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AUTOBIOGRAFIA

SONÓRA E MUSICAL
Um trabalho para a disciplina Psicologia da Arte e Expressividade
Universidade Lusíada – Jazz e Música Moderna 2009/10
As minhas primeiras memórias sonoras, como aliás todas as outras memórias, são de quando tinha
cerca de 2 anos e meio. Lembro-me de ir com a minha mãe ao sapateiro do bairro e de ele comentar,
quão extraordinário era a minha capacidade de conhecer a marca da maioria dos automóveis que
passavam. Ainda hoje reconheço o som característico dos motores de muitas marcas de automóveis
e motos apesar de não encontrar grande interesse nestas máquinas. Lembro-me também de muito
cedo reconhecer o som ritmado e característico dos saltos da minha mãe a baterem na pedra do chão
das escadas do nosso prédio, do som do elevador que parava no andar em que morávamos e depois
o “barulho” da chave na fechadura na porta, imediatamente antes dos meus pais entrarem em casa.
Mais tarde na adolescência este som não era tão agradável, porque significava que tinha acabado o
tempo em que estava sozinho em casa e teria agora que fazer o que os meus pais queriam...
Na escola primária tinha uma professora de Música, a Marília, que nos tocava sininhos para
reconhecermos os sons mais graves e agudos e depois cantarmos. Também me lembro que havia
uma pianista que acompanhava às vezes as aulas de ginástica e também as minhas colegas que
faziam Ballet. Não havia “toque” para a entrada ou saída na minha escola primária. No ciclo
preparatório havia mas é um som que não recordo de forma especial. Lembro-me de em toda a
minha infância e adolescência ouvir rádio e gostar da voz de alguns locutores. Da minha infância
lembro-me de ouvir por exemplo o Júlio Montenegro que tinha uma voz grave e bonita com uma
ligeira pronúncia do Norte. Dou muita importância ao som da voz das pessoas e à sua pronúncia,
acho fascinante as diferenças do Norte para o Sul dos países que conheço e que consigo distinguir
as diferenças. Tenho sempre a preocupação de perguntar às pessoas de onde vêm se noto alguma
variação na sua pronúncia. A televisão claro foi uma fonte de muitos sons que me despertaram a
curiosidade, lembro-me por exemplo que fiquei fascinado com a música que acompanha as cotações
da Bolsa de Valores creio que de Porto. Só mais tarde descobri que era de um Guitarrista
Americano, Lee Reitnour e a música chama-se “Portrait”.
A minha primeira aula de Guitarra surgiu inesperadamente. No ciclo preparatório eu frequentava
uma escola que proporcionava actividades extracurriculares como música e desporto. O meu avó,
pai do meu pai, além de me ter oferecido uma bicicleta muito antes de eu poder andar nela,
ofereceu-me também um pequeno orgão, tinha eu talvez uns sete - oito anos. Tinha um som horrível
ainda hoje estremeço um pouco a recordá-lo, mas serviu para eu dar os primeiros passos como
teclista pois com o orgão vinha também um livro com músicas famosas simples de executar. Na
minha nova escola surgiu então a oportunidade quando tinha eu dez anos de ter aulas de orgão. Por
alguma razão e creio por erro administrativo eu fiquei inscrito em Guitarra também. Não era
complicado conciliar, porque as aulas de Guitarra eram durante o intervalo de almoço. Nesse ano
não aprendi muito de orgão nem Guitarra mas no ano a seguir as coisas foram diferentes.
No Natal de 1986 recebi uma Guitarra de presente. Era um instrumento fabricado na ainda
Alemanha Democrática com cordas de aço e penso que o meu pai a comprou numa loja de música
tipo armazém confuso, que existia na estação de metro dos Restauradores. Era um péssimo
instrumento, trastejava, desafinava as cordas eram velhíssimas, enferrujadas magoavam muitos os
dedos etc. Mas lá serviu para eu dar agora no segundo ano de aprendizagem do instrumento os
primeiros passos. Nesse ano já não frequentei as aulas de orgão que eram um fiasco. O professor
dividia-se aí por uns 10 alunos, em salas diferentes cada um com o seu teclado durante uma hora.
Eu entretia-me a visitar os meus colegas mais evoluídos e aprendia a tocar coisas mais engraçadas
do que as músicas que o professor ensinava na altura. As aulas de Guitarra eram diferentes.
Continuávamos a ser 5 a 10 alunos mas agora numa só sala com o Professor. Aprendi a tocar
músicas populares estrangeiras rudimentarmente mas ganhei alguma técnica no instrumento e
relacionei-me mais de perto com o “creme de la creme” dos então músicos da minha escola. Havia
até um conjunto composto por duas Guitarras, Baixo, Teclados e Bateria que todos admirávamos,
que eram ensaiados pelo meu professor de Guitarra. Cresci muito musicalmente nesta altura,
compus as minhas primeiras melodias e canções. Lembro-me de compor com a ajuda de um colega
uma música que orgulhosamente mostramos ao nosso professor de Guitarra. Era lindíssima, tinha
algumas tensões harmónicas que implicavam uma afinação apurada da Guitarra para que soassem
bem. O meu colega na altura dedicou-a a uma menina mais velha por quem estava apaixonado, e
pediu-me até para que eu a tocasse na presença dela. Mas quando mostrámos a nossa “obra de arte”
ao professor ele lá achou que era parecida com uma música que ele próprio tinha composto e disse-
nos que se chamava plágio o que tínhamos feito. Tínhamos 12 anos nem sabíamos muito bem o que
significavam as palavras do professor!
Evoluí o suficiente nesse ano para convencer os meus pais a me comprarem uma nova Guitarra.
Lembro-me de num Sábado de manhã ir com o meu pai à antiga loja de Música no Chiado antes do
incêndio e comprar a minha primeira Guitarra eléctrica. Era mais uma vez um péssimo instrumento
e precisava de um amplificador que eu não tinha, mas na escola havia e eu passei todos os
intervalos do almoço a partir daí a tocar Guitarra. Nos anos seguintes continuei a frequentar as aulas
do mesmo professor que entretanto só podia dar aulas ao Sábado porque tinha deixado a escola
onde eu continuava. Agora já tinha uma Guitarra Clássica razoável, comecei a acompanhar as festas
religiosas da minha escola tocando na missa e formei até um conjunto musical com Baixo, Teclas,
Bateria, Guitarras e Voz. Foram tempos engraçados se bem que sempre muito desapoiados. Fizemos
algumas músicas participámos em festivais musicais entre escolas e eu era o “Guitarra Solo”,
vocalista e compositor, enfim quase uma verdadeira estrela do rock 'n roll só faltava o sucesso.
Nessa época cheguei à conclusão que poderia investir numa carreira musical. Inscrevi-me no
Conservatório Nacional fiz os testes e entrei. Lembro-me de ter 1 ou 2 aulas de Guitarra. Tinha
aulas de manhã, o Professor era muitíssimo interessante falávamos de muita coisa nas aulas para lá
da música. Lembro-me também de esperar por ele no corredor em frente à sala de aula e ele não
aparecer. Mas lembro-me das aulas de Formação Musical e do caminho por entre os corredores do
palácio do conservatório sempre muito escuro e húmido com sons de piano e outros instrumentos
muito clássicos e solenes raramente efusivos. Enfim não era ainda aquilo que procurava.
Continuava fascinado pela música popular brasileira que ouvia na rádio e na televisão assim como
alguma música popular portuguesa e anglo-saxónica que tinha oportunidade também de ouvir em
discos que pedia aos meus pais. Muito cedo tive uma aparelhagem de som no meu quarto, onde
ouvia discos, rádio e cassetes. Lembro-me de ter 13 - 14 anos e de jogar computador ao som dos
meus discos favoritos.
Frequentei também mais tarde a Academia de Amadores de Música onde tive a sorte de encontrar
um excelente professor de Guitarra que se interessou por mim, depois de ter passado com 17 anos
pelo Hot ainda na Praça da Alegria sem sucesso. Naquela altura os sons do Hot fascinavam-me bem
mais do que a Guitarra Clássica do Conservatório ou da Academia mas eu sentia-me muito
desacompanhado e depois de um semestre com aulas ainda por cima à noite quando tinha aulas no
Secundário no “fim do mundo” de madrugada, desisti.
Recordo com alguma saudade as aulas de Música de Câmara na Academia de Amadores de Música.
Eu sempre me fascinei pela diversidade tímbrica de vários instrumentos tocando em conjunto.
Intrigava-me a dificuldade em conseguir fazer aqueles lindos “bolos” musicais que ouvia nos
discos. Nestas aulas de Música de Câmara fazíamos “bolos” engraçados. Agrada-me ainda hoje esta
simplicidade de fazer música em conjunto apenas com os instrumentos numa sala e 1,2,3...
Desagrada-me quando são necessários imensos recursos tecnológicos e quando os músicos não
conseguem ao vivo justificar o que fizeram em estúdio. O Elton John disse uma vez que quem faz
“playback” devia ser abatido...
Mas a música clássica e em especial a Guitarra Clássica não era para mim, até a posição
característica de segurar o instrumento era depois de 3 anos para mim um pequeno pesadelo. Eu
queria era tocar Bossa-Nova e Jazz Contemporâneo.
Surgiu a oportunidade de viver e tentar a sorte musical noutro País. Vivi cerca de 2 anos em Berlim
na Alemanha. Estudei Jazz, gravei, toquei ao vivo, encontrei estruturas comerciais à altura das
minhas necessidades etc, etc. Aprendi a língua, apurei o ouvido, cresci e senti falta de Portugal. Não
dos sons mas dos cheiros dos sítios e da língua, do som da língua.
Voltei e não encontrei as saídas profissionais que precisava musicalmente, as pessoas que com
quem tinha trabalho antes de ir para a Alemanha estavam sem tempo. Pendurei a Guitarra na parede
e não toquei de forma profissional durante 5 ou 6 anos. Em 2005 voltei para a Alemanha, agora para
estudar Engenharia de Som. Conheci muitos músicos interessantes que enriqueceram o meu
universo, tive oportunidade de redescobrir a Guitarra e as suas possibilidades eléctricas e acústicas e
continuei a preferir o simples ao complexo.
Regressei definitivamente a Portugal em 2008, muitas coisas mudaram desde que deixei de estar
ligado à música e aos seus actores. Continuo a prestar atenção aos sons de Portugal e dos
Portugueses que são/somos muito barulhentos num contexto não musical. Senti mais uma vez o
apelo da minha primeira paixão – a música – e decidi desta vez atravessar para o outro lado do túnel
e concluir um grau académico relacionado directamente com a execução e composição musical.

Ricardo Rosa
Aluno n.º 11066509

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