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Uma das formas de violência obstétrica identificada no discurso das mulheres refere-se à fala
de profissionais que prestam assistência no pré-natal. Foi possível constatar a propagação de
informações falsas através de argumentos inconsistentes, que são percebidos como um
recurso empregado para dar o comando sobre o tipo de parto que será realizado. Algumas
mulheres, apesar de questionarem a indicação médica, abnegam do parto desejado devido a
pressões familiares e a insegurança de substituir o profissional responsável por acompanhar o
parto, no fim da gestação.
Percebem-se alguns elementos que são utilizados enquanto indicadores de cesariana por parte
desses profissionais, como: a presença de circulares no pescoço do bebê, seu tamanho:
“grande demais”, a experiência de parto cirúrgico no parto anterior e a proximidade de uma
gravidez para outra.
Faltavam três semanas pro meu bebê nascer, e aí ele disse que, apesar dela
ter virado, ter se encaixado, ela tava grande demais. Ai ele pediu para que eu
fizesse uma ultrassom e indicou um médico. Nós vimos o meu bebê se
mexendo, estava tudo bem. Depois a gente viu uma imagem congelada com
um bebê com 3 circulares no pescoço e logo ali a gente percebeu que não era
a nossa filha ali (...) dali a gente saiu e fomos a uma outra clínica fazer com
um médico em quem a gente tinha confiança, que acompanhou o meu
primeiro parto, minha primeira gestação. Aí eu fiz o ultrassom lá meio hora
depois, e não tinha circular no pescoço. (Camila Oliveira)
Só que o problema, quer dizer, que os médicos diziam aqui era que tinha
sido muito recente um filho do outro. Eu sei que hoje em dia, eles usam
muito essa estratégia, vamos dizer assim: “Então, você teve parto cesárea,
você vai ter que ter o outro de cesárea”. (Cecília Aguiar)
Os relatos das puérperas demonstram que inicialmente elas buscavam o parto natural, mas não
recebiam suporte dos profissionais, que revelavam sua preferência pelo parto cirúrgico em
razão dos benefícios que este lhe traria. A cesariana, principalmente eletiva, possibilita que o
profissional “ganhe” mais tempo, por não esperar os processos fisiológicos do parto, que são
imprevisíveis e podem durar horas. Assim como, segurança, visto que, não será surpreendido
por mulheres em trabalho de parto, querendo parir. E, por último, “controle” sobre o
nascimento, quanto ao dia, a hora e o local.
Em relação aos mitos e falácias no pré-natal, os profissionais de saúde evidenciam falas que
implícita ou explicitamente desqualificam e diminuem a capacidade da mulher de realizar o
parto fisiológico, sendo capaz de motivar a substituição do parto fisiológico para o cirúrgico.
E a outra fala que a gente ouve bastante é que a mulher não entrou em
trabalho de parto, que é uma coisa que assim, é falaciosa, que assim, todas as
mulheres entram em trabalho de parto. Agora, se a gente operar a mulher
antes de ela entrar em trabalho de parto, ela não vai entrar em trabalho de
parto obviamente. Mas, se aguardar o tempo, aguardar até 42 semanas, que é
até quanto dura uma gestação, as mulheres vão entrar em trabalho de parto.
(Cristimara Souza, Obstetriz)
As falas dos profissionais de saúde entrevistadas estão de acordo com a fala das puérperas ao
identificarem narrativas utilizadas para a contraindicação do parto natural. A mulher recebe
atributos considerados negativos que indicariam a necessidade de intervenção no parto,
inclusive antes de esperar o curso natural da gravidez, como as contrações e o rompimento da
bolsa de água.
Por meio de argumentos falaciosos manifestados por profissionais de saúde responsáveis pelo
pré-natal, a mulher é induzida a realizar um parto não desejado, sendo depreciada quanto à
capacidade de dar à luz da maneira escolhida através de falas desmotivadoras.
O protagonismo da mulher no parto
Esta categoria surgiu a partir da descrição feita pelas entrevistadas referente à posição que a
mulher ocupa no seu processo parturitivo. Este foi reconhecido como passivo e submisso.
Diante do cenário hospitalar a mulher pode tornar-se invisível, sem voz e autonomia,
favorecendo a emissão de verbalizações rudes e irritadiças por parte de profissionais de saúde.
A mulher possui um papel secundário, sendo vista como um corpo por meio do qual, se
alcançará o objetivo final, que é o nascimento. E, ao se expressar, a gestante corre o risco de
incomodar os atores principais do parto, que estão comandando o espaço.
Eu me lembro ter perguntando pra minha médica: “Tá tudo bem com ele?”
Porque, eu falei pra ela que, quando ele nascesse, eu queria que ele viesse
pra mim, eu já não estava feliz com aquela cesárea, né? “Olha, quando o
Pedro nascer, por favor, deixa ele comigo, deixa ele comigo”. E eu
perguntava: “Tá tudo bem?”, e ninguém me respondia. E eu preocupada,
porque o Pedro tinha que ir pro outro canto, com o pediatra, e eu: “Tá tudo
bem com ele, tá tudo bem com ele?” Ela chegou pra mim, assim: Andréa, tá
tudo bem com o teu filho, fica calma” Assim, eu, eu falei: “Tá bom, tá tudo
bem, mas que quero ele aqui comigo”, sabe, assim, eu fiquei me sentindo tão
fragilizada com a resposta grosseira que ela me deu. E ela foi tão insensível,
sabe, num momento tão importante pra mim, ela não respeitou aquilo.
(Cecilia Aguiar)
Ao falar sobre a experiência com o parto normal, a entrevistada salienta sua perspectiva de ter
desempenhado um papel ativo no processo e ter protagonizado o seu parto, o que a fez sentir-
se bem consigo mesma. Também, relata uma conexão com o bebê e um trabalho conjunto no
momento de dar á luz como fator positivo que marca o princípio de uma relação mãe-filho.
E foi ótimo, foi ótimo, foi uma experiência muito bacana, porque aí veio a
Nina. Foram 12 horas de trabalho de parto, foi uma experiência maravilhosa,
já me senti assim: “Pronto, posso ir embora desse mundo, porque eu já
passei...”, sabe, assim, foi bem exatamente isso que eu senti, como se eu
tivesse feito o parto, sabe? Eu e a Nina, uma coisa nossa! (Cecilia Aguiar)
Ah, foi tão... dá até vontade de ter outro filho, sabe? Foi tão linda essa
experiência, e o mais legal de tudo foi que o Felipinho veio pro meu peito e
ficou no meu peito, mamando por duas horas. [...] “Eu me senti muito capaz,
eu me senti forte, sabe? Uma leoa, uma mãe que fez do melhor pro seu
filho“. (Cecilia Aguiar)
Segundo os profissionais, há uma crença social e cultural que faz com que todos acreditem
que as mulheres são incapazes e insuficientes para realizar o parto fisiológico sem
intervenções externas.
As próprias mulheres acreditam que são incapazes de ter seus filhos de uma
forma mais fisiológica e mais natural exatamente porque a cultura contamina
a sua autoestima. E aí um processo que era para ser essencialmente o
empoderamento das mulheres no momento de gerar a vida, de parir, de dar à
luz, se transformou num processo que fundamentalmente fortalece os
médicos e as corporações. (Joshua Barbosa, médico obstetra)
As mulheres têm seus corpos invadidos por procedimentos que não são autorizados e
permitidos pela mesma e seguem condutas impostas por não acreditar ter a possibilidade de
eleger as condições em que será vivenciado seu parto.
As mulheres não são perguntadas se aquilo que se pretende fazer pode ser
feito no corpo delas. (Damares Azevedo, médica epidemiologista, PhD)
Se você só oferece pra ela um parto ruim, cheio de intervenção, violento,
deitada, de perna aberta, ou com uma cesárea marcada, ela não tem opção,
ela não tem escolha. Agora se ela puder escolher tudo que diz respeito ao
parto dela, ao nascimento do filho dela, aí você tem um leque enorme de
opções. Se ela estiver consciente das escolhas, ela vai ter um bom parto,
independente do que ela escolheu, ela vai ter um bom parto. (Cristimara
Souza, obstetriz)
Ver minha filha, saindo de mim da maneira que ela foi tirada, rapidamente
sendo mostrada pra mim por um pediatra que não deixou nem ela, nem
chegar perto de mim... Eu pedi pra me desamarrarem, não desamarraram.
Depois, no vídeo, que eu vi o tratamento que deram pra ela, passando por
diversos procedimentos que eu considero altamente... Desnecessários, além
do frio, aquela luz forte no olho dela e ela chorando... Além de ter sido tirada
com brutalidade, teve que passar por tudo isso no primeiro minuto de vida.
(Cintia Cruz)
A mulher é obrigada a ter o parto na posição convencional, ela tem que ficar
em repouso durante o trabalho de parto, ela sofre manobras desnecessárias.
(Carina Macedo, médica obstetra, PhD)
Elas são invadidas por certos procedimentos que às vezes são extremamente
agressivos. (Damares Azevedo, médica epidemiologista, PhD)
Além disso, os profissionais de saúde indicam o parto cirúrgico como um dos procedimentos
utilizados desnecessariamente. A cesariana é uma cirurgia que trouxe grandes avanços na área
de saúde; pois, anteriormente, ao ocorrer complicações no processo parturitivo, as técnicas
para lidar com esse episódio eram escassas. Com o surgimento do parto cirúrgico, muitas
vidas foram poupadas; contudo, quando a cesárea acontece em circunstâncias indevidas, ela
oferece mais malefícios do que benefícios para a mãe e o bebê.
A cesariana é uma cirurgia maravilhosa, que salva vidas todos os dias, mas
ela não é pra ser feita em todas as pacientes, né? De uma maneira
desnecessária fora do trabalho de parto. (Frida Santos, médica obstetra)
Na percepção dos profissionais é importante que a gestante entre em trabalho de parto mesmo
que tenha optado pela cesariana. Quando isso não acontece e define-se a data e a hora que o
bebê irá nascer, chama-se de cesárea eletiva. Esse tipo de parto não respeita a fisiologia
natural do nascimento, sendo caracterizado como menos seguro.
(...) e claro que, a hora que a gente coloca a mulher dentro do hospital, outras
duas coisas vem historicamente, que é o parto horizontal e a episiotomia”.
(Iná Rocha, enfermeira obstétrica, PhD)
Portanto, o parto tem sido vivenciado por intermédio de técnicas obstétricas não
recomendadas, procedimentos rotineiros desnecessários, muitas vezes violentos, que limitam
a mulher durante o parto e trazem consequências negativas para a mãe e o bebê.
Andrea Garcia: Eu era muito jovem, eu tinha 22, 23 anos e eu não tinha essa
noção ainda desse mundo dos partos cesarianos. Eu achava que era possível
ter um parto normal, que a medica me conduziu a isso até o final da
gestação: “Não, você vai ter um parto normal, não se preocupa com isso, tá
tudo ok”. (Cecilia Aguiar)
Logo depois que, o Pedro nasceu eu comecei a estudar, né? Eu tinha que ter
estudado antes isso. Aí eu comecei a estudar a história do parto normal e
falei: “Poxa, então, eu vou ter a Nina agora de parto normal”. (Cecilia
Aguiar)
A princípio, eu não tinha nem ideia de fazer o parto normal. Ainda não tinha
escolhido, tinha medo, mas eu fui descobrindo que realmente era o melhor,
fiz muita pesquisa, internet, conversando com amigas. (Alice Brumado)
A falta de informação sobre os aspectos que permeiam o parto cooperam para a subordinação
da parturiente diante da escolha do modelo de assistência que deseja receber no nascimento de
seu filho e o conhecimento se constitui como um recurso que concede poder à mulher para
que realize uma escolha responsável. Quanto à carência de assistência devido à inexistência
de serviços de saúde nas proximidades, verifica-se a negação de serviços necessários e
essenciais à parturiente, ocasionando violência por meio de negligência.