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O tema que nos motivou à realização deste estudo: “Arte e Cidadania: um diálogo possível”,
parte da concepção da arte como um instrumento de comunicação essencial, bem como de
transformação do ser humano, evocando suas potencialidades. Segundo Fischer (1987), “[...] a
função da arte concerne sempre ao homem total, capacita o Eu a identificar-se com a vida de
outros, capacita-o a incorporar a si aquilo que ele não é, mas tem possibilidade de ser”.
Portanto, a arte dialoga com as subjetividades, permitindo ao sujeito travar conhecimento
consigo mesmo e com o outro, situando-o, desse modo, enquanto ser no mundo.
A cidadania não é, contudo uma concepção abstrata, mas uma prática cotidiana. Ser
cidadão não é simplesmente conhecer, mas sim viver. Costumo dizer que a
cidadania como a liberdade não pode ser outorgada, mas sim conquistada.
De acordo com o autor, podemos, então, concluir que a cidadania é uma construção e uma
conquista diária, através do exercício da mesma. Portanto, a cidadania é fruto da vivência do
ser humano no seio da família, da escola, do seu local de trabalho, enfim do contexto social
no qual se insere.
Nesse viés do exercício da cidadania no cotidiano, constatamos que muitos são os lugares de
seu exercício e de sua construção. Porém, queremos destacar, de um modo especial, a
importância dos ambientes de educação nesse processo, de acordo com Nosella (2003, p.20):
Ensinar a todos por que o homem tem necessidade de se educar para se tornar
homem. O homem tem as sementes da piedade, da moralidade e da sabedoria, que
deverão ser desenvolvidas pela educação. Devem ser enviados à escola não apenas
os filhos dos ricos ou dos cidadãos principais, mas todos, por igual, nobres e
plebeus, ricos e pobres, rapazes e raparigas em todas as cidades, aldeias e casas
isoladas. Assim, todos saberão para onde devem dirigir todos os atos e desejos da
vida, por que caminhos devem andar, e de que modo cada um deve ocupar o seu
lugar.
Observamos que o caráter democrático e universal que deve alcançar a educação, permitindo
a todos os indivíduos o seu acesso, uma vez que, por meio dela, o indivíduo poderá explorar
as suas potencialidades, descobrindo novos caminhos que o conduzam à plenitude de sua
existência, através do exercício das virtudes cidadãs, participando ativamente na resolução
dos problemas da vida coletiva.
Assim sendo, acreditamos que a arte-educação propõe aos indivíduos um lugar mais
democrático para a arte, possibilitando-lhes, por meio dela, reflexões sobre seu papel em face
de seu contexto social, cultural e político, atribuindo-lhes autonomia, que é um reflexo direto
de seu exercício de cidadania, efetivando a sua participação em questões relativas à sua
própria vida e ao bem comum. Acreditamos, portanto que a arte abre caminhos para que o
indivíduo se torne um protagonista ativo na sociedade em que se insere.
[...] a arte é social nos dois sentidos: depende da ação de fatores de meio, que se
exprimem na obra de em graus diversos de sublimação; e produz sobre os
indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção de mundo, ou
reforçando neles o sentimento dos valores sociais.
Concordamos com Cândido no que se refere ao papel social da arte, porque reconhecemos as
possibilidades que ela dá aos indivíduos de terem acesso a novas formas de viver, de pensar,
de conhecer, de agir e de produzir. Deduzimos a partir daí, que ela também dialoga com os
valores sociais, no cotidiano, fundamentando-se na relação ética e estética, conduzindo os
indivíduos à tomada de consciência de seu papel ativo na sociedade, por caminhos que
perpassam pela humanização dos valores sociais, em atitudes críticas, sensíveis e perceptíveis.
O Instituto GOIA, localizado no Centro de Vitória/ES, atende a uma clientela composta por
jovens em situação de vulnerabilidade social, com idade entre 18 e 24 anos, que tenham
concluído ou estejam cursando o ensino médio, residentes nos principais bairros da Grande
Vitória/ES, sendo que o instituto recebe por ano cerca de 40 jovens, divididos em duas
turmas; matutino e vespertino.
Três projetos integram o Instituto Goia, são eles: o Projeto Empao Petrobras, o Projeto
Oficinarte e o Projeto Visitar. São projetos diversos, porém, todos eles têm em comum o
objetivo de atuarem na preservação do patrimônio cultural capixaba, como exercício de
promoção da cidadania. O Projeto Empao Petrobras é um dos principais projetos do instituto,
pois ele integra a Escola Multidisciplinar Profissionalizante de Artes e Ofícios – EMPAO, que
é patrocinada desde 2011 pelo Programa de Desenvolvimento e Cidadania da Petrobras. O
objetivo desse projeto é formar profissionalmente jovens, capacitando-os para atuarem com
restauradores em prédios do patrimônio histórico.
Após o término do curso, alguns alunos são contratados como técnico-restauradores, enquanto
outros são direcionados ao Projeto Visitar, que tem por objetivo a visita guiada por monitores
aos prédios que compõe o patrimônio histórico capixaba. Nessa trajetória, muitos foram os
alunos formados pelo projeto e, na maioria, deles é possível constatar que a educação aliada à
cultura é capaz de promover o bem-estar social do indivíduo e integrá-lo à sociedade, numa
consciência cidadã.
A disciplina tem uma carga horária de dezesseis horas, dividas em quatro aulas de quatro
horas, devendo as mesmas ser distribuídas em quatro semanas. Em todas as aulas, são
empregados os seguintes recursos: quadro, pincel atômico para quadro, apagador, lápis (nas
gradações: HB, 2B, 4B e 6B), borracha, estilete, régua, papel rascunho, papel canson e
prancheta; sendo que os alunos contaram, também, com material didático de apoio, a apostila
de desenho de observação, de autoria do professor da disciplina.
Os trabalhos realizados durante a formação são avaliados pelo professor, que lhes atribui nota,
segundo os critérios da Empao Petrobras, como requisito de aprovação na disciplina, de
modo, a estabelecer os níveis de aproveitamento dos alunos. Os trabalhos (desenhos)
executados pelos alunos são guardados e expostos na ocasião da conclusão do curso, quando é
feita uma cerimônia de formatura para entrega dos certificados, para desse modo socializar a
produção dos alunos durante o curso.
Em 30 de março, na última aula da oficina, foi realizada uma pesquisa escrita com os alunos
que responderam às seguintes questões:
As pesquisas respondidas foram transcritas, bem como, tiveram seus originais digitalizados.
Durante toda a pesquisa, realizamos, à título de diário de campo, anotações de tudo aquilo que
julgamos relevante e que pudesse contribuir para a análise dos dados coletados, como por
exemplo, reações, observações e diálogos em sala de aula. Realizamos, também, fotos dos
alunos e de suas atividades com objetivo de ilustrar a pesquisa.
Tendo realizado a coleta dos dados, entre os quais destacamos: desenhos, pesquisa escrita e
anotações de relatos orais dos sujeitos da investigação; procedemos, então, à análise dos
mesmos. Na perspectiva do paradigma indiciário (GINZBURG, 2003), a nossa análise
objetivou encontrar vestígios, indícios, sinais, por meio dos quais, delineássemos o “fio do
relato, que ajuda a nos orientarmos no labirinto da realidade” (GINZBURG, 2007, p.7),
permitindo-nos, desse modo, estabelecer o diálogo entre arte-educação e cidadania.
Durante a coleta dos dados, foram propostas doze atividades, onde reunimos cerca de
duzentos desenhos, entre os quais elegemos setenta e dois desenhos para análise formal. O
nosso critério de análise seguiu a seguinte orientação: em cada atividade selecionamos seis
desenhos, com traços bem distintos, entre si, para desse modo, realizar uma amostragem da
turma. Procuramos sempre, a cada atividade, variar os autores dos desenhos, de modo que
todos, os sujeitos do grupo pesquisado, estivessem, em algum momento, representados na
investigação. Com isso, procuramos lançar um olhar para o grupo como um todo, sem perder
de foco, sem dúvida, as singularidades. Porém, o que nos motivou a seguirmos esse critério
foi a tentativa de compreender os efeitos da arte-educação no grupo, e não apenas em um ou
em outro aluno.
Após realizarmos análise dos desenhos, procedemos à análise da pesquisa escrita, por meio da
qual pudemos confirmar as nossas impressões levantadas na análise dos desenhos.
No contato inicial que tivemos com os sujeitos pesquisados, foi possível perceber como a sua
realidade de vulnerabilidade social e/ou pessoal se fazia presente, uma vez que foram
inúmeros os relatos que nos permitiram verificar a sua situação de exclusão social. Porém,
nesse princípio de investigação, também, verificamos como esses sujeitos estavam ávidos por
construir valores que lhes permitissem romper essa barreira de exclusão, construindo, desse
modo, um futuro que lhes conferisse melhores condições materiais, educacionais e culturais,
constituindo-lhes cidadãos socialmente integrados.
As aulas foram embasadas pelas idéias de Freire (1991, p.79): "Ninguém educa ninguém,
ninguém se educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo."
Seguindo, portanto, o pensamento freireano, o papel do professor, definiu-se como um
mediador, um facilitador entre o sujeito e a sua expressão artística, o que lhes deu confiança
para que trilhassem esse caminho da arte em diálogo com as questões de cidadania,
oportunizando-lhes vislumbrar possibilidades de mudança e transformação, como nos aponta
Freire (2001, p.46):
É algo importante perceber que a realidade social é transformável; que feita pelos
homens, pelos homens pode ser mudada; que não é algo intocável, um fado, uma
sina, diante de que só houvesse um caminho: a acomodação a ela. É algo importante
que a percepção ingênua da realidade vá cedendo seu lugar a uma percepção que é
capaz de perceber-se; que o fatalismo vá sendo substituído por uma crítica esperança
que pode mover os indivíduos a uma cada vez mais concreta ação em favor da
mudança radical da sociedade.
Portanto, segundo o discurso Freire, pudemos reconhecer nos sujeitos o indício desse desejo
de constituição de cidadania, através de uma abertura para uma nova percepção da realidade,
por meio do desenho, que lhes permitisse romper com sua realidade de exclusão. Percebemos,
desse modo, que o desenho aponta para caminhos de conscientização dos sujeitos em face de
sua realidade, o que, para nós, é fundamental para que haja um processo de transformação da
mesma, como verificamos em Freire (1980, p.26):
Segundo Ana Mae Barbosa, encontramos na arte um importante instrumento para a educação,
por meio do qual podemos oportunizar aos sujeitos um canal de diálogo com o mundo, num
caminho de construção de uma consciência crítica, sensível e perceptível, a partir da qual se
estabeleçam reflexões que gerem oportunidades de constituição da sua cidadania e do seu ser
no mundo, o que buscamos verificar na nossa pesquisa.
À medida que a Oficina de Desenho de Observação foi se processando, a relação entre a arte e
a cidadania foi, naturalmente, surgindo, por meio das questões que as atividades suscitavam
nos sujeitos. Desse modo, em cada atividade, naturalmente, surgia um tema, ou, então, o
professor e os alunos propunham uma questão, para que, por analogia com o desenho, fosse
feita uma discussão e uma reflexão sobre o cotidiano e a vida dos mesmos.
Numa retrospectiva da análise dos desenhos, podemos verificar quais foram os temas
discutidos em cada atividade:
• Na primeira atividade, levantou-se a questão dos sujeitos em relação a sua moradia, onde
também se investigou quais eram os referenciais estéticos que os mesmo traziam, nesse
primeiro momento.
• Na segunda atividade, discutiu-se sobre o posicionamento do sujeito face aos problemas e
aos desafios enfrentados no cotidiano, refletindo-se, desse modo, sobre o conceito do “ver,
julgar e agir”, ou seja, da conscientização do processo que tira o sujeito da imobilidade e o
conduz a uma atitude crítica de transformação.
• Na terceira atividade, refletiu-se sobre a importância do sujeito observar a realidade sobre
vários pontos de vista, sobre várias perspectivas, para que o seu conhecimento da realidade
possa ser ampliado, dando-lhe maior capacidade de ação.
• Na quarta atividade, abordou-se a importância do convívio social considerando o valor e o
significado das várias expressões humanas, partilhando-se, desse modo, de todo
enriquecimento humano que a diversidade nos proporciona.
• Na quinta atividade, o conceito que norteou as reflexões foi de que a arte não é uma
expressão das elites, mas sim uma expressão da qual todas as pessoas que compõe a
sociedade devem se apropriar.
• Na sexta atividade, a ética e os valores sociais foram os temas abordados como referenciais
de se viver bem em sociedade, bem como de se projetar um futuro melhor.
• Na sétima atividade, refletiu-se sobre a estética e o seu papel na construção da ética cidadã,
dos valores pessoais e sociais, e das perspectivas, que ela oportuniza, de um futuro, no qual
o sujeito se situa como ser no mundo e como protagonista de seu lugar na sociedade.
• Na oitava atividade, discutiu-se a importância de se conhecer as raízes culturais, para que,
desse modo, possa ser desenvolvido o sentimento de apreciação, valorização e preservação
do patrimônio histórico e cultural, assumindo-o como um bem de toda a sociedade.
• Na nona atividade, abordou-se, novamente, o conhecimento como meio do sujeito
modificar a sua percepção de si mesmo, dos outros e do mundo, portanto, refletiu-se sobre
a importância da educação para uma leitura ampla de mundo, que permita ao sujeito uma
prática de liberdade consciente e cidadã.
• Na décima atividade, refletiu-se sobre a importância de se constituir uma identidade
cultural, como meio de preservação e evolução da sociedade, respeitando suas origens e
suas raízes.
• Na décima primeira atividade, dando continuidade a reflexão sobre identidade cultural,
discutiu-se sobre a multiplicidade dessas identidades, sobre a importância de cada uma,
sobre o respeito que devemos a cada uma, uma vez que o diálogo, no âmbito dessa
diversidade cultural, enriquece a sociedade como um todo.
• Na décima segunda atividade, refletiu-se sobre como o desenho havia ampliado o olhar dos
sujeitos sobre si mesmos, sobre os outros e sobre o mundo. Portanto, refletiu-se como o
desenho havia contribuído para que eles constituíssem valores de cidadania.
Nesse percurso, portanto, estabelecemos a relação que se deu entre a arte e a cidadania, por
meio do desenho, na oficina. Detectamos, efetivamente, que o desenho contribuiu para os
alunos refletirem sobre si mesmos, sobre os outros e sobre o mundo, criando, desse modo,
novos olhares, descobrindo valores pessoais, sociais e cidadãos, e, ainda, encontrando
possibilidades e perspectivas de projeção de um futuro melhor, além de sua realidade de
exclusão.
Sendo que, essas impressões levantadas, por meio dos desenhos e das anotações dos seus
relatos orais, foram corroboradas pelos seus discursos escritos, como pudemos verificar na
análise da pesquisa aplicada aos sujeitos. Nas quatro questões propostas, deduzimos que, em
sua grande maioria: os sujeitos conservavam a ludicidade e o encantamento da experiência do
desenho na infância; gostaram da experiência vivida na Oficina de Desenho de Observação,
por terem resgatado o prazer em desenhar; reconheceram no desenho uma forma importante
de expressão, por meio da qual puderam e podem se comunicar consigo mesmos, com os
outros e com o mundo; atribuíram ao desenho uma grande importância para o seu futuro
pessoal, profissional e social.
Desse modo, acreditamos que houve, realmente, o diálogo entre a arte e a cidadania, no
âmbito da nossa investigação, bem como a arte, por meio do desenho, contribuiu,
efetivamente, para que os sujeitos constituíssem valores de cidadania.
A partir das reflexões estabelecidas, acreditamos que a arte-educação, no âmbito da oficina de
desenho de observação, alinha-se com a proposta humanizadora de Barbosa (1991, p. 74):
Alinhados como o pensamento de Ana Mae Barbosa, entendemos a arte-educação como meio
de formação humana, oportunizando aos sujeitos caminhos de saber crítico, sensível e
perceptivo, por meio do qual se dá o diálogo sócio-histórico-cultural, contribuindo, afinal,
para a formação de um cidadão integral: autônomo, crítico, consciente e responsável.
Evocamos, por fim, as impressões que tivemos, no cotidiano, nessa experiência vivida com os
sujeitos, a fim de corroborar a efetiva contribuição da arte, por meio do desenho, na
constituição da cidadania dos mesmos, uma vez que pudemos perceber a transformação
positiva dos sujeitos envolvidos nesse processo educacional.
Realmente, imbuídos do faro de “detetive”, como nos apregoa, Carlo Ginzburg, procuramos
nas “entrelinhas” da Oficina de Desenho de Observação, os indícios, vestígios e sinais, de
como essa relação entre arte e cidadania acontecia e como, efetivamente, ela contribuía nessa
transformação positiva dos sujeitos, conduzindo-os pelos caminhos do exercício da cidadania.
Sermos testemunhas da história é algo, a nosso ver, realmente, grandioso, ainda mais quando
procuramos observar essa mesma história com um olhar científico, pois apoiados por outros
grandes pensadores e suas teorias, no nosso caso, Ana Mae Barbosa, Carlo Ginzburg e Paulo
Freire, somos levados a uma compreensão da realidade de um modo que podemos chegar a
conclusões que, talvez, dificilmente, chegássemos por outros caminhos.
Referências
BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte: anos oitenta e novos tempos São Paulo:
Perspectiva: Porto Alegre: Fundação IOCHPE, 1991.
BARBOSA, Ana Mae. As mutações do conceito e da prática. In: BARBOSA, Ana Mae
(org.). Inquietações e mudanças no ensino da arte. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2003.
BARBOSA, A. M.; SALES, H. M. O ensino da arte e sua história. São Paulo: MAC, 1990.
COSTA, Cristina. Questões de Arte. São Paulo: Moderna, 1999.
DUARTE JR., João Francisco. Fundamentos estéticos da educação. Campinas SP: Papirus,
1995.
FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. Tradução de Leandro Konder. 9 ed. Rio de Janeiro:
Editora Guanabara, 1987.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 25 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2001.
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
NOSELLA, P. Educação e Cidadania: Quem Educa O Cidadão? São Paulo: Cortez, 2003.