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MARTINS, Elvio - Geografia e Ontologia PDF
MARTINS, Elvio - Geografia e Ontologia PDF
33 - 51, 2007
RESUMO:
Este trabalho busca a definição do fundamento geográfico como uma das determinações
constituintes do ser do homem e da sociedade. Para tanto, retoma alguns dos fundamentos
epistemológicos da ciência geográfica, no sentido de redefini-los, e com isso estabelecer
novas bases para a relação entre ontologia e Geografia.
PALAVRAS-CHAVE:
Ontologia, geografia, ser, espaço, tempo.
ABSTRACT:
This work searchs the definition of the geographic base as one of the constituent
determination of the being of the man and the society. For in such a way, it retakes some of
the epistemológies basies of geographic science, in the direction of new define them, and
with this to establish new bases for the relation between ontology and geography.
KEY WORDS:
Ontology, geography, being, space, time.
nosso ver, não inaugura a dimensão ontológica geográfica, mas certamente fornecendo
a ser verificada na ciência geográfica. elementos, é Sartre. O primeiro visível em
Armando C. da Silva e Antônio C. Robert Moraes
O principal equívoco observado está em
e o segundo em Milton Santos.
confundir as dimensões e formas da existência
de algo, com esse próprio algo. A existência de Avaliar esse trânsito, da filosofia para a
um ente é uma coisa que em si pode ser vista e ciência, requer o cuidado de observar o quanto
analisada, e outra é o próprio ente em sua certos conteúdos sofrem alteração no seu
constituição. Ou melhor, na existência de um significado, mas principalmente tem como meta
ente coloca-se a constituição essencial desse desfazer equívocos e inconsistências teóricas.
ente, ou seja, o seu ser. Confundir existência Retomar os propósitos da filosofia no ambiente
com essência, ou mesmo categoria com conceito, da ciência é colocar esta última em discussão,
é não discernir entre estar/ter e ser. Ainda que em todos os seus fundamentos e objetivos, da
sejam aspectos indissolúveis, e mutuamente construção da sua episteme à sua relação com
determinantes, não podemos confundi-los na a existência do homem.
definição ôntica do ente, nem na definição
Mas a pergunta inicial era: o que levou a
ontológica do ser. A existência é a dimensão do
ciência geográfica a atribuir ao espaço a
estar-aí do ser, sua estrutura relacional e
condição de ser? Ensaiemos a resposta.
simbiótica com a sua alteridade, ou seja, os
outros entes, e é a fonte dinâmica da mutação
e redefinição do ser. É o ser-aí, o Dasein de
I- Objetividade e Materialidade
Heidegger. O ser é o que daí deriva como algo
posto enquanto essência, uma síntese particular Na ciência geográfica o problema revela-
derivada da existência. Portanto, quando se primeiro na coincidência entre matéria e
atribuímos ao espaço a condição de ser, estamos espaço, e posteriormente entre materialidade
na verdade definindo aquilo que o espaço não e objetividade. Podemos observar alguns
é. Ele é na verdade categoria, e como tal exemplos dessa superposição, pinçando
elemento constituinte da existência de um ente algumas passagens de obras significativas na
e não o próprio ser. Espaço só poderá ser formação do pensamento geográfico.
essência enquanto ente ideal, ou seja, como
algo diante da Idéia que necessita ser definido. Observemos esta passagem de Ratzel:
Fora isso, ante os entes materiais ele é É à Geografia Política dada a tarefa de estudar
categoria, propriedade fundamental de tudo a repartição política dos espaços a cada
que Existe. período histórico, especialmente nos dias de
Resta indagar por que a ciência hoje. (RATZEL, 1987, p. 146).
geográfica atribuiu estatuto ontológico ao Ou, La Blache:
espaço, lhe conferiu a condição de ser. Mesmo
que saibamos que estamos no terreno de uma [...] – porquanto a existência de um denso
disciplina científica quando se trata da agrupamento de população, de uma
Geografia, e o debate da ontologia advém da coabitação numerosa de seres humanos num
filosofia, a pergunta parece ainda pertinente. mínimo de espaço, mas que todavia garante
Até mesmo porque podemos atribuir a dois à coletividade meios seguros para viver... (LA
filósofos a inspiração que encaminhou alguns BLACHE, 1954, p. 37).
geógrafos a introduzirem a questão ontológica Ou então, Sorre:
na ciência geográfica: o primeiro, e mais O espaço geográfico não se caracteriza
importante, é Lukács, e sua “Ontologia do ser unicamente pelas dimensões geométricas.
social”, e o segundo, não diretamente Nós, homens, nós o medimos pelas
nomeando a questão ontológica para a ciência possibilidades de existência que nos oferece.
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conceito. Portanto, não posso dizer que as Assim, espaço é atributo do ato de
coisas são espaço, ou então que o ente é espaço, cognição do mundo. Mas como tal, não é um
e sim que ele, ente, existe, e por existir tem ou dado a priori, como queria Kant, e sim algo que
está em um espaço, que é uma dimensão e emerge como construção social, um atributo
forma da existência do ente. E é essa existência cultural, uma forma de ver e compreender o
que determinará a essência, o ser do ente. Ou mundo. Sua suposição acompanha diferentes
seja, as formas do existir são determinantes na formas de apreensão e compreensão do mundo,
definição do ser em sua essência. além de ser expressão existencial da
objetividade das coisas. Nessa perspectiva,
Dito isso, passamos agora a considerar encerra dentro de si toda forma de existência
a outra implicação de não confundir e restringir e, portanto, de reprodução do mundo.
espaço a res extensa. É quando observamos o
espaço em seu conteúdo fundante de natureza Reforcemos mais uma vez: não existem,
subjetiva, o que nos remeteria mais uma vez à propriamente, concepções erradas de espaço
sua condição de elemento constituinte no ato ou de tempo, pois, como dito, elas são coerentes
da cognição do mundo. Caminhamos na direção com o que se quer ver sobre o mundo. Se existe
de afirmar que não existe uma concepção errada algo de “errado”, esse limite está sim na
de espaço, e sim concepções relativas aos qualidade da compreensão que temos do
níveis de compreensão da existência que se mundo. Visões aistóricas, carregadas de
queira ter do mundo, dos entes em geral. conteúdos ideológicos, situações desse tipo,
Tomado como uma das categorias da existência, cada uma delas é sustentada com uma
o espaço surge-nos como categoria da ordem. perspectiva equivalente de espaço e tempo.
Aquilo que permite verificar as localizações Uma situação perfeita para ilustrarmos o que
relativas dos entes entre si, e por sua vez sua por último aqui afirmamos, é o caso da
distribuição, no conjunto de suas correlações, geopolítica, nas suas formulações clássicas de
coabitações e, por decorrência, suas co- “destino manifesto” e coisas dessa natureza.
determinações. Trata-se da categoria que nos
A única observação em contrário que
remete à ordem das relações das coisas que
fazemos quanto às noções de espaço e tempo
co-existem. O entendimento dessa ordem
é quando supomos aquilo que espaço e tempo
equivale em pensamento a um sistema lógico
não são.
determinado e coerente com essa lógica. Há,
portanto, uma relação entre lógica e espaço 5 . Depois disso tudo, ao afirmarmos a
De uma lógica que fala da compreensão improcedência de termos uma ontologia do
abstrata da realidade, e de outra lógica que tem espaço, repõe-se a pergunta: como fica então
a dimensão concreta dessa mesma realidade. a questão ontológica e a Geografia?
De um espaço que denota uma compreensão
abstrata da existência das coisas, a um espaço
II- Geografia e Espaço
que compreende a dimensão da existência
concreta das coisas em geral. Se for possível É recorrente observarmos a associação
ver como espaço obedece a uma taxionomia de entre espaço e Geografia, e entre tempo e
“agrupamento” ou “ordenação”, como é história. Vemos isso desde Hartshorne 6 ,
presente no positivismo lógico, é necessário consagrando à história o estudo de períodos
reconhecer que diante de uma outra de tempo e à Geografia seções de áreas do
compreensão do mundo, a noção fundadora de espaço, a Edward Soja, e nesse caso basta
espaço também mude. observar o seu esforço em Geografias pós-
modernas. O que temos aí é a velha e tradicional
Em resumo: a compreensão do espaço
herança kantiana, que nos chega através de
e do tempo é a compreensão que temos da
Hettner. Isso pode nos levar na direção das
existência dos entes.
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fundamento ontológico do seu ser, estabelece- sociabilidade singular, ou seja, a partir daí se
se como subjetividade. Mas, como exatamente? tem uma sociedade particular. Não que se possa
Como a Geografia será um fundamento na de falar de uma estrutura comum, ou qualquer
definição do ser do homem, de sua humanidade? coisa do gênero, a toda e qualquer sociedade
que se possa denominar sociabilidade universal.
A resposta a isso tem início com uma
Em princípio julgamos que os elementos
importante observação. Não tomamos como
universais devam ser poucos, e possivelmente
sinônimo, e acreditamos que marcam diferenças
estão relacionados à sobrevivência e à
importantes entre si, os pares homem-meio e
reprodução material, conjuntamente com e os
sociedade-natureza. Ainda que estejam inter-
atos em si de apropriação aí contidos. Algo como
relacionados, apontam para dinâmicas
o sugerido nestas passagens por Ratzel:
específicas, e, portanto respondem a questões
próprias. Uma coisa é indagarmos o que é o Em meio a muitas variações que se sobrepõem,
homem, outra é o que é sociedade, o mesmo as relações entre sociedade e território
se aplica para natureza e meio. continuam sendo sempre determinadas pelas
necessidades de habitação e alimentação. [...]
Na observação dessas diferenças,
A alimentação representa a necessidade mais
encaminhamo-nos para a resposta da pergunta
imperiosa tanto para o indivíduo como para a
feita: como a Geografia será um fundamento na
sociedade, pois as obrigações que impõe tanto
definição do ser do homem, de sua humanidade?
a esta quanto àquele precedem a todas as
Vamos trabalhar com o par outras. (RATZEL, 1914, p. 64-65).
singularidade/universalidade 11 , e observar que
O raciocínio também se aplica ao
estes quatro conceitos (homem, sociedade,
homem, em que a sociedade não é seu
meio e natureza) absorvem de forma própria a
universal, e sim uma determinada humanidade.
singularidade e a universalidade. A necessidade
Há uma humanidade genérica (universal), pela
de observar mediante a singularidade/
qual vive uma humanidade singular , a
particularidade/universalidade vem do fato de
individualidade própria de cada homem, do
considerarmos “traços essenciais dos objetos
homem particular.
da realidade objetiva, de suas relações e
Entretanto, uma sociabilidade singular é
vinculações, sem cujo conhecimento o homem
humanidade genérica ante o homem particular.
não pode nem se orientar no mundo circundante,
Pode-se denominar uma sociabilidade singular
para não falar em domina-lo e submete-lo a
de cultura, já o Humano singular é contingente
seus fins” (LUKÁCS, 1982, p. 200).
e aleatório, e talvez decorra da psicanálise a
Os grifos são nossos, e destacam a possibilidade de melhor o caracterizar. Nessa
necessidade de ver o quanto é forte a evidência injunção de cultura e estruturas psíquicas
da geograficidade nesses termos. compõe-se a subjetividade de cada indivíduo, a
individualidade.
Diferentemente do que poderíamos em
princípio supor, o homem não é a singularidade As questões agora são: o que é a
de uma dada sociedade. Como se de um coletivo humanidade genérica (sociabilidade singular) do
de pessoas, um indivíduo seria a singularidade homem? E o que é a humanidade singular de
desse coletivo. Não. cada homem? Em síntese, é formular a questão
que é o ser do homem? Ou qual o sentido do
Em si mesma uma sociedade se
seu ser? Eis a questão ôntica: quem é o homem,
singulariza ante outra sociedade, mediante a
pois o ente é o homem. Todavia para responder
identificação de uma específica sociabilidade.
a isso temos que nos remeter à questão
Uma sociabilidade singular . Por meio dos
ontológica: o que é o ser desse ente, que é o
elementos universais presentes em toda e
homem.
qualquer sociedade, vive essa determinada
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ainda, dizer que a existência realiza-se em uma George, acerca de Max Sorre, em decorrência
História e em uma Geografia . Diante disso de seu falecimento, nos Annales de Géographie.
procurar responder sobre as singularidades A citação é um pouco longa, mas vale a pena:
possíveis dentro dessa universalidade
Com a organização do trabalho em série,
anteriormente anunciada é buscar identificar
nascido do aperfeiçoamento da maquinaria,
Histórias singulares e Geografias singulares, ou
com a automatização, surgiu um novo
seja, a dinâmica de um Cotidiano específico,
mundo de trabalho. Os economistas, os
inscrita em um respectivo Habitat específico. O
dirigentes de indústrias falam de
que estamos dizendo que a existência do
rendimentos, de eficácia de trabalho; o
homem concreto é o cotidiano, dada numa
sociólogo sabe que se trata de outra coisa,
Geografia específica, estabelecida em um
de uma revolução profunda nas relações
Habitat determinado.
dos homens entre si e com as coisas e que
Na ciência geográfica quem tratou do esta revolução atinge o recôndito dos
Habitat foi Maximilen Sorre em primeiro lugar, e homens. A ligação está feita entre a
na seqüência Pierre George. Para eles o sentido Geografia Humana e a sociologia global de
dessa categoria vem associado ao Gênero de um lado e da sociologia da vida cotidiana
Vida , e assim os elementos que aqui nos de outro. Max Sorre faz diretamente alusão
interessam começam a se encontrar: às “belas obras de George Friedmann”, mas
não se poderá esquecer sua frutuosa
- o Gênero de Vida que para os geógrafos
colaboração com George Gurvitch, e seu
aparece como existência, quando na realidade
apelo a sociologia da vida cotidiana e da
estão a considerar sobre a sobrevivência;
modernização que introduz para o geógrafo
- operamos a redefinição da categoria o estudo da obra de Henri Lefebvre.
Gênero de Vida, considerando a subjetivação (GEORGE, 1967).
do ato de reprodução material da sociedade,
“E q u e e s t a r e v o l u ç ã o a t i n g e o
ou seja, efetivamente tomamos em
recôndito dos homens”, ou seja, o ser do ser-
consideração a existência;
aí. Esse gênero de vida que aí emerge e que
- encontramos em Sorre a associação possui um Lugar com uma História expressa
entre gênero de vida e sua expressão em uma Geografia determinada.
geográfica a saber, o Habitat.
Nos termos anunciados, o caminho
O que vemos em Sorre é o fato de que para identificarmos o fundamento geográfico
o Habitat se tipifica segundo o gênero de vida. do ser já está demarcado. Por necessidade
Sorre mesmo diz que as formas do Habitat são de identificarmos o Lugar, impõe-se o conteúdo
as “expressões concretas mais características do Rural e o conteúdo do Urbano, uma vez
dos gêneros de vida” (SORRE, 1984, p. 122). que este se estabelece em função de um
Assim, considerando exclusivamente os gênero de vida, e a partir disso o caráter de
elementos da relação sociedade-natureza, uma existência. Enquanto fenômenos
que garantem a sobrevivência (produção e geográficos de expressão imediata, cidade e
reprodução) material, o habitat é definido como campo passam a ser avaliadas em sua relação
habitat rural , ou formas de transição para e consubstanciação enquanto Geografia rural
urbano, habitat urbano propriamente e, ou Geografia urbana. O Lugar como totalidade,
finalmente, habitat urbano em forma evoluída, reunindo o singular e o universal, é a
ou seja, as grandes cidades. particularidade necessária para identificarmos
o fundamento geográfico do ser. O espaço
A sugestão de Sorre é estimulante, mas
urbano e o espaço rural na condição de
deve ser aprofundada, e nesse sentido é
universais devem encontrar a singularidade
interessante observar o que escreveu Pierre
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