para angariar a simpatia das mulheres para a defesa, na política, dos valores
católicos. E esse mesmo Recife, palco de movimentos católicos que buscavam
manter a religião junto ao Estado, passava por várias transformações, abrindo
espaço para a modernidade, com a configuração de uma cultura urbana que
criava novos espaços públicos de convivência, alargava avenidas, abria o leque
de opções para os divertimentos, com bailes, clubs, cafés, etc. Entretanto,
convivia com os mocambos, a pobreza, a violência nas vielas do centro. Era uma
687
cidade de contradições, paradoxos, que olhava para o futuro mas tinha um
passado que lhe mordia os calcanhares.

Quem eram essas mulheres?


Quando ouvimos falar de mulheres que, saindo da
obscuridade, valentemente clamam por respeito devido a suas
habilidades ou virtudes intrépidas? Onde estão elas?
Mary Wollstonecraft

As mulheres que formavam a FPPF vinham de famílias abastadas de


Pernambuco, escritoras, poetisas, professoras, pintoras, profissionais liberais. As
ligações sociais que interligavam essas mulheres á imprensa e ao meio político
ajudaram na visibilidade e atuação da FPPF. Ida Uchoa era uma dessas mulheres,
tendo sido consultora jurídica da entidade desde sua abertura até o seu
fechamento, era madrinha da Revista A Pilhéria e colaboradora do Jornal do
Recife, além de patrocinar vários eventos de arte14. Além de advogada, era
escritora e poetisa, tendo essas duas últimas ocupações merecido especial
homenagem na imprensa pernambucana.

Em setembro de 1929, na tertúlia artística em comemoração ao


aniversário da revista A Pilheria, – que ocorreu na Associação dos Empregados
no Comércio- Ida Uchoa foi uma das homenageadas15, visto que além de
madrinha da revista, ela escrevia suas poesias em coluna dedicada a esse ramo
literário. Outra homenagem pública aos seus dotes artísticos pode ser encontrada

14
A Pilhéria. Jornal do Recife, 04/09/1929. Chornica Social. Jornal do Recife,
24.03.1931. Theatrus e Cinemas. Jornal do Recife, 03/07/ 1929. FUNDAJ
15
A Pilhéria. Jornal do Recife, 04/09/1929. FUNDAJ

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no Jornal do Recife, o qual replicou uma matéria endereçada a Ida Uchoa pelo
catedrático de Português do Ginásio Amazonense Pedro II, Martins Santanna,
escrita na Revista Redempção, publicada em Manaus. Nessa homenagem o
catedrático não economiza nos elogios a poesia feita por Uchoa, e termina seu
escrito dizendo: “Ida Souto Uchoa é, deveras, uma poetiza galantemente
moderna”16. Ele se refere ao modo como Uchoa escreve suas poesias, rejeitando
a “monotonia” da métrica com rimas “enérgicas”. Fica claro que ela era
688
conhecida fora de Pernambuco e admirada pelo seu trabalho como poetisa.

Talvez tivesse alguma ligação com revistas e periódicos de outros


estados. A preocupação do Jornal do Recife em replicar uma homenagem feita
em uma revista amazonense a Ida Uchoa, - sendo ela apresentada na chamada
da matéria como nossa colaboradora - é, no mínimo, intrigante. E talvez não
seja coincidência ser o Jornal do Recife um dos periódicos que mais noticiava as
ações da FPPF e participava dos eventos feitos pela Federação. Em ocasião do
aniversário de Ida Uchoa encontramos uma homenagem a ela no periódico, com
direito a foto, onde ela é nomeada como nossa ilustre colaboradora17. Isso
revela que, talvez, a influência exercida por ela no periódico era
consideravelmente forte. Assim como Ida Uchoa, Emília Barbosa Vianna
Marchesini também pertencia ao mundo das artes, no caso dela, as artes
plásticas. Era pintora, assim como suas irmãs Georgina Barbosa Viana e Aurea
Barbosa Viana Palmeira, e todas fizeram parte do corpo diretor da FPPF. Filhas
do comendador Antonio Joaquim Barbosa Vianna, que também era membro da
Academia Pernambucana de Letras18, essas mulheres possuíam grande prestígio
junto a imprensa, principalmente recebendo o reconhecimento intelectual e
artístico das exposições feitas por elas. As irmãs Barbosa Viana, em fevereiro
de 1916, fizeram uma exposição de suas obras cuja direção estava sob o
comando do pintor italiano Carlos de Servi.

16
Ida Souto Uchoa. Jornal do Recife, 15.09.1931. FUNDAJ
17
Chornica Social. Jornal do Recife, 24.03.1931. FUNDAJ
18
O Recife de Relance - Os nossos Instantaneos. Cri-cri semanário humorístico e
noticioso. Ano 1. Nº 1. Agosto/1908. FUNDAJ

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Essa mesma exposição foi visitada pelo então governador do estado


Manoel Borba19, o que demonstra o prestígio que elas possuíam junto a
personalidades da alta sociedade pernambucana. Ao longo da década de 1920
Emília e Georgina B. Viana continuaram ativas nas suas vidas artísticas,
expondo em endereços importantes do Recife, como foi o caso do Gabinete
Português de Leitura20 e da Associação dos Empregados no Comércio21. Já na
década de 1930 as 3 irmãs ingressam na vida de militantes feministas.
689
Georgina Viana se torna a representante oficial da Federação
Pernambucana junto a Federação Brasileira, no Rio de Janeiro; Aurea Viana
começa fazendo parte do Conselho Social, mas em 1935 se torna vice-tesoureira
da entidade; Emília Marchesini ingressa como secretária-geral da FPPF em
1933, mas se torna presidente em 1935. E é na gestão dela que a FPPF alcança
uma dinâmica maior na sua comunicação e propaganda, angariando um espaço
para o seu Boletim Semanal no periódico Diário da Manhã, uma façanha que
nem Edwiges de Sá com todo o seu prestígio tinha conseguido. Edwiges de Sá
Pereira, a fundadora da Federação, como já foi dito, era escritora, poetisa,
professora, e membro da Academia Pernambucana de Letras, vinda de uma
família de juristas respeitados, era personalidade conhecida nos periódicos da
época.

Essas mulheres possuíam uma rede de relações sociais advindas não


somente do reconhecimento de seus talentos, mas do peso da tradição familiar
que as ancoravam. Filhas de juristas, comendadores, homens letrados e de
posses. Elas, como mulheres da elite, utilizaram estrategicamente suas posições
privilegiadas para formular táticas de visibilidade das pautas feministas da FPPF
junto a imprensa. Escolhemos tratar especificamente dessas mulheres nesse
trabalho porque foram as mais citadas nas fontes pesquisadas e fizeram parte da
diretoria da entidade. Seus “dotes” artísticos eram amplamente elogiados na
imprensa, mas é interessante entendermos que as qualidades artísticas eram

19
Bellas Artes. Jornal do Recife, 29.02.1916. FUNDAJ
20
Notas de arte. Jornal do Recife, 16.03.1924. FUNDAJ
21
Exposição de quadros. Jornal do Recife, 12.07.1920. FUNDAJ

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vistas pela sociedade patriarcal da época como sendo típicas do sexo feminino.
Saber pintar, escrever bem, cantar, tocar um instrumento, ensinar, era muitas
vezes requisito para conseguir um bom casamento, logo, as atividades que
envolvessem essas aptidões eram vistas como naturais da mulher. É possível que
encontremos, no decorrer da pesquisa sobre a Federação Pernambucana,
mulheres de um estrato social mais baixo que possam ter atuado na luta
encampada pela entidade, todavia, as ações organizadas pela entidade são
690
orbitadas pelas relações privilegiadas que uma parte das sócias possuíam.

E agora que votamos, o que queremos?


(...) como pode ser generoso quem não tem nada de seu? Ou
ser virtuoso quem não é livre?
Mary Wollstonecraft

Em 1935 houve a eleição para a escolha da nova diretoria da FPPF, e


com ela novos horizontes para serem conquistados. O voto já tinha sido
alcançado, mas muito ainda tinha que ser feito. A conquista do voto teve uma
conotação simbólica, pois foi a admissão de que as mulheres tinham capacidade
intelectual para gerir a sociedade. A partir de 1935 a Federação Pernambucana
vai focar suas ações para a instrução feminina, ressaltando a importância da
emancipação econômica da mulher. Uma reformulação nas estratégias de ação
foi feita, a parte de comunicação recebeu especial atenção. A Federação
Pernambucana começou a publicar no periódico Diário da Manhã22 seu Boletim
Semanal de Atividades, com artigos, transcrições de palestras sobre feminismo,
avisos e colunas de opiniões de suas diretoras. As ações práticas tomadas nessa
fase focaram na ampliação das atividades da entidade, terminando por alargar o
campo de influência da FPPF através da divulgação e constante requerimento de
apoio de setores específicos da sociedade. Primeiramente, a Federação
Pernambucana angariou um espaço fixo em um periódico de grande circulação
da época, além de obter o poio da Radio Club do Recife para a divulgação de

22
Fundado em 16 de abril 1927 por Carlos de Lima Cavalcanti, nasceu pouco tempo
antes da queda da República Velha. Foi, em sua época, referência de leitura para as
principais lideranças políticas da Região Nordeste.

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suas atividades23. Isso demonstra que o direito ao voto não era o fim em si, mas
apenas o começo de um caminho sem volta, nunca mais as mulheres aceitariam
que seu lugar era apenas o lar.

É certo que até esse momento não era questionado, de maneira frontal,
por essas feministas o papel que o núcleo familiar tinha na manutenção da
submissão da mulher. Mas também é verdade que haviam algumas vozes que
destoavam, como era o caso de Juanita Borel Machado, 1ª secretária da FPPF 691
nesse período e responsável pela coluna da entidade no Diário da Manhã. Em
uma de suas colunas ela levanta o questionamento sobre o porquê de muitas
mulheres não se casarem, escolhendo viverem plenamente suas profissões ou se
dedicarem a assistência social. Mas, para ela, as mais admiráveis eram “aquelas
que, frente a um amor, sabem afastar um homem que dele não é digno,
salvaguardando sua liberdade e sua personalidade.”24

Em outro artigo seu intitulado A mulher e a Política, Juanita Borel


transcreve a opinião de Palacio Valdez, membro da Academia Espanhola de
Letras. O artigo versa sobre a superioridade da mulher para a política, tendo sido
sempre bem-sucedida quando teve oportunidade de governar, cita exemplos
como o de Isabel de Espanha, Isabel da Inglaterra, Catharina da Rússica, etc. Ao
final Juanita coloca sua opinião e diz que:
o que é mais admirável á fragilidade feminina é que nunca
aconteceu, que uma destas mulheres, se deixasse arrastar pela
paixão a um homem qualquer, a ponto de sacrificar-lhe sua
autoridade e a sorte de seu reino, como comumente acontece
ao homem. O amor e a política estão cada um de seu lado, no
discernimento equilibrado da psicologia feminina.25

Ou seja, para ela o casamento não era a finalidade da vida da mulher, existiam
outros desafios a serem conquistados. Já para a Emilia Marchesini o verdadeiro
feminismo não incentivava a competição entre homens e mulheres, mas

23
Actividades da Federação Pernambucana pelo Progresso Feminino. Diário da
Manhã, 15.09.1935. APEJE
24
Actividades da Federação Pernambucana pelo Progresso Feminino. Diário da
Manhã, 29.09.1935. APEJE.
25
Actividades da Federação Pernambucana pelo Progresso Feminino. Diário da
Manhã, 17.11.1935. APEJE.

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transformava a mulher em colaboradora do homem na construção de uma “raça


superior”, onde ela teria a responsabilidade na boa formação dos filhos26. Talvez,
essas discordâncias na tônica dada ao feminismo da Federação tenha acendido
alguma centelha para um posterior desentendimento entre elas, e o repentino
abandono do cargo de presidente por parte de Marchesini. O que é importante
perceber é que haviam pontos de vistas destoantes entre elas, discussões sobre
qual a finalidade do feminismo, e esses debates não eram algo novo. O cerne do
692
questionamento feminino desse período está na comprovação da intelectualidade
feminina. Provar que as mulheres eram capazes de utilizar a razão e o
discernimento para gerenciar, junto com os homens, a coisa pública.

Na França essas contradições já tinham gerado a Declaração dos


direitos das mulheres e da cidadã, escrita por Olympe de Gouges, em favor dos
direitos da mulher, visto que mesmo após a revolução francesa com seus ideais
de liberdade, igualdade, e fraternidade, as mulheres continuavam sob o julgo
masculino. Na Inglaterra, Mary Wollstonecraft escreveu o livro Reivindicação
dos direitos da mulher, onde colocava de maneira mais frontal a contradição do
liberalismo, pois, segundo esse sistema, todos os indivíduos dotados de razão
seriam iguais e deveriam ter assegurados seus direitos para o pleno
desenvolvimento de suas capacidades.

Mas a pergunta era: quem eram estes indivíduos dotados de razão? “A


mulher era compreendida pela constituição imutável da sua natureza frágil,
alienada e biologicamente concebida para cuidar, então, não poderia participar
dos direitos democráticos” (PASSOS: 2010; 4). Wollstonecraft defendia a
igualdade entre os sexos, onde a educação feminina com oportunidades iguais às
masculinas favoreceria a tomada de consciência da mulher, e construiria a
cidadania, além da participação na vida pública que deveria possibilitar a
inclusão feminina no parlamento para que fossem representadas por seus pares.
“As ideias do individualismo e a liberdade de pensamento nas revoluções
burguesas, da Inglaterra, da França, e dos Estados Unidos levaram as mulheres

26
Actividades da Federação Pernambucana pelo Progresso Feminino. Diário da
Manhã, 10.10.1935.APEJE.

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a questionar o estatuto de sua subordinação social e a inexistência civil, com isto,


passaram a refutar os papéis tradicionalmente impostos” (PASSOS:2010;7).

Todos esses pensamentos repercutiram no Brasil ainda no século XIX,


e essas ideias influenciaram o posicionamento do feminismo brasileiro do
primeiro terço do século XX, tendo na Federação Brasileira pelo Progresso
Feminino seu principal expoente. Bertha Lutz, fundadora e presidente da FBPF,
estudou licenciatura em Ciências Naturais na Universidade de Sorbonne, em 693
Paris, tendo acesso de perto a toda discussão feminista europeia. Foram dessas
contradições que o feminismo da Federação Pernambucana se nutriu.

Dessa forma, as ações que se seguiram depois da conquista do voto


foram no sentido de qualificar as mulheres profissionalmente. As mulheres da
FPPF passaram a administrar a Escola Operária nas indústrias Othon Bezerra 27.
O programa era basicamente voltado para o ensino de português e matemática.
Também encamparam a luta pela construção do refeitório para moças
empregadas no comércio28, já que muitas delas não tinha condições de almoçar
em casa e não tinham dinheiro para comer em restaurantes. Entretanto, a ação
mais abrangente da FPPF foi a organização dos seus Núcleos de Cultura e sua
Biblioteca29. As matérias estudadas nesses núcleos eram: Idiomas (francês,
italiano, alemão e inglês), Matemática, Datilografia, Contabilidade, História,
Geografia, Sociologia, Puericultura e Higiene, Curso de Enfermagem, Caligrafia
e Civilidade. Essas aulas estavam destinadas as mulheres sócias da Federação e
todas que quisessem participar, porém, eram aulas pagas. Era um valor modesto,
mas isso podia ser um empecilho para a participação da mulher pobre, apesar de
anunciarem vagas para as mulheres que não podiam pagar. O público-alvo não
era a mulher de classe baixa, mas as mulheres de classe média que precisavam
se qualificar para alcançarem melhores salários e empregos. A Festa do Livro
foi outra ação estratégica para conseguir apoio para a divulgação da entidade e

27
Actividades da Federação Pernambucana pelo Progresso Feminino. Diário da
Manhã, 22.09.1935. APEJE.
28
Actividades da Federação Pernambucana pelo Progresso Feminino. Diário da
Manhã, 15.09.1935. APEJE.
29
IDEM

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doação de livros para a organização da biblioteca. O que se sucede a todas essas


atividades é que, em meados de 1936, quando Emília Marchesini abandona o
cargo de presidente, a FPPF passa a ser presidida por Ana de Sá Pereira, e em
1937 a Federação tem sua licença cassada pelo Estado Novo. Sobre esse período
conturbado da história da FPPF ainda temos poucas informações, mas a medida
que a pesquisa for se debruçando ainda mais sobre as fontes, essa parte ainda
silenciada da história de entidade, pode ser desvelada.
694
O que fica claro é que tanto a FPPF enquanto Instituição, quanto as
mulheres que faziam parte dela, eram um turbilhão de contradições, mas que no
contexto vivido, fazia sentido. No Brasil do início do século XX, a República
era conjugada junto com o liberalismo oligárquico, conviviam culturas políticas
que alargavam campos de partilhamento. O antigo modelo de gestão se manteve
com alguns ajustes advindos dos ideais republicanos. As feministas da FPPF
faziam parte desse contexto, tinham um recorte de classe e uma carga cultural
pessoal que influenciaram seus discursos e ações. Entretanto, depois da semente
lançada, a árvore da contestação só fez crescer, e se nutriu dos debates e
discussões suscitados por essas mulheres, não somente de Pernambuco, mas de
todas as feministas do período que problematizaram a exclusão da mulher do
espaço público. É imprescindível ressaltar que ainda não foram esgotadas todas
as fontes sobre a FPPF e muito menos sobre o feminismo em Pernambuco,
podemos virar a esquina e nos depararmos com uma nova fonte, um elemento
novo dentro do campo de pesquisa, ou descobrirmos uma discussão nova. A
construção de novas possibilidades é o que nos instiga a continuar
problematizando o passado.

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Joaquim Nabuco (FUNDAJ).

Livro de atas das sessões extraordinárias e de Assembleia Geral da Federação


Pernambucana pelo Progresso Feminino (PE). Disponível em Fundação
Joaquim Nabuco (FUNDAJ).

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FEMINISMOS NO HISTÓRICO ESCOLAR: UMA MIRADA SOBRE A


TRAJETÓRIA EDUCACIONAL DAS MULHERES NO BRASIL

Daniela Auad*

Maria Rita Neves Ramos**

Raquel Borges Salvador***

698

Introdução

Ao longo desse artigo, realizaremos um traçado histórico sobre o acesso


à educação pelas mulheres e as condições sociais que as direcionaram à carreira
docente, sob a perspectiva de gênero, a partir pesquisas concluídas. Em um
primeiro momento, discorremos sobre o conceito e a caracterização do gênero,
e como essa categoria marca historicamente os locais que os sujeitos devem ser
colocados e os modelos impostos que devem seguir. Sob o olhar do gênero e de
variadas perspectivas feministas, serão exploradas as pretensões políticas em que
se basearam o movimento republicano no Brasil e o nascente ideário de
entendimento que a Educação estava entrelaçada ao conceito de
desenvolvimento cultural e social. Tal ideário contribuiu para a abertura do
ingresso de mulheres no magistério e, de modo global, de meninas na educação
formal. Este desdobramento se manifesta através de um novo olhar sobre a

*
Pós-Doutora em Sociologia pela UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas),
Pedagoga, Mestra e Doutora pela Faculdade de Educação da USP (Universidade de São
Paulo), na área de concentração Sociologia da Educação. Atualmente, é Professora do
Programa de Pós-Graduação em educação da Faculdade de Educação da Universidade
Federal de Juiz de Fora (PPGE/FACED/UFJF). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas
Flores Raras – Educação, Comunicação e Feminismos (CNPq/UFJF). Contato:
auad.daniela@gmail.com
**
Pedagoga; Mestra em Educação pela Universidade Federal de Juiz de
Fora;Especialista em Educação no Ensino Fundamental (C.A. João XXIII/UFJF) e
integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas Flores Raras – Educação, Comunicação e
Feminismos (CNPq/UFJF). Contato: nevesramosm@yahoo.com.br
***
Pedagoga; professora da Rede Municipal de Juiz de Fora; Mestra em Educação pela
UFJF e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas Flores Raras – Educação,
Comunicação e Feminismos (CNPq/UFJF). Contato: rborgessalvador@yahoo.com

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escola e a instrução pública. Nesse contexto, os trabalhos de Jorge Nagle (2001)


analisam o processo de escolarização:
(…) o motor da história-aqui se encontra na crença resultante
naquele entusiasmo e otimismo, a forma mais acabada com
que se procura responder aos desafios propostos pelas
transformações sociais que ocorrem a partir do segundo
decênio do século XX. (NAGLE, 2001, p. 134)

Conhecida a concepção de escolarização da época, serão apresentadas


699
as discussões ocorridas nos âmbitos político e social em torno da expansão da
educação para as grandes massas e da legislação que faz menção à
regulamentação do magistério, com ênfase sobre as divisões sexistas que
subentendem, a partir de tradicionais e binários arranjos de gênero, os papéis de
homens e mulheres nessa carreira. Ainda que marcado por desigualdades, o
acesso à educação por mulheres e meninas e a inserção feminina na carreira
docente proporcionaram a elas galgar a vida pública, subvertendo as relações de
gênero conservadoras. Dentre outras demandas, as manifestações femininas por
direitos à cidadania, ao trabalho, à educação e instrução foram elementos de
profundas transformações da sociedade na primeira metade do século XX,
entrecruzados às demais manifestações e movimentos sociais que elencaram tal
momento histórico. Desta maneira, o reconhecimento do Direito à Educação será
analisado sob a perspectiva feminista, cujos “[...] movimentos exercem um
questionamento profundo aos pensamentos únicos sobre as relações humanas e
os contextos sociopolíticos, econômicos, culturais e sexuais”. (MIRANDA,
2014, p. 4). Tais influências, por meio de incansável militância, se fazem
presentes nas proposições de equidade concernentes às políticas educacionais na
atualidade.

Logo, as conquistas e desafios das lutas das mulheres pela participação


social, bem como os avanços nas legislações e elaborações de Planos Nacionais
para a igualdade de gênero no âmbito educacional serão analisados, enfatizando
as considerações do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres,
especificamente sua segunda revisão - II PNPM (SPM, 2008). Como pano de
fundo do presente artigo, figura ainda a contraofensiva sofrida pelas conquistas
dos feminismos, no atual cenário político social brasileiro. Como exemplo, será

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debatida a retirada dos termos igualdade racial, de gênero e orientação sexual do


PNE 2014-2024 (BRASIL, Lei 13.005/2014). Trata-se da retirada, na letra do
Plano, de elementos fundamentais para que se atinja o propósito de uma escola
coeducativa na qual, além da mistura de meninos e meninas, se conte com
medidas formais especialmente guiadas para o debate das relações de gênero
livres de oposições binárias e opressões. Ao final do artigo, e diante as reflexões
tecidas, serão trazidas considerações acerca das controvérsias e disputas na seara
700
da educação, reveladas quando se adota o gênero como categoria de análise.

Apontamentos iniciais sobre a categoria gênero: influências no campo


educacional

Explanar sobre as abordagens teóricas da categoria gênero é fator


relevante para compreender alguns dos porquês da instrução formal ter sido
ministrada de maneiras distintas para homens e mulheres. As construções sociais
colocam homens e mulheres como elementos de um sistema relacional binário
que resulta em desigualdade social. Apoiada em um conjunto de autoras, Auad
(2006) afirma que
gênero não é sinônimo de sexo [...] As relações de gênero
correspondem ao conjunto de representações construído em
cada sociedade, ao longo de sua história, para atribuir
significados, símbolos e diferenças para cada um dos sexos”
(AUAD,2006,p.21)

O conceito de gênero se situa como um constructo útil para analisar os


aspectos relacionais de importância que se propõem em colocar em pólos
opostos o sexo feminino e o masculino, construindo-se assim uma suposta
hierarquização pautada por julgamentos de valor (SCOTT, 1996). Comumente
o sexo feminino é associado à adjetivos que remetem à “[...] fragilidade, a
passividade, a meiguice e ao cuidado”, enquanto ao sexo masculino se ligam, de
maneira polarizada, características ligadas à coragem, força e liderança” (Auad,
2006, p.2). Tais atribuições, segundo a mesma autora, conduzem à desigualdade
em termos de reconhecimento e participação social Essas distinções são
percebidas e consolidadas nas searas familiar, religiosa, social, econômica,

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política e educacional, sendo essa última locus de reprodução dos discursos


sociais mantenedores da desigualdade, pois o espaço da escola sempre “[...]
dividiu também, internamente, os que lá estavam, através de múltiplos
mecanismos de classificação, ordenamento, hierarquização.” (LOURO, 1997, p.
57).
O acesso de mulheres e meninas à escolarização e ao ingresso na
carreira docente foram configuradas por uma ótica binarizada que se utiliza
701
como premissa o sexo biológico. Estudos feministas constataram que a
distribuição dos poderes entre os sexos não se justificava pela existência de
capacidades físicas distintas de homens e mulheres, mas provenientes de
mecanismos que se baseavam nas divisões de funções reprodutivas, o que
também é denominada por Estudiosas Feministas como Divisão Sexual do
Trabalho, como aprofundado na extensa obra tanto de Helena Hirata quanto de
Elisabeth Sousa Lobo. Esse fenômeno, também denominado por Anne-Marie
Devreux (2011) de “sexuação social”, ocorre quando a cidadania é colocada para
homens e mulheres “[...] de acordo com o suposto lugar que eles ou elas ocupam
na esfera do trabalho e da família” (DEVREUX, 2011, p. 13).
Por outro lado, a grande questão a se ter em mente é transcender a
oposição binária, sem supervalorizar ou desvalorizar o feminino ou o masculino.
Do contrário, o direcionamento de meninas a determinados modelos de
comportamento as tolhem em termos de participação no cotidiano escolar, à
mesma proporção que meninos que não se reconhecem nos moldes de
masculinidade comumente difundidos são isolados da convivência daquele
espaço (Auad, 2003). Sobre a extensão desse “aprendizado”, a dissertação de
Mestrado de Maria Rita Ramos (2016) coloca que violentados/as desde a
infância em seus direitos e vivências, meninos e meninas se tornam homens e
mulheres que desigualmente repartem e reproduzem em sua vida adulta as
oportunidades, responsabilidades nos relacionamentos e também de respeito e
estima social.

Ao longo dos tempos, e repetidos continuamente, por irreflexividade,


atos notoriamente desumanizadores adquirem tom de naturalidade e veracidade.
Contudo, ressaltamos que é justamente o movimento de continuidade dessas

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práticas que imprimem essa falsa impressão de que “a vida sempre foi assim”.
Essa concepção foi construída socialmente historicamente, e as raízes desse
pensamento no campo da Educação serão debatidas a seguir.

O começo de tudo: a extensão do gênero na docência


A ocupação dos espaços escolares pelas mulheres, seja na condição
discente ou docente, parece ter funcionado como meio para resistir ao modelo 702
imposto de se fazerem apenas educadoras para os cuidados. Transcendendo os
modelos de comportamento impostos, elas pouco a pouco conseguem avançar
no exercício da autonomia, da liderança e da resistência. Esse caminho tem sido
paulatinamente trilhado. No Brasil, a luta tem sido travada desde o início do
período republicano.

O ponto de partida da educação das mulheres no Brasil foi a criação da


Lei do Ensino de 1827, que regulamentou o ingresso de meninas na escola
primária (BRUSCHINI; AMADO, 1988 apud RABELO; MARTINS). Emergia
no final do século XIX o ideário positivista que colocava a educação como
fundamental para o progresso do país (BORGES; DURÃES; IDE, 2012), cujo
movimento político implicou na educação das mulheres. Não por justiça, mas
como responsáveis diretas pelas noções de cuidado e educação das crianças,
noção que ultrapassou a esfera privada e chegou ao âmbito público:
Como argumentou o jurista cearense José Liberto Barroso,
para que o Brasil conquiste sua grandeza e “cumpram-se os
seus altos destinos, é necessário educar a infância, e para
educar a infância, é preciso educar a mulher, formar a mãe da
família”, tanto intelectual quanto moralmente. Assim, ligaram
a educação da mulher à ideia do destino nacional. (HAHNER,
2011, p.468).

A então Lei do Ensino de 1827, além de orientar questões relativas aos


métodos de ensino, a criação de escolas primárias gratuitas, a contratação
docente e outras questões, trazia diferenciações curriculares que deveriam se
aplicar à educação de meninos e meninas:
Os professores ensinarão a ler, escrever, as quatro operações
de aritmética, prática de quebrados, decimais e proporções, as
noções mais gerais de geometria prática, a gramática de

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língua nacional, e os princípios de moral cristã e da doutrina


da religião católica e apostólica romana, proporcionados à
compreensão dos meninos; preferindo para as leituras a
Constituição do Império e a História do Brasil (Art. 6º).
[...]
Haverá escolas de meninas nas cidades e vilas mais
populosas, em que os Presidentes em Conselho, julgarem
necessário este estabelecimento(Art.11º).
[...]
As Mestras, além do declarado no Art. 6º, com exclusão das
noções de geometria e limitado a instrução de aritmética só as
suas quatro operações, ensinarão também as prendas que 703
servem à economia doméstica; e serão nomeadas pelos
Presidentes em Conselho, aquelas mulheres, que sendo
brasileiras e de reconhecida honestidade, se mostrarem com
mais conhecimento nos exames feitos na forma do Art. 7º
(Art.12º). (Grifos nossos).

Diante do exposto, percebemos que divisões binarizadas e


hierarquizadas pautadas pelo gênero se estendem à legislação da época. Nota-se
que às mulheres, além das diferenciações curriculares que as adaptam às
ocupações domésticas, eram atribuídas exigências e comprovações que não
constam das contratações dos professores homens.
Com o avanço do capitalismo industrial é refeita a hierarquia
das profissões, agregando-se valor àquelas mais condizentes
com as novas exigências do mundo industrializado e à sua
ideologia. É instituída a educação sob a tutela do Estado para
os filhos dos trabalhadores. Nesse contexto, o magistério
sofre significativos abalos. Deixa de ter o prestígio de outrora
e, de forma sensível,vai mudando, paulatinamente, de gênero.
A instituição dos sistemas de educação de massa, sob a
organização do poder público, marca a ampliação da
participação da mulher como professora primária.
(CHAMON, 2006, p.2).

Encarada como necessidade, a educação passa a absorver as mulheres.


Almeida (1998) analisa que a docência feminina se instaura a partir de duas
questões: o repúdio da Igreja Católica pela coeducação e a “[...] necessidade de
professoras para reger as classes femininas” (ALMEIDA, 1998, p. 65).

Recuperando os escritos do Manifesto dos Pioneiros da Educação


Nova, o termo coeducação se referia a uma “educação em comum”, uma escola
unificada que não permitiria separações entre alunos de um e outro sexo, a não
ser as que aconselham suas aptidões psicológicas e profissionais, colocando-os

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em pé de igualdade, envolvendo todo o processo educacional. Contudo, Auad


(2006) – estudiosa feminista que se dedica há décadas aos estudos da coeducação
e da escola mista, em uma perspectiva de gênero – nos esclarece que a
coeducação, da forma como foi implantada, não correspondia à educação
igualitária, e sim puramente a uma escola mista, com arranjos que aprofundam
as desigualdades de gênero a partir das tradicionais hierarquias baseadas nos
binarismos entre masculino e feminino. Assim, o pressuposto de meninos e
704
meninas ocuparem o mesmo espaço não significa que haja o fim das
desigualdades de gênero, sendo necessárias reflexões e medidas pedagógicas
para superar as separações entre o masculino e o feminino. Essa compreensão –
ligada a ações, medidas, planos e políticas – é a pedra de toque sobre a
importância das discussões acerca da igualdade de gênero na educação.

Mesmo apresentando controvérsias e aprofundando desigualdades, a


escola mista criou mais condições para as mulheres entrarem no magistério
porque até então a docência feminina só era permitida nas escolas destinadas às
meninas. Ao ser implantada, a escola mista abriu oportunidades das mulheres
lecionarem, aumentando o número de matrículas de mulheres nas Escolas
Normais. Ao lado disso, houve uma queda no número de matrículas de homens,
o que mudou “a cara” da docência.

A inserção das mulheres no magistério se deu por um conjunto de


elementos perpassados pelas relações de gênero, em decorrência das
“atribuições” sociais femininas (WERLE, 2005) já citadas nesse trabalho. Desse
pressuposto se seguiu, por associação uma correspondência direta entre ser
mulher e ser professora. Cabe aqui uma crítica desta “lógica”. A escolha e a
execução de um ofício, qualquer que seja, advém, além da identificação
individual, de uma formação e capacitação técnica para tal, eem nada se
aproxima de uma evidência estática, ou verdade consumada da qual não se pode
abster, como desejam fazer crer as tradicionais relações de gênero.

Pautar a organização docente em uma naturalização da figura da


mulher, e por extensão, à figura da professora, foi condição para a desvalorização
sobre o saber do/a professor/a primário/a, uma vez que o ensino ministrado se

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concentrava em desenvolver apenas habilidades concebidas como básicas e


inatas das mulheres. Isto ocasionou a baixa remuneração e valorização da
função, o que proporcionou às mulheres enormes dificuldades em obter
credibilidade para discutir questões salariais. Além disso, os professores homens
foram sendo absorvidos por cargos no Estado, ao passo que “[...] uma associação
entre magistério primário e baixo prestígio profissional foi se instalando
gradativamente, a ponto de ser visto como desonroso para o homem continuar
705
atuando como profissional da escola elementar”. (CHAMON, 2006, p.2-7).
Novamente observa-se o caráter hierarquizante das relações de gênero, que
direciona o sexo masculino às funções de comando, poder e decisão,
empoderando-o perante a sociedade.

Mesmo diante de quadro desanimador, outros efeitos, agora positivos,


se destacam. O ingresso feminino na instituição escolar possibilitou à mulher
buscar uma profissão, para além do lar. Essa mudança foi o resultado das
transformações ocorridas na sociedade, pelas relações de poder existentes nesse
período, pelas lutas e sobretudo, pela resistência feminina (CÉSAR; FELIPE;
FRANÇA, [online]). Estas e outras disputas são foco de luta ainda na atualidade,
nas proposições e reformulações das políticas públicas, diretrizes educacionais,
legislação em combate à violência contra a mulher e as desigualdades sociais,
cuja magnitude foi sendo debatida para além do fator gênero. Com o
aprofundamento dos estudos de gênero, outros fatores foram apontados em
correlação como originários das desigualdades, como a classe social, raça,
geração, orientação sexual, entre outros.

A educação é central, de todo modo, no combate às desigualdades de


gênero. Ao focalizar outro momento histórico, é notável como propostas que
direcionam o acesso à escola em todos os níveis e modalidades de ensino para
todas as meninas são traçadas em Planos Estaduais, Municipais e Nacional,
como reflexos dos acordos comprometidos pelo Brasil em variados documentos
e nas Conferências Mundiais para Mulheres. Assim, no início dos anos 2000,
Feministas se mobilizam para a consolidação das conferências nacionais, dando

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origem ao Plano Nacional de Políticas para as Mulheres – PNPM, sobre o qual


nos debruçaremos adiante.

O Plano Nacional de Políticas para as Mulheres - PNPM e o Plano Nacional


de Educação-PNE: avanços, retrocessos e resistências pela pauta de gênero
na Educação
706
Nos anos 2000, já no início do século XXI, alguns avanços objetivando
galgar a igualdade de gênero foram implantados. Foi criada a Secretaria Especial
de Políticas para as Mulheres. E através das ações de tal órgão foi elaborado, a
partir da I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, em 2004, o I
Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (I PNPM), que surgiu a partir da I
Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (I CNPM).

Através de pressupostos, objetivos e diretrizes que foram traçados nesse


documento é importante conceituar que
A avaliação do I PNPM apontou os principais avanços na
institucionalização da Política Nacional para as Mulheres e na
sua implementação: a maior inserção da temática de gênero,
raça/etnia no processo de elaboração do orçamento e
planejamento do governo; a criação de organismos
governamentais estaduais e municipais para coordenação e
gerenciamento das políticas para as mulheres; e os avanços na
incorporação da transversalidade de gênero nas políticas
públicas. (II PNPM, 2008, p. 24)

Porém, tal avaliação detectou algumas insuficiências, como a


inexistência de organismos de políticas para mulheres em inúmeros governos
estaduais e municipais, o que oportunizou a II Conferência Nacional de Políticas
para as Mulheres em 2007, já articulando o II plano com o Plano Plurianual do
período de 2008 a 2011, segundo fontes do documento do II PNPM (2008).

Nessa nova fase de implantação do II PNPM, foi ampliada a


participação da sociedade civil, inclusive contando com representantes de
mulheres negras e mulheres jovens, abarcando temas como enfrentamento ao
racismo, sexismo, lesbofobia e desigualdades geracionais, orientados por

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princípios entre os quais, o de Igualdade e Respeito à Diversidade que estabelece


que
Mulheres e homens são iguais em seus direitos e sobre este
princípio se apoiam as políticas de Estado que se propõem a
superar as desigualdades de gênero. A promoção da igualdade
requer o respeito e atenção à diversidade cultural, étnica,
racial, inserção social, de situação econômica e regional,
assim como aos diferentes momentos da vida. Demanda o
combate às desigualdades de toda sorte, por meio de políticas
de ação afirmativa e consideração das experiências das
707
mulheres na formulação, implementação, monitoramento e
avaliação das políticas públicas. (II PNPM, 2008, p. 29).

Segundo dissertação de Mestrado de Raquel Salvador (2016, p. 44), as


conferências nacionais que originaram o PNPM foram frutos de participações do
Brasil nas conferências internacionais anteriores para as mulheres, elencando a
educação como mecanismo para debates, discussões e ações para combater as
variadas formas de violência e discriminação sofrida por todos os grupos de
mulheres e meninas. A autora analisa que a transversalidade de gênero deve
perpassar o cenário escolar, através da formação continuada das/os profissionais
da educação e de todas/os estudantes em todas as etapas da educação.

Assim, ao se admitir o potencial formador da escola, é instigante pensar


o potencial reparador da mesma sobre a questão da igualdade de gênero, tendo
em vista que é uma instânciaem que quase toda a população transita, em algum
momento da vida. Acompanhando discussões como as do PNPM, documentos
educacionais como o Plano Nacional de Educação (PNE) previa em suas metas
a “[...] superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da
igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual; para acolhida em 10
anos” (PL 8.035/10 - Art.2°, inc.3), o que evidenciava os frutos de debates
propostos e amadurecidos pelos esforços daquelas que ousaram desafiar e propor
algo de mais justo para o progresso da sociedade brasileira. Contudo, o PNE tem
sido foco de disputas políticas das mais variadas origens. No ano de 2014, o
artigo que indicava a abordagem do tema gênero foi suprimido totalmente do
texto oficial do PNE. Diversos meios de comunicação têm divulgado muitos
episódios de embates entre movimentos sociais e entidades religiosas quanto à
abordagem do tema gênero na Educação e em outras políticas de proteção social.

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Luiz Fernandes Dourado (2010) analisa como as discussões sobre as políticas


educacionais, comportam embates sociais mais amplos, entre classes sociais,
grupos e distintas conjunturas políticas:
[...] o processo educativo é mediado pelo contexto
sociopolítico e cultural mais amplo, pelas condições em que
se organiza a sociedade e pelos processos de regulamentação
e regulação em que se realizam a institucionalização do
direito social à educação, as dinâmicas organizacionais e,
consequentemente, as políticas de acesso, permanência e
gestão, que não se dissociam dos marcos estruturais da 708
sociedade brasileira, fortemente marcados por uma tradição
histórica, cujo ethos patrimonial não foi totalmente superado,
onde a desigualdade social se faz presente num modelo
societário desigual e combinado. (DOURADO, 2010, p. 679-
67, grifo no original)

São interesses individuais e coletivos diversos, em que estão envolvidas


as reais dimensões do reconhecimento à participação social. Curiosamente, ao
lado de se ter retirada a orientação de abordagem do tema gênero na Educação,
observa-se, na meta 71 do citado documento, mais precisamente no item 7.23, a
indicação da seguinte estratégia:
7.23. garantir políticas de combate à violência sexual na
escola, inclusive pelo desenvolvimento de ações destinadas à
capacitação de educadores para detecção dos sinais de suas
causas, como a violência doméstica e sexual, favorecendo a
adoção das providências adequadas para promover a
construção da cultura de paz e um ambiente escolar dotado de
segurança para a comunidade. (BRASIL, 2014, p. 65, grifos
nossos)

O mesmo documento, em sua 14ª meta, propõe “[...] elevar


gradualmente o número de matrículas na pós-graduação stricto sensu, de modo
a atingir a titulação anual de sessenta mil mestres e vinte e cinco mil doutores”
(BRASIL, 2014, p. 76), traz explicitamente como estratégia no item 14.8:
14.8. estimular a participação das mulheres nos cursos de pós-
graduação stricto sensu, em particular aqueles ligados às áreas
de engenharia, matemática, física, química, informática e
outros no campo das ciências. (BRASIL, 2014, p. 78, grifos
nossos)

1
Que se refere ao fomento da qualidade da Educação tendo em vista os índices do IDEB
(Índices do Desenvolvimento da Educação Básica).

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Analisando as citadas metas, Ramos (2016), em sua pesquisa cujo foco


é Educação Infantil e Relações de Gênero, questiona até que ponto se pensa ser
possível silenciar o debate sobre as questões de gênero na Educação. As
mulheres são as maiores vítimas de violência doméstica e sexual no Brasil. Além
disso, é notório que muitas áreas de conhecimento ainda são ocupadas
predominantemente por homens, e não por acaso são essas mesmas áreas as mais
prestigiosas e bem remuneradas em comparação às ocupadas por mulheres. É
709
curioso como há preocupação com os efeitos da violência, mas há um profundo
descaso para com as causas do fenômeno, que são a naturalização das relações
de gênero conservadoras. E vale notar como o debate de todas essas questões
tem sido interditado nos Planos Nacional e Municipais de Educação.

As terminologias e orientações genéricas contidas nos documentos da


Educação, e que são base para o trabalho de professores/as, são insuficientes em
apreender os fenômenos de exclusão social, o que enfraquece o poder da
Educação. A supressão dos termos gênero e orientação sexual do PNE 2014-
2024 interpõe mais um empecilho nesse processo. Porém, Salvador (2016)
assevera que
Embora a retirada de tais termos tenha sido efetivada no PNE,
deve ser compreendido que racismo, machismo, homofobia,
lesbofobia, bifobia e transfobia são violentas manifestações
de preconceito que acarretam profundas marcas de violência
e desigualdades sociais, devendo, portanto, ser combatidas no
espaço escolar através de ações, reflexões e práticas
pedagógicas. (SALVADOR, 2016, p. 50)

Para que a Educação realmente combata todas as formas de


discriminação há de se voltar o olhar para todas as formas de violência de gênero,
raça, orientação sexual, identidade de gênero, classe e geração, em se
valorizando que, ao visibilizar essas categorias, é possível caminhar na direção
da coeducativa e, portanto, de uma educação para a democracia.

Considerações nada finais

Longe da pretensão de esgotar tão rica dinâmica que assinalou as lutas


sociais ocorridas nos séculos XIX e XX, e seus desdobramentos até a atualidade,

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no presente texto foram expostos elementos do acesso à educação pelas


mulheres. Trata-se de fenômeno a partir do qual se tornou possível conquistar
outros lugares e outras esferas de fortalecimento, sobretudo profissionais.

Guacira Lopes Louro (1997) aponta que as análises sobre o âmbito do


trabalho permitiram que fossem percebidas outras divisões: raça, classe, etnia,
sexualidade e gênero. Nota-se que a partir dessas hierarquizações foram
visualizadas e questionadas as relações de poder que atribuíam às autoridades 710
decisões inquestionáveis sobre o panorama social e consequentemente sobre a
instituição escolar como “[...] gestos, movimentos, sentidos que são produzidos
no espaço escolar e incorporados por meninos e meninas, tornando-se parte de
seus corpos”. Tais processos se diferenciavam também com relação às classes
sociais, claramente posicionadas em classe proprietária e classe trabalhadora,
assim como os ideais formadores da República Brasileira (LOURO, 1997).

Embora o acesso à educação pelas mulheres estivesse politicamente


atrelado ao desenvolvimento de um ideal republicano, ao bem-estar da nação e
ao esvaziamento do magistério pelo sexo masculino, ressaltamos que tais
elementos foram condições fundamentais para que as mulheres traçassem uma
trajetória rumo à sua independência, colocando-as como sujeitos sociais ativas.
Com relação a essa dinâmica, OLIVEIRA (2011) observa que as mulheres
passam a um protagonismo nunca antes visto, passando de ouvintes a autoras,
lutando pelas causas que as afetam, como o acesso à educação, a educação das
crianças, a violência, os direitos trabalhistas e a formação profissional. Em
virtude da conquista desses espaços, as mulheres puderam iniciar a corrida de
obstáculos referente à sua participação política. E aqui vale notar que tal aspecto
se mostra especialmente digno de nota, pois no dia em que finalizamos a escrita
do presente texto, ocorre a retirada, por Golpe, da Presidenta Dilma Rousseff, da
Presidência da República. O dia trinta e um de agosto de dois mil e dezesseis
recupera a ditadura, recupera o desrespeito aos votos da maioria da população
brasileira e ainda reforça o caráter profundamente desigual para as mulheres em
todas as esferas da vida, em nosso país.

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Apesar do histórico de conquistas e disputas relatado e analiso no


presente texto, seguem as desigualdades e injustiças. Um longo caminho foi
percorrido, e muitas disputas travadas. E muito ainda há de se percorrer, ainda
mais com o que se pode chamar de Retrocesso Golpista do 31 de Agosto de
2016.
Isto nos faz pensar sobre as condições que devem existir para
salvaguardar os direitos adquiridos. A arma mais potente para que uma
711
sociedade interiorize relações mais igualitárias é a ação da política pública.
Basicamente a política pública assegura determinado foco e dá as diretrizes para
que se conduza um estado de bem-estar para todas/os envolvidas/os em uma
dada realidade (SOUZA, 2006). Para que se consolide tal proposição, além dos
dispositivos fiscalizadores e punitivos, é de suma importância que se favoreça,
desde a mais tenra infância, valores como acolhimento, respeito, justiça e
equidade.

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IMPACTOS DA REPRESENTAÇÃO DE GÊNERO NA MÍDIA, ANOS


1950

Gisele Morais Oliveira*

Os anos de guerra

Ao contar a história da guerra aparenta que as mulheres sumiram da 716


história durante este período, nos registros como filmes e livros elas pouco
aparecem, hoje soa como se elas ficaram congeladas nas casas durante o período
bélico. Contudo o crescimento dos debates sobre a histórias das mulheres
provam que elas foram essenciais para a guerra, não só em combate, mas na mão
de obra e produção, tendo até mesmo fábricas como a Ford operando apenas com
mulheres em todos os setores, desde mecânicas a engenheiras, e as metas eram
batidas com a nova mão de obra que foi recém-especializada.

Figura 1-Mulheres montando um avião militar (1947)

*
Acadêmica de Licenciatura em Ciências Socais da Universidade de Pernambuco. Sob
orientação da Profª. Doutora Andrea Bandeira. Contato: giselemorais0@gmail.com

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As funções femininas diversificaram em cada país. Nos EUA e Japão,


por exemplo, mulheres ficaram em fábricas e diversos postos de trabalho, outros
países como na URSS, entretanto houve registros de mulheres combatentes
desde o século XIX. A franca-atiradora Lyudmila Pavlichenko e a piloto
bombardeira Marina Raskova, são sempre lembradas quando se fala da
participação de mulheres na Segunda Guerra Mundial. Raskova também liderou
um dos esquadrões de bombardeio noturno, apelidado pelos alemães de Bruxas
717
da Noite, tamanha a destreza dos pilotos nos ataques aéreos. Muitas foram
condecoradas como heroínas de guerra. Já a Alemanha manteve, por muito
tempo, centros onde as mulheres serviam como “reprodutoras e perpetuadoras
da raça pura” – os lebensborn. Apesar das diferenças, todos eles tinham algo em
comum: as mulheres não tinham a permissão para atuar na linha de frente, como
combatentes (MELLO 2016).1

Elas já mostrando que a produção e manutenção de material bélico se


garantiu por todos os anos em diferentes partes do mundo, foto abaixo de
operárias japonesas, aonde elas eram proibidas de olhar para a câmera enquanto
trabalhavam com munição. Embora mostrando eficiência existia um temor das
mulheres que estavam deixando de ser femininas, magras demais e muitas sem
se arrumar para o trabalho. Medidas foram tomadas para que a feminilidade não
morresse, Ford criou setores de maquiagem e cabeleireiro para suas funcionárias,
na foto abaixo vemos todas com penteados alinhados e brilhosos (brilhantina era
de uso comum) combinando com a boina do fardamento.

1
http://pre.univesp.br/as-mulheres-na-guerra#.V7iiY608LIU

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Figura 2- Funcionárias na linha de montagem de munição.

718

E como o trabalho mudou as mulheres? A primeiro momento debates


feministas entraram em hiatus devido a situação de trabalho, mas as mulheres
souberam que existia novas vidas além do cargo de donas de casa, mostraram
que elas eram capazes de diversas habilidades em seus cargos temporários,
expandiram limites e muitas inovaram com invenções que foram bem utilizadas
como Hedy Lamarr, nome artístico de Hedwig Eva Maria Kiesler, brilhante atriz
de filmes estadunidenses que criou um sofisticado aparelho de interferência em
rádio para despistar radares nazistas que patenteou em 1940 e nos anos 50 teve
atualizações e foi de uso das forças armadas. A ideia do aparelho de frequência
de Lamarr e Antheil, compositor, serviu de base para a moderna tecnologia de
comunicação, tal como COFDM usada em conexões de Wi-Fi e CDMA usada
em telefones celulares.
Considerada a "mãe do telefone celular", Lamarr fora casada
com um fabricante de armas alemão, do qual se separou ao
notar o envolvimento dele com o nazismo; foi nesta época que
notara como era fácil a um terceiro bloquear o sinal contínuo
usado para o controle dos mísseis. Apesar de ter patenteado a
ideia de uma frequência que fosse variável no percurso entre
emissor e receptor, não ganhou dinheiro com isto. Em 1997
recebeu do Governo dos Estados Unidos menção honrosa
"por abrir novos caminhos nas fronteiras da eletrônica"

Com o fim da Guerra, em 1945, o esforço de guerra foi desmobilizado e as


mulheres retornaram mesmo muitas se mostrando brilhantes como Lamarr, mais

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uma vez, ao ambiente doméstico. A maioria dos órgãos militares,


exclusivamente femininos, voltou a surgir somente no final do século XX. Mas
o questionamento que levou a produção deste texto esta em como que estas
mulheres que saíram de casa descobriram novas funções e habilidades aceitaram
retornar ao ambiente familiar? Não que a função de dona de casa seja ruim, é
uma função que existe muita competência, responsabilidades, organização em
múltiplas tarefas e tem longas horas de trabalho, porém não é visto como um
719
emprego formal ou informal. Mas como esse empurrão ao ambiente familiar a
mulheres que chegaram a cargos elevados foi aceito?

Novos tempos

Temos nos EUA e demais países influenciados por ele uma onda
conservadora e anticomunista que surgiu no fim da guerra e seguiu durante a
guerra fria uma forte onda conservadora quis por “em ordem o homem e a
mulher na sociedade”, pois segundo a Igreja a sociedade estava a beira do
colapso pelas mulheres estarem fora de seus afazeres destinados. Além de que
queriam eliminar qualquer influencia do lado agora inimigo durante a guerra fria,
queriam reforçar a ideia que o bem está no homem que vai a Igreja.
Assim, a pertença a uma Igreja e uma atitude abertamente
favorável em relação à religião se tornaram formas de afirmar
o American way of life, especialmente porque a União
Soviética e seus aliados assumiram oficialmente o ateísmo.
Nesse quadro, ir à igreja regularmente era um escudo contra
a suspeita de subversão. Dessa forma, o que aconteceu nos
anos 50 não foi um revivecimento da crença religiosa, mas
sim da crença na religião, já que os benefícios da devoção não
seriam místicos, metafísicos, existenciais, psicológicos ou
éticos. Seriam políticos e sociais. A teologia dos anos 50
baseava-se na convicção de que a religião era símbolo da
nacionalidade norte-americana muito mais do que na crença
na existência de Deus. O caso católico é expressivo disso.

Sociedade que aspirava crescimento, esperanças, um mundo que


começava a modernidade e produtos eletrônicos dentro dos lares em grande
escala, com a abertura com Vargas das importações, chegada da televisão e a
rádio já solidificada em larga escala na população como transmissora de

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informação. Em campo de trabalho novos postos e empregos, pessoas fazendo


êxodo rural e se adequando a uma nova sociedade urbana que nascia em solo
brasileiro.

O populismo impera com governantes portadores de grande apelo


popular, grande populista, Getúlio que sai da vida para passar para história em
1954. Os grupos sociais começam a se organizar em associações, sindicatos e
partidos dando pontapé inicial do que seriam as grandes mudanças ocorridas 720
nos anos 60. O objetivo da autora é traçar paralelos entre a atuação dos grupos
sociais e sua movimentação, traduzindo os conflitos pelos quais passava o
Brasil em processo de modernização. O mais bem sucedido dos programas de
avanço industrial nos anos 50, durante a administração de Kubitschek, foi o
que estimulou a promover a industria automobilística, dirigido pelo GEA
(Grupo Executivo da Indústria Automobilística). Esse programa ofereceu
grandes benefícios á importação de equipamentos e para fabricação de
componentes automotivos durante um período limitado de anos. Em troca,
essas empresas se comprometeriam a adotar uma política de substituição
progressiva de importações por componentes de fabricação nacional. Dessa
forma, pretendia-se criar uma grande indústria brasileira de fabricantes de
componentes independentes. Finalmente as empresas automotivas foram
classificadas como ‘indústrias de base’, permitindo que recebessem auxilio
financeiro do BNDE.

Assim o mercado brasileiro se abriu para as importações não só de


produtos, mas ideais e justifica a entrada do estilo de vida que controlou a
forma que o brasileiro gastava seus salários que foram reformados por Vargas
e inicio da manutenção do poder de consumo do brasileiro. E nas propagandas
vemos uma mudança, propagandas de discurso imperialista ainda podiam ser
notadas, mas agora estavam coloridas e alegres, o inicio dos anos dourados
iniciava para as mulheres.

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A mulher dos anos 50

Após anos de guerra todos queriam ser bons cidadãos, as roupas


deixaram de ser tão formais, mas tecidos que tinham ficado leves e mais justos
ao corpo voltaram a ficar com tecidos mais firmes e mangas ficou mais longas,
a roupa New look (cintura fina, saia rodada, seios moldados) criada por Cristian
Dior em inspiração a coroação de Elisabeth II e seu vestido da coroação, invade
os guarda roupas das mulheres casadas e representa a imagem da mulher na 721
época, para relembrar a sociedade a feminilidade da mulher, luvas e chapéus
resurgem, cabelos voltam a ser maiores e bolsos em roupas somem, vindo bolsas
e carteiras de alça curta, também acompanhados de sombrinhas (que sua ponta
de ferro servia como proteção para andar nas ruas a noite),em casa a dona de
casa deveria estar bela, bem arrumada e com a casa funcionando, para proteger
as roupas aventais eram de uso obrigatório, e tinha as versões para meninas
também alguns formatos até de corações e estampas diversas. O uso de peles
seja verdadeiro ou sintético chegou aos eventos mais formais e chegaram saltos
de altura média e modelos confortáveis que poderiam ser usados o dia inteiro
dentro de casa.

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Figura 3-Propaganda de gordura de coco, a figura representando o feminino usa o modelo New
Look. (1953)

722

Os homens queriam passar a imagem do bom cidadão com roupas que


fugiriam do caráter militar, o paletó mais justo ao corpo, porém aparece calças
mais leves e descontraídas até uso livre de apenas suéter, cabelos com cortes que
pudessem ser reproduzidos com barbeador elétrico dava o resquício dos cortes
militares, contudo apenas dos lados o topo tinha um topete ou ondas. Ícones
como Elvis Presley representavam os rebeldes, usando camiseta (na época era
considerada peça íntima masculina) o corte de cabelo rabo de pato e uso de
pomadas capilares.

A volta dos homens as cidades gerou num impasse, cargos que eles
ocupavam agora havia mulheres, em todos os setores, unida aos críticos que
achavam que as mulheres estavam perdendo a feminilidade ao trabalhar,
campanhas foram feitas para que elas largassem seus empregos e voltassem ao
lar e que “tudo voltasse a ser o que era antes” tinham apoio da igreja, mulheres
casadas voltaram deixando seus maridos no posto, porém um bom número de
mulheres solteiras seguia em seus ofícios, para o conceito da época começou a
ser tolerado desde que abandonasse ao casar, principalmente nas camadas mais

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baixas, afinal seria ajuda para conseguir o dote. Mas esta independência tinha
data para acabar, aos 25 anos caso não tivesse um pretendente estaria como
estorvo ao lar, e as que não anseiam um casamento são apontadas como
destruidoras de lares nas quais esposas deveriam ficar de olho, ou mulheres que
não tinham prestigio e já foram defloradas.

Revista como companheira do lar 723

Os anos dourados foram muito significativos para mulheres, agora a


classe média ocupava o meio urbano, a distância de contato entre mulheres
solteiras e homens diminuiu e os cortejos para chegar numa donzela foram
modificados, agora a moça tinha a liberdade de conhecer seu pretendente
sozinha. Donas de casa tinham um arsenal para seu dia a dia como
liquidificador, fogão, televisão, rádio, batedeira, ferro de passar, enceradeira,
além de alimentos já pré-prontos, tecnologia militar para conservar alimentos
e condimentar chegou às casas e usado nas refeições e “modernidade do lar”.
A cozinha respirava tecnologia e acelerava o tempo e dinâmica do lar. Contudo,
com o marido que chegava apenas a noite e filhos na escola, as donas de casa
de classe média que possuíam ou não empregadas dispunham de um tempo
livre que dedicavam a leituras e as revistas femininas, que tiveram uma tiragem
maior com a urbanização, se tornavam companheiras das donas de casa, com
seus conselhos, matérias e propagandas mostrando que era necessário para o
lar ser perfeito e distraindo da solidão.
Na verdade, essa "esposa companheira" pouco se comunicava
com o marido, nem compartilhava experiências ou ideias com
ele. Vivendo o dia-a-dia em mundos relativamente diferentes,
o casal não tinha provavelmente muitos interesses comuns
fora do âmbito da família. Com distinções nítidas entre
feminilidade e masculinidade, a comunicação era
provavelmente mais difícil, mesmo porque o diálogo entre
iguais não era algo a ser buscado [...]. (PRIORE 2004)

As páginas das revistas que tratavam de “assuntos femininos”


mostravam a ideia de como os papéis de gênero eram construídos, material
analisando entre Jornal das Moças, Querida, Cláudia, matérias retiradas de o

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Cruzeiro, O tico e Almanaque das Mulheres nas edições na década de 50 traz


como a vida de uma mulher era construída para o lar, como tratavam desvios
comportamentais e refletiam os anseios que ocorriam entre as quatro paredes do
lar. Consumidoras caracterizadas pela classe média, embora as revistas não
façam distinção de classe, mas nas propagandas vemos refletido o público
atingido e como era direcionado, e sua leitura não se privava a donas de casa,
crianças e homens também liam, tanto revistas quando as partes destinadas a elas
724
em outras revistas. E o crescimento da cultura estadunidense deixava claro nas
páginas como a modernidade e o vínculo com a imprensa brasileira que estava
em ascensão com o financiamento privado e a indústria de bens associada com
o American way of life estava entrando nas casas brasileiras e suas matérias que
inicialmente eram traduções de matérias americanas e depois iniciou com
edições escritas nacionalmente, contudo a maioria não era assinada. Mas o foco
do texto esta nas propagandas, mas há relevância de citar as matérias, pois a
maioria vinha unida de uma mensagem de venda. Como um texto no Anuário
das Mulheres (1953) questionando o porquê de mulheres nervosas serem mal-
amadas.

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Acima temos uma forte chamada para o título, iniciando com afirmação
sobre determinado comportamento não “atrai” o amor, mas logo vemos que o
que aparentava ser um conselho, torna sugestão para o uso das Gotas
Mendelinas, que promete cuidar dos “nervos combalidos” das mulheres nervosas
que apresentam sintomas como: chorar, irritar-se, lamentar a ponto de falarem
de seus nervos. E temos o adicional no rodapé da página que é o lembrete que 725
móveis lustrosos só com óleo de peroba. Temos neste exemplo algo que se repete
em várias outras matérias no Anuário das Mulheres, uma matéria de título
provocativo, alguma argumentação com ou sem respaldo científico e a venda de
um produto como conclusão para o problema apresentado.

O foco desta mídia era auxiliar a mulher ser a esposa, mãe, noiva,
namorada perfeita, o casamento é o pico do desenvolvimento social de uma
mulher. A falta de matérias sobre política ou economia, por exemplo, nos deixa
a plena certeza, e em revistas como O Cruzeiro as matérias “para elas” ficavam
no início longe de matérias de economia que ficavam localizadas no meio da
revista. Artistas apareciam com frequências nas edições e recheavam as páginas
com fotos, embora que o assunto nos textos fosse o vestuário, cabelo,
maquiagem, não tinha uma abordagem sobre a vida profissional, por outro lado
dava enfoque a conquistas e anseios pessoais, destacavam como Marlin
Monrone era uma esposa dedicada junto com dicas para ter o cabelo que usou
em seu último filme. Mas duramente criticada pelo estilo de vida e seus divórcios
(que no Brasil ainda não existia) sua vida considerada boêmia e suas polêmicas,
além de a categoria artista não era vista como profissão.

Assim as revistas mostram quais os passos que as mulheres seguiam


nesta década e o que perpetuava em cada etapa (namoro, noivado, casamento,
filhos, divorcio) e em falas e falta dela revela detalhes sobre esta sociedade. O
mundo e suas propagandas para mulheres giravam em torno da casa, da
conquista ou mesmo da permanência da beleza no casamento tanto do
relacionamento quanto da pessoa. O surgimento das cores nos filmes deu a
explosão da maquiagem, o pancake, sombras, batons, esmaltes eram usados para

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a máscara da mulher perfeita, existiam maridos que nunca tinham visto a esposa
sem maquiagem, o que antes que era o uso de carvão nos olhos e batom negro
como Theda Bara nos anos 1910, mudaram para a delicadeza que Grace Kelly
usava. Esta imagem estava em diversas outras artistas como Carmen Miranda e
também representada em personagens femininas nas propagandas.

Figura 4- Imagem de Carmem Miranda (1954) a lado propaganda do sabonete Tabarra (1954) , 726
mesma caracterização.

Beleza que era dita no discurso no imperativo, sem filtros a afirmar que
ser bela é uma coisa necessária para o bem-estar. Diversas matérias com dicas
de se vestir, comportamento, dicas de relacionamentos acompanhadas de
propagandas de como estar bem vestida e cosméticos. Ocorrendo a mensagem
repetidas vezes em qualquer produto que seja vendido, como o exemplo abaixo:

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Figura 5- Anúncio do Extrato de Tomate Peixe (1953) e Aspirina da marca Cafiaspirina


(1953).

727

Temos a propaganda de molho de tomate e remédio, porém ambas com


plenos moldes de casal e imagem pra cada gênero, detalhe para as figuras
masculinas que suas vestes são quase idênticas, as mulheres temos o modelo
New Look, e de acordo com PINSKY (2014) tudo se volta para o casamento,
como esta propaganda de aspirina, mas a mensagem de um casamento feliz, o
que nos anos 50 era dado como o objetivo principal do homem e principalmente
da mulher, esta sem muitas opções de estilo de vida ficava presa a ideia de que
assim será realizada, e todas as propagandas enfocam nisso, principalmente
depois do matrimônio.

As companheiras das donas de casa refletiam mais coisas em suas


propagadas, esta busca pela mulher, mãe, esposa, dona de casa perfeita que além
da casa deixasse o marido e filhos contentes, todas as propagandas contam com
um discurso que a pessoa necessita desesperadamente do item em questão e
como ele faria a vida mais feliz e completa ao adquiri-lo. As quantidades de
produtos que prometiam a juventude prolongada aparecem com certa frequência,
junto com os de higiene intima e para cabelos e tônico regulador hormonal. Já
os de vestuário ainda veem a venda do tecido e modelos para se inspirar, mas
todos com o lema do “estilo e feminilidade”. Já outras propagandas que chamam

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a atenção temos a propaganda da cerveja Cayrú mirim, com o slogan “A pequena


boa!” apresenta a imagem de uma mulher branca, loira com maiô verde
combinando com o laço no seu penteado curto e encaracolado. Prova que o uso
do corpo da mulher nas propagandas de cerveja tem longa data. E o uso da
palavra pequena tanto para designar o tamanho da garrafa como o uso da
expressão pequena para moças jovens e belas na época.

728
Representação das mulheres negras

Muitas vezes a falta de um dado é um dado extremamente valioso, os


exemplares obtidos mostram uma peculiaridade a mais que papéis de gênero,
mostra outros estereótipos, a exemplo de todas as modelos e figuras
simbolizando o gênero feminino serem magras e curvilíneas, cabelos bem
arrumados, uso de joias, maquiagem delicada, porém temos um contraste a mais,
todas brancas. Em todas as edições que foram analisadas só foram encontradas
três imagens de mulheres negras, e elas com características similares. A primeira
(figura 4) é do ano de 1951, propaganda da Fracalanza, fabricante de utensílios
para cozinha, e temos a imagem de uma mulher negra, de corpo grande, com um
lenço na cabeça, avental, sapato sem salto, sorridente e mexendo uma panela a
beira do fogão. E a segunda (figura 5) imagem encontrada foi na propaganda dos
fogões a gás da empresa Dako, acima no canto direito vemos a imagem de uma
mulher negra, com traços minimalistas, mas com lenço na cabeça, brincos e
segurando uma refeição. A última propaganda (figura 6) de livros infantis, um
título com o nome “Contos da mãe preta” de Osvaldo Orico, ao observar a
personagem, ela esta sentada num local aberto usando roupas semelhantes a
primeira imagem, mas sua face é caricata, lábios grossos, bochechas grandes, a
diferença está no uso do cachimbo, com ela tem crianças brancas e um menino
negro, que este também com sua face tendo destaque a boca com lábios grossos
e o nariz uma grande formato oval. Em revistas de 10 anos apenas três imagens
representando a mulher negra, e todas com o mesmo estereótipo.

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Figura 6, 7, 8- Imagens dos anúncios Fracalanza (1951), Dako(1953), livros Contos da Mãe
Preta (1954).

729

Temos a caricatura de Mammy, a empregada negra risonha da cozinha


que cuida das crianças, figura da cultura pop estadunidense que apareceu nos
filmes nesta época e é reproduzida pela mídia brasileira, uma personagem
conhecida com o mesmo estereótipo é a Tia Anastácia do Sitio do Pica Pau
Amarelo, obra de Monteiro Lobato, obra que até hoje encontramos sendo usado
nas escolas. Estas figuras estão ilustrando duas situações da cozinha e cuidados
com crianças, mulheres brancas também aparecem na cozinha e cuidando dos
pequenos, mas nenhuma negra aprece na seção de moda, penteado ou até mesmo
nas propagandas de maquiagem, nas propagandas de cabelos não existem
produtos para cabelos crespos, e nenhuma modelo negra. E de acordo com o
Censo (IBGE) de 1950 a população preta e parda somadas chegava a 37,5% da
população, contudo as mulheres negras eram raramente representadas nas
propagadas e sobre as revistas analisadas, foram encontradas apenas estas três
imagens que apareceram no texto.

Conclusão

As mulheres provaram ser habilidosas em várias áreas durante a guerra,


cumprindo as metas e sendo base para os materiais bélicos. Contudo este
desenvolvimento econômico não foi acompanhado do desenvolvimento social

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que desse a liberdade a elas, mantendo a estigma sobre a “perda da feminilidade”


apresentando que essa preocupação sobre o molde familiar teve tal força que ao
fim da guerra além de colocar as mulheres para voltar aos ofícios do lar, seguiu
um discurso que este era o local delas e suas preocupações deveriam ser voltadas
para esta finalidade, isso se apresenta além das matérias, mas propagandas que
o foco está o lar e imagem, coisas que julgavam ser objetivos as mulheres.

Na construção da propaganda impressa não temos a delicadeza das 730


propagandas de hoje no discurso, a mulher dos anos 50 era moderna, possuía
vários itens tecnológicos, esperta em casar com um bom partido, mas era sempre
lembrada de suas metas e não apareciam outros caminhos ou histórias. Mulheres
não eram incentivadas a debater economia, por outro lado estimuladas a uma
vida de consumo, onde estereotipadas em piadas sobre o gasto com itens de
moda. A vida apresentada em casamento, beleza, cuidado com os filhos e esposo.

Esta feminilidade com os papéis da mulher se encontra desde modelos


a figuras femininas em caricaturas, ou seja, a ideia de feminilidade que foi gerada
ficou sendo difundida em anúncios de diversos produtos e sua repetição foi
sendo incorporada pela sociedade brasileira. Um modelo para impulsionar o
consumismo das mulheres e homens, mas acabou repassando valores e
preconceitos existentes na época, em larga escala ideias estereotipadas seguiram
no imaginário popular, como o machismo no discurso sobre objetivos da vida
das mulheres, padrões de beleza, e racismo na inexistência das mulheres negras
em outros papéis além do de subserviente.

Impactos que se reproduzem nas casas, na sociedade e segue durante


décadas, a mídia adentrou nas casas brasileiras em diversos veículos, com a
grande exposição diária ideias são absorvidas. Neste caso teve o impacto na
vestimenta, maquiagem, penteados e comportamentais também, nas páginas
observadas contém o que designavam o que as mulheres deveriam conhecer,
fazer e consumir moldado na medida econômica vigente. Os anos dourados
foram o marco para a publicidade, agora que mudava a economia para os bens
de consumo a publicidade reproduziu os novos ideais e viu como isso teve

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grandes resultados a sociedade atrelado a outras áreas da mídia como filmes,


séries e literatura.

Depois de 50 anos é fácil identificar itens da cultura norte-americana


com estes preconceitos, marcas emblemáticas que apensar do desenvolvimento
econômico das mulheres elas ainda estão presas a um projeto de vida pautado
em lar, casamento e filhos, ainda reforçado na mídia impressa, encontramos
também os padrões de beleza e o discurso sobre relacionamentos e conselhos a 731
tomar para uma união estável. Agora com mais responsabilidades com o acesso
ao mercado de trabalho vemos mulheres em massa com jornadas duplas, triplas,
pois como Spivak (1985) aborda a submissão resiste mesmo com
desenvolvimento econômico do subalterno. E com a repetição do discurso se
torna naturalizado o discurso de opressão no ser.

REFERÊNCIAS
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diversas; edições dos anos de 1951,1952, 1954. Disponíveis no acervo da
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Brasileira Disponível em <http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/jornal-
mocas/11103> Acesso 26 de ago. 2016.

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<http://nodeoito.com/classicos-infantis-racistas/> Acesso em 10 mar.2016.

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nº59-Gênero-Julho de 2016. Disponível em <http://pre.univesp.br/as-mulheres- 732
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PINSKY, Carla Bassanezi; Mulheres dos anos dourados - São Paulo: Contexto,
2014.
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católico nos Estados Unidos e no Brasil nos anos da Guerra Fria. Revista
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MULHER MARAVILHA: REFLEXÕES ACERCA DA


REPRESENTAÇÃO E PAPEL FEMININO NO SÉCULO XX

Renata Lopes Marinho

A mulher, seu corpo, sua sexualidade, seus atributos físicos e


intelectuais e seu papel sempre foram motivo de dúvidas, incertezas e debates
733
no meio social e acadêmico. Atualmente, com a consolidação do movimento
feminista e do campo de estudo do Gênero e das mulheres, as temáticas da
violência – seja física, simbólica ou psicológica – das representações, relações
de poder, dentre outras, começaram a se tornar expressivas enquanto
apontamento das desigualdades e embates entre homens e mulheres.

O século XX foi um grande divisor de águas no sentido da preocupação


com uma história “vista de baixo”, ou seja, importantes reflexões teóricas e
metodológicas no que abarca indivíduos e grupos, até então negligenciados pela
historiografia e mantidos à margem dos debates históricos. Contando com
importantes nomes como Carlo Ginzburg, Robert Darnton, Roger Chartier,
Natalie Zemon Davis, dentre outros, a História Cultural pode ser considerada
como um dos domínios historiográficos mais inovadores das últimas décadas,
destacando-se tanto pelos variados temas que engloba, quanto pelas distintas
metodologias utilizadas.

A História Cultural preocupa-se em lidar com as mais diversas


manifestações da cultura em diferentes sociedades e períodos históricos.
Demonstrando intensa afeição ao que é informal, sobretudo ao que é popular.
Ela se faz através de estudos na escala micro e traduz indivíduos geralmente
esquecidos, através da sua relação direta com a sociedade. Ainda, está
preocupada em resgatar o papel das classes sociais, tendo como característica
apresentar caminhos alternativos para a investigação histórica.


Mestranda em História social da cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro (PUC-Rio).

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Dentre seus campos, emerge nesse meio a História das Mulheres e os


estudos de gênero, os quais se interessam em garantir à mulher uma categoria de
sujeito em sua história, dando-lhe voz e autonomia para ser tratada como
relevante aos processos históricos, valorizando sua individualidade e conquistas
e, retirando-a da sombra de uma figura masculina. Em contrapartida, os debates
acerca da temática encontram-se longe de serem esgotados.

De fato, a forma como a sociedade enxerga o comportamento feminino 734


e representa a mulher responde a convenções condicionadas ao tempo e lugar.
Assim, uma interessante maneira de observar a leitura social recebida pela
mulher num dado momento, é ao investigar suas formas diretas de exposição,
como por exemplo os personagens que são vendidos pela mídia.

Conforme dito por Tedeschi,


[...] a desigualdade de gênero passa a ter um caráter universal,
construído e reconstruído numa teia de significados
produzidos por vários discursos, como a filosofia, a religião,
e educação, o direito, etc. perpetuando-se através da história,
e legitimando-se sob seu tempo. (TEDESCHI, 2008, p.123)

Segundo o autor Roger Chartier, a história cultural é um método importante para


identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma realidade social
é construída e pensada. Sendo entendida como o estudo dos processos com os
quais se constrói um sentido, uma vez que as representações podem ser pensadas
como “esquemas intelectuais, que criam as figuras graças às quais o presente
pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado”
(CHARTIER, 1990, p.17).

Assim, ele busca acabar com o abismo existente entre a história das
ideias e das mentalidades através do desenvolvimento de três conceitos em
especial: representação, prática e apropriação. Colocando a realidade como
sendo analisada através das suas representações, considerando-as então,
realidades de múltiplos sentidos. Contudo, há práticas sociais que não podem ser
reduzidas a “representações”, pois as mesmas possuem uma lógica autônoma, e
elas servem para dar significado ao mundo. E a apropriação se dá na forma como
os indivíduos leem as instituições representadas.

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Nos quadrinhos, a representação feminina também segue a lógica de


acompanhar as transformações sociais e, de alguma forma, traduzir uma
mensagem e ideia específica para um grupo maior de pessoas, abarcando
inclusive, distintas faixas etárias, grupos sociais e regionais. Em linhas gerais,
no seu início, os quadrinhos tratam-se de uma criação masculina, voltada ao
público masculino, mesmo que houvesse algumas exceções de produções
voltadas para as mulheres. Mas geralmente, as mulheres são retratadas nessas
735
revistas por intenso teor pornográfico, sexualizado e submisso ao homem.
Protegidas pela tinta e pelo papel, os personagens das HQ‟s
materializam representações que são constantemente
retomadas, re-atualizadas e normatizadas sob a forma de um
simples exercício de leitura; do jogo lúdico entre palavra e
imagem, que aparentemente desvincula do mundo real,
retoma, recria e fundamenta modelos e saberes
(OLIVEIRA,2007, p.23).

As mulheres, com certa frequência, são representadas como


coadjuvantes em papeis secundários ou caricaturadas. Seus papéis podem ser
caracterizados como sem importância, na função de mãe de algum herói ou
alguém que prestará algum serviço irrisório, ou como frágeis e problemáticas,
alguém que precisa ser cuidada, resgatada ou que provoca algum conflito na
trama.

Outra representação comum de ser encontrada é de cunho machista e


misógino, onde a mulher não apenas é sexualizada como também estão presentes
sob a clara prerrogativa de serem, de alguma forma, abusadas e sofrerem algum
tipo de violência física ou simbólica. Pense que estamos falando basicamente da
segunda metade do século XX, onde a circulação desses produtos estão sendo
mais efetivas e contrapondo essa constância machista, está em crescimento o
movimento feminista e os discursos acadêmicos sobre gênero. Inclusive, inicia-
se uma onda de produção feminina de quadrinhos feitos por (e para) mulheres.

Nos quadrinhos Norte Americanos, o século XX propõem uma


modificação na representação dos personagens, geralmente, os homens são
representados de forma grotesca, masculinizados enquanto as mulheres passam
a ser retratadas seguindo marcadores sociais de beleza, tendo o rosto suavizado

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e o corpo demarcando claramente curvas, seios avantajados, pernas definidas e


cintura fina. Pouco são os personagens femininos que não seguem esse padrão,
como por exemplo na obra de Elzie Segar, o criador do Popeye1.

Essa mesma modificação, ocorre na psicologia dos papeis


desempenhados pelas mulheres, elas podem ser fortes, independentes,
engenhosas e não mais estão condicionadas a – quando aparecem – ser postas
como sem personalidade. Vemos esse claro seguimento em criações como a 736
2 3
pequena órfã Annie de Harold Gray e The heart of Juliet Jones de Elliot Caplin
e Stan Drake.

Já no meio dos super-heróis, as mulheres começam a aparecer como


personagens fortes, intensos e determinados, ao mesmo tempo, seus corpos são
retratados em forma, bem definidos e musculosos sem perder a feminilidade e a
sensualidade, as quais são retratadas no vestuário apertado e decotado e no rosto
bonito com cabelos lisos e sempre esvoaçantes, toda uma construção de atributos
físicos voltado ao público jovem com o intuito de seduzir e criar um padrão
impossível de ser alcançado mas ainda assim, fácil de ser idealizado.

A Mulher Maravilha, talvez seja o personagem feminino mais famoso


das histórias em quadrinhos, foi criada em 1941 pelo psicólogo e inventor
William Moulton Marston, sob o pseudônimo de Charles Marston e teve sua arte
feita por Harry George Peter. Apresentava uma mulher ao mesmo tempo
feminina e incrível, capaz de feitos inigualáveis e que se mostrava através de
uma figura nacionalista, por conta das cores de suas roupas e que poderia
proteger o mundo de qualquer malfeitor.

Somente um ano após o lançamento na Sensation Comics que ela


adquire seu próprio título e então se inicia sua jornada de super-heroína. De

1
Popeye é um desenho criado por Elzie Crisler Segar em 1929, onde teve sua primeira
aparição no Thimble Theatre. Também foi produzido para televisão, teatro e cinema.
2
A pequena órfã Annie criada Harold Gray, trata-se de uma tira de jornal norte
americano, criada em 1924 a qual relata o cotidiano de uma jovem menina chamada
Annie, seu cachorro Sandy e um benfeitor milionário chamado de Oliver.
3
The heart of Juliet Jones criada por Elliot Caplin (roteirista) e Stan Drake (desenhista)
em 1953, onde a trama girava em torno de uma família.

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origem grega, ela é uma amazona herdeira de uma linhagem de mulheres bélicas
que possui acessórios tipicamente gregos: o escudo, elmo e botas. Ao mesmo
que representa algumas reflexões do próprio criador sobre o feminino e lugar da
mulher naquela sociedade. Pense que seu surgimento se dá durante a Segunda
Guerra Mundial, momento muitíssimo emblemático aos Norte Americanos
assim como, para o mundo.

De acordo com sua história, a Mulher Maravilha é a princesa do reino 737


de Themyscira e filha da rainha das amazonas, chamada Hipólita. Ela veio ao
mundo como a estátua de uma menina de barro criada pela rainha Hipólita, a
qual ficou tão apaixonada por sua obra que pediu aos deuses que dessem vida a
escultura. Tendo recebido vida, passou a chamar Diana e adquiriu também
algumas habilidades e poderes: a beleza da Deusa Afrodite, a força de Hércules,
a sabedoria de Atena e a velocidade de Mercúrio (KNOWLES, 2008, p182).
Recebeu ainda, alguns presentes dos deuses para melhorar sua performance, os
braceletes indestrutíveis, capaz de lhe proteger, a tiara que também pode ser um
bumerangue e, por fim, um laço mágico inquebrável que faz com que todos os
quais forem tocados, digam somente verdade.

A Mulher Maravilha se tornou muito popular no meio social, inclusive


pelos movimentos feministas, pois por mais que fosse, de certa forma,
sexualizada ela reconheceu às mulheres uma autonomia e poder que era há
muito, sonhado para o gênero. Ela possuía atributos como ética, força,
integridade, senso de valor e tantos outros que estavam em debate naquele
período. Marston explica sua criação como:
Francamente, a Mulher-Maravilha é uma propaganda
psicológica para o novo tipo de mulher que, creio eu, deveria
governar o planeta. Não há amor suficiente no organismo
masculino para governar este mundo de modo pacífico. O
corpo da mulher contém duas vezes mais órgãos geradores de
amor e mecanismos endócrinos do que o homem
(KNOWLES, 2008, p.182).

Vale ressaltar, o século XX oferece uma dicotomia significativa ao


mundo como um todo, pois demonstra avanços e retrocessos em diversas
instâncias da sociedade. Esse período de cem anos foi marcado por intensas

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guerras, intervenções, revoluções, acordos, invenções e inovações. Chamado


pelo historiador Eric Hobsbawn de “era dos “extremos” ao mesmo tempo em
que pode ser considerado como o século mais curto de toda a história, o século
XX colocou em debate de maneira singular a discussão sobre os direitos
humanos e demonstrou na prática, formas distintas de violência.

Talvez seja o Século mais equilibrado da História no que tange a


existência de acontecimentos permeando continentes distintos, massacres de 738
indivíduos de inúmeros países e por diversos motivos, destruição de territórios e
símbolos em concomitância. E ainda, foi responsável por remodelar as relações
internacionais e a estrutura de mundo que ainda hoje conhecemos.

Também é válido ressaltar que possivelmente data deste século a


criação mais importante do mundo globalizado – pois é a responsável por mudar
irreversivelmente a forma de contato entre os indivíduos e a maneira como a
informação é transmitida, tornando capaz a aproximação dos espaços e o
tombamento de barreiras intelectuais, mas principalmente por modificar a forma
como lidamos com a nossa existência e nos comunicamos com o que está externo
a nós – a criação da internet em 1983.

A catástrofe das guerras e das ditaduras intensificou os debates acerca


das possibilidades de violência sobre o outro. A indústria bélica teve seu apogeu
criando intensamente e cada vez mais competentes formas de eliminar e destruir
o outro. E curiosamente, ao mesmo tempo em que se trata de um século
sangrento e marcado por mortes, pode-se afirmar que foi um período voltado
para a inovação, de tal forma, capaz de aumentar a qualidade e expectativa de
vida dos indivíduos através de avanços no campo médico e tecnológico e ainda,
com criações como a da lâmpada, avião, inúmeros remédios, conservação de
alimentos, do automóvel, dentre outros. Sendo ainda, um momento de constante
mutação dos papéis femininos e masculinos socialmente construídos.

Dessa maneira, o gênero como categoria abre um novo caminho para a


problemática do estudo acerca da representação e papel feminino, pois é definido
enquanto relação socialmente construída entre os sexos e que serve, conforme
apontado por Joan Scott, como uma categoria útil para a análise histórica capaz

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de condicionar as características e hierarquias de formação socialmente


construídas. Garantindo a possibilidade de produzir estudos extra descritivos, ou
seja, que sejam capazes de interpretar fenômenos e buscar uma solução aos
problemas analíticos, projetando a mulher ativamente no fato histórico e
viabilizando a exposição de suas contribuições, trajetórias e sociabilidades.
Concluindo, portanto, que o gênero é um campo primário onde o poder é
articulado.
739
Sem dúvida, a categoria gênero reivindica para si em um
território específico, em face da insuficiência dos corpos
teóricos existentes para explicar a persistência da
desigualdade entre homens e mulheres. Como nova categoria
o gênero vem procurando dialogar com outras categorias
históricas já existentes, mas vulgarmente ainda é usado como
sinônimo de mulher (MATOS, 2000, p. 16).

Assim, os estudos de gênero têm a função de problematizar as


diferenciações entre homens e mulheres, questionando as formas como as
atuações no público e no privado são destinadas a eles. Mas o gênero está
associado também a outras categorias de análise, como classe, etnia e inclusive,
os processos históricos, pois os sistemas simbólicos estão condicionados à
“como as sociedades representam o gênero, servem-se dele para articular as
regras de relações sociais ou para construir o sentido da experiência” (SCOTT,
1990, p. 11).

Contudo, voltando ao caso da Mulher Maravilha e sua representação, a


historiadora Jill Lepore, autora do livro The secret history of Wonder Woman
pontua algumas questões importantes para conectar o contexto histórico da
criação da personagem, aos seus atributos e constituição. Havia, de fato, a
necessidade de transforma as donas de casa norte americanas em mulheres fortes
e capazes de enfrentar a organização social que se deu por conta da guerra, os
homens que não voltavam, a sua inserção no mercado de trabalho para conseguir
cuidar da sua família e algum estímulo motivador de que ela poderia dar conta
de tudo o que estava passando.

A mulher norte americana trocou suas roupas por uma “armadura”, o


uniforme. Passou a cuidar de sua família dentro e fora do ambiente familiar, pois

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ainda era a responsável pelas atividades em casa, mas agora, precisava conciliar
com sua jornada de trabalho. Ela deixou de ser a esposa exemplar, porque seu
marido e as vezes filhos estavam na guerra, e virou uma mulher exemplar, uma
mulher maravilha.

Dessa maneira, a personagem Mulher Maravilha foi criada como uma


ponte entre a expectativa tida para a mulher e sua real situação. Tinha a função
de estabelecer entre as jovens e crianças, e de certa forma a qualquer mulher, a 740
idealização de uma feminilidade forte ao mesmo tempo que livre. Busca romper
com a estrutura social que caracterizava a mulher como frágil, inferior e
dependente do homem, até porque esses homens em sua maioria estavam
ausentes ou não respondiam mais aos padrões masculinos que até então estava
definido. Trata-se de um período de mudança nas regras e delimitações do que
era ser homem ou mulher.

A grande preocupação deste artigo é na tentativa de demonstrar como


formas distintas de expressão possuem uma responsabilidade tal que é capaz de
mobilizar, influenciar e motivar não apenas uma geração de indivíduos, neste
caso nos referimos ao gênero feminino, mas também, se perpetuar ao longo do
tempo conseguindo ser maior que as transformações históricas. Afinal, ainda na
atualidade a Mulher Maravilha é tida como a principal heroína feminina dos
quadrinhos e também, permanece como importante exemplo e porta voz do
feminismo e das lutas de gênero.

Em contrapartida, algumas questões ainda não foram trabalhadas por


completo e nem retiradas do meio público, como a sexualização feminina e a
necessidade de mesmo quando a mulher é retratada como forte e independente,
precisa estar acompanhada de atributos sensuais, demarcar as regras e padrões
de beleza e mais, ter um corpo que não retrata a realidade da maioria da
população. Sendo responsável por criar padrões utópicos de comportamento e
beleza que apenas reforçam o preconceito e a violência simbólica feminina.

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Guerra a nossos dias. Volume 5. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

BUTLER, Judith. Undiagnosing Gender. In: ______ Undoing Gender. New


York: Routledge, 2004, p. 74-101.

_____________ Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade.


741
Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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ISBN: 978-85-65957-07-6
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ANEXO A

Poster de divulgação da Mulher Maravilha para as tirinhas nos jornais. Artista desconhecido,
1944

743

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ANEXO B

Primeira capa da Mulher Maravilha, para a Sensation Comics, 1941. Onde apresenta a
personagem como uma mulher capaz de lutar contra homens e defensora dos EUA.

744

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ANEXO C

Esboço de como seria a personagem Mulher Maravilha feito por Harry George Peter.

745

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O FEMINISMO NAS ONDAS DO RÁDIO: A CRUZADA FEMINISTA


BRASILEIRA E A RÁDIO CLUBE DE PERNAMBUCO (1931-1932)

Alcileide Cabral do Nascimento*

Gilvânia Cândida da Silva**

À procura de uma definição clara sobre o que é feminismo, nos 746


deparamos com uma primeira resolução, a qual diz que “[...] em sentindo muito
amplo, ‘feminismo’, ‘feministas’ designam aqueles e aquelas que se pronunciam
e lutam pela igualdade dos sexos” (PERROT, 2005, p. 154). A princípio,
segundo essa premissa, seríamos bastante claras e eficientes quanto à missão de
definir, pelo menos genericamente, o que é feminismo. Contudo,
É difícil estabelecer uma definição precisa do que seja
feminismo, pois este termo traduz todo um processo que tem
raízes no passado, que se constrói no cotidiano e que não tem
um ponto predeterminado de chegada. Como todo processo
de transformação, contém contradições, avanços, recuos,
medos e alegrias (ALVES; PITANGUY, 1981, p. 7).

Assim, aquilo que chamamos de Movimento Sufragista não pode ser


encarado a partir dos mesmos princípios que regiam os feminismos das décadas
de 1970, 1980 ou 2000. Tal aspecto é claro se levarmos em conta o fato de que,
à época, a classe social, a raça/etnia e a discussão sobre os direitos reprodutivos
são dados que concedem ao feminismo múltiplos modos de expressão. Nessa
direção, no Brasil, o século XIX cerra as cortinas deixando para a posteridade
uma rica pauta de reivindicações dos movimentos operários. Entre os pedidos,
estavam não apenas aqueles ligados à conquista de melhores condições de
trabalho, mas também à possibilidade de acesso aos direitos de cidadania ―
sobretudo, pelo fim do critério censitário para os processos eleitorais (Ibid., p.
42).

O século XX, por sua vez, entra em cena trazendo consigo muitas

*
Doutora em História Universidade Federal Rural de Pernambuco.
**
Graduanda em História Universidade Federal Rural de Pernambuco.

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conquistas quanto a essas demandas. Mas, no caso dos direitos civis, as mulheres
foram alijadas das conquistas referentes ao sufrágio. Em consequência disso,
algumas historiadoras afirmam que o fato de terem sido retiradas do cenário
político impulsionou muitas mulheres a repensar as estratégias individuais e
coletivas de luta (Ibid., p. 47). Nesse sentido, “[...] se o Movimento Sufragista
não se confunde com”, diríamos nós, os outros feminismos, “[...] ele foi, no
entanto, um movimento feminista, por denunciar a exclusão da mulher da
747
possibilidade de participação nas decisões públicas” (Ibid., p. 48) e por
questionar, direta e indiretamente, as relações entre homens e mulheres
(NASCIMENTO, 2013a, p. 41-57).

O debate sobre o acesso feminino aos cargos políticos e ao voto pode,


em certo sentido, ter seu início datado, pois é no processo de construção da
Constituição Republicana de 1891 que o tema vem à tona. Na época, nomes
como Nilo Peçanha, Epitácio Pessoa e Hermes da Fonseca foram responsáveis
por lançar esse tema em debate. Mesmo assim, o documento nem sequer cita as
mulheres, seja entre aqueles que estão aptos a votar, seja entre os que não estão
habilitados ao sufrágio (PINTO, p. 16, 2003). Dessa forma, se, durante o século
XIX, a luta pelo voto feminino era feita individualmente, na Primeira República,
como assinala Alcileide Cabral, as mulheres se articulam em organizações
feministas (NASCIMENTO, 2013a, p.1).

Nesse cenário, o primeiro grupo feminista brasileiro com uma


identidade comum e uma pauta de reinvindicações em prol da emancipação
feminina foi o Partido Republicano Feminino, criado em 1910, por Leolinda
Daltro (SCHUMAHER; BRAZIL, 2000, p. 318-320) e Gilka Machado, que dá
forma e conteúdo a uma cultura política feminista. Tal organização se propunha
a representar os interesses das mulheres na esfera política, não apenas falando
em acesso ao voto, mas também em direito à educação e ao emprego formal.
Apesar dos esforços, o Partido Republicano Feminino não sobrevive por muito
tempo, encerrando suas ações por volta de 1919 (PINTO, 2003, p. 19-21).

Acerca de suas fundadoras, o Partido Republicano Feminino é


representativo e aglutinador das trajetórias de vida de muitas mulheres vistas, à

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época, como subversivas. Leolinda Daltro foi uma entre essas mulheres ousadas
e corajosas de seu tempo: professora, indianista e ativista feminista. Sua atuação
política começa de modo singular a partir de 1895, quando se une à militância
em favor da defesa dos indígenas, contra seu extermínio e o autoritarismo da
catequese. Em 1909, tenta, mas não consegue, se alistar como candidata para as
eleições e, no ano seguinte, como resposta, cria com Gilka Machado seu próprio
partido (Ibid., p. 19).
748
Gilka, por sua vez, foi uma audaciosa poetisa que chocou a sociedade
carioca com suas poesias de cunho erótico, como assinala Nádia Gotlib (2016,
on-line). Juntas, Gilka e Leolinda, foram capazes de movimentar a imprensa
carioca e lançar para o assunto do dia a questão do voto feminino. Em novembro
de 1917, as duas organizaram uma marcha que reuniu 90 mulheres que
caminharam pelo centro de São Paulo chamando a atenção da população para
suas reinvindicações e, mais uma vez, tornando-as objeto de matérias publicadas
nos jornais (PINTO, 2003, p. 19).

Mesmo não havendo ligação entre um evento e outro, no mesmo


período em que o partido de Leolinda é extinto, Bertha Lutz retorna de Paris e
inicia a organização da Federação Brasileira para o Progresso Feminino (FBPF)
(Ibid., p. 21). Antes de existir com essa alcunha, a FBPF surgiu com nome de
Liga pela Emancipação Intelectual Feminina, em 1919, sob a direção de Bertha
Lutz e Maria Lacerda, e cuja pauta de luta se situava sobre o triplo eixo:
Educação, Emprego e Sufrágio. A organização não teve vida longa, se
desfazendo quando as líderes começaram a divergir sobre os modos de conduzir
o movimento (Ibid., p. 23-25).

Bertha Lutz nasceu em 1894, na cidade de São Paulo, filha do


especialista suíço em medicina tropical Adolpho Lutz com a inglesa, enfermeira
e fundadora de uma escola para meninos abandonados, Amy Fowler. Bertha
dedicou sua vida aos estudos e, posteriormente, à política. Diplomou-se em
biologia pela Sorbonne, em 1919, e depois em direito pela Universidade do Rio
de Janeiro. Ocupou o cargo público de secretária do Museu Nacional e foi
assistente nas pesquisas de seu pai. Foi eleita deputada em 1934, participando da

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elaboração da nova Constituição (BESSE, 1999, p. 184-194).

Numa pequena cidade de Minas Gerais, em 1887, nasce Maria Lacerda


de Moura. Educada na escola normal, se casou aos 17 anos de idade, mas aos 27
decide emancipar-se dos deveres da vida doméstica. Em 1919 colabora com
Bertha na organização da Liga pela Emancipação Intelectual Feminina, mas
somente se muda definitivamente para São Paulo em 1920. Ali, tem contato com
as ideias políticas de esquerda, engajando-se, por conseguinte, em projetos
749
educacionais tutelados por um grupo anarquista. Tocada pelas novas ideias,
Maria Lacerda não enxergava, nas pautas da Liga, meios pelos quais as mulheres
pobres pudessem ter suas demandas atendidas. Assim, conflitando quanto à
missão da organização, Maria Lacerda rompe os laços com Bertha e declara-se
crítica do perfil feminista de sua ex-colega de militância, como conta Miriam
Leite (1984).

Assim, em 1922, Bertha Lutz inaugura a FBPF, transformando-a na


organização mais conhecida e influente do País. Tal prestígio se deve, entre
outras razões, às táticas de luta utilizadas pelo movimento. O chamado lobbying
― pressão sobre os membros do Congresso, mas também associação amigável
com representantes em todas as esferas do Legislativo e Executivo ― e a ampla
divulgação de suas atividades pela impressa representavam as principais vias de
ação dessas militantes (ALVES; PITANGUY, 1981, p. 47). Quanto à
autopropaganda feita nos jornais, “[...] as feministas têm consciência do papel
da imprensa na opinião pública. Elas tomam essa tribuna com profissionalismo
e também com muito idealismo” (PERROT, 2005, p.34).

Segundo os dados que se tem até o momento, foi graças ao poder de


negociação de suas líderes que a FBPF se tornou a mais longeva das
organizações que, nascidas nessa época, tiveram expressividade pública. “Bem-
educadas, talentosas e, em muitos casos, bem relacionadas politicamente, as
feministas atraíram a atenção das comunidades profissionais e políticas do Brasil
para suas reinvindicações de igualdade social, econômica e política” (BESSE,
1999, p. 183). No entanto, seu fim veio em decorrência do Golpe de Novembro
1937. O voto feminino permaneceu, porém, a FBPF não poderia mais existir na

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ditadura varguista (Ibid., p. 193).

Em Pernambuco, ainda no período da década de 1920 e em paralelo ao


forte trabalho desempenhando pela FBPF, um evento marcaria as feministas
pernambucanas antes mesmo delas terem se organizado em grupos
(NASCIMENTO, 2013b, p. 2). Com o apoio de Juvenal Lamartine, na época já
não mais presidente do Estado, as sufragistas do Rio Grande do Norte foram as
primeiras brasileiras legalmente aptas a votar, mesmo que a nível regional, em
750
1927 (PINTO, 2003, p. 25). Por todo o País, esse fato reverberou em favor da
autoestima de mulheres que há muito lutavam em prol de sua cidadania. Em
consequência dessa conquista, e sob forte inspiração desse impulso legal, novas
organizações foram criadas, inclusive, no Recife.

No dia 20 de março de 1903, a 51 quilômetros da capital pernambucana,


na cidade de Vitória, o farmacêutico Nestor de Hollanda Cavalcanti e a dona de
casa Mathilde Hollanda Cavalcanti deram à luz a Martha de Hollanda
Cavalcanti. O sobrenome previamente anuncia que Martha vem de uma família
de longa tradição nos campos intelectual e político. E, ainda jovem, ela deixa o
interior do Estado em direção ao Recife, onde se diplomou em magistério pelo
Colégio Santa Margarida, em 1925, e depois no preparatório de humanidades no
Ginásio Pernambucano (NASCIMENTO, 2013b, p. 4-5). Voltada às artes e à
literatura, em 1930 lançou seu primeiro livro, Delírio do nada, cujo sucesso de
crítica lhe fez conhecida como uma das mais talentosas intelectuais da época
(Ibid., p.7). Criadora da Cruzada Feminina Brasileira, no ano de 1931 Martha
consagrou-se como um dos grandes nomes do sufragismo pernambucano.

É também em 1931 que Edwiges de Sá Pereira amplia sua militância


junto à FBPF, estabelecendo mais um braço da organização paulista, por sua vez,
batizada de Federação Pernambucana pelo Progresso Feminino (FPPF). Tão
logo é preciso dizer que, apesar de serem pensadas em 1930, somente no ano
seguinte é que ambas as organizações têm seu lançamento oficinal (ibid., p. 9).
Datada no dia 29 de maio de 1931, a reunião inaugural da Cruzada1 antecede a

1
JORNAL PEQUENO, 03 jun. 1931, p. 3.

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reunião inaugural da FPPF, em 31 de maio de 1931, e a aprovação oficial de


Edwiges como delegada da FBPF em Pernambuco, ocorrida no dia 20 de junho
(SILVA, 2015, p.129); assim, em poucas palavras, é concedida à Martha a
alcunha de pioneira da luta das mulheres pelos direitos políticos no Recife.

Sobre esse assunto, ainda é relevante citar que, na reunião inaugural da


Cruzada, Martha de Hollanda põe Edwiges na posição de presidente de honra de
sua organização, declarando o desejo de filiar-se à FBPF. No entanto, Edwiges
751
rejeita o convite, se declara delegada da FBPF em Pernambuco e chama Martha
para filiar-se à sua organização. Como resposta à ação de Edwiges, Martha
recusa o convite de estar na reunião inaugural da FPPF e rompe relações com a
conterrânea. Tal notícia foi divulgada pelos jornais assinalando o fato de Martha
ter enviado uma carta para ser lida na reunião da FPPF justificando sua
ausência2.

Edwiges de Sá Pereira nasceu em Barreiros, no dia 25 de outubro de


1884. Ali, incentivada pelos irmãos e pais, a intelectual deu seus primeiros
passos no campo da poesia, bem como na função de escritora e colaboradora de
jornais, revistas e anuários. Sua relação com a educação escolar foi sempre muito
íntima. Na condição de professora primária, atuou, posteriormente, como
superintendente do ensino nos grupos escolares do Recife, convidada pelo então
presidente do Estado, Sérgio Loreto, para montar o projeto de educação técnica
e de magistério para Pernambuco (SILVA, 2015, p.120-125). Apesar das
diferenças entre Martha de Hollanda e Edwiges de Sá, e de seus respectivos
grupos, as fontes documentais atestam que ambas as líderes possuíam contato
com Bertha Lutz através de correspondências (NASCIMENTO, 2013a, p. 48),
dado este que sustenta a convicção da existência de uma rede nacional feminista
em prol da conquista e ampliação dos direitos civis e políticos para as mulheres.

Neste momento, voltemos nosso foco para a atuação da Cruzada


Feminista Brasileira. Como já foi dito, o lobbying e a utilização da impressa
escrita foram as principais estratégias dos movimentos sufragistas. No entanto,

2
JORNAL PEQUENO, 01 jun. 1931, p. 1.

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os anos de 1930 abrem mais uma possibilidade de ação estratégica para as


militantes feministas: o rádio. No Jornal Pequeno, encontramos os registros das
palestras concedidas por Martha de Hollanda à Rádio Clube de Pernambuco.
Reiteramos que, nesse período, a Rádio Clube era a única emissora do Norte, e
sua programação contava com inúmeras palestras de intelectuais locais e
internacionais.

Segundo o Jornal Pequeno, Martha de Hollanda foi à Rádio Clube em


752
três momentos. No primeiro, a jovem escritora fala em tom nacionalista,
convocando as mulheres a lutarem por seu direito ao voto e em favor do bem-
estar do País3. No segundo momento, de forma extremamente poética, a
pernambucana mais uma vez apela para os sentimentos das mulheres, mas,
agora, em prol da arrecadação de mantimentos para as viúvas dos mortos no
conflito de Campo Grande4, provavelmente fruto dos levantes civis oriundos da
Revolução de 1930 (ANDRADE, 1997, p. 335-344). Por fim, no período de
comemoração do aniversário de 1 ano da Cruzada, a feminista vai à Rádio Clube
de Pernambuco reafirmar as concepções e as demandas da associação5.

É importante frisar que nessa época o rádio era um artigo de luxo,


restrito apenas às camadas abastadas da sociedade recifense. Por essa razão, era
preciso realizar a transcrição dessas palestras nos jornais, uma vez que, à época,
“[...] a mensagem escrita era a única forma de comunicação de massa” (PINTO,
2003, p. 31). Assim, é imprescindível notar os elementos com os quais Martha
de Hollanda compõe seus discursos. Em primeiro lugar, destaca-se a maneira
erudita, rebuscada e poética dos textos. Sem dúvida, o objetivo da militante seria
evidenciar sua formação e capacidade intelectuais, demonstrando que ali se
ouvia uma mulher culta, esclarecida e ciente daquilo que estava dizendo,
reafirmando a boa fama que conquistou, desde o Brasil até Portugal6, com o
lançamento do seu Delírio do nada.

Ainda nesse sentido, as constantes citações de autores consagrados

3
JORNAL PEQUENO, 31 jul. 1931, p. 1.
4
JORNAL PEQUENO, 02 abr. 1932, p. 1.
5
JORNAL PEQUENO, 31 maio 1932, p. 1.
6
JORNAL PEQUENO, 07 dez. 1932, p. 1.

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feitas pela intelectual se justificam na medida em que, na época, “[...] sem


citações de autoridades estrangeiras, nenhum pensador nacional seria levado a
sério”, como assinala José Murilo de Carvalho (2000, p. 5). Ainda nesse sentido,
pensando de modo mais alargado, constatando o fato de que, estando Martha
inserida em um meio de intelectuais, seu discurso tem mesmo um tom retórico:
O peso da retórica é facilmente explicado pela análise da
tradição escolástica portuguesa, sobretudo a que predominou
no Colégio das Artes e na Universidade de Coimbra. Por essas
duas instituições, passaram muitos membros da elite política 753
e intelectual brasileira da primeira metade do século XIX
(Ibid., p. 8).

Em outras palavras, por mais que não tivesse frequentado essas


instituições, Martha de Hollanda foi, por um lado, influenciada por esse “padrão”
de produção de conhecimento e, por outro lado, levada a construir uma fala que
pudesse tocar essa elite intelectual. Além disso, em alguns momentos, seus
discursos são marcados por um forte sentimento religioso, com citações de
passagens da bíblia. A título de exemplo, em um deles podemos ler: “[...] é a
caridade ― remorso de Deus ― abrindo verônicas de luz no silêncio macabro
das trevas”7, trecho esse proferido em sua segunda palestra, quando ela
discursava em favor das viúvas. Esse apelo à dimensão religiosa também aparece
na comemoração de aniversário da Cruzada, onde a feminista declara que:
A Cruzada Feminista Brasileira, primeiro núcleo Feminista de
Pernambuco ― mocidade, riso, alegria ―, nasceu num dia
lindo de sol dos trópicos, no mês das férias de Nossa Senhora,
que a protegeu, dando-lhe por pátria o sumário miraculoso das
terras brasileiras8.

Analisando o discurso da feminista, pode-se considerar que, se Martha


não era uma católica praticante, então seu desejo era preservar a tônica moralista
que os preceitos religiosos dariam aos discursos. Uma vez que“[...] a divulgação
dos movimentos sufragistas mundo afora vinha em geral acompanhada de
valores sobre o feminino e de insinuações sobre a perda de valores morais da
sociedade” (BARROS, 2012, p.77). Em outras palavras, esperava-se conquistar

7
JORNAL PEQUENO, 02 abr. 1932, p1.
8
JORNAL PEQUENO, 31 mai. 1932, p.4.

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os direitos civis femininos, mas sem destruir a estrutura social vigente, já que
“[...] as feministas brasileiras, de maneira geral, esquivavam-se de levar o
feminismo à sua conclusão lógica. Presas a fortes tabus quanto a provocar
conflitos ou agir ‘egoistamente’, grande parte delas adotava posições
conciliadoras que minavam as reinvindicações de igualdade entre os sexos”
(BESSE, 1999, p. 208). Como afirma Joan Scott para as feministas inglesas e
francesas do século XIX, o paradoxo marca o discurso do feminismo. Mulheres
754
que queriam mudanças lá e aqui, mas sem rupturas (SCOTT, 2002, p. 204).

Ainda é importante assinalar o caráter vanguardista do discurso de


Martha de Hollanda, que, logo cedo, impulsionou-a a usar a rádio como meio de
divulgação das ideias, reflexões e anseios da organização que liderava. Depois,
pela coragem de professar discursos que, apesar de tudo, eram subversivos para
uma época onde o lugar de fala feminino era fragilizado pelo patriarcado e pelo
machismo, como assinala Margareth Rago (1987). Por fim, lembramos que:

Essas mulheres, em dia com a moda, frequentadoras de


espaços ditos masculinos, como os cafés e as casas de chás,
praticantes de atividades por muito tempo exclusivamente do
masculino, representaram uma quebra de fronteiras entre os
gêneros e despertaram temor entre muitos homens e também
entre as mulheres (BARROS, 2012, p. 79).

Mas, de onde vem essa força do rádio que impulsiona as pautas


feministas?

Entre polêmicas e progresso: uma breve história do rádio no Brasil e da Rádio


Clube de Pernambuco

Tratar da história da Rádio Clube de Pernambuco é, antes de tudo,


inserir-se numa querela historiográfica já amornada, porém ainda necessária e
cuja questão é: Seria a emissora pernambucana a pioneira em radiodifusão no
Brasil? Com o interesse de pôr fim às contradições narrativas sobre o assunto,
durante mais de 10 anos Renato Phaelante recolheu documentação de época,
bem como depoimentos dos principais personagens dessa história. Como fruto

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desse árduo trabalho, em 1994, o filho do radialista Francisco Phaelante publicou


o livro Fragmentos da história do Rádio Clube de Pernambuco. Após a
publicação desse trabalho, que não foi o primeiro, pois é visto como a
continuação do texto Rádio Clube de Pernambuco – Notas sobre sua história, de
Oscar Dubeux Pinto, dezenas de títulos corroboraram com o dado de que a
emissora recifense seria precursora da radiodifusão no País (FERRARETTO,
2015, p. 8).
755
Elencando os dados que são relevantes ao nosso trabalho, nos
reportaremos a 6 de abril de 1919, dia em que Augusto Joaquim Pereira e
colaboradores, todos da Escola Superior de Eletricidade, fundaram a Rádio
Clube de Pernambuco. As etapas do processo de desenvolvimento da emissora
foram amplamente divulgadas no Diário de Pernambuco. Mas entre as notícias,
chama a atenção o convite de divulgação do evento de inauguração. Segundo o
jornal:
São convidados os amadores de TELEGRAFIA SEM FIO a
comparecerem à sede da Escola Superior de Eletricidade
(Ponte d'Uchôa) no próximo domingo, 6 do corrente, às 13
horas, para a fundação do RÁDIO CLUBE. Solicita-se a
presença de todos os amadores, não só de T.S.F., como
também de ELETRICIDADE em geral9.

Acerca do dado de que esta foi uma solenidade direcionada aos


amadores de T.S.F. e de eletricidade e a partir de seu estatuto da rádio,
ponderamos que a emissora de Pernambuco nasce com o propósito de ser uma
associação de estudiosos das tecnologias por onda, cuja única e exclusiva função
seria popularizar tais tecnologias. Postura esta contrária àquela adotada pela
Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, criada por Roquette Pinto e Henry Morize,
em 20 de abril de 1923, que surge com objetivo de “educar através do rádio”
(FREITAS, 2012, p.3). Assim, com o slogan “Trabalhar pela cultura dos que
vivem em nossa terra e pelo progresso do Brasil”, a rádio carioca instaurou uma
nova filosofia da comunicação (FERRARETO, 2015, p. 13).

Os objetivos que marcam a criação dessas sociedades são, portanto,

9
DIARIO DE PERNAMBUCO, 06 abr. 1919, p. 4.

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bem diferentes. Para Ferraretto, sem retirar o mérito da expoente pernambucana,


“[...] a Rádio Clube organiza-se para representar os interesses dos proprietários
de estações amadoras de transmissão e recepção, ilegais conforme a legislação
da época” (Ibid., p. 14), enquanto que nas “[...] atividades da Rádio Sociedade
do Rio de Janeiro, há claramente uma ideia de difusão do conhecimento e da
cultura, mesmo que esta última por um viés elitista e ligado às ciências” (Loc.
cit.).
756
Tal paradigma fundado pela emissora do Rio de Janeiro dialoga com os
motivos que justificaram a ida de Martha de Hollanda à rádio. Por ora, é
necessário deter a atenção ao fato de que, até o início dos anos de 1930, as rádios
e, em especial, a Rádio Clube de Pernambuco, não possuíam uma programação
estabelecida, tampouco bons equipamentos de difusão e recepção. Estes eram
remontagens de outros equipamentos, artesanalmente feitos e, por isso, de acesso
restrito. Sobre isso, Tota esclarece que:
Aventurar-se pelos segredos da rádio-escuta, na primeira
metade da década de 1920, custava caro. Em São Paulo, por
exemplo, um aparelho de rádio, em agosto de 1924, era
vendido por 1:200$000 réis, enquanto uma família de
trabalhadores composta por cinco membros recebia uma
média de 500$000 réis por mês (AZEVEDO, 2002, p. 50).

Além disso, a tecnologia de radiotelegrafia ― precursora da


radiodifusão ― era de total domínio das Forças Armadas, desenvolvidas e
utilizadas para a guerra. Assim, com o fim da Primeira Guerra Mundial, somente
pessoas com autorização do Ministério da Aviação poderiam ter acesso aos
difusores, bem como, receptores, independentemente de qual tipo de
comunicação por onda fizessem (CÂMARA, 1998, p. 60).

Do ponto de vista administrativo, a Rádio Clube de Pernambuco, assim


como a própria Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, buscava auferir capital
através da importante contribuição de seus patrocinadores. Estes,
majoritariamente, eram sujeitos de posses que, fascinados com as novas
tecnologias, doavam quantias significativas de recursos para o pagamento das
despesas da Rádio. Exemplo dessa prática é dada pelo industrial José Cardoso
Aires Filho, um radiófilo confesso, um dos patrocinadores mais importantes nos

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primeiros anos de vida da Rádio Clube.

É por essa razão que, nas primeiras décadas do século XX, as rádios
adotavam o modelo de “rádio sociedade”, prevendo em seu estatuto o pagamento
de mensalidades (Ibid., p.53). Note-se ainda que nesse período não havia
locutores, radialistas, roteiristas de rádio, etc. O surgimento e a
profissionalização dessas carreiras somente ocorrem a partir de 1952, com a
inauguração do Diário de Associados de Assis Chateaubriand. Nessa direção,
757
“[...] nos primórdios do veículo, a programação musical era feita através de
doações ou empréstimos de discos às rádios, que eram fundadas em clubes ou
sociedades, ambas formadas por pessoas com boas somas de dinheiro capazes
de pagar mensalidades necessárias para o sustento das rádios” (FREITAS, 2012,
p. 4).

Nesse contexto de escassez de recursos, Ferraretto afirma que:


O associativismo idealista de elite define-se organizado em
clubes e sociedades e orientado por uma perspectiva cultural
e científica dentro do quadro de valores da burguesia urbana
em ascensão. A lhe intensificar o caráter elitista, além da
origem social dos assim chamados radiófilos, aparecem os
altos custos envolvidos: (1) na obtenção de uma licença para
a escuta, uma particularidade de então; (2) no pagamento dos
encargos para se tornar sócio da entidade responsável pela
estação de rádio; e (3) na compra de receptores
(FERRARETTO, 2015, p. 6).

Em seu primeiro número, a revista Electron10 publicou com o título de


Radio Commércio, um texto de ferrenhas críticas ao governo por sua negligência
em relação ao setor. O artigo afirma que, sem os recursos privados, o surgimento
e desenvolvimento da radiodifusão no Brasil seriam impossíveis, pois “[…] um
aparelho de rádio ou acessório paga de imposto cerca de 120% do seu valor de
importação. E a rádio é a escola do porvir!… Parece mais razoável dizer: Rádio

10
Electron foi uma revista de publicação mensal e ilustrada dedicada, especialmente, à
radiocultura e à divulgação científica. Parte do órgão oficial da Rádio Clube de Pernambuco teve
como diretores Oscar Moreira Pinto e Aristides B. Travassos; e como secretário Abílio Leôncio
de Castro. Foi criada em 15 de fevereiro de 1932, resistindo até seu sétimo número, publicado
em 15 de agosto do mesmo ano. Seu lema era: Electron é vosso, povo de Pernambuco,
ampare-o! In: NASCIMENTO, Luís do. História da Imprensa de Pernambuco (1821‒1954),
v. 9, p. 33-34, 1997.

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é o porvir de nossas alfândegas”11.

Por consequência disso, a década de 1930 começa com significativos


problemas econômicos para a Rádio Clube de Pernambuco, como se pode
observar no Diario de Pernambuco. Nota-se que a emissora experimenta
problemas financeiros justamente no período em que recebe uma nova antena
que lhe permitiria difundir seu sinal com qualidade por todo o Norte e com
menor qualidade em todo o País:
758
É de lamentar que alguns sócios do Radio Club venham se
recusando a pagar as mensalidades com a alegação de que,
não estando transmitindo, o Radio Club nada tem a cobrar. Se
não transmite o Radio Club, é porque não lhe é possível fazer
os dois serviços simultaneamente, máxime com a
precaríssima situação financeira com que iniciou os serviços
de montagem que continua não tendo suspendido o serviço
porque diretores há que têm levado ao extremo os sacrifícios
para o cumprimento da promessa feita12.

Tal situação somente vislumbra solução quando, em 1º de março de


1932, Getúlio Vargas assina o Decreto n.º 21.111, que regulamenta o Decreto
n.º 20.047, de maio de 1931, o qual permite que 10% da programação das rádios
sejam propagandas publicitárias13. Além disso, o decreto também define as
rádios como “[...] serviço de interesse nacional e de finalidade educativa”
(FREITAS, 2012, p. 3). Quanto a isso, Vargas atesta em lei uma tendência que
já pode ser vista no Brasil desde 1923, e muito antes nos Estados Unidos e
Europa. Aqui, como exemplo, podia-se ouvir aulas de História do Brasil em meio
a programas específicos de educação14. Assim, por intermédio desse decreto, as
rádios tiveram a oportunidade de ampliar suas fontes de renda ― como visto
anteriormente, um real problema à sua sobrevivência.

Apesar de ter passado por muitas melhorias, nas primeiras décadas de

11
ELECTRON, abr. 1932. p. 6. Acervo Fundação Joaquim Nabuco.
12
DIARIO DE PERNAMBUCO, 24 fev. 1931, p. 3.
13
Para entender o impacto dessa lei no cotidiano dos ouvintes e consumidores das rádios, Cf.
MARANHÃO FILHO, Luiz. No tempo do reclame: subsídios à história da publicidade no
Nordeste. Recife: UFPE, 2002.
14
Para entender melhor como se deu o ensino de História do Brasil através do rádio Cf.
DÂNGELO, Newton. Ouvindo o Brasil: o ensino de História pelo rádio – décadas de 1930/40.
Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 18, n. 36, 1998.

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existência da radiodifusão no País, a recepção do sinal era de difícil acesso. No


começo, era restrito aos amadores, depois aberto aos que poderiam pagar.
Newton Dângelo informa que “[...] para captar as transmissões, eram necessários
os aparelhos receptores, todos importados e, portanto, muito caros, o que fazia
com que a programação se voltasse para as elites, ou seja, para quem pudesse
pagar as contas do rádio” (FREITAS, 2012, p.4). Eis uma das razões pelas quais
“[...] na história do rádio no Brasil, o período compreendido entre 1923 e 1932
759
é considerado como experimental. Isso não significa dizer que as emissoras de
rádio não procuravam criar público cativo, atrair patrocínio, melhorar e
consolidar sua audiência”, como afirma Azevedo (2002, p. 55).

Em fins da década de 1930, a rádio começaria a ser democratizada,


perdendo sua feição elitista, alcançando a população urbana com maior
amplitude. Ainda assim, os equipamentos receptores demorariam alguns anos
para se tornarem acessíveis às classes pobres e trabalhadoras, bem como as
propagandas precisariam de tempo para atrair a atenção e o investimento
financeiro de empresas anunciantes (Ibid., p. 63). Uma alternativa para
ampliação do público ouvinte foi o investimento feito por municípios e estados
em equipamentos de uso público, autofalantes instalados em lugares de maior
circulação de pessoas (Ibid., p. 69).

Somente na década de 1940, com a criação de órgãos de pesquisa de


opinião, como o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatísticas (Ibope), os
comerciantes e as rádios conseguem entender seu público consumidor. Por
conseguinte, a programação e os comerciais foram pensados com o objetivo de
atingir públicos em específico. Mediante tais pesquisas, constata-se o dado de
que são as mulheres as maiores consumidoras das programações radiofônicas, o
que nos leva a crer que “[...] é através da figura feminina que o rádio conquista
um papel de destaque no cotidiano familiar. Ao longo das décadas de 1930 e
1940, vai sendo criada uma cultura familiar radiofônica, que também vai
contemplar horários com programações infantil e masculina” (Ibid., p. 78).

Assim sendo, na vanguarda das tecnologias estava Martha de Hollanda


e a Cruzada Feminista Brasileira, um exemplo de como as estruturas que

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oprimem podem, também, serem usadas para emancipar.

Considerações Finais

No período em que Martha de Hollanda vai à Rádio Clube de


Pernambuco, esta já é uma emissora com significativo poder de audiência.
Mesmo sendo artigos de luxo restritos a poucos, os receptores já podiam ser
encontrados em certo número de casas. Os discursos proferidos pela líder da 760

Cruzada foram transcritos e publicados nos meios impressos de comunicação,


alcançando simultaneamente as distintas classes e sem desperdiçar a
oportunidade de usufruir do potencial da rádio. Neste sentido, as feministas
sabiam que falavam para a classe abastada, porém igualmente estavam cientes
do potencial de alcance de seu discurso via rádio.

Ainda assim, é preciso apontar para o fato de que, à época, pairava uma
forte esperança em torno da utilização do rádio como meio para educar a
população não letrada. Por essa razão, acreditamos que as feministas da Cruzada
viram nele a possibilidade de não necessariamente atingir, mas reforçar a
comunicação com um público com quem elas já mantinham certo contato pela
mídia impressa. Martha de Hollanda convivia em meio aos intelectuais, e estes
já faziam uso da Rádio Clube para divulgarem temas que vão desde O Recife
Antigo e suas tradições (CÂMARA, 1998, p. 45) até palestras de saúde e higiene,
exatamente com essa ideia de que poderiam educar as massas iletradas através
da audição. Nesse sentido, entusiasmada por essa áurea de esperança no
progresso propagado pelo rádio, a escritora elaborou e proferiu discursos cultos,
poéticos e rebuscados em citações procurando sensibilizar homens e mulheres
em favor das pautas feministas pela emancipação feminina e seu acesso aos
direitos civis.

Levando em conta a instabilidade das relações humanas, por fim,


consideramos que conhecer e compreender as ações de mulheres como Martha
de Hollanda é, antes de tudo, enxergarmo-nos enquanto agentes de mudanças de
nossas próprias realidades. Pois foi na insatisfação com seu presente e na

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tentativa de mudá-lo que Martha de Hollanda, ao criar a Cruzada Feminista


Brasileira, escreveu seu nome na História.

REFERÊNCIAS

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Paulo: Brasiliense, 1981.
761
ANDRADE, Manuel Correia de. Pernambuco imortal: evolução histórica e
social de Pernambuco. Recife: Cepe, 1997.

AZEVEDO, Lia Calabre. No tempo do rádio: radiodifusão e cotidiano no Brasil.


2002. 277p. Tese (Doutorado em História) ‒ Universidade Federal Fluminense,
Niteroi, 2002, p. 50.

BARROS, Natália; REZENDE, Antônio Paulo; SILVA, Jaílson Pereira da.


(Orgs.). Os anos 1920: história de um tempo. Recife: UFPE, 2012, p. 63.

BESSE, Susan K. Modernizando a desigualdade: reestruturação da ideologia de


gênero no Brasil (1912‒1940). São Paulo: Universidade de São Paulo, 1999.

CÂMARA, Renato Phaelante. Fragmentos da história do Rádio Clube de


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chave de leitura. Topoi. Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 123-152, jan. /dez. 2000. p.
5.

DÂNGELO, Newton. Ouvindo o Brasil: o ensino de História pelo rádio –


décadas de 1930/40. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 18, n. 36, 1998.

FERRARETTO, Luiz Artur. De 1919 a 1923, os primeiros momentos do Rádio


no Brasil. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA
COMUNICAÇÃO, 38, 2015, Rio de Janeiro. Anais eletrônicos. p. 8. Disponível
em: <http://portalintercom.org.br/anais/nacional2015/resumos/R10-2819-
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FREITAS, Goretti Maria Sampaio de et al. O que é preciso ler para entender o

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Rádio e compreender o Radialismo. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE


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GOTLIB, Nádia B. Com Gilka Machado, Eros pede a palavra (Poesia erótica
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_____. “De pomba para leoa”: Martha de Hollanda e a Cruzada Feminista


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763

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Atas do II Encontro Nacional do GT Estudos de Gênero
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764

ST 7
Gênero e Culturas Políticas
no Brasil

Coordenação
Profa. Dra. Silvia Maria Fávero Arend
(UFSC)

Profa. Dra. Ana Maria Veiga


(UFSC)

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CENSURA PARA QUEM? GÊNERO E MORAL NO CINEMA DA
DITATURA

Ana Maria Veiga*

Não é novidade para ninguém que a censura sobre os meios de


comunicação é um braço importante dos regimes repressivos, que via de regra
se afirmam no poder pelo uso destes mesmos meios. Assim como críticos, que
765
com suas colunas em jornais aclamam ou rechaçam uma produção
cinematográfica, os censores da ditadura civil-militar brasileira muitas vezes se
consideravam experts no assunto, opinando sobre o enredo de uma película,
julgando-a estética e moralmente.

Com que prazer não deve ter saboreado, cada censor, a elaboração de
um parecer sobre Os homens que eu tive - um filme inicialmente liberado, para
18 anos, e proibido três meses depois, por questões morais. Como o título sugere,
a protagonista Pity era uma mulher que mantinha relacionamentos amorosos,
simultâneos ou não, com homens diversos, de acordo com suas preferências e
seus desejos.

O que proponho neste estudo é a análise de como o roteiro de Tereza


Trautman repercutiu nos discursos a respeito do filme em duas fontes distintas:
os pareceres dos censores e as reportagens na imprensa que, em conjunto,
constituem a fortuna crítica do filme.

Estávamos em 1973 quando a jovem cineasta Tereza Trautman - na


época com 22 anos - lançou ao público cinéfilo uma crítica social, em seu
primeiro longa-metragem. As garras do Ato Institucional número 5 (AI-5) ainda
não haviam afrouxado, mesmo que já se começasse a falar em “distensão”.
Afinal, o desmonte da Guerrilha do Araguaia acabara de acontecer, às margens
de um rio, no “Brasil profundo”, onde jovens estudantes urbanos e trabalhadores

*
Pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas
da Universidade Federal de Santa Catarina.

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rurais pegaram em armas para defender um sonho de liberdade, em sentido
amplo, para o seu país.1

O primeiro texto crítico que encontramos na pesquisa sobre o filme


aparece no Jornal do Brasil, em agosto de 1973. Com o título “Leila, Darlene,
Pity e os homens”, a coluna do crítico de cinema Ely Azeredo anunciava um
acontecimento histórico: Tereza Trautman, diretora estreante no cinema
brasileiro, exibia desde o mês anterior nas salas do Rio de Janeiro seu primeiro
longa-metragem, Os homens que eu tive.2 No centro da tela estava Pity, 766
interpretada por Darlene Glória, cercada por seus namorados e pelo marido. O
papel era originalmente destinado a Leila Diniz, atriz que inspirou a construção
da personagem e que gerava polêmica justamente por suas atitudes consideradas
“liberais”, mas que eram vividas no cotidiano de parte da juventude da Zona Sul
carioca naqueles anos.3 Leila morreu em acidente aéreo quando voltava da
Europa para iniciar as filmagens. (VEIGA, 2013, p. 195)

Outras revistas e jornais brasileiros noticiaram a estreia do filme em


1973, alardeando o fato de trazer uma mulher na direção, como o jornal Folha
de São Paulo de 23 de agosto e a revista Veja publicada no dia primeiro do
mesmo mês. Sérgio Augusto, colunista da revista, no artigo “Mulher na câmera”,
fazia um apanhado da história das mulheres diretoras no Brasil, destacando Gilda
Abreu (O Ébrio, 1946) e Carmen Santos (Inconfidência Mineira, 1948), depois
constatando “[…] duas décadas de absolutismo masculino, com as mulheres
restritas à cozinha da produção cinematográfica. Isto é: montando ou dando
assistência aos varões então absorvidos por uma ideia na cabeça e uma câmera
na mão”, numa clara referência à ausência de mulheres diretoras no Cinema
Novo. O colunista complementa: “Agora, surge Tereza Trautman”. Com base
em um depoimento da cineasta que o crítico cita, onde ela menciona o
aprendizado no cinema como o “esgotamento natural, por etapas, de todas as

1
Cf. ÂNGELO, 2011.
2
O filme estreou em junho de 1973 no cinema Roxy, na capital carioca, com seus 1800
lugares tomados, e tinha estreia marcada em São Paulo na semana em que foi
interditado: a Semana da Pátria, em setembro de 1973 (Trautman, 2010).
3
Uma visão mais aprofundada sobre a atriz Leila Diniz e sua personalidade “solar” pode
ser encontrada em Silva, 2010: 79-99.

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vivências da minha cuca, do meu coração aberto a todas as transações e todos os
gestos”, Sérgio Augusto sugere que “parte da personalidade de sua heroína, Pity
(Darlene Glória), foi inspirada em si mesma” (Veja, 01.08.1973). Ou seja, o
colunista busca o sensacionalismo para afirmar que, além de ser uma mulher
cineasta, Trautman era também uma mulher “liberada”, como sua protagonista.
Desta forma, ele simplifica e reduz a presença autoral da diretora à sua projeção
na personagem, o que pode ser tomado como um esvaziamento da autoria.
(VEIGA, 2013, p. 196) 767
No contexto cinematográfico, o predomínio das chamadas
pornochanchadas gerava um paradoxo com a interdição daquele filme, que não
trazia qualquer cena explícita de sexo em seu roteiro. Nuno Cesar Abreu (1996)
traça um panorama detalhado desse gênero, tipicamente brasileiro, dos anos
1970, ao sinalizar uma tendência no campo cinematográfico que acabou
conquistando um grande filão de mercado. Para este autor, a pornochanchada
expressa o desejo de liberação dos costumes da época (ABREU, 1996, p. 74-75).
Isso se dá em um contexto ambivalente das relações entre cinema e Estado, em
tempos de autoritarismo, coroado pela criação da Embrafilme, em 1969.

Entre os filmes exibidos nas salas de cinema, e depois na TV, diversos


enredos exploravam personagens masculinos em cenas eróticas com mais de
uma mulher. No cinema autorizado por um regime militarizado-masculinizado,
demonstrações de virilidade tinham seu lugar. No caso de um filme dirigido por
uma mulher, focado em uma protagonista mulher com liberdade de escolha e de
desejo, a questão seria bastante diferente. Os primeiros minutos do filme não dão
folga ao público espectador, que é pego de surpresa pela naturalidade e a
liberdade da personagem central, que traz o agravante de ser uma mulher casada
e “liberada”, que vive seus relacionamentos amorosos diante dos olhos do
marido.

Tanto Sérgio Augusto como Ely Azeredo comparam Os homens que eu


tive a Le Bonheur (As duas faces da felicidade), lançado oito anos antes por
Agnès Varda. Ao analisarmos o mais polêmico filme de Trautman, nos termos
desta comparação, nos deparamos ainda com um debate sobre as reivindicações

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feministas que apareciam com intensidade naqueles anos. Por seu lado, Azeredo
tentava “proteger” a diretora de um estigma:
Primeira mulher a realizar um longa-metragem no Brasil
desde a década de 1950, Tereza Trautman poderá reivindicar
um lugar na história do cinema brasileiro, no mínimo como a
primeira realizadora a filmar entre nós com um ponto de vista
nitidamente feminino. Classificar Os homens que eu tive de
feminista me parece apressado e – a julgar pelas distorções
sectárias sempre presentes nos movimentos feministas - uma
atitude talvez injusta. Um “cinema feminino” está longe do
pensamento da autora. (Azeredo, 2009: 208)
768

Registrei exatamente o oposto na entrevista com Tereza Trautman, em


2010 (publicada em 2015), onde a cineasta confirma seu interesse e
envolvimento com o movimento feminista daquele período e a amizade com a
feminista brasileira Rose Marie Muraro.4

Foi na semana da Pátria de 1973 que Os homens que eu tive foi


interditado, quando finalmente estrearia em São Paulo, depois de três meses de
sucesso, com salas lotadas no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte.

O texto do parecer de liberação dizia assim:


Título: Os homens que eu tive. Classificação etária: 18 anos.
Cortes: sim. Vedada a exploração comercial: não. Cenas:
levianas, da alcova. Linguagem: vulgar e algumas palavras de
baixo calão. Tema: social, infidelidade conjugal. Personagem
[sic]: vulgares e levianas. Mensagem: negativa.

Enredo: Pity, mulher leviana, deixa o marido, que também


mantinha relações extraconjugais, e prossegue sua vida com
vários homens. No final, ela engravida de um dos
companheiros, fica muito feliz e comunica o acontecimento
ao marido, pedindo o desquite.

Cortes: No trailer - palavrão porrada. Segundo rolo do filme -


palavrão filho da puta.

Conclusão: trata-se de película com conteúdo amoral,


baseado no adultério. Opinamos pela liberação para maiores
de 18 anos, com os cortes acima mencionados. Brasília, 01 de
junho de 1973.5

4
Cf. VEIGA e TRAUTMAN, 2015.
5
Documento da Censura em PDF. Disponível em: www.memoriacinebr.com.br.

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O parecer 3612/73, mencionado foi assinado por duas censoras e um
censor, que autorizaram a exibição do longa-metragem em junho de 1973. Pela
quase ausência de cortes, percebemos que o filme de Tereza Trautman não deve
ter causado tanto incômodo a seus avaliadores, ao menos naquele momento. A
proibição viria três meses depois, determinada diretamente pelo general Antônio
Bandeira, o então diretor geral do Departamento de Polícia Federal, responsável
pelo órgão de censura. O motivo? Funcionários do órgão diriam à cineasta que
foi uma denúncia de uma senhora “de família”, de Belo Horizonte, que teria 769
comunicado sua queixa ao general. Afinal, aquele filme deterioraria, em muito,
a “imagem da mulher brasileira” e da família (VEIGA e TRAUTMAN, 2015).

A produtora Herbert Richers, responsável pela distribuição do filme,


buscou inúmeros argumentos durante os sete anos seguintes para a liberação da
película. Trago como exemplo de seus esforços uma carta ao ministro da justiça,
Armando Falcão, datada de 12 de junho de 1974. Sua retórica evocava a exibição
no Brasil de filmes como Jules e Jim (1962), de François Truffaut e Cesar e
Rosalie (1973), de Claude Sautet, que traziam temáticas semelhantes à de Os
homens que eu tive, mostrando mulheres envolvidas com mais de um homem.
Possivelmente essa subversão de costumes era tomada como um estrangeirismo,
mantendo intacta a moral das mulheres brasileiras casadas. A produtora
argumentava que: “Paralelamente às chanchadas pornográficas que importamos
e que são também produzidas no Brasil há alguns anos, existe o cinema erótico
sério [...]” e que o filme de Tereza Trautman seria um de seus representantes,
assim como Toda nudez será castigada, de Arnaldo Jabor, também interditado
em 1972, antes de ser exibido, mas liberado com cortes no ano seguinte.6

Enquanto Tereza Trautman e a produtora ainda brigavam pela


autorização de exibição, em 1977 os documentos da censura mostram o filme de
Jabor já pedindo autorização para ser exibido na televisão. O motivo de tal
diferença pode ser presumido ao analisarmos os discursos dos seus pareceres nos
processos de censura.

6
Carta da empresa Produções Cinematográficas Herbert Richers S.A. ao Ministério da
Justiça. Disponível em: www.memoriacinebr.com.br/pdfsNovos/0890473C01104.pdf.
Acesso em 19 jan. 2013.

ISBN: 978-85-65957-07-6
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Parecer 4645/73. Título: Toda nudez será castigada.
Classificação etária: não liberação.
Cenas: de desajustamento familiar, conflitos, relações de
sexo, de exibicionismo erótico, de fuga, de suicídio.
Linguagem: vulgar, de baixo calão, sórdida. Tema:
psicossocial. Personagens: sadomasoquistas, desajustados,
angustiados. Mensagem: negativa.

Enredo: O sexo e o erotismo são recursos engendrados para


desfazer a obsessão do viúvo pela ex-esposa, e, também,
como instrumento de vingança do filho contra o pai, que com
uma prostituta formam um triângulo amoroso. São marcantes
as cenas de exibicionismo erótico, indução sexual, curra, 770
tendo como desfecho o suicídio da prostituta de um lado, e do
outro, a opção do filho pelo homossexualismo.

Conclusões: [...] Embora apresente nível técnico que o tenha


credenciado a mais de um prêmio como arte, o seu conteúdo,
entretanto, é negativo, sob o ponto de vista das instituições
morais e sociais. Por conseguinte, [...] sugerimos sua não
liberação.
Brasília, 10 de julho de 1973. Maria Bemvinda Bezerra7

Apesar de dois pareceres negativos, o mesmo general, Antônio


Bandeira, decidiu liberar em 8 de agosto de 1973 a exibição do filme de Jabor,
exigindo os devidos cortes já sugeridos na saída do filme, em 1972: cortar a
palavra suruba, o gesto que Geni faz batendo com a mão aberta sobre a outra
fechada, a fala de Geni “Perto de você eu fico toda molhadinha”, a fala de
Herculano “Eu vou deflorar você” e a cena que apresenta o ambiente policial
como “antro de depravação e irresponsabilidade”8.

Com as incansáveis tentativas de liberação de Os homens que eu tive


por parte da produtora Herbert Richers, os discursos dos pareceres dos censores
se mostrariam mais acirrados. Uma vez interditado, e com suas cópias
recolhidas, passou a ter um tratamento bastante rígido, impregnado de uma carga
moral ainda mais evidente, como percebemos nos pareceres de 1975, em
resposta a uma nova solicitação de liberação, com o filme já cortado nos dois

7
Disponível em: www.memoriacinebr.com.br.
8
Documento anexo ao certificado de censura do filme, expedido pelo Ministério da
Justiça, Departamento de Polícia Federal, Divisão de Censura de Diversões Publicas e
assinado por Rogério Nunes e Deusdeth Burlamaqui em 21.12.1972.

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palavrões e com título alterado para Os homens e eu, por sugestão da própria
censura.
Parecer 4680/75. Título: Os homens e eu. Classificação etária:
não liberação.

Enredo: Mulher casada troca a segurança do lar e do marido


por vida libertina, prostituída até o dia em que resolve
engravidar-se [sic] do último homem que tivera, quando
reencontra com o marido, que sempre lhe dera cobertura para
todos os atos de prostituição e pouca vergonha.

Conclusão: Filme amoral, pornográfico em sua mensagem, 771


debochado, cínico, obsceno que tenta com enredo mal feito
justificar a vida irregular de mulher prostituída. É um libelo
contra a instituição do casamento, considerando como tal
todas as investidas irregradas da insaciável mulher.
É uma afronta à moral e aos bons costumes, em que pese os
interessados terem subtraído os poucos palavrões existentes.
É o mesmo filme que já foi objeto de exame e posterior
interdição (Os homens que eu tive), tendo sido, apenas,
mudado o nome. A bem da moral, bons costumes, à [sic]
instituição do casamento, à [sic] sociedade, das pessoas
normais e de bem, somos pela NÃO LIBERAÇÃO [grifo
original].
Brasília, 23 de maio de 1975. Joel Ferraz - Técnico Censor.9

O âmbito técnico do julgamento cede lugar à expressão da opinião


moralizante, quase passional. O enredo do filme, apresentado pelo censor, difere
em muito do texto do primeiro parecer, elaborado antes da estreia e que permitiu
sua exibição. De acordo com este último (parecer 4680/75), a mulher que tem
mais de um parceiro leva uma vida não apenas libertina, mas “prostituída”. O
filme, além de amoral, é “pornográfico em sua mensagem”, não nas imagens. A
mensagem gera o problema, mostrando “as investidas irregradas da insaciável
mulher”, colocando-a num lugar que lhe é culturalmente negado. O brado de
“NÃO LIBERAÇÃO”, com caixa alta, encerra o parecer, sendo que o censor
afirma por duas vezes querer proteger a moral, os bons costumes, o casamento,
a sociedade e as pessoas “normais e de bem”. Ou seja, aquela não era uma
representação de mulher “normal” nem “de bem”, mas de uma anomalia.

9
Idem.

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Recorremos, neste ponto, ao sentido foucaultiano de “normalização”10,
explorado por Judith Butler e, por vezes, traduzido como “normatização”. Este
sentido torna-se evidente no discurso do censor, já que a protagonista de Os
homens que eu tive fugia a uma “normalidade” social, que compreendia a
vocação de submissão da mulher dentro do casamento. E que, curiosamente,
vemos reemergir nos dias atuais.

Para Butler, “[...] as práticas reguladoras que governam o gênero


também governam as noções culturalmente inteligíveis de identidade”, ou seja, 772
a coerência que pode apresentar uma pessoa é regida por uma norma de
inteligibilidade socialmente instituída e reiterada (BUTLER, 2003, p. 38).

As “práticas perturbadoras” da personagem central questionam o que


Butler chamou “heterossexualidade compulsória” (2003, p. 39), de domínio
necessariamente masculino. No caso do filme analisado, tais práticas afrontam
as regras de controle social do governo militar. O sexo, para Pity, não estava
ligado à reprodução, tampouco restrito ao casamento ou à heteronorma. Seu
prazer não encontrava motivos para ser reprimido. Fugindo aos padrões, que
deveriam ser reiterados, e marcada assim como antagonista das mulheres “de
bem”, Pity representava um perigo social. É o que podemos observar na
retomada dos argumentos a propósito do filme, já com o título Os homens e eu,
em 1975. O adjetivo “obsceno” sinalizava a visibilidade do que deveria
permanecer escondido, enquanto outros filmes eróticos enfatizavam a
reafirmação dos papéis de gênero pré-estabelecidos.

De volta ao parecer 4680/75, observamos em sua conclusão uma crítica


ao “enredo mal feito” do filme, o que demonstrava, sutilmente, um lado oculto
da profissão do censor, que acabava tomando (vaidosamente) a si mesmo como
crítico de cinema, apto a dar opiniões estéticas, além de decidir sobre a

10
No capítulo “Corpos dóceis”, de Vigiar e Punir, Michel Foucault argumenta sobre o
estabelecimento do normal como princípio de coerção. Os desvios deveriam ser
reduzidos, por meio de penalidades aplicadas ao “campo indefinido do não-conforme”,
do anormal. O “poder da Norma” faria parte das leis da sociedade moderna
(FOUCAULT, 2002 [1975], p. 148-154). Podemos associá-lo às práticas dos regimes
militares sul-americanos.

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pertinência moral de cada filme. Assim sendo, sua profissão, ligada ao cinema,
também teria caráter artístico.

Outro documento - o parecer 4681/75 -, assinado dessa vez por José M.


A. Tolentino em 23 de maio de 1975, afirmava que o enredo do filme fazia
“dessa agressão aos nossos princípios de moral e bons costumes uma coisa
simplesmente normal”. Mais uma vez a voz da censura ecoa: “Isso não é
normal!” Na mesma linha dos anteriores, o último parecer - 4682/75 - não deixa
qualquer dúvida: “O filme é totalmente AMORAL, contrariando os princípios 773
que norteiam os critérios censórios vigentes. Propõe constantemente a destruição
da instituição do Casamento. Estimula a prática do sexo livre e desmoraliza a
figura da mulher casada”.11

A abjeção fica por conta da representação da mulher casada, que foge


aos padrões sociais e designa “as zonas inóspitas e inabitáveis da vida social”,
que são densamente povoadas por aqueles que não gozam do estatuto de sujeito
(BUTLER, 2001, p. 155-156). E que por isso devem ser combatidos.

Como informado acima, Darlene Glória, atriz que interpreta a


personagem Pity, protagoniza também o mencionado Toda nudez será
castigada. No filme de Jabor, a protagonista Geni encontra-se no lugar
“adequado” para uma prostituta: o bordel. O filme - censurado e pouco depois
liberado - não rompia com as convenções sociais. A prostituta poderia ser
traiçoeira e vulgar, sem maiores problemas para sua imagem, já assimilada. A
grande diferença é que no enredo de Os homens que eu tive Darlene Glória fazia
o papel de uma mulher casada, de classe média, que mantinha relações com
outros homens. Pity foi denominada “prostituta” pelos censores, recebendo
críticas muito mais pesadas do que as reservadas à personagem Geni. A mácula
na imagem da mulher casada era mais do que suficiente para uma sentença de
censura quase perpétua, dirigida a Tereza Trautman.

Quanto à atriz, ela também sofria as consequências de suas


personagens, sendo muitas vezes identificada ou confundida com elas, como

11
Cf. www.memoriacinebr.com.br.

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percebemos nos discursos da imprensa, representados por esta crítica da estreia
do filme no jornal Folha de São Paulo:
“OS HOMENS QUE EU TIVE” - Se em “Toda nudez será
castigada” Darlene Glória sofria na mão dos homens, a
vingança veio rápida, pois em “Os homens que eu tive” estes
é que sofrem sob a ação de seus caprichos. E olhe que os
homens são uns “pães”, como Gracindo Júnior, Arduíno
Colassanti, Milton Moraes, Gabriel Arcanjo e Roberto
Bonfim. É certo que o fato do diretor ser uma mulher (Tereza
Trautman, 22 anos) ajuda esta situação, mas Darlene vai
mesmo à forra, pois além dos homens, tem oportunidade de
transar com Ítala Nandi e Annick Malvil numa história 774
profundamente humana e sincera, de autoria da própria
diretora. “Os homens que eu tive”, numa apresentação da
Ipanema Filmes12, estréia no próximo dia 3 no circuito do cine
Ipiranga (Folha de São Paulo, 23.08.1973).

Isso significa que a crítica (provavelmente feita por uma mulher, já que
chama os atores de “pães” - linguagem coloquial na época para se falar sobre
homens bonitos) recomendava bem o filme e chamava o público para ir às salas
de cinema ver a atriz Darlene Glória “transar” com atores bonitos e ainda com
as atrizes Ítala Nandi e Annick Malvil (no filme a irmã de Pity, com quem ela
não faz sexo). Infiro que, se esse tipo de mentalidade podia estar impresso nas
páginas de um grande jornal, ele também estaria presente no senso comum de
muitos leitores e leitoras. As atrizes seriam menos ou mais respeitáveis de acordo
com as personagens que aceitavam interpretar no cinema ou na televisão.
Julgamento semelhante poderia ser aplicado a uma diretora que ousasse rodar
um filme como Os homens que eu tive.

Certamente o uso da imprensa como fonte para a historiografia já vem


sendo bastante discutido, mas é sempre bom lembrar que as construções de
gênero encontradas nesse tipo de documentação não raramente se esvaem, sem
correspondência alguma com as mulheres comuns, que vemos caminhando pelas
ruas,13 já que discursos são movidos por intenções, que algumas vezes
normatizam, outras julgam.

12
Aqui mais uma coincidência entre Os homens que eu tive e Toda nudez será castigada
– os dois filmes foram distribuídos pela Ipanema Filmes.
13
Cf. BASSANEZI, 1996; BUITONI, 1981.

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Em 1979 encontramos outra crítica de Ely Azeredo em defesa do filme
de Trautman, no Jornal do Brasil, às vésperas de sua liberação. O crítico mostra
indignação diante do que chama “um processo obscurantista e pisoteador dos
argumentos da razão”, justamente no momento em que tanto se falava em
abertura.
Preconceito, arbítrio personalista, hipocrisia machista,
barretadas das autoridades ante decisões tomadas por seus
antecessores no poder, ignorância da evolução cultural do país
fazem do virtual seqüestro de criação artística14 talvez o caso
mais kafkiano da década de 70 na área das atividades 775
cinematográficas. (Jornal do Brasil, 17.11.1979)

Azeredo ataca ainda a “liberação condicional” do filme, embasada na


alegação do então ministro da justiça Petrônio Portella: “Não gosto desse título”.
De acordo com o crítico, o parecer pessoal levou a censura a liberar a obra, sem
cortes, mas sob a condição da mudança de nome. “Os brasileiros poderão ver o
mesmo filme - sabendo que é Os homens que eu tive – mas sob a denominação
Os homens e eu, título que fora admitido como alternativa pelos produtores há
seis anos atrás, em desespero de causa, sem resultados”15. O artigo demonstra o
conhecimento do processo pelo crítico, usando os mesmos filmes evocados pela
produtora na defesa da liberação: Jules et Jim, uma mulher para dois, de
François Truffaut, e Cesar e Rosalie, de Claude Sautet. Termina dizendo que,
além de ter sido a primeira cineasta brasileira a filmar com um ponto de vista
“nitidamente feminino”, Tereza Trautman ganha também
outra insígnia pioneira: a primeira cineasta a provocar uma
reação sintomática do autoritarismo que permeia a sociedade
brasileira e que, em sua figuração machista, pode com a
mesma naturalidade esmagar uma vocação criadora e
consagrar homens que matam mulheres que se atrevem a
hostilizar os brios da virilidade. (Jornal do Brasil,
17.11.1979)

Azeredo toca em questões centrais do processo envolvendo o filme:


machismo e arbitrariedade, ambas tendo atravessado toda a década de 1970,
empurrando o filme para outra conjuntura, muito menos favorável a sua

14
Grifo no original.
15
Grifos no original.

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recepção. Ele já não causaria tanto impacto nos anos 1980, mas, ainda assim,
não seria bem visto pela parte mais moralista da sociedade.

De acordo com a informação trazida pelo Jornal do Brasil, na “Revista


de Domingo”, Tereza não teria aceitado a troca de nome. “O filme, segundo
Tereza, foi proibido por três motivos: pelo título (o então ministro Petrônio
Portella propôs a liberação com o novo nome de Os homens e eu, mas ela
recusou), pela personagem feminina e por ter a direção assinada por uma
mulher”.16 Sua afirmação comprova a consciência de gênero sobre os motivos 776
da interdição.

Pouco investigado e analisado, o filme de Trautman teve sua fortuna


crítica restrita às reportagens da imprensa e aos documentos do departamento de
censura. Pesquisas em jornais como Folha de São Paulo17, O Estado de São
Paulo18 e Jornal da Tarde19, saídos em agosto de 1980, mostram um novo
momento, o do seu relançamento naquele ano. Liberado para exibição em 1980,
Os homens que eu tive não causou o mesmo impacto sobre o público como havia
acontecido sete anos antes, como podemos perceber com a crítica mais dura ao
filme20, que o tomava como ingênuo, sem contextualizá-lo dentro de uma
história de repressão à busca de igualdade das mulheres nos anos 1970 e mesmo
dentro das limitações dos recursos cinematográficos da época.

O moralismo mostrava-se em toda parte, como na pequena tira da


revista Veja intitulada “Mau negócio”, cujo texto informava que o filme de
Trautman tinha ganhado notoriedade em 1973 ao ser retirado de circulação pela
Censura, mas que perdia com o relançamento, narrando a história de uma
protagonista “colecionadora de homens”. De acordo com J.A.F., que assina a
nota, “Surpreendentemente, tratando-se de um filme em que sexo é o assunto

16
Grifo no original.
17
“Fantasias de Tereza sem traumas”, de 18 agosto de 1980, p. 19.
18
“Os homens que eu tive, liberado sete anos depois”, de 12 agosto de 1980, p. 20.
19
“Os homens que eu tive, uma derrota da censura”, de 11 agosto de 1980, p. 17; “Os
homens que eu tive, Filmes novos”, de 18 agosto de 1980, p. 19; “Simpático, simples,
direto. E levemente ingênuo”, de 18 agosto de 1980.
20
“Simpático, simples, direto. E levemente ingênuo”. Jornal da Tarde, 18 ago. 1980.

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dominante, Os homens que eu tive não transmite a menor sensualidade. É frio,
esquemático e principalmente cansativo”. (Veja, 20.08.1980)

Podemos entender que o filme de uma diretora, falando sobre sexo e


protagonizado por uma mulher, deveria ser mais “quente”? Podemos notar a falta
de compreensão, inclusive da temática do filme, que não gira em torno do sexo,
mas do amor livre, da livre escolha de uma mulher independente, da
transformação de antigos costumes vigentes até aquela geração dos anos 1960 e
1970. A crítica, anacrônica, desloca Os homens que eu tive de sua própria 777
história, enquanto produção cinematográfica realizada num determinado
momento, havia sete anos passados.

Porém, como a “fortuna crítica” de uma obra está continuamente em


construção, foi criado a partir de 2013 um circuito alternativo de exibição para
o filme - o meio acadêmico -, resultado da divulgação de um trabalho de
doutorado21 que investigou as obras de cineastas brasileiras que dirigiram filmes,
com abordagem de gênero, no período da ditadura civil-militar. Impulsionados
pelo trabalho, diversos convites começaram a chegar, inicialmente para
entrevistas, depois para a exibição do filme - material de grande raridade, devido
a sua pouca divulgação, mesmo em meios alternativos. De lá para os dias atuais,
estive presente em mais de dez exibições da cópia digitalizada da película, sendo
que três delas ao lado de Tereza Trautman. A maioria aconteceu em sala de aula.

Por que sugiro que a fortuna crítica mudou? Desde as últimas


informações que encontramos na imprensa, aquelas sobre a ingenuidade do filme
nos anos 1980, muita coisa se transformou. Na unanimidade das exibições
mencionadas, foi descoberta sua atualidade e a maneira direta com que o filme
trata de questões ainda não resolvidas, sobre a sexualidade das mulheres e seu
lugar na sociedade. Com a reafirmação de um conservadorismo avassalador nos
últimos anos, impulsionado pela emergência de uma diversidade de religiões
pentecostais, que permeiam a sociedade e a política no Brasil, dando provas
diárias de radicalismo e intolerância, querendo novamente colocar as mulheres
em lugares hierarquicamente determinados, o filme vem dialogar diretamente

21
Cf. VEIGA, 2013.

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com a juventude. Seria Os homens que eu tive novamente censurado, se houvesse
esta possibilidade hoje? Talvez, sim.

Se política, religião e moral voltam a andar juntas na história recente do


país, o desafio proposto pelo roteiro de Trautman torna a crescer e faz desse
filme um clássico da atualidade em termos de protesto e reivindicação. É ele um
indício da não linearidade da história, que pode ser interpretada em ciclos, que
vêm e voltam do e ao passado. Seria Pity uma porta-voz das jovens mulheres
que vão às ruas reivindicando mais uma vez o direito ao próprio corpo, como 778
acompanhamos no exemplo da “Marcha das Vadias”? Talvez.

Contrariando um argumento de Carlos Fico (2015), que propõe a


existência de dois grandes tipos de censura durante a ditadura: a moral, relativa
a diversões públicas - entre elas o cinema -, e a política, relativa principalmente
à imprensa, entendo que a interdição de Os homens que eu tive nos ajuda a pensar
numa indistinção entre os planos de uma censura política e outra moral, já que
repressão política e moral andam juntas e constituem parte importante do
“grande pacote” repressivo dos regimes autoritários, como foi a ditadura
brasileira, cujo rescaldo vivemos ainda hoje.

O que pretendi analisar, neste breve artigo, foi a construção de discursos


distintos sobre uma mesma obra, desde seu lançamento, passando pelos anos de
censura, até o momento de sua liberação. Enquanto a imprensa via inovação no
fato de a diretora ser uma jovem mulher, que colocava em cena uma protagonista
mulher liberta dos padrões conservadores impostos pela ditadura, a censura
reproduzia e reiterava esses mesmos padrões, condenando o filme como um
desvio dos papéis sociais pré-estabelecidos. Mais do que apenas imoralidade, era
tomado como uma aberração, em interpretações que não raramente confundiam
realidade e ficção.

A polêmica em torno da produção gerou uma aura de curiosidade e


admiração em torno da cineasta e de sua obra, levando a um efeito contrário,
provocando reflexões e debates em torno da atualidade da condenação moral
sobre a personagem Pity. A ausência de material analítico sobre a história do

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filme vai aos poucos sendo suprida,22 enquanto que ele, lentamente, alcança um
número cada vez maior de espectadores e espectadoras, ávidos/as por
representações que desafiem novamente padrões conservadores que insistem em
se reestabelecer.

REFERÊNCIAS

ABREU, Nuno Cesar. O olhar pornô. Campinas-SP: Mercado de Letras, 1996.


779
ÂNGELO, Vítor Amorim de. A guerrilha do Araguaia. Disponível em
http://educacao.uol.com.br/historia-brasil/guerrilha-araguaia.jhtm.

AZEREDO, Ely. Olhar crítico: cinquenta anos de cinema brasileiro, São


Paulo: Instituto Moreira Salles, 2009.

BASSANEZI, Carla B. Virando as páginas, revendo as mulheres: revistas


femininas e relações homem-mulher (1945-1964). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1996.

BUITONI, Dulcília H. S. Mulher de papel: a representação da mulher na


imprensa feminina brasileira. São Paulo: Edições Loyola, 1981.

BUTLER, Judith [1990]. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da


identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
_______. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In:
LOURO, Guacira Lopes (org.). O corpo educado. Belo Horizonte: Autêntica,
2001, p. 151-172.

FICO, Carlos. História do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Contexto, 2015.

FOUCAULT, Michel [1975]. Vigiar e punir. 25 ed. Trad. Raquel Ramalhete.


Petrópolis: Vozes, 2002.

MALAFAIA, Wolney V. O Cinema e o Estado na terra do sol: a construção de


uma política cultural de cinema em tempos de autoritarismo. In: CAPELATO,

22
Cf. VEIGA, 2013b. Parte do que é tratado neste artigo é embasada no texto “Tereza
Trautman e Os homens que eu tive: uma história sobre cinema e censura”, publicado
pela revista Significação, da Escola de Cinema e Artes da Universidade de São Paulo e
na minha tese de doutorado.

ISBN: 978-85-65957-07-6
Rio de Janeiro
Ed. Anpuh-Rio
Maria Helena (et al.). História e Cinema. São Paulo: Alameda Casa Editorial,
2007, p. 327-349.

SILVA, Alberto da. Archaïsmes et Modernité : les contradiction des modèles


féminins et masculins dans le cinéma brésilien de la dictature. Un regard sur
les films d’Ana Carolina et Arnaldo Jabor. Thèse en Histoire, Université
Sorbonne - Paris IV, 2010.

VEIGA, Ana Maria; TRAUTMAN, Tereza. Uma história de cinema e censura


780
durante a ditadura brasileira: entrevista com Tereza Trautman. Revista Estudos
Feministas [online]. 2015, vol.23, n.3, pp.839-860.

VEIGA, Ana Maria. Tereza Trautman e os homens que eu tive: uma história
sobre cinema e censura. Significação-Revista de Cultura Audiovisual, v. 40, p.
52-73, 2013b.

VEIGA, Ana Maria. Cineastas brasileiras em tempos de ditadura: cruzamentos,


fugas, especificidades. Florianópolis, 2013, 397p. Tese (Doutorado em História)
- Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal de Santa
Catarina.

ISBN: 978-85-65957-07-6
Rio de Janeiro
Ed. Anpuh-Rio
Atas do II Encontro Nacional do GT Estudos de Gênero
Rio de Janeiro, 27 e 28 de outubro de 2016.

CULTURA POLÍTICA E AÇÕES VOLTADAS AOS


INFANTOJUVENIS EM FLORIANÓPOLIS: UM ESTUDO ATRAVÉS
DAS LENTES DE GÊNERO: (1979 – 1990)

Camila Serafim Daminelli*

Introdução
781
O dia 12 de outubro de 1979 foi um dia especial para as crianças
brasileiras. Durante as festividades do dia de Nossa Senhora Aparecida,
comumente festejado o Dia da Criança no Brasil, foi sancionada uma atualização
do Código de Menores de 1927, legislação que tutelou os infantojuvenis
brasileiros por mais de cinquenta anos. O general presidente do Brasil João
Batista Figueiredo encontrava-se tão comovido com a promulgação do Novo
Código de Menores1 que, quebrando o protocolo, abraçou entusiasticamente o
mentor da proposta, o senador Nelson Carneiro2.

No cenário político que o país vivia naquele final de década, marcado


pelos reveses sofridos pelo governo militar tanto em termos eleitorais quanto no
que diz respeito à sustentação, cada vez mais frágil, do regime ditatorial, a
promulgação do Código de Menores de 1979 parece ter sido fruto de uma
estratégia em duas frentes. Uma, dar respostas ao plano internacional acerca das
normativas da Declaração dos Direitos das Crianças, cuja redação é de 1949 e a
qual o Brasil havia se prontificado adequar-se. A segunda liga-se ao intento de
acalmar os ânimos sociais dos brasileiros e das brasileiras, que viam
desgovernada uma chamada questão do menor.

E para as crianças e adolescentes, quais foram as modificações oriundas


da nova lei? Conforme uma pequena reportagem, publicada pelo jornal O Estado

*
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa
Catarina, pesquisadora do Laboratório de Relações de Gênero e Família - LabGeF e do
Laboratório de Ensino de História – LEH, ambos da UDESC. Bolsista CAPES. Email para
correspondência: camis.hst@gmail.com.
1
BRASIL. Lei n. 6.697, de 12 de outubro de 1979.
2
O ESTADO. Figueiredo sanciona novo código e elogia ação de Carneiro. 11 out. 1979.

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em 12 de fevereiro informando sobre a entrada em vigor do Código, este viria
no sentido de amparar legalmente ações já levadas a cabo pela Polícia e pelas
utoridades competentes brasileiras no que diz respeito ao menor suspeito de
delito. Assim, o Ano Internacional da Criança, como foi eleito pela ONU o ano
de 1979, ficou marcado no Brasil como aquele em que meninos e meninas pobres
foram criminalizados através da insignia legal menor em situação irregular: um
aparato jurídico que permitia a prisão para averiguação, sem flagrante delito,
bem como a incomunicabilidade do menor que não tivesse representante legal. 782
A partir de um conjunto de reportagens veiculadas no jornal O Estado,
editado na cidade de Florianópolis, busco nessa comunicação apresentar o
cenário das instituições que governaram, assistiram ou toleraram a infância e a
adolescência pobres durante a vigência do Código de Menores de 19793. Uma
análise da operacionalidade dessa lei através das lentes de gênero descortina uma
cultura política da capital do estado de Santa Catarina, fruto de um processo
histórico de imbricamento entre os âmbitos público e privado no que se refere à
governança e ao controle social.

Os dois conceitos que transversalizam essa reflexão – cultura política e


relações de gênero – talvez, dispensem definições precisas, conforme sugestão
de Reinhart Koselleck de que um conceito, não determinado apenas pelo seu uso,
tem potencial explicativo se logra manter-se polissêmico, a ser explorado pela
totalidade das circunstâncias político-sociais e empíricas4. No entanto, direciono
a utilização desses conceitos no seguinte sentido: 1) entendendo cultura política
como as orientações e distribuições especificamente políticas, as atitudes com
relação ao sistema político, suas partes e o papel dos cidadãos na esfera pública,

3
Essa discussão faz parte de uma reflexão mais ampla oriunda da dissertação de
Mestrado da autora, defendida em 2013 pela Universidade Federal de Santa Catarina,
sob orientação do Prof. Dr. Rogério Luiz de Souza e coorientação da Profa. Dra. Silvia
Maria Fávero Arend. Ver: DAMINELLI, Camila Serafim. Governar, assistir, tolerar:
uma história sobre infância e juventude em Florianópolis através das páginas de O
Estado (1979 - 1990). 2013. Mestrado em História. Universidade Federal de Santa
Catarina. 2013.
4
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos
históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC Rio, 2006, p. 109.

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conforme sugerido por Julian Borba5; 2) analisando relações de gênero como
referências à contruções sociais que tem a ver como a distinção
masculino/feminino, conforme Linda Nicholson6, ou ainda, relações de gênero
como a organização social da diferença sexual, de acordo com Joan Scott7.

Pelas mãos do Estado: a FUCABEM e a rede pública de promoção social


infantojuvenil
783
Começo por mapear as instituições existentes em Florianópolis, entre
as décadas de 1970 e 1990, que se incumbiram da população infantojuvenil, bem
como a demanda a qual se destinavam. Quando da instituição da Fundação
Nacional do Bem Estar do Menor - FUNABEM, através da Lei n. 4.513 de 1º de
dezembro de 1964, os estados da República Federativa do Brasil foram
encorajados a criar Fundações Estaduais do Bem Estar do Menor. No estado de
Santa Catarina, a Fundação Catarinense do Bem Estar do Menor – FUCABEM
foi criada em 1975. O Abrigo de Menores de Florianópolis passou a chamar-se,
então, Educandário XXV de Novembro, lugar onde funcionaram até o ano de
1980 os três pilares da FUCABEM: o Centro de Recepção e Triagem – CRT, o
Recolhimento Provisório de Menores – RPM e o propriamente dito, Educandário
XXV de Novembro, local de abrigamento permanente.

Com o incêndio que pôs fim à utilização do Educandário, em 1980, o


Centro Piloto de Palhoça – Centro Educacional Dom Jayme de Barros Câmara
foi inaugurado ainda com obras em andamento, dois anos depois do incidente.
O jornal O Estado deu ênfase à inauguração do estabelecimento, cujo objetivo
era atender às necessidades da clientela “num processo de interação social,
visando mudanças de comportamento referentes a conhecimentos, habilidades e

5
BORBA, Julian. Cultura política, ideologia e comportamento eleitoral: alguns
apontamentos teóricos sobre o caso brasileiro. Opinião Pública. Campinas, v. 12, n. 1,
mar. 2005, pp. 147 - 178.
6
NICHOLSON, Linda. Interpretando o gênero. Estudos Feministas. Florianópolis, v.
8, n. 2, jul./dez. 2000, pp. 09 - 41. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/11917/11167.
7
SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação &
Realidade. Porto Alegre, v. 20, n. 2, jul./dez. 1995, pp. 71 - 99.

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atitudes”8. A clientela a qual se referiam as matérias jornalísticas era a seguinte:
crianças e jovens ociosos, em atividades lucrativas sem a devida assistência
educacional, em situação de mendicância, delinquência e vício.

Anteriormente à construção do Centro Educacional Dom Jayme de


Barros Câmara, antes ainda da instituição da FUCABEM, o governador
Colombro Machado Salles priorizou a construção de um Centro Educacional em
1973, famigerado ainda nos dias de hoje, conhecido apenas como São Lucas9.
De acordo com Ricardo Bortoli, “seu objetivo [do Centro Educacional São 784
Lucas] era atender em âmbito estadual, por determinação judicial, em regime de
internato, menores do sexo masculino com idade de quatorze à dezoito anos”
sendo homogêneo o perfil dos atendidos, qual seja, “autores de infração penal,
cujo nível de periculosidade justificasse intervenção terapêutica
especializada”10.

Durante a vigência do Código de Menores de 1979, portanto, esses três


complexos foram os responsáveis pelo governo da população infantojuvenil em
Florianópolis e, em grande medida, no estado de Santa Catarina. Partindo das
propostas terapêuticas apresentadas e do perfil da demanda assistida,
percebemos que as ações do Estado estiveram voltadas nesse momento para o
controle social da adolescência infratora ou em vias de o ser, mendicantes,
viciosos, ociosos, delinquentes. Das três instituições, apenas o Centro Piloto de
Palhoça e ainda tardiamente, destinou-se a oferecer abrigamento permanente a

8
O ESTADO. FUCABEM abre centro quarta-feira. 28 fev. 1982.
9
Angelita Pereira Cardoso, ao estudar referências institucionais de adolescentes em
privação de liberdade, afirma que o São Lucas foi fundado no ano de 1973. A autora
menciona que coletou tal informação de maneira informal, pois não encontrou
documentação sobre o início das atividades do Centro, ainda que fosse, à época da
pesquisa, funcionária da instituição. Ver: CARDOSO, Angelita Pereira. A percepção
dos adolescentes internados no Centro Educacional São Lucas sobre o cotidiano
institucional, no ano de 2003 – município de São José. Especialização em
metodologias de atendimento à criança e ao adolescente em situação de risco.
Florianópolis: Universidade do Estado de Santa Catarina, 2003, p. 34.
10
BORTOLI, Ricardo. As relações sócio-familiares dos adolescentes internos no
Centro Educacional São Lucas. Especialização em metodologias de atendimento à
criança e ao adolescente em situação de risco. Florianópolis: Universidade do Estado de
Santa Catarina, 2004, p. 27.

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adolescentes do sexo feminino11. Para além do perfil infracional, vemos
delinear-se uma assistência pública voltada ao sexo masculino.

Os representantes indicados pelos militares-presidentes para o governo


do estado de Santa Catarina entre 1972 e 1987 foram, respectivamente, Colombo
Machado Salles, Antônio Carlos Konder Reis, Jorge Konder Borhausen,
sucedido pelo vice Henrique Hélion Velho de Córbova e Espiridião Amin Helou
Filho. É importante nomear as figuras políticas oficiais uma vez que, através das
narrativas da mídia impressa periódica, as ações assistenciais e filantrópicas de 785
suas esposas foram incorporadas aos seus mandatos. Com relação às políticas
sociais - públicas - promovidas pelos governadores, se limitaram à
implementação e adequação de instituições federais em nível local e a execução
de obras que as abrigariam.

Conforme sugere Aldaíza Sposati, parecera prevalecer uma atenção


social compatível somente a “grupos focais caracterizados pelo grau de
indigência estabelecido sob alta seletividade”12. Soma-se a essa seletividade o
elemento de segurança: as obras públicas priorizadas buscaram resolver o
problema social de uma infância e adolescência que foi considerada ameaça à
segurança pública. Outras demandas, como os/as órfãos, os/as abandonados, as
crianças e os adolescentes considerados sem vícios ou que não eram autores de
atos infracionais, ficaram sob responsabilidade de projetos de assistência social
não oficiais, mas oficialmente institucionalizados.

Pelas mãos dos religiosos: a rede de promoção social complementar

Às três instituições públicas de assistência e abrigamento infantojuvenis


já citadas somam-se outras duas de caráter privado, que compunham as opções
às quais o Juiz de Menores, autoridade competente, podia valer-se para dar

11
Uma reportagem publicada em O Estado faz referência ao um Instituto Educacional
Feminino, no entanto, não foi possível coletar nenhuma informação sobre a instituição.
O ESTADO. Com cinco anos foi estuprada. Hoje procura a liberação do vício. 18 ago.
1979.
12
SPOSATI, Aldaíza. Assistência Social: de ação individual a direito social. Revista Brasileira
de Direito Constitucional. v.1. n. 10, jul./dez. 2007. p. 437. Disponível em:
http://www.esdc.com.br/RBDC/RBDC10/RBDC-10-435-Aldaiza_Sposati.pdf.

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encaminhamento aos menores em situação irregular. De acordo com o Art. 59,
parágrafo único do Código de Menores de 1979, as entidades privadas de
assistência ou proteção aos menores comporiam o sistema complementar de
execução das medidas, de proteção ou assistência, a serem executadas
[prioritariamente] pelo Poder Público13.

A SERTE, sigla de Sociedade Espírita Ranchinho dos Trabalhadores do


Espaço, é ainda hoje uma importante instituição da cidade. Nas reportagens
veiculadas pelo jornal O Estado, os leitores e leitoras foram informados de que 786
a instituição foi fundada em 1956, mas as narrativas não fazem referência à data
de criação do Lar das Crianças - Seara da Esperança, que, mantido pela SERTE;
era uma das duas instituições de abrigamento permanente existentes em
Florianópolis até o meado da década de 199014. O Lar das Crianças abrigava
crianças maiores de sete anos, de ambos os sexos, sendo que grande parte
encontrava-se apta para adoção.

A SERTE enfrentou uma série de crises, durante a década de 1980, para


prover a manutenção do Lar das Crianças. A instituição foi criada e gerida sem
investimentos públicos, a princípio; seus idealizadores foram membros da
comunidade que professava o espiritismo em Florianópolis. Segundo
reportagens d’O Estado, os principais recursos do Lar, durante os primeiros anos
da década de 1980, eram oriundos de doações da comunidade, além de valores
recebidos através da Prefeitura de Florianópolis, da LBA e da FUCABEM15.
Reduzindo o número de abrigados/as permanentes a 29, quando já havia sido
mais de 50, o jornal parece ter veiculado diversas reportagens objetivando dar
visibilidade à crise enfrentada pela instituição, bem como buscar sensibilizar o
público leitor e incentivar doações.

A outra instituição da rede complementar apresentava um caráter


diferenciado daquele identificado nas reportagens sobre a SERTE: menos
visibilizado, voltado apenas ao público feminino maior de sete anos e mantido
pela oficialidade católica. Trata-se do Lar São Vicente de Paulo, fundado no

13
BRASIL. Lei n. 6.697, de 12 de outubro de 1979. Capítulo V.
14
O ESTADO. Crise ameaça atividades da Serte. 27 mai. 1984.
15
O ESTADO. Crise ameaça atividades da Serte. 27 mai. 1984.

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início do século XX, quando então foi chamado Asilo de Órfãs São Vicente de
Paulo. Instituído enquanto orfanato, quer dizer, em caráter de abrigamento
permanente, manteve essa característica durante a maior parte de sua existência,
até a década de 1970, quando passou a funcionar em regime de apartamentos
livres, ainda sob coordenação da Irmandade do Divino Espírito Santo, que a
fundou. Em meados dos anos 1980, passou a ser administrado em caráter laico,
apesar de seguir valendo-se da mão de obra religiosa.

Numa pequena reportagem que O Estado destinou aos 80 anos do Lar 787
São Vicente de Paulo – numa das raras informações coletadas sobre o mesmo
em todo o período da pesquisa – somos informados de que haviam 16 meninas
abrigadas de forma permanente na instituição, que atendia outras 45 em regime
de semi-internato16.

No que diz respeito às instituições da rede complementar, não foi


possível apreender através das reportagens se as crianças e adolescentes
costumavam ser encaminhadas mediante determinação do Juiz de Menores. No
entanto, tendo em vista que o perfil dos/as abrigados era descrito como órfãos
ou abandonados, sendo chamados de crianças, mais comumente do que de
menores, entendo que o encaminhamento a uma dessas instituições levava em
conta, além da possibilidade de recebê-las, o perfil das mesmas. Quer dizer, a
inexistência de conduta considerada antissocial, o vício em entorpecentes ou a
chamada situação de rua, por exemplo. No que diz respeito à SERTE, uma
reportagem informa sobre o público atendido: “Crianças que ficam
temporariamente sem lar – porque os pais se separaram, estão passando fome ou
tem graves problemas de saúde – ou são órfãs e esperam ansiosamente por uma
família que os adote”17.

16
O ESTADO. Lar São Vicente faz aniversário. 05 set. 1990.
17
O ESTADO. Crise ameaça atividades da Serte. 27 mai. 1984.

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Aos cuidados da “boa fé”: o primeiro damismo na assistência social às
crianças e aos adolescentes

Adentro, então, nos meandros onde público e privado se mesclam mais


efetivamente. Além das instituições geridas pela fé, eram modelos alternativos
de assistência aos menores as ações da Liga de Apoio ao Desenvolvimento
Social Catarinense - LADESC e da Legião Brasileira de Assistência – LBA.
Vejamos as especificidades da atuação do primeiro damismo para a cultura
política florianopolitana, para além de uma complementariedade entre público e 788
privado nas ações sociais voltadas aos infantojuvenis.

A Legião Brasileira de Assistência, fundada em 1942 pela primeira


dama brasileira D. Darcy Vargas, inaugura oficialmente o primeiro damismo
como política assistencialista. A Legião tinha como objetivo arrecadar e
distribuir auxílios destinados às famílias dos soldados brasileiros que lutavam na
Segunda Guerra Mundial. De acordo com Irma Rizzini, quando a guerra
terminou a Legião voltou seus esforços à arrecadação de valores destinados à
maternidade e primeira infância carenciada. Entre as décadas de 1960 e 1980, os
lemas foram desenvolvimentismo, comunidade e geração de renda, valores
propalados através de ações coordenadas pelas primeiras damas a nível federal,
estadual e municipal18.

A palavra assistência a compor o slogan do primeiro damismo se


diferencia do conceito de assistência social conforme os contornos adquiridos
após 1988, com a promulgação da Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS.
De acordo com a assistente social Sônia Regina Nozabielli, é importante lembrar
que a LBA, “imprimindo (...) a marca do primeiro damismo junto à assistência
social”, estendia sua ação às famílias da “grande massa não previdenciária,
atendendo na ocorrência de calamidades com ações pontuais, urgentes e

18
RIZZINI, Irma. Meninos desvalidos e menores transviados: a trajetória da assistência
pública até a Era Vargas. In: PILOTTI, Francisco; RIZZINI, Irene (orgs.). A arte de
governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à
infância no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2011, p. 275.

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fragmentadas”19. Já por Assistência Social entende-se um conjunto de práticas
de promoção de direitos que visam à superação de desigualdades sociais e à
cidadania plena dos indivíduos.

O que diferencia as práticas assistencialistas de Florianópolis daquelas


ligadas à tradição do primeiro damismo é que elas foram incorporadas às
políticas sociais do estado. É o caso da Liga de Apoio ao Desenvolvimento
Social Catarinense. Idealizada em 1979 pela primeira dama do estado, D. Déa
Barreto Bornhausen, a instituição tinha como objetivo desenvolver uma rede 789
compulsória de amparo às famílias pobres baseada em princípios cristãos, no
trabalho voluntário e na arrecadação de valores, roupas e alimentos entre as
camadas abastadas da população, com acentuada presença feminina. O
mapeamento e acompanhamento da situação das famílias, prática realizada pela
LADESC, impede que se entenda a Liga operando junto a práticas de caridade,
apenas, pois ao que parece se almejava o desenvolvimento de certa autônomia
das famílias.

Em âmbito estadual, Déa Bornhausen, Ângela Amin e Marita Córdova


administraram parte importante da assistência social entre o final da década de
1970 e o final da década de 1980, já que as primeiras damas ocupavam,
concomitantemente, a presidência da LADESC, mas também, da FUCABEM.
Quer dizer, cabia a mulher pública, sem que assumisse cargos públicos,
elegíveis, duas coordenadas importantes da gestão da infância pobre no estado
de Santa Catarina: administrar a entidade criada pelo Poder Público e a que
administrava os valores assistencialistas e caritativos.

Caso paradigmático do embricamento homem público, mulher na


promoção social complementar, ou alternativa, que se orienta para uma só
prática política/eleitoral, foi o primeiro mandato no governo de Santa Catarina
de Esperidião Amin Helou Filho. Este foi o momento áureo de ação comunitária
no estado, tendo à frente da LADESC sua esposa, D. Ângela Amin. Para que se
tenha noção da dimensão tomada por essas duas figuras políticas e suas ações no

19
NOZABIELLI, Sonia Regina; ET ali. O processo de afirmação da assistência social
como política social. Serviço Social em Revista. v.1, n. 2, jan./jun. 2006. Disponível
em: www.uel.br/revistas/ssrevista/cv8n2_sonia.htm

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hibridismo público/privado, cabe atentar que no ano de 2016 D. Ângela concorre
à prefeitura de Florianópolis tendo como uma das bandeiras da candidatura, sua
atuação junto ao Programa Pró-Criança. Este Programa, alçado à categoria de
política social voltada à nutrição e ao desenvovlimento infantil, foi desenvolvido
pela LADESC quando D. Ângela era presidente dessa instituição. O jornal O
Estado, entusiasta do casal Amin, publicou a seguinte narrativa em outubro de
1984:
Sem desconhecer todas as iniciativas comunitárias e 790
governamentais que o precederam o Pró-Criança, criado em
maio do ano passado, passou rapidamente a se constituir num
dos programas mais importantes da atual administração, pela
abrangência, papel e pioneirismo, admite a presidente da
Ladesc, Angela Amin. (...) O Pró-Criança surgiu da
constatação de que nunca, em termos abrangentes, a faixa
etária de zero a seis anos foi objeto de uma real preocupação
por parte das autoridades20.

Como sugere a reportagem, o Pró-Criança é referenciado como política


da atual administração – não se entende ao certo se se trata de Esperidião, no
governo do Estado, ou de D. Ângela, na presidência da LADESC, já que tanto
as iniciativas comunitárias quanto às governamentais são mencionadas. Ainda
hoje, pairam questões acerca do Programa Pró-Criança, sobretudo acerca de
quem foi seu idealizador, se sua abrangência fora a nível estadual ou municipal,
se se tratou de iniciativa do Poder Público ou das senhoras de boa fé, que
formavam a LADESC, dentre outras21.

20
O ESTADO. A criança catarinense já recebe o aceno da esperança no seu futuro. 14
out. 1984.
21
As atividades do Programa Pró-Criança, propagandeadas tanto por Esperidião quanto
por D. Ângela, de acordo com Yan de Souza Carreirão, sofreram duras críticas da
oposição da época. O Programa, unindo recursos públicos e operacionais em conjunto
com a LADESC, foi acusado de ser uma estratégia de relacionamento clientelista com
as comunidades, fortemente concentrado em objetivos políticos-eleitorais. Ver:
CARREIRÃO, Yan de Souza; BORBA, Julian. Os partidos na política catarinense:
eleições, processo legislativo, políticas públicas. Florianópolis: Ed. Insular, 2006, p. 39
– 40.

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Considerações finais

O governo da população infantojuvenil na cidade de Florianópolis


durante a vigência do Código de Menores de 1979, conforme se buscou
demonstrar, esteve centrado em três eixos de ação: as instituições públicas,
amparadas pela rede FUCABEM; os Lares, abrigos permanentes administrados
e mantidos pela iniciativa religiosa, que compunham a rede complementar e; as
ações da chamada boa fé, braço alternativo de assistência formado por
organizações públicas como a LBA e a LADESC, coordenadas pelo primeiro 791
damismo.

A partir do mapeamento das instituições e das ações sociais, bem como


da gerência das mesmas, pode-se tecer três considerações com relação às
especificidades da cultura política de Florianópolis entre 1979 e 1990,
relacionada ao governo da população infantojuvenil. A primeira consideração se
refere ao perfil das instituições mantidas pelo Poder Público e pela iniciativa
privada ou assistencialista. O âmbito público voltou suas atenções àquela parcela
das crianças e dos adolescentes que oferecia perigo à Segurança Nacional ou à
segurança pública, adolescentes do sexo masculino envolvidos com atos
infracionais. As comunidades religiosas, por seu turno, se incumbiram dos
considerados abandonados, crianças e adolescentes de ambos os sexos, sem o
chamado desvio de conduta. O perfil dos infantojuvenis atingidos pela ação
assistencialista era o das crianças e dos adolescentes carenciados, no bojo das
famílias.

A segunda consideração diz respeito aos limites, pouco definidos, entre


os setores público e privado. Apesar dessa comunicação estar dividida no
aparenta ser, pelo menos, dois eixos bem definidos – FUCABEM como âmbito
público, rede complementar como âmbito privado – essas esferas se tocavam
mutuamente. Por um lado, a FUCABEM destinava verbas à rede complementar,
por outro, esta rede atendia à demanda ociosa que os abrigos públicos não
podiam ou tinham condições especializadas de atender. Já no que se refere às
entidades híbridas, operando verbas públicas e mão de obra voluntária,
realizando ações caritativas como modelo de política social e vice-versa, o
embricamento torna-se mais evidente.

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Por fim, a terceira consideração versa sobre os lugares sociais ocupados
pelos indivíduos que empreenderam as políticas sociais infantojuvenis na cidade
entre as décadas estudadas. Os governadores, todos homens, geriram as políticas
públicas voltadas às crianças e aos adolescentes em sua versão técnica: seguindo
orientações legais, fazendo obras, buscando resolver problemas de segurança. Já
a gerência das instituições que operavam as políticas tinham o primeiro damismo
como modelo de gestão pública do assistencialismo ao qual a mulher era a figura
ideal: Ângela cuida, ela é mãezona, eis um dos slogans de D. Ângela a soar nas 792
rádios e na televisão atualmente, durante o horário político obrigatório.

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Atas do II Encontro Nacional do GT Estudos de Gênero
Rio de Janeiro, 27 e 28 de outubro de 2016.

DESCONSTRUÇÃO DE ESTEREÓTIPOS: A CAMPANHA DA


FRATERNIDADE DE 1987

Elisangela da Silva Machieski*

O cenário

O cenário da década de 1980 foi composto por um conjunto de


795
movimentos, tanto no campo social, quanto no político. Período da
redemocratização do país, marcado por uma efervescência dos movimentos
sociais. As ruas das grandes cidades foram tomadas por um grande número de
pessoas, era o Movimento Diretas Já. Associados a essas manifestações surgiram
vários movimentos sociais, oriundos de diversas matizes ideológicas, colocando
em pautas direitos políticos, civis e sociais. Dentro desse contexto, surgiram
alguns movimentos de militância em defesa das crianças em diversas situações
de vulnerabilidade. Como exemplo, pode-se citar o Movimento Nacional de
Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), fundado em 1985, agregava
educadores/as, militantes de diversas áreas, que somados aos meninos e meninas
em situação de rua, buscavam pelos direitos da criança e do adolescente.

O MNMMR defendia a ideia da criança e do adolescente como sujeitos


de direitos, diferente de outros discursos, circulantes nos primeiros anos da
década de 1980, que concebiam crianças e adolescentes como objeto de proteção
social, de controle, disciplinamento e repressão social. Faz-se importante frisar
que foi da junção desse movimento, MNMMR, com outros grupos que surgiu o
Fórum Permanente das Entidades não Governamentais dos Direitos das Crianças
e Adolescentes, que participou da Assembleia Nacional Constituinte, e resultou
no artigo 227 da Constituição, o pontapé inicial para a teoria da proteção integral.

É impossível, neste trabalho, falar do contexto sem abordar a Igreja


Católica e sua importância na discussão sobre infância e juventude no cenário
nacional brasileiro. Entre as décadas de 1970 e 1980, o sociólogo Eder Sader
aponta que ‘novos personagens entraram em cena’. Ao pensar a relação desses

*
UDESC.

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novos sujeitos e a Igreja Católica, pode-se articular dois fatores, ambos pautados
no referido autor. O primeiro, apresenta uma preocupação maior entre as
relações estabelecidas pela Igreja Católica e movimentos sociais. O segundo
fator está associado, ao que Sader identificou como, a crise da Igreja Católica,
ou de suas matrizes discursivas, o que fez com que essa instituição religiosa
sofresse uma significativa perda de influência junto aos seus fieis.

Na confluência desses dois fatores, a crise da igreja católica e a


necessidade de articulação das novas demandas sociais propostas por esses 796
novos personagens, chega-se na Teologia da Libertação. Assim, “ na medida em
que a Igreja é reconhecida como instituição de Deus na Terra e na medida em
que assumia os reclamos populares enquanto exigência evangélica, ela abriu um
espaço de legitimidade por onde os protestos sufocados vieram à tona” (SADER,
1988, p 161).

Nesse sentido, vemos uma parte da Igreja Católica, associada a


Teologia da Libertação, ou seja, a um catolicismo militante, abrir espaço para os
movimentos sociais. Portanto, foi debaixo do guarda-chuva dessa instituição
religiosa, com um olhar pautado não na caridade, mas na libertação, que os
movimentos sociais puderam se desenvolver.

Em linhas gerais, a Teologia da Libertação é uma corrente teológica


nascida na América Latina que parte da premissa que se deve ter opção
preferencial para com os pobres. Essa nova concepção da Igreja Católica estava
pautada na interpretação do Concílio Vaticano II e nas deliberações promovidas
na segunda e terceira edição da Conferência do Episcopado Latino-Americano:
Medellin (Colômbia, 1968) e Puebla (México, 1979). Era preciso olhar para o
povo e para seu cotidiano, que passou a ser interpretado como espaço de luta,
resistência e mudança social.

No Brasil existia uma ala da Igreja influenciada pela Teologia da


Libertação, tendo como base ações práticas da igreja em busca de uma libertação
de injustas condições econômicas, políticas ou sociais. Assim, as comunidades
leigas católicas e os movimentos sociais passaram a interagir e a enfrentar os
novos desafios impostos. Quer-se com isso ressaltar a adesão desses grupos

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sociais a esses espaços de atuação dentro do ambiente institucional católico,
como foi o caso da Pastoral do Menor e de tantas outras Pastorais Sociais.

Diante desse panorama os/as menores1 passaram a ser interpretados


como agentes de sua libertação, e não como alvos de projetos assistenciais e
policialescos. Mas, quem eram os/as menores?

Os personagens
797
Um garoto só, sentado no meio fio da calçada, vestia um par de
sandálias, calça jeans dobrada e uma regata. Seus braços estavam apoiados nos
joelhos e a cabeça amparada nos braços. Talvez fosse cansaço, um pouco de
tristeza ou então desamparo. Quem sabe tudo isso junto. Esse era apenas mais
dos milhares de meninos que circulavam pelas ruas do nosso país na década de
1980, mais um desses que correm de lá pra cá, daqui pra lá, na intenção de
continuar vivendo. Em uma das pausas da vida ele foi fotografado. Sua imagem,
agora congelada, estampava a capa do Livro da Campanha da Fraternidade.

Com a descrição dessa imagem, realizada no parágrafo anterior, quer-


se, antes de adentrarmos na campanha da fraternidade, definir quais/quem eram
as crianças e adolescentes alvos dessa campanha, ou seja, os/as menores.

Ao longo do século XX, as famílias e as crianças pobres foram alvo de


um processo de normalização, as crianças pobres que circulavam nas ruas
passaram a ser um problema, a instauração do Código de Menores, em 1927,
pode ser interpretado como uma possibilidade de resposta para esse considerado
problema. Foi nesse movimento em busca de uma definição de infância que o
termo foi sendo construído. Existe o menor, existe a criança, e a baliza não
corresponde ao quesito idade, mas fatores de ordem social, econômica e moral.
Essa segregação entre ser criança e ser menor perdurou até o segundo Código de
Menores, sancionado em 1979. Com ele, nem termo nem segregação foram

1
O termo menor é uma construção social, pautada no discurso jurídico, tendo como
baliza fatores de ordem social, econômica, moral e não apenas o quesito idade (inferior
a 18 anos). Assim, menor passou a ser sinônimo de criança abandonada e/ou
delinquente que, excluída do cenário escolar, perambulava pelas ruas, em oposição à
noção de infância considerada civilizada.

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substituídos, as crianças pobres, abandonadas, que circulavam pelas ruas
continuavam associadas ao estereótipo do menor.

Para dar sequência na escrita, cabe ressaltar que a problemática desse


artigo parte da ideia de que a igreja católica contribuiu para dinamizar a
discussão do chamado problema do menor por vários meios, no entanto, foi a
partir da Campanha da Fraternidade que essa temática ganhou amplitude. A
Campanha de 1987 levou a discussão para as comunidades, para os grupos de
famílias, deu espaço, fôlego e novos adeptos. 798

A Campanha da Fraternidade seguia as diretrizes da Conferência


Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que em 1985, tinha como presidente
um adepto da teologia da libertação. Isso explica a temática do menor ter sido
articulada em uma campanha nacional. “Quem acolhe o menor, acolhe a mim”
esse era o título da Campanha da Fraternidade de 1987. Dentro das
possibilidades discutidas estavam a realidade brasileira, e que em um simples
circular pelas ruas era possível perceber a “degradação” do futuro do país; a CPI
do Menor, 1975, foi utilizada como fonte para discussão, expondo os números
de crianças nas ruas (13.554.508).

Assim, da Conferência, das discussões, saiu a ideia de que os/as


menores eram crianças e adolescentes empobrecidos, marginalizados, oprimidos
e não assistidos pelo poder público e que, por falta de assistência, “desenvolviam
as mais diversas atividades para sua sobrevivência e a de suas famílias, como,
por exemplo: o bóia-fria, o vendedor ambulante, o picolezeiro, o engraxate, o
reparador de carros, o limpador de pára-brisas, o vendedor de santinho, o catador
de papelão, o perambulante, o pedinte, o drogadito, o que faz pequenos furtos e
o que vive na rua”. Ficando definida como tema da Campanha da Fraternidade
de 1987. A campanha queria problematizar a maneira como a sociedade olhava
para os/as menores, queria tirar o estigma do/a menor, afinal, não se podia mais
aceitar o problema do/a menor como sendo de segurança, com repostas
policialescas e repressivas. O/a menor deveria deixar de ser visto como ameaça
à tranquilidade social, passando a ser tratado como pessoa, como cidadã. Diante
dessa afirmação, surgem as indagações: Qual era o objetivo principal da
Campanha da Fraternidade de 1987? E quais foram os seus desdobramentos?

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O texto

A Campanha da Fraternidade de 1987, intitulada quem acolhe o menor,


a mim acolhe, nasceu na seguinte conjuntura. Aqui seria bem possível apontar
uma série de fatores, no entanto, dois serão destacados, mas, ambos estão
relacionados diretamente à Teologia da Libertação. O primeiro está relacionado
com a tríade ver-julgar-agir, nova fundamentação da Igreja Católica que,
799
pautada nas Pastorais e nas Comunidades de Base, consistia em observar
criticamente os problemas do cotidiano, analisar e, por fim, agir com o objetivo
de promover as mudanças necessárias. O segundo, centra-se na premissa de que
a Igreja seguia as diretrizes da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), que nesse período tinha como presidente um adepto da teologia da
libertação, Dom Luciano Mendes de Almeida. Foi assim que os/as menores
tornaram-se tema para a Campanha da Fraternidade de 1987: uma junção entre
as novas ações e representações da Igreja Católica com a realidade nacional de
milhares de crianças pelas ruas de nosso país.

A Campanha da Fraternidade de 1987, fez com que a temática do menor


torna-se mais ampla. Afinal, a temática não era novidade no período, bastava
ligar a televisão, ouvir o noticiário, ler o jornal, ou então, circular pelas ruas.
Quero com isso dizer que a referida campanha nasceu em um contexto em que
era constante a temática do menor nos debates políticos, na televisão, nos filmes
e nas músicas, no entanto, existe uma parcela populacional que somente a
Campanha da Fraternidade, por meio das comunidades e grupos de famílias,
conseguiu alcançar. Dentre os vários subsídios2 criados para a Campanha da
Fraternidade, aqui foi utilizado como fonte o texto-base e o livro de encontro
com as famílias.

O primeiro, um livro com 109 páginas, elaborado pela CNBB e


intitulado como texto-base. Na capa com cores quentes, em um degrade do

2
Os subsídios são: texto-base, manual, material litúrgico, missa da CF-87, vigília
eucarística, celebração da misericórdia, via sacra CF-87, encontro com jovens, cartaz,
cartão postal, spot para rádio e para tv, encontro com crianças, encontro com famílias,
envelopes da CF-87.

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laranja ao amarelo, no centro a imagem, a fotografia de um menino, descrita há
poucas linhas atrás. Na contracapa estava a Oração da Campanha da
Fraternidade que trazia palavras-chave como: menores marginalizados, justiça,
acolhida e libertação. Como o próprio nome diz, o texto-base é o documento
principal, ele fundamenta toda Campanha. Entre suas páginas, dentro das
possibilidades, era discutida a realidade brasileira, ali foram apresentados fatos
que demonstravam a ‘degradação’ do futuro do país: os menores e suas
condições precárias de vida. A CPI do Menor, ocorrida em 1975, foi utilizada 800
como fonte para discussão, expondo os números de crianças nas ruas,
consideradas marginalizadas ou em vias de o ser.

Primeiro, é preciso evidenciar que um livro, intitulado como texto-base,


foi elaborado pela CNBB. Como o próprio nome diz, o texto-base é o documento
principal, ele fundamentou toda Campanha. Entre suas páginas, dentro das
possibilidades, era discutida a realidade brasileira, ali foram apresentados fatos
que demonstravam a ‘degradação’ do futuro do país: os menores e suas
condições precárias de vida. O livro é dividido em cinco partes: introdução geral;
Desafios da realidade do menor, primeira parte; Quem acolhe o menor, a mim
acolhe, segunda parte; Caminhos de libertação do menor, terceira parte e por
último a conclusão.

Depois da Conferência Nacional dos Bispos, a temática dos menores


alcançou as casas de pessoas, pois era nas casas das famílias que aconteciam as
reuniões da Campanha da Fraternidade. Aqui apresento o livro de encontro com
as famílias, um livreto com 52 páginas, elaborado pela Diocese de Tubarão.

A capa, diferente do livro do texto-base, utiliza um desenho, no entanto,


o menor continua sendo o destaque. Uma criança na mesma posição da
fotografia, no entanto, sentado em cima de uma cruz. A cor predominante na
capa é o amarelo, e lá no horizonte o sol vai nascendo, anunciando um novo dia,
talvez novas possibilidades para essa criança marginalizada.

O livro foi dividido em cinco partes principais: as orações iniciais, a


via-sacra, as orações finais, os cânticos e as propostas de ações concretas. A
sugestão era a realização de cinco encontros, em cada um deveria haver a leitura

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da via-sacra, a mesma seria repetida em todos os encontros, acompanhada de
uma oração inicial e final, diferentes para cada dia. Os cânticos aconteciam no
decorrer da celebração, sendo que o hino da libertação dos menores era indicado,
pelo livreto, em todos os encontros.

Na contracapa está a oração da Campanha da Fraternidade de 1987, esta


pedia proteção de Deus para com os menores, e mais ainda, pedia a sensibilidade
das ‘pessoas grandes’ para com os 36 milhões de menores empobrecidos e
marginalizados. Pedia, ainda, que as crianças pudessem nas casas ou nas praças 801
brincar em paz.

Na segunda página existem recomendações práticas: a preparação dos


animadores pela paróquia, dicas para providenciar o material de cada encontro
com antecedência, orientação para diálogos após cada estação da via-sacra. Na
página seguinte há uma apresentação do Bispo Diocesano, ali naquele espaço o
bispo propõe um olhar atento para o/a menor em sua diocese, em sua
comunidade: “será que todos os menores têm escola? Têm amor em casa ou nem
casa têm? Haverá menores trabalhando em trabalhos de gente grande? Têm
menores nas ruas? Estão aprendendo ou se obrigando a tomar mais caminhos?”
(CF, 1987, p 3)

Foram com as indagações do bispo, apresentadas no parágrafo anterior


que as pessoas começaram a caminhada da Campanha da Fraternidade de 1987,
tendo os/as menores como ponto crucial de discussão e problematização. Faz-se
importante mencionar que esse pequeno livreto foi elaborado em cada diocese,
e que por conta disso trata de realidades específicas daquele lugar, embora em
alguns momentos dialogue com problemas que acontecem em várias partes do
país.

Chega-se assim a via-sacra, material de análise para se pensar os


estereótipos de gênero e sua possível desconstrução. A via-sacra é uma espécie
de oração em grupo preparatória para a celebração da Páscoa, é dividida em treze
estações, cada qual representando uma fase do calvário sofrido por Jesus Cristo.
No entanto, nessa campanha o personagem de Cristo foi representado pelo/a
menor, demostrando as diversas mazelas sociais ao que o/a menor estava

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exposto. Assim, cada Estação da Via-Sacra foi adaptada com a temática do
menor3

Cabe lembrar, como já mencionado anteriormente, que o livrinho da


campanha buscava apresentar a realidade dos/as menores que moravam na
região compreendida pela Diocese de Tubarão, Santa Catarina. Nesse sentido,
foram identificados os menores trabalhadores, os menores em situação de rua,
os menores infratores e as menores exploradas sexualmente. Na segunda estação
apresenta-se a informação de que há 36 milhões de menores no Brasil, sendo que 802
200 mil na Diocese de Tubarão, deste a maioria era menores carentes, aqui ao
que se pode interpretar, são crianças que ainda se mantém no grupo familiar,
mesmo que pobre, uma grande parte dessa fatia são os menores abandonados, ou
seja, crianças que não vivem mais com suas famílias, mas que passaram a viver
nas ruas das cidades.

A maioria do texto não apresenta flexões de gênero, utilizam-se as


expressões menor e crianças, ou seja, em um contexto amplo, abrangendo
meninos e meninas. No entanto, em alguns momentos acontece o emprego de
um ou outro gênero, principalmente quando relacionado às atividades realizadas
por um menino e uma menina. Assim, os estereótipos foram construídos
apontando diferenças para cada um dos gêneros, nesse caso, menino e menina.

Segundo o material da Campanha, embora a rua ‘acolhesse’ aos


meninos e as meninas da mesma maneira, pois, ambos faziam da rua seu ‘lar’,
os meninos e meninas vivenciavam situações distintas, como apresenta o
fragmento: “O menino crescido é chamado de ladrão, pivete, trombadinha. A
menina é chamada à-toa. O corpo da menina-moça é contratado como objeto de

3
I Estação: Na criança, Jesus é condenado à morte, antes do nascimento; II Estação: No menor
Jesus recebe a cruz; III Estação: A criança pequena cai pela primeira vez, grita e suplica amor;
VI Estação: O menor encontra sua mãe: na rua; V Estação: O irmão ajuda-o a carregar a cruz.
VI Estação: Pessoas de boa vontade reconhecem Jesus no rosto do menor; VII Estação: O menor,
agora, adolescente, cai pela segunda vez. Grita mais forte. Suplica amor. VIII Estação: O menor
faz sua denuncia profética; IX Estação: O menor, agora jovem, cai pela terceira vez. Mata ou
morre. X Estação: No jovem, Jesus é despojado das vestes da esperança; XI Estação: No menor,
Jesus é pregado na cruz; XII Estação: No jovem Jesus dá um grande grito e morre; XIII Estação:
A mãe rua recebe em seus braços o corpo do menor sofrido; XIV Estação: Os preconceitos dos
grandes sepultam o menor; XV Estação: O menor não é problema, o menor é solução. As pessoas
de boa vontade ressuscitam Jesus no menor.

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prazer.” (CF, 1987, p 22). Nesse sentido pode-se abordar a problemática do ciclo
da marginalização.

803

Ciclo de Marginalização do Menor (Fonte: Livro Campanha da Fraternidade, p 15)

No contexto da década de 1980 foi muito difundido o Ciclo da


Marginalização. Várias instituições da época, inclusive a igreja, acreditavam em
um ciclo vicioso pelo qual os menores passavam, esse ciclo era propagado com
algo que possivelmente poderia ser interrompido, caso a criança desse o primeiro
passo. De acordo com o ciclo acima, pode-se interpretar que meninos e meninas,
os chamados menores, vivenciavam experiências parecidas, de situação de
pobreza, fome, violência, no entanto, essas experiências iam se distanciando a
medida que fossem avançando no ciclo. Era como afirmar que todo o menino
sujo que estivesse na rua fosse marginal, trombadinha, ou então, em vias de ser.
Da mesma maneira com a menina, qualquer menina em situação de rua era
considerada ‘prostituta’ ou em vias de ser.

Nesse momento, é importante que se toque num ponto ainda não


abordado: a questão das relações de gênero no âmbito do universo
infantojuvenil. Ao pensar gênero na dinâmica social, constata-se que a

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construção de masculinidades e feminilidades acontece em meio a processos
atravessados por símbolos, discursos, práticas, representações sociais nas quais
as identificações vão se (re)articulando e ocupando diferentes posições.

As meninas não eram relacionadas ao ato infracional, afinal, como


demonstra o livreto da campanha, o perfil do menor infrator é masculino. Assim,
as meninas apareciam vinculadas a temática da ‘prostituição’. Esses eram o
desfecho final para um e para outro gênero, o último estágio do ciclo
marginalizante. 804

Cabe, ainda ressaltar que o livreto, em um contexto geral, visava


apresentar os caminhos da libertação do menor, apresentando metas e ações
transformadoras em favor do menor. Dois pontos são apresentados como
cruciais. Primeiro a necessidade de romper com o ciclo de marginalização, e
isso, segundo o texto, não deveria ser aplicado apenas ao menor, mas ao seu
contexto, a família em que vivia. Esse fato, do menor e suas famílias, foi
evidenciado, pois somente assim poderia se pensar no rompimento do ciclo de
marginalização. Várias foram as ações concretas apresentadas como
possibilidade para equacionar esse problema: a Pastoral do Menor, a Pastoral da
Criança, os educadores de rua, instalação de cozinhas e creches comunitárias.

A conclusão do livro era curta, duas páginas, que afirmava: É preciso


trabalhar com o menor, mas não apenas, pois o menor é consequência, é preciso
trabalhar também as causas, e as causas eram sociais.

Essa discussão presente no livreto da Campanha da Fraternidade se


atrelava à discussão nacional sobre os meninos e meninas de rua, deste período.
Segundo Irene Rizzini, “diversos estudos foram produzidos na segunda metade
da década de 80, tentando estabelecer um perfil dos chamados meninos de rua”
(1995, p. 26). Isto tudo permite inferir que, aos poucos, uma nova visão sobre a
criança e o adolescente, que sofria mudanças em âmbito nacional, chegava a
Diocese de Tubarão.

Assim, apresento a parte final do livro, depois da finalização dos


encontros em família, sugeria a organização de uma última reunião, em um
sentido mais amplo, na maioria dos casos, paroquial. Nesse dia a Igreja deveria

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pensar sobre as propostas de ações concretas para a libertação do menor. No
livro foram apresentadas nove: Organizar a Pastoral do Menor; Criar a Pastoral
da Criança; Organização comunitária das famílias pobres; incentivar associações
de menores trabalhadores; ações junto aos sindicatos; acompanhar de maneira
direta a constituição; realizar um júri simulado; criar um centro de educação
comunitário; criar a catequese em situações especiais. Assim, cada paróquia
deveria pensar na articulação dessas ações em prol da libertação do menor, e
coloca-la em prática. E assim, visualiza-se os desdobramentos: A Pastoral do 805
Menor, o artigo 227 da Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do
Adolescente.

Para finalizar, cabe ressaltar que os movimentos foram constituídos por


pessoas e, embora elas não apareçam aqui de maneira direta, a Campanha da
Fraternidade era idealizada e implantada por pessoas. Gente de carne, osso e
amor ao próximo. Foram essas pessoas que no interior da instituição religiosa
organizaram os eventos, discutiram, refletiram e foram às ruas, formaram
conexões. Redes que resultaram no menor como tema da Campanha da
Fraternidade nacional, e como consequências na criação das Pastorais do Menor,
na implantação do artigo 227 da Constituição Federal, em manifestações
públicas, em abaixo-assinado e na construção do Estatuto da Criança e do
Adolescente.

REFERÊNCIAS

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no Brasil hoje. Desafio para o terceiro milênio. Rio de Janeiro: Editora da
Universidade de Santa Ursula, 1993; p. 103–111.

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e perspectivas. CASTRO, Lúcia Rabello (Org.). Crianças e Jovens na construção
da cultura. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2001.

AREND, Silvia Maria Fávero. Histórias de abandono: infância e justiça no


Brasil (década de 1930). Florianópolis: Editora Mulheres, 2011.

ISBN: 978-85-65957-07-6
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BORAN, Jorge, Senso Critico e o Método. Ver Julgar Agir, Para Pequenos
Grupos De Base, São Paulo, Edições Loyola, 1981.

Campanha da Fraternidade, texto-base, CNBB, Brasília: Editora Sig, 1987.

Campanha da Fraternidade Quem acolhe o menor, a mim acolhe. CNBB,


Diocese de Tubarão: Gráfica Dehon, 1987.

DUSSEL, Enrique. De Medellín a Puebla: Uma década de sangue e esperança.


São Paulo: Loyola, vol. 2, 1982.
806
FELIPE, Jane. Infância, gênero e sexualidade. Educação e Realidade. Porto
Alegre: FACED/UFRGS, v.25, n. 1, jan./jun. 2000a, p. 115-131.

GUTIERREZ, Gustavo. Teología de la liberación-perspectivas. Lima: Centro


de Estudios y Publicaciones, 1971.

JEREMIAS, Ednom Luiz. Lutas, Utopias e Resistências: memória histórica da


Pastoral da Juventude na região sul de Santa Catarina. Monografia
(Especialização) em História. Criciúma: Universidade do Extremo Sul de Santa
Catarina (UNESC), 2001.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos


históricos. Rio de Janeiro: Contraponto. Ed. PUC-Rio, 2006.

MORELLI, Ailton José. A criança, o menor e a lei: uma discussão em torno do


atendimento infantil e da noção de inimputabilidade. Dissertação de Mestrado
em História, Assis: UNESP, 1996.

PASSETI, Edson. O que é o menor. Editora Brasiliense, 1985.

PINHEIRO, Ângela. Criança e adolescente no Brasil: porque o abismo entre a


lei e a realidade. Fortaleza: Editora Universidade Federal do Ceará, 2005.

SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas


e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-80. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1988.

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Atas do II Encontro Nacional do GT Estudos de Gênero
Rio de Janeiro, 27 e 28 de outubro de 2016.

FUTUROS HOMENS DA PÁTRIA: MASCULINIDADES NA CASA DO


PEQUENO JORNALEIRO (CURITIBA, 1957-1962)

Nicolle Taner de Lima*

Mensageiros, o jornal vamos levando,


Para o povo as notícias receber,
É por nós que a mensagem divulgando:
Que tristeza ou alegria possam ter. 807

Jornaleiros! Pois soldados nós devemos,


Ter por lema: “ó dever e a retidão!”
A nossa fôrça: é a grande fé que temos;
E a esperança: é Deus no coração!

De caminhos, mais diversos nós viemos,


Outros tantos, vamos nós também seguir;
Na crença de que um dia então seremos,
Também, homens de valor e de porvir...

Jornaleiros! Pois soldados...


Nossa “CASA” proteção que não tivemos,
O colega – o irmão que então quisémos,
No trabalho – a nossa corôa de glória,
Nosso esforço, e o prêmio da vitória! 1

O poema acima é o Hino do Pequeno Jornaleiro. Foi escrito em 1959,


pela professora Ivete Amaral Lima dos Santos, que foi docente na Casa do
Pequeno Jornaleiro. A instituição, sediada em Curitiba, existiu entre os anos de
1942 e 2002.

Idealizada pela esposa do interventor Manoel Ribas, D. Anita Ribas.


Criada em 1943, segundo seu estatuto, a amparar, educar e encaminhar os
menores vendedores de jornais, prestando-lhe assistência material, moral e
intelectual. (PEREIRA, 2009, p 8). A partir da moralização pelo trabalho, uma
estratégia pedagógica no combate à delinquência infanto-juvenil, através da

*
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade do Estado de Santa
Catarina, na linha de pesquisa intitulada Culturas Políticas e Sociabilidades. Orientadora: Prof.
Dra. Silvia Maria Fávero Arend. Bolsista CAPES. email para contato: nicolletaner@gmail.com
1
CASA DO PEQUENO JORNALEIRO. Relatório anual 1959. Curitiba, 1959. p. 70
e 71. Sem grifo no original.

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religião, educação, saúde e disciplina, pretendia organizar meninos que já
exerciam a função de vendedores de jornais.

A Casa era mantida através de donativos (dinheiro e viveres), auxílios


e subvenções do Estado (no âmbito federal, estadual e municipal), aluguel de um
prédio denominado Anita Ribas que possuía duas lojas e oito salas, produzindo
parte substancial da renda da Casa, e pelas chamadas “mensalidades de sócios”
– uma porcentagem sobre a venda de jornais e revistas. E aqui temos uma das
peculiaridades da Casa em relação a outras instituições: parte das vendas dos 808
jornais pertencia aos pequenos jornaleiros.
Dos lucros auferidos pelos Pequenos Jornaleiros, são
retirados de cada um, a importancia de Cr$ 100,00,
mensalmente e entregues aos seus Paes ou responsáveis, em
quinzenas de Cr$ 50,00, como Assistencia aos mesmos e o
restante, recolhidos á Caixa Economica Federal vencendo
juros e obedecendo condição de não poderem ser retirados,
nem mesmo pela Instituição, e nem pelos seus pais ou tutores
e sim, somente pelos próprios menores, depois de atingirem
maioridade 2

Esse artigo é o resultado de uma investigação que procurou


compreender de que modo o projeto da Casa, que se sustentava através da
disciplina do trabalho, a religião e a educação, fomentava certo tipo de
masculinidade. As fontes que utilizei para tal foram os relatórios anuais que a
instituição enviava para o Ministério da Justiça e Negócio Interior e para
religiosos, juristas, políticos, empresários e profissionais da imprensa entre os
anos de 1957 e 1962.

Esses relatórios são pequenas brochuras, que variam entre 60 e 100


páginas, onde são descritas as atividades realizadas durante o ano, festividades
como batismos, crismas, Natal, bem como a relação de jornaleiros e ex-
jornaleiros e suas respectivas importâncias na Caixa Econômica Federal, além
da listagem de funcionários por departamento.

2
CASA DO PEQUENO JORNALEIRO. Relatório anual 1953. Curitiba, 1953. p. 51.

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A Casa contava com três departamentos para “proteger e amparar sob
tôdas as fórmas, os menores pobres que se destinam à venda de jornais e
revistas”3: o religioso, o de saúde e o de educação.

O departamento religioso é sempre o primeiro a ser descrito nos


relatórios selecionados para a pesquisa. Oferecido em parceria com a Igreja
Católica através da Arquidiocese de Curitiba, cuidava de ensinar os princípios
católicos para as crianças. Eram celebradas missas com frequência e
“Solenidades de Batismo, Primeira Comunhão e Comunhão Geral” 4 – era 809
comum que, por ocasião de celebrações de primeira comunhão principalmente,
fossem convidadas autoridades através de um pequeno convite assinado pelo
próprio interno. Nos prontuários também é frequente encontrar felicitações
enviadas em pequenos cartões pelo Juiz de Menores ou Diretor do Instituto de
Assistência ao Menor.

Os ensinamentos religiosos são enfatizados nos relatórios da Capejo


como fundamentais, porque além do corpo, “há de se cuidar, e muito dos
mistérios espirituais”,5 além de que se considerava o catolicismo como de suma
importância para se manter a disciplina na Casa, como afirma o diretor da Casa
em 1962, pedindo para que a nova direção “não deixe de ministrar a Religião
Católica aos Pequenos Jornaleiros, cujos ensinamentos muito influem na vida
dos mesmos, uma vez que, sem ela, não haverá temôr de Deus e sem êsse temôr
não haverá humanidade nem obediência”6

O departamento de saúde, por sua vez, envolvia o departamento médico


e dentário, cuidava da saúde de cada criança, tinha como profissionais a Médica
Aglaé Taborda Dutra e como Cirurgiã-dentista, Glicinia de França Borges, que
são mencionadas entre os anos de 1956 e 1962 nos relatórios, bem como os
serviços e casos por elas atendidos, como números de casos que vão de desinteria
à sarampo, de gripe à internamentos na Santa Casa por anemia.

3
CASA DO PEQUENO JORNALEIRO. Relatório anual 1961. Curitiba, 1961.
4
CASA DO PEQUENO JORNALEIRO. Relatório anual 1962. Curitiba, 1962. P 48.
5
CASA DO PEQUENO JORNALEIRO. Relatório anual 1962. Curitiba, 1962 P 40
6
CASA DO PEQUENO JORNALEIRO. Relatório anual 1962. Curitiba, 1962. P 48

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O departamento de educação, que oferecia o ensino primário aos
menores, cujo objetivo era, além de alfabetizar as crianças, ensinar os valores
patrióticos aos pequenos jornaleiros. Foi criado um grupo escolar dentro da
instituição, denominado Escola Manoel Ribas, que contava com uma média de
6 a 10 professoras durante o período que esta pesquisa abrange.

Os seis relatórios são muito parecidos entre si. Algumas questões


podem ser identificadas como recorrentes e uma delas em especial é a que me
atenho nesse artigo, trechos, termos e representações que se pode entender como 810
um ideário de como esses meninos deveriam ser, como seria o modelo a ser
seguido quando esses meninos se tornassem homens. Identifiquei primeiramente
alguns desses termos aos quais mais tarde farei referência e a partir disso tentei
compreender de que modo o projeto educacional da instituição se relacionava ou
não com os ideais de masculinidade no Brasil da metade do século XX que,
segundo a historiadora Maria Izilda Santos de Matos (2001), projetava homens
que deveriam ser fortes, capazes, envolvidos com o trabalho, provedores...

A emergência dos estudos de gênero nos permitiu considerá-lo como


uma categoria relacional, bem como problematizar identidades tidas como
únicas, a-históricas e essencialistas. (MATOS, 2001, p 51) A nós, historiadoras
e historiadores, cabe desnaturalizar o conceito de sujeito histórico tido como
neutro e universal: o sujeito é pertencente a um contexto, a uma etnia/raça, classe
social, possui determinada orientação sexual, é homem, mulher, menino ou
menina, cis, trans... – não os homens, que a História acostumou a ter como
referência de sujeito e agente da História, na História. Como nos diz Maria Izilda
Santos de Matos: “Ao historiador cabe tanto a tarefa de desconstruir no tempo
as diferenças quanto desnaturalizá-las”. (2001,p 47), É necessário:
desvendar o estabelecimento das hegemonias discutindo com
rigor as questões de subordinação/dominação; adotar uma
perspectiva de gênero − relacional, posicional e situacional −,
lembrando que gênero não se refere unicamente a homens e
mulheres e que as associações homem-masculino e mulher-
feminino não são óbvias, devendo-se considerar as
percepções sobre masculino e feminino como dependentes e
constitutivas às relações culturais, procurando não
essencializar sentimentos, posturas e modos de ser e viver de
ambos os sexos. (2001, p 48)

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O sociólogo Pedro Paulo Oliveira define as masculinidades como "um
lugar simbólico/imaginário de sentido estruturante nos processos de subjetivação
[...] que aponta para uma ordem de comportamentos socialmente sancionados"
(2004, p. 13). Ao nascermos, nos são ensinados determinados padrões de
comportamento, modelos de sujeito, performances corporais, a fim de que
subjetivemos tais padrões e os incorporemos em nossas práticas.
(ALBUQUERQUE JR, 2015, p .434)

Entende-se, portanto, a masculinidade como uma construção 811


sóciohistórica, ou seja, além de não ser natural, precisa ser reforçada, reiterada a
todo tempo. Como categoria de análise, é preciso contextualizá-la
temporalmente e espacialmente, tendo em mente que essa também não é única:
Assim, os significados de masculinidade variam de cultura a
cultura, variam em diferentes períodos históricos, variam
entre homens em meio a uma só cultura e variam no curso de
uma vida. Isto significa que não podemos falar de
masculinidade como se fosse uma essência constante e
universal, mas sim como um conjunto de significados e
comportamentos fluidos e em constante mudança. Neste
sentido, devemos falar de masculinidades, reconhecendo as
diferentes definições de hombridade que construímos. Ao
usar o termo no plural, nós reconhecemos que masculinidade
significa diferentes coisas para diferentes grupos de homens
em diferentes momentos. (KIMMEL.1998, p 106)

Um trecho do verbete “masculinidade”, escrito pelo historiador Durval Muniz


de Albuquerque Jr, (2015) nos auxilia a compreender essa questão:
A masculinidade, portanto, não é estatística, nem atemporal,
é histórica; não é uma manifestação da natureza ou uma
essência psicológica interior, é um constructo social e
simbólico; não é uma mera ascensão à consciência de uma
diferença de natureza biológica, mas é uma criação cultural a
partir da observação dessa diferença (...)

É interessante fazer um adendo. Trato aqui de meninos, de crianças –


pertencentes à faixa etária que hoje chamamos “adolescência”. Nos últimos
anos, historiadoras/es, educadoras/es, sociólogas/os, antropólogas/os, tentam
reiterar as concepções de infância, desnaturalizando-a e desvinculando-a de um
viés puramente biológico, mas entendendo-a como uma variável que deve ser
considerada em sentido pleno (QVORTRUP, 1994) e as crianças como atores

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em sentido pleno. (SIROTA, 2001) – mas, durante muito tempo, as crianças
foram entendidas como passivas, compreendidas como um “vir a ser”, como um
ser não-formado, mas em vias de formação.

É o que se pode notar nos relatórios da Casa do Pequeno Jornaleiro. A


condição de “abandonados” ou “menos favorecidos pela sorte”7 é descrita, mas
muito mais ressaltados são os termos que relacionam o potencial desses meninos
como futuros homens, futuros cidadãos, 8homens de amanhã. 9
Sempre como
alguém ainda será, que ainda não é. 812

Lado a lado com o vir a ser estavam o patriotismo e o nacionalismo que


esses futuros cidadãos seriam/teriam. Para ser um homem de bem, portanto,
através do aprendizado de datas nacionais, símbolos pátrios, hino e do ensino da
História a partir de homens entendidos como “heróis nacionais”, pretendia “(...)
com o maior patriotismo, com preleções alusivas, despertando o sentimento de
amor à Pátria”.10

Não são poucas as referências a atitudes e atividades que poderiam ser


entendidas como referentes a um patriotismo exacerbado. Notei que termos
como “futuros cidadãos da pátria comum”, “fortes e úteis à Pátria”, são bastante
recorrentes, mesmo o próprio hino, citado anteriormente, foi interpretado como
sendo de “música harmoniósa e letra patriótica e sugestiva, teve já, à primeira
vista, aceitação por parte dos Diretores e principalmente, dos Pequenos
Jornaleiros.”11 Gostassem ou não, a partir da disseminação do hino, os meninos
o aprenderam e tiveram de cantá-lo em diversas comemorações, como natais e
festividades pascais.

Na análise do hino, também podemos notar o uso do termo soldado,


outra terminologia bastante comum nos relatórios: no relatório de 1959, nos diz
que o Diretor da Casa se dedicava a “uma legitima cruzada cristã (...)
comandando os seus bravos soldados do Bem.” 12
A força, a agressividade que

7
CASA DO PEQUENO JORNALEIRO. Relatório anual 1957. Curitiba, 1957, p. 90.
8
CASA DO PEQUENO JORNALEIRO. Relatório anual 1957. Curitiba, 1957, p 59.
9
CASA DO PEQUENO JORNALEIRO. Relatório anual 1959 Curitiba 1959, p 28.
10
CASA DO PEQUENO JORNALEIRO. Relatório anual 1961. Curitiba 1961. p 50.
11
CASA DO PEQUENO JORNALEIRO. Relatório anual 1959. Curitiba 1959, p70.
12
CASA DO PEQUENO JORNALEIRO. Relatório anual 1959. Curitiba 1959, p 70.

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o cenário bélico proporciona, estiveram e muitas vezes ainda estão, associados
ao masculino, à virilidade13 – bem como, a racionalidade, coragem,
insensibilidade, inteligência, poder – e, no senso comum e práticas cotidianas,
sempre em oposição ao feminino (irracionalidade, covardia, sensibilidade,
irracionalidade, sujeição):
A capacidade guerreira é uma das principais características
históricas da percepção sexual dimórfica do corpo no mundo
ocidental: ser homem ou ser mulher se inscreve de forma
excludente na sua presença ou ausência (MOREIRA, 2011, p
4) 813

É importante ressaltar que, a diretoria da instituição ficou a cargo do


Coronel Alfredo Ferreira da Costa durante 19 anos – isso também poderia
explicar o uso de termos como soldados ou heróis. Também arrisco a atribuir à
presença do Coronel, o uso intensivo da disciplina e hierarquia como elemento
de reeducação, entretanto, o uso da hierarquia e disciplina para docilização dos
corpos era bastante comum em instituições disciplinares e correcionais, e
remonta de longa data.

A disciplina seria uma forma de controle social, e um meio de coerção


e formação de corpos dóceis, para Foucault. Os corpos dóceis aos quais o autor
se refere são corpos passíveis de docilidade, de um esquema de coerção sem
folga, para moldá-lo e controlá-lo. A disciplina torna-se necessária para tal
procedimento, visando a sujeição, mas acima de tudo, a formação de uma relação
que torne o corpo obediente e útil ao mesmo tempo, (FOUCAULT, 2009) ou
como os relatórios salientam: futuros homens da pátria.

Uma chave para se pensar a disciplinarização, docilização e


principalmente, a masculinidade, é a questão do trabalho. Se as décadas de 1940,
50 e 60 entendiam a criança como o futuro da nação, entendiam também que
havia uma relação entre homem e trabalho: havia a revalorização do homem
brasileiro e do trabalho, sendo o trabalho como direito e dever, não apenas como
um modo de sobrevivência, mas como um meio de servir à pátria, e a vadiagem,

13
Segundo Bourdieu, a virilidade seria uma “noção relacional, construída diante de
outros homens, para outros homens e contra as mulheres”. (VOKS, 2015, p 15)

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como ameaça constante à ordem pública. (LIMA, 2013, p 32) Para Maria Izilda
Santos de Matos:
(...) o trabalho aparecia como fonte básica de auto-realização.
Um espaço de criatividade e prazer, veículo de crescimento
pessoal, com a função de nomear o mundo subjetivo dos
homens, valorizando-os por sua capacidade de ação,
praticidade e objetividade, sucesso e iniciativa, modelando-o
com as expressões daquele que tem em si atributos de poder
viril. O sucesso profissional servia como medida no
julgamento de si e dos outros, vinculado à competitividade e
à própria ética do provedor − o homem capaz de sustentar uma
mulher e os filhos. (2001, 51) 814

Acreditava-se que o trabalho e a disciplina (horários de levantar-se,


realizar suas refeições, de estudar, de dormir, modos de se vestir – farda- e de
se portar), modelariam o caráter desses meninos “menos favorecidos da sorte”14,
esses “meninos desajustados,” 15 tornando-os homens úteis à sociedade: já que a
instituição entendia que “o Homem se forma em criança”,16 fariam desse menino
uma “criança forjada no trabalho”. 17

Uma das primeiras instituições de socialização é a família, é dentro dela


e em suas relações que aprendemos diversos códigos de sociabilidade:
Ao nascer, qualquer ser humano é levado a aprender, a
subjetivar, a incorporar essas distinções estabelecidas social e
culturalmente a partir do que se nomeou de sexos, a
reproduzir a ordem social sexuada, absorvendo a partir de
várias pedagogias presentes no social, através do trabalho de
várias instituições sociais, sendo a principal delas a família,
os modelos de sujeito, os modos de comportamento, as
performances corporais, gestuais, simbólicas, a fazer rostos
que são apresentados como normais, naturais, específicos,
próprios de homens e de mulheres, de seres masculinos e
femininos. (ALBUQUERQUE JR, 2015, p 436)

Entretanto, o grupo de meninos pequenos jornaleiros eram


considerados desamparados e abandonados, não possuíam família, ou se
possuíam, estas eram muito pobres ou compreendidas como “desestruturadas”,
devido a desavenças e “desajustamento do casal”.18 Se não havia essa figura de

14
CASA DO PEQUENO JORNALEIRO. Relatório anual 1957. Curitiba, 1957, p90
15
CASA DO PEQUENO JORNALEIRO. Relatório anual 1958. Curitiba 1958.
16
CASA DO PEQUENO JORNALEIRO. Relatório anual 1958. Curitiba 1958, p 17.
17
CASA DO PEQUENO JORNALEIRO. Relatório anual 1961. Curitiba 1961.p 51.
18
CASA DO PEQUENO JORNALEIRO. Relatório anual 1959. Curitiba 1959. P 35.

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referência, essa família com a qual “determinados modos de pensar, agir e ser
são ensinados e reconhecidos como legítimos,” (CECHIN, SILVA, 2012) a
instituição era entendida como esse lugar de sociabilidade e educação de códigos
morais, e nisso, ressalta-se a figura do Coronel Alfredo Costa, ou Coronel
Costinha – como as crianças o chamavam. 19

São diversas as saudações na sessão Correspondência Honrosa que


relatam “(...) as mãos firmes e honestas de vossa senhoria a sua direção”. 20
Se
se entendia que a figura paterna deveria “(...) educar os filhos pelo exemplo, pela 815
autodisciplina, pela atitude correta, pela união de sentimentos, pela coordenação
de autoridade, sem excessos, nem deficiências” e que a paternidade deveria ser
“inspirada na bondade, para evitar os prejudiciais efeitos da tirania, do
despotismo que conduzem à perda da autoridade”, 21
é compreensível que seja
mencionado como herói, homem de bem, e que sua atuação tenha sido tida como
“enérgica, mas paternal” 22.

Uma interpretação pro educar pelo exemplo pode vir da observação de


que se premiava bons jornaleiros: nos relatórios é comum o uso de uma página
para exaltar o “heróis do ano” – termo usado para exaltar os “bons jornaleiros”
– meninos disciplinados, que já agiam como fiscais dos menores e/ou já estavam
encaminhados para o mercado de trabalho, que contavam com uma boa quantia
em dinheiro na sua conta poupança. Quatro dos cinco relatórios contam com
fotos desses meninos sendo premiados pelas primeiras-damas da época ou uma
foto do garoto, seguido de uma pequena descrição de sua história e de seus bons
serviços prestados à Casa.

Para o historiador Welson Luis Pereira, “(...) os internos eram divididos


por turmas – e chefiados por fiscais. (...) Os mais antigos e merecedores eram
promovidos em fiscais, cuja função era vigiar os pequenos jornaleiros mais
novos.” (PEREIRA, 2009, p 89). Segundo o autor, a Casa se valia de
prorrogativa de punir ou premiar seus jornaleiros:

19
Em alguns recortes de jornal, bem como relatórios, além de um documento de 2004
escrito por um ex-pequeno jornaleiro, esse apelido é mencionado.
20
CASA DO PEQUENO JORNALEIRO. Relatório anual 1959. Curitiba, 1959. P 69.
21
CASA DO PEQUENO JORNALEIRO. Relatório anual 1959. Curitiba, 1959, p 35.
22
CASA DO PEQUENO JORNALEIRO. Relatório anual 1961. Curitiba 1961. P 19.

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Punição, neste sentido, poderia qualificar o comportamento e
o desempenho dos indivíduos a partir de dois valores opostos,
o bem e o mal, ou seja, o aparelho disciplinar, através de
castigos e recompensas, estabelecia classificações entre os
bons e maus indivíduos. A disciplina, portanto,
recompensaria exclusivamente pelo jogo das promoções que
permitiam hierarquias e lugares, e punia com mecanismos que
possibilitavam rebaixar e degradar. A penalidade tinha a
função de normalizar, porque possibilitava comparar,
diferenciar e relacionar desempenhos e comportamentos entre
os indivíduos, além de hierarquizar, homogeneizar e excluir
estas pessoas enquadradas no espaço disciplinar. (2009, p
100) 816

Entretanto, em sua dissertação, defende que os “bons” jornaleiros


representavam uma pequena parcela do número total de meninos, que poderiam
ter maior visibilidade nos relatórios e que estes poderiam ser nomeados chefes
de turma (2009, p 89) – esta promoção poderia ter grande importância e
significado no cotidiano dos internos: dentro de um contexto onde se promove o
respeito à hierarquia e o respeito a essa como um sinal de obediência, ser um
fiscal poderia significar exercer algum tipo de poder, ainda que provisório. E ser
premiado com essa “honra”, cuidar de um pequeno grupo, também pode ser
entendida como um exercer de masculinidades.

Considerações Finais

Neste artigo, realizei algumas aproximações arriscadas de uma


historiografia um tanto recente: a História da Infância e Juventude e os debates
sobre masculinidades.

O advento da Nova História e da História Social, nos anos 1960,


despertou a historiografia para atentar a sujeitos até então esquecidos e
marginalizados da História. (SOSENSKI, 2015). Apesar de que já se tinha a
preocupação com a infância como problema social desde o século XIX, esta
ainda não era um problema de investigação científica (NASCIMENTO;
BLANCHER & OLIVEIRA, 2008). A historiadora Silvia Maria Fávero Arend
(2011, p. 6) nos alerta: “A produção do conhecimento histórico sobre a infância
e a juventude dos grupos urbanos brasileiros é recente”.

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A historiografia também tem tentado desnaturalizar a infância como um
processo meramente biológico, desnaturalizando, dessencializando, buscado
trabalhar com a noção de que a infância é uma construção social e mais
recentemente, com as contribuições da Sociologia e Antropologia da Infância,
também com a ideia de que nem toda infância é igual visto que “(...) não existe
uma infância, mas diferentes infâncias, que se configuram de acordo com o
contexto histórico-social no qual a criança está inserida” (SILVA, 2015, apud
FARIA FILHO, 2008) 817
Do mesmo modo, os estudos de gênero são bastante recentes e
começam a tomar proporções consideráveis, além de que boa parte das/os
estudiosas/os realizam esforços de tornar esse conhecimento acessível, pra que
essas teorias e conhecimento ultrapassem os muros da Universidade. Os estudos
acerca das masculinidades emergem com as teorias feministas, mas ainda não
expandiram da mesma forma que o primeiro. Também busca desuniversalizar,
dessencializar, desnaturalizar o que é considerado masculino.

O que é relacionado ao masculino, geralmente em oposição ao


feminino, também varia de acordo com o período histórico, recorte espacial,
classe social, raça/etnia... é uma construção social, histórica e cultural – é
portanto, não masculinidade, mas masculinidades. Assim como as infâncias:
uma criança que viveu em Curitiba no século XIX, não é a mesma que viveu em
Maceió nos anos 1950; um menino que viveu em uma família das camadas
populares de Florianópolis durante o Golpe Militar de 1964, não teve a mesma
infância que um garoto rico filho de presos políticos no mesmo período, não
viveu as mesmas experiências que uma garota negra nos anos 1990, que também
não teve as mesmas experiências que seu irmão – porque a infância também são
as infâncias. “(...) um desenvolvimento biológico semelhante não significa
passar por experiências tracejadas por uma mesma perspectiva de infância”,
Ferreira e Gondra. (SILVA, 2015 Apud FERREIRA e GONDRA, 2006)

Só se acessa o passado – este lugar estrangeiro, distante, do qual se tem


apenas impressões – pelo que sobrou dele; Lowenthal (1985) chama estes
vestígios de relíquias. Sobrevivem na forma de características naturais ou
artefatos, mas não são guias, não nos levam instantaneamente ao passado, as

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relíquias só fazem sentido enquanto tal quando já sabemos a que passado
pertencem.

A definição de relíquia é fluida, já que sucumbem ao desgaste do


significado e da importância, ou seja, pode ter sido uma relíquia, mas deixou de
ser. Assim como um documento, objeto, carta, retrato, podem ou não ser fontes
e isso depende da questão elaborada: “(...) tudo que é perceptível pode ser
utilizado como fonte se o historiador formular a questão adequada”. (PROST,
2008, p 76) 818

Minha questão aqui buscava investigar que traços incentivados nos


relatórios da Casa do Pequeno Jornaleiro, entre os anos de 1957 e 1962,
poderiam ser entendidos como fomentos de masculinidades.

Percebi, portanto, que vários aspectos dos relatórios vão de encontro ao


que diz a professora Maria Izilda de Souza Matos, que afirma que a
masculinidade hegemônica já na década de 1940 e 50 fomentava a noção de que
“homens deveriam se mostrar sempre fortes e capazes, devendo ter
envolvimento com o trabalho.” (2001, p 51). Termos como soldados e heróis
foram interpretados como relacionados à virilidade e a traços que a
masculinidade hegemônica incentiva, como a força, a agressividade, poder,
racionalidade.

Há também a noção de que a criança ainda não é, mas virá a ser caso
receba o incentivo necessário. Esse “incentivo” era realizado através da
educação, da moralização pelo trabalho, das relações de poder, hierarquia e
disciplina, e do aprendizado de valores tido como morais e pátrios – para que se
tornassem, então, os “(...) preciosos futuros cidadãos da pátria comum.” 23

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Editora UFGD. pp. 434-440.

23
CASA DO PEQUENO JORNALEIRO. Relatório anual 1957. Curitiba,1957. p 59.

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Doutorado em Educação – Programa de Pós-Graduação em Educação. Ano de
obtenção:2015. Orientador: Gizele de Souza.

SIROTA, Regina. Emergência de uma Sociologia da Infância: Evolução do


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821

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Atas do II Encontro Nacional do GT Estudos de Gênero
Rio de Janeiro, 27 e 28 de outubro de 2016.

GÊNERO, SEXUALIDADE E CONSERVADORISMO POLÍTICO NA


EDUCAÇÃO ESCOLAR DA JUVENTUDE

Nayara Cristina Carneiro de Araújo*

Leandro Teófilo de Brito**

Miriam Soares Leite***

822

Introdução

Recente pesquisa, intitulada Pesquisa Nacional sobre o Ambiente


Educacional no Brasil 2015: as experiências de adolescentes e jovens lésbicas,
gays, bissexuais, travestis e transexuais em nossos ambientes educacionais e
realizada pela Secretaria de Educação da Associação Brasileira de Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais/ABGLT1, por meio da
disponibilização online de questionário, que foi respondido por 1016 pessoas,
aponta o seguinte quadro nas escolas do país:
o relatório retrata níveis elevados e alarmantes de agressões
verbais e físicas, além de violência física; ao mesmo tempo
expõe níveis baixos de respostas nas famílias e nas
instituições educacionais que fazem com que tais ambientes
deixem de ser seguros para muitos estudantes LGBT,
resultando em baixo desempenho, faltas e desistências, além
de depressão e o sentimento de não pertencer a estas
instituições por vezes hostis (ABGLT, 2016, p. 15).

Mesmo antes da leitura das informações construídas pela pesquisa, a


publicação já sensibiliza para a dramaticidade das possíveis decorrências da
discriminação contra a população LGBT, quando é dedicada a jovens vítimas da
violência lgbtfóbica:
In memoriam ao Roliver de Jesus dos Santos, um menino de
12 anos de Vitória-ES, que, na véspera do Carnaval de 2012,
se enforcou com o cinto da mãe. Na escola era alvo de piadas.

*
Doutoranda em Educação (ProPEd/UERJ). anayaracristina@gmail.com.
**
Doutorando em Educação (ProPEd/UERJ). teofilo.leandro@gmail.com.
***
Doutora em Educação, Professora Adjunta do ProPEd/UERJ.
miriamsleite@yahoo.com.br.
1
Em parceria com a Universidade Federal do Paraná, com a Fundación Todo Mejora, do Chile,
e da Gay, Lesbian & Straight Education Network/GLSEN, dos EUA.

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‘Eles o chamaram de gay, bicha, gordinho... Às vezes ele ia
embora chorando’. Roliver deixou uma carta pedindo
desculpas pelo suicídio e dizendo que não entendia por que
era alvo de tantas humilhações.

In memoriam ao Alexandre Ivo, adolescente de 14 anos,


sequestrado, torturado e assassinado, no município de São
Gonçalo, Rio de Janeiro, em 21 de junho de 2010, por motivo
de intolerância homofóbica (ABGLT, 2016, p. 9).

Para além dos nefastos efeitos sobre os processos de ensino-


aprendizagem escolares, que aparecem de forma inequívoca na referida 823

pesquisa, tais citações nos lembram da gravidade da intolerância às


performances de gênero alternativas à heteronormatividade usualmente
prevalente nos nossos contextos sociais. De fato, o preconceito e a discriminação
contra a população LGBT, que se estende a todos aqueles que não mantêm estrita
coerência entre sua suposta identidade sexual, reconhecível apenas no escopo do
binarismo macho-fêmea, e seu comportamento em geral, transcende os muros
da escola, tanto em sua produção quanto em sua reprodução e desdobramentos.
Entretanto, julgamos que, nesse espaço-tempo de vivência social, atualmente
obrigatório para toda a população brasileira, repetem-se, ao mesmo tempo em
que se deslocam, sentidos de sexo e gênero, que também informam esses
processos sociais. Obviamente, a educação escolar não é a única instância de
enunciação de tais sentidos, nem tampouco se coloca independente dos demais
espaços-tempos sociais – apostamos, porém, na potência da sua participação nas
disputas que, de forma difusa e cotidiana, são travadas em torno da significação
dos construtos sociais politicamente relevantes. Não sem razão, forças políticas
diversas, que têm em comum o conservadorismo político, mobilizaram-se,
nacionalmente, nos últimos anos, contra o que denominam como “ideologia de
gênero” nas políticas públicas do país. Assembleias e câmaras legislativas
aprovaram a retirada, nos planos de educação municipais e estaduais, em
diversas partes do país, de referências a gênero, relações de gênero e orientação
sexual, mantendo apenas menções genéricas à problemática do preconceito e da
discriminação, e buscando, assim, confrontar as lutas feministas e LGBT nesse
campo. Concordando com Sousa Filho (2015), os religiosos e os parlamentares,
ou os “parlamentares religiosos” enxergaram, na abordagem de assuntos como

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diversidade sexual e gênero, uma tentativa de imposição de uma “ideologia” para
a “destruição da família tradicional”, pois a presumida “ideologia” deturparia os
supostamente verdadeiros conceitos de homem, mulher, sexualidade, família,
casamento e reprodução da espécie. A discussão de tais temas nas escolas estaria,
dessa forma, “homossexualizando” crianças e jovens.

Neste artigo, abordamos tal polêmica, a partir das construções da


pesquisa Diferença e desigualdade na educação escolar do jovem adolescente:
desconstruções 2, em desenvolvimento desde agosto de 2014. Problematizamos 824
aqui os registros das seguintes etapas do estudo: survey de caracterização
sociodemográfica e de opinião relativa à organização política estudantil,
respondido por 1127 estudantes do Colégio base da pesquisa; entrevistas
coletivas com estudantes do Colégio envolvidos na reorganização do grêmio;
registros de observação de atividades diversas relativas à reorganização do
grêmio no Colégio; entrevistas coletivas com estudantes participantes de
movimentos de ocupação de 06 escolas da rede pública estadual de ensino, em
2016. Na leitura desse material empírico, indagamos quanto aos sentidos
atribuídos, pelos participantes do projeto, a identidade de gênero, performance
de gênero e orientação sexual, como forma de aproximação à problemática do
gênero nos contextos escolares visados pelas políticas públicas em discussão.
Trazemos, desse modo, vozes de sujeitos diretamente afetados por tais políticas,
mas também notícias do silêncio dessas vozes em ambientes escolares onde a
organização estudantil autônoma é desestimulada.

As identificações de gênero aqui referidas são concebidas e


problematizadas com base na noção de gênero performativo, conforme proposto
por Judith Butler (BUTLER, 2015a, 2015b): uma identificação instável, não
essencial, que deriva, ainda que precariamente, da repetição ubíqua e cotidiana
de enunciações linguísticas, atos, gestos e movimentos, inscritos nos corpos dos

2
Pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos sobre Diferença e Desigualdade na Educação
Escolar da Juventude/DDEEJ, sob coordenação da professora Miriam Leite, do Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ. Inclui etapa
de pesquisa-ação desenvolvida em colégio da rede pública de ensino do estado do Rio de Janeiro
(referido neste texto como “colégio base da pesquisa”), denominada O grêmio e outros espaços-
tempos de diálogo político da juventude contemporânea: possibilidades na educação escolar,
com financiamento FAPERJ, “Edital 36/2014 – Melhoria das Escolas Públicas”.

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indivíduos e nas instituições sociais, que buscam normatizar sexo, gênero e
sexualidade, tendo como base a heterossexualidade reprodutora.

Recorremos, também, à noção de interseccionalidade (BRAH;


PHOENIX, 2004), teorização desenvolvida por estudos feministas
contemporâneos, visando articular marcadores sociais como raça/etnia, situação
socioeconômica, identificação etária, capacidades físicas e mentais, entre outros,
à identificação de gênero, de modo a tornar mais complexos os olhares sobre a
produção, reprodução e reconhecimento das múltiplas desigualdades em 825
contextos específicos. Concordando com Pocahy (2011, p. 19): “apostamos na
produtividade desse conceito por sua reconhecida capacidade em articular
distintas formas de dominação e posições de desigualdades acionadas nos
discursos regulatórios de gênero, raça/etnia, classe social, idade”. Neste estudo,
interessam particularmente as articulações entre identificação de gênero,
orientação sexual, identificação etária e situação socioeconômica.

Complementamos, na próxima seção, a explicitação geral da


apropriação e da operacionalização, na pesquisa, das teorizações mencionadas,
para em sequência, apresentar a síntese das problematizações desenvolvidas.

Sobre o gênero performativo em abordagem interseccional

O termo performativo, apropriado e difundido por Judith Butler em seus


estudos sobre gênero e sexualidade, tornou-se conhecido, no meio acadêmico do
país, pela tradução de sua mais famosa obra traduzida para o português
brasileiro: Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade, em 2003.
A apropriação do termo pela filósofa estadunidense se deu a partir da
desconstrução derridiana da teoria dos atos de fala, ou seja, das leituras
desconstrutoras que Derrida fez da obra Quando dizer é fazer: palavras e ações,
do linguista John Austin (1990), autor importante na busca de soluções teóricas
para o problema do significado, no campo da filosofia da linguagem. De acordo
com Leite (2014, p. 149):
Butler atribui ao performativo a ambivalência que havia sido
proposta por Austin e radicalizada por Derrida: os
enunciados/atos performativos também constituem a

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realidade que, em perspectivas representacionistas da
linguagem, entende-se que apenas descreveriam.

Mobiliza tal formulação para pensar a noção de gênero, propondo


ruptura radical com qualquer forma de naturalização e essencialização, não
apenas do gênero e do desejo sexual, como também do sexo e das próprias
noções de cultura/natureza.

No lugar da fisiologia e dos hormônios, ou mesmo de construções


socioculturais regidas por supostas leis da história, a noção de gênero 826

performativo aponta para uma configuração precária do desejo, do gênero e do


sexo, que se estabelece por meio da repetição – difusa e constante, no corpo
social – da atribuição de sentidos para tais construtos: recorrendo a um exemplo
familiar, ao se enunciar, de forma recorrente, em variadas instâncias sociais e em
múltiplas linguagens, que homens não choram, inviabilizamos essa forma de
expressão para muitas pessoas que se identificam com o gênero masculino.

Entretanto, a performatividade também permite deslocamentos de


sentidos, pois, como afirma Butler (2015b), os sujeitos são constituídos mediante
normas que, quando repetidas, (re)produzem, mas também deslocam os termos
por meio dos quais são reconhecidos. Nesse sentido, a teórica feminista
estadunidense se apropria de dois quase-conceitos derridianos - a iterabilidade e
a citacionalidade -, para afirmar que a repetição e a citação das normas são
contingentes e não se processam sempre de maneira determinística. Permite,
desse modo, incluir, na noção de performatividade, possibilidades de rupturas e
desestabilizações de normas e sentidos relativamente sedimentados em
sociedade. Observe-se, ainda, que um enunciado performativo gera efeitos de
realidade, de forma provisória e contingente, mas não porque a intenção governa
a ação da linguagem com êxito, e sim porque a ação se faz em articulação com
ações antecedentes e/ou simultâneas, pela repetição e citação de um conjunto de
práticas anteriores (BUTLER, 2009). Na pesquisa em tela, interpretamos as
enunciações que registramos, nas diferentes etapas do projeto, como iterações
(repetições-deslocamentos) participantes dos processos sociais de significação
dos termos focalizados pelo estudo. Repetem enunciações que circulam na
sociedade, mas também podem deslocar sentidos e identificações razoavelmente

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sedimentados no texto social3. Avaliamos que a problematização de tais
repetições-deslocamentos poderia contribuir para a o enfrentamento das
propostas conservadoras relativas às questões do gênero na educação escolar.

A perspectiva teórico-política desconstrutora e feminista que, portanto,


mobilizamos neste trabalho, acima delineada em termos gerais, pretende ainda
pensar o gênero em articulação com outras interpelações sócio-identitárias, por
meio da abordagem interseccional, conforme já anunciado. Brah & Phoenix
(2004) observam que, já no século XIX, ativistas negras estadunidenses, em luta 827
contra a escravidão, questionaram a possibilidade de associação com mulheres
brancas oriundas dos setores médios da população daquele país, dadas as
distâncias que percebiam entre suas demandas. Na contemporaneidade,
múltiplos pertencimentos culturais se colocam no caminho de uma sororidade
universal, para além das mais visíveis afetações por questões de ordem étnico-
racial e de condição socioeconômica. Tais pertencimentos e interpelações
encontram, na abordagem interseccional fundamentada em teorizações da
diferença, uma possibilidade de problematização que propõe transcender seu
mero somatório, bem como concepções essencializadas dos seus conteúdos.

Contudo, reconhecemos que a ideia de interseccionalidade é de difícil


operacionalização pela pesquisa, considerando a necessidade de solidariedade
no reconhecimento das identificações infinitas pelas quais os sujeitos podem ser
submetidos e se submeter. Bilge (2013), em artigo intitulado Intersectionality
Undone - Saving Intersectionality from Feminist Intersectionality Studies,
denuncia que existe um conjunto de relações de poder no interior das produções
acadêmicas que neutralizam o potencial crítico da interseccionalidade, na
perspectiva teórico-política de mudança orientada para a justiça social,
significando-a como um exercício acadêmico de contemplação metateórica. A
autora afirma que “apesar de suas melhores intenções e reivindicações de
inclusão e de solidariedade, muitos ficaram aquém da reflexividade

3
Referência à noção de texto em teorizações derridianas: “Gostaria de recordar que o conceito
de texto que eu proponho não se limita nem à grafia, nem ao livro, nem mesmo ao discurso,
menos ainda à esfera semântica, representativa, simbólica, ideal ou ideológica. O que eu chamo
de ‘texto’ implica todas as estruturas ditas ‘reais’, ‘econômicas’, ‘históricas’, sócio-
institucionais, em suma, todos os referenciais possíveis” (DERRIDA, 1991, p. 203).

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interseccional, o que levou aos seus próprios tipos de silenciamento, exclusão ou
deturpação de grupos subordinados” (2013, p. 406, tradução nossa4). De toda
forma, acorda-se que o conceito está potencializando a perspectiva de que o
pessoal é também político, e busca responder à complexidade dos processos
sociais que, permanentemente, afetam nossa subjetivação.

Destacando questões relacionadas ao gênero e à sexualidade em


intersecção com a categoria juventude, também tomando como base teorizações
de Judith Butler, Paechter (2009), pesquisadora britânica do campo da educação, 828
reconhece a adolescência, que aqui compreenderemos como parte da juventude,
como uma fase em que a construção de masculinidades e feminilidades possuem
grande destaque, já que instituições sociais, como a escola, buscam moldar os
significados atribuídos ao que é ser homem e ser mulher para garotos e garotas
jovens. Segundo a autora, a construção performativa do gênero, na juventude,
faz-se primordial nas identificações dos sujeitos, pois há forte investimento
social na construção de masculinidades e feminilidades nesse faixa etária. Na
adolescência, desdobra-se um processo constante de indução de jovens para que
se tornem homens e mulheres adultas/os dentro dos preceitos e das
(hetero)normas mais sedimentadas na nossa sociedade.

Observe-se que a noção de adolescência é aqui mobilizada em


referência a sentidos relativamente estabilizados socialmente, tendo como
critério objetivo de localização desse agrupamento social a frequência aos anos
finais do ensino fundamental (7º, 8º e 9º) e do ensino médio regulares. Em
analogia à noção de gênero performativo, recusamos qualquer fundamentação
biológica para tal identificação, que entendemos se construir por meio da
iteração/repetição-deslocamento de sentidos que se atribuem a tal momento da
existência humana. Concordamos com Paechter (2009) quanto ao destaque que
costuma se conceder às questões da sexualidade e da identidade de gênero na
adolescência, porém enfatizamos que essa ênfase decorre de construções
culturais e não de qualquer determinação de uma suposta natureza dos corpos.

4
“Despite their best intentions and claims of inclusiveness and solidarity, many have fallen short
of intersectional reflexivity and accountability, and prompted their own kinds of silencing,
exclusion or misrepresentation of subordinated groups”.

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Ponderamos, ainda, com Leite (2015, p. 332), que, discutindo sobre documentos
públicos e contemporâneos relativos à adolescência/juventude, indaga:
[...] neste documento e nos demais, depreende-se,
logicamente, da reiteração desse enunciado, que a condição
de desenvolvimento é marca identitária que especifica
diferencialmente esse grupo social – o que leva à questão: em
que momento da existência não se está em desenvolvimento?
Por que outras mudanças hormonais, como a andropausa não
define ‘condição peculiar’?

Entretanto, ainda que sem atribuir qualquer essência substantiva à 829


adolescência, admitimos a força social da identificação etária, que entendemos,
interseccionalmente, tornar especialmente presentes tais questões para essa
população.

Enunciações do gênero e da sexualidade entre jovens estudantes – contexto


I

Nomearemos como contexto I, o conjunto de registros pertinentes à


etapa da pesquisa desenvolvida em colégio de ensino médio da rede estadual
pública do Rio de Janeiro, onde, em parceria com professores e estudantes da
instituição, concebemos e realizamos pesquisa-ação (Costa, 2002; Thiollent,
2011), ainda em andamento, sobre a formação e participação política da
juventude, no âmbito da educação escolar, focalizando a reestruturação do
grêmio, que se encontrava então desativado.

De acordo com os dados do Data Escola Brasil disponibilizados para


consulta pública pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira (INEP) e publicados no Diário Oficial da União no dia 09 de
janeiro de 2015, o colégio em questão, localizado na zona norte da cidade do Rio
de Janeiro, teve 1.751 matrículas no ensino médio regular. Nos meses de outubro
e novembro desse ano, realizamos um survey no Colégio, visando caracterizar
sociodemograficamente seu corpo discente, bem como ouvi-lo quanto a
experiências prévias em ativismo político e expectativas em relação ao grêmio e
ao Colégio em geral. Chegamos ao expressivo número de 1.127 questionários

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respondidos nos três turnos da escola, cuja tabulação e interpretação foram
apresentadas ao corpo estudantil do Colégio em 8 seções, ainda em 2015.

Um dos itens do questionário indagava quanto ao gênero com que a


pessoa respondente se identificava, apresentando-se como alternativas
“feminino”/“masculino”/“outro”, e seguindo-se espaço livre para explicitação,
no caso da terceira opção: entre as respostas, obtivemos 54% para “feminino”,
45,08%, “masculino” e 0,2%, “gay” (uma resposta). Temos também o registro
de manifestações lgbtfóbicas entre estudantes, na forma de supostas 830
brincadeiras, no momento de resposta a esse item do questionário. Além disso,
nas questões abertas que perguntavam sobre expectativas relativamente ao
grêmio e ao Colégio, não houve qualquer menção a questões de gênero ou de
sexualidade.

A sinalização de desconhecimento da distinção entre identidade de


gênero e orientação sexual, somada à ausência total de qualquer referência à
problemática de gênero e de sexualidade nas perguntas abertas do questionário,
levaram-nos a colocar tais questões para os estudantes, durante os eventos de
apresentação dos resultados do survey. Constatamos que, de fato, a confusão
entre tais identificações – de gênero e de orientação sexual – era bastante
generalizada, mas que, obviamente, a população gay na instituição não se
restringia ao único estudante que se identificou desse modo no questionário, nem
tampouco havia total ausência de lésbicas no corpo discente. Ainda nessa
discussão, estudantes identificadas com o gênero feminino enunciaram seu
franco descontentamento com a desigualdade de direitos percebida
cotidianamente entre alunas e alunos, e também se registraram denúncias de
lgbtfobia no Colégio. De início, tais resultados não nos surpreenderam e
pareceram corroborar outros estudos sobre essa temática no ambiente escolar.

Paechter (2009), em abrangente revisão de pesquisas desenvolvidas em


diferentes contextos nacionais acerca das questões de gênero na educação
escolar, nos lembra que o sistema escolar se mostra como um local importante
na construção de masculinidades e feminilidades, invisibilizando e silenciando
alunos e alunas gays, lésbicas e transgêneros, pois tais identificações perturbam
as premissas heteronormativas da escola. A autora também afirma que uma das

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regras que incidem sobre corpos de alunos e alunas, embora não explicitadas nos
currículos escolares, é a de que devem encenar a heterossexualidade, através de
performances que apaguem corpos sexualmente transgressores.
O apagamento da sexualidade na escola é somente possível
por meio da invisibilidade da sexualidade não
heteronormativa. O corpo escancaradamente lésbico, gay ou
bissexual é problemático, porque ele torna o sexo e a
sexualidade visíveis em um espaço em que é essencial que
ambos permaneçam escondidos. As exigências de uma
heterossexualidade invisível agem coercitivamente sobre
todos os corpos na escola e, particularmente, sobre aqueles 831
para quem a performance da heterossexualidade é
problemática (PAECHTER, 2009, p. 127).

Desse modo, tanto a restrição na publicização de orientações sexuais e


de identidades de gênero não heteronormativas, como as denúncias de
discriminação lgbtfóbica apenas repetiriam cena comum na educação escolar.
Entretanto, o desenvolvimento de nova etapa da pesquisa levou ao
questionamento de tais conclusões.

Enunciações do gênero e da sexualidade entre jovens estudantes – contexto


II

No primeiro semestre deste ano, durante a greve dos professores da rede


pública de ensino do estado do Rio de Janeiro, estudantes ocuparam cerca de 80
escolas no estado, em apoio ao movimento docente e com ampla pauta de
reivindicações no âmbito da educação escolar.

Ocupar uma escola não é empreendimento trivial, sobretudo quando se


considera que os envolvidos, mesmo aqueles com mais de 18 anos de idade, não
têm, em geral, autonomia financeira ou de decisão. Houve várias formas de
pressão e repressão contra o movimento que, no entanto, resistiu por mais de 2
meses, em agudo contraste com a dificuldade de organização dos estudantes do
Colégio onde desenvolvíamos nossa pesquisa-ação.

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Fizemos, então, contato com diversas escolas ocupadas para
agendarmos visitas e entrevistas5 com os ativistas, visando discutir esse novo
quadro que se configurava entre os estudantes do nosso estado. O conjunto das
transcrições das entrevistas e das observações dos espaços ocupados constituem
o contexto II da empiria aqui em foco.

O acesso aos colégios ocupados se deu por contato via Facebook (3


escolas) ou por intermediação de contatos de membros do grupo de pesquisa (3
escolas). Priorizamos a região do Grande Rio e fizemos entrevistas em colégios 832
dos seguintes bairros/cidades: zona sul (1 colégio) e zona norte (2 colégios) da
cidade do Rio de Janeiro, Niterói, Nova Iguaçu, São João de Meriti. Houve uma
entrevista individual e as demais foram coletivas, reunindo-se grupos de 3 a 8
estudantes. A partir de roteiros semiestruturados, indagamos quanto ao processo
de ocupação (motivação, perspectivas políticas, rotina e antecipações de
desdobramentos) e experiência política anterior em ativismo político, mas
também perguntamos sobre questões de gênero e de sexualidade, que constituem
manifestações da diferença de especial interesse para nosso grupo de pesquisa.
Costa6 - É, sempre nas primeiras semanas tem uma discussão,
sempre, sempre, o papel das mulheres na sociedade, o
movimento negro, o movimento LGBT. É, esses assuntos
polêmicos, a gente sempre bota na primeira instância pela
questão do próprio preconceito, entendeu? Já que aqui todos
são iguais, a gente prega isso. Ninguém pode ter preconceito
com ninguém, entendeu?
(Estudante, 18 anos, Niterói)

A fala acima destacada teve lugar na primeira escola que visitamos, em


Niterói. Surpreendeu, pois, de forma simples e objetiva, resolveu problema
teórico-político que se coloca bastante polêmico para a academia, quando o
assunto são os direitos da diferença.
Somos todos iguais ou somos todos diferentes? Queremos ser
iguais ou queremos ser diferentes? Houve um tempo em que

5
Trabalhamos com a proposta de entrevista narrativa, conforme desenvolvida por Arfuch (2010).
Nessa perspectiva, valoriza-se “o acontecimento do dizer”, e se considera que “a memória, longe
de reproduzir simplesmente a realidade social, é um lugar de mediação simbólica e de elaboração
de sentidos” (p. 267).
6
As/os entrevistadas/os são aqui referidas/os conforme denominação de sua própria escolha. A
pesquisa em tela foi aprovada pela CONEP-Comissão Nacional de Ética em Pesquisa e as/os
participantes concordaram com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido que
apresentamos, também aprovado pela CONEP (parecer n. 624.354, de 10/4/2014).

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a resposta se abrigava, segura de si, no primeiro termo da
disjuntiva. Já faz um quarto de século, porém, que a resposta
se deslocou (PIERUCCI, 1999, p. 7).

Nas demais entrevistas, também se explicitou a atenção dirigida, pelos


ocupantes com quem conversamos, às questões de gênero e de sexualidade.
Miriam: E, no movimento, vocês pensaram nessas questões?
Na ocupação, isso apareceu de alguma maneira?
Sara: Sim, a gente tá montando um grupo de mulheres aqui
dentro, pra ter mais representatividade. A gente fez vários
debates sobre lgbtfobia, com alunos que são gays e que 833
quiseram dar palestras sobre esse tipo de comportamento e
como deveria ser respeitado. A gente fez rodas de conversas,
às vezes, quando tinha aula. Quando teve a paralisação, antes
da ocupação, a gente, durante a paralisação, a gente fez grupos
de conversa sobre isso também. Então, acho que é mais
consciente. É, mas a intolerância vai mais contra as mulheres
do que contra os homossexuais.
(Estudante, 16 anos, zona norte, Rio de Janeiro)

Edu Carvalho - O que fica da ocupação é a ideia de fazer um


coletivo feminista, se fazer um coletivo LGBT, tratar desses
assuntos de forma mais ampla e mais clara, que seja sempre
assim, tomados na chincha, os professores também na
chincha, e debatam esse assunto, porque é importante, porque
volta a repetir se a gente não discute na escola, que é um lugar
onde te possibilita a abertura de conhecimento, te dar todo
esse leque pra você conseguir trabalhar. Se não for debatido
aqui, vai ser debatido aonde? E a gente pode não conseguir
nossos ganhos, assim, que a gente tá pedindo pra secretaria,
mas ganhos nossos, aqui dentro, a gente já tem, e as pessoas,
sabe, estão muito felizes com a possibilidade de ter um
coletivo feminista. As garotas, só pra você ter uma noção,
quando houve o primeiro debate sobre o feminismo, tinha 80
mulheres na sala debatendo sobre feminismo.
(Estudante, 18 anos, zona sul, Rio de Janeiro)

Estes são apenas alguns exemplos das várias passagens das entrevistas
em que se explicitam o interesse e a urgência percebidos pelos estudantes
relativamente à problemática do gênero e da sexualidade. Narram sua busca por
informações e a vinculação dessa busca ao que “deveria ser respeitado”. A escola
é enunciada, de forma recorrente, em que tanto estudantes quanto professores
têm a aprender. Observa-se, assim, que o quadro escolar registrado no contexto
II difere substancialmente daquele identificado no contexto I.

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Em todas as escolas ocupadas, conhecemos estudantes empenhados em
buscar conhecimento, ao mesmo tempo em que se formavam nos valores da
solidariedade e da responsabilidade social – em outras palavras, tivemos contato
com uma escola como defendemos que sejam as escolas: uma instituição viva,
reconhecida e valorizada por seus estudantes pela “abertura de conhecimento”.
Observe-se, ainda, que, em sua maior parte, os entrevistados relataram não ter
experiência de ativismo político anterior ao movimento de ocupação. Além
disso, todos reagiram fortemente à menção do Programa Escola Sem Partido ou 834
a perguntas quanto ao papel de professores/partidos/entidades
estudantis/sindicato docente no movimento: afirmaram enfaticamente sua
autonomia e se mostraram bastante incomodados com a especulação em torno
da influência de indivíduos ou organizações externas à escola e ao corpo
discente.

Por outro lado, no contexto I, além de não identificarmos interesses e


ações semelhantes, por parte dos estudantes, também registramos vários indícios
de desestímulo à organização discente, pela gestão do Colégio. Não sem razão,
a palavra mais recorrente nas respostas às perguntas abertas do questionário
aplicado, em que se indagava sobre expectativas quanto ao grêmio e à escola, foi
“voz”.

Considerações

Desde 2014, quando foi estabelecido o prazo de um ano para que os


estados e municípios estabelecessem os seus planos de educação, a polêmica
sobre a discussão de gênero nas salas de aula tem ganhado destaque nacional.
Coloca-se um debate entre os setores conservadores da sociedade e grupos que
entendem a urgência da temática, no que são apoiados por instituições como a
Organização das Nações Unidas7, que chegou a lançar, junto com a União

7
ONU Mulheres e União Europeia lançaram currículo e planos de aulas para o ensino médio
sobre igualdade de gênero e enfrentamento à violência contra as mulheres e meninas através da
iniciativa “O Valente não é Violento”, que atua pelo fim de estereótipos de gênero e
comportamentos machistas. Disponível em: <http://www.onumulheres.org.br>. Acesso em 30
ago. 2016.

ISBN: 978-85-65957-07-6
Rio de Janeiro
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Europeia, planos de aulas para o ensino médio sobre igualdade de gênero e
enfrentamento à violência contra as mulheres e meninas.

O Plano Nacional de Educação (PNE), de 2014 a 2024, ao ser apreciado


pelo senado brasileiro, teve a ênfase na “igualdade racial, regional, de gênero e
de orientação sexual” substituída pela proposta de promoção da “cidadania e na
erradicação de todas as formas de discriminação”. De fato, na Lei nº 13.005, de
25 junho de 2014, que aprova o Plano, com vigência por 10 (dez) anos, a contar
da publicação, não consta a palavra “gênero”. 835
A mais ruidosa polêmica diz respeito à alteração da diretriz
que previa a superação das desigualdades educacionais
(inciso III do art. 2º do substitutivo da Câmara). O Senado
alterou esse dispositivo, retirando a ênfase na promoção da
‘igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual’,
expressão substituída por ‘cidadania e na erradicação de todas
as formas de discriminação’. A contenda terminou favorável
ao Senado, com a aprovação do destaque para manter seu
texto.

Entre as vinte metas estabelecidas, figuram taxas, porcentagens e


números a serem alcançados, porém nada diz respeito às temáticas que, nas
escolas regidas por alunos, estavam sendo priorizadas: gênero, sexualidade e
outras manifestações da diferença. Desse modo, se vitoriosa, a ofensiva
conservadora contra a escola, provavelmente, a distanciará ainda mais do seu
público-alvo, isto é, dos seus estudantes. O descontentamento com a
desigualdade de direitos entre os gêneros percebida cotidianamente, as
denúncias de lgbtfobia, e a luta de alunos e alunas gays, lésbicas e transgêneros
para desestabilizarem as premissas heteronormativas do contexto do ambiente
escolar tendem a permanecer e enfrentar duras batalhas, haja vista o poder
performativo potencial de um projeto de lei.

A discussão, no entanto, continua não apenas no interior da escola, mas


também no espaço político brasileiro. Após a aprovação do PNE, o então
Ministro da Educação instituiu o Comitê de Gênero, de caráter consultivo, no
âmbito do Ministério da Educação, através da Portaria n. 916/2015. Aqueles que
aprovaram o Plano retirando o tema de quaisquer artigos ou parágrafos,

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requereram informações8 quanto à razão de existência do Comitê, postulando a
não inclusão, em qualquer hipótese, dessa discussão: “Qual é a pertinência da
criação de um Comitê vinculado ao MEC para acompanhar políticas de gênero,
visto que esta questão foi rejeitada no PNE?”.

Tanto a constituição do Comitê quanto o seu questionamento ratificam


nosso entendimento de que se trata de acirrada disputa que, por certo, não se
esgotou com a vitória das perspectivas conservadoras na polêmica da inclusão
do termo “gênero” no PNE. Faz parte de um quadro mais amplo de forte fluxo 836
antidemocrático e tradicionalista na arena política do país, que, todavia, não está
conseguindo se estabelecer sem contestação – seja na política institucional, seja
na política instituída pelo ativismo estudantil.

REFERÊNCIAS

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Transexuais. Secretaria de Educação. Pesquisa Nacional sobre o Ambiente
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gays, bissexuais, travestis e transexuais em nossos ambientes educacionais.
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8
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esclarecimentos “de forma que a Câmara dos Deputados possa agir da maneira correta”.
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2016.

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837
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ISBN: 978-85-65957-07-6
Rio de Janeiro
Ed. Anpuh-Rio
Atas do II Encontro Nacional do GT Estudos de Gênero
Rio de Janeiro, 27 e 28 de outubro de 2016.

IMPRENSA ALTERNATIVA E CULTURAS POLÍTICAS: GÊNERO E


POLÍTICA EM “O MULHERIO”

Mariane Ambrósio Costa*

Introdução

O presente artigo tem como objetivo analisar a imprensa feita por e para 839
mulheres, em especial a imprensa chamada de alternativa e, especificamente,
demonstrar como a redação do periódico Mulherio, publicado entre os anos de
1981 e 1988 por grupos de mulheres intelectuais que trabalhavam para a
Fundação Carlos Chagas (FCC) pode ser encarada como um espaço de
sociabilidade intelectual, detentor de uma cultura política própria, a cultura
política feminista.

A organização de periódicos alternativos sempre teve um papel


fundamental de oposição a ideias expressas em mídias tradicionais. Durante o
período de repressão política no Brasil, entre 1964 e 1965, esta forma de
divulgação de ideias se tornou ainda mais popular. Com o endurecimento da
repressão com a promulgação do AI-51, em 1968, a militância armada teve de
repensar suas formas de ação. O trabalho clássico de Bernardo Kucinski2
localizou cerca de 150 publicações que circulavam no Brasil apenas durante o
período ditatorial. O autor analisa cerca de 150 publicações das mais diversas
naturezas, incluindo publicações satíricas, culturais, femininas, homossexuais e
etc., e demonstra que o grande cerne de tais publicações era traçar críticas ao
momento político, assim como estabelecer pautas específicas de reivindicações.
Especificamente feministas, apenas entre as décadas de 1970 e 1980, mais de 75

*
UNIRIO.
1
O ato Institucional Nº 5 foi promulgado em 1968 durante o governo do presidente-
general Costa e Silva. Também chamada de “ditadura dentro da ditadura”, o ato ampliou
os poderes do poder executivo ao fechar o Congresso Nacional, promover a suspensão
do habeas corpus, aumentar a repressão a todos que fossem suspeitos de atos de
subversão, com indiscriminado emprego de violência com pessoas de todas as classes.
2
KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e Revolucionários: nos tempos da imprensa
alternativa. São Paulo: Scritta, 1991.

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periódicos são conhecidos, cada um lutando por questões específicas, mas


sempre com a emancipação feminina como mote principal.

Mulherio foi um destes periódicos que ganhou relevância durante o


período de fins da ditadura militar e processo de redemocratização. Organizado
inicialmente por Fúlvia Rosemberg e Adélia Borges, o jornal tinha como
objetivo traçar um panorama da situação da mulher no Brasil, suas pautas de
interesse, além de demonstrar discussões de cunho político aliadas a questões 840
naturalmente femininas, tais como as questões de sexualidade, políticas públicas
para as mulheres, entre outros assuntos.

O jornal teve três fases distintas. Entre 1981 e 1983 foram lançados 15
volumes, sob a supervisão de Borges e Rosemberg, recebendo apoio financeiro
da Fundação Ford para sua concretização. Em 1984, após disputas internas e a
desvinculação da Fundação Carlos Chagas, é criado o Núcleo de Comunicação
Mulherio com o objetivo de estruturar a publicação. Essa fase durou até 1988,
quando o jornal passa a se chamar Nexo, Feminismo, Informação e Cultura.
Porém, com este nome, apenas dois volumes foram publicados, culminando com
o encerramento das atividades do jornal no ano de 1988.

É importante destacar que, diante da riqueza e da extensão do material,


o presente texto focará apenas na primeira fase do jornal, que compreende os
anos de 1981/83, totalizando 15 números. Aliando a organização deste periódico
com conceitos que definem cultura políticas e sociabilidades, este texto se
estrutura da seguinte forma: primeiramente, apresento uma breve explanação
acerca da imprensa para mulheres no Brasil desde sua criação, no século XIX,
assim como uma análise acerca da imprensa feminista que floresceu no país a
partir da década de 1960. Em seguida, analisaremos o jornal Mulherio,
procurando demonstrar como uma cultura política feminista foi forjada no
ambiente de criação dos mesmos, apresentando as responsáveis por sua criação.
Interessa-me neste artigo demonstrar que o pensamento organizado foi
fundamental para colocar em foco demandas femininas que por vezes era
renegado dos discursos oficiais.

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A imprensa de/para mulheres no Brasil: algumas considerações

Mulherio faz parte de um grupo de periódicos que são considerados


“alternativos” na história da imprensa brasileira, uma vez que suas produções,
distribuições e conteúdo serviam como lócus para vozes muitas vezes silenciadas
pela mídia tradicional.

A imprensa no Brasil teve um desenvolvimento tardio em relação a


outros países latino-americanos3, e em sua história contou com inúmeros 841
períodos nos quais a censura delimitou o que poderia ou não circular de forma
oficial no país. A partir da Independência em 1822, as províncias começam a se
tornar autóctones na produção não apenas de jornais locais, mas também de
livros de literatura e periódicos diversos. Foi também a partir deste momento que
as elites provinciais perceberam o poder que a imprensa exercia sobre a
sociedade como mecanismo de difusão ideológica.

A partir da transição para o século XX, a imprensa passa a ganhar


contornos e características das sociedades burguesas, e a notícia passa a ser
considerada como um produto a ser vendido. Com o movimento de implantação
industrial nas primeiras décadas do século, os pequenos jornais agora ganham
destaque como empresas, com sedes em vários estados do país.

Neste período, a imprensa voltada para o público feminino se


desenvolveu de forma bastante tímida, uma vez que a população de mulheres em
sua maioria não era alfabetizada. Apesar disso, surge em 1827 a primeira revista
voltada para mulheres, chamada O Espelho Diamantino, escrita por Pierre
Placher, mesmo criador do Jornal do Commercio no Rio de Janeiro. Voltada
para as distintas senhoras, a revista tinha como conteúdo contos europeus,
comentários sobre arte e literatura e páginas dedicadas a moda e culinária.4

3
OLIVEIRA, Rodrigo Santos de. A relação entre a História e a Imprensa, breve história
da imprensa e as origens da imprensa no Brasil (1808-1930). Historiae, Rio Grande, 2
(3), 2011. p. 131.
4
KAS, Leonel. Um olhar sobre elas, as revistas. Disponível em:
http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4204434/4101415/memoria4.pdf. Acesso em
18 ago 2016.

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Ainda no século XIX, temos o surgimento de publicações femininas


produzidas por mulheres. O Jornal das Senhoras (1852), dirigido pela argentina
Juana Manso e que tinha como linha editorial “cooperar com todas as forças para
o melhoramento social e a emancipação da mulher.” 5. O Sexo Feminino (1875),
fundada pela professora Francisca Diniz, reivindicava para a mulher o acesso à
educação e defendia que a esposa não fosse uma simples serva do marido. A
Família (1888) foi, talvez, a pioneira das publicações de cunho feminista na
842
imprensa brasileira. Fundada por Josefina Azevedo – militante abolicionista,
feminista e defensora do direito ao divórcio –, o jornal pregava que “com
resolução e constância, chegaremos a obter tudo que a sociedade nos deve e a lei
não consente.” 6

As reivindicações que percebemos nos jornais e revistas femininos do


século XIX comprovam a tese de que estes meios de comunicação retratam o
ambiente social no qual seus produtores e leitores estavam inseridos.
Representantes de uma época, a imprensa é mais do que um espelho da realidade
que retrata (tese esta já descartada pela historiografia e os estudiosos do tema há
tempos), mas sim, uma atividade que dialoga com o seu tempo, com os
acontecimentos e a mentalidade social.

No caso das revistas produzidas por mulheres, percebemos em suas


páginas influencias fortes das ideias difundidas pelo chamado de Feminismo de
primeira onda, apesar de nenhuma delas ser proclamada como feminista. As
origens das reivindicações por voto nos Estados Unidos e na Inglaterra e as lutas
pela defesa das ideias liberais datam do mesmo período de publicações destas
revistas, o que demonstra que as mesmas possuíam conhecimento a respeito do
movimento que começava a se delinear no hemisfério norte. 7

5
Idem.
6
Ibidem.
7
O movimento pelo voto universal teve início nos Estados Unidos no ano de 1848, com
destaque para a Convenção dos Direitos da Mulher em Seneca Falls, considerado como
marco zero do movimento sufragista norte-americano. Somente em 1920 o voto seria
permitido para as mulheres. Na Inglaterra, é formado em 1866, em Manchester, o
Comitê para o Sufrágio Feminino. Porém, apenas após lutas, prisões, greves e atentados
as mulheres obtiveram o direito ao voto, em 1928. No Brasil, observamos que, mesmo
com as ideias de direito ao trabalho fora de casa, sufrágio, igualdade e direito a educação

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O crescimento destes jornais faz com que surjam, em fins da década de


1920, os grandes conglomerados jornalísticos, como O Globo, de Irineu
Marinho, e os Diários Associados, de Assis Chateubriand. Esses veículos
gigantes de comunicação, que produziam não apenas jornais, mas também
programas de rádio, revistas e etc., se tornaram ainda mais poderosos e
hegemônicos após o golpe do Estado Novo, em 1937, quando da extinção da
chamada imprensa nanica político-partidária e o predomínio das grandes
843
corporações.

O período entre e o pós II Guerra é marcado pela ascensão do rádio


como meio mais popular de informação, porém, revistas e jornais continuaram a
ter papel fundamental no cotidiano das pessoas. Com o aprimoramento das
técnicas gráficas, da utilização de fotografias e, principalmente, a ampliação no
número de cidadãos alfabetizados, tornando-se naturalmente leitores em
potencial, as publicações ganham contornos cada vez mais especializados.
Jornais, revistas e periódicos de várias naturezas surgem espalhados pelo país,
nos mais variados formatos. Neste contexto, as revistas e jornais não servem
mais apenas para informar/entreter, elas também servem de vitrine para atrair
potencias consumidores, através das estratégias de publicidade que marcaram a
consolidação do modelo capitalista no pós-guerra.

A década de 1950 pode ser compreendida como a década de explosão


das publicações voltadas especificamente para o público feminino. A revista
Capricho (1952) nasce com a proposta de abarcar o público adolescente através
das fotonovelas; Manequin (1959) nasce com a proposta de atender a mulher
com modelagens de roupas para se usar no ambiente de trabalho, mostrando que
a saída da mulher para o mercado de trabalho era um fato e este movimento

já estar posto em algumas revistas brasileiras no século XIX, não existiu um movimento
organizado de massas tal qual visto nos outros lugares. Em 1910, a professora Deolinda
Daltro funda, no Rio de Janeiro, o Partido Republicano Feminino, com o objetivo de
levar o tema do voto feminino ao Congresso Nacional. A luta pelo sufrágio continuou
em 1919 com a criação da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, porém, só o
voto feminino só foi concretizado a nível nacional em 1932, promulgado por Getúlio
Vargas. Para maiores informações sobre a chamada 1ª onda do feminismo, ver: ALVES,
Branca Moreira; PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo? Coleção Primeiros
Passos. São Paulo: Brasiliense, 1981.

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deveria ser contemplado por publicações que atendessem ao público feminino


que não se dedicava apenas ao trabalho doméstico.

Este período também presencia o aparecimento da revista Cláudia


(1961), que, apesar de reafirmar constantemente o papel tradicional das mulheres
na sociedade brasileira, se diferenciava das demais por ser a primeira revista de
grande circulação a tratar de assuntos que evidenciavam assuntos tidos como
tabu, como por exemplo, a sexualidade feminina. Apesar de discretas, eram 844
vistas em suas páginas matérias que tratavam sobre liberdade sexual, virgindade
e pílulas anticoncepcionais. Essa abertura se deve, principalmente, pela presença
de uma figura emblemática no jornalismo feminista brasileiro: Carmem da Silva.

Depois de morar durante alguns anos nos vizinhos Argentina e Uruguai,


a psicanalista Carmem da Silva se candidatou para o cargo de correspondente da
revista Cláudia. Em 1963, estreou a lendária coluna “A arte de ser mulher”, e
posteriormente, “Carmem da Silva responde”, na qual recebia cartas de mulheres
de todos os lugares do país com as mais diversas dúvidas e questionamentos. Seu
objetivo principal com a coluna, inicialmente, era mostrar para as mulheres a
necessidade de se reconhecerem enquanto indivíduos.8 Com um discurso
moderado, Carmem inseriu ideias feministas de forma discreta em sua coluna,
sem se proclamar enquanto feminista, criando um espaço de mudança e debate
em uma publicação tradicional, conservadora e elitista.

Quando da eclosão do golpe militar em 1964, as publicações voltadas


paras as mulheres já eram um sucesso incontestável. Porém, é indiscutível que o
público alvo destas revistas eram as mulheres de classe média, que haviam
ganhado recente espaço no mercado de trabalho e certas liberdades antes pouco
prováveis. Moças frequentavam escolas e faculdades, trabalhavam fora, saiam
para se divertir, em um ritmo que seguia perfeitamente aquele ditado pelas
publicações mais famosas: as roupas da moda, os cabelos tendência, os
acessórios e produtos de beleza que enchiam as páginas das revistas nas bem
sucedidas propagandas.

8
BORGES, Joana Vieira. A grande dama do feminismo no Brasil. Revista Estudos
Feministas. Vol.14. nº 02. Florianópolis May/Sept., 2006.

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Porém, esta era a realidade de apenas uma parcela das mulheres do


Brasil. A parcela mais pobre, geralmente negra, não pertencia a aquele mundo
mostrado nas páginas das revistas. Mulheres pobres sempre trabalhavam fora de
casa, e as reivindicações das mulheres de classes favorecidas não privilegiavam
suas necessidades.

A mídia alternativa, desta forma, aparece neste contexto como uma


forma de dar voz a setores que eram silenciados pelos veículos de mídia 845
tradicionais. Jornais, tabloides e revistas das mais variadas formas e conteúdo
circularam no Brasil na segunda metade do século XX, e com as mais variadas
temáticas. O tema da imprensa alternativa já foi debatida com profundidade em
estudos que já se tornaram canônicos, como o trabalho de Kucinski, que
localizou cerca de 150 publicações durante o regime militar. Com a promulgação
do ato intitucional nº 5, em dezembro de 1968, a repressão a manifestações
opostas ao regime político em vigor favoreceu o crescimento de periódicos que
denunciavam a situação política do país – que muitas vezes era mascarada pela
mídia tradicional –, assim como serviu de veículo de divulgação para diversos
grupos de minorias que buscavam uma forma de reivindicar suas demandas
sociais.

O período militar culmina com o momento no qual o chamado


feminismo de segunda onda chega ao Brasil, e assume uma característica
liberalizante, ou seja, se insere em um país que vivia um momento dual: de um
lado, o chamado “milagre econômico” proporcionava condições para que
mulheres se inserissem no mercado de trabalho, se matriculavam em
universidades e conseguiam determinada colocação na sociedade, por outro,
haviam de conviver com as restrições impostas pelo regime de exceção. O
período ditatorial favoreceu o crescimento do movimento feminista liberal9 no
Brasil, pois aproximou as mulheres das lutas da esquerda e as colocou na linha

9
O feminismo liberal teve como ápice de sua articulação o National Organization of
Woman, criado por Betty Friedman em 1960. Buscava a igualdade entre homens e
mulheres através de reformas sociais na educação, no trabalho, nas leis e etc.

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de frente de projetos que pretendiam lutar por uma sociedade mais justa e
igualitária a todos.

É também neste período que verifica-se um contato mais intimo das


brasileiras com as ideias feministas que estavam em vigor no período tanto na
Europa, quanto nos Estados Unidos, muito favorecido pelo retorno de militantes
até então exiladas, ou mesmo por estudantes que tinham a oportunidade de
terminar seus estudos fora do Brasil. Este período no exílio foi crucial para que 846
estas mulheres tomassem consciência de sua identidade de gênero, segundo
Goldberg.10 Afinal, vivendo em outro país e libertas do privilégio de classe,
convivendo com outras mulheres que se rebelavam por questões que as
brasileiras ainda consideravam normal, como a dupla jornada de trabalho, por
exemplo, a tomada de consciência de gênero aconteceu e fundamental para
delinear o que seria desenvolvido por elas quando de sua volta ao Brasil. Muitas
destas mulheres exiladas, e muitas vezes organizadas em grupos no exterior,
foram a principal porta de entrada do pensamento feminista no Brasil, ao
escreverem editoriais que seriam publicados em periódicos alternativos
feministas.

A autora Elizabeth Cardozo afirma, em sua dissertação de mestrado,


que os periódicos feministas podem ser divididos em duas gerações, que se
separam de acordo com as características principais das publicações. Nas
palavras da autora,
Nota-se que, enquanto a primeira geração está marcada pelo
debate entre “questão da mulher” versus “questão geral”,
feminismo liberal versus feminismo ortodoxo, por
reivindicações de ações públicas que coloquem as mulheres
em igualdade com os homens; pela questão da autonomia
partidária e pelo combate a ditadura, a segunda geração da
imprensa feminista incorpora o conceito de gênero, assume os
temas relacionados direta e exclusivamente às mulheres
(como sexualidade, planejamento familiar e violência contra
a mulher); tende para a especialização por temas; luta pelo
direito à diferença e opera em parceria com um novo ator

10
GOLDBERG, Annete. Feminismo e autoritarismo: a metamorfose de uma utopia de
liberação em ideologia liberalizante. Dissertação de mestrado. Universidade Federal do
Rio de Janeiro, 1987.

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social , a sociedade civil organizada, na forma de ONG’s e


associações voltadas para a questão de gênero.11

Ainda de acordo com Cardozo, foi nos anos de 1980 e 1981 que ocorre
esta mudança, diretamente ligados ao II e III Congresso da Mulher Paulista,
ocorridos na cidade de São Paulo, eventos que marcaram a ruptura do
movimento feminista com as questões exclusivas de classe e com os partidos de
esquerda, assim como a adoção do conceito de gênero nos debates.12
847
É neste ínterim de difusão de ideias feministas desligadas de partidos
políticos que nascem diversas publicações de entidades feministas autônomas,
geralmente ligadas a ONG’s, associações, conselhos municipais ou estaduais,
entre outros, que buscavam divulgar e defender suas ideias, sempre ligadas a
questões exclusivamente de gênero, dando destaque a temáticas como violência,
saúde, educação, sexualidade, etc. É neste contexto que acontece, em 1981, o
surgimento do periódico Mulherio, um dos jornais feministas mais longevo, com
36 edições, divididas em três fases.

Culturas políticas e sociabilidades em “Mulherio”

O jornal Mulherio nasceu a partir da iniciativa de pesquisadoras do


Coletivo de Mulheres do Departamento de Pesquisas da Fundação Carlos
Chagas. A organização deste grupo mostra que o feminismo brasileiro estava
entrando em outro momento, aliando-se a questões acadêmicas das mais

11
CARDOSO, Elisabeth P. Imprensa Feminista Brasileira pós-1974. Dissertação de
mestrado. Universidade De São Paulo, 2004.
12
Em 1980 foi realizado o II Congresso da Mulher Paulista, e durante o evento, houve
uma confusão entre as feministas e membros dos partidos de esquerda. Enquanto as
feministas usariam o espaço para difundir o resultado de sua militância, os novos
conceitos que estavam adotando – o gênero, por exemplo –, as lideranças da esquerda
tinham como objetivo cooptar mulheres para a luta contra a ditadura militar, alegando
que o feminismo era separatista e não contribuía para uma sociedade mais justa para
homens e mulheres. Após o Congresso, que terminou com atritos físicos entre os
participantes, as feministas romperam com os partidos de esquerda. O III Congresso
vem afirmar esta tendência de separação entre os partidos políticos de esquerda e sela
definitivamente a separação entre o movimento feminista e os partidos de esquerda.
Para maiores informações sobre os Congressos da Mulher Paulista, ver: CARDOSO,
Elisabeth P. op. Cit.

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variadas áreas. Este era o perfil o qual a Fundação Ford estava procurando para
aprofundar seus novos investimentos na América Latina, algum projeto que
aliasse trabalho acadêmico especializado e preocupações de cunho social através
de políticas públicas de correções de desigualdades sociais.13 Desta forma, a
Fundação Carlos Chagas se tornou o lugar ideal para o investimento da
Fundação, uma vez que tinha destacada reputação, boa infraestrutura
organizacional e estava entre as instituições melhor informadas sobre os estudos
848
sobre gêneros no Brasil. O apoio financeiro, na forma de bolsas para fomento de
pesquisas, fez da FCC um dos maiores beneficiários da Fundação Ford no Brasil.

Neste contexto, um pequeno grupo começa a se formar no interior da


FCC. Com reuniões informais em uma praça próxima ao prédio da instituição
organizado por Carmem Barroso14, algumas pesquisadoras que tinham o gênero
como tema de interesse se reuniram para fazer disso um grupo de estudos e
prática de assuntos de gênero. Nas palavras de Barroso,
Éramos um grupo bem variado, que se reunia para discutir
pesquisas sobre a mulher, em andamento ou já publicadas.
Num ambiente acadêmico de panelinhas fechadas e acirrada
competição, esse grupo era um oásis para as jovens
pesquisadoras que começavam a enfrentar a resistência aos
estudos de mulher, como eram então chamados. Foi também
um espaço de crítica construtiva e colaboração, e de criação
de uma mentalidade extraordinariamente aberta à diversidade
de enfoques teóricos, metodologias e interesses temáticos,
que veio a caracterizar a área de estudos de mulher da Carlos
Chagas e seus concursos. Nós nos levávamos muito a sério -
talvez até demasiadamente -, mas conseguíamos manter uma
atmosfera de atividade lúdica.15

Esta primeira geração de pesquisadoras que compuseram o Coletivo da


FCC era composto por diversos nomes de acadêmicas pioneiras nos estudos de

13
HEILBORN, Maria Luiza; SORJ, Bila. Estudos de gênero no Brasil. In: MICELI,
Sérgio (org.) O que ler na ciência social brasileira (1970-1995). São Paulo: Editora
Sumaré, 1999.
14
Cientista Social com destacado trabalho na área de população e desenvolvimento.
Atualmente integra o Grupo Independente de Especialistas da Estratégia Global da
ONU sobre Saúde da Mulher, das Crianças e dos Adolescentes.
15
Entrevista com Carmem Barroso, quando da morte de Cristina Bruschini. Disponível
em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-
15742012000100016>. Acesso em 25 ago 2016.

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gênero no Brasil na década de 1980, em diversas áreas do ensino. Além de


Barroso, integravam o grupo Cristina Bruschini16, Fulvia Rosemberg17, Anna
Maria Poppovic18, Bernadette Gatti19, entre outras pesquisadoras que
trabalhavam como assistentes das pesquisadoras sênior na Fundação.20O grupo,
apesar de academicamente heterogênero, tinha como aspecto comum as
participantes o interesse pelas questões de gênero, o que fez com que se
organizassem em seminários que discutiam tais questões sob os diversos pontos
849
de vista do grupo.

Com o passar do tempo, houve a necessidade de expandir os resultados


das pesquisas que estavam sendo produzidas no interior do Coletivo, coloca-las
em diálogo com outros estudos produzidos em diversas instituições de ensino e
levar a questão de gênero ao maior número de pessoas possíveis. Desta forma, é
criado o jornal Mulherio, coordenado por Rosemberg, com o objetivo de levar
ao público os problemas que enfrentava a mulher brasileira.

A primeira fase do jornal teve 15 números publicados entre os anos de


1981 e 1983, contando com o financiamento da Fundação Ford. O corpo editorial
era composto por Carmem Barroso, Carmem da Silva, Cristina Bruschini,
Elizabeth Souza Lobo, Eva Alterman Blay, Fulvia Rosemberg, Heleietch
Safiotti, Lélia Gonzales, Maria Carneiro da Cunha, Maria Moraes, Maria Malta

16
Cientista Social pela Universidade de São Paulo, com atuação nos estudos sobre as
divisões sexuais do trabalho. Pesquisadora sênior da FCC, coordenou o programa
Relações de Gênero na Sociedade Brasileira. Faleceu no ano de 2012.
17
Psicóloga com doutorado em Paris, Fúlvia foi responsável pela inserção de vários
ideais feministas franceses no grupo da FCC. Na década de 1970, chegou à Fundação
como pesquisadora sênior e foi trabalhar na área de crítica à literatura infantil. Faleceu
em 2014.
18
Psicóloga e educadora, foi pesquisadora sênior da FCC, idealizadora do Programa
Alfa de alfabetização. Faleceu no ano de 1983.
19
Pedagoga pela Universidade de São Paulo, foi diretora do Departamento de Pesquisas
Educacionais e Superintendente de Educação e Pesquisa. Atualmente, é Diretora Vice
Presidente da Fundação Carlos Chagas.
20
Várias foram as pesquisadoras que se dedicavam ao Coletivo em fins da década de
1970. Aquelas que chegavam à Fundação com doutorado eram pesquisadoras sênior,
enquanto as que ainda estavam cursando a pós-graduação atuavam como assistentes nas
pesquisas e departamentos. Destaco aqui Guiomar Namo de Mello, Maria Malta
Campos, Elba Siqueira de Sá Barretto, entre outras, que com o passar dos anos também
atingiram a categoria de pesquisadoras sênior, ou se destacaram na carreira acadêmica
em outras instituições.

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Campos, Maria Rita Kehl, Maria Valéria Junho Pena, Marília de Andrade, Maria
Correa e Ruth Cardoso.21 Com periodicidade bimestral, o jornal contava com
participações de várias mulheres para além de seu corpo editorial, e além de ser
vendido em bancas de jornais, era distribuído gratuitamente em órgãos de
imprensa, instituições acadêmicas e grupos organizados por mulheres em vários
lugares do país.

Já na primeira edição do jornal, as autoras deixam claro que uma de 850


suas intenções é integrar o debate entre mulheres de várias partes do Brasil que
produziam pesquisas sérias relacionadas a temáticas femininas e que, por vezes,
não tinham acesso umas as outras, como podemos perceber na seguinte
passagem:
Inicialmente, imaginava-se apenas um boletim de notícias que
fizesse o intercâmbio entre as diversas instituições e
pesquisadores voltados ao tema, visando a suprir uma
deficiência básica: por falta de informações, quem trabalhava
em São Paulo não sabia o que se fazia no Rio, por exemplo.
[...] Nos últimos anos, a imprensa brasileira está descobrindo
o assunto “mulher”, antes relegado as páginas de culinária e
dicas de beleza. No entanto, as informações da imprensa sobre
mulher ainda são, em geral, superficiais, esparsas e
contraditórias. Falta justamente um veículo que se dedique de
forma sistemática, aprofundada e abrangente a todos os
problemas que afetam a mulher brasileira, e que, pela reunião
periódica de informações obtidas de fontes fidedignas, possa
servir de orientação e manancial informativo para os que
focalizam tais assuntos nos meios de comunicação.22

De fato, as temáticas abordadas no jornal variavam entre vários


assuntos que faziam parte da realidade não só das mulheres brasileiras no geral,
mas que também eram temas de estudo das pesquisadoras que compunham o
corpo editorial do jornal. Temas como a situação das empregadas domésticas,
maternidade, violência contra a mulher, a inserção da mulher na política, a
questão das creches, a diversidade da beleza feminina, sexualidade, entre outros
temas que se tornaram pauta do movimento feminista de segunda onda.

21
Editorial do jornal Mulherio, nº 0, março-abril/81, p.2.
22
Idem, p. 1.

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Podemos perceber, desta forma, que a organização do jornal é um


exemplo de ambiente de sociabilidade intelectual. Segundo Jean Fraçois
Sirinelli, todo grupo de intelectuais organiza-se a partir de uma sensibilidade
ideológica ou cultural comum de afinidades, que alimentam o desejo e o gosto
de conviver. Esta estrutura de sociabilidade varia conforme as épocas e os sub
grupos de intelectuais analisados pelos historiadores. Estes formam um
microcosmo particular, onde se tem a máxima importância de se analisar as
851
influências de tais microcosmos, tais como as demandas sociais, os afetos e a
tradição. O campo intelectual possui certa autonomia, uma vez que seus
membros procuram construir diferenças capazes de lhes assegurar identidades
individuais e coletivas.

O pensamento de Jean Sirinelli fundamenta a noção de sociabilidade


que enxergamos na construção do jornal Mulherio. Compreendendo o campo do
estudo dos intelectuais como um campo aberto, transitando entre a história
política, a social e a cultura, o francês destaca ainda a frágil definição do que é
“ser” um intelectual, chegando a duas possíveis definições: a mais ampla
considera que qualquer um que se destaque como um mediador social pode ser
considerado um intelectual, como um jornalista ou um professor, por exemplo;
e uma mais restrita, que é baseada em uma noção de engajamento na vida da
cidade como ator. 23

Para Sirinelli, as duas formas de considerações de intelectuais devem


ter a atenção do historiador, que para além disso, deve se atentar a analisar não
apenas as trajetórias dos chamados “grandes” intelectuais, mas principalmente
aqueles que ele acredita estarem nas camadas intermediárias, de menor
notoriedade, pois mesmo sem o reconhecimento de seus papeis reais,
representam um fermento para as gerações seguintes, exercendo influência
cultural e até mesmo política. Notórias pesquisadoras, as mulheres componentes
do Mulherio não se destacam ainda hoje fora do ambiente especializado. Nem
mesmo o jornal figura entre aqueles que se matem na memória coletiva. Se na

23
SIRINELLI, Jean Fraçois. Os intelectuais. In: REMOND, René. Por uma história
política. Rio de Janeiro: FGV, 2003.

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década de 1980 o jornal foi um instrumento de divulgação de ideias feministas,


seu legado foi por muito tempo invisibilizado.

Desta forma, o mundo intelectual constitui um pequeno mundo estreito


onde laços de sensibilidade se atam em torno de objetivos comuns. Esses laços
são chamados de redes pelo autor francês, que ainda afirma que dentro destas
redes as relações de atrações e amizades, de hostilidade, de ruptura e,
principalmente, de afeto, são características fundamentais de um microcosmo 852
intelectual. A união destas mulheres representou um movimento político de
resistência e visibilidade feminina em um momento político no qual o debate
acerca dos direitos humanos e no lugar que as minorias – incluindo aqui as
mulheres – ganhariam no novo modelo de governo que começava a se desenhar
no Brasil. Unidas inicialmente pelo laço do gênero, permaneceram na união por
questões de afinidades intelectuais, políticas e afetivas, pela vontade de levar a
pauta feminista para o maior número de mulheres possíveis.

Acreditamos que a união dessas mulheres se dá a partir do momento em


que compartilham de uma cultura política feminista, utilizando aqui o conceito
de cultura política definido por Serge Bernstein. Afirma o autor que a definição
de cultura política deve ser plural, sendo um código e um conjunto de referentes
formalizados dentro de uma tradição política como um conjunto coerente onde
todos os indivíduos estariam em estreita relação uns com os outros, permitindo-
se definir, desta forma, uma identidade comum aos indivíduos que dela
participam. 24 Seriam, desta forma, elementos da cultura de uma sociedade, que
diz respeito aos fenômenos e as ideias políticos. O feminismo é o elo responsável
pela identidade comum que essas mulheres possuem, o que as une e as define
enquanto grupo organizado de ação política direcionada a um público específico.

24
BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean. Para uma
história cultural. Lisboa: Editora Estampa, 1998.

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Conclusão

Vários foram os periódicos alternativos feministas que circularam no


Brasil na segunda metade do século XX, em especial pós 1964. Possuíam
diversos formatos e direcionamentos: alguns focavam exclusivamente na
questão política, outros nas questões sexuais, enfim, uma variedade de temáticas
que possuíam uma questão em comum: dar voz a mulher de verdade, aquela que
dificilmente era vista nas páginas das revistas femininas produzidas pela 853
chamada imprensa tradicional.

Enquanto revistas como Capricho e Manequim focavam em questões


de comportamento, roupas, moda e fotonovelas, os periódicos alternativos
traziam a mulher para o ambiente político no qual o país estava inserido, e de
que forma suas demandas específicas se encaixavam neste momento. Alguns
periódicos são conhecidos por fazerem parte da chamada primeira fase da
imprensa alternativa feminista no Brasil, como por exemplo o Nós Mulheres e o
Brasil Mulher. Tais periódicos possuem como características em comum a
defesa de ideias e princípios relacionados ao contexto político do movimento
feminista pós luta armada, uma vez que tinham em seu corpo editorial mulheres
que, anos antes, haviam participado de grupos de resistência à ditadura, sendo,
alguma delas, presas e torturadas durante os anos de atuação em guerrilhas e
grupos “subversivos”, ou haviam sido exiladas pelo regime. Tinham como
objetivo geral e comum a difusão de reivindicações e propostas vinculadas às
condições das mulheres e as novas formas de se fazer política no país e no
mundo.25 Tornaram-se um veículo social no qual as mulheres poderiam refletir
sobre as relações desiguais existentes entre elas e os homens, assim como refletir
sobre as relações de desigualdade de classe. Pregavam a dupla militância,
sugerindo a filiação partidária ou sindical juntamente com a luta pela igualdade
de gênero.

25
TELES, Amelhinha; LEITE, Rosalina Santa Cruz. Da Guerrilha à Imprensa
Feminista: a construção do feminismo pós-luta armada no Brasil (1975-1980). São
Paulo: Intermeios, 2013.

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Mulherio surge em um segundo momento da imprensa alternativa


feminista, quando já não há mais a vinculação direta do feminismo com os
partidos políticos de esquerda. A pauta das mulheres, agora intelectuais
especializadas em questões que abrangem as demandas do mundo feminino das
“mulheres reais”, alcançavam outros patamares de interesses. Questões teóricas
que discutiam sobre gênero aliadas a pesquisas acadêmicas das renomadas
pesquisadoras se misturavam a debates sobre creches, mercado de trabalho e
854
liberdade sexual.

Podemos afirmar que a agenda feminista do Mulherio buscava elevar o


pensamento feminino a questões de seu dia a dia, para além de questões políticas,
mas sem que este movimento de emancipação do pensamento das mulheres
deixasse de ser um ato político.

Desta forma, consideramos que o contexto no qual o jornal estava sendo


gestado forjou uma cultura política feminista, um conjunto de ideias e
pensadoras que, unidas, formou uma cultura de pensamento comum, uma
identidade coletiva que, dentro do microcosmo social no qual estavam inseridas,
garantiu que um pensamento comum fosse compartilhado por diversos
indivíduos. E para além disto, colocar esta cultura política em circulação garantiu
que uma rede de sociabilidade feminista nascesse e se desenvolvesse, o que
podemos perceber nas várias contribuições recebidas pelo jornal de
pesquisadoras de várias partes do país, assim como na participação de leitoras
“comuns” na seção de cartas aos editores.

Mulherio teceu uma teia na qual cada parte repousou em determinado


lugar, e assim pensamentos singulares puderam ser compartilhados, debatidos e
rebatidos, em um movimento de circulação talvez inédito na imprensa
alternativa brasileira. A pluralidade de pesquisadoras membros do conselho
editorial do jornal garantiu que vários tipos de ideias fossem divulgadas, porém,
dentro de um todo maior, que é o da cultura política feminista.

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REFERÊNCIAS

Fonte

Jornal Mulherio, nº 0, março-abril/81.

Bibliografia

ALVES, Branca Moreira; PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo? Coleção 855


Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 1981.

BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI,


Jean. Para uma história cultural. Lisboa: Editora Estampa, 1998.

BORGES, Joana Vieira. A grande dama do feminismo no Brasil. Revista


Estudos Feministas. Vol.14. nº 02. Florianópolis May/Sept., 2006.

CARDOSO, Elisabeth P. Imprensa Feminista Brasileira pós-1974. Dissertação


de mestrado. Universidade De São Paulo, 2004.

GOLDBERG, Annete. Feminismo e autoritarismo: a metamorfose de uma


utopia de liberação em ideologia liberalizante. Dissertação de mestrado.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1987.

HEILBORN, Maria Luiza; SORJ, Bila. Estudos de gênero no Brasil. In:


MICELI, Sérgio (org.) O que ler na ciência social brasileira (1970-1995). São
Paulo: Editora Sumaré, 1999.

KAS, Leonel. Um olhar sobre elas, as revistas. Disponível em:


http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4204434/4101415/memoria4.pdf.
Acesso em 18 ago 2016.

KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e Revolucionários: nos tempos da imprensa


alternativa. São Paulo: Scritta, 1991.

OLIVEIRA, Rodrigo Santos de. A relação entre a História e a Imprensa, breve


história da imprensa e as origens da imprensa no Brasil (1808-1930). Historiae,
Rio Grande, 2 (3), 2011.

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SIRINELLI, Jean Fraçois. Os intelectuais. In: REMOND, René. Por uma


história política. Rio de Janeiro: FGV, 2003.

TELES, Amelinha; LEITE, Rosalina Santa Cruz. Da Guerrilha à Imprensa


Feminista: a construção do feminismo pós-luta armada no Brasil (1975-1980).
São Paulo: Intermeios, 2013.

856

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O PCB E O FEMINISMO NA LITERATURA DE HELONEIDA


STUDART

Ioneide M P B de Souza*

Considerações iniciais

Qual o lugar da mulher na história? O questionamento de Michelle 857


Perrot reflete uma preocupação que há muitos anos vem atormentando aqueles
que se dedicam a estudar as mulheres (SCOTT, 1992, p. 75). Durante anos essas
mulheres estavam no bojo das críticas de historiadores que enfatizavam a
dicotomia homem/cultura e mulher/natureza marcada por estereótipos,
preconceitos e uma hierarquia de valores. Essa bipolaridade era sustentada pela
idéia da “desigualdade” entre os dois sexos, separando e opondo-os: o universo
masculino relacionado à cultura, sinônimo de objetivo, de racional e de público,
determinava a sua dita “superioridade” em relação ao universo feminino,
enquadrado à natureza “reveladora” de sua suposta propensão ao emocional, ao
subjetivo e ao privado.

Fruto de mitos e medos próprios do sexo masculino ocidental, o


feminino ficou restrito à esfera privada, vivendo por anos à sombra dos conceitos
masculinos que foram atribuindo às mulheres vários papéis no decorrer da
história. As relações entre os sexos estabelecidas ora as faziam ficar esquecidas
na história, ora as fixavam em estereótipos binários: santas ou pecadoras, Maria
ou Eva, mãe ou intelectual, donas-de-casa ou prostitutas (GONÇALVES, 2006,
p. 48-9).

Enquanto instrumento analítico o gênero veio demonstrar que o


masculino e o feminino eram formulados em suas relações e interações num
determinado tempo e espaço, ou seja, que esses conceitos eram construções
socioculturais e, portanto, históricas. Esse instrumento analítico também foi
salutar ao trazer à tona a questão da diferença em noções que focalizavam a idéia

*
Doutoranda em História – UFJF. ioneide.piffano@gmail.com

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de unicidade nas categorias masculino e feminino no seio da História


(GONÇALVES, 2006, p.74).

O gênero seria, então, um fenômento inconstante e contextual, que não


denotaria um ser substantivo, mas um ponto relativo de convergência entre
conjuntos específicos de relações, cultural e historicamente convergentes
(BUTLER, 2003, p. 29). O gênero deveria ser entendido como efeito no lugar de
um sujeito centrado tendo por consequencia o abandono da idéia de sujeito da 858
história e das noções unitárias de mulher e identidade genérica feminina. Essas
seriam substituídas por conceitos de identidade social que são conceitos plurais
e de constituição complexa, e nos quais o gênero seria somente um traço
relevante entreoutros.

Desta forma, passou-se a ser privilegiadas as múltiplas identidades


vistas através de prismas diversificados, tais como: classe, raça, etnia e
sexualidade (SCOTT, 1992, p.87). Com isso, evidenciava-se que os indivíduos
eram produtores e produtos de construções sociais. Ao se historicizar as
identidades sexuais, o feminino passou a ser pensado como uma construção das
relações sociais, das práticas disciplinadoras e dos saberes (discursos)
instituintes, muito deles feitos pelo masculino (RAGO, 1995, p. 86-8).

Ao optar pelo uso do conceito de gênero no presente artigo almejei


analisar a maneira como a escritora se inseriu nos debates sobre a mulher e as
relações de gênero no período. Acompanhar parte da trajetória da escritora e a
mudança de sua postura enquanto escritora em função dos lugares de onde falava
tendo o gênero como instrumento analítico no período, serviu para que se
pudesse observar as transformações na forma de abordar o tema mulher e
relações de gênero vivenciadas pela escritora e espelhadas em seus livros.

A chegada na Capital Federal

Heloneida Studart chegou à cidade do Rio de Janeiro em 1953 após


lançar um livro de contos no Ceará (1952) sob patrocínio da Ala Feminina da
Casa de Juvenal Galeno. Na Capital Federal sob amadrinhamento de Rachel de

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Queirós, logo lançou seu primeiro romance e ingressou na faculdade de Ciências


Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. No entanto, para se manter
enquanto escritora, Heloneida teve que buscar um trabalho que permitisse
angariar capital a ser investido na produção de seus romances uma vez que não
podia contar com ajuda financeira vinda de sua família que não a aceitava como
escritora.

Buscando formas de se manter na capital, decidiu participar de um 859


concurso literário patrocinado pelo Serviço Social da Indústria (SESI). Sua tese
sobre as favelas cariocas, não só foi premiada, mas chamou a atenção dos
diretores do SESI que a convidaram para comandar uma biblioteca ambulante
(CUNHA, 2008, p.273) emprestando livros nos conjuntos habitacionais de
trabalhadores, sobretudo, na região da Piedade, Penha e Bonsucesso. Cada dia
da semana a biblioteca estava em um conjunto habitacional onde além dos
empréstimos de livros, também eram organizadas, pela própria Heloneida,
palestras educativas e filmes versando sobre saúde e questões de higiene
(FERREIRA; ROCHA; FREIRE, 2001, p. 58).

Em entrevista concedida a Marieta de Moraes Ferreira e Américo Freire


em 1999, Heloneida afirmou que o trabalho na biblioteca móvel foi responsável
por sua politização, uma vez que ela passou a ter uma aproximação mais direta
com os operários e com a injustiça social (Idem, p.58-9). Cabe ressaltar também,
que foi a partir dos contatos travados no SESI que Heloneida iniciou sua
contribuição semanal nos jornais Correio da Manhã e Diário de Notícias. Em
ambos, a autora escrevia artigos e crônicas versando sobre as condições de vida
dos trabalhadores brasileiros.

Heloneida Studart entrou, então, na década de 1960 cada vez mais


próxima de uma literatura centrada no proletário do que em questões
regionalistas tão caras aos seus romances da década de 1950.

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O feminismo

Os anos de 1960 foram marcados em âmbito mundial por uma onda


contestadora que abrangia os movimentos pacifistas contrários a guerra do
Vietnã, as lutas antirracistas, o movimento estudantil, os questionamentos ao
american way of life, o movimento hippie, a desilusão pós-socialismo e a crítica
ao stalinismo. Assim, proliferava-se ao redor do mundo movimentos de cunho
revolucionário dos mais diferentes matizes: desde a revolução de ordem política 860
à revolução de costumes (BASTOS, 2004, p.18).

Foi permeado por este contexto que o feminismo internacional voltou à


cena depois de algumas décadas de desmobilização. Ele ressurgiu a partir da
consciência de que a mudança pura e simples das leis não era suficiente para
transformar as estruturas ideológicas pautadas em leis consideradas de cunho
patriarcal. A conquista jurídica não foi capaz de mudar os parâmetros da
subordinação feminina (COSTA, 2003, p.2).

Então, os “novos feminismos”1 se articulavam em torno da bandeira


“pessoal é político” sendo que este político rompia com a identificação da teoria
política com o âmbito da esfera pública e das relações sociais que aí aconteciam.
As questões do mundo privado foram trazidas à superfície quebrando a
dicotomia público-privado (muito forte na década anterior) que era base do
pensamento liberal sobre as especificidades da política e do poder político
(COSTA, 2003, p.3). Com isso, o feminismo chamava a atenção para o caráter
político da opressão vivenciada pelas mulheres de forma individual e isolada no

1
Estes “novos feminismos” também são conhecidos por feminismo de Segunda Onda.
Ele tem seu início datado a partir de meados da década de 1960 e teria por característica
a inclusão das reinvindicações de direitos políticos, educacionais e direito a salário
equiparado ao dos homens, aquelas referentes à sexualidade (direito ao prazer) e ao
corpo (aborto e contracepção). Ao incorporar essas reivindicações esse novo feminismo
uniu em um movimento o feminismo tido de primeira onda e o movimento das mulheres
até então restrito a denúncia das diferenças entre homens e mulheres. A classificação
em ondas tem sido questionada por aglutinar em um único termo um movimento com
vivência muito díspares. Para mais sobre esse assunto ver PEDRO, Joana Maria. Corpo,
Prazer e Trabalho. In: PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria. Nova História
das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012.

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âmbito do lar. Disto decorria a constatação de que a opressão possuía raízes


sociais e requeriam, portanto, soluções coletivas.

As feministas deste período mostraram como as circunstâncias pessoais


eram estruturadas por fatores públicos, logo, os problemas pessoais só podiam
ser resolvidos através dos meios e das ações políticas. Ao trazer para a esfera
pública estas novas questões, o feminismo possibilitou a criação de novas
condutas, novas práticas e conceitos que puseram em xeque a divisão sexual, 861
sobretudo, do trabalho e a própria construção dos papéis sexuais. Todos estes
questionamentos compuseram o caráter subversivo do movimento o que
permitiu qualificá-lo como revolucionário (BASTOS, 2004, p.18).

Esta nova forma de entender o feminismo chegou ao Brasil em um


momento peculiar de nossa história: vivíamos em pleno regime militar que, por
sua vez, colocava entraves à liberdade de expressão e levava como reação o
surgimento de lutas políticas e sociais com viés de esquerda. Neste regime,
como em todos os projetos políticos autoritários, a construção de sujeitos ocorreu
de forma unitária e não diversificada. Assim, parte deste novo feminismo no país
se originou nas ruas como consequência da resistência das mulheres aos limites
impostos pela Ditadura (STERNBACH, 1995, p.74).

As mulheres, até então pouco presentes no espaço político do país,


foram construindo gradativamente uma ponte unindo o privado e o público ao
saírem em defesa, em primeiro do lar e depois ao liderarem movimentos de
defesa coletiva. A presença delas na luta armada representava uma transgressão
ao papel que sempre lhe fora designado de mãe, dona de casa e esposa. Elas
assumiam um comportamento sexual que colocava em questão a instituição do
casamento e da virgindade, pilares que eram considerados o fim último de toda
mulher. Contudo, isto não tornava mais fácil a relação feminismo e luta armada
no país.

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Podemos dizer que o feminismo à brasileira2 era filho do autoritarismo


e do sexismo tanto dos mecanismos repressivos do estado quanto das
organizações de esquerda. Tanto militares como militantes tendiam a igualar os
sujeitos uma vez que as diversidades eram entendidas como divisionistas da luta
principal. Os dois discursos anulavam as diferenças e construiam sujeitos
políticos únicos, desconsiderando a presença feminina e enquadrando-a em
categorias que a desqualificavam. Nesta medida, instituía-se a invisibilidade da
862
mulher como sujeito político (COLLING, 2012, p.6).

O “feminismo brasileiro” nascente distinguia-se do movimento europeu


e estadunidense ao se concentrar em promover um projeto mais amplo de
reforma social que envolvia diferentes formas organizativas que possibilitavam
o envolvimento dos setores populares com suas demandas, dentro das quais se
realizavam os direitos das mulheres. Além disso, trazia em seu cerne um
dificílimo paradoxo: ao mesmo tempo que teve de administrar as tensões entre
uma perspectiva autonomista e sua profunda ligação com a luta contra a ditadura
no país, foi visto como um sério desvio pequeno-burguês. As bandeiras
especificas das mulheres representavam, para a esquerda, um risco para a luta
central que, naquele momento, era contra o governo ditatorial (PINTO, 2003, p.
45). Para as organizações de esquerda, a problemática da condição feminina na
nossa sociedade não tinha relevância nem espaço para discussões, não era tratada
política ou teoricamente, quase todo o esforço estava para a derrubada do regime
militar e concretização da revolução socialista.

Com isso, criava-se um imaginário extremamente estigmatizante dos


movimentos feministas, relacionando-os com o apanágio de burguesas
sexualmente frustradas ou lésbicas raivosas. A ideia de que o conceito de classe

2
É necessário deixar claro que esse “feminismo a brasileira” não é, de forma alguma
homogêneo e fechado. Este perpassara, e ainda perpassa, por diversas discussões e
embates teóricos. O que se pode falar são de feminismos a brasileira, dada a diversidade
de discussões e narrativas que tratam sobre a emancipação feminina. No entanto para o
presente artigo em função da trajetória da autora, o que é relevante é aquele feminismo
que nasce articulado com as camadas populares, atrelado às lutas de esquerda e valendo-
se de uma corrente epistemológica fortemente matizada pelo marxismo e pela luta de
classes, por isso o uso da expressão no singular.

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deveria ser priorizado em relação ao de sexo revelava, portanto, que a


apropriação da linguagem masculina, marxista ou liberal, era fundamental para
se conseguir a aceitação na esfera pública masculina. Era uma estratégia de
reconhecimento político e social importantíssimo em um período em que o
mundo da política era exclusivo dos homens (RAGO, 1998, p.4).

Assim, dentro de uma sociedade altamente masculinizada, não foram


poucas as barreiras que essas mulheres feministas enfrentaram. Constavam de 863
seus obstáculos a família, a sociedade, alguns membros das organizações, a força
repressora e, obviamente, as próprias mulheres. Elas assumiam os discursos
vigentes e camuflavam a sua sexualidade numa categoria sem sexo: militante
político. Tal fato, empurrou ainda mais para debaixo do tapete da luta armada
aquelas que simpatizavam com o feminismo. Era mais fácil assumir o rótulo de
militante de esquerda cuja figura estava ligada aos valores como valentia,
virilidade, coragem e firmeza (DUARTE, 1999, p.71).

Cabe ressaltar aqui que a própria Heloneida Studart, embora desde a


década de 50, já escrevesse livros com temática sobre mulheres, tendo
participado ativamente da Ala Feminina da casa de Juvenal Galeno e dizendo-se
feminista desde menina (FERREIRA; ROCHA; FREIRE, 2001, p.67)
corroborava com essa ideia de que no Brasil, com tantas mazelas políticas e
sociais, havia muito mais a fazer para além de combater o machismo ou defender
a liberdade sexual da mulher. A condição de gênero, neste período em sua obra,
estava subsumida ao discurso de unificação dos sujeitos.

Heloneida e o PCB

Foi no ano de 1963 que Heloneida, ainda estando à frente da biblioteca


intinerante do SESI, aproximou-se de José Cândido Filho, militante do Partido
Comunista, e juntos criaram o Senalba (Sindicato dos Empregados em Entidades
Culturais, Recreativas, de Assistência Social de Orientação e Formação
profissional do Município do Rio de Janeiro). Primeiro ambos criaram uma
associação profissional da qual ele foi presidente e Heloneida vice, e depois eles

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pediram a carta sindical. Neste processo Heloneida contou com a ajuda de seu
amigo Hércules Correia3 (que naquele tempo era o presidente do CGT —
Comando Geral dos Trabalhadores, que hoje equivaleria à CUT — e também
estava no comando do PUA — Pacto de Unidade e Ação) que a ajudou a
conseguir a carta sindical, que saiu no fim do ano de 1963. Uma vez
transformada a associação em sindicato (o Senalba) Heloneida, Cândido Filho e
Hércules Correia alugaram uma sede na Cinelândia, sendo o Cândido presidente,
864
Heloneida vice. Logo de saída o sindicato organizou uma greve que teria
conseguido um aumento de 40% para a categoria (FERREIRA; ROCHA;
FREIRE, 2001, p.59).

É possível afirmar que a escritora entrou em contato com as idéias e


propostas comunistas antes mesmo de ingressar no Partido Comunista do Brasil
(PCB). A filiação formal de Heloneida Studart ao PCB ocorreu apenas em 1964.
Aliás, pode-se dizer que foi nessa época, que a escritora se tornou um membro
partidário efetivo, deixando de ser apenas uma aguerrida simpatizante. De
maneira tal que, em 1966, ao assumir a presidência do Senalba promoveu
inúmeras greves por melhoria salarial. Na presidência, ficou até receber uma
portaria, oriunda dos reflexos do Ato Institucional de número 5, que a destituía
do cargo e dois dias depois a levava presa para o presídio de São Judas Tadeu
onde permaneceu por 12 dias. Livre, Heloneida viu-se demitida do seu trabalho
no SESI e dos muitos dos jornais para os quais escrevia. Jornais que não queriam
ter o nome atrelado a uma ex-presa política. A situação perdurou até meados de

3
Hércules Correia nasceu em Cachoeiro do Itapemirim (ES) em uma família operária
de tradição comunista. Em 1942 mudou-se para o Rio de Janeiro e trabalhou como
engraxate e depois como operário têxtil. Em 1944 entrou para o PCB e posteriormente
fez cursos em Moscou e foi líder sindical. Em 1960 elegeu-se deputado constituinte no
estado da Guanabara na legenda do PTB. Em 1962 participou da criação do Comando
Geral dos Trabalhadores (CGT), organização intersindical não reconhecida pelo
Ministério da Trabalho, de cuja direção executiva passou a fazer parte, e foi eleito para
a Assembléia Legislativa da Guanabara. Em 1963 foi eleito presidente do Sindicato dos
Têxteis da Guanabara. Após o golpe de 64, teve o mandato cassado e os direitos
políticos suspensos por 10 anos. Continuou militando clandestinamente no PCB e em
1967 foi eleito membro do comitê central do partido. Em 1971 passou a integrar a
comissão executiva do PCB e em 1974 viajou para Moscou. Em 1979, com a anistia,
retornou ao Brasil. Em 1982 candidatou-se a deputado federal na legenda do PMDB,
mas não foi eleito. Ver Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro.

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1970 quando começou a trabalhar na revista Manchete (FERREIRA; ROCHA;


FREIRE, 2001, p. 62-7).

Heloneida mesmo depois de presa e desempregada continuou atuando


no PCB. Assumindo novas responsabilidades políticas, fortaleceu ainda mais os
nexos entre sua prática literária e a militância, transformando seus romances em
registros cada vez mais sensíveis, quase “orgânicos”, de sua vivência no PCB.
Em grande medida, sua literatura passaria a focar personagens e enredos que 865
destacassem nem tanto a ação dos “proletários” em si, mas principalmente a dos
“comunistas” e dos seus simpatizantes4, de qualquer origem ou condição de
classe.

Vale destacar, que desde 1930, fazia parte da estratégia do PCB, em


nível mundial, a construção de figuras emblemáticas (de intelectuais partidários)
que permitissem a convergência de energia e esforços de mobilização comunista,
tendo figurado como um dos maiores pressupostos do realismo socialista a
valorização do herói proletário, o que não aconteceria apenas na ficção, mas
também na imprensa operária em torno de figuras reais, como foi ocaso de
Prestes. Desta maneira, as artes em geral, e a literatura de forma mais específica,
foram alvo de preocupações dos comunistas. Na União Soviética e nos partidos
pelo mundo afora, tentaram encontrar uma fórmula responsável pela melhor
divulgação do comunismo e pela atração de novos militantes. Um modelo
estético capaz de espelhar o novo homem e a nova sociedade que se estaria
construindo no mundo socialista e, ao menos em germe, na militância comunista
de forma geral.

Em suas obras de ficção essa estratégia do PCB também parece ter sido
uma marca de Heloneida. Nenhum de seus personagens pode ser caracterizado

4
Como é o caso do romance A Culpa que por se tratar de uma obra de transição entre
sua fase de simpatizante e militante ainda mostra de forma tímida a caracterização da
ação dos proletários e dos menos favorecidos. Essa explode, ao meu ver, nos romances
intitulados pela autora como trilogia da tortura: O Pardal é Um Pássaro Azul (1975), O
Estandarte da Agonia (1981) e O Torturador Em Romaria (1986). Estes romances
apesar de escritos e publicados posteriormente a este período de militância mais pujante
no Partido, são frutos de esboços feitos durante seu cárcere em meados da década de
1960 e guardam muito desta militância.

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como um herói típico. Todos, sem exceção, dos protagonistas aos comunistas,
são apresentados em sua humanidade repleta de falhas, fraquezas e fragilidades.
Suas obras do período, embora refletissem mais a questão da injustiça (vista em
todos os níveis: social, política, econômica e de gênero) do que o conflito nas
relações de gênero, mantinham com este conflito um importante diálogo.

Desta maneira, mesmo falando a linguagem da militante, a autora se


esforçava para dar continuidade a uma luta pessoal que, era anterior a entrada no 866
Partido. Heloneida se compreendia, neste momento, primeiro enquanto alguém
em prol dos menos favorecidos, militante do Partido Comunista e somente, na
década de 70, ela se assumiu feminista com toda carga que este conceito poderia
trazer. Referindo-se a sua relação posterior a 1970 com o feminismo a autora
assim colocava: “eu tinha uma visão muito individual, mas tinha um sentimento
profundo da injustiça daquela condição feminina. Era uma coisa mal formulada,
não elaborada” (FERREIRA; ROCHA; FREIRE, 2001, p.67-8), por isso a meu
ver na década em questão a autora ocilava entre abordar as questões sociais dos
menos favorecidos, ora em abordar a questão do lugar da mulher na sociedade.
Na verdade, a mulher entrava em sua produção literária como mais um dos que
sofriam com a injustiça social.

A filiação ao PCB deixou marcas profundas na obra de Heloneida o que


demonstra que a vinculação ao Partido não era meramente simbólica. A adesão
implicava em aceitar ou conviver com a ideologia e as normas partidárias, que
incluíam a disciplina e o cumprimento das mais variadas tarefas partidárias,
habitus que deveriam ser incorporados pelos intelectuais que aderiam ao partido.
Na obra literária de Heloneida esta a fase se traduziu em uma literatura de luta e
revolta, de movimento de massa. Sem heróis, nem heróis de primeiro plano (ou
como a presença de um protagonista bem fragmentado beirando a um anti-herói)
fixando vidas miseráveis sem piedade mas com revolta. É mais crônica e
panfleto do que romance no sentido burguês pretendendo fazer do leitor um
inimigo da outra classe.

Assim, usando as palavras de Luiz Gustavo Freitas Rossi (2004, p.158-


9) ao falar de Jorge Amado e seu romance, podemos caracterizar bem a escrita

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de Heloneida no momento. A escritora se aproximou na década de 60 do que


seria um escritor proletário voltado, antes de tudo, em provocar a revolta nos que
leem sua obra e incitar a revolta a partir de um texto indigesto. Trazendo para o
plano narrativo as experiências e condições de vida de uma classe emergente no
Brasil, Heloneida Studart usou esta modalidade literária como um instrumento
de transição e acirramento de conflitos, formulada nos termos de um “panfleto”
doutrinário para a prática revolucionária. Uma literatura “anti-burguesa” que
867
forjava um sentido de massa, povo e popular pregado ao pertencimento à classe
proletária, procurando alargar este pertencimento a todos aqueles que, de alguma
maneira, encontravam-se numa situação de exclusão e subordinação e possuíam,
potencialmente, capacidade de subverter a ordem social. Aí ela soluciona seu
conflito temático ao trazer a mulher como mais um dos tantos excluídos pelo
sistema opressor burguês.

É perceptível, então, na obra de Heloneida uma preocupação com a


opressão social, não só da mulher, mas também com os menos favorecidos. Tal
libertação da opressão só poderia ser conquistada quando todas as pessoas
tivessem chances iguais à educação, saúde, habitação, alimentação, salários
dignos, justiça, amparo à velhice e à infância. A mulher, para a autora, neste
contexto assumia uma nova forma de participação na sociedade. Ela tinha ideias
diferentes das que “se acomodaram em casa”. Isto refletia a relação dialética
entre identidade e alteridade, pois a construção da identidade feminina ocorreria
no interior de contextos sociais, que estabeleceriam a posição dos agentes sociais
ao orientar suas representações e suas escolhas.

Sendo assim, a década de 1960, sobretudo a partir de 1963, pode ser


caracterizada na escrita de Heloneida Studart como um período de forte teor
marxista que fez com que suas obras adequassem uma discussão global a
respeito da emancipação feminina para a realidade e a lógica de um país tido
como subdesenvolvido e mergulhado em uma ditadura militar. Tal fato fez
emergir em seus romances da década de 1960 uma preocupação com as classes
não privilegiadas. Neles há uma denúncia social que colabora para a
desestruturação do processo de identificação e diferenciação responsável por

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reconstruir, reproduzir a alteridade e por definir quem é o outro, tornando-o


identificável, invisível e previsível. Para isso, a autora se valeu de categorias que
remetem às diferenças econômicas (ricos versus pobres), numa perspectiva mais
ampliada, não mais focada no universo dos “explorados”. A rígida divisão de
classes dá o tom da narrativa.

O Partido, embora não esteja diretamente mencionado, paira como


força civilizadora e organizadora da vida social como um todo de Heloneida. 868
Marcelo Camurça, num artigo sobre a adesão de intelectuais ao PCB entre os
anos de 1922 e a década de 1960 – seguindo um argumento muito próximo ao
de Sérgio Miceli – compara a boêmia literária francesa do século XVIII com os
intelectuais que orbitaram nos partidos comunistas do século XX. Segundo
Camurça há em ambos os casos uma agregação por estarem marginalizados do
campo de poder e prestígio, por isso, a postura de confronto com o sistema
dominante e a valorização de um comportamento rebelde (CAMURÇA, 1998,
p.70) .

Essa postura tinha sua lógica, segundo Ana Paula Palamartchuk (2004,
p.275-282), já que muitos desses intelectuais, inclusive Heloneida, vinham de
famílias tradicionais decadentes das camadas médias do Nordeste, Rio Grande
do Sul e Rio de Janeiro e encontravam no partido comunista um lugar para reagir
à exclusão de certo prestígio social, alocando-se no estado e no aparelho
burocrático do governo como forma de ascensão5. Esses intelectuais ao serem
cooptados pelo Partido, por sua vez, emprestavam para esse seu prestígio de
escritor e assumiam em contrapartida seu dever de “verdadeiros” intelectuais
comunistas, ou seja, aqueles ligados pela “doutrina” aos trabalhadores.

Tendo adotado os estatutos da Internacional Comunista (IC), o PCB


elaborou seu programa político baseado numa análise na qual as condições

5
Devemos lembrar aqui que muito desta militância de Heloneida no PCB será retomada
posteriormente quando deputada na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro
(ALERJ) talvez como forma de relocação no campo sócio-político. Além disso, como
veremos mais adiante a própria possibilidade dentro do partido de se questionar a
exclusão permitirá o fortalecimento da luta, que será a primordial para a escritora, da
exclusão feminina.

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econômicas do país eram uma mistura do capitalismo agrário com o capitalismo


industrial; um país independente políticamente, mas economicamente
dependente do imperialismo, sobretudo, inglês. Nessa situação, os grupos sociais
ligados aos interesses do capitalismo agrário eram conservadores, mas aqueles
grupos ligados ao capitalismo industrial poderiam realizar a revolução
democrática burguesa que estaria na base das transformações políticas e
econômicas necessárias ao desenvolvimento do capitalismo. Neste sentido, as
869
camadas sociais ligadas à literatura, às artes e às ciências foram postas como
membros da burguesia nacional, mas os intelectuais pobres (aí subeentende-se
aqueles vindos do nordeste e descentendes de famílias agrárias decadentes)
formariam, junto com o proletariado, uma aliança revolucionária.

Aliança, que segundo Luiz Gustavo Freitas Rossi, almejava responder


à pergunta do que deveríamos ou poderíamos ser como nação. A resposta a essa
indagação passava por uma reinterpretação do passado nacional e pela
construção de projetos do que se constituíria como nação. E nesse processo os
romancistas da geração de trinta6, da qual Heloneida descendia, inauguraram
para o Partido o “romance brasileiro” com o seu romance regionalista no qual
havia uma valorização do ser povo e ser trabalhador que desnudava um problema

6
Também conhecido como romance proletário. Este termo foi tomado pelos autores da época
com uma acepção mais genérica, e com o intuito de esquadrinhar palmo a palmo a miséria do
país, incorporando os “pobres” à cena política e intelectual. “Proletário”, então, terminaria por
designar todo e qualquer indivíduo que trouxesse em si um “ar de revolta”, que estivesse contra
o “sistema” ou, de alguma forma, à margem da sociedade. Assim sendo, para os escritores de
1930, “proletários” seriam desde trabalhadores rurais, passando por estivadores, vaqueiros,
militantes, miseráveis, prostitutas, malandros, boxeurs, capoeiras, retirantes, desempregados,
crianças, homossexuais, inválidos, mendigos, viúvas desamparadas, pescadores, jovens
intelectuais, soldados, até o operário urbano. Além desta terminologia há outras como: “romance
social”, “regionalista”, “de esquerda”, “engajado”, “revolucionário”, “intimista”, “psicológico”,
“católico”, nordestino (termo este usado pela livraria José Olympio editora). Para este estudo,
optou-se por usar a designação de romance de 30, que segundo Simone Ruffato (2011:253), é de
fato uma solução “menos rígida” para encarar o período, e possibilita ao leitor o acesso às obras
sem as – por vezes – engessantes categorias literárias. O que num primeiro plano é por impulso
associado ao tal “regionalismo”, ou aos escritores do Norte, foi, na realidade, um momento de
tensão política generalizada (no Brasil, os movimentos que levaram à Revolução de 1930; a
instituição do Estado Novo em 1937; no mundo todo, os embates que culminaram na II Guerra),
que se refletiu na literatura de diversas maneiras, todas elas norteadas pela necessidade de adoção
de uma postura ideológica de direita ou de esquerda – daí variarem tanto suas correntes literárias.
Além disso, embora a data em destaque seja 30, os romances com características abordadas no
texto podem ser encontrados até início da década de 1950.

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social de âmbito nacional e que casava perfeitamente com os ideários do PCB


(ROSSI, 2004, p. 89-90).

No entanto, segundo Palamartchuk, este casamento entre intelectuais e


o PCB não era tão perfeito assim como o Partido desejava propagandear. Os
intelectuais quando dentro do partido se viam impedidos de alcançarem postos
elevados na direção partidária, o que ainda era pior para as mulheres muitas
vezes colocadas em posições subalternas dentro do próprio partido. Mas de uma 870
maneira geral, os intelectuais embora emprestassem seus nomes para
propagandear e dar prestígio a organização muitas vezes eram cerceados em sua
atividade criadora por mais que se esforçassem, muitos tinham grandes
dificulades em permanecer no partido e com nossa autora isso não foi diferente
e o estopim para o afastamento gradual de Heloneida foi, sem sombra de dúvida,
a impossibilidade de dentro do partido tratar daquela que seria a questão
norteadora de seu projeto literário: a mulher (PALAMARTCHUK, 2003, p.9).

O PCB e o feminismo

Cabe ressaltar aqui que a questão da mulher dentro do socialismo


sempre foi uma questão menor. Embora em vários documentos da II
Internacional, a questão não só apareça na pauta dos Congressos como se torna
o tema de uma conferência, a Conferência Internacional de Mulheres Socialistas
e na da III Internacional – que nos interessa mais particularmente, dada a
influência que exerceu sobre a política do Partido Comunista do Brasil (PCB) –
haja uma observação para que os Partidos Comunistas estendessem sua
influência às vastas camadas da população feminina de seu país, através de um
órgão especial do Partido, isso não ocorria devido a preocupação com a mulher
em si, mas para livrá-las da influência das concepções burguesas e da ação dos
partidos coalizacionistas, para fazer delas verdadeiros combatentes pela
libertação total da mulher e aí servidoras dos ideais do Partido.

Assim, a formação de órgãos especiais para a mulher não se baseava


na constatação da especificidade da condição da mesma e na necessidade de uma

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luta específica. Na verdade, a “questão da mulher” era diluída nas relações de


classe de modo a negar qualquer especificidade que justificasse a necessidade de
uma práxis e instrumentos mediatórios específicos para a superação da opressão
da mulher. A partir da leitura da obra de Engels, A origem da família, da
propriedade privada e do Estado (ENGELS, 1985), encontramos a afirmação de
que a origem de tal opressão tem início com a propriedade privada e concluía-se
que a extirpação de ambas seria um evento simultâneo: a transformação da
871
propriedade privada em “propriedade socialista” implicaria necessariamente o
fim da opressão da mulher. Nessa visão, toda a atividade prática, em vista do
escopo último da revolução social, deveria ser canalizada para a conquista e
organização das “massas atrasadas” pelo partido, tomado como a única
organização verdadeiramente vanguardista. Não surpreende que o movimento
feminista fosse rejeitado como diversionista, em relação ao escopo último da
revolução, e divisionista, em relação à necessária unidade da classe operária e
de seu partido, ao concentrar-se nos “interesses mais mesquinhos do mundo da
mulher”.

As organizações femininas, cuja formação era incentivada nas


resoluções da III Internacional, não deveriam, então, concentrar-se em tais
interesses mesquinhos das feministas, mas mobilizar e organizar mulheres para
a revolução socialista, ampliando o contingente dos revolucionários. Uma vez
“conquistadas” para a “luta de classes”, as mulheres não ocupavam os mesmos
postos nem exerciam as mesmas funções que os homens. A divisão hierárquica
de trabalho no interior das organizações tendia a excluir as mulheres das funções
politicamente mais relevantes, de maior poder decisório, e a atribuir-lhes as
funções tradicionalmente “femininas” (secretariar, limpar, etc.). Em sua maioria,
as organizações de base femininas realizam mais o trabalho de agitação e
propaganda, deixando de lado a tarefa fundamental para a qual foram criadas,
isto é, mobilizar e organizar as mulheres partindo das reivindicações específicas,
das lutas contra a carestia, pelo congelamento dos preços, em defesa da infância
e levando-as até as lutas democráticas e emancipadoras.

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Será somente com a efervescência do movimento feminista no final dos


anos 1960 e ínicio dos de 1970 que essa tradição sofrerá uma crítica radical
dentro do próprio movimento socialista. Nesse período, a pujança do movimento
feminista suscita uma série de questões para o movimento socialista e muitas
militantes, inclusive Heloneida, começaram a questionar as respostas
tradicionalmente dadas ao problema da mulher. As militantes reconheciam que
as relações de opressão não poderiam ser diluídas nas relações de classe.
872
A persistência de hierarquias entre homens e mulheres nos países ditos
socialistas é então considerada uma refutação prática da teoria segundo a qual o
fim da propriedade privada eliminaria a opressão das mulheres. A abolição da
propriedade privada passa a ser considerada uma condição insuficiente para a
liberação das mulheres, e envolveria uma série de dimensões que não poderiam
ser alteradas por meio de transformações meramente jurídicas. O
reconhecimento da especificidade e da complexidade da “questão da mulher”
conduz, por sua vez, à percepção da necessidade de uma organização das
mulheres a partir de sua condição específica, isto é, de uma organização
feminista autônoma.

É justamente o aguçamento da percepção de que a hierarquia entre os


sexos não é somente um problema externo mas também interno ao movimento
socialista e ao partido que colocava como objetivo da organização feminista não
só combater uma estrutura social marcada por hierarquias e papéis “sexuais”,
mas também suas manifestação dentro da própria esquerda. Foi na perspectiva
de uma frente dupla de luta – combate a opressão e à exploração – que se
configurou a idéia de dupla militância, isto é, da militância em um movimento
feminista autônomo concomitante com a militância no partido postura que vai
ser assumida por Heloneida Studart na década de 1970 até sua “efetivação” como
feminista quando de sua participação na fundação do Centro da Mulher
Brasileira (CMB).

Todo esse processo levará o partido a criticar a concepção sobre a


“questão feminina” que norteou sua política por décadas. Paulatinamente, o
termo feminismo aparece, de forma positiva, nos debates do partido. Aos poucos,

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começa-se a refletir sobre a especificidade da condição feminina e sobre a


necessidade de uma luta também específica para superar essa condição. Cada
vez mais, sobretudo depois de meados da década de 70, haverá entre os membros
do PCB e de todos os movimentos ligados ao comunismo, a compreensão da
necessidade de um movimento específico que lute contra todas estas formas de
exploração específica e que acrescente à luta pela emancipação do proletariado
a luta pela emancipação da mulher onde uma luta não se diluisse na outra.”
873

Considerações Finais

Nas palavras de Alceu Amoroso Lima, os romances da década de 1960


de Heloneida Studart, ou seja, aqueles que tiveram uma influência mais direta
de sua filiação ao PCB “não retrata[vam] a realidade. O que ali está[va] não é[ra]
a realidade, tal como aparece[ia] aos nossos olhos desarmados. Mas é [ra] a
realidade através de uma lente de aumento. Há[via] uma deformação para mais,
exatamente porque os olhos da autora estão[vão] armados com este sentido
profundo da responsabilidade, que a maioria dos romances não possui [ia]”7. A
partir das palavras grifadas se pode inferir que para o crítico havia nessa fase na
obra de Heloneida um processo de conscientização que se realizava a partir da
experiência política da autora por possuir uma “missão histórica” cujo sentido
profundo, de acordo com Amoroso Lima, modificaria a realidade aparente
mostrando o que tem mais além.

A escrita de Heloneida Studart, portanto, a partir do enlace comunismo


e feminismo tornou-se um ato político que desafiava as relações de poder.
Relações essas, que inscritas nas práticas sociais e discursivas de uma cultura
que se imaginou e se construiu a partir do ponto de vista normativo masculino,
projetando o seu outro na imagem negativa do feminino. O que pude constatar
foi que as construções socioculturais de gênero – masculino/feminino – eram
para a escritora categorias fundamentais da nossa produção cultural. Elas

7
STUDART, Heloneida. A Culpa. Petrópolis: Livraria Agir Editora, 1964. Os grifos na
citação são meus.

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formam um sistema de representação binária que produziu assimetria.


Considerar que o gênero, tanto como raça e classe, é uma categoria da diferença
dentro de sua obra, foi fundamental nas discussões sobre os critérios de valor
estético e autoria feminina, fato que significou para a autora um mecanismo de
implosão epistemológica do sistema de referência de nossa cultura.

Heloneida ao representar a figura feminina, construiu, projetou e


estabilizou a identidade social, em processos definidos histórica e culturalmente. 874
As práticas sociais de representação vigentes de uma certa época se cristalizaram
em seus textos. Os discursos e as representações veiculadas em suas obras fazem
mais do que refletir o contexto no qual estão imersos na medida em que
participam efetivamente dos processos que constituem a cultura que os circunda.
Desse modo, as práticas sociais articuladas pelos mais diversos agentes são
apreendidas à luz daquilo que a romancista julgou ser o processo social em curso.
Analisamos, assim, uma narrativa que buscou pensar as relações de gênero a
partir de determinados lugares de fala tendo na recuperação do contexto histórico
e na crítica a tradição patriarcal seus eixos centrais.

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O PRIMEIRO-DAMISMO NO BRASIL: UMA ANÁLISE DOS


BOLETINS DA LEGIÃO BRASILEIRA DE ASSISTÊNCIA (1945-1964)

Bruno Sanches Mariante da Silva*

A historiografia pouco se deteve em analisar trabalhos desenvolvidos


pelas primeiras-damas do Brasil desde o Império (1822-1889) até a República
877
Velha (1889 – 1930), nesses períodos é possível concluir que as primeiras-damas
limitavam-se aos afazeres domésticos e um papel público decorativo e alguma
atuação mais significativa no sentido de influenciar os maridos1 (TORRES,
2002, SILVA, 2010). A importância da figura da primeira-dama no período
republicano é analisado por Ivana Simili (2008), que aponta o caso particular do
presidente Hermes da Fonseca. Fonseca, oitavo Presidente da República (1910
– 1914) ficou viúvo em 1912, criando-se uma celeuma política, que fora
apaziguada com o casamento dele com Nair de Tefé, figura de destaque na
sociedade carioca, tendo atuado como cartunista em jornais e revistas. Segundo
a autora:
O que fica patente na história do casal Hermes da Fonseca,
bem como na dos Vargas, é que o presidente da República
necessita de esposa, que sua figura e sua presença nas
cercanias do poder são ingredientes importantes no campo das
representações políticas para o homem público e político.
(SIMILI, 2008, p.58).

Ainda refletindo sobre o papel das primeiras-damas no cenário político,


prossegue Simili (2008, p.59):

Na valorização da esposa do presidente, é possível localizar,


na figura desta, um dos mecanismos de exposição do privado
e de aferição dos homens públicos, criados e utilizados pelo

*
Doutorando em História na Universidade Estadual Paulista (UNESP-Assis), Bolsista
CAPES.
1
Iraildes Torres (2002) destacou o comportamento relevante que a Imperatriz Dona
Leopoldina teve em relação a seu marido, Dom Pedro I, inclusive influenciando-o no
processo de independência do Brasil. Após sua morte, Dom Pedro I não conseguiu se
casar com sua amante, Marquesa de Santos, em função, também, de grande apreço da
corte por Dona Leopoldina e o desejo de manter sua memória. No entanto, essa atuação
da Imperatriz sempre se dera no privado.

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poder, na produção de representações políticas favoráveis ao


governante. A existência das esposas e, principalmente, a
exposição delas pelos governantes dão a ver o que eles são no
privado: maridos e pais de família, fornecendo, assim, as
bases para a criação de representações públicas como bons
maridos e pais.

O papel social das esposas dos mandatários brasileiros ressurgiu com


mais força e participação na cena pública no governo de Getúlio Vargas, fato
semelhante acontecia na Argentina com o casal Juan Perón e Eva (Evita) Péron. 878
No caso Vargas o deslocamento – parcial – de poder do marido (presidente) para
a esposa (primeira-dama) se deu com a criação da Legião Brasileira de
Assistência presidida por Darcy Vargas e atuando no contexto da Segunda
Guerra Mundial.

Desse modo, para o presente texto vamos analisar as edições da


publicação periódica da Legião Brasileira de Assistência, chamada “Boletim da
L.B.A” no período de 1945 a 1964, período tradicionalmente conhecido por
“Anos Dourados”2, no sentido de percebermos as representações das primeiras-
damas brasileiras que, de forma geral, ocuparam a presidência da instituição no
período.

A LBA e as bases para o primeiro-damismo

A decisão de entrar na Segunda Guerra Mundial em 1942 teve certas


consequências para o Brasil. Getúlio Vargas aliava-se, definitivamente, aos
Estados Unidos – obtendo destes uma série de benefícios econômicos. Em
decorrência da posição assumida, o Brasil, a partir de junho de 1944, enviou
mais de 20 mil combatentes para o confronto às tropas nazistas na Itália3.

2
A reflexão aqui apresentada é parte de tese de doutorado em construção desenvolvida
sob o tema “Maternidade e Modernidade no Brasil dos Anos Dourados: os Boletins da
Legião Brasileira de Assistência (1945 - 1964)” junto ao programa de pós-graduação
em História e Sociedade da UNESP/Assis.
3
Francisco Ferraz faz importante balanço histórico e historiográfico sobre a
participação brasileira no conflito mundial. (FERRAZ, 2012).

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No sentido de amparar as famílias dos combatentes da Força


Expedicionária Brasileira (FEB), foi fundada, em 1942, a Legião Brasileira de
Assistência (doravante LBA), criada e presidida pela primeira-dama brasileira,
Darcy Sarmanho Vargas. Além da assistência financeira e material às famílias
desamparadas – muitas haviam perdido, permanente ou temporariamente, o seu
provedor – a LBA empenhou-se na comunicação entre a população brasileira e
os combatentes nacionais em campo de batalhas na Europa. O envio de notícias
879
e de correspondência entre ambas as partes se dava também por meio do Boletim
da Legião Brasileira de Assistência (doravante Boletim), uma publicação
periódica da LBA que se propunha a ser o elo de comunicação entre os pracinhas
e suas famílias, assim como fazer chegar até eles as notícias do Brasil.

Ao longo do ano de 1945, a LBA fez publicar 17 edições de seu boletim


(a publicação incialmente foi mensal, passando em seguida a ser quinzenal). As
páginas das dezessete edições de 1945 do Boletim são bastante voltadas a
informar aos expedicionários sobre os rumos da guerra e da situação vivida no
Brasil, além prover uma comunicação deles com suas famílias na terra natal.
Uma seção intitulada “LBA nos Estados” procurava açambarcar as ações da
instituição nas unidades da federação; já em outra seção denominada “Não se
esqueça” são apresentados dados relativos ao Brasil como “que o Brasil é o sexto
país do mundo em produção vegetal”, entre outros dados que dão claro destaque
e relevância ao país. Além das diversas matérias especiais sobre as campanhas
da LBA e das ações em prol das famílias dos “pracinhas”, um grande número de
páginas dos Boletins é ocupado pela seção “Mensagens”, que consiste,
propriamente, em transcrever mensagens que as famílias enviavam aos
expedicionários dando informes e comunicando o andamento da vida na
retaguarda. As mensagens eram “intituladas” pelo nome do expedicionário ao
qual ela se destinava e a enorme maioria é assinada por mulheres da família do
combatente (mães, esposas, irmãs, tias, madrinhas etc.). É bastante comum haver
uma ou mais fotos nessa seção, mais frequentemente de crianças, sendo que
algumas os pais estão a ver pela primeira vez.

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No que diz respeito ao funcionamento institucional da LBA, foi


estabelecido um convênio entre o governo federal e as confederações nacionais
das indústrias e do comércio, ficando assim estabelecido uma contribuição
compulsória de empregados e empregadores (1% e 2%, respectivamente, dos
salários recebidos e da folha de pagamento) para o financiamento das atividades
da LBA em todo o Brasil. Liderada por Darcy Vargas, a LBA se espalharia por
todo o país, majoritariamente capitaneadas pelas primeiras-damas estaduais e
880
territoriais. LBA se dividia em Comissões Estaduais e Municipais, e em todas
elas a prerrogativa para a liderança era que esta fosse exercida sempre pelas
primeiras-damas. Terminada a guerra, a instituição se concentraria,
exponencialmente, no amparo à maternidade e à infância.

A partir de 1946, a LBA e seu Boletim ganham novas funções, uma vez
que a guerra findara no ano anterior e todos os combatentes brasileiros já haviam
retornado ao país, desse modo, a instituição passou a priorizar o combate à
mortalidade infantil e a proteção à maternidade e à infância, inclusive com uma
ampla reforma em seus estatutos (Boletim..., n.18, março de1946). Com a saída
de Getúlio Vargas do poder, em outubro de 1945, Darcy Vargas deixou a
presidência da LBA, tais mudanças promoveram inclusive um hiato na
publicação do Boletim entre novembro de 1945 e março de 1946. Quando de seu
retorno, a LBA já se encontrava sob a presidência de Carmela Dutra, esposa do
General Eurico Gaspar Dutra e primeira-dama do Brasil, assim como já possuía
novo escopo:
Art. 3º. A LBA tem por principal finalidade a defesa da
maternidade e da infância através da proteção à família,
procurando por todos os meios a racionalização de diretrizes
e de ação tendentes a um perfeito aproveitamento da
assistência social em suas diversas formas. (Boletim..., n.18,
março.1946, p.1)

Nos novos estatutos, como acima destacado, há uma mudança no


propósito da atuação da LBA, com clara ênfase na proteção à infância e à
maternidade, o que significa expressivas medidas no sentido de “proteção da
família”. Contudo, ainda nos novos estatutos, há um posicionamento da LBA,
especificamente, acerca do papel da mulher na sociedade: “§1º: A base de seu

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programa de ação será a educação da mulher, preparando-a para exercer seus


deveres e assumir suas responsabilidades para com a família e a sociedade.”
(Boletim..., n.18, março.1946, p.1). Assim, podemos perceber como a LBA
pautou sua atuação, majoritariamente, na educação das mulheres brasileiras no
sentido de reforçar a “essência maternal”, ou seja, entendendo a participação
feminina na sociedade por meio de sua maternidade, destacando que esta
maternidade deveria ser adequada aos ditames da maternidade moderna ou
881
científica4. Tal investimento foi justificado pela necessidade de se preservar a
infância brasileira, consumida e desgastada pela miséria e marginalidade, como
frequentemente procuravam mostrar as matérias do Boletim.

O ano de 1951 marcou o retorno dos Vargas ao cenário político


nacional. Getúlio Vargas havia sido eleito senador em 1946, elegendo-se
Presidente da República em 1950, com posse em janeiro de 1951. Assim o sendo,
sua esposa, Darcy Vargas, foi reconduzida ao posto de presidente efetiva da
LBA. A edição de Fevereiro de 1951 (n.64) do Boletim da Legião Brasileira de
Assistência foi completamente composta por matérias em homenagem à
presidente da LBA, sendo, propriamente a capa desse número inteiramente
ocupada por uma foto de Darcy Vargas acompanhada pelo seguinte texto:
“HOMENAGEM Á SENHORA DARCY SARMANHO VARGAS”.

De acordo com as páginas do Boletim, quando da eleição de Getúlio


Vargas, houve grande euforia com o possível retorno de Darcy Vargas à LBA.
Segundo a publicação, os funcionários da instituição organizaram grande
campanha para que dona Darcy fosse reconduzida ao cargo, estes elaboraram
uma comissão e passaram a percorrer os jornais e rádios da cidade. O Boletim
concluiu que:
Voltando à L.B.A., d. Darcy atenderá aos anseios de milhares
de necessitados, que nela vêem uma esperança de melhores
dias. Estão assim de parabéns os funcionários da Legião e os
pobres de todo país, pelo retorno de d. Darcy Sarmanho
Vargas à Presidência efetiva da Legião Brasileira de
Assistência (Boletim..., n.64, fev.1951)

4
Não formando o escopo desse texto, mas julgando ser pertinente, cabe ressaltar a
importante reflexão sobre a politização da maternidade sob dois modelos: o cristão e o
da racionalidade técnico-científica (MARTINS, 2011).

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882

Figura 7: Fotografia da posse de Darcy Vargas na presidência da LBA. Boletim...., n.64,


fevereiro de 1951. Ao centro da imagem está Darcy, de branco e chapéu.

Assim, em fevereiro daquele ano o Conselho Deliberativo da LBA


escolheu por unanimidade a senhora Darcy Sarmanho Vargas para o posto de
Presidente Efetiva da Legião Brasileira de Assistência. Poucos dias depois se
deu a posse da nova presidente que, segundo o Boletim, revestiu-se de uma
“verdadeira apoteose”. Pelas fotografias que ilustram as reportagens, verifica-se
uma grande concentração de pessoas ao redor da primeira-dama. No texto, o
então presidente da instituição se referiu ao feitio simples e retraído da
homenageada e a seu pedido para uma solenidade simples, no entanto, que fora
vontade do povo, em especial dos legionários, elaborar tamanha festividade.
Destacou João Daudt de Oliveira: “O resultado aí está, nestas salas repletas e
nestas fisionomias alegres. Foi totalmente inútil o propósito de conter o
entusiasmo com que todos se apresentaram a festejar sua volta à Presidência da
Legião.” (Boletim..., n.64, fev.1951, p.6).

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O mito Darcy Vargas é construído desde as edições de 1945. Seu


espírito abnegado, sua pronta doação aos mais necessitados e, especialmente,
seu distanciamento da cena pública, mesmo quando projetada a ela. O papel de
“mãe da nação” ficou mais evidenciado a partir de 2 de fevereiro de 1943,
quando morreu Getúlio Vargas Filho, o “Getúlinho”, filho caçula do casal
Vargas. O laço de Darcy com as mulheres brasileiras se fortaleceu, pois “era um
momento em que as mulheres brasileiras – as mães, as esposas e as filhas –
883
estavam perdendo seus pais, maridos e irmãos [...]” (SIMILI, 2008, p.70) em
razão da formação dos batalhões brasileiros para a guerra. Darcy sucumbiu à dor
e ao luto e retirou-se da vida pública, afastando-se da presidência da LBA até
outubro daquele ano. Em seu retorno, estava estabelecida fortemente a
representação de sua maternidade coletiva, assim como a imagem de uma mãe
incansável que lutava para salvar os filhos. Em uma matéria do periódico “O
Radical” de 16-2-1950, transcrita no Boletim de fevereiro de 1951, o jornalista
Caio Miranda em um texto intitulado “A Santa” relata:
Encontrei-a [Darcy Vargas] um dia nessa missão sublime.
Estava ao lado do fogão, na casa do Pequeno Trabalhador. Lá
fora, duas mil e duzentas crianças aguardavam a refeição que
se elaborava. Meus olhos não quiseram acreditar naquilo que
não podiam ver bem, pela névoa insopitável das lágrimas
nascentes. Contrito, beijei religiosamente aquelas santas
mãos. (Boletim..., n.64, fev.1951, p.10)

Outro jornalista a comparou à Princesa Isabel, uma vez que ambas “[...]
trilham estradas paralelas, escapadas pelo mesmo altruísmo, alcafiadas por
idênticas benemerências, que se conduzem ao panteon da gratidão popular.”
(Boletim..., n.64, fev.1951, p24). Tais representações míticas de Darcy Vargas
permanecerão de forma contundente ao longo dos anos, como destaca-se em
outras edições dos Boletins. Essa edição de fevereiro de 1951 faz ainda um
retrospecto por meio de imagens dos anos anteriores, sobretudo do período da
guerra, e da atuação da LBA, exaltando sua importância e a participação eficaz
da presidente Darcy Vargas.

Em sua primeira mensagem ao povo brasileiro, como, mais uma vez,


Presidente Efetiva da LBA, Darcy Vargas destaca que “Iniciamos uma dura fase

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de trabalhos para a consecução de programas indispensáveis à proteção efetiva


da Maternidade e da Infância em nossa terra.” (Boletim..., n.64, fev.1951, p.9),
enfatizando a nova fase da LBA, bastante voltada para as questões da
mortalidade infantil e também materna.

Como já destacado, Darcy Vargas ocupou a presidência da LBA em


dois períodos: de sua fundação em 1942 até 1945; e depois entre 1951 e 1954.
Nesses dois períodos sua presença, sempre discreta e pouco retratada nas páginas 884
do Boletim, foi tomada como uma grande heroína da nação, uma mãe que protege
os filhos ou, como já citado, uma “santa”.
Darcy Vargas e Legião Brasileira de Assistência
possibilitaram o surgimento de um modelo de atuação para o
primeiro-damismo brasileiro, nas cercanias do poder
presidencial, como a mulher responsável pela condução das
políticas públicas. Durante o período de existência da LBA,
todas as esposas dos presidentes da Republica ocuparam a
presidência da instituição e responderam pela área social do
governo. [...] Darcy Vargas foi a primeira esposa de
presidente a se tornar responsável pela condução das políticas
públicas do Estado no que tange a área social, fato este
inexistente até então na história político-assistencial
brasileira. No que se refere ao pioneirismo, ela foi a primeira
esposa a participar da política na vertente assistencial.
(SIMILI, 2008 p.-131-132).

O mito Darcy Vargas e o seu legado no primeiro-damismo brasileiro

A posse de Darcy Vargas em sua segunda passagem pela presidência


da LBA revestiu-se de uma grande ritualização de um mito. Ao falarmos em
mito, assim como já o fez Marilena Chauí (2001), não o tomamos apenas em sua
acepção etimológica no sentido de narração de feitos lendários da comunidade,
mas também no seu sentido antropológico no qual essa narrativa mitológica é
uma solução imaginária para as tensões e conflitos que permeiam a comunidade
e que não encontram maneiras para serem resolvidas no nível da realidade
(CHAUÍ, 2001 p.5-6). Nos coadunamos a Chauí, pois
Se também dizemos mito fundador é porque, à maneira de
toda fundatio, esse mito impõe um vínculo interno com o
passado como origem, isto é, com um passado que não cessa
nunca, que se conserva perenemente presente e, por isso

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mesmo, não permite o trabalho da diferença temporal e da


compreensão do presente enquanto tal. [...] Um mito fundador
é aquele que não cessa de encontrar novos meios para
exprimir-se, novas linguagens, novos valores e idéias, de tal
modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a
repetição de si mesmo (CHAUÍ, 2001, p.6), grifo nosso).

A filósofa ainda explica que fundação “[...] se refere a um momento


passado imaginário, tido como instante originário que se mantém vivo e presente
no curso do tempo [...]” (CHAUÍ, 2001, p.6). Dessa maneira, enxergamos as 885
repetidas referências à Darcy Vargas no curso do período em análise (1945 –
1964) como narrativa desse mito fundador, desse modo, ela é representada
sempre pelas mesmas características, e sobretudo, referida pelos novos
comandantes da LBA, no sentido de prestar-lhe tributo e garantir certa
legitimidade em suas ações. O legado de Dona Darcy Vargas às suas sucessoras
na presidência da LBA sempre fora a sua benemerência e espírito abdicado.
Darcy Vargas é bastante citada nas cerimônias de posse de presidentes e
diretores da instituição ao longo do tempo.

Quando Darcy Vargas deixa a presidência a primeira vez, em 1945, há


um processo de poder vacante, tanto o é que o Boletim só é publicado novamente
apenas em março de 1946. Em maio desse mesmo ano quem toma posse na
presidência de honra (esse cargo não existia até então) é Carmela Dutra,
primeira-dama do país, esposa de Eurico Dutra. Quando Carmela Dutra é
apresentada, são suas qualidades de bondade que são exaltadas. Ao se dirigir à
primeira-dama, o presidente em exercício da LBA, Euvaldo Lodi, asseverou:
A Exma. Sra. Dna. CARMELA DUTRA, eminente primeira
dama do país, pelos seus extraordinários dotes de espírito e
bondade, já amplamente demonstrados, possui tirocínio,
experiência e tradição para enfrentar problemas desta
envergadura. Será inspiradora e defensora da imensa oba, que,
estou certo, marchará, vitoriosa, para os seus elevados
objetivos (LODI In: Boletim...., n.19, Maio de 1946, p.4).

Nesse mesmo tom Darcy Vargas é recordada. Nas palavras de Lodi,


criou-se a LBA “[...] sob o patrocínio e a inspiração apostolar da Exma. Sra.
DARCY VARGAS, com o propósito de amparar, de acudir e de consolar,
inclusive elo conforto moral, todos os necessitados, especialmente as famílias

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atingidas pelas contingências da guerra” (LODI In: Boletim...., n.19, Maio de


1946, p.2). Darcy aparece como um grande mito fundador da LBA, sendo
recriada e reapropriada em cada posse de novo presidente ou de nova
presidente/primeira-dama, e nessa construção algumas caraterísticas são
exaltadas de forma mais inconteste.

Em 1956, por exemplo, ao tomar posse no cargo de diretor-


superintendente, Dr. Eugenio Gomes de Carvalho, exultou Darcy Vargas 886
afirmando que ela melhor representa os valores da mulher brasileira e destaca
sua preciosa direção da LBA, para concluir que: “o exemplo e os ensinamentos
de Dona Darcy Sarmanho Vargas estão sempre vivos e presentes no espírito de
quantos atuam na Legião Brasileira de Assistência” (Boletim..., n.84,
Out.Nov.Dez. de 1956, p.3). Em artigo publicado no ano seguinte, o diretor-
superintendente, ao lançar um novo programa de assistência à maternidade,
lembrou a “[...] iniciativa nunca suficientemente exaltada da grande Dama que é
Dona Darcy Vargas.” (CARVALHO In. Boletim..., n.88, Outubro de 1957, p.7).

As características enaltecidas de Darcy são a sua dedicação inconteste


e pela doação às suas causas sociais.
Essa grande e nobre Senhora tem sofrido como poucas
criaturas têm sofrido, e o último golpe lhe foi vibrado em 24
de Agosto de 1954. O sofrimento está ligado à própria
contingência humana. Todos sofrem. D. Darcy porém, tem
SABIDO SOFRER, o que não é a todos dado. Tem sabido
sofrer com uma nobreza, uma resignação, um silêncio e um
senso de dignidade humana que nos fazem, tanto admirá-la,
como respeitá-la. (Boletim..., n.80, Outubro-Novembro-
Dezembro de 1955, p.2).

O coração generoso de Dna Darcy Vargas cuja obra


imperecível nunca será demais exaltada, levou-a a constituir
um organismo em que o sonho de Cabot se tornasse realidade,
em que se prestasse assistência tão completa quanto possível
aos necessitados, médicos e assistentes sociais dando-se as
mãos para a consecução do objetivo comum. (Boletim..., n.92,
Julho, Agosto, Setembro, 1958, p.16)5

5
Boletim faz referência a Godfrey Lowell Cabot, industrial e filantropo norte-
americano, bastante envolvido com novas técnicas e modernização da vida cotidiana.

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As passagens do Boletim deixam clara a exaltação às virtudes de Darcy,


seu caráter nobre, com dignidade e um coração generoso. Eram essas as virtudes
enaltecidas e também aquelas às quais os demais presidentes pagariam tributos,
mostrando-se também descendentes desse legado de Darcy Vargas.

Mário Pinotti, que no segundo governo Vargas ocupou a pasta do


Ministério da Saúde – voltando a ocupá-la em 1958 por convite de Juscelino
Kubitschek (atuando concomitantemente na Presidência da LBA), buscou a 887
imagem de Darcy por diversas vezes em seus discursos. Pinotti exerceu a
Presidência da LBA de 1957 a 1960, no governo JK. A primeira-dama Sarah
Kubitschek não ocupou a presidência da LBA durante o mandato de seu marido
(1956-1960), antes de Mario Pinotti, havia ocupado o cargo o influente e
destacado pediatra Raymundo Martagão Gesteira (1955 – 1957). Dona Sarah
trabalhou para desenvolver a organização filantrópica “Pioneiras Sociais” que
realizava assistência filantrópica na educação e na subsistência de populações
carentes. Mesmo sem ser presidente da LBA, Boletim também tratou de destacar
as virtudes beneméritas da primeira-dama. Em uma matéria sobre o II Congresso
Pan-Americano, a publicação escreveu:
A delegação da LBA, ainda levou ao conhecimento dos
demais congressistas o trabalho altamente patriótico e
meritório que vem sendo realizado pelas “Pioneiras Sociais”
em favor dos necessitados, por todos os rincões do País e sem
discriminação de grupos de qualquer espécie, mostrando a
colaboração ativa da L.B.A. nesse esforço e fazendo ressaltar
o altruísmo e a abnegação da mulher brasileira, tão bem
representada pela ilustre Senhora Dona Sarah Kubitschek.
(Boletim..., n.90, Janeiro, Fevereiro, Março de 1958, p.37).

Na edição seguinte, ao publicar sobre a inauguração de um posto de


puericultura em Florianópolis, ao qual fora dado o nome da primeira-dama,
Boletim mais uma vez destaca as virtudes de Dona Sarah:
Seu devotamento aos problemas assistenciais; seu
desprendimento no tratar os humildes e sofredores, fazem-na
merecedora de nossa maior estima e admiração. Dama das
mais acentuadas virtudes, tem sido o baluarte das
PIONEIRAS SOCIAIS e de todos os movimentos que visam
à grandeza da nossa terra e ao bem estar da nossa gente.
(Boletim..., n.91, Abril, Maio, Junho de 1958, p.27)

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Essas características de devotamento e dedicação às causas sociais


aparecem desde Darcy, como vimos. Em 1959, ao inaugurar uma exposição
fotográfica da atuação da LBA, Pinotti declarou:
Neste momento, cumpre-me o grato dever de evocar a figura
tutelar da senhora Darcy Vargas, que teve a generosa
iniciativa de criar esta Instituição nos dias difíceis da guerra e
dirigi-la, depois, nos dias serenos da paz. É um preito de
justiça a que nenhum brasileiro poderá fugir (PINOTTI In
Boletim...., n.102, dezembro de 1959.)
888
Pinotti utiliza o verbo evocar, no sentido de trazer à lembrança, de
chamar a pessoa de Darcy Vargas, e, assim como já havia feito, destaca o fato
de ela ter criado ou fundado a LBA. Mais além, Pinotti fala em figura tutelar,
isto é, protetora. É preciso destacar que durante o período da guerra, Darcy
Vargas foi alçada a um posto de grande mãe brasileira, inclusive retratada em
cartazes de campanha da LBA como a protetora das famílias brasileiras (SIMILI,
2008). É como um mito fundador que cada presidente da LBA ao assumir a
chefia da instituição presta seus tributos a Darcy Vargas. Eloá Quadros, foi mais
além e ritualizou toda essa reverência ao mito Darcy Vargas.

Ao tomar posse da Presidência da LBA em 1961, D. Eloá Quadros,


esposa do presidente Jânio Quadros, menciona a criação da instituição pela “[...]
benemérita iniciativa da ilustre senhora D. Darcy Sarmanho Vargas [...]”
(Boletim..., n.107, Julho-Agosto-Setembro de 1961, p.2). Mas Eloá Quadros vai
além e, pela primeira vez ritualiza a comemoração da figura de Darcy Vargas,
ao enviar por meio do diretor-superintendente, Cel. Pina de Figueiredo, flores à
ex-primeira-dama assim como o compromisso de auxílio à Fundação Darcy
Vargas (figura 2).

Eloá Quadros parece promover um resgate da figura de Darcy, uma vez


que em sua breve passagem pela presidência da LBA (de maio a agosto de 1961),
aparecem gestos de aproximação com a ex-presidente da instituição6.

6
Na edição número 107 de Boletim, são noticiadas doações e contribuições da LBA
para a fundação Darcy Vargas.

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889

Figura 8: Cel. Pina entregando flores à D. Darcy Vargas. A ritualização de homenagem a um


mito fundador e a busca por legitimação. Extraído de Boletim da Legião Brasileira de
Assistência, n.107, Julho-Agosto-Setembro

A tendência permanece, pois em 1961 ao tomar posse como presidente


da L.B.A, Maria Thereza Goulart dirige seu discurso à uma reverência e
saudação à Darcy Vargas:
Antes, porém, de expressar o meu desejo e de esboçar alguns
dos meus planos quero cumprir mais um dever. O grato dever
de uma brasileira para com outra. De uma mãe para com
outra. De uma esposa para com outra. Refiro-me a D. Darcy
Vargas. Se elogiar os antecessores é uma praxe, esta que agora
cumpro se torna para mim extremamente agradável, pois me
é dado por em relevo a figura de D. Darcy, fundadora da
L.B.A. Sem ela, eu não teria oportunidade de prestar o melhor
de meus esforços nesta obra do mais amplo alcance para o
bem-estar da coletividade. (Boletim..., n.108, Outubro,
Novembro, Dezembro de 1961, p.2)

Maria Tereza Goulart ficou à frente da instituição até 1964, quando do


golpe civil-militar que depôs seu marido, João Goulart, da presidência do Brasil.

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À guisa conclusão: primeiras-damas e assistência social


Era, a venerada extinta, um dignificante exemplo de virtudes,
refletindo, sua personalidade através de excepcionais dotes de
altruísmo e abnegação, de modo a encarnar, fielmente, as
mais nobres qualidades da mulher brasileira, sempre inclinada
à prática do bem, dentro dos legítimos preceitos da religião
católica que professava com sinceridade e devoção
(Boletim..., n.27, Setembro de 1947, p.3)

Com essas palavras Boletim e a LBA prestaram suas últimas


890
homenagens a Carmela Dutra, primeira-dama do Brasil e presidente de honra da
LBA (1946-1947) que faleceu no exercício de seu cargo em 1947. Nota-se o
sentido modelar, como se Dona Carmela personificasse a mulher brasileira, e
esta seria dotada de altruísmo e abnegação. Ana Paula Vosne Martins, em
brilhante texto sobre as relações entre gênero e assistência, explicita que
O lugar das mulheres estava, portanto bem definido: era o lar,
como esposas amorosas, mães dedicadas e senhoras
benevolentes. Suas qualidades naturais e morais as
habilitavam para a maternidade e as lides domésticas, mas
também se esperava, tanto do ponto de vista da religião
quanto da filosofia moral, que essas qualidades fossem
estendidas para os outros, para aqueles que sofriam e que
precisavam de cuidados. (MARTINS, 2011, p.21)

A figura da primeira-dama apresentada nas páginas do Boletim da


Legião Brasileira de Assistência é a figura da mulher abnegada e amorosa que
se ocupa dos cuidados àqueles que mais necessitam, como procuramos
demonstrar pela construção do mito Darcy Vargas, chamada até de santa, e das
formas como essa imagem mítica de Darcy foi apropriada pelos seus sucessores
e sucessoras na presidência LBA.

Iraildes Caldas Torres, em sua obra “As primeiras-damas e a assistência


social: relações de gênero e poder” (uma das poucas obras a se deterem
exclusivamente nas primeiras-damas), apresenta uma análise bastante
contundente sobre o papel da primeira-dama na política brasileira.
A imagem que se constrói em torno delas como mulheres
abnegadas, vocacionadas e sensíveis às causas sociais
também contribui para a aceitação e prestígio junto aos
setores subalternizados para os quais são dirigidas as suas
ações. Nessa perspectiva, o poder não aparece como um
aparelho repressivo, mas como uma prática social de

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dominação e de espoliação dos usuários dos serviços sociais


desenvolvidos pelas primeiras-damas, já que o paternalismo
é, inexoravelmente, um instrumento de arrefecimento dos
conflitos sociais e de manutenção do status quo. (TORRES,
2002, p.25).

A autora destaca que houve um deslocamento de um papel do Estado


para o voluntariado feminino. O Estado se exime da sua responsabilidade
enquanto gestor de políticas públicas, no tocante às populações vulneráveis,
891
transferindo essa responsabilidade para a própria sociedade, sob a liderança
exemplar das primeiras-damas (TORRES, 2002). Para autora é importante
destacar que esse deslocamento se faz com propósitos políticos, no sentido de
cativar as camadas populares.

Contudo, Iraildes Torres també percebe que dentro desse processo,


muitas das mulheres primeiras-damas foram construindo e elaborando suas
próprias redes de poderes que, muitas vezes transcendem a expectativa inicial do
poder local. A autora destaca como exemplos as ações de Darcy Vargas e Evita
Péron, cujas atuações no primeiro-damismo são contemporâneas. Eva (Evita)
Péron tornou-se primeira dama da Argentina em 1946, permanecendo até sua
morte em 1952, Torres destaca que “Exerceu o assistencialismo sem limites, de
forma degradante e demagoga que ia da distribuição de simples objetos,
passando por casas próprias até o derramamento de cédulas de valor financeiro”
(2002, p.89).

Tanto quanto à Evita quanto à Darcy, Torres percebe uma extensão do


poderia dos maridos-presidentes. Perón e Vargas, que centralizavam suas ações
políticas em ações voltadas para os trabalhadores7, valiam-se do apelo popular
de suas esposas para a consolidação de suas políticas e imagens junto às camadas
populares. Segundo a autora, o Estado articula um novo modelo de dominação
política, agora, pautada no assistencialismo, sob o domínio da primeira-dama.

A percepção de Iraildes Torres não se equivoca quanto ao uso político


da imagem da primeira-dama. Sendo ela a boa mulher e benemerente, sua

7
Não cabe no presente trabalho uma explanação sobre o populismo e o trabalhismo em
Perón e Vargas, para mais ver GOMES, 1994.

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imagem está automaticamente colada a de seu marido e, portanto, do governo8.


No entanto, também é bastante relevante a perspectiva de que as ações de
assistência e de participação política9 das primeiras-damas serviram também
para esmaecer as clivagens entre a ação pública e privada destinadas às mulheres,
borrando assim seus limites (MARTINS, 2011). Retomando Ivana Simili (2008)
“Na valorização da esposa do presidente, é possível localizar, na figura desta,
um dos mecanismos de exposição do privado e de aferição dos homens públicos,
892
criados e utilizados pelo poder, na produção de representações políticas
favoráveis ao governante”

REFERÊNCIAS

BOBBIO, N. (et.al). Dicionário de política. trad. Carmen C, Varriale et al.;


coord. trad. João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 11ª ed., 1998. Vol. 1: 674 p. (total:
1.330 p.)

FAUSTO, B. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2003. 11ª Edição.


FERRAZ, Francisco César Alves. A guerra que não acabou: a reintegração social
dos veteranos da força expedicionária brasileira (1945-2000). Londrina: Eduel,
2012.

FREIRE, M. M. L. Mulheres, mães e médicos: discurso maternalista no Brasil.


Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009

GOMES. Â. C. A Invenção do Trabalhismo. Rio de Janeiro: Relume Dumará,


1994.

LAGE, L.; NADER, M.B. Da legitimação à condenação social. In PINSKY,


C.B.; PEDRO, J.M. A nova história das mulheres no Brasil. São Paulo:
Contexto, 2012. p.286-312.

8
No caso Perón-Evita isso se deu de forma muito mais contundente e acentuada, tanto
o é que ainda vigora no imaginário popular argentino a imagem de “Santa Evita”.
9
O conceito de participação política é polissêmico, como nos alerta Norberto Bobbio
(1998), visto que açambarca desde o ato do voto e da participação efetiva na tomada de
decisões até a difusão de informações políticas.

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Rio de Janeiro, 27 e 28 de outubro de 2016.

LENHARO, A. A sacralização da política. Campinas: Papirus, 1986

MARTINS, A. P. V. Gênero e assistência: considerações histórico-conceituais


sobre práticas e políticas assistenciais. In História, Ciências e Saúde –
Manguinhos, Rio de Janeiro. V.18, supl.1, dez.2011, p.15-34.

LUCA, T.R. História dos, nos e por meio dos periódicos. In PINSKY, C. Fontes
Históricas. São Paulo: Contexto, 2008. p.111 – 153.
893
MOLINA, A. H. Fenômeno Getúlio Vargas: Estado, discursos e propagandas.
In História & Ensino (UEL), Londrina, v. 03, p. 95-112, 1997

MOTT, M. L. Maternalismo, políticas públicas e benemerência no Brasil (1930


– 1945). In Cadernos Pagu (16) 2001: pp. 199-234.

PERROT, M. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru, SP: EDUSC, 2005.

PINSKY, C. B. Mulheres dos Anos Dourados. São Paulo: Contexto, 2014.

ROCHA-COUTINHO, M. L. Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira


nas relações familiares. Rio de Janeiro: Rocco, 1994

ROSEMEBERG, Fúlvia. Mulheres educadas e a educação de mulheres. IN:


PINSKY, Carla B. PEDRO, Joana Maria (orgs). Nova História das Mulheres no
Brasil. São Paulo: Contexto, 2012.

SILVA, Lianzi dos Santos. Mulheres em cena: as novas roupagens do primeiro


damismo na assistência social. Pontifícia Universidade Católica Dissertação
(Mestrado em História), Rio de Janeiro, 2010.

SIMILI, I. G. Mulher e política: a trajetória da primeira-dama Darcy Vargas


(1930 -1945) São Paulo: Editora UNESP, 2008.

THÉBAUD, Françoise. A grande guerra. IN ______ (org.) História das


Mulheres no Ocidente. Vol. 5: o século XX. Porto: Edições Afrontamento, 1991.
p. 31 – 93.

TORRES, Iraildes Caldas. As primeiras-damas e a assistência social: relações


de gênero e poder. São Paulo: Cortez, 2002.

ISBN: 978-85-65957-07-6
Rio de Janeiro
Ed. Anpuh-Rio
Atas do II Encontro Nacional do GT Estudos de Gênero
Rio de Janeiro, 27 e 28 de outubro de 2016.

VIEIRA, E. M. A medicalização do corpo feminino. Rio de Janeiro: FIOCRUZ,


2002.

894

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POLÍTICA POR E PARA MULHERES: A EMANCIPAÇÃO NAS


PÁGINAS DE “O SEXO FEMININO”

Joice de Souza Soares*

Patrícia Urruzola**

Introdução 895

O Dicionário da Língua Brasileira, redigido por Luiz Maria da Silva


Pinto1, publicado em 1832, trazia entre seus inúmeros verbetes a palavra
“emancipação”. Caracterizada como um termo jurídico, tinha como significado
“ação pela qual o filho sai do poder de seu pai”2. Os verbos relacionados a esse
substantivo, “emancipar” e “emancipar-se”, diziam respeito, respectivamente, a
“isentar o filho do poder do pai ou do tutor” e “ficar livre da sujeição paterna”3.
Mais de três décadas após a publicação do dicionário, a ideia associada à palavra
emancipação se ampliaria nos escritos de Francisca Senhorinha da Motta Diniz,
redatora do jornal “O Sexo Feminino”4, publicado pela primeira vez no dia 7 de
setembro de 1873, na cidade de Campanha em Minas Gerais.

*
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
**
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
1
Análise interessante sobre a redação do dicionário em sua relação com o
estabelecimento de uma “língua brasileira” e com a formação do Estado imperial pode
ser encontrada em: LIMA, Ivana Stolze. Luís Maria da Silva Pinto e o Dicionário da
Língua Brasileira (Ouro Preto, 1832). Humanas, Porto Alegre, v. 28, n. 1, p. 33-67,
2006.
2
PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da Lingua Brasileira. Ouro Preto:
Typographia de Silva, 1832, p. 396. Disponível em: <
http://www.brasiliana.usp.br/handle/1918/02254100#page/1/mode/1up>. Acesso em:
28 ago. 2016.
A grafia dos trechos citados foi adequada às normas ortográficas vigentes; tal medida
será adotada para todas as fontes citadas neste trabalho.
3
Ibidem, p. 397.
4
Todos as edições do periódico mencionado neste artigo foram consultadas por meio
da hemeroteca da Biblioteca Nacional, cujo endereço eletrônico é: <
http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/>.

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Os textos do jornal também traziam a palavra “independência” como


uma necessidade que se impunha às mulheres. Recorrendo mais uma vez ao
dicionário publicado na década de 1830, é possível perceber que a significação
deste vocábulo dizia respeito a “liberdade de viver, de fazer, etc.” 5. No limite,
pode-se conceber que a redatora de “O Sexo Feminino” buscava, enfim, a não
sujeição das mulheres àquele que chamava de “sexo forte” – aos homens.

O jornal redigido por Francisca Diniz foi escrito na cidade de 896


Campanha, em Minas Gerais, durante os anos de 1873 e 1874. A partir de 1875,
o periódico passara a ser elaborado na Corte do Império, onde permanecera
sendo publicado até 1876, ano em que interrompera suas atividades6. Após mais
de uma década ausente da rotina de publicações impressas da capital do Império,
o jornal retornaria em 1889, pouco antes da proclamação da república, e
continuaria sob novo nome – “O Quinze de Novembro do Sexo Feminino” –
após a mudança na forma de governo7.

5
Ibidem, p. 610.
6
Francisca Diniz informa na edição de 2 de abril de 1876 que se afastaria da Corte do
Império por questões de saúde. Ela e toda a sua família teriam contraído febre amarela
e, por essa razão, o jornal que tinha publicação semanal passaria a ser publicado
mensalmente. Entretanto, as pretensões da redatora não se concretizaram e o jornal só
voltaria a ser publicado em 2 de junho de 1889.
7
Há trabalhos bastante interessantes sobre o periódico redigido por Francisca
Senhorinha da Motta Diniz e, por conseguinte, sobre os postulados defendidos pela
redatora enquanto comandara o periódico. Entre eles, destacam-se:
NASCIMENTO, Cecília Vieira; OLIVEIRA, Bernardo J. O Sexo Feminino em
campanha pela emancipação da mulher. Cadernos Pagu, Campinas, n. 29, p. 429-457,
jul./dez., 2007.
ROSA, Gerlice Teixeira. A mulher projetada no discurso: a construção ethótica de
Senhorinha Diniz em O Sexo Feminino. Revista ContraPonto, Belo Horizonte, v. 1,
n. 1, p. 126-143, jul., 2011.
SOUTO, Bárbara Figueiredo Souto. “Senhoras do seu destino”: Francisca Senhorinha
da Motta Diniz e Josephina Alvares de Azevedo – projetos de emancipação feminista
na imprensa brasileira (1873-1894). 2013. 197f. Dissertação (Mestrado em História
Social), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
Cabe salientar, contudo, que os estudos mencionados apresentam perspectivas
diferenciadas da pretendida neste trabalho. Nesse sentido, ressalta-se a necessidade de
identificar e evidenciar as relações entre os enunciados pela emancipação feminina
presentes no periódico e os aspectos políticos estabelecidos nesses discursos, até então
negligenciados.

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A existência de jornais dirigidos especificamente ao público feminino8


não era uma novidade da década de 1870. Desde os anos de 1820 e 1830, era
possível encontrar periódicos desse tipo, mas redigidos exclusivamente por
homens, e a existência de manifestos assinados por mulheres, com a
reivindicação de participação na vida pública e de direitos políticos9.

A inovação da segunda metade do século XIX dizia respeito ao


surgimento de periódicos destinados às mulheres redigidos exclusivamente por 897
elas. O grande marco nesse sentido seria a publicação do “Jornal da Senhoras”,
em 1852, de Juana Paula Manso, com temas relacionados a artes, literatura e
moda10.

Embora contasse com textos de literatura, sobretudo aqueles que


recebia de suas colaboradoras, o tema principal abordado pelo jornal redigido
por Francisca Senhorinha da Motta Diniz não era esse. Repetidamente nos
diversos números do periódico, a defesa da emancipação da mulher, por meio de
sua educação e instrução, ganhava destaque. Era esse, sem dúvidas, o objetivo
primordial da publicação.

Educação das e pelas mulheres: uma estreita relação com a garantia de


direitos

A defesa da educação, principalmente das mulheres, pode ser


considerada um dos principais postulados presentes no jornal. O caráter

8
Sobre os jornais destinados às mulheres no século XIX, ver: DUARTE, Constância
Lima. Imprensa feminina e feminista no Brasil: século XIX, dicionário ilustrado.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.
9
MOREL; Marco; BARROS, Mariana Monteiro. Palavra, imagem e poder: o
surgimento da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 60.
10
Ibidem.
Sobre o relativo pioneirismo de Juana Paula Manso na imprensa feminina, ver:
MUZART, Zahidé Lupinacci. Uma espiada na imprensa das mulheres no século XIX.
Estudos Feministas, Florianópolis, v. 11, n. 1, p. 225-233, jan./jun. 2003. Sob a
perspectiva da autora, o primeiro jornal dirigido e redigido por uma mulher no Brasil
não teria sido o “Jornal das Senhoras”, mas a folha predominantemente política “Belona
Irada contra os Sectários de Momo”, redigida por Maria Josefa Barreto Pereira Pinto,
que teria aparecido em Porto Alegre em 1833.

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pedagógico da imprensa, tão comum aos jornalistas brasileiros do século XIX,


também era ressaltado por Francisca, que chegava a considerá-la uma “escola
útil, civilizadora”11 e que se apresentava “a todas as classes da sociedade,
difundindo a luz e dissipando as trevas que obscurecem a ignorância”12.

Professora, nos anos iniciais da publicação do periódico, Francisca


lecionava na Escola Normal da cidade de Campanha. Ao mudar-se para a Corte
do Império, exercera suas atividades na capital, chegando, no início dos anos de 898
13
1890, a fundar um Colégio e uma Escola Doméstica . Em uma população
predominantemente analfabeta14, sobretudo no tocante às mulheres, a redatora
de “O Sexo Feminino” era letrada, professora, jornalista e conhecedora de
importantes autores internacionais15. Nesse sentido, pode-se considerar
Francisca Diniz uma intelectual de seu tempo, sendo possível identificar
aspectos amplos e socioculturais e, ainda, de engajamento em sua trajetória.

Reconhecendo-se a dificuldade de definição a respeito da noção de


intelectual, parte-se do referencial teórico a partir do qual é possível estabelecer
“uma definição de geometria variável, mas baseada em invariantes”16. Assim,
teríamos uma concepção “ampla e sociocultural, englobando os criadores e os

11
O Sexo Feminino, n. 19, de 20 de janeiro de 1874, p. 1.
12
Ibidem.
13
A distinção entre os programas do Colégio e da Escola Doméstica pode ser encontrada
em SOUTO, Bárbara F. Op. Cit., p. 54-66. De maneira geral, pode-se conceber que o
Colégio seria destinado à formação de mulheres literatas, mães, preceptoras. Na Escola
Doméstica, seriam instruídas as mães e esposas da classe operária.
14
Ao citar o relatório do deputado [Antônio Cândido da] Cunha Leitão, Francisca
traçava o panorama sobre a instrução da população na Corte do Império, o município
neutro. Em edição datada de outubro de 1875, quando já se encontrava residindo na
capital, a redatora afirmava que: entre os homens, 68.716 eram analfabetos; 65.164
sabiam ler e escrever. Entre as mulheres, 58.161 eram analfabetas; 33.992 sabiam ler e
escrever. Já entre os meninos de 6 a 15 anos, 5.788 estavam na escola, 16.449 não
frequentavam escolas. O Sexo Feminino, n. 14, de 31 de outubro de 1875, p. 3.
15
Havia, com vistas a embasar seus pressupostos, menções a Rosseau, Bentham e Stuart
Mill, entre outros, nos escritos de Francisca Diniz. Além disso, a redatora de “O Sexo
Feminino” parecia estar bem informada a respeito dos avanços no tocante à educação
da mulher, a seu acesso a cursos superiores e à criação de escolas normais em países da
Europa e nos Estados Unidos, considerados por Francisca como mais civilizados que o
Brasil.
16
SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: REMOND, René. Por uma história
política. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2003, p. 242.

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‘mediadores’ culturais” e outra “mais estreita, baseada na noção de


engajamento”17. Na primeira acepção, estariam contemplados jornalistas,
escritores, professores secundários e eruditos. Na segunda, os intelectuais
estariam relacionados ao engajamento na vida da cidade enquanto atores
políticos, “mas segundo modalidades específicas, como por exemplo a
assinatura de manifestos – testemunha ou consciência”18.

De fato, as concepções não são excludentes; aliás, podem ser 899


complementares. Sob essa perspectiva, a “notoriedade eventual” ou a
“especialização” do intelectual, “reconhecida pela sociedade em que ele vive –
especialização esta que legitima e mesmo privilegia sua intervenção no debate
da cidade – que o intelectual põe a serviço da causa que defende”19 se
manifestaria nas atividades de Francisca Senhorinha da Motta Diniz por meio de
seus escritos em favor da educação.

Nos anos em que “O Sexo Feminino” foi publicado, a defesa da


educação e da instrução das mulheres esteve sempre presente. Francisca Diniz
defendia a educação das meninas desde a mais tenra idade, o acesso às escolas
normais, nas quais as moças poderiam aprender o magistério – concebido como
vocação e uma espécie de sacerdócio feminino – e, ainda, o acesso das mulheres
às escolas superiores, com vistas a exercerem carreiras até então reservadas
apenas aos homens.

As argumentações apresentadas pela professora e jornalista, faziam


uma clara distinção, contudo, entre instrução e educação. Para Francisca Diniz,
a educação seria, por natureza, mais ampla que a instrução, dividindo-se em três
tipos: física, moral e intelectual:
A primeira – procura formar homens robustos e sadios,
tornando-os aptos para os diversos misteres da vida laboriosa.
A segunda – tem por fim encaminhar o homem para o amor
do bem.
A terceira – tende a fazer adquirir conhecimentos,
conservando-os e ampliando-os.

17
Ibidem.
18
Ibidem, p. 243.
19
Ibidem.

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Temos sustentado que somente a mãe é apta para educar o


filho; pois sois que o pai, ainda que o quisesse fazer, não teria
o necessário tempo. É isto de uma verdade prática e
incontestável.
Porém que educação pode esperar-se da mãe de família que
nem sequer sabe definir este vocábulo?
E esta grave omissão, esta falta tão sensível, esse mal tão
grande a quem é devido? É ao governo, à sociedade, aos
homens – e aos pais.
[...] Mães de família, acordai desse vosso sono prejudicial –
reservai alguns momentos para lerdes, para vos instruirdes a
fim de que compreendendo o que é educação, possais dá-la a 900
vossos filhos, que por seu turno transmitirão a seus
descendentes20.

Na perspectiva apresentada reiteradas vezes nas páginas de “O Sexo


Feminino”, a educação das mulheres estaria mormente relacionada à preparação
das mães de família para que pudessem educar seus filhos. Entretanto, com o
decorrer do tempo, o postulado de “educação pela mãe na família, e instrução
pelo mestre no colégio”21 fora cedendo espaço à defesa sistemática do lugar da
docência para as mulheres.

Os escritos de Francisca Senhorinha traziam considerações sobre os


benefícios que a presença feminina traria para a educação, sobretudo primária,
inclusive com notícias de países nos quais tal transformação nas atividades do
magistério teria ocorrido:
Em um dos últimos relatórios da repartição central da
instrução pública nos Estados Unidos, notam-se dados
estatísticos importantíssimos que comprovam a sempre
crescente influência do sexo feminino no ensino primário.
[...] Vicioso em si, o ensino conferido por homens a alunos
até a idade próxima da adolescência, corrigia-se com o correr
do tempo é verdade; ficava, porém, constantemente, seja-nos
lícito assim dizer, a cicatriz dessa solução de continuidade;
permanecia o calo dessa fratura.
É na verdade o ponto fraco de todos os sistemas de educação
nacional até o presente; e a prova está na aberração de caráter
que cada dia as novas gerações vão manifestando mais
vivamente.
[...] O ensino dado pelos homens é sempre destacado e
imperfeito, porquanto é obvio que a soma das partes

20
O Sexo Feminino, n. 5, de 4 de outubro de 1873, p. 1-2.
21
“A educação moral, bem como a física e intelectual, tem até o presente estado a cargo
dos professores; mas isto constitui um erro que desabona o senso comum: o mestre só
deverá instruir e jamais educar”. O Sexo Feminino, n. 6, de 11 de outubro de 1873, p.1.

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diferentes e heterogêneas nunca é a natureza de cada uma


delas. O ensino administrado pelas mulheres, diferindo
essencialmente, oferece um aspecto todo determinado e
sujeito a regras seguras e determinadas.
[...] Por isso nos países mais cultos pouco a pouco a instrução
primária está passando toda para as mãos das mulheres; como
por exemplo nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Suíça, na
Alemanha e na França22.

Destinar o magistério primário às mulheres, educar desde cedo as


meninas “de modo a desempenhar no futuro a missão de esposa e de mãe de 901

família”23, criar “casas de educação para meninas e moças que precisem de uma
instrução mais apropriada às necessidades da vida”24: eis alguns aspectos de
suma importância nos discursos presentes em “O Sexo Feminino”.

Entretanto, há outra perspectiva relacionada aos postulados de


educação das meninas e mulheres que chama atenção. Nos primeiros números
do jornal, ainda no ano de 1873, Francisca Diniz publicava em seu periódico um
artigo de opinião intitulado “O que queremos? ”. Na edição em que parece dar
uma resposta àqueles que questionavam suas pretensões enquanto mulher e
redatora de um jornal declaradamente em prol da causa feminina, Francisca
afirmava:
Queremos a nossa emancipação – a regeneração dos
costumes;
Queremos reaver nossos direitos perdidos;
Queremos a educação verdadeira que não se os tem dado a
fim de que possamos educar também nossos filhos;
Queremos instrução para conhecermos nossos direitos e deles
usarmos em ocasião oportuna;
Queremos conhecer negócios de nosso casal para bem
administrarmo-los quando a isso formos obrigadas;
Queremos enfim saber o que fazemos, o porquê pelo que das
coisas;
Queremos ser companheiras de nossos maridos, e não
escravas;
Queremos saber o como se fazem os negócios fora de casa.
Só o não queremos é continuar vivendo enganadas25 (grifo
nosso).

22
O Sexo Feminino, n. 14, de 31 de outubro de 1875, p. 1-2.
23
O Sexo Feminino, n. 11, de 10 de outubro de 1875, p.1.
24
Ibidem.
25
Idem, n. 8, de 25 de outubro de 1873, p. 1.

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A educação e a instrução da mulher seriam, destarte, instrumentos para


a garantia de direitos. Importante mencionar, assim, a ideia de reavê-los, tomá-
los de volta, sob a perspectiva de que os direitos naturais das mulheres lhes
teriam sido usurpados pelos homens. Francisca fazia menção, nesse sentido, a
um direito então considerado fundamental nas discussões políticas que
permearam o século XIX: o direito de propriedade.

Para a redatora, “os homens se têm descuidado de ornar o espírito da 902


mulher, contentando-se em enfeitar- lhe o físico, lisongeando-lhe a vaidade” . 26

Aliás, as críticas à excessiva preocupação com a vaidade, com a ornamentação


do corpo em detrimento da edificação da alma, por meio da educação e da
instrução, seriam frequentes nos números do jornal. A questão fundamental
girava em torno do fato de que as mulheres, em sua maioria, viviam “na mais
completa ignorância de seus direitos, desconhecendo até aqueles em que a
legislação do país a considera solidária”27, referindo-se, por exemplo, à
alienação de bens imóveis.

É sob essa perspectiva que a redatora do periódico trataria do


casamento. Embora defensora do casamento civil, Francisca Diniz afirmava que
o “o fim do casamento na sociedade nunca foi outro senão legitimar a união do
homem com a mulher, para que assim unidos vivam e se amem como Cristo
amou a sua igreja”28. Contudo, asseverava que naquela “sociedade corrupta, sem
moral e sem religião”, o casamento seria “um meio de fazer fortuna”29.

Era nesse sentido que a educação e a instrução da mulher deveriam,


também, funcionar de modo a garantir direitos. As meninas deveriam ser
preparadas para os “embates de fortuna”, para que quando “casadas, solteiras ou
viúvas” pudessem gerir seus bens, para que não fossem enganadas pelo “homem
malandro que não quer trabalhar e que qual volatim de nova espécie quer dar
saltos mortais para apanhar um bom dote”30.

26
Ibidem.
27
Ibidem.
28
Ibidem, p. 2.
29
Ibidem.
30
Ibidem.

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Para Francisca Diniz, as moças solteiras não deveriam se deixar seduzir


“pelo fofo orgulho do luxo e da vaidade”31; ao contrário, precisavam ser
independentes em relação aos homens “por meio de uma educação apurada”32.
Asseverava que para aquelas que não buscavam a instrução, “acabado o pecúlio
do dote – passada a lua de mel – desaparecidos os enfeites exteriores – desbotada
a mocidade – aproximada a idade madura – multiplicados os janeiros, a realidade
aparecerá com seu cortejo de infelicidades e privações”33. Aconselhava:
903
Minhas patrícias: instrução e muita instrução vos aconselho;
lede o grande livro da vida, o livro do povo – lede os
periódicos – cultivai a imprensa, e só assim que podereis vir
a conhecer os vossos direitos, as vossas obrigações, e os
encargos de vossos maridos que podem trazer a felicidade ou
a ruina de vosso casal34.

Os estudos que se debruçaram sobre os escritos de Francisca Diniz


privilegiaram sua defesa pela “racional emancipação da mulher”, definida pela
própria redatora, em 1889, como a “necessidade de emanciparmo-nos da tutela
eterna e injusta que pesa sobre o nosso sexo”35. As denúncias das desigualdades
entre homens e mulheres – e a reivindicação de equiparação36 – bem como a
defesa dos postulados em favor da educação e da instrução da mulher têm sido
os pontos principais das análises. Entretanto, considera-se de suma importância
neste trabalho relacionar os aspectos presentes nos escritos de Francisca
Senhorinha, e os de suas colaboradoras, às questões mais amplas de ordem
política. A própria defesa da educação e instrução das mulheres como

31
O Sexo Feminino, n. 10, de 8 de novembro de 1873, p. 2.
32
Ibidem.
33
Ibidem.
34
Ibidem.
35
O Sexo Feminino, n. 9, de 14 de setembro de 1889, p. 1.
36
Importante mencionar que Francisca Diniz escreveu reiteradas vezes defendendo a
ideia de que a mulher não era, de modo algum, inferior ao homem. Além disso, afirmava
que os poucos lugares de destaque conferidos às mulheres ao longo da história seriam
fruto do desprezo conferido a elas por eles. Utilizando argumentos religiosos, a redatora
de “O Sexo Feminino” advogava pela superioridade da mulher:
“Desde que confundiu a Virgem de Nazaré em esposa do Espírito Divino, em mãe do
Divino Verbo, Jesus Cristo manifestou a sua sabedoria, fazendo ver ao homem que a
mulher é um ente igual ou mais superior do que ele, quando mais não seja sua igual.
Nada prova melhor a superioridade da mulher do que a doutrina de Cristo”.
O Sexo Feminino, n. 8, de 18 de agosto, de 1889, p. 2.

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mecanismo essencial à garantia de direitos, mormente em relação à propriedade,


é um ponto de suma importância. Demonstra, no limite, que as disputas e
reivindicações das mulheres não estavam apartadas daquelas presentes em seu
tempo.

A negação da política e a afirmação do político


904
Em dezembro de 1873, a redatora de “O Sexo Feminino” afirmava
categoricamente: “que nossa folha não é política, e, portanto, não tem que se
ingerir no grande problema social de qual seja a melhor forma de governo, se
monarquia absoluta, constitucional, teocracia, democracia ou republica
aristocrática”37. A priori, tal declaração poderia ser suficiente para estabelecer
que o periódico redigido por Francisca Senhorinha da Motta Diniz não tinha
matizes políticos. Entretanto, ao tomar essa afirmação como verdade inconteste,
outros elementos relacionados a uma compreensão mais ampla do político
acabariam relegados a um lugar secundário ou, no limite, desapareceriam das
análises sobre os postulados defendidos no jornal.

Considerando que uma história do político deve se preocupar com a


tentativa de reconstrução do “modo por que os indivíduos e os grupos
elaboraram a compreensão de suas situações; de enfrentar os rechaços e as
adesões a partir dos quais eles formularam seus objetivos; de retraçar de algum
modo a maneira pela qual suas visões de mundo limitaram e organizaram o
campo de suas ações”38, torna-se necessário ampliar os aspectos considerados
“políticos” a fim de mais bem compreender os escritos elaborados pela redatora
em prol da causa feminina.

O início das atividades de “O Sexo Feminino” se deu no dia 7 de


setembro de 1873, aniversário da independência do Brasil39. O primeiro número

37
O Sexo Feminino, n. 15, de 20 de dezembro de 1873, p. 2.
38
ROSANVALLON, Pierre. Por uma história conceitual do político. In: ______. Por
uma história do político. São Paulo: Alameda, 2010, p. 76.
39
Este aspecto fora brevemente citado em sua relação com o amor pela pátria professado
por Francisca Diniz em SOUTO, Bárbara Figueiredo. Op. Cit., p. 35.

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do jornal trouxe uma seção específica em comemoração à data, mas é o paralelo


estabelecido por Francisca Diniz que se destaca:
Feliz coincidência! Há 51 anos que se quebraram os ferros de
nossa escravidão ao jugo colonial, que se libertou o brasileiro
do despotismo de um homem que d’além do Atlântico nos
impunha sua vontade de ferro; há 51 anos em fim que soou o
grito de nossa independência.
Pois bem, este dia marcará também em nossa história pátria
uma época não menos memorável – a independência da
mulher, cujo eco já se faz ouvir na imprensa por um órgão –
O Sexo Feminino.
905
E pois,
Viva a independência do nosso sexo!
Viva a instrução da mulher!
Vivam as jovens companhenses!40

Ao completar um ano de existência, a “feliz coincidência”41 do


aniversário da independência brasileira com o aniversário do jornal era
comemorada por ter sido “um ano indicador do grito de independência da
mulher”42. Além de celebrar o aniversário do jornal, Francisca mais uma vez
publicava uma seção destinada ao 7 de setembro enquanto data cívica. Para a
redatora,
[...] dúplice é para nós o encargo de rememorar o dia de hoje,
isto é, o aniversário do Brasil, nossa pátria comum – e o
aniversário do grito que pela primeira vez, na cidade de
Campanha, província de Minas, ergueu na imprensa uma
mulher, que em uma publicação hebdomadária se propôs
propugnar pela racional emancipação, educação, instrução,
ilustração e regeneração do sexo feminino43.

O entusiasmo com o 7 de setembro também se repetiria em 1875.


Naquele ano, o jornal iniciaria sua edição do dia 12 de setembro tratando do
aniversário da independência e do surgimento do periódico. Havia, assim, um
“duplo prazer e entusiasmo”44 uma vez que estaria “vivamente desenhado o
quadro das duas independências, a da Nação brasileira e da racional
emancipação, educação e instrução da mulher, nova ideia esta proclamada e

40
O Sexo Feminino, n. 1, de 7 de setembro de 1873, p. 2.
41
O Sexo Feminino, n. 45, de 7 de setembro de 1874, p. 1.
42
Ibidem.
43
Ibidem.
44
O Sexo Feminino, n. 7, de 12 de setembro de 1875, p. 1.

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defendida desde aquele dia 7 de setembro de 1873”45. Assim, além da associação


entre a independência política e a independência feminina, verifica-se a
convicção da importância de “O Sexo Feminino” como um veículo fundamental
no processo de conquista de direitos.

A combinação de elementos políticos com os discursos em prol da


emancipação das mulheres se tornaria evidente após a proclamação da república,
quando ocorrera a alteração do nome do jornal. Embora tecesse elogios a D. 906
Pedro I, considerado um herói libertador em virtude da proclamação da
independência46, a D. Pedro II47 e à princesa Isabel48, Francisca Diniz saudaria a
chegada da república como mais um avanço em direção à emancipação da
mulher – entendida como uma etapa irreversível no caminho da humanidade
rumo à civilização e ao progresso:
Viva os Estados Unidos do Brasil!
Viva a República Brasileira!
Viva o Governo Provisório!
[...] Todas as nações sacodem esse resto de grilhões que se
opõem ao seu aperfeiçoamento físico, moral e intelectual,
erguendo-se ao verdadeiro nível e atingem de dia em dia ao
seu fim principal – o progresso da humanidade.
Tratando-se de questão tão transcendente, unamos nossas
forças a fim de fazer entrar na arena do combate travado para
a restauração dos direitos de igualdade o problema da nossa
Racional Emancipação.
Os que adotam nossas ideias são concordes que esta questão
estudada é de emergência social49.

Os aspectos políticos mencionados nos artigos publicados em “O Sexo


Feminino” não se referiam apenas à articulação de datas importantes no cenário

45
Ibidem.
46
“Viva o aniversário da independência do Brasil. Viva o 7 de setembro. Viva a nação
brasileira. Viva o herói Pedro I.”.
O Sexo Feminino, n.45. Op. Cit., p. 4.
47
Em uma das últimas edições de 1873, fora publicado um poema em homenagem ao
aniversário do imperador, cujo título era “O Senhor D. Pedro II: O melhor dos monarcas
do universo!”.
O Sexo Feminino, n. 14, de 6 de dezembro de 1873, p. 4.
48
O elogio à princesa Isabel a sua participação na lei de 28 de setembro de 1871,
considerada por Francisca a “mais filosófica e humanitária de nossas leis”.
O Sexo Feminino, n. 28, de 11 de abril de 1874, p. 1.
49
O Sexo Feminino, n. 12, de 15 de dezembro de 1889, p. 1

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nacional às causas defendidas por Francisca. Ainda na década de 1870, a


redatora do periódico evocava “o espírito de liberdade, legendária liberdade
mineira”50 para defender seus pontos de vista. Fora assim que, em abril de 1874,
escrevera um artigo chamado “A heroica província de Minas Gerais sempre na
vanguarda do progresso”51. Para Francisca, Tiradentes, seu conterrâneo, era um
“mártir da liberdade”52, que teria regado com sangue a terra brasileira em prol
de liberdade do jugo e da escravidão colonial.
907
A redatora marcava o pioneirismo mineiro na luta pela liberdade, por
meio da rememoração de Tiradentes enquanto herói prógono da
independência53, para chegar ao ponto central de sua argumentação: teria sido a
província de Minas a primeira a criar, em 1835, uma Escola Normal; teria estado
na vanguarda, mais uma vez, ao definir que as mulheres ocupariam o lugar do
magistério na instrução primária de meninos; e, por fim, teria sido percursora ao
apresentar “a ideia da emancipação da mulher com a aparição do Sexo
Feminino”54.

Sob essa mesma perspectiva, Francisca Diniz seria ovacionada pelos


fundadores da Escola do Povo, criada na Corte55. Em carta publicada no
periódico, em fevereiro de 1874, Miguel Henrique Vieira, Henrique Limpo de
Abreu, José Nápoles Telles de Menezes e Francisco Rangel Pestana exaltavam
a redatora de “O Sexo Feminino”:
Essa província de Minas onde as mulheres já uma vez tiveram
a coragem de despir todos os seus ornamentos a bem da ideia

50
O Sexo Feminino, n. 8, de 25 de outubro de 1873, p. 3.
51
O Sexo Feminino, n. 27, de 4 de abril de 1874, p. 1.
52
Ibidem.
53
Sobre a construção da imagem de Tiradentes enquanto herói nacional nos anos finais
do século XIX e no início do século XX, ver: CARVALHO, José Murilo. Tiradentes:
um herói para a república. In: ______. A formação das almas: o imaginário da
república no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 55-73.
54
Ibidem.
55
Contrária ao ensino oficial, a Escola do Povo era apresentada por seus fundadores
como meio para “elevar o espírito da população, para reanimar-lhe as forças e preparar
uma geração para o futuro”.
PESTANA, F. R.; ABREU, H. L.; MENEZES, J. N. T.; FERREIRA, M. V. Primeira
publicação feita na imprensa pelos instituidores da Escola do Povo anunciando a criação
desse utilíssimo estabelecimento, p. 2. Disponível em: <
http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/242768>. Acesso em: 23 ago. 2016.

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de liberdade, onde deram suas joias para sustentar as armas,


seus filhos para morrerem pela pátria; e, despidas de vaidade,
enlevadas no mais ardente patriotismo, cingiram seus
delicados corpos com os grosseiros panos do país, essa
província generosa e grande, dizemos, não deveria deixar de
ser das primeiras a acompanhar-nos no corajoso brado
verdadeiramente ousado que levantamos, de emancipação do
Brasil pela boa educação dada ao sexo feminino.
A glória cabe a vós e vossas dedicadas e resolutas
companheiras; criastes na história uma página para a cidade
da Campanha e aumentastes um[a] flor à coroa gloriosa que
cinge a testa da pátria de Tiradentes. 908
Vós nos compreendestes; nós vos compreendemos; podemos,
pois, apertar-nos as mãos56.

A educação das mulheres e sua vocação para o magistério também


seriam temas caros aos criadores da Escola da Povo. Francisca Diniz recebera
duas coleções das conferências de Manoel Vieira Ferreira a respeito do programa
da Escola57. Importante mencionar que todos os envolvidos na criação da
instituição educacional foram signatários do Manifesto Republicano de 187058.

É bem verdade que os escritos de Francisca Senhorinha da Motta Diniz


não faziam menção aos enfrentamentos políticos mais comuns – entre partidos
ou pela defesa de determinada forma de governo –, tão presentes na imprensa
periódica ao longo do oitocentos. Ao contrário, a redatora chegara a afirmar não
haver diferença para a condição da mulher quer fosse sob um regime monárquico
ou sob um regime republicano59. Entretanto, torna-se de suma importância
compreender os mecanismos utilizados pela redatora do periódico ao buscar a

56
O Sexo Feminino, n. 23, de 28 de fevereiro de 1874, p. 1.
57
Ibidem, p. 4.
58
Rangel Pestana, republicano histórico, também integrava o grupo dos federalistas
científicos de São Paulo na geração de 1870, ver: ALONSO, Ângela. Idéias em
movimento: a geração 1870 na crise do Brasil Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002,
p. 346.
59
Em resposta às críticas que teria recebido de outro periódico, o Colombo, pelo soneto
em saudação ao aniversário de D. Pedro II em 1873, Francisca respondera: “Diz mais o
Colombo que a mulher sob o regime monárquico é escrava ou cortesã. Não sabemos em
que grande república ou republiqueta a mulher deixe de ser escrava e goze de direitos
políticos como o de votar e ser votada. O que é inegável é que em todo o mundo bárbaro
e civilizado, a mulher é escrava, domine a forma monárquica, ou o infrene despotismo”.
O Sexo Feminino, n. 15, de 20 de dezembro de 1873.

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compatibilização de discursos políticos, de apelos mais amplos, às causas que


defendia.

Além disso, cabe ressaltar que mesmo com uma pausa longa, entre 1876
e 1889, e considerando a rapidez com que jornais surgiam e desapareciam no
oitocentos – muitos não passavam nem do primeiro número – há que se cogitar
a falta de referências aos principais debates políticos da época enquanto artificio
utilizado para a sobrevivência do periódico em ambiente hostil, uma empreitada 909
60
nada fácil .

Por fim, mas não de menor importância, dois tópicos em relação ao


cenário político no qual Francisca Diniz escrevia seu jornal ganham destaque.
Embora não seja possível defini-la, considerando seus escritos sobre a
escravidão, como abolicionista declarada, a redatora marcava positivamente a
promulgação da lei de setembro de 1871 e, posteriormente, a de maio de 1888.
Mais que isso, os elogios à figura da princesa Isabel, apontada como responsável
pela liberdade dos escravos, e sua relação com Narcisa Amália, escritora
declaradamente abolicionista, adicionam outras nuances aos escritos de
Francisca.

Em segundo lugar, no tocante ao direito ao voto, há concepções que


atribuem papel secundário a essa questão nos discursos da professora e jornalista
mineira. Ao que parece, entretanto, tratar-se-ia de uma questão de compreensão
sobre o processo de emancipação das mulheres.

Ainda em 1875, o periódico trazia um panorama acerca das disputas em


torno do direito ao voto na Inglaterra e nos Estados Unidos. A redatora de “O
Sexo Feminino” apresentava a defesa do sufrágio para as mulheres na Inglaterra,
a partir do argumento de igualdade entre mulheres e homens no tocante ao direito
de propriedade. Francisca afirmava que o direito ao voto naquele país, conferido

60
Em carta enviada pela redação de outro periódico, “A República”, pode-se encontrar
menção a essas dificuldades: “para que em nosso pais uma senhora ache-se habilitada a
entrar nas lutas da imprensa, quanto não lutou para adquirir instrução, cercada como
está de um ambiente opressor, cheio de preconceitos, de falta de recursos de todo o
gênero para o sexo feminino”.
O Sexo feminino, n. 5, de 4 de outubro de 1873.

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aos homens, não se vinculava a sua condição enquanto cidadãos pura e


simplesmente, mas ao fato de serem proprietários e pagarem impostos.
Advogava, nesse sentido, em prol de que tal direito fosse estendido às mulheres
que possuíssem as mesmas condições. Afirmava que a causa caminhava “cada
vez mais acoroçoada para seu triunfo”61.

A questão fundamental dizia respeito ao fato de que Francisca concebia


a emancipação da mulher como o fim de uma caminhada gradual, com estágios 910
e etapas a serem alcançadas umas depois das outras – era o caminho rumo ao
progresso e à civilização. Nesse sentido, sua preocupação e defesa incansável da
educação e da instrução das mulheres, etapa elementar e fundamental, era o
primeiro passo para o alcance daquelas subsequentes. Tal perspectiva se tornaria
mais evidente quando a redatora de “O Sexo Feminino” afirmara, ainda na
década de 1870, a aspiração ao direito de votar e ser votada como “verdadeira
utopia na atualidade, e enquanto os homens não forem anjos”62.

Ao afirmar que sua folha não era política, Francisca Diniz não se
equivocara. Os temas tradicionais da política imperial passaram longe de seus
escritos. Entretanto, para as historiadoras e os historiadores que se debruçam
sobre a obra dessa intelectual, torna-se imperioso conceber seus postulados
enquanto defesas de um programa político, ainda que não sob este nome.

A defesa da educação das mulheres e de sua instrução; da garantia de


seus direitos, incluindo o de propriedade; da possibilidade de ocuparem escolas
superiores, com vistas ao desempenho de carreiras até então predominantemente
masculinas, como a advocacia e a medicina; e, ainda, os meios empregados para
legitimar seus discursos e as analogias com os acontecimentos políticos podem
servir como evidências de uma forma de ação que se distingue do exercício da
política de forma limitada, mas se insere no amplos domínio do político enquanto
modalidade de existência da vida comum63.

61
O Sexo Feminino, n. 15, de 7 de novembro de 1875, p. 1-2.
62
O Sexo Feminino, n. 18, de 14 de janeiro de 1874, p. 2.
63
ROSANVALLON, Pierre. Op. Cit., p. 73.

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A formação das almas: o imaginário da república no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2013.
911
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2006.

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ROSANVALLON, Pierre. Por uma história conceitual do político. In: ______.


Por uma história do político. São Paulo: Alameda, 2010, p. 65-101.

SOUTO, Bárbara Figueiredo Souto. “Senhoras do seu destino”: Francisca


Senhorinha da Motta Diniz e Josephina Alvares de Azevedo – projetos de
emancipação feminista na imprensa brasileira (1873-1894). 2013. 197f.

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Dissertação (Mestrado em História Social), Universidade de São Paulo, São


Paulo, 2013.

912

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A OPERACIONALIZAÇÃO DE UMA MASCULINIDADE POLÍTICA


NA REVISTA PLAYBOY (DÉCADA DE 1980)

Douglas Josiel Voks*

O estudo dos homens a partir do gênero tem se mostrado cada vez mais
importante para se perceber diversas relações conflituosas e tensas envolvendo
913
as masculinidades e suas relações de poder, além de evidenciar o quanto o gênero
é relacional. Nessa perspectiva se ampliou também o olhar para o masculino,
mostrando que não falamos de uma masculinidade, mas sim, em uma
pluralidade. Ao focarmos nosso olhar para a revista Playboy encontramos uma
diversidade, no entanto a forma hegemônica da masculinidade se constitui como
predominante. Nesse sentido, em uma análise criteriosa podemos perceber a
existência de várias hierarquias dentro do campo das masculinidades, em que
uma sempre se impõe como superior às demais, exercendo uma dominação
simbólica. Essa hierarquia tem em seu topo essa masculinidade hegemônica
como norma, a qual vai se estabelecer como elemento vislumbrado por muitos,
pela ideia de estabelecer múltiplos privilégios, mas acessíveis a poucos, pois diz
respeito a uma camada social restrita, composta por homens ricos, brancos e
heterossexuais, os quais encontramos representados nas páginas da revista
Playboy ao longo da década de 1980.

Em 1953 surge nos Estados Unidos a primeira edição da Playboy. O


seu criador, Hugh Hefner, acreditava que havia espaço no mercado para uma
revista masculina sofisticada que refletisse o comportamento da geração pós-
guerra. Nesse sentido, a revista não teve o intuito de falar somente sobre sexo.
Hefner defendia que a Playboy era uma revista de estilo de vida para jovens,
mostrando para esse público que sonhos e desejos poderiam ser reais. Susan
Gunelius, autora do livro “Nos Bastidores da Playboy – o jeito Playboy de gerir
uma marca” (2010), aponta a intenção da revista em criar sonhos e mostrar para
os leitores como viver essas fantasias na própria vida.

*
UDESC.

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No Brasil a Playboy chega em 1975, porém com o nome “Homem”,


para evitar a censura da época; foi somente em 1978 que a revista passa a se
apresentar com a marca internacional “Playboy”. A revista se estabelece no país
em um momento de segmentação da mídia impressa, que passou a se voltar cada
vez mais a públicos específicos. O periódico estava organizado em diversas
seções, com temas variados, porém com um discurso que sempre girava em torno
de mulheres, as quais eram bonitas, sensuais e apresentadas em poses
914
provocantes. Sexo, moda, cuidados corporais, bebidas, viagens, esportes, lazer,
economia, fama, política, cultura, gastronomia, são alguns dos temas presentes
na revista. Esses temas, em grande medida, são entrecruzados por uma vida de
solteiro, pois o homem solteiro seria “livre para fazer o que quisesse”. A revista
é organizada ainda em reportagens, entrevistas, textos de humor, carta de
leitores, ensaios fotográficos, publicidades e contos eróticos.

Quando a revista inicia a sua circulação no Brasil traz consigo dos


Estados Unidos o discurso do “novo”. Victor Civita, na primeira edição da
revista em 1975, escreveu que se estava lançando “uma nova revista para o novo
homem de um país que se transformava dia a dia”; seriam não apenas novos
tempos em relação ao cenário cultural, econômico e comportamental, mas
também um “novo homem”. Nesse sentido, a revista estabelece um projeto de
masculinidade hegemônica para ocupar esse “novo” espaço apresentado por ela,
o qual perpassa inclusive pelo campo político.

Embora os discursos fossem de um “novo homem”, era ainda uma


masculinidade heteronormativa que estabeleceu diversas relações tensas de
gênero. Isso não significa que a revista construiu na sociedade brasileira uma
nova masculinidade, pois os sujeitos poderiam ter a sua própria interpretação do
que lhes foi apresentando, podendo incorporar ou não essa masculinidade.
Todavia, mesmo não construindo uma masculinidade, a revista, através de suas
representações, legitimou um modelo que reforçou relações desiguais de gênero
na sociedade brasileira.

A escolha da Playboy como fonte documental se deu pelo fato de que


em revistas encontramos uma gama de discursos que visam hierarquizar e

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classificar determinados grupos sociais. Esses periódicos nos ajudam a


compreender não apenas um determinado período, mas também o que se
desejava projetar para esse período e para o futuro. Desta forma, utilizar revistas
na pesquisa histórica possibilita ao historiador um conjunto de fontes
diversificadas, já que nesses meios de comunicação impressos encontramos
diversas representações e discursos que ajudam a compreender as relações
sociais do período estudado. Isso ocorre porque, segundo a historiadora Nucia
915
de Oliveira (2007, p.298), as revistas, ao colocarem determinados textos e
imagens em destaque, estão evidenciando alguns dos modelos da sociedade na
qual estão inseridas, e das quais elas próprias são produto

Nesse sentido, as narrativas produzidas pela revista Playboy são


importantes fontes de investigação histórica, não só por estar, em certa medida,
evidenciando o seu contexto social, mas principalmente por trazer em suas
páginas um projeto do que se desejava construir para o futuro. Assim, o interesse
por esse periódico não é apenas para compreender a masculinidade que estava
operando na década de 1980, mas, principalmente, para perceber o projeto de
construção futura de masculinidade ligada ao mundo político.

Masculinidade(s)

Historicamente se construíram diferentes sociabilidades para


diferenciar homens de mulheres, as quais tendiam sempre a enaltecer atributos
masculinos baseados em força, agressividade e agilidade ou, no caso do início
do século XXI, incorporando a competência ligada ao conhecimento tecnológico
como um atributo para diferenciar homens de mulheres. Assim sendo, o corpo é
o suporte no qual são produzidas as diferenças simbólicas de gênero e, para
Miriam Pillar Grossi (2004, p.9), o gênero se constitui em cada ato da nossa vida,
seja no plano das ideias, seja no plano das ações.

No entanto, nesse universo, o sociólogo Pierre Bourdieu (2005, p. 63)


afirma que, ao mesmo tempo em que no plano das sociabilizações as mulheres
são diminuídas e colocadas em um constante silenciamento, os homens também

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são prisioneiros e se tornam vítimas sem perceberem. Isso porque, nessas


sociabilizações os homens precisam não apenas seguir a norma, mas devem
também a todo o tempo provar e reafirmar a sua masculinidade e, por
conseguinte, a sua virilidade. Para Bourdieu (2010, p.64), essa virilidade não se
dá apenas no campo sexual com uma capacidade reprodutiva, mas também no
exercício da violência, pois ela deve ser validada por outros homens e atestada
pelo reconhecimento de o sujeito fazer parte de um grupo de “verdadeiros
916
homens” (Ibidem, p.65). Assim, segundo o sociólogo, essa exaltação dos valores
masculinos tem sua contrapartida tenebrosa nos medos e nas angústias que a
feminilidade suscita, sendo a virilidade relacional construída diante de outros
homens, para outros homens e contra a feminilidade, por uma espécie de medo
do feminino, e construída primeiramente dentro do próprio sujeito (Ibidem, p.
67).

Essa masculinidade, mesmo a heterormativa, não é singular, pois pode


ser dividida e recortada por questões étnicas, de classe, geracionais ou culturais;
assim, devemos percebê-la no plural, ou seja, masculinidades, pois não são
apenas divergentes entre si, mas também sujeitas a mudanças. Ao longo da
trajetória do estudo das relações de gênero, desconstruiu-se a representação ideal
de mulher, passando-se a considerar as diversas mulheres com as suas
particularidades e individualidades. Os estudos de gênero relativos ao masculino
caminharam para a mesma direção, procurando mostrar que não existia uma
masculinidade, uma vez que esta noção é construída socialmente. Como
demonstra o sociólogo Pedro Paulo Oliveira (2004), “a masculinidade é um
espaço simbólico de sentido estruturante que modela atitudes e
comportamentos”.

A masculinidade, segundo R. Connell (2013, p.250), não é uma


entidade fixa encarnada no corpo ou na personalidade dos indivíduos. As
múltiplas masculinidades são configurações práticas que se realizam nas ações
sociais, ou seja, são construídas no dia a dia através das práticas sociais, e podem
se diferenciar de acordo com as relações de gênero em um cenário social
particular. Sendo assim, em diferentes períodos da História, as masculinidades

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adquirem novos sentidos. É possível afirmar que, em um mesmo período de


tempo, se conferem diferentes significados à masculinidade, isso porque há uma
diversidade social que corresponde a diferentes inserções dos homens na
estrutura social, política, econômica e cultural (GARCIA, 2001, p.36).

Para Robert Connell (1995, p. 188), “a masculinidade é uma


configuração de prática em torno da posição dos homens na estrutura das
relações de gênero”, e o autor, da mesma forma que Pierre Bourdieu, ressalta a 917
existência de uma masculinidade que, quando acionada, exerce um domínio não
apenas sobre mulheres, mas também sobre os homens, a masculinidade
hegemônica. Eis o que afirma o autor:
El concepto de hegemonía, derivado del análisis de Antonio
Gramsci de las relaciones de clases, se refiere a la dinámica
cultural por la cual un grupo exige y sostiene una posición de
liderazgo em la vida social. En cualquier tiempo dado, se
exalta culturalmente una forma de masculinidad en lugar de
otras. La masculinidad hegemónica se puede definir como la
configuración de práctica genérica que encarna la respuesta
corrientemente aceptada al problema de la legitimidad del
patriarcado, la que garantiza (o se toma para garantizar) la
posición dominante de los hombres y la subordinación de las
mujeres (CONNELL, 1997, p. 42).

Nesse sentido, o autor aponta para um ideal cultural de masculinidade,


apresentando-se em uma forma hegemônica. Segundo Connell (1997, 39), todos
os modelos de masculinidade possuem relação de subordinação, cumplicidade
ou de marginalização em relação à hegemônica. Seria essa subordinação que, em
última instância, leva ao aprisionamento dos homens dentro de suas próprias
masculinidades. Esse modelo hegemônico se impõe como o resultado mais
acabado do ser “homem”. Connell (2013, p. 245) ressalta ainda que essa
masculinidade, quando acionada, exerce um domínio não apenas sobre
mulheres, mas também sobre os homens, a qual não perpassa pela violência
física, apesar de poder ser sustentada pela força, mas significa principalmente
ascendência alcançada através da cultura, das instituições e da persuasão.

Essa masculinidade hegemônica pensada por Connell, e que se


apresentou na revista Playboy, está baseada nos seguintes atributos: machismo,
virilidade e heterossexualidade. Para Carrigan (1987, p. 92), além desses

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atributos essa masculinidade só poderia ser exercida por homens poderosos e


ricos que teriam capacidade para legitimá-la; assim, esse conceito levaria em
conta principalmente o poder econômico. O autor indica ainda que, mesmo
sendo própria apenas para um pequeno grupo concreto, a masculinidade
hegemônica é sustentada e mantida por uma grande parte de população
masculina, pelo fato de estas pessoas “acreditarem” que podem compartilhar do
poder e dos privilégios que ela proporciona.
918
A revista Playboy estava operando com representações e discursos que
nos leva a esse modelo hegemônico, ligado ao poder econômico, a
heterossexualidade e a etnia. Essa masculinidade hegemônica especifica da
revista pode-se apresentar também, como enfatizou Seixas (2012, p. 52), como
um conjunto de valores enaltecidos através de práticas individuais, instituições
e relações sociais que mostram os homens como superiores em relação às
mulheres e a outros homens, como por exemplo, homossexuais, trabalhadores
braçais, negros etc.

Nesse sentido, a revista direciona seus discursos para um padrão


masculino hegemônico, composto por homens jovens e solteiros que buscam um
novo estilo de vida, e esse não é o mesmo modelo hegemônico “tradicional” de
décadas anteriores. É nesse sentido que começamos a encontrar também no
campo político novas representações. Essa jovialidade passa a ser apresentada
para homens políticos, não apenas por legitimar esse modelo masculino que
estava sendo operado pela revista, mas principalmente por associar a jovialidade
com um novo cenário político de mudanças dentro do contexto de
redemocratização do Brasil.

Uma masculinidade política

Na década de 1970, a masculinidade hegemônica brasileira de classe


média era representada em grande medida através da força, brutalidade e
agressividade (VOKS, 2014). Porém na década de 1980 conseguimos perceber
certas mudanças em relação a masculinidade nas páginas da Playboy, pois o ideal

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passa a ser o homem sedutor, conquistador e galante, aquele que não precisava
ter a força física exacerbada, mas que apresentava a sua masculinidade pelo
poder da conquista e, principalmente, pela capacidade sexual. Tudo isso
associado a uma vida jovem, livre e de um “novo homem”.

Essa operacionalização de ideal masculino perpassou por diversas


representações, seja nas colunas, matérias, artigos de opiniões ou em imagens
com editorais de moda ou anúncios publicitários. Esse discurso do novo estava 919
sempre caminhando junto com um ideal de jovialidade, não apenas ser jovem
em idade, mas em atitudes e comportamentos que remetiam a uma liberdade e
principalmente capacidade de mudança, em não estar associado a antigos
comportamentos. Nessa busca em legitimar uma masculinidade, que não é
exclusiva da revista, mas que é enaltecida por ela, encontramos vários elementos
que são utilizados também no campo político.

Em uma entrevista no ano de 1987 com o então governador Fernando


Collor, percebemos na figura dele esses elementos que eram valorizados pela
revista. Eis uma passagem da entrevista:
A cena poderia ser a de um filme do velho oeste, com um
herói de porte atlético – a determinação e a vontade de fazer
justiça estampadas nos olhos – e os inevitáveis vilões, de
traços rudes e armas penduradas nos coldres, a marca de sua
violência. Apenas o cenário, a paisagem e o roteiro seriam
diferentes [...] Na cena verídica, tudo se passa numa pequena
cidade do sertão de Alagoas, Limoeiro de Anadia, e o
mocinho da história é um político, Fernando Affonso Collor
de Mello, 38 anos completados em 12 de agosto, 1,82 metros
de altura e 78 quilos.
Há 14 anos afastado da prática de caratê, Fernando Collor se
diz hoje um homem cordial, de bom humor, menos agressivo
[...] apesar de antecedentes de violência não é um homem
rude: é educado e gentil com as pessoas e até se confessa
muito sentimental e emocional. Nos comícios precisa se
controlar muito para não se deixar levar pela emoção.(Grifos
nossos - Revista Playboy, Outubro de 1987, n. 147, p. 37)

Nessa entrevista, a apresentação inicial feita pelos articulistas do


periódico coloca o sujeito como mocinho e herói, e a sua masculinidade está
atrelada a elementos ligados a virilidade força física, mas principalmente a novos
comportamentos. É descrito como uma pessoa educada, cordial e sensível, ou

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seja, o ideal desse novo homem que estava se estabelecendo nesse período. No
entanto, não é apenas a revista que enaltece esses comportamentos, o próprio
entrevistado se utiliza desse ideal de novo homem para compor a sua imagem
pública, ligada a jovialidade e ao desejo de mudanças. Então percebemos que
esses discursos operacionalizados pela revista podem em certa medida ser
introjetados pelos sujeitos que buscavam estabelecer novos comportamentos, ou
como no caso do governador citado, criar uma nova imagem política justamente
920
em um momento em que se lutava por mudanças no cenário político brasileiro.

Ao se colocar nesse “papel” de “novo homem” sensível e sedutor,


jovem, mas ao mesmo tempo com experiências e poder de liderança, o
entrevistado está construindo a sua imagem futura de masculinidade e
principalmente de ator político que vai levá-lo mais tarde a ocupar o cargo de
presidência do Brasil. Nesse sentido, essa masculinidade hegemônica
operacionalizada pela revista poderia não fazer muito sentido para grande parte
dos leitores no sentido de ser incorporada em seu cotidiano, mas servia como um
bom exemplo não apenas de comportamentos esperados, mas de renovação. Essa
masculinidade visava principalmente quebrar com uma imagem tradicional do
homem brasileiro ligado ao passado e estabelecer uma masculinidade pensada
para o futuro. É nesse sentido, que é uma masculinidade adotada por vários
políticos.

Os entrevistados políticos eram homens, e sempre se buscou enaltecer


aquilo que era visto como qualidades: poder de liderança para o campo político,
jovialidade e poder de conquista e sedução na vida pessoal. Não eram
necessariamente homens casados constituidores de uma família, na grande
maioria eram solteiros com idade entre 30 e 40 anos, preocupados com a
aparência física e o cuidado corporal, além de praticante de esportes ou ligados
a algum episódio de aventura e coragem para destacar ainda mais a sua
masculinidade. Podemos perceber tal fato na entrevista a seguir:
Andrea Calabi já fez uma aterrissagem de emergência, no
melhor estilo cinematográfico, com ambulância e carro de
bombeiro na pista, no campo de Marte, em São Paulo, quando
o motor do avião Piper Cherokee Arrow que pilotava entrou
em pane e ficou reduzido a apenas três dos quatro

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cilindros.[...] Embora tenha deixado muitas viúvas


inconsoláveis em Brasília como ironizaram na despedida,
seus colegas de trabalho no Tesouro, referindo-se a sua forma
de conquistador. (Revista Playboy, Julho de 1988, n.7, p.43).

Andrea estava ligado ao PMDB e ocupava nesse período o cargo de


secretário do Tesouro. Nessa passagem, percebemos que o espírito aventureiro
fazia parte dessa masculinidade, pois remetia a uma vida frenética e agitada,
sempre disposto a emoções e desafios. Então, essa masculinidade não era mais 921
associada apenas a força e virilidade, os homens deveriam viver a masculinidade
de forma plena. E mais uma vez fica evidente que a própria vida sentimental e
amorosa desse “novo homem” era também rodeada de aventuras.

Além disto, percebe-se que essa masculinidade hegemônica


apresentada pela revista não só era jovem como também girava em torno da
beleza estética, um padrão que poucos poderiam atingir. O próprio Fernando
Collor de Mello foi apresentado como um homem elegante, bonito e com porte
atlético, não por menos a revista apresenta também as suas medidas e peso. Sabe-
se que essa masculinidade hegemônica é acessível a poucos, mas as suas
representações se estabelecem como norma, algo que, mesmo nunca alcançado,
se constrói como algo desejado. Essa ideia de corpo perfeito está muito ligada
também a um mercado de produtos específicos para os cuidados corporais. Nas
páginas da revista encontramos diversas propagandas de perfumes, cremes e
roupas, em grande maioria importados, demonstrando assim que essa
masculinidade, para ser constituída pelos sujeitos, necessitava ser comprada e
consumida. A seguir temos dois exemplos:

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922

Revista Playboy, n. 6, Junho de 1988, p. 33,34

Revista Playboy, n. 273, Abril de 1998, p. 37

Esses dois anúncios publicitários nos ajudam a compreender questões


importantes como, por exemplo, o público para quais os discursos em torno da
masculinidade eram direcionados, pois se tratam de duas marcas internacionais
voltadas ao mercado de luxo. Ou seja, consumidas por pessoas com alto poder
aquisitivo. Além disto, essas propagandas evidenciam as construções estéticas

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em torno dessa masculinidade operacionalizada pela Playboy. Não se trata de


uma construção exclusiva da revista, pois a beleza estética já vem sendo vendida
pelo mercado de consumo há muito tempo, mas a revista operacionaliza e
legitima esse modelo estético, pois em suas matérias e entrevistas os homens,
em sua grande maioria, quando possuem corpos exuberantes como os dos
modelos acima são enaltecidos e principalmente associados a jovialidade e poder
de sedução.
923
Nesse sentido, a vaidade masculina e os cuidados estéticos passaram a
ser fundamentais para “esse novo” homem. Percebemos na análise de várias
entrevistas com políticos que esses cuidados passaram a ser adotados por eles
também, principalmente para construir uma representação de jovialidade, pois o
ideal de jovem estava muito associado ao novo e a mudança. Assim muitos
políticos começam a perceber que seria necessário construir uma imagem
pública que fosse socialmente aceita pela população conforme os modelos que
estavam sendo operacionalizados pelos meios de comunicação. Essa
masculinidade para os leitores da revista poderia ser algo distante, apenas uma
representação, mas ela começou a ser personificada na imagem de vários atores
políticos.

Considerações

Ao longo das análises referentes à masculinidade aludida pela revista


Playboy, percebemos que a operacionalização de uma masculinidade
hegemônica caminhou junto de vários comportamentos sociais marcados pela
heteronormatividade e pela legitimidade masculina frente a esses
comportamentos. Por isso, nas páginas desse periódico encontramos discursos
que acompanhavam as transformações sociais da época. Ao apresentar o “novo”
não podemos dizer que a revista apresenta rupturas, são apenas pequenas
mudanças que não alteram substancialmente a vida das mulheres ou dos homens.
Embora os discursos fossem do “novo homem”, esse trazia consigo, na década
de 1980, vários comportamentos iguais aos de décadas anteriores, ou seja, não
era nada novo ou radical, pois foram muitas permanências imbricadas nesse

ISBN: 978-85-65957-07-6
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Ed. Anpuh-Rio
Atas do II Encontro Nacional do GT Estudos de Gênero
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fluxo da construção social do masculino. Nesse sentido, compreendemos que


mudanças bruscas ou rupturas demandam muito mais força do que apenas
discursos e representações de uma revista.

Porém, a masculinidade hegemônica operada pela revista teve, em certa


medida, algo novo, pois foi elaborada a partir de novos parâmetros, dos quais se
excluía a força física e agressividade, entrando em cena um homem que podemos
chamar de “playboy”, o qual exercia sua masculinidade através do poder de 924
sedução e conquista das mulheres. Essa masculinidade é legitimada pela revista
ao passo que ela busca enquadrar esses comportamentos e representações na
figura dos seus entrevistados, e é também uma masculinidade introjetada pelos
mesmos, pois a idéia do novo estava muito associada a um período de
transformações sociais, culturais e políticas. Operacionalizar ou adotar uma
masculinidade política foi também uma forma de construir uma imagem futura
que pudesse ser socialmente mais aceita e ligada a uma idéia de mudança e
transformações.

Nesse sentido, acreditamos que os personagens políticos apresentados


pela revista nesse período, souberam utilizar-se dessa nova masculinidade para
criar uma identidade política que lhes conferisse legitimidade. A revista
operacionalizou comportamentos para que se cria-se ou legitimasse normas, e
muitos políticos se apropriam desses discursos para por em prática essa nova
masculinidade, para que também pudessem criar a sua própria imagem política.

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