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156 ARFIGO DEOPINIAO OPINION ARTICLE Revisitando “a questao democratica na area da satide”: quase 30 anos depois Revisiting ‘the democratic issue in the health sector”: almost 30 years later Sonia Fleury ! " Doutora em Cina Pla poo Instuto Univer de Pequis doRiode Janeiro QUPER) presidente do Centr Brain de Eatudos de Sade (Cems), sonia Reuy@igbr Em outubro de 1979, 0 Centro Brasileiro de Estudos de Satide (Cres) apresentou, no 1° Simpésio sobre Politica Nacional de Saside na Cimara Federal, 0 documento intitulado A questito democrética na drea da saide', identificado, a partir de entio, como uma proposta coletiva do Movimento pela Reforma Sanitéria naquela conjuntura, Desde a sua criagio, o Cents defendeu a idéia da Reforma Sanitaria, como aparece no editorial do segundo nimero dda Revista Satide em Debate de 1977, no qual é afirmado 0 principio de que “a satide & um dircito de cada e de todos 1 brasileiros” como recupera Paim (2008, p. 80) e se assume a “necessidade de organizar a prestacio de servigos de satide em uma nova perspectiva”. Nesse editorial ¢atributdo ao Cents o seguinte papel: preconizar a democratizagio do setorsatide, recebendo todas as contribuigdes que atendam aos objetivos de uma Reforma Sanitaria, que deve ter como um dos marcos a unificagao dos servigos de saside, piblicose sem fins lucrativos, com a participacio des usuarios estimulada, crescent, possibilitanda sua influéncia nos niveis decisériose ampliando 0 aceso ‘a servigos de satide de boa qualidade.(Ceses, 1977, p. 3-4). A questio politica que se coloca a partir desta anilise é relativa as condigbes necessitias a0 processo de po- lis ago e democratizacio da satide. A relagio entre democracia e satide & proposta por Berlinguer (1979) a0 postular que ambos sao conceitos abstratos e, mais do que isso, orientagdes ético-normativas. Se h4 necessidade de se reconhecerem os conflitos de interesse e a oposigao entre as forgas conservadoras ¢ reformadoras tanto no caso da democracia quanto no caso da satide, tais conflitos nao podem ser reduzidos a uma polarizagao classista. Por "bic originalment em 1980 pela revista Sai em Debate 9p. 1-14, Republicado ma coleines “Sadeem Debate: fundamentos da eforma sania? ‘Onganiada por: Sonia Fleury, Ligia Baise Paulo Amarante, p. 149-151, Cebex Rio de Jancio, 2007 ‘Side em Dr, in efi 38m, 156-16, 2009 FLEURY,S. + Reva "gues deers ie desta 50 anos pit outro lado, do ponto de vista estratégico, a luta pela universalizagio da satide aparece com parte intrinseca & luta pela democracia, asim como a institucionalizacio da democracia aparece como condicio para garantia da satide como direito de cidadat A cestratégia expan: se na satide através dos projetos da de uma hegemonia em formagio consubstanci Reforma Sanitiria, por meio dos quais se busca a concretizagao de: + reconhecimento politico ¢ institucional do Movimento Sanitério como sujeito e dirigente do processo refor- mador, + ampliagio da consciéncia sanitéria de forma a possibilitar o consenso ativo dos cidadaos (usurios € profis- sionais) em relagZo ao processo transformador no setor, bem como a natureza social das determinagSes que incidem sobre 0 processo satide/doenga e sobre a organizagio do cuidado médico; + resgate da satide como um bem de cariter piblico, embora contraditoriamente limitado aos interesses gerados pela acumulacio de capital. Por conseguinte, trata-se de expressar 0 carster de bem piblico da sade consubstanciando-o na definigao de uma norma legal ¢ do aparato institucional que visa & garantia da sua universalizagio ¢ equidade (Firuny,1992, p. 31). A apresentagio do documento A Questo Democrdtica na Area da Satide na Camara tornou-se um marco na trajet6ria da reforma sanitéria por diferentes razdes: + ademonstragio da capacidade de organizacio de diferentes formulagées anteriores para consolidar um projeto + a formulagio, pela primeira vez, da proposta de criagio do Sistema Unico de Satide (SUS); + aocupagio de um espaco estratégico pelo Movimento pela Reforma Sanitaria, no que diz respeito & construgio de aliangas estratégicas com os parlamentares. ‘Além de denunciar a deterioracao progressiva das condigdes de vida e satide da populagao brasileira, o documento assinala a crescente mobilizagio popular e direciona essas tendéncias & construgio do conceito de crise da medicina brasileira, decorrente de uma politica socioeconémica privatizante, empresarial e concentradora de renda. Tal politica tanto reduzira os gastos em satide piiblica quanto privilegiara a assisténcia hospitalar, curativa e de alta sofisticagao, incapaz de suprir as necessidades sanitérias da populacio brasileira. Denunciando as condigdes precarias de trabalho dos profissionais de sade e a auséncia de mecanismos de par- ticipagio dos usudtios, assume-se a necessidade de uma resposta democrética & questo, 0 que i + reconhecer o direito universal ¢ inaliendvel & satide; Sade em Deft Ride ci, 38, 8,166, 2009 157 158 FLEURY.S. + Revsiando“s quia democrat dada que Maes dpe + reconhecer a determinagao social da satide; + reconhecer a responsabilidade parcial, porém incransferivel das agées médicas na promogio ativa da saide; + reconhecer o cariter social do direito a satide, tanto no que tange a responsabilidade da comunidade quanto. do Estado. A construgio do projeto da reforma sanitiria fundou-se na nocio de crise: crise do conhecimento e da pritica médica, crise do autoritarismo, crise do estado sanicirio da populagio, crise do sistema de prestacio de servigos de satide (FLEURY, 1988). A constituigio da Satide Coletiva como campo do saber e espaco da pritica social, foi demarcada pela construcio de uma problemética tedrica fundada nas relagbes de determinagio da satide pela estrutura social, tendo como conceito que articula teoria e pritica social a organizacio da pritica médica, capaz de orientar a andlise cconjuntural ea definigio das estratégias setoriais de luta. Partindo da analise dos processos de trabalho e do conceito-chave de organizagio social da pritica médica, tal ‘movimento faz, uma leita socializance da problemcica evidenciada pela crise da medicina mercantilizada, bem como de sua ineficiéncia, enquanto possibilidade de organizagio de um sistema de satide capaz de responder as demandas prevalentes, organizado de forma democritica em sua gestdo e administrado com base na racionalidade do planeja- mento (FituRY, 1988, p. 196). A respostaa essa situagio de crise ¢formulada com clareza no documento do Ces, a parti de uma proposta de criagdo de um SUS de responsabilidade estatal, obstaculizando a mercantilizagZo da sade. Garantia-se, pois, um financiamento adequado a esse sistema, organizado de forma descencralizada e com base em unidades hierarquizadas que permitem a participagao da populagZo em codos os seus nfveis e instancias. Em seguida, ragam-se diferentes diretrizes de conduglo dda estratégia do SUS e da cransigZo para a sua implementagio (FLEuRy; Bata; AMARANTE, 2007, p. 149-151). Relendo esse documento hoje, pode-se perceber que sua fortaleza reside na confluéncia e organizagio de um conjunto de andlises e proposigdes erfticas que englobam o diagnéstico da crise na condigao de satide e a eritica da ‘organizagio dos servigos em prol de uma proposta alternativa de organizagio do SUS que pudesse concretizar os prinefpios democriticos do direito universal & satide, A grande poténcia de tal proposta é decorrente da facilidade em identificara incapacidade do modelo vigente de ‘organizacio dos servigos, subordinados crescentemente & légica da mercantilizagio da said; decorre, ainda, do fato de deter condigées de responder situacao de crise € 8 demanda neste campo. AA principal idéia da proposta altemativa se da pela inclusio da satide no campo dos direitos humanos, ¢ pelo acesso aos servigos de satide no campo dos direitos sociais, a serem garantidos por um Estado democritico a partir da organizagéo de um sistema ptiblico ¢ participativo, afirma-se “nao é estatizante, € popular”. Para essa proposta confluem as solugdes dos problemas identificados no sistema de satide relativos a financiamento © organizagio, relagio piblico-privada, recursos humanos, modelo de atengio, insumos e medicamencos, relagio da satide com o ambiente e, também, uso politico da rede de servigos. ‘Nesse sentido, podemos dizer que a proposta do SUS cumpria os requisitos do que Marx (2003) denominou ‘cate- goria simples ao tratar do método da economia politica, O pensadorafirma que as eategorias simples sio a expressio das ‘Side em Dr, in efi 38m, 156-16, 2009

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