Boa Vista, RR
2018
SÂMIA TAYANNE DE SOUSA ARAÚJO
Boa Vista, RR
2018
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Profa. Dra. Prof. Dr. Rosidelma Fraga
Orientadora/Curso Letras - UERR
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Prof XXX
Curso XXX
____________________________________________
Prof. Dr. XXXXX
Dedicatoria
AGRADECIMENTOS
EPIGRAFE
RESUMO
abstract
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 10
1 A REPRESENTAÇÃO DA SOLIDÃO ................................................................... 13
1.2 Solidão em Noites Brancas ....................................................................................... 19
2 A REPRESENTAÇÃO DO SONHO ....................................................................... 25
2.1 O tipo sonhador em Dostoievski .............................................................................. 26
2.3 Nastienka: a representação do sonho e a quebra da solidão ..................................... 30
3. Observações sobre o existencialismo na obra ........................................................ 33
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 36
REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO ......................................................................... 37
Commented [df1]: Ver numeração
10
INTRODUÇÃO
Discutir a solidão na atualidade é tarefa árdua, visto que hoje é cada vez mais
comum uma exposição do ser das mais diversas formas, especialmente com o avanço da
tecnologia e o intenso uso das redes sociais, onde nunca se está “só”. Assim, estar só em
meio ao dia a dia é um sentimento na contramão do meio tecnológico em que vivemos,
que é o compartilhamento da vida em todos os instantes.
Mesmo diante de tal configuração social, é imprescindível lembrar que enquanto
existência o ser humano nasce e morre sozinho, assim, como vive a maior parte de suas
experiências internas de maneira solitária, e quando utilizamos esses termos fazemos
referência ao ser individual, onde os sentimentos e emoções são percebidos apenas por
quem os sente.
A solidão é tema recorrente no meio literário, sendo desenvolvido em múltiplas
facetas por autores das mais diversas escolas literárias, perpassado obras dos oitocentos
ou contemporâneas, clássicas ou obscuras, de maior ou menor complexidade narrativa,
onde acaba por ser associada a diversas situações como doenças, que são comumente
carregadas de fobia social. Noutros casos, a solidão se mostra apenas como um recurso
de autoconhecimento ou, em algumas vezes, como exposição da ideologia do próprio
escritor.
Um autor que conseguiu com maestria traçar o sentimento da solidão em seus
escritos foi o russo Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski (1821-1881), que em obras
atualmente consideradas clássicas, tais como O Idiota, Crime e Castigo e Memórias de
Subsolo, desenvolveu narrativas nas quais o leitor é convidado, junto a personagens, a
vivenciar a solidão. O jogo de apresentar o sentimento através das experiências de outra
existência dobra-se sobre si mesmo, uma vez que o leitor da obra só é capaz de
experimentar a solidão justamente no momento em que não está só, posto que
acompanhado do personagem.
Em seu romance Noites Brancas, Dostoievski nos apresenta a solidão de um
homem que não possui nome, família, amigos e nem nada, excetuando o trabalho e
algumas necessidades básicas, que o atasse a compromissos sociais, apenas se
autoidentificando como "sonhador". Um homem que vive isolado e busca pelas ruas da
cidade de São Petersburgo suas emoções e histórias, uma vez que se identifica mais com
o imaterial do que com as próprias pessoas à sua volta. A tragédia existencial é vista a
partir de um narrador, que sendo também o personagem principal do enredo, expõe sua
11
vida, medos e desejos ao leitor que pode se indagar sobre sua própria solidão. Já a
expressão que dá nome à obra, mais que simples fenômeno geográfico, pode ser
entendida como uma acurada descrição visual e artística da existência levada pelo
personagem sem nome. Noite branca (белаяночь, biélaianotch) é o nome em russo de
um fenômeno que acontece nas altas latitudes durante o verão, quando devido à
curvatura da superfície terrestre e à inclinação do eixo planetário, o céu é iluminado
pela luz solar mesmo à noite.
Para descrever como o sentimento de solidão é apresentado na obra, esta
pesquisa é organizada em três partes, a primeira concentra-se nos conceitos de solidão
elaborados a partir da filosofia e da sociologia. Para a construção do primeiro ponto de
objetivo específico tratado no capítulo inicial mostram-se preciosas as contribuições de Commented [df2]: Vc não disse quais são os objetivos
específicos
Abbagnano (2005), Klein (1995), Demo (1995), sempre partindo do princípio da
representatividade desse sentimento. Dentro deste aspecto é possível citar Heidegger
(2007) que apresenta o conceito de solidão com uma base filosófica e Comte-Sponville
(2003) retratando a temática a partir da ótica social.
A segunda parte aborda o segundo objetivo específico e trará considerações
sobre a figura do sonhador e a representação do sonho em Noites Brancas, a partir do
conceito expresso pelo personagem principal, assim como sua autodenominação como
“sonhador”. O sonho, facilmente observado em diversos textos do autor, ganha destaque
nessa novela, assim, o segundo capítulo dialoga sobre como o sonho pode ser
facilmente observado em diversos textos de Dostoiévski ganhando destaque em Noites
Brancas, subintitulado como “Recordações das Memórias de um Sonhador”, sendo esse
um dos motes da trama desenvolvida em São Petersburgo.
A terceira e última parte visa pontuar breves observações acerca de traços
existencialistas na obra, partindo da análise de características do personagem principal,
fundamentado em sua não nomeação na obra, o que abre espaço para reflexões sobre a
solidão e o sonho, expressos de tal forma que o leva a ignorar a própria identidade ou
não se identificar com ela. Dessa forma, o último capítulo vem analisar o terceiro
objetivo específico desse trabalho, ou seja, a busca existencialista que dá um ar de
mistério à trama. Traçada a partir da não nomeação do personagem principal, esse ponto
da pesquisa gera indagações como "porque apenas se identificar como sonhador?", ou
"ele não dizer um nome, quer dizer que ele mesmo não se aceita ou não se identifica
com o que é?".
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1. A REPRESENTAÇÃO DA SOLIDÃO
Sentir a solidão não depende de outro indivíduo a não ser do próprio que a tem,
ou seja, para se sentir solitário não é necessária a falta de comunicação com os demais
ou a exclusão do convívio social. Segundo Comte-Sponville, a solidão não deve ser
vista pelo prisma de um isolamento social como a falta de relações de comunicação com
outros indivíduos, amigos, ou parceiros afetivos, portanto, a solidão é o estado natural
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do ser humano, sendo, desta maneira, a condição, “o preço por ser si mesmo” (COMTE
-SPONVILLE, 2003, p. 564). A afirmação é feita com base no princípio de que o
homem nasce e morre só e no decorrer da vida vive suas experiências sensoriais de
forma única e extremamente individual.
Segundo o filósofo alemão Heidegger (2007), estar só é uma condição inata a
todo o ser humano, cabendo a cada ser viver experiências idiossincráticas ao longo da
vida, de maneira única e individual no mundo. Dentro de uma visão existencialista
apresenta a teoria do “ser-si”, que influencia as ações do ser:
Dentro de uma óptica ontológica a solidão não pode ser desassociada do ser,
visto que é imposto por sua natureza. Assim, não cabe ao homem escolher ter ou não ter
o sentimento de solidão, apenas cabendo exprimi-lo ou não.
O campo sociológico defende que há dois tipos de indivíduos sociais. O isolado,
solitário e outro que convive socialmente entre outros. O homem que vive em grupo
apresenta características comportamentais e culturais diferentes. Essa ciência afirma
ainda que a personalidade tem sua formação com base em influências do contexto social
em que o sujeito esta inserido. Demo (1995) consegue conceituar essa teoria quando
afirma que “viver é quase somente conviver”. O isolamento humano, isto é, a
inexistência de comunicação entre grupos gera o Homo Ferus, definido
sociologicamente como um “animal” que não passou por todos os processos “comuns”
de socialização, o que o leva a ter ações e ideias diferentes em relação à personalidade
social.
Sob o prisma sociológico a solidão passa a ser uma escolha, um ato consciente e
não um sentimento inato. Cabe ao homem decidir se será solitário ou não e isso implica
em uma relação social estabelecida com os demais a sua volta. O filósofo francês Jean
Paul Sartre (1943) fala que “O homem por si só não pode se conhecer em sua totalidade. Commented [df4]: Numero da página
Só através dos olhos de outras pessoas, pode reconhecer neles o que têm de igual. E
15
Veja bem, é a primeira tentativa de romance social entre nós e, melhor ainda,
está escrito da maneira como os artistas geralmente fazem, isto é, sem sequer
suspeitar do que resultará do trabalho. O material é simples: trata de pessoas
simplórias e de bom coração que acreditam que amar o mundo inteiro é um
prazer extraordinário e uma obrigação de todos. Elas não conseguem
entender coisa alguma quando a roda do destino, com suas leis e seus
regulamentos, atropela-as, sem a menor explicação, deixando-as de pernas e
ossos quebrados (BELINSKI 1948, p. 34).
por meio de cartas que acabam exprimindo a solidão de ambos, como é possível notar
em uma correspondência de Varvara para Makar:
Pois bem, de uma feita, numa quinta-feira, não suportando mais a minha
solidão e sabendo que, nesse dia, estava fechada a porta de Antón Antônitch,
lembrei-me de Símonov. Enquanto subia a escada para o quarto andar, onde
ele morava, ia justamente pensando que esse cavalheiro já se cansava da
minha companhia e que eu ia em vão a sua casa. Mas, como sempre ocorria,
tais considerações pareciam impelir-me, ainda mais, para uma situação dúbia
e, por isto, entrei. Havia quase um ano que eu vira Símonov pela última vez."
(DOSTOIEVISKI 2011, p. 46).
A obra acaba por não ser bem aceita e recebe diversas criticas negativas,
especialmente feitas por Belinski.Toda a expectativa que o critico russo projeta em
Dostoievski é frustrada com a publicação de O Duplo,que tem uma aceitação inversa à
obra anterior. O enredo contém características fantásticas, que fogem do realismo e
recorre a elementos psicológicos, colocando em questão temas como a loucura e
sentimento de solidão, o que leva a consciência humana a despertar os mais diversos
conflitos.
No ano seguinte, 1847, publica A Senhoria, onde conta a história de um
protagonista, Vassíli Ordínov, que passa dois anos solitários em um quarto, como o
próprio autor afirma: "Meteu-se lá [no quarto] como num mosteiro, como se renegasse o
mundo. Bastaram-lhe dois anos para se asselvajar por completo" (DOSTOIÉVSKI,
2006, p. 64). Com o desaparecimento de sua senhoria, ele precisa sair e buscar novos
17
Podemos entender que a obra do escritor russo tem ampla ligação com a
contemporaneidade, pois os problemas que ele suscita em sua produção
literária estão diretamente ligados à nossa condição nos tempos modernos: as
suas obras, verdadeiras criações artísticas, abrangem um vasto campo do
conhecimento humano. Sua obra, interessando-nos, enormemente, como
fonte de reflexão nas ciências humanas e emtudo aquilo que a razão
dominante foi capaz de criar. (HONORIO, 2015, p. 23).
A solidão é um sentimento que corre além do concreto, assim, pode ser retratado
de diversas maneiras e com características diferentes atribuídas no contexto literário a
um personagem, um cenário ou um tempo. Essa representação do sentimento fica nítida
em Noites Brancas. Em seu primeiro contato com o leitor, o narrador fala:
Vale ressaltar que Noites Brancas se aproxima muito dos textos da escola
Romântica. Recheado de elementos como a idealização do ser amado, exaltação a
natureza e a fuga da realidade, vista aqui na figura do “sonhador”. Em relação ao
romantismo é interessante esclarecer:
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Apenas sonho todo dia que cedo ou tarde encontrarei alguém enfim. Ah, se a
senhorita soubesse quantas vezes fiquei apaixonado dessa forma!... — Mas
como, por quem foi? — Ora, por ninguém, por um ideal, por aquela que me
aparecia em sonho. Crio romances inteiros em meus devaneios. Oh, a
senhorita não me conhece! Na verdade não posso negar que encontrei duas
ou três mulheres, mas que mulheres eram elas? Eram umas donas de casa
que... Mas vou fazê-la rir. Vou dizer-lhe que já vezes pensei em falar assim,
sem cerimônia, com alguma aristocrata na rua. Entenda-se: quando ela
estivesse sozinha. Claro, falar de um modo tímido, respeitoso e apaixonado;
dizer que estou morrendo sozinho.” (DOSTOIEVISKI 2009, p. 17).
21
Afinal aquilo que tenho a pedir-lhe se reduz a que me permita dizer-lhe duas
palavras fraternas, e a que me dedique um pouco de compaixão e não me
afaste do seu lado logo no primeiro momento, e que acredite na minha
palavra, e que tenha a paciência de ouvir o que tenho para lhe dizer... e se
levar tudo para a brincadeira, tanto faz! Mas que me conceda pelo menos
alguma esperança e me diga duas palavras, quando nada para trazer um
pouco de alegria ao meu espírito, ainda que nunca mais nos tornemos a ver
(DOSTOIEVSKI 2009, p. 25).
- Bem, vejamos: que espécie de homem é você? Vamos, comece, fale, conte-
me a sua história.
- História! — exclamei eu assustado — Minha história? Mas quem lhe disse
que eu tenho uma história? Eu não tenho história nenhuma...
- Não tem outro remédio senão tê-la... Como podia viver neste mundo sem ter
uma história? - respondeu ela a rir.
- Pois, creia-me, eu não tenho história nenhuma! Porque tenho vivido para
mim próprio, como costuma dizer-se, só, completamente só, sempre só,
completamente só. Sabe o que significa “só”? Pois é isso mesmo...
(DOSTOIEVSKI 2009, p. 35).
sobre de sua vida para a moça ele se define como um “tipo”, um “sonhador”. A
definição de sonhador é dada pelo próprio narrador com a finalidade de fazer com que
se entenda minimamente o sentimento que o envolve. É de suma importância tal
definição para que se perceba o universo em que ele está inserido. Sua solidão se
mistura a uma dada alienação do mundo exterior e das pessoas a sua volta, visto que o
“tipo” sonhador tem sua própria realidade munida de fantasias:
Agora que estou sentado a seu lado e que falo com você, infunde-me um
extraordinário desalento pensar no que há de vir, pois na vida que tenho ainda
à minha frente... apenas vejo solidão, e de novo essa vida ociosa, inútil e
aborrecida. E que hei de eu sonhar então que seja mais belo do que a vida,
depois de ter realmente gozado aqui, ao seu lado, instantes tão felizes? Oh,
bendita seja, minha amiga encantadora, por não me ter afastado logo às
primeiras palavras! É graças a isso que eu posso dizer que, pelo menos, ainda
tive duas noites felizes na minha vida! (DOSTOIEVSKI 2009, p. 57).
Agora nunca mais estaremos sós pois, aconteça o que acontecer, havemos de
ser sempre amigos. Escute: eu sou uma pessoa inculta; não estudei muito,
embora a minha avó me tenha arranjado professores; mas acredite, eu o
compreendo muito, muito bem, pois tudo isso que me contou também eu o
sentia quando estava sentada perto de minha avó. (DOSTOIEVSIKI 2009, p.
34).
2. A REPRESENTAÇÃO DO SONHO
como:
No entanto, é dentro da obra Noites Brancas, 1848, que esse tipo é caracterizado
e tem seu olhar explorado pelo escritor russo. Lançado com o subtítulo de romance
sentimental das memórias de um sonhador, inicialmente a narrativa nos apresenta seu
protagonista como um sonhador, especialmente pelo próprio personagem se denominar
assim, e essa informação ser explícita ao leitor como forma de reconhecimento do
personagem principal, se tornando um elemento de identificação do protagonista.
A narrativa se passa em um curto espaço de tempo, cronologicamente temos a
passagem de quatro noites nebulosas, que são misticamente envoltas pela fantasia da
história de um homem que sonha com um universo que não possui e através do sonho
tem a possibilidade de viver além da realidade cotidiana. Sonha com a mulher amada,
com amigos e toda uma vida que existe em seu imaginário de maneira abstrata. Porém,
uma noite por acaso acaba por conhecer a mocinha e a partir daí é questionado sobre
quem ele é e sobre qual sua história. Ao lançar um olhar sobre si mesmo, logo em seu
primeiro diálogo com Nasthienka, o protagonista – narrador se define como sonhador:
Sou um sonhador, mal conheço a vida real, e um momento como este é tão
difícil de conseguir para mim, que me seria absolutamente impossível não
estar continuamente a evocá-lo nos meus sonhos. Esta noite vou passá-la toda
28
inteira sonhar com você. Esta noite? Toda a semana, todo o ano!
(DOSTOIEVSKI, 2009, p. 29).
sensação de solidão e da busca por sanar esse sentimento. Após falar sobre o ambiente,
o narrador sente-se à vontade para conceituar o próprio sonhador, figura a qual se
identifica a ponto de se denominar. É nesse momento em que o tipo sonhador ganha
uma classificação própria, onde é caracterizado:
É já escuro no seu quarto e ele tem a alma triste e vazia. À sua volta
desvaneceu-se todo um império de sonhos: secretamente, sem ruído, sem
deixar provas, como só um sonho pode desvanecer-se, e ele nem sequer
poderia contar aquilo que viu. Mas um obscuro sentimento que começa a
agitar-se no seu coração, pouco a pouco lhe vai infundindo um novo anseio,
afagando, sedutor, a sua fantasia e, sem querer, aí volta à sua frente uma nova
cavalgada de visões. Reina o silêncio no pequeno quarto; a solidão e o ócio
acariciam a sua imaginação que, suavemente, começa a esquentar-se (...). Um
novo sonho, uma nova felicidade! (DOSTOIEVSKI 2009, p. 48-49).
E ele nada deseja porque paira acima de todos os desejos, porque já os tem
todos, porque já está repleto e é o próprio artista da sua vida, e pode a todo
instante modelá-la à sua vontade. E surge tão fácil tão naturalmente, esse
fantástico mundo de fábula, como se tudo não fosse senão uma invenção do
cérebro. Na verdade somos frequentemente tentados a acreditar que toda essa
vida não é urna criação da sensibilidade, nem um caprichoso jogo
insubstancial ou uma invenção enganadora, mas uma autêntica realidade,
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Não muito longe de mim acabava de descobrir uma figura de mulher; estava
de pé e apoiava os cotovelos no parapeito da muralha, e parecia absorvida na
contemplação das águas turvas do canal (...)Meu Deus! O meu coração teve
um pressentimento. Por muito tímido que eu seja com as mulheres, naquele
caso... é que as circunstâncias eram tão singulares! (DOSTOIEVSKI, 2009,
p. 19)
Querida Nástienhka, agora que nos os dois nos voltamos a encontrar depois
de uma tão grande separação — porque eu já a conheço desde há muito
tempo, querida Nástienhka, pois já há muito que ando à procura de alguém...
(...) agora abriram-se mil torneiras na minha cabeça e tenho que vazar o meu
coração numa torrente de palavras, se não quiser que elas me afoguem
(DOSTOIEVSKI 2009, p. 44).
uma mulher? O quão utópico é para um solitário sonhador se tornar herói e salvar a
mocinha em apuros?
Até então, os momentos sociais que envolvem o protagonista são os que ele
interage com a cidade e não com pessoas. Os homens de São Petersburgo são
conhecidos do narrador por observação, ele sabe seus trejeitos, fisionomias, os
caminhos que traçam, no entanto, não estabelecem comunicação ou uma relação de
amizade com essas pessoas. “E para que quereria eu os amigos? Eu sou amigo de toda a
cidade de São Petersburgo (DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 11). E prossegue: ―
Evidentemente que os outros não me conheciam; mas eu... eu os conheço. Conheço-os
até muito bem; tenho estudado as suas fisionomias” (DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 12).
Sobre a cidade a relação é descrita com detalhes, como se cada prédio fosse uma pessoa,
um ser com o qual o sonhador pode conversar e se relacionar verdadeiramente:
Também conheço os edifícios. Quando passo diante deles, dir-se-ia que cada
um dos prédios mal me vê põe-se logo a correr, avança dois passos à frente,
me olha por todas as suas janelas e me diz: “Bom dia, aqui estou! Como tem
passado? Eu felizmente estou bem, mas para o mês de maio vão acrescentar-
me outro andar.” Ou então: “Bom dia! Como está? Sabe uma coisa? Amanhã
vão rebocar-me a fachada.” Ou, finalmente: “Olhe, houve fogo e estive quase
a ficar todo queimado... Se soubesse o susto que eu tive!” E outras coisas do
gênero. É claro que tenho os meus favoritos entre eles e até alguns bons
amigos. Um deles vai ser revisto por um arquiteto neste verão; vai reconstruí-
lo e pô-lo como novo. Terei infalivelmente de passar por ali todos os dias
para que o meu amigo não me pareça depois um desconhecido, Deus o livre
de uma coisa dessas! (DOSTOIEVSKI 2009, p.27).
noite prodigiosa, uma noite como só vemos quando somos jovens, leitor querido”
(DOSTOIEVSKI, 2008, p. 08).
Ao desenvolver o enredo para o leitor, o protagonista-narrador cria para si um
personagem, onde pode contar sua história a partir de outra perspectiva, a do sonhador.
É ele o sujeito do sonho, é quem é inserido em um mundo mágico e tem um universo
construído para sustentar sua história. A fala passa a ser mais poética e com
características romanescas, o que gera a possibilidade de criar um romance dentro de
outro romance e dar ênfase a multiplicidade no discurso de Dostoievski e sua polifonia.
“Dentro do plano artístico de Dostoiévski, suas personagens são, em realidade, não
apenas objetos do discurso do autor, mas os próprios sujeitos desse discurso diretamente
significante (BAKHTIN, 2010, p. 04).”
Através da construção de um universo romântico, Dostoievski apresenta
Nastienka como o sonho concretizado do narrador. Se antes o sonhador tinha como
companheira a solidão, agora ele vivencia a esperança de um amor romântico. Dentro
da construção de Noites Brancas nasce a figura do homem que é envolto por seu sonho
em cada detalhe, seja desde o título de seu enredo que remete a neblina e a imagem
turva que pode ser associada às sensações visuais registradas durante o sono, ou até
mesmo a não nomeação de seu protagonista.
33
escapar à solidão social em que está imerso. Numa sociedade erguida em torno de
regras muito rígidas de relacionamento, criando um meio sisudo e pouco afeito às
relações sociais, cumprimentar o outro significa um certo convívio íntimo,
diferentemente de nossos dias, não polidez.
Essa rigidez, depois substituída pelo sorriso fácil das cocotes da belle époque
parisiense (e moscovita), ajuda a construir um ambiente em que o personagem central
ora é determinado pelo meio, ora se vê diante de suas próprias opções (abordar ou não a
mocinha, por exemplo, ou confessar ou não seu modo de ser), prenunciando o ser
existencial, que sofre diante do ter que optar, do qual nos falará Sartre, mais de sessenta
anos depois, em seu constructo teórico:
Talvez que a culpa de tudo isto a tivesse aquele raio de sol que de súbito
surgiu por entre as nuvens, para logo depois voltar a esconder- se por detrás
de outra ainda mais escura, anunciadora de chuva, de tal maneira que todas as
coisas se tornaram ainda mais lôbregas e mais sombrias... Ou seria que os
meus olhos divisaram o meu futuro e nele viram algo de árido e de triste, algo
semelhante a mim mesmo, ao que eu sou agora, àquilo que serei dentro de
quinze anos, neste mesmo quarto, igualmente só (DOSTOIEVSKI, 2009, p.
127).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO
_______. Gente pobre. Trad. Fátima Bianchi. São Paulo: Editora 34, 2009.
______. O Duplo: Poema petersburguense. 1.ed. Tradução: Paulo Bezerra. São Paulo:
Editora 34, 2011.
______. Noites Brancas. 1.ed. Tradução: Nivaldo dos Santos. São Paulo: Editora 34,
2005.