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DIPLOMACIA APLICADO

PORTUGUÊS

Texto: Dez minutos de idade

1 A enfermeira surgida de uma porta me impôs silêncio com os dedos junto aos lábios e mandou-me entrar. Estava nascendo!
Era um menino.
2 Nem bonito nem feio; tem boca, orelhas, sexo e nariz no seu devido lugar, cinco dedos em cada mão e em cada pé. Realizou
a grande temeridade de nascer, e saiu-se bem da empreitada. Já enfrentou dez minutos de vida. Ainda traz consigo, nos olhinhos
esgazeados, um resto de eternidade.
3 Portanto, alegremo-nos. A vida também não é bonita nem feia. Tem bocas que murmuram preces, orelhas sábias no escutar,
sexos que se contentam, perfumes vários para o nariz, mãos que se apertam, dedos que acariciam, múltiplos caminhos para os
pés. É verdade que algumas palavras, melhor fora nunca dizê-las, outras nunca escutá-las. Olhos há que procuram ver o que
não podem, alguns narizes se metem onde não devem. Há muito prazer insatisfeito, muito desejo vão. Mãos que se fecham.
Pés que se atropelam. Mas o simples fato de nascer já pressupõe tudo isso, o primeiro ar que se respira já contém as impurezas
do mundo. O primeiro vagido é um desafio. A vida aceitou um novo corpo e o batismo vai traçar-lhe um destino. A luta se inicia:
mais um que será salvo. Portanto, alegremo-nos.
4 Menino sem nome ainda, não te prometo nada. Não sei se terás infância: brinquedos, quintal, monte de areia, fruta verde,
casca de árvore, passarinho, porão de fantasmas, formigas em fila, beira de rio, galinha no choco, caco de vidro, pé machucado.
O mundo de hoje, tal qual estou vendo da janela do meu apartamento, desconfio que te reserva para a infância um miraculoso
aparelho eletrocosmogônico de brincar. Ou apenas uma eterna garrafa de coca-cola e um delicioso chica-bom.
5 Aceita, menino, esses inofensivos divertimentos. Leva-os a sério, com toda aquela seriedade grave da infância, chupa o
chica-bom, bebe a coca-cola, desmonta e torna montar a miraculosa máquina de brincar de nosso século, que a imaginação de
teu pai jamais poderia sequer conceber. Impõe a essas coisas e a essa vida que te oferecerão como infância a sofreguidão de
tua boca, a ousadia de teus olhos e a força de tuas mãos. Imprime a tudo que tocares a alegria que me deste por nasceres.
Qualquer que seja a tua infância, conquista-a, que te abençoo. Dela te nascerá uma convicção. Conquista-a também — e vai
viver, em meu nome. Nada te posso dar senão um nome.
6 Nada te posso dar. No teu primeiro instante de vida minha estrela não se apagou. Partiu-se em duas e lá no alto uma delas
te espera, será tua. Nada te posso dar senão um nome e esta estrela. Se acreditares em estrela, vai buscá-la.

(SABINO, Fernando. In: A mulher do vizinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p.941-942)

Questão 01
Com base no texto, julgue os itens a seguir.

I. Pode-se identificar, entre o segundo e o terceiro parágrafos, em exemplo de paralelismo semântico, já que, primeiro, o cronista
enumera o que vê fazendo a descrição do menino; depois, usando os elementos dessa enumeração, na mesma ordem, amplia-
os, fazendo, comparativamente, a descrição da vida.
II. No terceiro parágrafo, o pai contrapõe duas visões de infância: a antiga, que privilegia o espaço natural e está associada
apenas a aspectos positivos; e a moderna, que é urbana e limitada ao espaço do apartamento.
III. O terceiro parágrafo estrutura-se de forma circular, a fim de que se preserve o estado de alegria inicial, quebrado pelas
considerações feitas pelo pai a respeito das “impurezas do mundo”.
IV. Nos dois últimos parágrafos, o pai assume uma posição de imparcialidade diante do futuro do filho, o que pode ser confirmado
com o emprego da terceira pessoa do plural, no trecho “Impõe a essas coisas e a essa vida que te oferecerão como infância a
sofreguidão de tua boca” (quinto parágrafo).

Questão 02
Assinale a opção em que a palavra sublinhada não pertence ao campo semântico relacionado ao termo destacado na oração
“O primeiro vagido é um desafio.” (3º parágrafo).

a. “Realizou a grande temeridade de nascer” (segundo parágrafo)


b. “Ainda traz consigo, nos olhinhos esgazeados, um resto de eternidade.” (segundo parágrafo)
c. “Já enfrentou dez minutos de vida.” (segundo parágrafo)
d. “o primeiro ar que se respira já contém as impurezas do mundo.” (terceiro parágrafo)
e. “A luta se inicia: mais um que será salvo.” (terceiro parágrafo)
DIPLOMACIA APLICADO
Questão 03
Acerca dos aspectos sintáticos e linguísticos do texto, julgue os itens abaixo.

I. A quebra na estrutura frásica, no trecho “O mundo de hoje, tal qual estou vendo da janela do meu apartamento, desconfio
que te reserva para a infância um miraculoso aparelho eletrocosmogônico de brincar.” (quarto parágrafo), caracteriza o
anacoluto.
II. Na frase “Qualquer que seja a tua infância, conquista-a, que te abençoo.” (quinto parágrafo), verifica-se um objeto direto
antecipado, cujo núcleo é a palavra “infância”, e um objeto direto pleonástico.
III. Também se encontra a estrutura de objeto antecipado e de objeto pleonástico na frase “Menino sem nome ainda, não te
prometo nada.” (quarto parágrafo).
IV. A palavra “Dela”, na frase “Dela te nascerá uma convicção.” (quinto parágrafo), exerce função sintática de complemento
nominal do substantivo “convicção”.

Questão 04
Considerando os aspectos morfossintáticos do texto, julgue os itens abaixo.

I. O terceiro parágrafo é marcado pelo emprego, reiteradas vezes, da personificação, como em “Tem bocas que murmuram
preces, orelhas sábias no escutar.”
II. Se a oração “Aceita, menino, esses inofensivos divertimentos.” (quinto parágrafo) fosse reescrita na forma negativa do
modo imperativo, estaria correta a seguinte estrutura “Não aceite, menino, esses inofensivos divertimentos”.
III. Também atenderia à prescrição gramatical, o emprego da preposição “em” no lugar da preposição “a”, para introduzir o
complemento verbal de imprimir, no trecho “Imprime a tudo que tocares a alegria que me deste por nasceres”.
IV. Na oração “Nada te posso dar senão um nome.” (quinto parágrafo), a palavra “senão” denota exclusão e poderia ser
substituída, sem qualquer alteração semântica e sintática, por salvo, exceto ou apenas.

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