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Processo do conhecimento na administragao AUDET, Michel. Le procés des connaissances de I’administration. In: Audet, M. e Malouin J.-L. (orgs.) La production des connaissances scientifiques de I’administration. Quebec, Les Presses de I’Université Laval, 1986. © autor inicia seu texto abordando a problemitica da relagdo entre sujeito, objeto & produgao do conhecimento na administragao, Ele toma partido da concepgao dialética dessa relagdo, na qual “o sujeito & um ator socialmente competente que procede a construgao e 0 conhecimento do objeto por uma série de agées € operagdes que se modificam e se transformam a pattir da propria interagao entre sujeito e abjeto. A relagao entre 0 objeto e 0s métodos de sua construgao é circular e deriva da circularidade que caracteriza a relagao entre sujeito e objeto”. Em seguida, o autor propde um quadro conceptual para o desenvolvimento de uma epistemologia da administragaio: 1. O campo, a disciplina, a organizacdo, o corpus O conceito de campo esté no centro de nossa problemética. Um campo é a0 mesmo tempo um lugar e um sistema. Ele & 0 lugar das relagdes entre atores humanos, que pretendem. produzir conhecimentos definidds ou que so reconhecidos como tal, e que esto em concorréncia para obter o controle da definigdo das condigées de produgao e validagao desses conhecimentos. Ele ¢ também o sistema de posigdes que ocupam os atores- produtores, ¢ de suas relagdes. O critério decisivo de pertencimento ou nao ao campo, portanto de circunscri¢0 do espago do campo, ¢ a pretenstio ou o reconhecimento da produgéo do tipo de conhecimento definido que constitui escopo do campo. O pertencimento de um membro ao campo nao esgota sua realidade enquanto ator social, Este pode ocupar simultaneamente varias posigdes num ou mais campos. A dinamica do campo, quer dizer das relagGes entre produtores, engendra a dinamica do seu contetido (corpus), j4 que produzir conhecimentos constitui a principal forma de ago pela qual 05 produtores tentam controlar as regras de produgao e de validade do conhecimento. Como as transformagdes desse corpus so indissociaveis dos processos de conhecimentos criados pelos produtores, ¢ que essas agdes de produg2o s40 constitutivas das relagdes soviais entre produtores ¢ de suas posigdes, a dinamica de um campo deve ser estudada ¢ interpretada como um processo social, II. O campo dos conhecimentos da administracdo Esse campo é animado por um movimento paradoxal de abertura e de fechamento, De um lado, os membros do campo veiculam uma retérica que transforma virtualmente toda a realidade em objeto a administrar, de sorte que 0 campo dos conhecimentos da administragdo tenderia a se superpor ao campo global do conhecimento. De outro lado, © “ campo ¢ ainimado por um movimento de fechamento que parece caracterizar as estratégias coletivas de autonomizagéo ¢ de controle ocupacional dos campos de produgio cognitiva; como se uma populagdio cada vez mais estavel e fechada atribuisse a si propria as tarcfas a cumprir, Ressaltamos que os processos de conhecimento so formas de ages inscritas num processo global de atribuigio de um sentido aos atos de conhecimento que neles sao realizados, Lembramos também que 0 processo global de divisao social do trabalho caracterizou todas as formagdes sociais das épocas sobre as quais temos informagdes. Todavia, as sociedades industriais parecem ser aquelas que mais 0 desenvolveram extensiva e sistematicamente, Nés constatamos, ¢ no € por acaso, que 0 periodo mais intenso de desenvolvimento do campo cixatifico corresponde ao da industrializagao. Dai decorre que a divisto do trabalho caracteristica das sociedades industriais é totalmente transversal ao campo cic geral, e assim, que o desenvolvimento do campo dos conhecimentos cientificos da administragao s6 se dé a partir de certo estagio das sooiedades industriais. Do ponto de vista dos processos de conhecimento, a divistio do trabalho observada em todas as sociedades industriais entre trabalhadores manuais ¢ trabalhadores intelectuais é muito importante, pois caracteriza um grupo social cuja tarefa principal ¢ a produgdo de conhecimentos. A propésito do campo da administragao, a distingao intelectual/manual tende a se superpor & distingao patrdo/empregado e a incluir os grupos associados as tarefas dos primeiros ou dos ‘iltimos. Com efeito, o patrao ¢ 0 grupo associado a suas tarefas tendem a absorver as agdes administrativas e 0s conhecimentos que as acompanham em nome de seus deveres administrativos ¢ de seus direitos de patrdes. Nés propomos chamar grupos de praticantes aos dos intelectuais-patries e outros associados as tarefas de agGes administrativas e de produgao de conhecimento administrativo. Os praticantes formam um primeiro grupo desse campo. Eles sfo talvez aqueles que alguns se preocupariam menos em observar no estudo desse campo; entretanto, sua produgao de conhecimento € constante e conectada com outros grupos que discutiremos a seguir. O reconhecimento de sua existéncia indispensével, notadamente pelos limites que ela coloca num estudo do campo. A relago conhecimento/agdo que os caraeteriza € 0 de um movimento circular destanchado por agdes concretas e que desemboca em outras ages concretas apés 0 conhecimento do objeto. A concepgao pragmatica da produgdo de conhecimento aqui é transparente. E 0 processo das ages concretas que inicia a tomada de conscigncia e que lhe confere um sentido. & a ocupagiio da posigtio delicada da relagao conhecimentolagao que caracteriza 0 grupo ¢ que especifica a forma dos conhecimentos que eles produzem ¢ que alguns qualificam como terra a terra, colados a realidade, senso comum, etc. A luz do processo geral de divisio social do trabalho, a diversificagao das organizages ¢ as ‘ages que nelas so coneretizadas contribuiram para 0 surgimento de um segundo grupo de produtores de conhecimento na administragZo: 0 dos no praticantes, A nfo participagao direta nas agdes administrativas © a concentragdo de suas tarcfas na _produgio de conhecimento so duas caracteristicas distintivas dos membros desse grupo. Constituido de todos aqueles que ocupam postos de analistas, de pesquisadores em todas as organizagdes voltadas ou néio somente para a produgéo de conhecimento, esse grupo cresceu consideravelmente com a expansdo recente das multinacionais, dos servigos e dos aparelhos de Estado. Nés ai incluimos o subgrupo dos universitarios, do qual fazem parte os membros do campo que trabalham em estabelecimentos de ensino ou de pesquisa. Eles se distinguem. habitualmente dos outros nao praticantes pela sua dupla participago num estabelecimento de ensino ou de pesquisa e ligagao a uma disciplina, pela responsabilidade que eles tém de conservar e difundir conhecimentos e pela formagao de membros em suas respectivas disciplinas. Essa dupla participagdo cria uma sorte de matriz de posiges e amplia a possibilidade dos universitérios ocuparem varias delas sinmultaneamente. A relagio 6 estreita entre © pertencimento a um estabelecimento ¢ a uma disciplina, a qual ¢ muitas vezes uma condigao implicita ou explicita de um emprego nesse estabelecimento, © processo sociohistorico da divisto social do trabalho ampliou a distingao entre praticantes e no praticantes. Os nao praticantes, da mesma forma que os praticantes, se ramificaram em inumerdveis formas de ocupagdes ¢ organizagies. Um grupo hibrido, 0 dos consultores, coloca dificuldades de classificagao, ja que seus ‘membros pretendem produzir conhecimentos do tipo daqueles dos nao praticantes ¢ que, além disso, eles so participantes de agdes administrativas Estudos concretos permitiriam estabelecer os fracionamentos reais dos dois grupos ¢ a hierarquia dos subgrupos no interior de cada grupo. Essa hierarquia reflete as forgas presentes no campo, e sua estabilidade se acompanha de uma cristalizagiio das regras dos processos de conhecimento; & ai entfio que elas ganham ares de universalidade e perenidade, Entretanto, isso nfo tem nada a ver com o conteiido das regras e do corpus que elas permitem produzir; essa estabilidade provém da estrutura das relagGes entre os membros ¢ entre os grupos no campo. Se os critérios sobre os quais se baseia a validade dos conhecimentos produzidos s40 admitidos por todos os membros do campo, a concorréncia se fard entiio a partir das regras de produgdo os conhecimentos produzidos, os quais deveriam progressivamente se aproximar dos critérios. Isso explica 0 sucesso pragmitico que filtra os trabalhos cientificos ha tés séculos © que criou essa aparéncia de correspondéncia crescente entre os conhecimentos e a realidade HL. Duas possibilidades de estudos concretos Para nds, somente estudos de formas coneretas ¢ de grupos concretos podem desenvolver a problemética descrita acima. Esses estudos podem ser tematicos ou morfol6gicos; daremos exemplos de cada um desses tipos. Um estudo temético Este trataria da racionalidade instrumental no campo dos conhecimentos da administracao, 2 qual esté no coragao das criticas feitas ao positivismo, ao projeto unitério da cigncia, as teorias da tecnocracia, em suma tudo aquilo assimila as ciéneias do homem 4s ciéncias da natureza, seja no momento de sua produgio ou nas agdes conoretas que dele deriva, Nossa hhipétese € que a razdo instrumental predomina no campo dos conhecimentos da administraga0 e que ela se manifesta sob dois aspectos. Primeiramente, ela constituiria 0 fundamento da concepgao pragmatica da produgdo e da utilizagdo desses conhecimentos. Assim, ela seria o principio unificador de todos os membros do campo, qualquer que seja 0

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