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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
DISCIPLINA DE HISTÓRIA DA FILOSOFIA MEDIEVAL II
DOCENTE: Marcos Nunes da Costa
DISCENTE: Luccas de Amorim Rêgo
ATIVIDADE: Reconstrução lógica da prova ontológica da existência de Deus de Anselmo
Canterbury.

Tornou-se motivo de atenção e debates as conhecidas provas escolásticas da existência de


Deus. Anselmo de Canterbury se fez conhecido pela chamada, hodiernamente sobretudo, pela prova
ontológica da existência de Deus, que mal ocupa uma página de seu Proslogion, tendo, de maneira
contumaz, ocupado milhares de páginas que a discute – nome, vale dizer, aplicado por Imamnuel
Kant, pois o próprio Anselmo apresentou-o como argumento dialético1. Neste breve ensaio vou
reconstruir logicamente seu argumento, à moda clássica, isto é, não simbólica, distinguindo
premissas e conclusões e apontando as regras de inferência usadas, de modo tal que possamos
examinar anatomicamente o argumento.
É importante ressaltar, ademais, que o propósito do autor se justifica pelo seu público, i.é.,
seus confrades do hábito, pessoas que creem em Deus e procuravam no abade algumas palavras que
pudesse justificar racionalmente uma crença preliminar; ou, se preferir, procuravam com ele uma
pré-intelecção para sua verdade de fé. Portanto, o argumento não se pretende ser uma prova última e
válida em si mesma da autoevidência da existência de Deus, o que não nos impede de reconhecer o
valor formal e dialético do argumento, como também dos debates que suscitou dada a sua riqueza
permeada de aparente simplicidade, e vislumbrar, ainda que de longe, um sofisticado debate
filosófico.
Santo Anselmo nos legou seu conhecido argumento na obra chamada Proslogion, no
capítulo II (no capítulo III há um argumento que pode reforçar o anterior, mas nos concentraremos
apenas neste primeiro), no qual deriva da definição de Deus, qual seja, “o ser do qual nada maior
pode ser pensado”, a necessidade de sua existência. Trata-se mesmo de um argumento dialético, no
qual o pensamento não pode negar a existência de Deus sem trair a si mesmo. Segue abaixo a
porção do texto em que podemos localizar o argumento, seguido da reconstrução lógica:
Muito bem, Senhor, Vós que dais compreensão à fé, concedei-me que eu
compreenda, tanto quanto julgais adequado, que Vós existis, como acredito que
existis, e que sois o que acredito que sois. Agora, acreditamos que Vós sois uma

1 DE BONI, Luis Alberto. p. 188.


coisa da qual nada maior pode ser pensado. Ou pode ser que uma coisa de tal
natureza não exista, já que “disse o insensato no seu coração: não há Deus” [Sl
14:1; 53:1]? Mas certamente, quando esse mesmo insensato ouve o que estou
falando, ou seja, “uma coisa da qual nada maior pode ser pensado”, ele
compreende o que ouve, e o que ele compreende está em sua mente, mesmo que
ele não compreenda que isso realmente existe. Porque pe uma coisa um objeto
existir na mente, e outra coisa compreender que um objeto realmente existe. Assim,
quando um pintor planeja de antemão o que vai executar, ele tem [o quadro] na
mente mas ainda não pensa que realmente existe, porque ainda não o executou. No
entanto, depois de efetivamente pintá-lo, ele ao mesmo tempo o tem na mente e
compreende que ele existe porque agora o executou. Até o insensato, portanto, é
forçado a concordar que uma coisa da qual nada maior pode ser pensado existe na
mente, já que é algo que ele compreende quando ouve, e tudo o que é
compreendido está na mente. E por certo “aquilo do qual uma coisa maior não
pode ser pensada” não pode existir só na mente. Porque se existe só na mente,
pode-se pensar que existe também na realidade, o que é maior. Se então, aquilo do
qual uma coisa maior não pode ser pensada existe só na mente, esse mesmo aquilo
do qual uma coisa maior não pode ser pensada é “aquilo do qual uma coisa maior
pode ser pensada”, o que é obviamente impossível. Então, não há nenhuma dúvida
que uma coisa da qual nada maior pode ser pensado existe tanto na mente quanto
na realidade.2
P1. Deus é uma coisa da qual nada maior pode ser pensado (definição).
P2. A existência na compreensão e a existência na realidade são duas coisas separadas.
P3. A existência na realidade é maior do que a existência na compreensão.
(P3a. Uma coisa que existe na realidade é maior do que uma coisa que existe só na compreensão) –
Derivação de P3.
P4. Até o insensato compreende o conceito de “uma coisa da qual nada maior pode ser pensado”.
P5. Se uma coisa é compreendida, então ela existe na compreensão (definição).
C1. “Uma coisa da qual nada maior pode ser pensado” existe na compreensão (modus
ponens, P4 e P5).
P6. “Uma coisa da qual nada maior pode ser pensado” pode existir apenas na compreensão
(premissa hipotética de reductio ad absurdum)
P7. É maior para “uma coisa da qual nada maior pode ser pensado” existir na realidade do que
existir só na compreensão.

2 Anselmo de Canterburry. Proslogion, in Anselm of Canterbury: The Major Works, organizado por B. Davies e G. R.
Evas, traduzido por M. J. Charlesworth, 82 – 104. Oxford: Oxford University Press, 1998. Tradução do inglês nossa.
C2. Há alguma coisa maior do que “uma coisa da qual nada maior pode ser pensado”
(instanciação3, P6)
C3. “Uma coisa da qual nada maior pode ser pensado” não pode existir só na compreensão.
Tem que existir também na realidade (reduction, P6 – C2).
C4. Deus existe (substituição4 de definiendum para definiens, C3, P1).

Apresenta-se reestabelecido logicamente o argumento de Santo Anselmo para demonstrar, a


priori e racionalmente, a existência de Deus. Há duas críticas que podem ser mencionadas contra
este argumento, uma formal e outra ontológica. A primeira foi desferida pelo monge Gaunilo,
contemporâneo de Anselmo, que afirmara que dada a estrutura do argumento, poderia substituir-se
Deus pela “melhor ilha do mundo” e derivar-se-ia a uma conclusão válida. Isso não aponta um erro
específico do argumento, como é evidente, mas apenas que posta essa forma, qualquer outra
conclusão poderia ser derivada. Não consideramos essa crítica pertinente, pois que da mera forma
de um modus ponens qualquer conclusão pode ser derivada, pois o que é relevante para um
argumento é o compromisso ontológico das suas premissas, donde devemos falar por Anselmo e
dizer que ele parte de uma premissa tomada como verdade de fé, i.é., uma verdade revelada, ao
passo que uma premissa como “existe a melhor ilha do mundo” ou coisa que o valha deriva de um
juízo de gosto, diferença que poderia ter sido percebida pelo crítico à época, mas que hodiernamente
é manifestamente descabida, sobretudo após os séculos de debate da modernidade acerca do juízo
estético e juízo de gosto, sendo este último declaradamente subjetivo, o que não pode ser tomado
como analogia de uma verdade de fé, nos permitindo a conclusão de que a crítica de Gaunilo trata-

3 Inferência lógica que implica razões do geral para o particular. Ex: de “todos os homens são mortais”
para “Anselmo é mortal”, em que “Anselmo” é uma instância de “homens”. Também pode ser
identificado sob o título dictum de omni et nullo, que significa que o que pode ser afirmado ou negado
universalmente com verdade de um conceito, pode também com verdade ser afirmado ou negado de um
outro conceito que cai sob o primeiro. O princípio deriva diretamente de Aristóteles, ver Categorias [3]
1b10, 22.
4 Trata-se de uma regra de inferência lógica, pode ser expressa formalmente da seguinte maneira: Se a = b,
então a pode substituir b, donde o resultado é uma instanciação de substituição da expressão original.
Em alguns sistemas de dedução para lógica proposicional, uma nova expressão (i.e., proposição) pode ser
introduzida numa linha de uma derivação se ela é uma instância de substituição de uma linha anterior da
derivação (HUNTER, 1971, p. 118). É assim que novas linhas são introduzidas em alguns sistemas
axiomáticos. Em sistemas que usam regras de transformação, uma regra pode incluir o uso de uma
instância de substituição para propósitos de introduzir uma certa variável de uma derivação. Aqui temos
um sistema axiomático-dedutivo como estrutura formal do argumento dialético de Anselmo. Outrossim,
na lógica de primeira ordem, toda fórmula proposicional fechada (C4) que pode ser derivada de uma
fórmula proposicional aberta (P1) por substituição é dita ser uma instância de substituição. Se (P1) fosse
uma fórmula proposicional fechada, diríamos que ela própria é sua única instância de substituição.
Entretanto, o conteúdo semântico e ontológico de ambas é distinto, portanto, o argumento é linear, não
circular.
se de uma falácia de falsa analogia. Ademais, faça-se o teste de substituir a premissa de Anselmo
pela de Gaunilo e verás que o argumento chegará à conclusão de a = b, i.é., será tomada uma
premissa axiomática fechada cuja conclusão será ela própria, ao passo que no argumento
anselmiano (Cf. nota 4) a conclusão é semanticamente nova. Essa crítica pode ser ignorada sem
prejuízo.
Outrossim, em 1781, cerca de 7 séculos mais tarde, uma crítica mais sofisticada foi erigida
por Immanuel Kant, na Crítica da Razão Pura, em B 626. Podemos dizer, de maneira resumida, que
esse filósofo acusara Anselmo de usar inadvertidamente o termo existência, o que ataca diretamente
a premissa primeira do argumento, como um predicado real, i.é., uma propriedade de algum objeto
da realidade cuja subsistência é instada em si mesmo, o que este filósofo chama de nôumeno – neste
caso, Deus. A isto Kant chama de ideias regulativas da razão pura, i.é, para ele se trata de um uso
especulativo da razão que prescindindo da experiência possível (empírica) possa tratar do
conhecimento de um ente supremo e oferece a solução de girar essas categorias todas que
comumente são atribuídas a objetos a priori para a estrutura de conhecimento interna ao sujeito, i.é.,
as atribui como elementos da arquitetura da subjetividade e lega ao que é possível conhecer
(fenômenos) o modo de ser um feixe de contingências articulado no interior da subjetividade de um
agente perceptor, legando o Deus sobre o qual Anselmo argumenta à incognoscibilidade. Isso, em
fato, é um debate de princípios, e Aristóteles já nos ensinara que acerca de princípios não se disputa.
Kant é, autodenominado, um Idealista (Transcendental) e, em tom de demarcação, denominaria
Anselmo de Realista, do ponto de vista metafísico. Com isso queremos dizer que não há neste
embate uma posição que possa ser tomada como certa, visto que ambas são parciais – parcialmente
erradas, parcialmente verdadeiras. Cabe-nos apenas aprender com ambos pensadores e acompanhar
o decurso histórico de suas ideias. A crítica de Kant é externa ao argumento de Anselmo, pois parte
das premissas e estruturas que compõe o seu sistema (e trata-se literalmente de um sistema), de
modo que nos parece pouco profícuo procurar tensões entre os dois autores.
Para não nos prolongarmos em delongas loquazes, achemos uma conclusão enfim. Ao se
tratar das pretensões de elaborar provas para a existência de Deus, sejam elas a priori ou a
posteriori, serão, é patente, sempre incompletas, pois serão finitudes buscando indicar a infinitude,
o parcial buscando indicar o Absoluto. Mas dentre ambas, é patente que as demonstrações a priori
são mais razoáveis, dada a falibilidade e contingencialidade da experiência empírica 5. A prova da
existência de Deus, portanto, deve ser a priori, erigida sob a lógica6, a que chamamos já há algum

5 Falando hodiernamente. À época de Anselmo, a priori significava ir da causa ao efeito, e a posteriori o


contrário, ir do efeito à causa. Essa é outra ressonância das reflexões kantianas, compreender a priori
como o que prescinde da experiência empírica.
6 Refiro à lógica natural, que, como “a gramática, nasceu da espontaneidade natural do pensamento
inquieto, que precisou passar pelo crivo da lógica, que por sua vez, teve de ser refeita à imagem das
tempo de prova ontológica, consoante com diversas modalidade desde Anselmo até Leibniz, que
não deixam de ter um fundo comum. Esse fundo comum é, notamos com alguma meditação sobre a
questão de Deus, a insuperabilidade. O que não pode supor-se arbitrário e indemonstrável.
Talvez a melhor expressão dessa insuperabilidade esteja mesmo na fórmula anselmiana id
quo maius cogitar nequit. A despeito dessas questões, contudo, é correta a dedução da existência de
Deus no argumento ontológico, sem contra ela conseguirem triunfar as críticas de Gaunilo, Kant ou
quantos os seguirem. Podemos então considerar provada a existência de Deus desde o século XI.
Porém, atenção! Lembremo-nos das palavras de Pascal: “Dieu d’Abraham, Dieu d’Isaac,
Dieu de Jacob, non des philosophes et des savant”7. O argumento ontológico, erigido sob a égide
da lógica e da razão, oferece-nos o Deus dos filósofos, mas não o Deus de Abraão, de Isaac ou de
Jacob. Não esperem, portanto, de Anselmo que traga o Deus de todos. Ele deu um grande passo,
mostrou o deus que é o nosso, discípulos da razão.

matemáticas, capazes de gerar regras de cálculo exatas, que permitiam substituir, com vantagem, a lógica
inventada por Aristóteles. Malgrado se possa considerá-la uma formalização bem sucedida das ricas
possibilidades da gramática grega, nem por isso ela se mostrou mais confiável. Não só os escolásticos se
deixaram guiar por essa lógica natural do espírito humano, dela fazendo a pedra angular de seu edifício
especulativo, com as conhecidas ressonâncias teológicas, mas até mesmo Immanuel Kant, com o peso de
três críticas da razão, a considerou conquista definitiva do engenho, criada do começo ao fim por um só
homem, à qual nada mais há de se acrescentar. Mas quando a filosofia logra reduzir-se inteiramente à
lógica, quem sai logrado é o filósofo, porque, ao atingir o rigor dos axiomas, ela se desfaz do amor à
sabedoria, perde o interesse pela vida e nada mais lhe ocorre dizer sobre o mundo e o homem, tão
inseguros da própria contingência. Assim, deve contentar-se com as certezas fáceis da abstenção.”
(SANTOS, José Henrique. O trabalho do negativo. São Paulo: Loyola, 2007. p. 16)
7 “Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacob, não dos filósofos e estudiosos.” (tradução nossa)
PASCAL, Pensamentos, Editions du Seuil, Paris, 1967.

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