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Regência: Professora

Susana Videira

HISTÓRIA DAS
IDEIAS POLÍTICAS
葡京法律的大学 | 2013/2015 | 大象城堡
História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

Hemos chegado ao segundo semestre!!! Talvez a incógnita seja ainda maior, talvez a
determinação mais forte. O mais importante, porém, é tentar até se perceber o caminho.

Desejando a maior fortuna e sorte para o semestre, referimos que esta sebenta não invalida e
deve!! Ser complementada, nos seus possíveis erros, com os manuais de referência, incluindo o
dos presentes autores.

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IDADE MÉDIA

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O SACERDOTALISMO MEDIEVAL

A Revolução Cristã:

A importância da mensagem evangélica é a revolução, acima de tudo, religiosa. A


revolução cristã caracteriza-se por uma alteração radical d conceção que o homem tem da
divindade, exceto no pequeno mundo judaico. O cristianismo vem afirmar a transcendência
divina. Enquanto o paganismo era um naturalismo, o cristianismo situa Deus fora da Natureza
visível e acima dela. Substitui uma mitologia por uma metafísica. Além disso, pela encarnação
terrestre do Verbo, a divindade reveste natureza humana. «E o Verbo fez-se carne e habitou entre
nós.» Doravante a natureza passa a participar da divindade. Assim, o cristianismo é um resgate
que terá incidência imediata no pensamento político. Revolução cristã vai aceitar a herança do
mundo antigo.

Elementos de rutura: não há apenas continuidade, há também rutura. Introduz-se um


novo clima espiritual. O Sermão da Montanha e o conjunto das exortações de Cristo, relatadas
no Evangelho, estão impregnados de u calor vital e de uma força comunicativa que se traduzirá
na sua propagação através dos séculos em todos os estratos da sociedade. O antigo dever de
justiça vai ser superado pelo dever novo da Caridade, que o transfigurará. O cristianismo apela
ao amor que implanta na Terra o reino de Deus. Implica uma mudança de visão através da prece,
da castidade e da sobriedade, que preparam a união com Deus.

O contributo judaico: o contributo hebraico é importante, no que toca à natureza da


autoridade. Inspirará o cristianismo, substituindo a sua conceção ao pensamento greco-latino. A
diferença reside no facto de o povo de Israel ser monoteísta; depois, do facto de manter relações
diretas com Deus. Ele concluiu uma aliança com Abraão e a sua posterioridade. Esse contrato, de
que é preciso compreender claramente os termos, resulta do livre consentimento do povo de
Deus. O povo eleito subscreveu o acordo por sua plena decisão. Mas, uma vez constituído, o
pacto tem caráter indissolúvel. Se o violar, o povo falta às obrigações reconhecidas e torna-se
culpado – logo, punível. O próprio Deus conduz diretamente o seu povo, mas respeita a liberdade
de Israel. O regime político que resulta desta vocação excecional não é menos excecional. É o
regime de uma sociedade sem constituição política. Quanto a Moisés, realiza uma organização
social submetida única e diretamente à soberania de uma lei religiosa e civil, e que é consagrada
por um contrato solene entre o povo e a divindade. Em seguida, o povo judeu é governado por
juízes. Então, os Israelitas reclamam um rei. A aceitação divina é-lhes concedida como
contra/vontade. No entanto, o povo de Deus é livre. Mas a monarquia, desprovida, tal como o
regime anterior, de instituições firmes, degenera em despotismo, segundo a tendência habitual.
Encontram-se na Bíblia duas correntes, uma hostil à monarquia e a outra favorável, sob os traços
idealizados de David. Só aparentemente se opõem. Inspiram-se na mesma conceção de poder,
que é fundamental no pensamento israelita, a teocracia. Por isso Israel permanece, de uma ponta
à outra da sua história, uma comunidade religiosa. O seu contributo institucional para o mundo
moderno é puramente negativo. Em contrapartida, será grande a influência da Antiguidade
semita sobre a conceção da autoridade. Uma vez que residem em Deus a soberania poderosa, a
majestade e o princípio de toda a dominação, os reis devem obedecer às suas ordens. No mesmo
sentido, os súbditos devem obedecer às ordens dos reis, lugar-tenentes de Deus, como se
emanassem do próprio Deus. Os príncipes da terra têm, portanto, um poder legítimo, que não
deve ser exercido arbitrariamente nem egoisticamente, pois que Deus acabará por pedir contas
rigorosas. O príncipe deverá conhecer e respeitar as leis, viver na humildade para com Deus, não
se abandonar ao luxo e à voluptuosidade, e em tudo estar atento ao bem do povo que Deus lhe
confia. A justiça do príncipe será então abençoada por Deus e traduzir-se-á na prosperidade do

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povo e na conservação da dinastia. Esta conceção da autoridade será recolhida quase na íntegra
pela tradição cristã.

O primado da pessoa humana: a esta nova conceção de autoridade o cristianismo


acrescenta transformações mais radicais, resultantes do seu ideal da pessoa. A natureza religiosa
e moral da pessoa faz com que não possa aceitar um qualquer ato que o Estado lhe propõe ou
impõe. O cristianismo quer que o homem afaste certas relações de subordinação e recuse todas
as relações de absorção. O homem traz em si direitos inerentes à personalidade, decorrentes da
sua vocação para a imortalidade. Por conseguinte, a delimitação dos direitos do Estado e algo de
essencial para o cristianismo. A simples ideia de que o homem, como tal, é livre, ideia a que o
direito romano jamais se tinha elevado na prática… constitui para o direito ulterior um tal avanço
sobre o direito romano, que a superioridade por este alcançada no aspeto técnico fica
completamente na sombra.

A noção de humanidade: o cristianismo não admite qualquer diferença de natureza entre


os homens. Pode haver diversidades acidentais de função, de situação, de nacionalidade, de raça;
não as há quanto à humanidade. Todos os homens são igualmente filhos de Deus. As palavras
dos apóstolos, nomeadamente as de São Paulo, não permitem equívocos. A supressão de
barreiras tem por consequência a realização da unidade. “Há vários membros”, diz São Paulo,
“mas formam todos um só corpo”. O princípio desta união é Deus. Único por essência, anterior e
superior à pluralidade do universo, origem e fim de cada ser em particular, Deus dá a cada um a
sua lei. Por isso existe unidade do universo terrestre na unidade do seu chefe, que é o Deus
criador e redentor pelo Verbo, seu filho. O poder virá de Deus e será feito à imagem de Deus. Em
latim clássico, humanitas, designa a communio sanguinis, a comunhão de sangue, a similitude de
natureza fisiológica que existe entre os membros da espécie humana. Além disso, indica a virtude
de doçura e benevolência para com aqueles que participam da natureza humana; ao mesmo
tempo que “às humanidades” designam os estudos liberais propícios à aquisição e ao exercício
desta mesma virtude de doçura e benevolência para com os semelhantes. O cristianismo modifica
completamente o alcance do termo. Já não considera a natureza comum do animal humano, mas
a natureza comum das pessoas concebidas na sua dignidade nova, na sequência da Redenção.
Assim, a palavra humanidade passa a designar uma entidade própria, constituída por todas as
condições, entre os quais a presença de Deus instituiu uma solidariedade real.

Dualidade político-eclesiástica: o cristianismo, ao criar a noção de humanidade, reúne


tudo em Deus. Depois de afirmar a unidade da humanidade, o cristianismo acrescenta
imediatamente que certos domínios são da competência da autoria religiosa e outros são da
competência da autoridade civil. A separação entre domínio do político e o domínio do
eclesiástico está na base de todo o direito público moderno. Do mesmo modo que São Paulo
lançou os fundamentos do direito internacional moderno, assim o direito público recebeu os seus
limites e adquiriu a sua dimensão própria quando, no Evangelho segundo São Mateus, Cristo
estabeleceu a distinção entre as coisas que dependiam de César e as que pertenciam a Deus. Na
Antiguidade, o poder é, por essência, ilimitado. A organização política pode assumir formas
diversas mas é sempre totalitária. Tem o direito de mandar em tudo. A explicação filosófica deste
totalitarismo foi-nos dada por Aristóteles. a existência do todo é anterior e superior à existência
das partes. Logo, nada mais estranho à Antiguidade do que a noção de direito individual; nada
mais natural do que esta subordinação. Inclui a religião, instituição política. Há só imperium; o jus
sacrum faz parte do jus publicum. A antiga Cidade tinha sido fundada sobre uma religião e era
como uma igreja. Isto permite compreender a importância verdadeiramente revolucionária do
Evangelho. O episódio é conhecido: a certa altura, os Fariseus tentam obter de Jesus palavras

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imprudentes que permitam condená-lo. Mandam os seus discípulos e alguns herodianos, que
começam por dirigir a Cristo pérfidos cumprimentos: «Mestre, vós que tão bem falais, dizei-nos
a vossa opinião sobre isto: “É permitido pagar tributo a César?”». Jesus pede-lhe uma moeda e
pergunta por sua vez «De quem é esta imagem e esta inscrição?» «De César.», respondem eles.
«Então», diz Jesus, «dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.» Palavras decisivas,
pois indicam que há coisas que César tem o direito de pedir e obter, mas que, em oposição a todo
o pensamento antigo, há outras que Deus reserva para si. Noutras passagens, Cristo proclamará
que o seu «reino não é deste mundo». E ordenará a Pedro, no Jardim das Oliveiras, que volte a
embainhar a espada. Mas se o poder civil é respeitado, a seu lado institui-se uma igreja que é a
transposição do poder originário de Deus para o plano intermédio da humanidade. «Tudo o que
for ligado ou desligado na terra será igualmente ligado ou desligado no céu.» Assim nasce um
dualismo fundamental. Há uma partilha entre duas ordens de vida e uma divisão entre dois
poderes. O poder político tem por domínio o temporal, isto é, o governo dos interesses presentes
da vida humana, combinado com sanções materiais. Inversamente, o poder religioso exerce-se
sobre o intemporal. Diz respeito às relações entre os homens e Deus. O seu domínio é o do
espiritual, do governo dos interesses eternos das almas, com meios de santificação e sanções
apropriadas que, em si, não são de caráter material. O dualismo instaurado pelo Cristianismo é a
tradução normal da mudança que afetou a religião: de assunto do grupo, torna-se assunto
individual.

Harmonia entre as duas sociedades: a dualidade espiritual-temporal vai dar origem a


duas instituições distintas: uma “política” e a outra “eclesiástica”. A Igreja, como comunidade
espiritual e moral organizada, tem uma vocação mais ampla do que os Reinos, pois que reivindica
a direção de toda a humanidade. A comunidade religiosa constitui, em relação ao Reino, um todo
autónomo e homogéneo. Assim, por um lado, o individuo fica espiritualmente liberto do Estado,
mas, por outro, no plano religioso, vê-se atraído simultaneamente por dois polos de organização:
o político e o religioso.

OS APÓSTOLOS E OS PADRES

De São Paulo a Santo Ambrósio

A doutrina pauliana: nos primeiros anos da pregação evangélica, a tónica não é posta na
noção de humanidade nem na dualidade de poderes. No interior do Império Romano, os cristãos
das origens formam incontestavelmente uma sociedade. Não passam de comunidades
escondidas e vivem num fervor extremo, muitas vezes à espera do fim do mundo. Depois, o
primeiro ponto do ensino evangélico, o «Dai a César», adquire toda a sua importância. A tónica é
posta na obediência ao poder estabelecido. Apesar das perseguições, ele parece continuar a ser
o invólucro protetor dentro do qual o catolicismo nascente pode desenvolver-se Acima de tudo,
o primado do dever de obediência a César resulta do desejo dos cristãos de responder, pela
doutrina e pelos factos, às calúnias dos pagãos que vêm neles uma seita de revoltados. Nestas
condições, é bastante lógico que, até ao momento em que o Édito de Constantino, em 313, vem
ordenar o fim das perseguições e a tolerância do culto cristão, o dever de submissão às ordens
do soberano seja especialmente realçado, primeiro pelos Apóstolos, depois pelos escritores
cristãos. São Pedro, o primeiro Papa, escreve aos fiéis que se encontram sob a sua jurisdição:
«Submetei-vos a todas as instituições humanas por causa do Senhor, tanto ao rei como àquele
que possui a autoridade suprema, tanto aos governantes, como aos seus delegados.» Estes
ensinamentos serão retomados em pormenor por São Paulo, na Epístola aos Romanos: «Que

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todas as almas se submetam aos soberanos, pois não há poder que não venha de Deus». Trata-
se da famosa fórmula: non est enim potestas nisi a Deo, «não há poder que não venha de Deus».
Por isso os cristãos devem ser «submissos não só por temor, mas por razões de consciência». São
Paulo confirma a doutrina geral nas instruções pastorais que dá aos seus discípulos. Escreve ele
a Tito: «Lembra aos fiéis, meu filho, o dever de se submeterem ao Príncipe e às autoridades, o
dever de lhes obedecerem.» E diz a Timóteo: «Assim, começo por exortar a que se façam preces
súplicas e ações de graças pelos reis e por todos os que estão constituídos em dignidade.» Para
o apóstolo, parece ser essencial lembrar aos fiéis o dever de obediência e ao mesmo tempo levá-
los a rezar pelos que mandam na Cidade. A partir daqui, é possível destacar uma conceção
pauliana da autoridade política. A autoridade do Príncipe impõe-se porque ele é instrumento de
Deus. O príncipe é o executante, quer queira quer não, das intenções da Providência que inspira
os seus atos. É feito para promover o bem e reprimir o mal. Desempenha uma tarefa divina, ainda
que o não saiba. A Igreja constitui uma formação quase exclusivamente espiritual, embora preste
aos fiéis certos serviços de ordem prática, como a assistência aos pobres. Mas a Igreja é
clandestina e o poder público é inteiramente estranho à religião, a ponto de não haver qualquer
ponto de contacto entre si. Os deveres dos cristãos para com o Estado pagão assentam
exclusivamente no direito natural. É em funções de um ministério pelo bem que estes são objeto
de uma obediência diferente e de uma prece ao Deus dos cristãos.

O Império cristão: a situação da Igreja primitiva é clara na sua simplicidade, pois que Reino
e Igreja se movem então em domínios distintos. Já o fim das perseguições vai arrastar, com as
primeiras imbricações constitucionais e pessoais, as primeiras dificuldades intelectuais. A partir
do momento em que o imperador se faz cristão, tudo passa a ser diferente. Os titulares do poder
tornam-se fiéis e, nessa qualidade, também pertencem à Igreja. Por outro lado, esta sai das
catacumbas, a princípio apenas tolerada, depois diretamente reconhecida. Constitui uma
coletividade institucionalizada que supera em importância tudo o que o império podia conter em
matéria de associações organizadas e coloca, na sua acuidade nascente, um problema
“interconstitucional”. A primeira fase era essencialmente de obediência ao poder estabelecido
levada ao extremo. A segunda já comporta certas tentativas dos homens de Estado para
subordinarem a si os homens da Igreja e dos homens da Igreja para ganharem vantagem sobre
os civis.

São Crisóstomo e a explicitação da doutrina pauliana: uma vitima eminente desta


ingerência é São João Crisóstemo (347-407) que, patriarca de Constantinopla, por duas vezes é
afastado da sua fé pelo imperador bizantino, vindo a morrer no exílio. Crisóstomo vê nela o aspeto
moral, razão por que não constrói um sistema. Tudo o que nele encontramos são os aspetos
fundamentais do pensamento cristão dos primeiros tempos. Em primeiro lugar, a obediência aos
poderes estabelecidos. Aquele que lhes resiste, resiste à ordem de Deus. A obediência é devida,
não ao príncipe, mas a Deus; não é um favor, uma liberdade dos súbditos, mas uma dívida que
estes pagam. De resto, não têm de se envergonhar da sua submissão; em contrapartida, se se
recusarem a obedecer, têm tudo a temer da cólera de Deus. Acrescenta: todo o poder vem de
Deus, omnis potestas a Deo; logo, é o poder em si, o poder objetivo e não a pessoa do seu titular,
sujeito do poder, que é estabelecido por Deus. Que haja autoridades, que uns mandem e os
outros se submetam, é algo de necessário para que as coisas não andem à deriva, ao acaso, como
que sacudidas pelas vagas. Caráter da dominação assim legitimamente exercida, Crisóstomo
considera-a natural. A natureza que ele encara é a natureza pecadora. A subordinação dos
súbditos é consequência das suas faltas, do mesmo modo que a submissão da mulher ao marido
e do escravo ao senhor. Um juiz armado foi posto acima do cristão, porque Deus, cuja lei tinha
sido ignorada, entregou os homens a esses duros pedagogos, a esses reeducadores implacáveis

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que são os príncipes. Crisóstomo compara ainda os que mandam aos médicos, que servem para
nos curar das doenças que nos afligem. As prescrições têm algo de penoso, mas quando se está
doente, é preciso obedecer-lhes. Portanto, é a perversidade que torna indispensável a autoridade.
Segundo o Antigo e o Novo Testamento, se o homem não fosse pecador, o governo seria inútil
Este principado é maior do que o outro; e por isso que o rei baixa a cabeça sob a mão do sacerdote.

Santo Ambrósio e o nascimento do sacerdotalismo: Santo Ambrósio marca uma fase no


desenvolvimento do pensamento cristão que rompe com a anterior. Ao tornarem-se cristãos, o
príncipe e o próprio principado deixam de ser exteriores à Igreja. «O imperador está na Igreja e
não acima da Igreja.» Existe, pois, uma subordinação do imperador ao poder eclesiástico. A partir
do momento em que se toca na religião e na moral, aquela obediência tão vasta e quase
incondicional aos poderes públicos, anteriormente reconhecida, é substituída pela obrigação de
os mesmos poderes reconhecerem a autoridade espiritual. Como cristão, o imperador está
submetido à Igreja, ao Papa e ao bispo que a representam por causa do pecado. Entra-se no
período da “hegemonia eclesial”, em que “o principado, opressor na Antiguidade, passa a
oprimido.» Perseguida, a Igreja só havia resistido quando tentavam força-la a trair a lei de Deus.
A partir do momento em que o Imperador se converte, o problema muda de natureza; a Igreja é
impelida a gerir diretamente um Estado cuja lei suprema passou a ser a lei de Deus.

A Cidade de Deus: Santo Agostinho

Agostinho, retórico e bispo: Ambrósio é pai espiritual de Agostinho. Nascido na Tagasta,


na Numídia, Agostinho é filho de Patricius, um pagão, e de Mónica, cristã, que, viúva aos vinte
anos, se dedicará inteiramente à sua educação. Agostinho, muito em breve, abraçará a heresia
maniqueia e entregar-se-á a uma vida dissoluta. Faz estudos em letras. Será sucessivamente
Professor de Gramática em Tagasta e Professor de Retórica em Cartago e Roma. Santo Agostinho
é um letrado antigo, discípulo de Cícero, longínquo aluno de Isócrates, é um gramático, um
retórico, um erudito de tipo bem definido, aquele que é comum a todos os retóricos do Império.
A sua formação filosófica não é menos determinada; bebeu e todas as filosofias racionalistas da
época helenística e romana, apesar de na sua obra dar especial relevo ao elemento platónico. Em
Milão Agostinho converte-se devido à leitura de um texto de São Paulo, que uma voz imperiosa
lhe ordenava que tomasse e lesse. Em 387 recebe o batismo das mãos de Ambrósio. Em 391,
Agostinho, que vivia bastante retirado, é reconhecido na basílica de Hipona pelo povo, que o
reclama para sacerdote. O seu ministério entrava frequentemente a composição da sua grande
obra, A Cidade de Deus.

A Cidade de Deus: tal como Ambrósio, seu pai em Deus, Agostinho ocupou-se das
relações entre a Igreja e o Império. Encontrava-se em Milão na altura em que o bispo entrou em
luta com a imperatriz Justina. Receando que a mãe do rei-menino mandasse os soldados raptar
Ambrósio, o povo cristão mantinha-se junto do seu bispo e passava as noites na igreja, pronto a
morrer com ele. Semelhante tensão desaparece na altura em que Agostinho, quase no fim da
vida, começa a Cidade de Deus. A Igreja está em paz com o Império. Além disso, o poder civil está
ameaçado; precisa de ser reforçado contra a dissolução interna e, sobretudo, contra as ameaças
do exterior, depois de Roma ter sido tomada por Alarico, à frente dos Godos em 410. Das suas
fileiras erguem-se queixas, seguidas de acusações à religião nova, por ter enfraquecido e
arruinado o Império. Como explica nas Retrações, foi para combater as suas blasfémias e os seus
erros que o zelo ardente da casa do Senhor colocou a pena na mão de Agostinho. Esta refutação

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preenche os cinco primeiros livros da Cidade de Deus. Os cinco seguintes afastam a tese pagã.
Assim, os dez primeiros livros são essencialmente apologéticos. Agostinho esforça-se por
convencer os pagãos de que o cristianismo em nada é o causador dos males que atingem o
império e a capital. O resto da obra é uma exposição das doutrinas cristãs. Descreve o nascimento
das duas Cidades: a Cidade de Deus e a Cidade do Mundo. Mostra o seu desenvolvimento paralelo.
Enuncia os seus fins necessários. A Cidade de Deus não é um tratado de política.

A politologia agostiniana: em A Cidade de Deus, Agostinho traça um fresco prodigioso em


que apresenta a evolução das criaturas inteligente, tanto dos anjos como dos homens. Mostra
que existem necessariamente duas Cidades, a do bem e a do mal, que estão em constante luta,
que a sua vida presente é um combate de todos os dias e que a paz perpétua só poderá existir na
vida futura. «Dois amores construíram duas Cidades, o amor de si elevado ao desprezo de Deus,
a Cidade da Terra, e o amor de Deus elevado ao desprezo de si, a Cidade de Deus. Uma glorifica-
se em si, a outra no Senhor. Uma pede a sua glória aos homens, a outra põe a sua glória mais cara
em Deus, testemunha da sua consciência. Uma, no orgulho da sua glória, caminha de cabeça
erguida; a outra diz o seu Deus: Vós sois a minha glória e sois vós que ergueis a minha cabeça.
Aquela, através dos seus chefes e das vitórias sobre os outros principados que verga, deixa-se
dominar pela paixão de dominar. Esta representa-nos cidadãos unidos na caridade, servidores
mútuos uns dos outros, governantes tutelares, súbditos obedientes.» O texto mostra claramente
que não devemos confundir a Cidade humana com o Império nem a Cidade de Deus com a Igreja.
Esta última é a comunidade cristã, que também comporta uma organização temporal do Estado,
de acordo com as leis do Evangelho. Para Agostinho, o homem não possui em si qualquer
autoridade sobre os outros homens. O império que lhe é atribuído pelo Génesis incide no reino
animal e nas coisas inanimadas, não se estendendo ao seu semelhante e igual, livre como ele,
criado por Deus à sua imagem e dotado de alma. Logo, o homem pode, de acordo com a natureza,
viver só e independente. No entanto, devido a uma segunda lei, a natureza leva o homem a
associar-se, de acordo com um fenómeno de ordem geral que ultrapassa a espécie humana e que
se estende também ao reino animal. Ainda segundo Agostinho, os cidadãos são os elementos e
os germes da Cidade. Inicialmente, combinam-se para formar a família que é o núcleo da Cidade.
Só existe associação fundada no direito onde há justiça. Não seria o caso do Império Romano.
Ignorando o verdadeiro Deus, ignorando também a justiça. Ora, «sem Deus, não há Justiça; sem
Justiça, não há Direito; sem Direito, não há Povo; sem Povo, não há Estado» Santo Agostinho
suprime, deste modo, sete séculos de República romana. Mas em breve reconsidera e propõe «o
povo é associado de uma multidão razoável que se une para gozar em comum e a um só coração
das coisas que ama.» Chama à união dos corações e das vontades «comunhão de natureza»: Esta
gera um «pacto de sociedade».

A autoridade: esta conceção afetiva e comunitária do povo deixa de lado, aparentemente,


a noção de autoridade. À autoridade renovada pelo Cristianismo, pede ele que salve a Cidade
antiga. Na família, a autoridade cabe ao melhor elemento, isto é, ao pai. A autoridade política
decorre assim da autoridade familiar. Os primeiros reis surgiram da avaliação feita às suas
qualidades. O seu poder não advém deles próprios mas de Deus, que delegou a sua potência a
cada principado, atribuindo o mando. Todavia, Deus não agiu diretamente, salvo a título
excecional, como no caso de Israel, que recebeu as chaves da sua mão Entre os outros povos, a
sua ação manifesta-se pelas vias naturais da ascensão ao trono e pelas normas do Direito positivo.
Surge assim, em Santo Agostinho, a chamada teoria do direito divino prudencial. Deus criou o
homem de tal maneira que a sociedade civil e, por conseguinte, o poder, lhe são indispensáveis.
Mas apenas certos factos humanos dão ao poder, em cada sociedade a uma forma concreta e
certos factos humanos dão ao poder, em cada sociedade, a sua forma concreta e legitima, bem

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como o seu sujeito. O homem necessita, por natureza, da sociedade e de uma sociedade dotada
de uma autoridade. Logo, a autoridade é indispensável e transcendente, mas a indicação do seu
titular e a instauração da sua forma concreta são imanentes e efetuam-se por intermédio dos
factos humanos. Aquele que faz do poder coisa sua escamoteia a liberdade e impõe aos cidadãos
um jugo de ferro, como fizeram Mário e Sila em Roma. Ao mesmo tempo, leva a sonhos de guerra
e de conquista. Ora, Santo Agostinho é essencialmente pacifista. O espírito belicoso transforma
a Civitas imperans, aCidade que manda segundo as leis, em Cidade tirânica. Civitas imperiosa, que
não passa da expressão de apetites desenfreados. A missão do poder consiste em fazer reinar a
justiça. Foi com este fim que o domínio foi dado ao rei. A justiça é, em si, anterior ao poder.
Imutável, eterna, soberana, comum no espaço e no tempo, impõe-se a todos os países, a todas
as instituições, a todas as consciências. A autoridade, pensa ele, não é um mal, mas relativamente
à justiça é secundum. O poder tem tudo a temer ao afastar-se da justiça. Segundo os pontos de
vista platónicos, o poder, se ameaçado na sua estabilidade e no seu equilíbrio, é-o igualmente na
sua retidão e na sua tranquilidade. A ausência de justiça desencaminha o poder, e o poder
desencaminhado é um poder que se perde. E aqui aparece a fórmula: «Que são os reinos sem
justiça, se não enormes malfeitorias?» A justiça consiste em desempenhar com a maior exatidão
o seu dever, em dar a cada um, de acordo com a tradição latina, o que lhe é devido sem fraude
nem favor. Considera a autoridade como moralista; indica os deveres que incubem aos seus
titulares e lembra-lhes as responsabilidades. Por fim, trata do mando na qualidade de apóstolo,
a fim de eliminar os resíduos pagãos que ainda sobrevivem. A autoridade, que já São Paulo
concebia como o exercício de um ministério, comporta em Santo Agostinho três ofícios ou oficia:

 o officium imperandi: é o serviço de mando. Quem está investido dele deve poder impor
a vontade.
 o officium providendi: é o da providência. Através dele, a autoridade assegura a
tranquilidade e a felicidade em vista à qual os homens se agruparam. O dever do chefe é
ver e prever por aqueles que lhe estão subordinados, saber o que é bom para eles e
satisfazer as exigências do seu bem.
 o officium consulendi: dá ao chefe o papel de conselheiro do seu povo. A sua autoridade
deve ser posta ao serviço dele. O mando é um aspeto da caridade; os súbditos são irmãos.
Se alguém lhes impõe a sua vontade, é para bem deles, para cumprir perante eles o
grande mandamento, o mandamento evangélico por excelência: «a autoridade deve ser
aceite como um serviço e amada como um beneficio».
Tendo a justiça na base da caridade no topo, a Cidade proporciona a felicidade aos cidadãos.

As formas de poder: estes deveres impõem-se a todos os príncipes, seja qual for a forma do poder.
Logo, a escolha desta é secundária. Pelo que lhe diz respeito. Agostinho não vê vantagem tão decisiva, nem
inconveniente que leve a recorrer a um governo em vez de outro, ou a afastá-lo. Pouco importa, desde que
o depositário do poder não arraste os governados para atos de imoralidade, injustiça ou impiedade. Todo
o governo será, se não bom, pelo menos aceitável, na condição de, em matéria moral e religiosa, respeitar
Deus e respeitar o homem. Agostinho utiliza, com pequenas diferenças, a terminologia clássica da
Antiguidade. O rei injusto é um tirano; a aristocracia injusta é uma fação; o povo injusto merece, como rei
injusto, ser classificado de tirano. A perda de justiça e o seu desconhecimento têm para ele consequências
absolutamente radicais. O principado que desconhece o Direito não é apenas um principado corrompido,
é um principado aniquilado. Mas, com a reserva da manutenção da justiça e do respeito pela religião, todos
os regimes políticos e equivalem, todos têm os mesmos direitos e a mesma autoridade e podem reclamar
a mesma submissão.

A Igreja e o Império: do mesmo modo, seja qual for o regime, o poder civil e o poder eclesiástico,
cada um por seu lado, são bem distintos. Ambos gozam de uma independência soberana. Toda a

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espécie de ingerência de um poder no domínio do outro, é culpável, e perigosa, quer para o bem geral,
quer para o poder que desconhece os limites da sua esfera de competência. Assim, as duas esferas
parecem completamente separadas, Império e Igreja movem-se em dois planos diferentes. O plano da
Igreja é superior, entende que o Império não deve à Igreja serviços de dinheiro, mas somente proteção
contra os inimigos. Invoca a proteção do Império contra os pagãos, contra os judeus. É então levado a
estabelecer um princípio cuja importância domina toda a História da Idade Média e, em parte, dos
tempos modernos: o direito de intervenção do Império nos conflitos de consciência. Mas por amor da
paz, aceita o Império os erros de política e a insuficiência da administração. Em vista a um bem maior,
a Igreja tolera que lhe sejam impostas as leis muito imperfeitas neste mundo. É uma consequência da
sua condição. Na terra, a Igreja é cativa; passa o tempo no exílio. Nesta situação conforma-se a todas
as imperfeições que o Império arrasta atrás de si. Agostinho prefere insistir naquilo que a Igreja dá ao
Estado e que é essencial para a sua subsistência: a virtude dos cidadãos. A Igreja deve ser dentro do
Império uma escola de civismo e fraternidade. Segundo Agostinho, a evolução dos regimes não se deve
ao acaso nem a uma fortuna cega. A este respeito, opõe a Providência cristã à deusa Fortuna, que
usava uma faixa sobre os olhos. A marcha dos reinos e dos impérios processa-se segundo um plano
que Deus conhece, mas que os homens ignoram. Deus, autor e regulador de tudo, não pode deixar os
reinos fora da ordem universal. Os regimes adaptam-se às necessidades, às tendências e até aos
caprichos de cada época. Recebem de Deus, pelas vias já indicadas, a delegação misteriosa de mandar.
Mas a Providência, que preside ao seu nascimento, assiste aos seus avanços e aos seus recuos; segue
a sua evolução; estabelece o seu balanço; verifica o que cumpriram de bem e de mal; compara-os e
regula a sua sorte de acordo com uma justiça rigorosa. Pensa que o cristão tem um dever particular
de lealdade para com um príncipe que é, também ele, um príncipe cristão. Todavia formula, quanto à
imensidão do império, uma critica que merece ser assinalada. Agostinho pensa que a extensão do
Império Romano foi um fator da sua decadência, porque trouxe consigo a corrupção dos costumes e
da administração. Os serviços tornaram-se maus por ausência de controlo e por concussão. O aparato
do Império ultrapassou a sua solidez, e Agostinho, cujo estilo continua a ser, por vezes, o do antigo
retórico, compara-o ao vidro pelo brilho e pela fragilidade. O ideal político na medida em que existe
algum no plano terrestre, é o ideal de uma humanidade unida, mas fracionada em pequenos
principados, o que, moderando-lhes as pretensões por força da exiguidade, tornaria mais fáceis as suas
relações com a Igreja. Entre eles, entrevê uma emulação fraterna. Haveria muitos principados no
mundo, tal como há muitas famílias nas cidades.

O AGOSTINIANISMO POLÍTICO

O desvio do pensamento agostiniano: ao longo dos seus escritos, Agostinho mostra grande confiança
no Imperador cristão. Evita cuidadosamente identificar o Império com a Igreja. Discerne claramente o
caráter legítimo das instituições políticas Proclama que o papel destas é da vontade de Deus para que
a ordem seja mantida, e afirma a necessidade de as pessoas se submeterem a elas em obediência aos
desígnios providenciais, mesmo quando os reis ou imperadores são apóspatas ou pagãos. No entanto,
a conceção “ministerial” do poder secular traz como consequência, com a cristianização do Imperio, a
qualificação do bem como virtude e do mal como pecado. O ministério religioso de que são investidos
os reis e imperadores cristãos faz com que passem a dever obediência aos chefes da Igreja. Mas a
distinção continua a ser nítida. O papa Gelásio I também distingue claramente as duas jurisdições, a
espiritual e a temporal. A sua Decretal é célebre: «A origem da separação dos poderes espirituais e
temporais deve ser procurada na ordem estabelecida pelo divino Fundador da Igreja. A pensar na
fraqueza humana, teve o cuidado de que as duas autoridades ficassem separadas e cada uma
permanecesse no domínio particular que lhe foi atribuído. Os príncipes cristãos devem servir-se do
sacerdócio nas coisas que se referem à salvação. Os padres, por sua vez, devem fazer confiança no que
foi estabelecido pelos Príncipes, em tudo o que respeita aos acontecimentos temporais, de maneira
que o soldado de Deus não se intrometa nas coisas do mundo e que o Soberano temporal nunca se

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pronuncie nas questões religiosas.» Repartimos assim os dois poderes, deve ser providenciado para
que nem um nem outro possam atribuir-se uma autoridade preponderante e para que cada qual
permaneça fiel à missão que lhe é confiada.

 Agostinianismo politico: esta corrente intelectual, procedente da revolução cristã, mas


exagerando algumas das suas tendências, suprime as distinções entre direito natural e
justiça sobrenatural, entre o temporal e o espiritual, entre o político e o eclesiástico,
entre a Igreja e Império. Tudo se acha absorvido no ideal de uma comunidade única,
colocada sob o condomínio de duas autoridades soberanas, espirituais e temporais. Os
começos do desvio remontam a Gregório, O Grande. Na sua atitude, considerada a
primeira manifestação de agostinianismo politico, há uma espécie de desdobramento.
Por um lado, o respeito devido aos poderes estabelecidos sobrevive ao Imperador.
Gregório multiplica os sinais de respeito a Maurício, Imperador do Oriente. Mas, por
outro, começa a afirmar-se a influenciado poder sacerdotal sobre os jovens reinos
bárbaros, debilmente institucionalizados. «Ser rei nada tem de maravilhoso em si, pois
há outros que o são. O que importa é ser um rei católico.» Assim, para o Papa e para os
teólogos, a função religiosa do soberano torna-se a razão de ser da realeza. Daí decorrerá
logicamente a sujeição direta à autoridade sacerdotal. «Eis que o Cristo vos responde por
mim, seu servidor e vosso: fiz-te César, imperador e pai de imperador.» Doravante tudo
está na Igreja, incluindo os reis e os imperadores. Enquanto existia um Império romano,
fortemente constituído, havia o risco de choques, mas não de confusão. Tudo muda
quando desaparece o Império. Não só o Império, mas a própria ideia de Império dissipa-
se com a instalação dos bárbaros. A igreja que se institucionaliza com todo o vigor e rigor
que toma de empréstimo a Roma, encontra algo de melhor que um campo favorável,
encontra um terreno vazio, já que o domínio do político deixou de estar ocupado. O
poder político, na medida em que conserva alguma consistência, vai buscar força ao seu
caráter religioso. Surge como sendo «criado para atingir o fim que, noutro plano, a Igreja
reclama.» Já não se trata de uma autoridade independente e soberana, de uma
magistratura suprema que se impõe a todos, aos cristãos e aos outros, para o bem
comum temporal. Semelhante instituição, na sua autonomia, deixou de existir, vindo a
tornar-se um órgão quase eclesiástico.

O imperialismo carolíngio: no entanto, será feita uma tentativa para reconstruir a ordem
política da humanidade, dando à comunidade cristã uma estrutura que já não seria a do Império
pagão, mas que ultrapassaria as dominações locais e parciais resultantes das grandes invasões
bárbaras. À volta de Carlos Magno, leigos e eclesiásticos vêm o rei dos Francos, assinalado por
Deus para domar a barbárie, converter os povos pagãos e criar entre eles uma comunidade de fé
e de lei semelhante a um Estado. Mas ninguém pensa em dar-lhe a coroa imperial. O mundo
cristão contém três personagens providenciais: o imperador do Oriente, o Papa e o Rei. Este é,
de facto, poderoso e glorioso do que os outros dois, mas contenta-se com o título de “patrício” a
que recorreu para conter e em seguida esmagar os Lombardos e para se erigir em protetor da
Igreja. À volta do Papa ninguém parece disposto a conceder-lhe a dignidade imperial. Os seus
títulos são suficientes. Invoca-se a donatio Constantini, um documento de origem obscura
publicado por volta de 750, onde o Imperador, ao retirar-se para Bizâncio teria formalmente
doado todo o Ocidente ao Papa. Baseada ou não num facto autêntico, a donatio Constantini
traduz uma crença geral. Esta divergência inicial explica as atitudes de Leão III e de Carlos Magno,
por ocasião da coroação deste, a 25 de dezembro do ano 800. Leão III, que precisa de um protetor
e o encontrou em Carlos Magno, quer sagrá-lo Imperador. Mas é essencial que a iniciativa parta
dele. Por isso, atua de surpresa. Sem preparativos coroa Carlos Magno durante as cerimónias do
Natal. Este não aprecia muito um processo tão expedito. De facto, o título imperial não dá a Carlos
Magno nenhum território novo e nenhum direito que não tivesse já, nem sequer sobre o

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Imperium do pontificado, de que o Papa tinha a firme intenção de continuar a ser o soberano
espiritual. Mas confere-lhe grandeza e obrigações morais. Carlos Magno é assim colocado no topo
da hierarquia dos poderes humanos. Torna-se chefe temporal da comunidade cristã, de que o
Papa é o chefe espiritual. Não se trata propriamente de restauração do Império Romano mas da
criação de uma sociedade político-religiosa de tipo novo, cuja conceção decorre diretamente do
agostinianismo político. O exercício da sua elevada função religiosa absorve-lhe a atividade
temporal. Ao fazer do batismo o laço principal entre as nações tão diferentes que conquistou
realiza temporalmente aquela unidade humana, aquela “humanidade” outrora realçada como
ideal evangélico. Caminha-se assim para a realização do agostinianismo político: O Império
concebido como reino da Sabedoria e preparação para a Cidade de Deus… A ideia Imperial de
Carlos Magno é antes de mais uma visão religiosa da ordem do mundo. O Império carolíngio, ao
esvaziar em definitivo a noção de Império, legado da antiguidade, para o substituir pela conceção
nova de uma comunidade com base e fim religiosos, para os substituir pela conceção nova de
uma comunidade com base e fim religiosos, abre intelectualmente as vias para o sacerdotalismo
gregoriano. Cede-lhas na prática quando, por sua vez, entra em decadência. O novo sistema
político, o feudalismo, fruto da anarquia política provoca uma divisão ilimitada, um retalhamento
ao infinito. O papado, que ficou a ser o único poder universal, considera-se então, não só pai e
senhor de todas as Igrejas, mas o substituto da autoridade política definhante. Aquela
impressionante superioridade de todos os elementos da autoridade conduz a uma dominação da
Igreja até sobre o Século.

Definição de sacerdotalismo: assim se opera uma prodigiosa transferência da


preponderância política para o poder pontifício, sem que o pontífice, ao aceitá-la, julgue sair dos
deveres religiosos do seu cargo apostólico, e sem que pretenda usurpar funções publicas. A paz
tornou-se um assunto religioso, mais do que político. A absorção do direito natural do Império
por uma justiça mais alta leva à exaltação do pontificado, que, por instituição divina, é na terra o
seu principal arauto. Deste modo o sacerdotalismo não é uma doutrina das relações entre o
Império e a Igreja, mas uma conceção diferente da sociedade política. O poder supremo é
exercido pela autoridade religiosa. Esta não possui uma superioridade moral que não poderia ser-
lhe recusada. Reconhece a si própria as atribuições fundamentais da soberania política; a
instituição e a jurisdição. A hierarquia eclesiástica estabelece e julga o poder civil, que deixa de
ser independente. A palavra “sacerdotalismo” parece corresponder exatamente a um conjunto
de tendências de que o sacerdócio é o núcleo. Certos homens sagrados a Deus pelo sacramento
da Ordem têm, por instituição divina, um poder da autoridade sobre os outros homens, o poder
mais eminente que é possível existir. A base lógica da autoridade pontifícia é incontestável para
o crente. Os poderes da Igreja são os de Cristo. O sacerdócio tem, pois, a plenitudo potestatis no
domínio espiritual. Transforma-se em “sacerdotalismo” quando se estende ao temporal,
recusando-lhe valor próprio e conferindo-lhe eticidade. Assim, não só existe subordinação do
temporal ao espiritual, mas uma interpenetração de ambos que leva à inclusão do primeiro no
segundo, ou antes, à ausência de ventilação entre um e outro. Em princípio, o poder espiritual
sobreeminente exerce a sua jurisdição sobre o poder temporal quando o espiritual está em jogo.
Mas, para o sacerdotalismo, o espiritual está constantemente em jogo. Na desordem universal,
ao procurar-se um poder dotado de verdadeiro prestígio, vê-se apenas a Igreja a ocupar todo o
horizonte. O Estado é rebaixado, a Igreja é exaltada Para atingir este resultado, todos os meios
servem.

Expansão do sacerdotalismo: o Santo Império só pode reerguer a noção de político pela


sua subordinação à Igreja. Ao associá-lo aos seus fins sobrenaturais, esta fá-lo participar na sua
própria dignidade. No ponto de partida tudo é perfeitamente lógico na teoria sacerdotalista, tal

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como a formula Gregório VII: «É lei da religião cristã que, a seguir a Deus, a autoridade real seja
dirigida pelos cuidados da autoridade apostólica. A Escritura comprova que a autoridade
apostólica e pontifícia apresentará os reis cristãos e todos os outros fieis diante do tribunal divino
e prestará contas a Deus dos seus pecados.» É Rationi peccati, em razão de pecado, que os reis
são dependentes dos papas. A inclusão dos reis na vida moral faz parte da tradição da Igreja.
Gregório VII apoia-se numa declaração de Gelásio I: «Há dois poderes principais, Augusto
Imperador, a reger o mundo, a autoridade sagrada dos Pontífices e o poder Real. A
responsabilidade dos sacerdotes é ainda ais grave porque têm de prestar contas ao tribunal
divino por todos, até pelos Reis.» Mas Gregório VII só reconhece a autoridade dos reis como
legítima na condição de eles a exercerem na Igreja e para a Igreja, de serem os dóceis auxiliares
da justiça sobrenatural de que o papa é o supremo defensor. O Rei é o vigário de Cristo, do Papa.
Nos primeiros tempos do seu pontificado, Gregório VII utiliza fórmulas moderadas. Mas ao longo
do conflito com Henrique IV da Alemanha, a conceção sacerdotal vê-se definitivamente explicada.
Gregório VII que pode, «em nome de São Pedro e de São Paulo, tirar e dar na terra a cada um
conforme os seus merecimentos, os impérios, os reinos, os principados, os ducados, os
marquesatos e todas as possessões dos homens». A doutrina torna-se hirerocrática. O êxito de
Canossa em 1077, com a humilhação do imperador, coroa a obra de Gregório VII, que fica a dever-
se tanto às suas qualidades pessoais de energia e inteligência como às fraquezas dos
interlocutores. O agostinianismo politico soube transforar-se em tradição e fez entrar o domínio
Temporal na Igreja. O rei tornou-se um poder subordinado à Santa Sé; se não é abolido, o ofício
real é esvaziado da sua antiga soberania.

São Bernardo e a alegoria dos dois gládios: Contudo, uma menção especial deve ser feita
a São Bernardo (1090 – 1153). As duas espadas surgem no relato da Paixão. No sermão depois
da Ceia, Jesus indica aos Apóstolos que devem preferir a espada à túnica. E eles respondem que
têm duas espadas. Logo Cristo diz: «É quanto basta». Um pouco mais tarde, Jesus ordena a Pedro,
que tinha cortado uma orelha ao servo do grande sacerdote, que torne a meter a espada na
bainha. Destas duas espadas, São Bernardo extraiu uma simbologia completa. Os dois gládios
representam os poderes espiritual e temporal e são ambos de instituição divina. Mas, pelo facto
de Pedro ter duas espadas, cabe ao sucessor de Pedro conceder o gládio temporal ao imperador.
O príncipe é um agente necessário, pois puxar da espada é indigno das funções sacerdotais ou,
pelo menos, incompatível com elas. «Aquele que diz que a espada não é do Papa não me parece
que ouça com atenção bastante a frase do Senhor quando declara: “Torna a meter o gládio na
bainha.” Este pertence a Pedro e aos seus sucessores e só por ordem deles deve ser usado,
embora não deva sê-lo pela sua própria mão.». «Ambos os Gládios pertencem à Igreja, a saber, o
gládio espiritual e o gládio material [temporal]. Mas este deve ser usado para a Igreja e aquele
pela Igreja; o primeiro pela mão do sacerdote, o segundo pela mão do cavaleiro, mas certamente
por ordem do sacerdote e a mando do imperador.»

A sociedade segundo o sacerdotalismo: «Tal como», escreve o papa «para a beleza do


universo… Deus dispôs duas luminárias mais eminentes que as outras, o sol e a lua… assim
também providenciou a direção do mundo pela autoridade apostólica e pela autoridade real,
cujos deveres são deferentes». Inocêncio III (1198-1216), esclarecendo a comparação com o sol
«que presido ao dia» e a lua «que governa as noites», acrescenta que «da mesma maneira, no
firmamento da Igreja Universal, Deus instituiu duas grandes dignidades: a maior reina sobre as
almas que são coo dias, a mais pequena domina os corpos que são como noites; são a autoridade
pontifícia e o poder real… Uma e outra mereceram ter na Itália a sede da autoridade. Assim, a
Itália, por disposição divina, obteve o principado sobre todas as províncias… É lá que se encontra
o fundamento da religião cristã e reside o principado conjunto do sacerdócio e do poder real. Na

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Inglaterra, Thomas Becket, arcebispo da Cantuária, apostrofa o rei: «aquele que te fez rei, para
governar e não para oprimir, háde pedir-te contas com usura dos talentos que te confiou.» E João
da Salisbúria levará a análise ao extremo de formular uma das mais percucientes teorias do
tiranicídio:

1.º Existem duas autoridades distintas mas complementares, feitas para dirigir em
conjunto a cristandade, comunidade universal superior a todas as outras, a ponto de os países
serem apenas províncias suas;

2.º A autoridade espiritual é superior à autoridade temporal. O sacerdócio tem prioridade


sobre a realeza, mas o sacerdócio não tem que se ocupar diretamente das questões temporais,
de contrário haveria só uma autoridade e não duas;

3.º Foi o Papado que fez o Império do Ocidente. O Imperador é um cristão consagrado
que possui, acima de todos os outros, a primazia de ser oficialmente encarregado, por força da
sua sagração, da defesa da Igreja. Exerce o protetorado dos interesses gerais da cristandade.

4.º Ao receber do papa a coroa e a consagração, o imperador romano do Ocidete, o rei


da Germânia, toma nominalmente assento em Roma, que, graças à Santa Sé, volta a ser a capital
do mundo que tinha sido na Antiguidade.

O REGRESSO DE ARISTÓTELES: SÃO TOMÁS DE AQUINO

O conflito interno do pensamento medieval: a única diferença entre a posição de São


Tomás de Aquino e o ponto de vista comum sobre o poder sacerdotal e o poder do príncipe reside
na sua força, no condimento e, principalmente, na serenidade da exposição. Também para ele, a
relação entre as duas autoridades é comparável à diferença entre alma e corpo. Há no homem
duas naturezas, dois fins, duas ordens de virtude, dois graus de felicidade. Ora, a estas duas partes
da natureza humana devem corresponder dois poderes, o poder temporal e o poder religioso.
Mas este é necessariamente superior àquele, do mesmo modo que a superioridade da alma sobre
o corpo assenta na superioridade do fim. A jurisdição do papa explica-se logicamente pelo pecado.
O rei, culpado de heresia pode ser deposto; o papa pode dispensar do dever de obediência os
súbditos de um príncipe infiel. Devemos então ver nele um adepto do tiranicídio? Houve quem o
fizesse, como os conjurados de 20 de julho de 1944 que justificaram o atentado contra Hitler
citando os Comentários às Sentenças, em que São Tomás, ao referir a opinião de Cícero sobre a
morte de César, escreve: «Aquele que, para a libertação da sua pátria, mata o tirano, é louvado
e obtém recompensa.» É certo que, ao lado do recurso habitual à Escritura e à Tradição, surgem
na sua obra considerações inteiramente novas sobre a natureza objetiva do poder político. Ao
realçar a diferença entre ordem natural e a ordem sobrenatural. São Tomás dissipa a confusão
anterior, provinda do agostinianismo político. Procura separar o poder “em si” do poder “nestas
ou naquelas condições”. O que vem de Deus é o poder considerado em absoluto, o meio através
do qual se governa, e aquilo que se faz do poder, nada disso vem de Deus, pois que Deus não
instituiu esta ou aquela forma de governo. A instituição política é de direito humano. Se nos
limitássemos a dizer, a exemplo de São Paulo, que todo o poder vem de Deus, desobedecer seria
um sacrilégio. Ora, São Tomás escreve: «ainda que alguns tenham recebido o poder de Deus, se
abusarem dele, merecem que lhes seja tirado». E esclarece: «se um povo tem o direito de fazer
um rei, pode sem injustiça destituir o rei que tinha instituído… se for completamente impossível

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achar recurso humano contra o tirano, então é necessário recorrer ao rei de todos, a Deus, que,
no meio das tribulações, socorre no momento próprio». Verifica-se que São Tomás de Aquino, se
acentua e aprofunda o conflito interno do pensamento medieval, entalado entre o regresso do
pensamento antigo e o apelo, já percetível, do pensamento moderno. Efetivamente, a Idade
Média propõe um sistema político homogéneo e exclusivo, assente na ideia de uma comunidade
constituída por Deus e que engloba a humanidade total.

O doutor angélico: a personalidade de São Tomás de Aquino prestava-se admiravelmente


à gigantesca obra de síntese de que vai ser autor. Nascido perto de Nápoles reúne na sua
compleição maravilhosamente equilibrada dos dons dos homens do norte e dos homens do sul,
dos Normandos e dos Lombardos. Do mesmo modo que integra na sua missão de doutor a Itália
dos Papas, a Alemanha de Alberto, o Grande, França de São Luís e a Universidade de Paris,
também junta à herança dos Padres e da sabedoria cristã os tesouros dos Gregos e dos Latinos,
dos Árabes e dos Judeus, em suma, o contributo completo do mundo conhecido do seu tempo.
A sua vida confunde-se com a sua obra intelectual. Estudante e professor em Paris, Colónia e
Itália, São Tomás é, ao mesmo tempo, um erudito com conhecimentos enciclopédicos e um
contemplativo perdido em Deus. Meditativo e orador, o “grande boi mudo da Sicília” é um
professor consumado cujo discurso pedagógico se prolonga nos extensos ditados que constituem
a sua obra. Esta é sobretudo teológica e filosófica. Não contém exposições políticas de conjunto.

A cidade, obra de natureza e de razão: inicialmente, Tomás afirma a existência e o valor


em si da Cidade. A sociedade política é natural ao homem, pois este, também por natureza, é um
animal cívico. Aquino adota exatamente a terminologia de Aristóteles, que muitos autores
simplificam ao dizer que o homem é um “animal social”. Com efeito, há outras sociedades sem
ser a Cidade. A sociedade doméstica tem por fim a procriação, a conservação e a educação das
crianças. Não é suficiente para o homem, tal como o não são outras sociedades a que pode
pertencer voluntariamente. Além disso, o homem não é o único ser que vive em sociedade. Mas
só o homem, diferentemente das outras criaturas, é um animal político. A sua vida exige, para se
desenvolver e aperfeiçoar, segurança contra os inimigos externos e internos, além da ordem legal
que dá a cada um o que lhe é devido e permite a abundância de recursos materiais e espirituais.
Esta sociedade cívica não permite a abundância de recursos materiais e espirituais. Esta
sociedade cívica não é mero fruto do instinto. O homem participa nela devido a uma inclinação
para a vida social, aceite e regida pela razão. Neste sentido, há na associação humana uma parcela
de vontade e, posteriormente, um elemento contratual. Tomás reconhece-o fazendo sua a
definição de Cícero: «A sociedade é uma multidão organizada sob uma lei de justiça consentida
para um interesse comum.» Ao substituir por uma noção jurídica uma noção sentimental e afetiva
de povo, Agostinho facilitara a eclosão das confusões que se seguiram. Tomás afasta-as
destacando a noção de Cidade segundo Aristóteles e Cícero, cuja sociedade é considerada
perfeita. Mas a sua perfeição não é autarcia, nem o isolamento e a retração que resultariam da
suficiência moral. Significa somente que a coletividade por ela formada encontra aí a plena
satisfação do bem comum aos seus membros. O bem comum não é só de ordem temporal, mas
também de ordem espiritual, já que deve garantir o pleno desenvolvimento do homem, ser físico
mas também ser razoável e ser religioso depois da Revelação cristã. No seu conteúdo complexo,
o bem comum deve tomar em consideração o bem particular de cada membro da Cidade, e
designadamente garantir-lhe aquele mínimo de bens corporais necessário ao exercício da virtude.
A sociedade engloba os cidadãos, mas sem os absorver. A comunidade politica é formada por
indivíduos, por sociedades humanas, que não se tornam servas, mas se conservam livres numa
sociedade maior de que são membros vivos. Logo, pode falar-se a este respeito de organismo
social, uma vez que cada elemento possui atividade e vida próprias que lhe permitem, ainda que

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sob a dependência de outrem, mover-se e eventualmente resistir. O contrário da peça de um


mecanismo que, privada de atividade, sofre passivamente o impulso que lhe é dado, sem
qualquer possibilidade de se opor.

Origem e forma do poder: à unidade humana, natural e racional, constituída pela Cidade,
é necessário um poder político. Existe em si, conforme à natureza e não procedente de outro
poder humano que lhe seria superior. Tem origem em Deus, mas Deus como criador da natureza.
Formulou a sua teoria num encadeamento de dois silogismos:

 Maior: a sociedade é uma exigência da natureza do homem, ser moral, racional,


religioso e socia;
 Menor: para viver em sociedade, é necessária uma autoridade superior que
governe cada membro da sociedade com vista ao bem comum;
 Conclusão: logo, a autoridade é uma exigência da natureza, pois não pode haver
fim sem meio.
 Maior: mas todas as exigências da natureza procedem de Deus, seu autor;
 Menor: ora, a autoridade é uma exigência da Natureza;
 Conclusão: logo, a autoridade procede de Deus.

Mas a colação desta autoridade, divina na sua essência, é humana nos seus modos. Passa
pelo povo: omnis potestas a Deo per populum. São Tomás formula claramente a doutrina da
Média Via Tomista. A comunidade é necessariamente o primeiro sujeito do poder. Pode
transmiti-lo a uma ou mais pessoas determinadas, por um período limitado e, de preferência, por
tempo indefinido. Ficam assim concretamente demarcadas as várias formas de governo. São
Tomás retoma por sua conta a vulgata de Aristóteles. Distingue três tipos específicos de governo
puro, a monarquia, a aristocracia e a democracia (politeia) e três formas desviadas ou alteradas,
a tirania, a oligarquia e a demagogia (démocratia). Sublinha o caráter moral desta classificação
separando os governos que agem retamente daqueles que agem injustamente quanto ao bem
comum que é o fim da sociedade. São Tomás aceita as formas retas e aprova-as, qualquer que
seja a sua estrutura. Afasta os desvios como sendo injustos, já que visam um bem particular. De
acordo com o mesmo esquema, o poder politico é diferente do poder despótico. O poder político
existe nas províncias ou cidades governadas por um só ou por vários segundo determinadas leis
ou convenções. O poder despótico é ilimitado, tal como o do senhor sobre o escravo. Finalmente,
São Tomás distingue uma terceira forma de poder, o poder real, que não é político nem despótico.
O príncipe governa sem leis, mas a sua liberdade é sábia. Bebe no seu coração a inspiração para
os seus atos, imitando assim a Providência divina.

Preferências teóricas: revelam-se aqui as preferências de São Tomás de Aquino pela


monarquia, as quais se ligam ao conjunto das suas conceções teológicas, filosóficas e históricas.
Teológicas: o exercício real do direito do monarca é comparável à ação de Deus e a constituição
monárquica é aquela que Cristo quis para a sua Igreja; Filosóficas: a arte imita a natureza, e a
natureza está suspensa da unidade. A sociedade política deve moldar-se por ela. Tudo bem da
unidade e retorna à unidade. A superioridade do poder fica mais bem garantida, tal como a sua
organização, pois o que é uno em si prevalece sobre o que é composto de elementos múltiplos;
Históricas: o passado prova que as províncias e cidades sem rei estão à mercê das discórdias e
andam à deriva. No entanto, apesar de ser melhor o governo de um só torna-se o pior quando se
desvia do seu fim. O egoísmo de um rei isola-o da multidão. Também é frequente acontecer que,
sem qualquer participação nas responsabilidades do governo, confiando-se inteiramente à
autoridade régia, os súbditos de uma monarquia trabalhem sem entusiasmo e acabem por se

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desinteressar do bem comum. Por isso, se teoricamente a monarquia pura é o sistema ideal, na
prática deve preferir-se-lhe o regime misto.

O regime misto: o governo misto é, para São Tomás, aquele que conjuga a monarquia, a
aristocracia e o governo popular. Combinação de formas simples, dá origem à sua limitação
recíproca. Há sobretudo duas vantagens a tomar em consideração: é bom que os cidadãos
tenham alguma participação no governo, é o verdadeiro meio para conservar a paz social e
conseguir que todos se vinculem à constituição do país e a defendam; depois, a melhor
organização será aquela que combine com a unidade de ação própria da monarquia a
superioridade de mérito própria da aristocracia, e ainda a liberdade política e a igualdade civil
próprias da democracia. Logo, o melhor regime será aquele em que um único chefe à frente do
Reino governe segundo a lei e a virtude; onde segundo a mesma lei de virtude, determinado
número de magistrados intermédios concorram para a administração; e onde todos os cidadãos,
participando na soberania como eleitores, sejam elegíveis para todas as magistraturas, tanto a
suprema como as subordinadas.

Um politologia intemporal: Uma vez provado, em metafísica, que a natureza, obra de


deus, imita a razão divina e que a razão humana, obra de Deus, deve imitar a natureza para imitar
Deus, o que é conforme à natureza afigura-se bom, e o que não concorda com ela afigura-se mau.
Uma vez admitido, em teologia, que a natureza humana, ferida pelo pecado, precisa da graça
para se refazer e aperfeiçoar, a natureza do homem, com as suas tendências e hábitos, oferece-
se ao legislador para que se desenvolva o que ela inicia, se emende aquilo se que se afasta e se
mantenha e conserve o que ela organiza. Posteriormente, a politologia torna-se uma das ciências
práticas, e São Tomás presenta-a como tal ao estabelecer a sua classificação das várias disciplinas.
A ordem das ações voluntárias, domínio geral da filosofia dos costumes, divide-se em três partes:
a primeira, que considera as operações do individuo, é a moral individual ou ética; a segunda,
que encara aas operações da comunidade familiar, é a moral doméstica ou económica; a terceira,
que diz respeito às operações da coletividade civil, é a moral cívica ou política.

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IDADE MODERNA

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AFIRMAÇÃO DO PODER CIVIL

Uma inversão de Tendências: o tomismo como doutrina equilibrada, poderia ter evitado
a inversão de tendências. Mas as conceções do Doutor Angélico têm simultaneamente, a força e
a fraqueza de ultrapassar o seu tempo. O tomismo chega tarde de mais para salvar o Santo
Império. A forma política original, de que a Idade Média estava grávida e que poderia ter nascido
então, diferentemente da Cidade antiga e do Estado moderno, morreu institucionalmente à
nascença. Só a organização da Igreja, muito avançada depois do período dos papas de Avinhão,
beneficiará deste vasto movimento intelectual. O tomismo chega cedo de mais para combater a
violenta reação temporalista do século seguinte e impedir que as tendências laicas assumam o
rigor implacável de um anti-sacerdotalismo radical que estabelece as linhas do absolutismo do
príncipe. O ideal de unidade muda de direção e dá origem a um temporalismo que, para alguns,
resulta sobretudo do despeito. Já que os Papas, por causa das suas constantes dissesções com os
Imperadores, arruinaram o Santo Império, que venha então o poder temporal substituir-se a eles!
A oposição vitoriosa afirma o primado, e até à exclusividade, do poder temporal. Dante Alighieri,
Marsílio de Pádua e Guilherme d’Occam são os seus principais defensores.

A monarquia universal: Dante: O INCOMPARÁVEL POETA DA Divina Comédia escreveu


também um tratado de política, intitulado De Monarchia (Do Império). Dante vê neste um
«principado único que com o tempo se estende sobre todas as pessoas»: Em três livros, propõe-
se «examinar, em primeiro lugar, se o Império é necessário ao bem estar do mundo; em segundo
lugar, e o povo romano fez bem ao assumir a função da monarquia; em terceiro lugar, se a
autoridade da monarquia lhe vem diretamente de Deus ou de algum ministro ou vigário de Deus».
A resposta às duas primeiras perguntas é afirmativa. Quanto à terceira, Dante acha que a
autoridade temporal e política decorre diretamente de Deus. Deste modo, Dante inaugura a
Doutrina anti-hierocrática. Para isso, elimina os argumentos simbólicos (alegoria do Sol e da Lua),
das Escrituras (o poder de Pedro de ligar e desligar) e tradicionais (donatio constantini). O
soberano temporal não está sujeito ao soberano espiritual no que se refere aos assuntos políticos.
Só lhe deve respeito na sua qualidade de guia para a vida eterna. Concretamente, Dante refugiado
na Itália do Norte, toma partido no importante debate político entre os partidários do Imperador
e os partidários do papa. Ao virar-se para o Imperador alemão, apela a ele contra o papado. A
invocação que Maquiavel fará mais tarde ao príncipe libertador, endereça-a a Dante ao
Imperador, a favor da «Itália subjugada, morada da dor». Com efeito, tal como Marsílio e Occam,
pode ser arrumado no campo dos discípulos europeus do grande comentador árabe de
Aristóteles, Averróis (nascido em Córdoba em 1126 e falecido em Marraquexe em 1198), que até
certo ponto laicizou o pensamento do Estagirita. O Averroísmo como uma doutrina de
aristotelismo integral, apresentada como a verdade racional absoluta perante a verdade revelada.
Deixou de haver ponto entre a fé e a razão, como em São Tomás. Daí resulta a separação radical
entre o domínio da Igreja e o domínio do Estado, em proveito do último.

Regresso ao totalitarismo: Marsílio de Pádua: depois de Dante, Marsílio de Pádua lançpa


muito pouco brilho. Mas politicamente, o seu pensamento é, sem dúvida, de grande importância.
A Monarchia não parece tê-lo influenciado, embora comungue de algumas críticas com Alighieri.
Masílio, foi reitor da Universidade de Paris. O papa João XXII amarra-o ao pelourinho, como «filho
perdido e fruto da maldição», ao mesmo tempo que incrimina Luís da Baviera por lhe ter dado
guarida. Será vigário imperial quando da coroação do Imperador Luís e da deposição do Papa
João. Depois desta vitória de curta duração Luís retrata-se publicamente. Não entrega Marsílio,
mas abandona as suas doutrinas que, em Defensor Minor, revestem uma forma mais condensada

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e portanto mais insolente. E, no entanto, qual não era já a veemência do Defensor Pacis! «Para
desmascarar a mentira desses bispos, a vós me dirijo como um arauto da verdade e grito a plenos
pulmões, a vós todos, reis, príncipes, povos, tribos de todas as línguas, não vedes que esse bispo
romano se atribuiu a soberania sobre todos os príncipes, sobre todos os reis do mundo… Pode
imaginar-se peste mais perniciosa, mas perigosa para o repouso, a felicidade e o bem estar de
toda a raça humana… Sob uma mascara de honestidade e decência, o papado é tão perigoso para
o género humano que, se não for travado trará um prejuízo intolerável à civilização e à pátria.» A
inspiração de Marsílio é totalitária. Marsílio retorna a Aristóteles onde São Tomás o havia
corrigido. Ao ter por nula e inexistente a frase de Cristo separando as coisas de César das coisas
de Deus suprime a distinção entre os dois domínios, um dos pontos essenciais da revolução cristã
no aspeto político. Não se limita a proclamar a superioridade do poder temporal, reconduz tudo
a este. Das a primazia ao poder laico não é suficiente, é preciso atribuir-lhe a autoridade total. O
sacerdotalismo era uma espécie de totalitarismo eclesiástico; Marsílio toma a direção
diametralmente oposta. No meio de uma sociedade que leva tão longe o dualismo cristão e
parece tê-lo partilhado por meio de instituições tão poderosas, deixa entrever o ideal de um
Estado que resume todas as manifestações da vida social e governa como senhor em todos os
domínios. Mas Marsílio é menos um percursor do que o protagonista de um retrocesso. Os
argumentos bíblicos ou apostólicos só lhe servem para favorecerem o renascimento da sociedade
paga. Ao escrever que «o mal que desola o nosso tempo, não pôde conhecer Aristóteles», está a
maldizer também a revelação cristã. Ao ligar-se estreitamente ao totalitarismo antigo, deconhece
os direitos fundamentais da pessoa.

A independência imperial: Guilherme de Occam: Guilherme de Occam reproduz, no


Diálogo entre um Mestre e o seu Discípulo, sobre o poder dos imperadores e dos pontífices, quase
todos os argumentos de Defensor Pacis. Por isso foi amiúde situado na esteira de Marsílio, salvo
quando sustentou o contrário. A sua posição pessoal é formulada no Breviloquim de potestate
papae. Comparadas ao radicalismo de Marsílio, as teses do franciscano parecem moderadas.
Adversário do sacerdotalismo, não o é verdadeiramente do poder pontifício, o que explica que
não seja condenado imediatamente em Avinhão, onde o Papa João XXII manda investigar os seus
escritos. Mas, ligando aos franciscanos Guilherme acabará por romper com o papado para se aliar
a Luís da Baviera. Este gesto, somando a uns tantos panfletos, valer-lhe-á a excomunhõ em 1330.
Fica ainda mais livre para apresentar a dignidade imperial como oriunda imediatamente de Deus,
que, po intermédio dos imperadores, governa diretamente o género humano. «A autoridade do
papa não se estende, segundo a regra, aos direitos e liberdades de outrem para os suprimir ou
perturbar, sobretudo aos dos imperadores, reis, príncipes e outros laicos, porque os direitos e
liberdades desta espécie pertencem ao número de coisas do século sobre as quais o papa não
tem autoridade. É por isso que o papa não pode privar quem quer que seja de um direito que
vem, não dele, mas de Deus, da natureza ou de outro homem. Não pode privar os homens das
liberdades que lhes foram concedidas por Deus ou pela natureza.» Aquele que foi eleito pela
maioria de sufrágios dos príncipes eleitores é legitimamente sobreano. Pelo simples facto da sua
eleição, o eleito é imperador legítimo e temporal. Não conhece superiores. Foi neste sentido que
Jesus disse que era preciso dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César. São estes os
termos da declaração de Rense (16 de julho de 1338), fonte da famosa “Bula de Ouro”, que na
prática ia pôr fim ao sacerdotalismo.

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O PRÍNCIPE: MAQUIAVEL

A unificação de Itália: perante o Reino de França já constituído, pelo menos


intelectualmente, a Itália permanece dividida, aberta às invasões, à mercê das cobiças. A obra
de Maquiavel resulta destas circunstâncias. A Itália, a norte dos Estados pontifícios, contínua
a ser muito semelhante, pela sua estrutura de Cidade-Estado, à Grécia da Polis. Trata-se de
cidades mercantis que contam, nos arredores, com um campo que as abastece e a que
servem de mercado. A atividade política concentra-se essencialmente na própria Cidade.
Maquiavel compreende a necessidade de abandonar estas estruturas políticas, quantitativa
e qualitativamente ultrapassadas. As Cidades são unidades insuficientes, nos aspetos militar
e demográfico. Apesar do desenvolvimento das indústrias e do comércio, são
economicamente muito frágeis. Chegou o tempo do Estado-Nação. A Itália pode e deve unir-
se. Mas só pode unificar-se sob a direção de um Príncipe e, a este respeito, o exemplo dos
grandes vizinhos é decisivo. O artífice desta unidade foi um Príncipe, uma dinastia. Maquiavel
põe o problema em termos rigorosos: «sem Príncipe não há unificação». Não basta dirigir-se
ao Príncipe, virar-se para ele com apelos angustiados, mas platónicos; é preciso suscitar o
Príncipe e que o Príncipe triunfe. Escrever política reverte, pois, em redigir um manual de
êxito. Tudo assenta num estudo psicológico das condições de sucesso. A de Maquiavel é
desenfreada, mas também realista.

As obras de Maquiavel: numa carta de 9 de abril de 1513, explica assim a sua principal
preocupação: «querendo a sorte que não soubesse discorrer sobre a arte da seda, nem sobre
a arte da lã, nem de ganhos e perdas, eu preciso de me calar, ou de discorrer sobre os
assuntos do Estado». Entre várias obras de que é autor, o Príncipe faz a sua glória. Escreveu-
o no seu retiro forçado e logo a apresentou a Lourenço de Médicis. Os Discursos sobre a
Primeira Década de Tito Lívio não são menos importantes para se conhecer o pensamento
político de Maquiavel. Há que acrescentar ainda o Discurso sobre a Reforma do Estado de
Florença, que faz com que o autor volte a cair em boas graças. Tratou então de redigir a
História Florentina de 1251 a 1492. Ao lado destas obras políticas, Maquiavel escreveu um
tratado, A Arte da Guerra, além de poesias e teatro.

Renascimento do Estado: a palavra e a coisa: o objeto central dos estudos de Maquiavel


é o Estado. É ele o criador deste termo. Nas primeiras linhas de O Príncipe, emprega a palavra
“Estado” no sentido moderno, com o significado que assumirá mais tarde em todas as línguas
da Europa Ocidental. Além disso, Maquiavel introduz uma distinção fundamental entre os
Estados: «Todos os Estados que tiveram ou têm império sobre os homens são repúblicas ou
principados.» Traça, assim, a diferença entre república e monarquia, que se conservará na
linguagem política. No entanto, apesar de ser o inventor do “Estado”, uma vez que lhe
descobre o nome, a coisa continua envolta, para ele, numa certa bruma. A noção de “Estado”
ainda não se desligou da realidade dos homens que a constituem. O fenómeno da estatização
ainda não atingiu a plena maturidade. Está-se a caminho da institucionalização, mas o
“estado” continua estritamente ligado à pessoa do Príncipe. Assim, o que interessa a
Maquiavel é o Estado, mas o Estado do Príncipe, e dentro do Estado, o Príncipe em primeiro
lugar.

O ideal do Príncipe: o Príncipe é o homem que há de vir, mas também o que deve
conseguir, no duplo sentido do termo. “O Príncipe” é uma obra breve e, a seu ver, as
características do Príncipe são:

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1. O realismo: o Príncipe considera o homem individualmente por aquilo que é, ou


seja, coisa pouca, e os homens coletivamente por aquilo que são, ou seja, menos
ainda que a sua soma. Não se preocupa com o que deveria ser feito, mas com o
que se faz. Anda à espreita de tudo, mas não acredita facilmente no que lhe
contam e não se espanta com coisa nenhuma;
2. O egoísmo, e também o egotismo: o Príncipe aprendeu a não ser bom no meio
de homens que são maus. Pratica o culto e a cultura do “eu”, uma ginástica da
vontade, uma disciplina do pensamento, do sentimento e dos nervos;
3. O cálculo: o Príncipe prefere ser temido a ser amado. Gostaria de ser uma coisa
e outra, mas como geralmente é impossível ser temido e amado ao mesmo
tempo, escolhe ser temido, já que isso depende dele, ao passo que ser amado
depende dos outros;
4. A indiferença ao bem e ao mal: o Príncipe prefere o bem, mas resigna-se ao mal
se a isso for obrigado, e é-o muitas vezes. Conhece muita gente que violou a fé
jurada e triunfou sobre os que respeitaram o seu juramento;
5. A habilidade: a principal qualidade do Príncipe é a “virtu”, segundo a etimologia
italiana de virtuoso e virtuosismo. A “virtu” é a esperteza e ao mesmo tempo a
energia, a resolução pois as qualidades do Príncipe exigem uma criação continua,
uma tensão sem tréguas para o objetivo;
6. A simulação e a dissimulação: o Príncipe é conhecedor da oportunidade,
colaborador avisado da Providência, mas também corruptor audacioso da
Fortuna, grande amador da manha e grande adorador da força;
7. A grandeza: o Príncipe está acima do comum. O que o autoriza a escapar à moral
e o facto de estar acima da mediocridade envolvente. Por isso, situa-se acima do
bem e do mal. Cupidez, rapacidade, dolo, libertinagem, deboche, velhacaria,
perfídia, traição: que importa, se nada disso deve ser julgado pela medida
comum das vidas privadas, mas segundo o ideal de um Estado a fazer ou manter.
Contanto que o Príncipe alcance o resultado, todos os meios são tidos por
honrosos.

«Aquele que implanta uma ditadura e não mata Bruto, ou que funda uma República e não mata
o filho de Bruto, não há de reinar por muito tempo» Aqui surge a chave do maquiavelismo, a
noção de “Razão de Estado”, seu legado fundamental à corrente política que vais suscitar. A
fórmula encontra-se, em termos aproximativos, no seu amigo e discípulo Guichardin.

Itália unida, armada e despadrada: no entanto, seria errado pensar que o povo não tem
importância para Maquiavel. Com efeito entendia que se devia convencer. No extremo, seria
necessário saber se o povo romano não é para Maquiavel comparável a uma espécie de Príncipe
coletivo. Em todo o caso, o povo virá a desempenhar um papel importante na criação da Itália.
Maquiavel pretende substituir os soldados mercenários dos condottieri por tropas animadas de
um sentimento patriótico, recrutadas em Florença entre os burgueses e o povo. Deste modo, por
lógica e por gosto, Maquiavel reserva um papel importante, nos seus escritos, às coisas militares,
pois o Príncipe é, em primeiro lugar, chefe de guerra. Por fim, é inimigo do clero romano, a que,
paradoxalmente, atribui a sua falta de crença. Maquiavel mostra ressentimento para com os
papas, por terem diminuído e até arruinado fé, quando «um povo religioso é mais fácil de
governar». E acusa o cristianismo de não ser uma religião cívica, opondo-a às religiões antigas,
que punham a tónica naquelas virtudes fortes que fazem um povo poderoso e livre, ao passo que
«a nossa religião coloca a felicidade suprema na humildade, na abjeção, no desprezo das coisas
humanas». Estes princípios parecem tornar «os homens mais fracos… e atreitos a ficar mais

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facilmente à mercê dos maus. Estes viram que a suportar as ofensas do que a vingá-las». Além
disso, está contra o governo de Roma, pois a presença papal afigura-se-lhe o grande obstáculo à
unidade italiana, já que o papado é fraco de mais para garantir a unidade da Itália e forte de mais
para a tolerar. O próprio Maquiavel resumiu a sua política de uma maneira pitoresca. Durante as
longas estadas num albergue, quando do seu exílio aldeão, os bebedores que discutiam com ele,
fartos das suas críticas, preguntavam-lhe: «Mas qual é então a tua bandeira?» Maquiavel meteu
o dedo na taça de chianti e desenhou na mesa uma auriflama onde se lia esta divisa: A Itália unida,
armada e despadrada.

O método de Maquiavel: nova é a política, e novo também o método. Maquiavel, que


nasceu de olhos abertos, manteve-os toda a vida arregalados. Substitui à especulação a
observação direta e indireta, feita de contactos e leituras. A leitura das coisas antigas ocupou-o
bastante. Mais do que um gozo estético e gratuito, encontrou aí uma experiência acumulada,
sobre a qual funda a sua doutrina política. Também teve o génio de, ao escrever sobre política,
se limitar a ela. Não só põe a política em primeiro lugar, mas ocupa-se só dela. No entanto, para
ser um politólogo positivo, falta a Maquiavel o essencial, ou seja, a objetividade e o desinteresse.
Maquiavel tem interesses pessoais. Está constantemente com dificuldades de dinheiro e sente a
falta da sua secretária, pelo que se multiplica em gestos de servilismo junto do Médicis. Assim
que saiu da prisão, tenta conquistar as suas boas graças por todos os meios. Consegue-o de um
modo bastante medíocre, o que não o desanima. Maquiavel é homem de uma causa e de uma
grande causa, pois faz da sua causa da unidade italiana o seu fim imediato.

O HUMANISMO CRISTÃO: ERASMO E THOMAS MORE (TOMÁS MORES)

O Príncipe Cristão: Erasmo

O humanismo evangélico: «se observarmos com atenção a cabeça e as feições da águia,


os olhos rapaces e maus, a curva ameaçadora do bico, as faces cruéis, a testa feroz, não
reconheceremos de imediato a imagem de um rei? De todas as aves, só a águia pareceu aos
sábios o verdadeiro tipo da realeza: não é bela, nem musical, nem boa para comer, é carniceira,
glutona, larápia, aguerrida, solitária, odiada por todos, flagelo de todos». Esta passagem de
Erasmo evoca imediatamente o perfil e quase a caricatura do Príncipe de Maquiavel. Perante uma
política não só “laicizada” mas “descristianizada”, Erasmo retoca a imagem tradicional do Príncipe
Cristão. A Instituição é publicada em 1516. Escrita em Latim, é, de acordo com o uso da época,
dedicada a um grande Príncipe: o imperador Carlos V. Desideratus Erasmus Roteradamus,
nascido em 1466, em Roterdão, é então a figura mais saliente do humanismo renascente. A sua
obra exprime uma curiosidade universal, a que corresponde uma audiência universal para o seu
tempo. Através de trabalhos tão variados, Erasmo prossegue um desígnio fundamental, o
renascimento do homem e de toda a sociedade, no duplo sentido racionalista e cristão. Tendo
em vista a sua primeira orientação, é frequentemente invocado como precursor e protagonista
do livre pensamento, mas na realidade e um católico convicto. Grande parte da sua obra é
consagrada à edição de textos religiosos, designadamente do Evangelho. Se critica os
comportamentos da Igreja Romana da sua época, nem por isso deixa de querer batizar a cultura
e de levar o humanismo à perfeição, por meio da aliança entre a tradição clássica e a religião
cristã.

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Situação e deveres do Príncipe cristão: à maneira dos autores medievais, Erasmo constrói
idealmente um Corpus Christianum. O centro desse corpo cristão é Cristo. À volta dele,
estendem-se concentricamente três círculos, dois pequenos e um grande. A primeira zona é
ocupada pelos príncipes da Igreja e pelos sacerdotes: é a zona interna. A zona externa contém a
grande massa de simples leigos, com os pés pesadamente presos à gleba e pertencentes ao Corpo
da Igreja. Entre as duas zonas – interna ou eclesiástica e externa ou laica -, há uma zona
intermédia, constituída pelos príncipes temporais. Quando estes governam com justiça e
proporcionam repouso aos seus povos, participam à sua maneira da dignidade sacerdotal,
situando-se assim muito acima dos que constituem a zona externa do laicado. No entanto, para
ele não há dois cristianismos, um para os príncipes e outro para o comum das pessoas. A religião
de todos deve ser conforme ao ideal evangélico. O príncipe, por estar situado maias acima, deve
superar os outros pelas suas virtudes , prudência e integridade. A lei do sacrifício impõe-se-lhe
como a todos os cristãos. Se tenciona seguir Cristo, deve carregar a sua cruz. Não pode escapar
à lei comum. O Príncipe deve assemelhar-se à imagem de Deus pela Cruz de Cristo e não «pelo
Globo e pela Coroa». Erasmo, embora reconheça direitos ao Príncipe, limita-o fortemente.
Apoiados na primeira doutrina da Igreja nascente, os reis tendem a considerar que se lhes deve
obediência sem discussão, de acordo com o princípio estabelecido pelo apóstolo: omnis potestas
a Deo. Mas esta fórmula de submissão referia-se aos imperadores romanos. «Império, realeza,
majestade, poder, outros tantos termos de um vocabulário pagão.» Ao invés, a soberania cristã
é «administração, benevolência e gestão fiel.» Assim, Erasmo quer que o Príncipe seja escolhido
em atenção aos seus méritos autênticos. O primeiro, a seu ver, consiste em ser pacífico. O
Evangelho é um Evangelho de paz; por isso, o primeiro dever do Príncipe é não fazer a guerra.
Dirigida a Carlos V ou a Francisco I, esta linguagem parece muito ingénua. No entanto, aos olhos
de Erasmo, é sábia, pois aumentar as possessões não constitui vantagem para um Príncipe. Mais
lhe valeria restringi-las, pois ser-lhe-ia mais fácil fazer reinar a justiça num território menos vasto.
Proporcionaria ao seu povo maior prosperidade.

O regresso à moral: tal como a orientação e os fins, o método de Erasmo opõe-se


diametralmente ao de Maquiavel. Nenhumas perspetivas sobre o Estado e escassa análise dos
móbeis do poder. A Instituição do Príncipe Cristão, como indica a palavra “instituição”, é
essencialmente uma obra pedagógica. A necessidade gera as sociedades. Os príncipes impõem-
se pelas virtudes. A autoridade é justa quando visa o bem público e quando é aceite pelos
subordinados. O reino do tirano, que governa para si contra a vontade dos súbditos, está interdito
ao príncipe cristão. Para alcançar o seu ideal, este necessita de uma formação completa, e é essa
aprendizagem moral, essa abertura de espírito através da cultura que essencialmente interessa
a Erasmo e aos seus numerosos sucessores.

“A Utopia”: Thomas More

Saint Thomas More: de Erasmo a More, a transição é fácil. Além de serem ambos
humanistas, liga-os uma profunda amizade. Thomas More, nascido em 1478, el Londres,
começou por ser jurista prático e advogado de renome. Ouvem quem sugerisse que não gostava
muito da profissão; no entanto, os rendimentos que dela tirava mostram que era ativo e hábil no
seu exercício. Humanista conversador brilhante e cheio de humor, poeta e artista, conquistou as
boas graças de Henrique VII, que em 1531 o nomeou chanceler de Inglaterra. Mas foi breve o
favor de que gozou, e que acabou por se inverter completamente. Por instigação de Ana Bolena
More foi condenado à morte por Henrique VII, em 1535. A Igreja começou por declará-lo beato,
e em 1935 declarou-o santo. É breve o papel de Thomas More na História Política. A sua influência

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junto de Henrique VIII, monarca absoluto, foi extremamente limitada até ao momento em que,
irritado com a sua resistência, respeitosa mas inflexível, o soberano o fez condenar à morte. Em
contrapartida, ocupa um lugar importante na História das Ideias Políticas, como autor da “Utopia”.

A Utopia: a palavra utopia vem do grego: “não lugar”, “lugar inexistente”, “inencontrável”.
Todas as personagens e países citados têm também nomes fantasiados que traduzem a
irrealidade, quer dos seres, quer das coisas. A capital da Utopia é Amaurota, «a cidade fantasma»,
talvez também a «cidade sombria», ou ainda a «cidade das brumas». O rio que atravessa
Amaurota chama-se Anidro, «o rio sem água». O Rei chama-se Adamos, «o Príncipe sem povo».
Os cidadãos são os Aleopolitas, ou «sem cidade». Quanto ao viajante que descobriu Utopia, More
denomina-o com humor Hitlodeu, «o Vendedor de Quinquilharia». No entanto, essa ilha
inencontrável e minuciosamente descrita. Para o efeito, More começa por recorrer ao exotismo.
Em sua casa há aves, macacos e pedras raras de que faz coleção, e o seu mundo imaginário
inspira-se em larga medida nas descobertas mais recentes. Os descobrimentos americanos serve
de pretexto à efabulação e aos pormenores pitorescos. Mas que importância tem aqui a América,
se se trata de uma ilha inencontrável? Muito simplesmente, Thomas More procura dar ao seu
relato o ponto de apoio picante de uma aventura vivida. Vespúcio deixara alguns companheiros
num forte do Brasil. Um deles regressou a Antuérpia. É uma personagem de aspeto singular, um
aventureiro dos mares com as feições curtidas e um trajo que intriga Thomas More. Arrasta o
homem para casa do seu amigo Pedro Giles e interroga-o. É Hitlodeu, «o vendedor de
quinquilharias», que na sua rota havia visitado um país desconhecido e com estranhos costumes,
a Ilha dos Utopianos. Retornou “por milagre” por Taprobana e Calecute, «onde felizmente
encontrou navios portugueses» que o repatriaram. Outro milagre é o seu encontro com Thomas
More. Mas não haverá terceiro milagre, pois Hitlodeu desaparece. Com tal guia, more poderia
ter representado uma ilha afortunada sob um Sol radioso, com florestas cheias de frutos
saborosos e mulheres selvagens seminuas. Nada disso: o autor procede, em seguida, por
transposição. Erasmo comenta: «ele descreve a Grã-Bretanha que viu e conheceu a fundo». A
Ilha da Utopia é só meio imaginária, pois contém os traços dominantes da Inglaterra. Em primeiro
lugar, a insularidade: inicialmente a Utopia estava ligada à terra por um isto, mas foi separada
pelo rei Utope I. Em seguida, uma população comparável à inglesa distribui-se por 54 cidades,
que correspondem aos 54 condados da Inglaterra. A capital fica à beira de um rio, é atravessada
por uma ponte famosa e está envolta em nevoeiro. Aliás, houve quem contestasse que Amaurota
fosse Londres e assinalasse pormenores que fazem pensar em Antuérpia. De resto, Thomas More
pode perfeitamente ter combinado aspetos das duas cidades, já que se deslocou várias vezes à
segunda em missões diplomáticas. Em todo o caso, os habitantes são ingleses idealizados:
marinheiros, colonizadores e comerciantes, positivos e contudo místicos, em certos aspetos.

As intenções de More: na verdade, as intenções do futuro chanceler não são fáceis de


destrincar. A sua personalidade é atraente, mas complexa. Por outro lado, há muitas coisas na
utopia e coisas muito diversas. More misturou críticas e louvores ao seu país, transposições e
puras invenções fantasiosas, e a tudo isso imprimiu a marca de um estilo pessoal. Espírito subtil,
matizado, cheio de humor, ele é um humanista cristão, como Erasmo, ardente de helenismo e
também de patrística. Sentimos nele duas influências em luta: a de Platão, mestre dos utopistas
da Antiguidade, e a influência mística do Santo Agostinho de A Cidade de Deus. Thomas More
pratica o regresso às fontes. «A erudição liberta da superstição». Também liberta dos
abastardamentos do catolicismo ambiente. Adversário das deformações do pensamento cristão
por obras de segunda mão e de segundo plano, vai ao ponto de hostilizar o tomismo. E é também
um censor, respeitoso mas severo, das abusos presentes da Igreja. Os Utopianos são epicuristas,
no verdadeiro sentido da palavra, pois que para eles «nenhum prazer vale a felicidade de uma

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consciência virtuosa e de um coração puro». No entanto, o futuro santo não faz deles cristãos.
Praticam a religião natural, a melhor religião possível na ausência de revelação, do que assinala a
expectativa e contém o pressentimento. Para ele, e de acordo com a conceção tradicional do
catolicismo, o homem, pela sua própria essência, tem necessariamente um valor e um papel livre
na escolha da sua salvação. No entanto, não prefere a religião natural, do mesmo modo que não
opõe a natureza a graça. Insiste vivamente numa natureza humana suscetível de grandeza,
progresso e santidade, apesar de ferida pelo pecado original. A alma conserva, com a sua retidão
primordial, uma inclinação natural para o bem e para a virtude. A isto, Thomas More acrescenta
a tolerância e a liberdade de consciência. O homem nasce para a filosofia e para a virtude; não
deve ser forçado a adquirir estes bens sem ser pelas suas disposições naturais e pelos cuidados
atentos da educação. Thomas More proíbe a propaganda de ideias que considera más, mas
permite aos crentes a discussão. Mais vale mudar os homens e os costumes que as instituições.
Mais vale reformar a vida interior do que a vida pública. Por conseguinte, More indica, sugere e
descreve. Neste aspeto, não há dúvida, que o método descritivo da utopia é bem escolhido. More
procura arrastar os espíritos no seu encalço. Quanto mais protegido estiver pela sua maneira de
se exprimir, mais longe pode chegar. De facto, Henrique VIII nem os seus conselheiros se
preocuparam com a Utopia.

As ideias políticas de Thomas More: é difícil distinguir as ideias políticas de Thomas More
das que professava acerca da família e da propriedade, embora entre estas se verifique uma
curiosa ausência de harmonia. Dá a impressão de ter sido atraído por Platão durante algum
tempo, ao ponto de admitir a comunidade de mulheres. Em contrapartida, a sociedade utópica
assenta na família e numa moral muito tradicional que, no fundo, nada tem de utópico. A
república ideal da Utopia alicerça-se inteiramente sobre a célula familiar e sobre uma conceção
patriarcal. Alarga esta autoridade de maneira a que tudo se regule e ordene no seio da família e
que só se apele à justiça pública quando a enormidade do crime exija o recurso ao Estado. Não
condena absolutamente o divórcio nem, ao que parece, o casamento do padres. Em
contrapartida, é muito severo quanto ao adultério, o único crime privado que deve ser punido
com a morte. A partir destas premissas familiares, seria muito fácil compreender que Thomas
More edificasse uma defesa da propriedade e procurasse tornar proprietários todos os seus
utopianos. Mas, a posição de More é completamente diferente. O povo da utopia é um povo de
amigos; ora, segundo a fórmula platónica, «entre amigos tudo deve ser comum». Aquilo que
Platão considerava um ideal entre amigos deve sê-lo, a fortiori, entre cristãos. A fraternidade
cristã deve levar à comunidade cristã. Por esse motivo abandona a posição tradicional dos
Aristotélicos e dos escolásticos, para quem a propriedade individual era um elemento capital da
liberdade, preferindo-lhe as teses de A República. «Preto plena justiça a Platão, e já não me
surpreende que ele tenha desdenhado fazer leis para os povos que recusam a comunidade de
bens. Aquele grande génio tinha previsto facilmente que o único meio para organizar a felicidade
pública era a aplicação do princípio da igualdade. Ora, a igualdade é impossível num Estado onde
a posse é solitária e absoluta, pois cada um arroga-se aí de diversos títulos e direitos para chamar
a si o mais que pode, e a riqueza nacional, por um maior que seja, acaba por cair na posse de um
pequeno número de indivíduos que só deixam aos outros indigência e miséria… O único meio de
distribuir os bens com igualdade e justiça, e de constituir a felicidade do género humano, é a
abolição da propriedade.» De modo a satisfazer o seu ideal de amizade e fraternidade, Thomas
More imagina então um sistema comunitário em que todos trabalham e cada um trabalha pouco.
Só ficam isentas da obrigação do trabalho quinhentas pessoas que, após seleção, se entregam à
metafísica. Naturalmente, a partir do momento em que existe comunidade de bens, a vida tem
de ser severamente regulamentada, a fim de evitar abusos. Sobre a cidade da Utopia, onde a

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regulamentação da vida atinge especial rigor, e onde reaparecem os escravos, na forma de


condenados ou prisioneiros de guerra, exerce-se uma autoridade que pode ser classificada de
“democrática”, apesar de ser amplamente eletiva. As famílias, em grupos de trinta, elegem
anualmente um chefe, designado por Filarco ou Sifogrante. Dez Sifograntes, tendo sob a sua
alçada 300 famílias, designam anualmente um Protofilarco ou Traníboro. Os 200 traníboros
constituem Senado. Trata-se, pois, de um sistema escalonado: chefes de família, chefes de grupo
e seus representantes; estes constituem o Senado que, de uma lista de quatro cidadãos
apresentada pelo povo, escolhe um Adamo, ou príncipe dos utopianos. Para evitar que os Filarcos
se constituam em oligarquia podem ser renovados todos os anos. Dois filarcos acompanham à
vez os debates do Senado. Além disso, todos os Filarcos podem reunir-se em comissão. Se od
acontecimentos o exigirem, interrogam os chefes de família. Eventualmente, poderá haver
consulta popular. Este conjunto, que forma um regime piramidal, é de estrutura democrática,
embora atenuada pela existência de um poder espiritual. Há sacerdotes eleitos, que presidem às
coisas divinas, mas tratam também de coisas humanas e desempenham as funções que, na
Antiguidade, cabiam aos censores da Cidade. Zelam pelos bons costumes e podem excluir um
utopiano da comunidade religiosa, o que constitui a maior desgraça. Os sacerdotes, tal como os
Traníboros e o Adam, são escolhidos entre os letrados, que não constituem uma casta ou classe
propriamente dita, uma vez que o seu recrutamento é aberto e há sempre a possibilidade de
devolver à procedência aquele que anda a marcar passo na metafísica. Finalmente, uma
aristocracia por seleção serve de estufa às funções religiosas e públicas. De democrático, o regime
torna-se aristocrático, devido à exigência de recrutamento no quadro dos letrados. A eleição é
livre, sem manobras e sem candidatura. Enfim, as leis são simples, fáceis de compreender e de
aplicar. «De resto na Utopia todos são doutores em direito, pois as leis são em muito pequeno
número e a sua interpretação mais tosca e mais natural é aceite como a mais razoável e justa».

A Utopia como método político: o êxito da obra foi enorme. Atualmente há quem pense
que a Utopia se não é a melhor das Repúblicas, é a melhor das Utopias». Muitas das razões da
popularidade de outrora surpreendem-nos, mas a amplitude do contributo do autor é digna de
apreço. Em primeiro lugar, foi criada um palavra nova, que se tornará e permanecerá corrente.
Poder-se-ia muito simplesmente ter traduzido “Utopia” por “A ilha Inencontrável”. De facto, o
termo utopia tornou-se substantivo comum. Depois, sob o céu da ficção, Thomas More dotou a
política de subtis instrumentos de discussão e prospeção. As características essenciais do método
utópico consistem em dourar alhures, com um pressuposto otimista, tudo aquilo que por cá se
deplora, com um pressuposto crítico, cético ou pessimista. Têm todos uma só ideia: fugir ao
imediato, ao quotidiano, ao limitado, ao repetido. Não há política sem imaginação. Esta é
necessária para pressentir o futuro, para superar o real. Não há obra de doutrina sem alguma
antecipação e, por conseguinte, sem um grão de utopia. Os utopistas são os que, por princípio,
deixam à rédea solta ou, mais exatamente, sistematizam aquilo que imaginam dando-lhe a
consistência do real.

OS REFORMADORES E OS REFORMADOS

Martinho Lutero

Dos humanistas católicos aos reformadores protestantes: segundo a tradição, é costume


chamar a Thomas More e ao seu migo Erasmo “humanistas cristãos”. Mas em breve a palavra
“cristãos” passará a designar os que se separam de Roma. Ora, Erasmo, embora pregue a filosofia
de Cristo, a religião do espírito, embora reprove vivamente o relaxamento dos costumes e a

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materialização de certas atividades eclesiásticas, embora seja a favor de uma disciplina mais
liberal, não deve ser considerado, como alguns desejariam, um percursor do liberalismo, e ainda
menos do livre pensamento. É essencial compreender que, com Erasmo e More, as críticas se
movem exclusivamente no interior do catolicismo romano. Erasmo acha que a condição prévia
absolutamente necessária ao triunfo da filosofia de Cristo é «permanecer no seio da Igreja,
trabalhá-la constantemente a partir de dentro, mas sem brutalidade nem tumulto – e nunca se
apartar ou dela se deixar expulsar por meio de uma rutura violenta…» A atitude de More é
idêntica. Esta razão por que é necessário fazer uma clara distinção, na história das ideias políticas,
entre os humanistas cristãos e aqueles que vão aceitar, se não provocar, a rutura: entre os
reformadores e os reformados.

Etapas de uma rutura: Lutero nasceu em 1483, em Eisleben, na Turíngia, oriundo de uma
família de mineiros pobres. Os seus biógrafos insistiram com frequência no que a sua juventude
teve de triste e infeliz. Apesar disso, conseguiu estudar em Erfurt. Depois, na sequência de
estranhos acidentes e do risco de ser fulminado por um raio durante uma tempestade, professa
nos Agostinhos e em 1507 é ordenado sacerdote. Muito em breve se torna conhecido e passa a
ser professor na nova Universidade de Wittenberga. É ai que recebe o choque da famosa “venda”
de indulgências. Nessa altura, em 1517, mostra o seu desacordo, se não com Roma, pelo menos
com as práticas de Roma, em 95 proposições que afixa à entrada da igreja do Castelo. Em 1520
rompe definitivamente. No dia de Natal, queima a bula do Papa. Banido do Império pela Dieta de
Worms, é obrigado a esconder-se em Wartburg, nos arredores de Eisenach, depois de ter sido
misteriosamente raptado por quatro cavaleiros. Quando a reforma conquista parte da Alemanha,
recupera a liberdade de movimentos. No refúgio tinha traduzido a Biblia, produzindo assim um
dos primeiros grandes textos religiosos em língua alemã. Um pouco contra a sua vontade, nasceu
a doutrina nova, designada por luteranismo a partir do seu nome, mas cuja sistematização, em A
Confissão de Augsburgo. Morre em 1546, ao mesmo tempo triunfante e desesperado. Triunfante
porque a nova Igreja, por ele instituída, está bem implantada na Alemanha; desesperado porque
o seu temperamento angustiado não lhe consente repouso e porque a Igreja que se constituiu
está, sem dúvida, muito longe da que tinha sonhado.

Os escritos políticos: a obra de Lutero é muito extensa. Ao todo, uma verdadeira


biblioteca, a que se juntou outra ainda mais vasta, constituída por tudo oque foi escrito a favor e
de contra Lutero. Nesta massa de escritos, destacar o contributo do escritor propriamente
político não é muito fácil. Pelo menos três causas dificultam a compreensão do seu pensamento
nesta matéria. A primeira é que Lutero não aborda diretamente o problema político. Lutero não
aborda o problema político na perspetiva das relações entre Igreja e Estado. Este só lhe interessa
na medida em que é uma consequência prática das suas posições espirituais. A segunda
dificuldade ao conhecimento do pensamento luterano em matéria política é a ausência de síntese
e, a fortiori, de sistema. Não é um Doutor, nem um teólogo, nem um profeta». O terceiro
obstáculo decorre imediatamente do anterior. Lutero é também um polemista e exprime-se em
textos que, mais do que tratados, são panfletos. Encontramos nele todo o ardor da disputa,
acompanhado do verdor da língua e do estilo. É evidente que lhes junta a ciência, o trabalho e a
erudição, mas distinguir entre o que é contingente e o que é duradouro é tão difícil como
diferenciar o que é político do que o não é. Contudo, Lutero é protagonista do poder civil. De um
modo indireto, mas não menos eficaz, acabará praticamente por exaltar o Príncipe e o poder civil.
«Outrora o Papa e os clérigos eram tudo, dominavam tudo, dirigiam tudo, como Deus no mundo,
e o poder civil jazia nas trevas, oprimido e desconhecido. Tenho a glória e a honra pela graça de
Deus – agrade ou não a Satanás e às suas “escamas” (sequazes) – que desde o tempo dos
Apóstolos, nenhum doutor, escritor, jurista ou teólogo tenha tão magnifica e claramente

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instruído a consciência dos poderes seculares, nem tão bem os tenha consolado.» Se, ao exprimir-
se assim, peca contra a modéstia, não se pode dizer que peque contra a verdade. Com efeito, o
poder civil foi por ele tão bem instruído da sua importância e de tal maneira «consolado» que
acabou por tornar-se uma causa de aflição para outros.

A exaltação do poder civil: quando se gaba de ter dado à autoridade civil o sentimento
do seu ofício chega lá por duas vias: uma via direta que é a exaltação do poder civil, e uma via
indireta, que é a liquidação do poder religioso ou eclesiástico em matéria civil ou mista. O
primeiro itinerário vem indicado, designadamente, num ópusculo de começos de 1523, Da
autoridade Secular, e até que ponto se lhe deve obediência. Como todos os escritores cristãos,
Lutero faz referência à Biblia, à epístola de São Paulo aos Romanos e à de São Pedro, em que se
afirma o dever de obediência dos súbditos ao príncipe. Já os comentários são próprios dele e
trazem a marca da sua conceção do mundo terrestre e do mundo celeste. Entende que a
autoridade é necessária, já que os filhos de Adão se separaram em duas partes, aliás, muito
desiguais: os que pertencem ao Reino de Deus e os que Têm o Espirito Santo no coração, por isso
o seu comportamento não pode deixar de ser virtuoso Mas há outros que estão votados ao
pecado. A visão de Lutero é, à sua maneira, tão pessimista como a de Maquiavel. O mundo em
que vivemos «é um albergue onde o Diabo manda juntamente com a patroa». A corrupção é
natural neste mundo, por ser consequência do pecado original. Por sua vez, gera como
consequência a existência do poder. Um povo de santos, um povo de eleitos, não precisaria de
autoridade. Viveria na anarquia, sem autoridade. Pelo contrário, o estado de pecado, em que se
rebola a maior parte da humanidade, exige que um Príncipe imponha ao mal, como faz o domador
ao animal selvagem e mau. Neste ponto, a conceção de Lutero opõe-se claramente à dos tomistas.
Também para eles, o Estado ou o Príncipe são uma necessidade natural, mas em São Tomás a
coerção fica em segundo plano; o poder político é um poder de direção que visa o bem comum
temporal. Para Lutero, o Estado é essencialmente um poder de repressão. Num mundo
corrompido, é inevitável um elemento coercivo. Este deve estar bem armado e, em caso de
necessidade, bater com força. É por isso que Lutero prefere falar do “gládio”, e não do Estado ou
do Príncipe.

O gládio único: A Idade Média usou constantemente a imagem simbólica dos “dois
gládios”. Para Lutero já só há um, que está inteiramente nas mãos do poder civil. E é no gládio,
instrumento de repressão e castigo, que, se resume o poder. O uso da força, o uso da espada,
parece-lhe absolutamente indispensável. Pode até dizer-se que não lhe causa apenas um deleite
sombrio, mas um certo entusiasmo na maneira de encarar o papel do verdugo. «Archeiros,
verdugos, juízes, advogados são os instrumentos da força e do gládio.» Longe de condenar a sua
ação, é preciso exaltá-la, contra os pecadores. Há uma espécie de cadeia infinita de pecados e
sanções, de sanções e pecados: o crime atrai o castigo, o mal atrai o arrependimento. Se o
Príncipe é um tirano, se é cruel e sanguinário, a culpa é do povo. Os homens têm os príncipes que
merecem. O Príncipe é o instrumento das vinganças divinas não só junto do seu povo, mas
também junto dos vizinhos com quem entra em guerra. Crimes coletivos exigem sanções
coletivas. Considera a guerra divina. Lutero faz dela uma punição divina que deve ser conduzida
com vigor, se não com ferocidade. Os valetes que saqueiam Roma mais não fazem que castigar a
grande prostituta pela sua luxúria e cupidez.

A desinstitucionalização do poder religioso: Ministro do castigo, o Príncipe estende o seu


domínio aos corpos e bens. Em contrapartida Lutero reclama a liberdade da alma. Sobre a alma,
Deus não pode nem quer deixar reinar ninguém além dele. E o reformador dirige-se ironicamente
aos senhores laicos e eclesiásticos: «Os nossos donzéis, príncipes e bispos, devem saber quão

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loucos são ao tentarem obrigar as pessoas a acreditar forçar ninguém a acreditar. Por isso, Lutero
clama: os sentimentos não passam na alfândega. Ao proclamar a rigorosa independência das
almas, Lutero deveria afirmar a impossibilidade de uma Igreja de Estado; no entanto, o
luteranismo levará à sua formação. O que ele combate com especial vigor na Igreja católica é um
poder espiritual organizado segundo o protótipo temporal. A sua obra consiste numa espécie de
sublimação do poder religioso, numa desencarnação deste. São numerosas as passagens do
Evangelho que pode invocar a seu favor. «O meu reino não é deste mundo», repete
frequentemente Cristo aos discípulos, que não compreende por aí além o que quer ele dizer. Mas
Lutero compreendeu A Igreja não pode ser outra coisa senão uma sociedade exclusivamente
espiritual, um «Corpo Místico» segundo a teologia pauliana. Não deve encarnar, sob pena de
modificar a sua natureza ao formar uma sociedade humana hierarquizada. Por aqui se vê o
enorme alcance de uma posição que, no centro, nega a construção medieval e repudia, como
algo contra a corrente, tudo o que a Idade Média pôde erigir como sua obra predileta, a
institucionalização da Igreja, começada à saída das catacumbas e prosseguida com êxito após a
pax Constantini. A esta igreja visível, organizada e hierarquizada, que exerce atribuições públicas
de caráter estatal em várias matérias, a teologia luterana contrapõe uma unidade puramente
espiritual e mística, «um reino do espírito que não pode ter outro chefe além de Cristo, que não
pode ter um soberano de carne, nem príncipes exteriores e formais». Assim, para Lutero, a
sociedade religiosa opõe-se ao Estado, acerca do qual as suas ideias são, aliás, bastante
incompletas. Ela é, por essência, uma sociedade não organizada e não autoritária, onde todo os
fiéis podem ser padres e o sacerdócio é universal. «Os cristão não podem conhecer outro
superiores além de Cristo», e a Igreja é coisa exclusiva de Deus. Nestas condições, acaba por
desaparecer como organização social.

A missão dos Príncipes: mas Lutero não pode impedir que o cristão entre em contacto
com as coisas da cidade. Se os crentes se apresentam à porta da cidade, nessa altura têm de
aceitar as suas leis. Existe, assim, ao lado dessa igreja, sem organização, uma cristandade exterior
que é como que o reverso, e que necessita de uma estrutura. A hierarquia católica conseguira-o:
organizara a cristandade exterior, que era a administração da Igreja. Para Lutero, tal construção
foi um trabalho de corrupção. A Igreja incumbiu-se de funções secundárias que corromperam a
pureza da sua missão. Agora, não se devia recair no mesmo erro através de uma construção nova
e que seja, então, confiada à organização terrestre já existente. Aliás, os Príncipes são
normalmente chamados a esta missão, pois se a Igreja é uma sociedade de almas, sem hierarquia,
não é possível recusar-lhes o direito de fazerem parte dela como os demais cristãos No entanto,
ocupam uma posição preponderante. Através de uma interpretação das declarações de São Paulo
sobre a variedade de graças e funções na Igreja, Lutero entende que os Príncipes estão bem
qualificados para assumir a direção dos assuntos no plano humano. Sendo assim, deve ser-lhes
entregue a organização da vida exterior da Igreja. Esta atitude adquire especial nitidez a propósito
da questão da visita às Igrejas. Por uma preocupação de pureza, a parcela terrestre da atividade
da Igreja é subtraída à sua gestão. Se fosse ela a encarregar-se disso, tornaria a cair no erro
medieval. Por sorte, tem a possibilidade de recorrer aos Príncipes, os quais gozarão de plena
competência quanto às manifestações exteriores do espiritual. «Não há que duvidar do dever,
que cabe aos Príncipes, de punir os crimes públicos, as ofensas públicas, as blasfémias notórias.»
A partir do momento em que uma manifestação do espiritual se torna exterior, cai sob a alçada
do Príncipe. «A autoridade não tem que punir a opinião, mas a autoridade combate a
publicidade.» «O dever da autoridade secular é fazer com que não haja divisão, perturbação ou
revolta entre os súbditos.» Se o Príncipe deve impedir a divisão, perturbação e revolta entre os
súbditos, a partir do momento em que haja duas doutrinas em confronto, terá competência para

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eliminar uma delas, a fim de evitar a perturbação e pôr termo à divisão. E assim, passo a passo,
se chega à exclusividade do poder do Estado sobre as coisas religiosas, desde que estas adquiram
um aspeto exterior. Ao penetrarem na cidade terrestre, as consciências “pagam taxa alfandegária”
e devem submeter-se exteriormente. Sem dúvida, permanecem livres no seu foro íntimo. Mas
não há liberdade de consciência no sentido jurídico do termo, já que o Príncipe, para prevenir a
divisão, para travar antecipadamente a sedição, pode proibir a expressão de opiniões dissidentes.
É algo que se afigura especialmente grave. A liberdade humana nasceu o dia em que as coisas de
César e as coisas de Deus foram separadas, no dia em que o totalitarismo antigo foi quebrado
pela palavra de Cristo. Ora, Lutero abandona deliberadamente esta grande conquista do
Cristianismo. Em suma, dá a César tudo o que é deste mundo, sem reservar as coisas de Deus;
por causa desse gesto, a sua doutrina põe termo, não só aos excessos do sacerdotalismo, mas
também ao dualismo Igreja-Estado, conceção fundamental do catolicismo romano.

Preferências políticas de Lutero: uma vez afastada a divisão maior entre os poderes é
descabido considerar divisões menores no exercício do poder político. O monarca luterano,
agente executor das vinganças divinas, não aceita que lhe imponham limites. Ao transpor os que
lhe são ditados por uma consciência cristã, está a garantir a repressão do pecado. Por conseguinte,
ainda que a sua conduta, em si, seja condenável, não o é no plano das consequências, justificadas
pelo seu papel quanto à punição das faltas à lei divina. Lutero, apesar de partidário de um poder
forte e monocrático, é adverso aos reis. Discute com Henrique VIII de Inglaterra e Carlos V é seu
inimigo declarado. No entanto, seria errado fazer de Lutero um campeão das teorias
aristocráticas, como em breve o serão os calvinistas. Houve quem as comparasse à sua teoria da
graça. Se a predestinação divide os homens em eleitos e réprobos, os Príncipes serão duplamente
predestinados. Privilegiados por nascimento, conhecerão também as vantagens da fortuna
temporal. Na realidade, o regime que mais agrada a Lutero não é um regime aristocrático no
sentido de uma oligarquia de nascimento. Ele aspira a uma pluralidade de monarquias, a um
particularismos do Príncipe. É arrastado pelo seu ódio ao universalismo medieval e também pelo
facto de terem sido os Príncipes a garantir o êxito da religião formada. Já a sua hostilidade a um
governo do povo é evidente. Quando da revolta dos anabatistas e por ocasião das “jacqueries”
que ensanguentam a Alemanha e parte da Europa Ocidental, reage violentamente. Nenhum
castigo é suficientemente grande para estes tristes indivíduos: «Caros senhores, livrai-nos, ajudai-
nos; salvai-nos; exterminai e que aquele que tem o poder, atue», proclama contra as hordas
homicidas e saqueadores de campónios. «O poder civil, ministério da cólera divina sobre os
maus… não deve ser misericordioso… pois a sua insígnia não é um rosário ou uma flor de amor,
mas uma espada nua, símbolo de cólera, rigor e castigo.» Nenhuma revolta é justa qualquer que
seja o motivo, pois no fim de contas a rebelião é sempre dos homens contra Deus, já que o Senhor
disse «a vingança pertence-me». O mesmo é dizer que a “jacquerie” é um crime de lesa
majestade divina; longe vai o tempo em que «a autoridade secular jazia nas trevas, oprimida e
ignorada». Se formos além destes factos circunstanciais, verificamos que, o fundo, ele ignora o
Estado como comunidade de cidadãos. A sua conceção do Estado é muito parcelar e muito parcial.
Tudo o que ele conhece é a autoridade de um lado e os súbditos do outro. Baseia-se também na
atitude dos primeiros cristãos, que têm pela frente a autoridade externa de César. Uma vez mais,
abandona tudo o que constituíra o precioso contributo da Idade Média e reduz o Estado ao poder
e o poder à repressão. Dos atributos dos príncipes medievais, a mão da justiça e o gládio, só retém
o segundo.

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João Calvino

De Lutero a Calvino: Jean Chauvin, chamado mais tarde Calvinus (109-1575), não passa,
para alguns, de um adaptador feliz de Lutero, um francês que soube traduzir com clareza a
torrente de ideias confusas e profusas do reformador alemão. Na verdade, há diferenças de
tempo, de meio, de temperamento e de estilo, que certamente influem nos desfasamentos entre
as respetivas ideias políticas. Calvino pertence a outra geração. Desenvolve as suas ideias
religiosas no âmbito de uma sociedade política onde o processo de instauração do regime de
Estado já vai bastante adiantado. A estrutura do Sacro Império Romano-Germânico era fraca, tão
fraca que, na altura em que Carlos V se encontrava no auge da sua glória, bastaram quatro
cavaleiros do Eleitor de Saxe para que Lutero lhe escapasse. Ao invés, Calvino acha-se perante a
monarquia francesa, que nos reinados de Francisco I e Henrique II adquire as formas e forças de
um Estado moderno. Esse Estado soube resolver as suas dificuldades com Roma. Lutero é um
planfletário fogoso que se exprime com veemência e se entrega constantemente a ataques
sociais; possui um temperamento de publicista ou de jornalista. Calvino é jurista de formação.
Estudou na Faculdade de Direito de Orleães, onde recebeu lições notáveis de que nunca se
afastará. Ao passo que Lutero se dispersa numa multitude de escritos. Calvino constrói a
Instituição Cristã, livro excecional. O plano segue uma sábia gradação onde cada capítulo,
logicamente ordenado, é também logicamente enquadrado, coisa muito diferente do caos de
prosa em que se debate Lutero.

A Instituição Cristã: a obra é pela publicada pela primeira vez em Latim, em 1536. Calvino
tem apenas 27 anos, acaba de concluir os estudos e de repente apresenta uma exposição se
falhas do pensamento protestante. Na primeira edição, havia um capítulo, o sexto, dedicado à
liberdade cristã, ao poder eclesiástico e à administração civil. De acordo com os usos, Calvino
dirige o livro a um Príncipe. A dedicatória a Francisco I está impregnada de submissão ao Príncipe
legítimo, mas, ao mesmo tempo, isenta daquela espécie de servilismo tão frequente neste género
de escritos: «Ao mui alto, mui poderoso e mui ilustre Príncipe Francisco, Rei de França, mui cristão,
seu Príncipe e soberano senhor, João Calvino»; esta maneira de saudar um Rei é já a de um
homem livre e quase já de um cidadão. «Paz e saúde e Deus, que o Senhor Rei dos Reis queira
assentar o teu trono em justiça e a tua sede em equidade, mui forte e mui ilustre Rei.» A
legitimidade da autoridade real é assim reconhecida. Os Reformados são bons súbditos e só
pedem que os deixem continuar a sê-lo.

Autoridade temporal e liberdade cristã: o equilíbrio entre a autoridade temporal e a


liberdade cristã resulta da distinção previamente feita por Calvino, entre as coisas espirituais
conhecidas pela graça e pelas Escrituras e as coisas terrestres conhecidas pelo entendimento
humano. Na primeira categoria desta encontram-se a doutrina política, depois a maneira de bem
governar a casa e as artes mecânicas, por fim a filosofia e as disciplinas liberais. As realidades
terrestres estão sujeitas à Lei de Deus. O mandamento invocado é o quarto: «Honrarás pai e
mãe.» «É preciso que se faça o mesmo juízo acerca dos nossos príncipes, senhores e superiores.»
Retoma assim o axioma pauliano, «todo o poder vem de Deus», mas junta-lhe uma restrição que
posteriormente terá quase tanta importância como o princípio em si: o poder só existe para
conduzir os homens segundo Deus. Ora, para Calvino já não há Igreja nem cristandade. As
consciências resgatadas pelo sangue de Cristo estão doravante libertas e isentas do poder de
qualquer homem. No entanto, depois de distinguir duas ordens no mundo, ou dois domínios no
homem, um dependente da Bíblia, palavra de Deus, e o outro da ordem das sociedades, Calvino
admite que a liberdade espiritual pode perfeitamente coexistir com a servidão civil. Mas não
extrai daí qualquer condenação da ação social e política. Neste ponto, as suas posições são muito

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diferentes das de Lutero, reconhece a humildade por fins da sociedade civil. Mas esta
mediocridade não a torna desinteressante para os cristãos. Do mesmo modo, no plano
económico, o calvinismo não desprezará de modo nenhum os negócios. Até se dedicará à
indústria, e o êxito obtido neste domínio será geralmente entendido como um sinal da bênção
divina. A vida pública pode ser considerada necessária e válida em si. Ao analisá-la encontra dois
três elementos:

1. O magistrado é a autoridade fundamentada em Deus, não só pelo Novo Testamento, a


partir da declarações de Cristo e dos apóstolos Pedro e Paulo, mas por toda a Bíblia.
Porém, em relação ao Magistrado, preconiza o lealismo do povo;
2. A lei é por ele definida como o “magistrado mudo”. No entanto, o valor da lei não vem
da autoridade que a promulga: vem da sua conformidade com a vontade razoável de
Deus, que deve ser presumida. Uma vez mais apela ao lealismo, agora temperado por
uma noção de equidade que ganhará uma importância considerável com os seus
sucessores;
3. O povo, sujeito ao magistrado e à lei, é o elemento passivo. Ordena-lhe que obedeça,
não só por temor, mas por consciência e por amor. O Príncipe é, por si, benevolente, e
tudo o que há a fazer no caso de o Rei ser injusto e mal informado, é apelar ao Rei justo
e bem informado.

Retorna a cada instante ao lealismo. Leva-o ao extremo ao proclamar o dever de obediência aos
magistrados, ainda que maus, pois é de presumir que o seu comportamento é bom. Classifica-o
então de “lealismo heróico”.

A Cidade-Igreja: é preciso não ignorar que a instituição genebrina da Cidade-Igreja é tão


importante para Calvino como a Instituição Cristã. No seu perímetro vai gerar-se uma confusão
que não fazia prever: a amálgama entre sociedade política e comunidade religiosa. “Cidade-
Igreja”: imediatamente vem à ideia o regime teocrático de que tantas vezes se fala a propósito
de Genebra. Por um lado, Calvino não é um grão-sacerdote; por outro, não detém qualquer poder
civil. Bibliocracia é a palavra certa. É a palavra de Deus, inscrita na Bíblia – mas traduzida,
comentada e explicada por Calvino – que rege e propulsa toda a vida da Cidade. A princípio, as
instituições ético-jurídicas e as inspirações suscitadas pela leitura de Livro Santo influenciam e
galvanizam de algum modo o corpo pastoral. Depois, por meio do consistório, penetram toda a
cidade. O consistório, um corpo original, é formado por Doutores, quer dizer, por Pastores, e
Antigos, ou seja, notáveis. Os seus poderes são extremamente vastos: prepara regulamentos, zela
pelo culto, estabelece as orações e os jejuns públicos, deteta e sanciona as faltas à unidade de fé
imposta a todos os genebrinos. Para levar a cabo estas tarefas, que lhe dão um direito de controlo
em toda a parte, dispõe de meios poderosos, um dos quais é a recusa da Santa Ceia. Aquele que
não lhe é admitido duas vezes seguidas deixa de pertencer à Igreja, logo à cidade. Os seus órgãos
são democráticos na forma e aristocráticos no fundo. Além disso, à exceção do consistório, não
têm real importância, uma vez que Calvino, pelo facto de interpretar a Bíblia, dirige toda a Cidade.
Há uma espécie de fluido magnético que parte do Profeta e anima o conjunto da magistratura e
do povo. Se alguém entra em desacordo com ele, muito rapidamente é desautorizado pelo povo
em conjunto. A realização da Cidade-Igreja tem grande importância como facto histórico, mas
ainda porque Calvino a apresenta como modelo. Erige-se como uma espécie de «luminária a que
todas as Igrejas erguidas na reforma cristã podem vir buscar exemplo. Também serve de
testemunho aos infiéis da nossa ordem e religião».

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AS POLÍTICAS CATÓLICAS

A Escola: Vitória e Suarez

Personalidade e originalidade de Vitória: Vitória e Suarez representam a tradição


escolástica no que esta tem de melhor, ao mesmo tempo que constituem glórias da Escola
espanhola de direito natural. Tendo nascido por volta de 1480, na cidade de que adotou o nome,
Francisco de Vitória recebeu formação intelectual francesa. Viveu 16 anos em Paris; foi aluno e
depois mestre no colégio de Santiago. Regressou a Salamanca, onde se tornou professor da
“Cátedra primária” da Teologia. Devido aos estudos franceses, ao apego a Erasmo, às viagens e
contactos pessoais, Vitória revela-se muito aberto aos problemas do seu tempo, aliando com
felicidade a cultura humanista ao pensamento escolástico. Reconduz este às suas origens e aos
seus verdadeiros mestres, incluindo Aristóteles e São Tomás de Aquino, que muitos tinham
deixado de estudar diretamente. Deste modo, substitui a leitura do Livro das Sentenças pela
leitura da Súmula. Por outro lado, acompanha a atualidade. Também pelo método de exposição,
Vitória é um inovador. Os seus antecessores, religiosos ou padres como ele próprio, tendiam a
comportar-se na cátedra de uma universidade quase da mesma maneira como se comportavam
no púlpito da Igreja, proferindo sermões ou homilias. Vitória, dotado de um espírito mais rigoroso,
introduziu o regime dos ditados, que os estudantes de Salamanca acolheram com enorme
progresso. As suas Relectiones Theologiae foram elaboradas com o máximo cuidado, num latim
de humanista que confere à prosa uma medida igual de firmeza e eloquência.

Continuação do Tomismo: Vitória não dá a impressão de grande novidade em relação a


São Tomás de Aquino, importante fonte de inspiração de Vitória. Aí se encontra a afirmação,
proveniente de Aquino, segundo a qual o poder de impor leis a outro homem não pertence a
nenhum homem, e de que os homens são naturalmente livres de atribuir o poder como bem
entendem. Neste aspeto, os dois teólogos fazem coincidir exatamente o nascimento de Estado e
do poder atualizado sem conceberem, ao contrário de Suarez, um período de democracia
primitiva em que o povo, dono do poder, teria podido retê-lo à sua vontade. Apesar disso, não
esconde as suas preferências. Contesta que haja mais liberdades nas repúblicas do que nas
monarquias. Por outro lado, insiste nos argumentos habituais aos escolásticos, o que equivale a
dizer que é favorável à monarquia, única maneira de evitar que a unidade do poder fique à mercê
de dissensões e partilhas entre o governo. No entanto, Vitória entende que a decisão sobre a
forma de poder deve ser maioritária. Vai ao ponto de construir uma teoria da maioria, em que
rejeita a obrigação de unanimidade. Recusa também as decisões que o soberano tomou sem
conselho, designadamente sobre a guerra. Embora ache perigoso que se preste contas dos
assuntos públicos a todo o povo, entende que só com pleno conhecimento de causa, e não sob
pressão, o Príncipe deve tomar uma decisão que poderá vir a ser funesta a tanta gente.

Suarez e a perfeição escolástica: Este jesuíta, espanhol, é um verdadeiro escritor político.


Em São Tomás de Aquino, as tomadas de posição não tinham ultrapassado o nível fragmentário.
Os argumentos teológicos e filosóficos continuavam a entrecruzar-se e a misturar-se
incessantemente. Só se diferenciam e ordenam em Suarez, que, longe de se limitar a enunciados
escolares, como o são geralmente os da Escola, participa a título pessoal nas grandes
controvérsias. Nascido em granada, em 1548, Suarez começa por ser jurista e jurista vai continuar
até ao resto da sua via. Ao tornar-se jesuíta, com entusiasmo mitigado, transformar-se-á numa
das glórias da Companhia. Com uma longa atividade de professor, nomeadamente em Salamanca

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e Roma, acabará por se retirar para Lisboa. Em 1617, este grande trabalhador alcança finalmente
o repouso que tanto merecia, ao proferir a frase: «Não sabia que era tão bom morrer.» O Papa
Benedito XIV chamou-lhe Doutor eximius, douotor eminente. Segundo Bossuet, vemos nele toda
a Escola. Suarez é o autor de um importante Tractatus de legibus ac Deo legislatore, em que
expõe a sua conceção do Estado na perspetiva da lei. A teoria por ele formulada é muito bem
acolhida e contém já certas observações sociológicas.

O poder segundo Suarez: para Suarez, o Estado é uma «comunidade perfeita». O critério
seguido é a capacidade do Estado para possuir um governo político. A ideia aristotélica renasce
aqui em toda a sua pureza. Necessário à sociedade perfeita, o poder que a governa é, como a
própria sociedade, de direito natural. De acordo com a natureza das coisas esse poder não reside
em nenhum homem em particular, mas sim nos homens em conjunto. Os homens nascem
naturalmente livres; nenhum deles possui naturalmente direito sobre os outros. A jurisdição
estabelecida sobre outrem vai decorrer apenas do direito positivo. Só este institui a jurisdição do
homem sobre o homem. Deste modo, Suarez demarca-se dos teólogos que baseavam a primeira
autoridade no principado de Adão. Com muita clareza e pertinência, explica que Adão recebeu o
poder de chefe de família, mas não de chefe de Estado. Logo, o poder político só começa no
momento em que, ultrapassado o estádio familiar, se atinge o estádio cívico, com várias famílias
a organizarem-se em comunidade perfeita. O poder, que não reside no homem em particular,
reside nos homens considerados coletivamente. Aqui, Suarez distingue dois tipos de ordens, uma
ordem de justaposição, que é puramente material, e uma ordem moral, que é uma ordem de
integração. Logo que a coletividade é integrada ou deseja sê-lo, deve haver uma cabeça, um chefe,
a zelar pelo seu bem estar e a presidir à sua marcha. A coletividade não é uma universalidade de
homens. Suarez admite como um dado da história, aceite pela razão, a divisão do género humano,
que constitui uma massa demasiado extensa para um só governo. A comunidade política pode
ser perfeita sem ser universal. Assistimos ao abandono do tormento do universal, que marcava a
Idade Média, e à aceitação do facto do Estado nacional. No entanto, os homens só por si, não o
compõem plenamente, pois falta a autoridade que vem de Deus. Suarez retoma o provérbio
paulino, nula potestas nisi a Deo, mas distingue a ação de Deus das preparações humanas. O dom
do poder, feito por Deus aos homens, é uma exigência dos elementos humanamente constituídos.
Suarez insiste vivamente no caráter humano da atribuição deste poder. Suarez, que representa a
tradição autêntica da escolástica, reduz à superfície essa intervenção ao mínimo, ao mesmo
tempo que em profundidade leva ao máximo a sua intensidade. O homem tem um papel
importante na preparação do ascenso ao poder e na colação do poder. Inteiramente provindo de
Deus, como um atributo da natureza, essencial à natureza, o poder só ganha existência efetiva se
os homens estiverem previamente unidos e prontos a formar uma comunidade perfeita. Os
homens preparam o corpo político. Deus informa-o, no sentido escolástico do termo,
concedendo o poder. Em termos de teoria geral do Estado, os homens formam o meio político –
território e população – e determinam também as instituições políticas. Mas, entre Deus e os
homens, o princípio do poder vem de Deus. Se os homens não tiverem estabelecido previamente
a comunidade perfeita, não há sociedade política, não se forma Estado e o poder não é conferido.
Suarez compara o Estado ao lar: «Tal como, no casamento, é necessário o acordo prévio das
vontades para que nasça a sociedade e, a seguir, a autoridade marital.»

O proprietário do poder: por conseguinte, a sociedade, criada pelos homens e informada


pelo poder de origem divina, é depositária inicial do poder. Que pode ela fazer? A coletividade
pode conservar o poder que acaba de surgir no seio da sociedade. Mas a retenção do poder pela
coletividade não é suscetível de durar, quanto mais não seja porque, enquanto coletividade, ela
precisa de uma direção unitária. A coletividade pode transferir o poder como bem entender.

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Assim sendo, o modo de governo não é direito divino, nem de direito natural, ao contrário do
poder, mas de direito positivo. Todo o poder, detido por um ou por vários, consoante o governo
é monárquico, oligárquico ou democrático, vem imediatamente dos homens. «Nenhum rei,
nenhum monarca, tem ou teve, segundo a lei ordinária, o principado político imediatamente de
Deus, ou por ato de uma instituição divina, mas por meio da vontade ou da instituição humana.»
«Segundo a lei ordinária» opõe-se ao caso extraordinário de Israel, que, de acordo com a Bíblia,
recebeu diretamente os seus chefes das mãos de Deus. Por conseguinte, é sempre indispensável
uma intervenção social para a atribuição da autoridade. Suarez concebe dois modos: um a que
chama contratual, e o outro quase contratual (do texto latino: vel contractu aut quasi contractu
humano), Por quase contrato, o consentimento social é dado tacitamente pouco a pouco, de
acordo com o crescimento gradual do povo. O Estado, sociedade perfeita, nasce do aumento do
número de famílias, que faz com que a autoridade paternal deixe de ser adequada. A submissão
filial prolonga-se, mas transforma-se num consentimento cívico, o qual pode ser dado pelo
costume, através do comportamento dos cidadãos. Neste caso, existe coincidência entre o
nascimento do poder real e o nascimento da sociedade perfeita ou Estado. Por contrato, o
consentimento social é dado através de um ato voluntário e explícito. A uma sociedade já
formada, uma sociedade natural, atribui-se um rei. Há, então, uma espécie de pacto social.

A democracia primitiva: esta transferência não é indispensável. A sociedade poderia


guardar o poder para si. Acaso não admite Suarez a existência de uma democracia primitiva que
seria de instituição natural? E não seria esta, por conseguinte, o regime mais próximo do direito
natural? Neste ponto é muito subtil. Distingue entre um direito natural positivo, que prescreve,
e um direito natural negativo, que se limita a conceder, sem prescrever. A situação encarada não
se opõe ao segundo. Mas, quanto ao primeiro, Suarez conclui que a democracia primitiva nunca
se manteve e que em toda a parte houve uma transferência do poder, por parte da comunidade,
para um rei, para nobres ou para magistrados eleitos.

O interesse prático do problema: se a comunidade pode conservar-se ou transferir poder,


também poderá retomá-lo, guardá-lo ou transferi-lo novamente. Jaime II acusa: «Um poder
revogável a qualquer momento seria limitado e instável.» Com grande pertinência, Suarez
responde que o direito positivo não é o mesmo que nada; cria títulos à manutenção do poder tal
como foi atribuído e direitos à sua transmissão; comporta poderes suficientemente vastos. Assim,
o Príncipe pode exercê-lo em condições de plenitude e duração eficazes e salutares. Os direitos
do rei assentam tanto na equidade natural como no pacto. Por conseguinte, embora por natureza
continue a ser proprietária do poder, a comunidade não pode, a partir do momento em que o
confia, retirá-lo sem razões muito válidas. A primeira dessas razões é a extinção da dinastia. Há
então um direito de retorno, que Suarez considera incontestável. O segundo justo motivo
verifica-se quando o ato de fundação, o pacto mutuo, é violado: quando o rei se torna tirano. Não
condena fortemente o tiranicídio, mas trata-se de um extremo detestável. Em primeiro lugar,
deve recorrer-se à resistência, depois à deposição. E uma e outra obedecem a condições
rigorosas:

 A resistência deve ser geral. Não deve ser um fenómeno individual. Deve ser
desencadeada pelos órgãos naturais da nação, segundo parecer, devidamente
publicitado, das cidades e dos grandes;
 A resistência e a deposição não devem causar males maiores do que os gerados pela
tirania. Deve haver proporcionalidade entre fins e meios. São de excluir os meios
suscetíveis de criar uma situação pior do que a anterior (cláusula propriamente
escolástica e que figura sempre nos moralistas inspirados em São Tomás);

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Normalemente, Suarez prefere a estes extremos a reforma do poder. Se o poder se altera ou


deixa de corresponder às circunstâncias iniciais do pacto social, deve ser reformado,
designadamente no sentido de dar à nação uma participação mais alargada e direta nos assuntos
públicos. Suarez prefigura assim os dois modos de transformação da monarquia absoluta no
século XIX: a conceção unilateral do monarca (ou outorga) e o acordo entre as duas partes.

Originalidade e importância das teses escolásticas: em que medida Suarez se aproximou


das teorias da Escola do Direito da Natureza e das Gentes e da teoria de Rousseau? No que
respeita ao contrato social, e ao contrário dos filósofos, Suarez considera que:

 A natureza, e não a corrupção da natureza, é a inspiração do pacto;


 As leis da moral e da justiça são contemporâneas do próprio homem e não do
pacto social;
 O conteúdo da convenção não é a alienação total da pessoa e dos seus direitos à
comunidade, mas tão só o compromisso de seguir uma direção comum nos
limites do bem comum, ditados pela razão.

No que se refere à soberania, Jean-Jaques Rousseau pretende que ela seja inalienável, ao passo
que numerosos teólogos defendem a soberania alienável. No fundo, o pensamento de Suarez é
muito mais matizado. O povo, no ato de transmissão, nunca se despoja completamente do poder.
Abandona o poder em ato, in actu, mas conserva-o em princípio ou em potência, in habitu. De tal
maneira que pode recuperar o poder respeitando o direito positivo. Vai buscar esta análise ao
teólogo anterior, o basco Azpilcueta. De acordo com as suas teses, o povo pode conservar
inicialmente o poder; também pode reavê-lo, se a defesa assim o exigir. Ora, do mesmo modo
que nenhum individuo pode renunciar à sua legitima defesa, a fortiori o povo, que é a coletividade,
não pode renunciar antecipadamente à retomada do poder quando o seu interesse vital é posto
em causa. O povo leigo, depois de ceder aos imperadores e reis, apenas quanto ao uso, o exercício
da jurisdição pode eventualmente regressar ao estado anterior. Assim, os representantes da
Escola professam uma hostilidade de raiz ao absolutismo. No entanto, esta teoria católica do
Estado e do poder, formulada de um modo preciso e firme, não impedirá que em França os
espíritos se desviem para a doutrina do direito divino dos reis. Por muito tempo, esta será
considerada a verdadeira doutrina da Igreja, quando, na realidade é completamente diferente
dela. A oposição voltará a manifestar-se com força no século XIX, quando Leão III estabelecer as
bases de uma democracia de inspiração cristã. Nessa altura, a tese de Suarez consagrará a
legitimidade dos regimes republicanos e democráticos.

O ESTADO SOBERANO

JEAN BODIN

O enigmático Jean Bodin: Jean Bodin nasceu em Angers, em1530. Por certo, foi acima de
tudo um jurista; emitiu opiniões ainda hoje plenas de interesse acerca de problemas de direito
público. Além disso, em 1576 e 1577, como deputado, participou nos estados de Blois, onde
desempenhou um papel importante e tomou posições originais e corajosas sobre vários
problemas. As suas intervenções eram eloquentes, e foi mantendo um diário pormenorizado dos
acontecimentos em que esteve envolvido. Aos acontecimentos exteriores da sua vida, juntou
Bodin a sua volubilidade religiosa e, por conseguinte, política. Numa altura em que o apego a uma

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determinada confissão domina tudo o resto, as suas convicções parecem ter sido muito
flutuantes.

Um autor original: tais variações repercutem-se sore toda a sua obra. Por isso, do ponto
de vista das doutrinas políticas, é muito difícil situá-lo. Havendo nele um pouco de tudo isto: não
é maquiavélico. Não só mantém as distâncias como se empenha em pôr a descoberto a fraqueza
do seu sistema, relatando o fim miserável do herói maquiavélico, César Bórgia. Ao realismo de
Maquiavel opõe um realismo verdadeiro. Não é aristotélico, e chega a ser um detrator de
Aristóteles. Este e Platão foram “tão despachados” nos discursos políticos, que já não há maneira
de fazer uso deles. No formigar de acontecimentos e no fervilhar de doutrinas, considera que os
Antigos estão muito ultrapassados. Por outro lado, e à custa de objeções mal fundamentadas,
entrega-se a uma crítica muito viva da divisão das formas de governo segundo Aristóteles. Por
fim, através de caminhos tortuosos e complicados, acaba por regressar às conceções aristotélicas.
Na verdade, com uma informação muito vasta que a do Estagirita, em matéria de direito e história
comparados, Bodin situa-se, pelo espírito geral da sua obra, na linha aristotélica. Não é tomista,
no sentido de a sua política não resultar de pressupostos de teologia ou de filosofia moral.
Todavia, o seu pensamento liga-se à moral escolástica. A exemplo dela, acredita numa ordem
geral do mundo e, a exemplo dela, encara a política como uma prudência de mandar em justiça
e equidade. Não é utopista, mas a sua imensa erudição leva-o a recorrer a exemplos exóticos e a
referências de aventura. No entanto, o exotismo não é, para Bodin, nostalgia de um país diferente,
mas apenas o recurso a exemplos históricos em vista a apoiar as suas asserções políticas. O que
caracteriza a sua obra é o método histórico. Baseada na experiência pessoal, a sua política assenta
ainda num conhecimento extremamente vasto dos acontecimentos do passado. «É na História
que reside a melhor parte do direito universal.» diz Bodin.

Os seis livros da República: a publicação dos seis livros da República, em 1576, tinha sido
precedida pela publicação de uma outra obra, em Latim, Methodus ad facilem historiarum
cognitionem, que em certos aspetos é uma espécie de introdução metodológica à República.
Trata-se de uma verdadeira politologia, notável não só em extensão, mas também pela sua bela
ordenação. No Livro I, BOdin estuda a soberania em que se assenta a República. No Livro II,
considera a maneira de exercer a soberania, ou seja, as formas políticas. No Livro III ocupa-se da
estrutura administrativa e social da nação. Nos livros IV e V, trata da sua sociologia, estudando as
diferentes fases da vida desse organismo que é a República, as suas condições de equílibrio, as
relações entre as diversas funções e as condições de funcionamento dos regimes. Acrescenta a
estes pontos uma teoria das revoluções e uma teoria dos climas, que fazem lembrar Aristóteles
e preparam Montesquieu. No Livro Vi, considera as finalidades da vida social, a Monarquia ideal,
e expõe certas questões específicas, no tocante à censura, às finanças e à moeda. Apresenta
deste modo a sua noção de República: É o reto governo de vários lares e daquilo que lhes é comum,
com poder soberano. Esta definição comporta especificações que fazem avançar o conhecimento
do Estado e, ao mesmo tempo, o do pensamento do autor:

 O reto governo: Bodin afasta, como não sendo República, qualquer comunidade
que não seja governada “retamente”, quer dizer, moralmente. Os membros
desta não são escravos, nem servos. Chama-lhes «Francos súbditos»,
apresentando a fórmula: «domínio de homens livres». Mas estes homens livres
não têm o direito de rebelião. Devem obedecer à lei, ainda que lhes pareça
injusta:
 De vários lares: a família é a célula política. «A República, ou tem origem na
família que se multiplica pouco a pouco, ou estabelece-se de repente a partir de

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uma multidão agrupada, ou de uma colónia saída de outra República, como um


novo enxame de abelhas, ou como um ramo tirado de um árvore.» Bodin critica
Aristóteles por ter separado “o económico”, no sentido do que diz respeito à casa,
po “político”.
 Daquilo que lhes é comum: sem base comunitária, não há república. É preciso
que haja um interesse coletivo a unir os lares;
 Com um poder soberano, ou absoluto e perpetuo: o Estado caracteriza-se por um
poder permanente, de determinada natureza, ao qual cabe o último recurso.
Esta majestade suprema não pode ser limitada nem pela duração, nem por
pretensões pontifícias, nem sequer pelas leis; não porque não as haja, mas
porque é ela que faz a lei. De um modo energético diz que a «soberania é o poder
de dar e de quebrar a lei.» Por conseguinte, a soberania reside em primeiro lugar
no poder legislativo.

A soberania, base da classificação das formas políticas: esta conceção da soberania como
o poder que decide em último recurso serve de base a uma classificação das formas políticas, que
vem exposta no Capítulo V do Methodus: «Da constituição das Repúblicas», e no segundo livro
da República, onde se coloca o problema de saber quantas espécies de República existem. A partir
de uma noção rigorosa de soberania, Bodin começa por contestar a existência de regimes mistos
na classificação tradicional de Aristóteles. Afasta «a autoridade de grandes personagens». A
opinião destas é «um erro, quer pelas razões quer pelos exemplos que avançaram». «A
combinação das três Repúblicas não faz diferença nenhuma, visto que a junção dos poderes real,
aristocrático e popular cria somente o Estado popular.» Vai ao ponto de tratar o regime misto
pelo absurdo, vendo nele um sistema de turnos. «Num dia a soberania seria do monarca, no dia
seguinte a menor parte do povo teria o senhorio, e a seguir todo o povo.» Cada um teria «por sua
vez, a soberania, como os senadores romanos depois da morte do Rei tinham o poder soberano
por determinados dias e à vez». Três espécies de Repúblicas «que não durariam mais do que um
mau lar onde a mulher manda no marido». O regime misto, a existir, não passaria de uma situação
passageira e até crítica. A partilha da soberania tem sempre como efeitos inevitáveis os conflitos
de poderes, lutas que levam necessariamente ao triunfo de um das partilhantes. Estabelecer a
monarquia com o Estado popular e com os senhores é coisa impossível, incompatível,
inimaginável. Ainda no desejo de se demarcar de Aristóteles, entende que não se deve ter em
consideração as formas corrompidas ou alteradas de governo, que o que importa é a essência e
não a qualidade, dos regimes. «A qualidade não altera a natureza das coisas.» «Se avaliássemos
o estado das Repúblicas em função das virtudes e vícios, nunca mais daí saíamos.» Evidentemente,
se formos a considerar cada regime naquilo que o torna original, sublinhando as suas
características próprias, qualquer classificação se tornaria impossível. Por conseguinte, as
especificações qualitativas devem ser afastadas como critério. O grau de pureza ou de corrupção
da monarquia não é suficiente para lhe «impor um novo nome». Por isso, Bodin, chega a uma
conclusão muito simples. Um governo caracteriza-se pelo seu órgão soberano, isto é, por aquele
que decide em último recurso, que dita e anula a lei. «Se a soberania reside num só princípe,
dizemos que o Estado é monárquico; se todo o povo participa nela, chamamos-lhe popular, se só
comporta a menor parte do povo, consideramos que o Estado é Aristocrático.» Se as explicações
da República ficassem por aqui, não existia dificuldade, mas a complexidade e a mobilidade do
homem impedem-no de ser fiel ao seu critério único de atribuição da soberania e ao propósito
de não avaliar os regimes qualitativamente. E assim acaba por fazer ressurgir os tipos que antes
afastara.

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Os critérios secundários de classificação: quando o historiador e o comparativista


pretendem abarcar de mais de perto a realidade, Bodin considera duas novas séries de divisões.
Estabelece uma classificação secundária, baseada na atribuição da soberania e o governo a dois
órgãos diferentes. A distinção de Bodin baseia-se numa disjunção entre a soberania e o poder.
«A soberania não é limitada nem em autoridade, nem em competência, nem no tempo.» Em
contrapartida, o poder pode ser temporário ou delegado. Um homem ou um corpo pode ser
depositário e guardião do poder, até que o soberano, o povo ou o príncipe, que continua a ser o
seu proprietário, resolva demiti-lo. Dá o exemplo da ditadura. O ditador tem uma autoridade
absoluta, e todavia o ditador antigo não é soberano. Tem um mandato para fazer a guerra, para
reprimir a sedição, para reformar o Estado, e depois é mandado para casa. «O povo não se
despoja da soberania ao estabelecer um ou vários lugar-tenentes, com autoridade absoluta, por
um período limitado: estes tinham de prestar contas a Deus.» Do mesmo modo, o Rei pode ser
“soberano” e não “autoridade”. É a forma política do “ministeriado” (palavra que Bodin não usa)
que anuncia a monarquia parlamentar, onde “o rei reina, mas não governa”, apesar de aos olhos
de alguns continua a ser soberano. Assim, Bodin acaba por combinar as formas real, aristocrática
e popular, que decorrem somente da soberania, com o governo, também ele real, aristocrático e
popular. Multiplica por três as formas da República, passando a haver monarquia real,
aristocrática e popular, aristocracia oligárquica, real e popular, e democracia popular,
aristocrática e real. Mas isto não é tudo. Propõe ainda outra divisão, baseada desta vez na
maneira de exercer o poder. Esta permite distinguir três espécies de democracia, legítima,
senhorial e turbulenta; três espécies de aristocracia, legítima, senhorial e facciosa; e três espécies
de monarquia, real, senhorial e tirânica.

O Estado popular: a forma de república mais afastada do ideal de Bodin é o Estado


popular, regime «onde maior parte do povo em conjunto manda soberanamente no restante em
coletivo, e em cada um em nome particular»; onde coletivamente a maioria do povo manda na
minoria e individualmente em toda a gente. A República popular exige onde quer que a maior
parte dos burgueses, seja por cabeça, por linhagem ou classe, seja por paróquia ou comuna,
participa na soberania; onde os francos súbditos decidem maioritariamente, seja qual for o modo
de consulta eleitoral. Democracia significa participação de todos os burgueses na soberania. O
Estado popular pode ser:

 De governo popular: não faz exceções de pessoas; o regime é igualitário; há


participação uniforme de todos os cidadãos nas funções e nas riquezas; há
aplicação rigorosa da lei a toda a gente, independentemente de qualidades ou
circunstâncias. É um regime «de reta norma e de uma rigidez inflexível.»;
 De governo aristocrático: aqui, o pequeno número pode governar. Governa de
direito quando as instituições são aristocráticas; doverna de facto quando na
prática existe predomínio dos notáveis ou das famílias nobres;
 De governo real: é o principado, onde a autoridade reside na maioria popular,
como na essimnecia aristotélica ou na democracia cesariana contemporânea.

O Estado Aristocrático: o Estado aristocrático é «a forma da República em que a menor


parte dos cidadãos manda no resto, em geral, por autoridade soberana; em cada um dos cidadãos,
em particular. Nisto é contrária ao Estado popular, onde a maior parte dos cidadãos manda na
menor em nome coletivo». Posteriormente, a aristocracia é definida como a soberania de uma
minoria sem necessidade de uma qualificação particular por virtude ou riqueza. O Estado
aristocrático pode ser:

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 De governo aristocrático: a maior parte dos cargos e empregos estão reservados


à nobreza. A justiça é geométrica. Há desigualdade jurídica, as penas variam
conforme a categoria das pessoas;
 De governo real: assinala o caso em que a aristocracia assume a forma de
principado e aponta como exemplo a Alemanha. Império, diz, não é monarquia,
«mas uma pura aristocracia, composta pelos príncipes do Império, pelos sete
eleitores e pelas cidades imperiais.»;
 De governo popular: inclui a participação do povo no governo dos Estados
aristocráticos. No entanto, duvida da sua realidade, considera que o elemento
popular – ainda que presente – é eclipsado pelo elemento aristocrático,
preponderante.

O Estado monárquico: é pela terceira forma, o Estado monárquico, que Bodin mais se
interessa. Define-a como «uma espécie de República em que a soberania absoluta reside num só
príncipe». A monarquia é o Estado onde o soberano é um homem e não o povo ou o grupo dos
grandes. Não há monarquia se o Rei não se pronuncia em último recurso, se existe além dele ou
acima dele um tribunal popular ou aristocrático. Também não há monarquia se dois reis
governam em conjunto. A duarquia (ou diarquia) afigura-se-lhe uma espécie de maniqueísmo:
«O mundo tem tanta dificuldade em suportar dois senhores iguais como dois deuses iguais em
poder.» O Estado monárquico pode ser:

 De goveno popular: o príncipe atribui os estados, os ofícios e benefícios tanto aos


pobres como aos ricos, aos plebeus e aos nobres, sem exceção nem
favorecimento de ninguém. Neste caso, porém, não existe confusão entre o
Estado popular e a monarquia, incompatíveis entre si, mas exercício da
monarquia com governo popular. Este regime pratica a justa aritmética, principio
dos governos populares. Semelhante monarquia reduz tudo à igualdade e ao
sorteio, e distribui poderes e benesses a todos os cidadãos, indiferentemente;
 De governo aristocrático: os Estados e ofícios são atribuídos aos mais nobres, aos
mais ricos ou aos mais favorecidos. A justiça é geométrica. Distribui honras e
riquezas aos que já se encontram bem fornecidos. Além disso, decide por
considerações pessoais;
 De governo real: aqui, Bodin propõe uma subdivisão em três formas:
o A monarquia tirânica, como tal não é um reto governo, e encontrava-se
inicialmente fora de República. No entanto, fá-la reaparecer como sendo
aquela em que o monarca, desprezando as leis da natureza, «abusa das
pessoas livres como de escravos e dos bens dos súbditos como dos seus».
A injustiça e a violação das leis divinas e naturais revelam o tirano, isto é,
aquele que por autoridade própria se torna príncipe soberano, sem
eleição, nem direito sucessório, nem sorteio, nem justa guerra, nem
vocação especial para Deus. Existe ausência de título e, por isso, ausência
de reto comportamento;
o A monarquia senhoria, parece ser historicamente a primeira, filha da
conquista e não de eleição, como pretendia Aristóteles. O governo
doméstico e não político; «o Rei respeita os súbditos como propriedade
sua», poupando as pessoas dos vencidos e deixando-lhes certos bens e
liberdades. O príncipe governa os súbditos como o pai de família governa
os membros da família, mais os servos e escravos. Torna-se «senhor de

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bens e pessoas pelo direito das armas e de boa guerra». Existe não só
soberania, mas também patrimonialidade.
o A monarquia real (ou legitima), difere da tirania pela sua retidão. A
tirania não é legítima, a monarquia sim. Aqui, a legitimidade procede à
conformidade à justiça natural e à lei estabelecida. Não é mera
consequência da acessão ao trono por nascimento. O rei não nasce rei
legitimo, torna-se. É uma qualidade que se adquire, não um dom de
natureza. Assim, à legitimidade não se confunde com a hereditariedade,
e esta não constitui aquela. No entanto, o mais das vezes, acompanha-a.
A monarquia real difere da monarquia senhorial porque «os súbditos
obedecem às leis dos monarcas e o monarca às leis da natureza e porque
se conservam a liberdade natural e a propriedade dos bens dos
súbditos».

Bodin, precursor do absolutismo: em tirânica, nem senhorial, a monarquia real é absoluta?


Ao que parece, Bodin encara uma administração moderada, preocupada em pôr cada um no seu
lugar e em realizar o melhor possível a distribuição de tarefas. O rei sábo «entremistura
brandamente os nobres e os plebeus, os ricos e os pobres, mas com tal discrição que os nobres
possam ter alguma vantagem sobre os plebeus»: Uma alegoria do “Banquete” conclui com um
quadro idílico a descrição do governo real, como «governo harmonioso». Contudo, pelo rigor e
pela lógica postos na sua construção da soberania, Bodin é o pai do governo absoluto. Colocou a
soberania no centro da política e do direito público. Querendo que a soberania fosse una e
indivisível, concebeu-a desde logo monárquica; querendo-a não delegada, afastou a eleição;
querendo-a irrevogável, fundou-a numa doação, ou seja, num ato praticado de uma vez para
sempre; querendo-a perpétua, pensou-a hereditária; querendo-a suprema, entendeu que
nenhum outro poder podia pedir-lhe contas, nem o Papa ou o Imperador, no exterior, nem os
estados ou parlamentos, no interior. No entanto, acerca dos estados gerais considera «que, se é
preciso cobrar rendas, juntar forças e manter o Estado contra os inimigos, isso só pode ser feito
pelos estados do povo e de cada província, cidade ou comunidade». Mas, no seu espírito, não há
aqui matéria para conflito, pois o recurso aos estados representa uma força de apoio, por vezes
um incómodo, mas nunca um entrave. Obcecado pelas desordens das guerras de religião e pelas
ameaças que pesam sobre a unidade do reino, vê na soberania o remédio que permitirá ao Rei
(Filipe, O Belo) permanecer acima das querelas. Mas, uma vez resolvido o problema confessional,
o rei será o gande beneficiário da soberania, pois que, graças a ela, em nada depende do papa,
nem do imperador; o seu poder não é temporário, nem delegado, e ele não é responsável perante
quem quer que seja neste mundo. É por estas ideias que Jean Bodin é o fundador do absolutismo

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EVOLUÇÃO DO ABSOLUTISMO

O Absolutismo Individualista

A Escola Clássica

A Revolução jusnaturalista: o absolutismo assenta na confusão entre os interesses do


Príncipe e os interesses do Estado. Podemos chamar-lhe antindividualista avant la lettre. No
entanto, é no âmbito do absolutismo que o individualismo começa por se manifestar. Os autores
desta nova orientação são Grotius e Hobbes. Grotius ultrapassa em larga medida o individualismo
absolutista; é um renascentista e, sobretudo, autor de uma nova corrente que terá um papel
determinante. Sem ter um génio tão raro e profundo como Descartes produz na sua esfera uma
revolução quase igual. Esta pode ser analisada em três inovações capitais. A primeira reside na
proclamação da autonomia do direito natural. O direito natural é diferente da moral. Grotius diz
adeus à teologia. Define moral como a dominação das cobiças do homem (o temor e a volúpia),
fazendo-a decorrer de uma propriedade da natureza humana, a de discernir a verdadeira
importância a dar às coisas. A sua esfera pertence à moral privada e não à sociabilidade. O direito
natural é diferente da politica. Esta consiste na sábia regulamentação das condições de ser
próprias ao Estado. O direito natural é diferente do direito positivo. Não deriva de uma autoridade
superior que impusesse as suas leis ou as fizesse executar. Não depende, como o direito positivo,
da autoridade de que emana. Não procede da sanção que a autoridade poderia infligir a quem
desrespeitasse as suas ordens. Extrai a sua existência da sua própria natureza, da sua autoridade
específica sobre as consciências. Há, por isso, um terreno próprio ao direito natural. A esfera
normal de ação do direito natural é a do princípio racional da sociabilidade, de tal modo que
também se poderia chamar-lhe direito racional. A segunda inovação da doutrina de Grotius é o
seu individualismo. Como ponto de partida da sociedade: «o homem é um animal cívico». À
sociabilidade se ia buscar a origem e a essência da sociedade. Depois do Estagirita, quase todos
os autores passaram a ver na sociedade aquilo que em linguagem atual se designa por “dado
objetivo”. Interroga-se sobre a condição que o Estado deve preencher para satisfazer as
exigências naturais do homem individualmente considerado. Grotius traz para primeiro plano o
direito dos indivíduos. A natureza social preocupa-o na medida em que é um atributo, uma
condição essencial e existencial do homem. O homem precisa da sociedade para viver; mas a
sociedade é constituída para o indivíduo. O Estado é um fim da natureza humana. A terceira
inovação radical proposta por Grotius é, em termos sociológicos, a substituição do ponto de vista
societário ao ponto de vista comunitário. A sociedade é voluntária; é constituída ela associação
racional de diversos elementos. A comunidade, pelo contrário, é natural e afetiva. Antes de
Grotius, o Estado é natural, no sentido de ser racional. A sociedade nasceu da vontade razoável
dos homens.

“A maravilha da Holanda”: Hugues Cornet (um seu avô, apaixonado pela filha
burgomestre de Delf, aceitara, como condição para o casamento, que os filhos usassem o nome
da mãe, Grotius), nascido em Delf em 1583, o ilustre Grotius surpreendeu, desde os primeiros
anos de vida, o seu meio familiar, os seus concidadãos, e em breve também o estrangeiro. Na
idade da razão, já traduzia versos para Latim sem um único erro. Aos 14 anos, participa na
embaixada a França Henrique IV avista-se com o jovem sábio, “maravilha da Holanda”, cuja
erudição ultrapassa tudo o que se pode imaginar. Brilha nas artes, nas letras, nas ciências, na
poesia e na política. Em breve se torna advogado geral da Holanda e hóspede de Roterdão, e mais
tarde hóspede de honra da Frísia Ocidental e da Holanda. Mas, por essa altura, os Países Baixos

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são devastados por discórdias civis e religiosas. Grotius liga-se a Barneveldt, adversário de Nassau.
Barneveldt é condenado à morte e Grotius é metido no forte de Laevestein “para nunca mais da
lá sair”. Refugiado em França em 1621, é acolhido com liberdade. Encontra hospitalidade e tempo
livre para escrever o seu grande livro, De Jure beli ac pacis (Do Direito da Guerra e da Paz). Por
morte do Príncipe de Nassau, Grotius regressa à Holanda, mas como lhe impõem condições
inaceitáveis, é forçado a exilar-se de novo, desta vez em Hamburgo. Farol do direito internacional,
é nomeado embaixador da Suécia junto do Rei de França pelo chanceler Oxenstiern. Em 1664,
depois de uma viagem, desta vez triunfal, ao seu país, regressa à Suécia. De passagem pela
Alemanha, morre de esgotamento em Rostock, na sequela de uma violenta tempestade sobre o
Báltico (1645).

“De Juri belli ac pacis”: a obra fundamental de Grotius divide-se em três livros, libre três
in quibus jus naturale et gentium, item júris publici paecipue explicantur, três livros que explicam
os princípios do direito da natureza e das gentes e especialmente os do direito público. A sua
publicação terá uma importância considerável. A sua obra é, em primeiro lugar, uma obra de
direito internacional. O seu primeiro objetivo é a regulamentação daquilo a que hoje se chama
“relações internacionais”. Estas, na altura em que Grotius escreve, atravessam uma profunda
crise, pois os antigos princípios do direito feudal, os costumes guerreiros da cavalaria e os
regulamentos eclesiásticos deixaram de ter alcance prático e, até, real significação com o
renascimento dos Estados. Colocam-se novos problemas que, doravante, devem ser resolvidos
entre Estados soberanos. Maquiavel quer resolvê-lo pela força, Vitória pela Justiça. Na prática, a
“razão de Estado” guia os políticos do absolutismo. Quanto a Grotius, pretende dar às relações
internacionais uma base de direito. Como este está ainda por criar, não poderá ser o direito
positivo, mas o direito racional ou natural. Como direito racional e natural, aplicar-se-á a toda a
gente e será um direito universal. Assim, para dar bases sólidas à sua construção internacional,
Grotius, vê-se obrigado a colocar de uma maneira nova os fundamentos do direito e do Estado,
aspeto que interessa diretamente às ideias políticas.

Fundamento e amplitude do direito natural: o homem, ser racionalmente sociável, é


impelido por um móbil inato a entrar em sociedade regulada e regular com os seus semelhantes.
A necessidade de viver em sociedade corresponde a necessidades de ordem física, mas acima de
tudo à satisfação de um sentimento moral de bondade para com outros. O que nos move não é
o interesse mas, um sentimento muito mais elevado, a atração por um estado em que podemos
encontrar a satisfação para nós e ao mesmo tempo garantir a dos outos. Da natureza social,
princípio de direito, decorre o direito da natureza. «A mãe do direito natural é a própria natureza,
que nos levaria a procurar o trato com os nossos semelhantes ainda que não tivéssemos
necessidade.» Assim, é um direito que bebe a sua autoridade na própria natureza do homem, de
que provém, abstraindo da intervenção do legislador positivo. Implicado pela existência do
homem, o direito natural é-lhe tão profundamente inerente que Deus, que criou o homem, em
nada pode modificar o direito que decorre da natureza da sua criatura. Assim, o direito natural
tem a sua fonte própria. Grotius não nega a existência de um direito divino, mas torna o direito
natural independente dele. Resultante da natureza do homem, tal como esta é constituída, é
invariável como a própria natureza. Também é universal, aplicável a todos o séculos e a todos os
povos. Para discernir se uma norma é ou não de direito natural, Grotius propõe duas vias, uma
direta ou imediata e a outra indireta ou mediata: a via direta é a constatação da natureza razoável
e social da norma: através do raciocínio, vemos decorrer da natureza humana umas tantas
normas que são as normas fundamentais do direito natural; a via indireta faz decorrer as normas
de direito natural da observação do uso universal das nações (a sua erudição fabulosa e
esmagadora permite-lhe ir buscar exemplos a todos os tempos e países). O terreno do direito

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natural é determinado pela sua própria definição. Abrange tudo o que na vida humana se rege
pelo princípio de sociabilidade. As normas constituem condições necessárias e inevitáveis de uma
comunidade de vida regular. O seu ponto de partida encontra-se no direito privado. Em primeiro
lugar, o respeito do meu e do teu, o reconhecimento da propriedade; em seguida, o cumprimento
dos contratos; por fim, a indemnização dos prejuízos causados a outrem. Grotius encara, assim,
as penas em que se incorre por infração a estas normas. Depois, para lá da esfera do direito
privado, mas pelos mesmos meios, cria a esfera do direito público.

O Estado, sociedade contratual e perpétua: a obrigação contratual, que é uma


consequência essencial da sociabilidade, serve de fundamento à construção da sociedade civil. O
direito natural prescreve o respeito pelos contratos porque, para a manutenção pacífica de uma
comunidade, é necessário que os homens disponham de um meio que os obrigue mutuamente.
A obrigação contratual, base de todo o direito privado, é, segundo Grotius, também a base de
todo o direito público. Perfeita união de homens livres, através da qual deve cumprir-se aquilo a
que Grotius chama «a lei da natureza», o Estado, sociedade pacífica e regulamentada, implanta-
se a partir de uma decisão voluntária dos homens. Não tendo sobre eles uma autoridade inicial,
adquire-a graças ao contrato pelo qual os cidadãos se submetem à autoridade. «Se um particular
pode alienar a sua liberdade e tornar-se escravo de um senhor, por que razão não poderia todo
um povo alienar a sua liberdade e tornar-se súbdito de um rei?» O individualismo é aqui
acompanhado de um voluntarismo que constitui novidade. O contrato, que Grotius mantém na
ordem do puro direito privado, permite edificar a sociedade civil e determinar as condições de
vida dentro dela. O Estado, sociedade humana de base contratual, concentra em si as relações
do direto público e do poder político. Por isso, embora formado por indivíduos mortais, subsite
depois de eles morrerem. É a teoria da perpetuidade do Estado, que contrapõe os atos do rei aos
atos dos privados. A identidade do Estado e a perpetuidade dos deus direitos e obrigações
fundamentam-se na razão de se tratar de direitos e obrigações do mesmo povo. A obrigação
contraída pelo chefe do poder transmite-se aos sucessores através do povo, já que este está
vincado pelos atos do governo anterior, que é apenas seu representante. O povo transfere
tacitamente a obrigação, que passara a pertencer-lhe, para o chefe seguinte, que ao povo vai
buscar a sua força. Assim Grotius realiza a identificação do Estado com a sociedade. Considera a
nação como Estado e, a seu ver, o Estado em nada se distingue da nação. Os elementos
designados pelas palavras civitas, communitas, coetus e populus são, pare ele, equivalentes. O
objetivo do Estado-sociedade é o gozo comum dos direitos, reciprocamente reconhecidos, e a
utilidade comum. Mas o bem público é a suprema norma a seguir e todos os indivíduos devem
dar-lhe a primazia. À sociedade formada pelo povo pertence um dominium supereminens público
ou estatal. Mas o Estado não pode separar-se desta sociedade e prosseguir objetivos próprios.
Os seus únicos fins são a realização dos fins dos homens individualmente considerados. Para
Grotius, público siginifica somente o que é de utilidade comum para todos, e não algo que
comportaria uma natureza exterior que se impusesse a todos. Assim, Grotius constitui sociedade
com base num contrato voluntário. Por outro lado, esta sociedade, embora permanente, embora
de amplitude e duração superiores às das vidas humanas, não traz, dado o seu caráter voluntário
e contratual, qualquer obrigação suplementar aos que dela fazem parte, nem permite a ninguém
erigir-se em representante de uma coletividade dotada de direitos próprios.

O Leviatã: Thomas Hobbes

Hobbes e as revoluções de Inglaterra: «Se o homem pode ser reduzido à escravatura


privada em proveito de quem muito bem entender, como ressalta da lei hebraica e da lei romana,

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porque razão não se haveria de permitir a um povo, que só depende de si próprio, a submissão a
um indivíduo ou vários, de maneira a transferir completamente para eles o direito de governar,
sem reservar para si qualquer parcela?». A pregunta é feita por Grotius a quem, ao que parece,
não repugnava uma resposta afirmativa. A qual se afigura inevitável a Thomas Hobbes. O infeliz
Hobbes (1588 – 1679) nasceu prematuramente, assiste à conspiração de pólvoras em 1605;
encontra-se em Paris quando do assassínio de Henrique IV, em 1610; é testemunha da execução
de Strafford de LAud, da derrota naval de Naseby em 1645 e da execução de Carlos I em 1649.
Umas vezes vai a França para se proteger de quem está no poder em Inglaterra; outras vezes vai
a Inglaterra para fugir a quem está no poder em França. Por tudo isso o sentimento dominante
em Hobbes é o medo. Almeja para os homens a paz que existe nas coisas. O seu único desejo é
ver a calma e a união asseguradas. Mas não há possibilidade de paz enquanto subsistirem
faculdades de resistência ao poder, sobretudo se a resistência tem móbeis religiosos, porque a
política transporta para o terreno religioso, ou a religião para o terreno político, desencadeia de
todos os lados paixões verdadeiramente irrefreáveis.

Individualista que teve medo: Hobbes busca apaixonadamente a saída para as suas
angústias num absolutismo que dê todos os poderes ao rei, mas a um rei que assegure a paz e a
tranquilidade. Fá-lo desde a sua primeira obra, Elementos do Direito Natural e Político, que
abrange três partes, libertas, imperium, religio. Finalmente, Leviathan sive de materia frma et
potestate curtatis ecclesiastae et ciuiles (1650). Por medo, torna-se o mais feroz dos estatistas.
Busca a salvação na capitulação perante um indivíduo. Mas essa capitulação não subverte as
bases do seu pensamento. O ponto de partida é o mesmo que o de outros autores maiores da
Escola do direito da natureza e das gentes. Também ele deduz a ordem da natureza do ser
humano individualmente considerado. Também ele funda «o Estado civil» no contrato de união
voluntariamente estipulado pelos súbditos. A diferença está em que o individualismo generoso e
confiante de Grotius se transforma, nele, num individualismo pessimista e fechado. O fundo da
natureza humana é o egoísmo, e não a necessidade altruísta de uma vida em comum. Ao procurar
a comunidade, o homem não o faz para se realizar, nem devido a uma inclinação natural que o
impelisse para os seus semelhantes, mas apenas com vista o seu próprio interesse. A sociedade
nasce do medo que os homens têm dos outros homens e não de uma generosidade recíproca.
Pois o estado de natureza em que os homens se encontram antes de se comprometerem entre
si por meio do contrato era essencialmente perigoso e funesto. No estado de natureza, todos os
homens estão em guerra uns contra os outros. Por possuírem um direito igual relativamente a
todas as coisas, todos cobiçam as mesmas coisas e têm um inclinação comum para se
prejudicarem; são uma fonte constante de perigo e de medo uns para os outros. A lei da natureza,
que atua nessas circunstâncias, é egoísta devido ao seu próprio fundo. Visa a conservação de si
próprio. A sua principal injunção é a busca da segurança. Mas no estado de natureza, os
mandamentos da lei natural não são obrigatórios. Grotius tinha-os estabelecido como fonte de
um dever ara com os outros homens; o pessimismo de Hobbes afasta tal segurança. Enquanto
uma pessoa não tiver a certeza de que a outra cumprirá o compromisso que assumiu, satisfazer
o seu próprio compromisso não serve de nada, no que toca à conservação pessoal. A voz das leis
naturais fica sufocada. O único interesse verdadeiro é então sair do estado de natureza, passando
do status naturalis ao status ciuilis.

O Estado, única salvaguarda do indivíduo: os homens unir-se-ão em número considerável,


de modo a formar, por acordo mútuo, uma aliança de garantia contra perturbações da paz. Essa
união é o Estado. Por isso, só quando os homens tiverem abandonado o estado de natureza
surgirá o Direito. Só o Estado pode dar origem à noção de «meu e teu». Na sociedade natural,
ninguém estava garantido, por não haver certeza de reciprocidade. Ora, o único critério do Direito,

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a sua única medida possível, é a utilidade efetiva. O Estado constitui-se para permitir que se tenha
a paz: o homem abandona-lhe o direito ilimitado inerente ao estado de natureza. Total ou
parcialmente, renuncia aos direitos que lhe vinham do estado de natureza, a fim de gozar do
resto. O homem cumpre os deveres naturais de compaixão e reconhecimento, que concorrem
para o objetivo de conservação pessoal. Mas para que exista Estado, não basta um simples acordo
entre homens, é necessária uma união. Os homens têm de deixar de viver como indivíduos
independentes e separados, a fim de formarem uma só vontade. Por conseguinte, não devem
conservar vontade, nem direitos que lhe pertençam. Todos os poderes passam para o Estado,
com a renúncia à resistência, por um lado, e a revogação da delegação assim atribuída, por outro.
E para tal, são necessárias condições à constituição da soberania (summum potestas, summum
imperium). Até agora, tínhamos encontrado dois contratos: o contrato de indivíduos que se
associam entre si e o contrato que os novos associados firmam com aquele em que delegam o
poder supremo. Para Hobbes, só há um pacto: os homens não negoceiam com o soberano, mas
apenas entre eles. Renunciam em proveito do senhor e assumem o compromisso de se submeter
à sua autoridade em absoluto e se condições. Antes da instituição do Estado, só existia a multidão,
que não tinha pela frente nenhuma autoridade com quem tratar; após a sua instituição, a
multidão dissolveu-se por isso mesmo e deixa de existir. A instituição do poder civil vem a ser,
afinal, uma alienação em vez de uma delegação. Já que o soberano é absolutamente estranho ao
ato, e não tem qualquer obrigação porque não assinou nada. Com efeito, este contrato não é
uma limitação do poder absoluto – é precisamente o seu fundamento.

O Leviatã: a consequência deste pacto é fazer da multidão um ser único. Hobbes dá-lhe
um nome extraído da Bíblia, do livro de Job: “Leviatã” ou “Deus mortal”. Um desenho à pena, no
frontispício da obra, representa o corpo do monstro, constituído por uma multidão de indivíduos
microscópicos aglutinados. O conjunto constitui uma personagem medonha que segura nas mãos
o báculo e a espada, atributos do poder espiritual e do poder temporal. Duas séries de símbolos
colocados à frente completam a alegoria. Constituído por uma fusão completa dos indivíduos, o
Estado exerce uma soberania absoluta (imperium absolutum), a que corresponde, naturalmente,
uma monarquia absoluta. A manutenção da paz exige que o soberano disponha de uma
autoridade completa: não deve estar sujeito a nenhuma lei exterior a ele, seja natural ou
eclesiástica. Por conseguinte, o súbdito não tem qualquer direito relativamente ao poder e não
comete falta quando se conforma à ordem do poder. A doutrina de Hobbes dá origem a um
positivismo jurídico radical. Só as leis civis decidem da existência da falta. O adultério não é uma
falta por violar a moral, mas porque o poder interdita «que se tenha trato com uma mulher de
que as leis civis proíbem aproximar-se». As leis civis fixam os requisitos do adultério como lhes
apraz, estabelecendo qual o tipo de relações sexuais que entra essa categoria. Deste modo,
Hobbes retira ao direito e ao Estado toda a dimensão moral. A lei natural, única base em que
fundamenta o direito e amoralidade, não comporta em si qualquer ideia moral. Tudo é dominado
pela necessidade de segurança, pelo instinto físico de conservação pessoal, pela pura lei de
prudência. A política é o domínio do conveniente. Um completo vazio moal cava-se sob as
relações sociais, por sua vez totalmente despojadas dos valores éticos que encerravam. No ponto
de chegada, um poder ilimitado e absoluto sai da união das vontades humanas, mas transcende
essa união. O Estado constitui uma pessoa distinta de todos os indivíduos que reúne em si. A sua
aglutinação não pode ser considerada como constituinte do Estado. Só os que representam o
Estado possuem esse caráter. Há quem pense que se trata de um progresso da teoria do Estado
ao traçar a separação entre o Estado e agregado social. É duvidoso que seja algo de
verdadeiramente meritório. Desligar tão completamente o poder daqueles sobre quem se exerce
tem por resultado dar a esse poder um caráter ao mesmo tempo artificial e ilimitado. Artificial e

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ilimitado: assim é, no fundo, o poder segundo Hobbes. A formação do Leviatã é muito laboriosa.
As cedências seguem-se umas às outras; para pôr termo à guerra de todos contra todos, os
homens aceitam a paz, mas é uma paz concentracionária. Ao homem não resta nada de seu. Não
há recurso possível contra as ordens do Estado, pois tudo o que ele faz também os homens seriam
capazes de fazer. Queixar-se do Estado seria o mesmo que queixar-se de si próprio. Hobbes faz
do soberano o dono da Religião. É um verdadeiro Deus terrestre. O absolutismo retorna às suas
conceções pagãs originárias. Ao reunir na mesma mão o cetro e o báculo, ao confundir o que é
de César com o que pertence a Deus, torna-se totalitário. Hobbes não admite que uma pretensa
autoridade espiritual possa erigir-se como rival do soberano. Ninguém deve servir dois senhores;
há um só poder, o poder civil, que se ocupa de tudo. Aliás, a obediência ao monarca não é
obrigação moral por ser religiosa, mas por ser política. Admitir que as Escrituras são a palavra de
Deus não é ciência, mas fé. Ora a fé nada tem a ver com a política. Mas nem por isso a política se
desinteressa da fé. Apesar disso, Hobbes não se considera intolerante, uma vez que o Estado só
impõe os atos exteriores da religião. Quanto aos corações, só Deus os conhece. Ninguém pede
aos súbditos que acreditem; só têm que obedecer. O que a paz procurada por Hobbes exige não
é a tolerância, é o conformismo. Uma vez concluído o contrato, quando não se depõe o
julgamento próprio e a própria consciência nas mãos do soberano, já não se pode desobedecer.

O ABSOLUTISMO ESCLARECIDO

A Ambiguidade do Despotismo Esclarecido

Características do absolutismo esclarecido: em comparação com um sistema tão bem


construído como é o de Hobbes, o absolutismo esclarecido parece carecer de princípios próprios
e de instituições características. Na prática, as suas particularidades variam bastante de país para
país. Mas a principal dificuldade reside na sua ambiguidade, por ser ao mesmo tempo uma
doutrina de progresso e uma doutrina de resistência. Doutrina de progresso, o absolutismo
esclarecido continua ou ultrapassa o absolutismo clássico:

 O absolutismo clássico assinalava um progresso político e administro em relação


ao sacerdotalismo medieval e ao aristocratismo feudal: o absolutismo
esclarecido representa uma nova etapa no reforço e na depuração da autoridade
política, que correlativamente traz uma certa reabilitação da situação do
indivíduo;
 O absolutismo clássico era uma doutrina frequentemente dura, e até desumana.
O absolutismo esclarecido, pelo contrário, coloca a humanidade numa posição
elevadíssima;
 O absolutismo clássico, muito imbuído da glória das letras e das artes, não se
preocupava por aí além com a instrução popular. O absolutismo esclarecido, pelo
contrário, quer «espalhar as luzes» por toda a parte;
 O absolutismo clássico baseava-se na desigualdade; o absolutismo esclarecido
procura fazê-la desaparecer, pois a igualdade civil é a base natural do
desenvolvimento normal da autoridade efetiva do rei;
 O absolutismo clássico estava estritamente ligado à religião. O absolutismo
esclarecido reclama a liberdade de acreditar e a de não acreditar.
 O absolutismo clássico era rigoroso e cruel nos seus castigos; o absolutismo
esclarecido reclama a suavização do direito penal, o desaparecimento da tortura
e de certas penas ostensivamente sanguinárias.

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Doutrina de resistência, po muito “esclarecido” que seja, o absolutismo permanece hostil à


divisão e à transferência de poder:

 O absolutismo esclarecido permanece um absolutismo do príncipe. O poder


continua a ser relativo à pessoa do príncipe. Embora se verifique um esforço para
dirigir o seu exercício em proveito do povo, este não participa no poder. O
absolutismo esclarecido ao satisfazer certas necessidades e certas reivindicações
populares por meio da assistência material e da instrução generalizada, procura
tornar o Estado mais forte fazendo com que o poder do Príncipe passe a ser mais
eficaz e mais bem aceite;
 O absolutismo esclarecido não põe em causa o poder absoluto. Nem corpos
intermédios, nem divisões do poder: tudo continua a girar à volta do príncipe. As
reformas não se fazem contra ele, por uma opinião e por eleitos que lhas
arrancariam. É o próprio Estado a tomar a iniciativa do desaparecimento do
antigo estado de coisas, em que se incluem todas as sobrevivências feudais;
 O absolutismo esclarecido comporta o alargamento de estatismo. Para o
absolutismo clássico, o signo manifesto do estatismo tinha sido a integração do
económico na política. O absolutismo esclarecido reforça paradoxalmente o
Estado ao fazer dele, com os fisiocratas, um instrumento da ordem natural. O
Estado passa então a ser dominado pela crença entusiástica e serena nos
benefícios da legislação autoritária.

Dificuldade em distinguir os partidários do absolutismo esclarecido: o absolutismo


esclarecido inspira toda uma série de documentos oficiais e legislativos: a instrução da comissão
a que Catarina II da Rússia encarrega de preparar um código (1768), o édito do Grão-Duque da
Toscânia, o Código Prussiano de 1794, etc. Historicamente, os meios de incubação e de
desenvolvimento do absolutismo esclarecido são constituídos essencialmente por elementos de
vanguarda, do ponto de vista intelectual, economistas e filósofos. Uns e outros querem educar o
Príncipe, ou se já passou a idade de ser educado, aconselhá-lo nas grandes ações. Graças aos
progressos dos métodos, propõem ao príncipe obrigações mais bem definidas e mais alargadas.
Mas o essencial continua a substituir o “príncipe devoto” pelo “príncipe filósofo” ou pelo
“príncipe economista” Os filósofos partidários do absolutismo esclarecido incitam o príncipe a
mostrar-se justo, humano e generoso, de maneira a garantir o esplendor e a segurança do reino;
os economistas pedem-lhe que conheça as leis da economia e que as respeite, de maneira a fazer
a felicidade e a prosperidade do mundo agrícola.

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IDADE
CONTEMPORANEA

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O PRÉLIBERALISMO ARISTOCRÁTICO

A crise da consciência europeia

Antes de dominar o século XIX, que se prolonga até 1914, o liberalismo levou um século
a amadurecer e a afirmar-se. Pode, com efeito, situar-se as suas primeiras manifestações por
volta de 1680. Muito antes da morte de Luis XIV, explode a crise da consciência europeia. Esta
ficou a dever-se a fatores históricos deprimentes: a miséria da guerra, a miséria dos invernos
rigorosos e a miséria de uma má política económica e fiscal, que fizeram acreditar numa
reviragem. Mas, no plano das ideias, o que se verifica é um ressurgimento, um segundo
renascimento. Na verdade, o período do absolutismo clássico deixa de ser um esforço, uma
vontade, uma adesão refletida, para se transformar num hábito e num constrangimento, as
tendências inovadoras devidamente preparadas reaparecem prontas a recuperar a força e o vigor;
e a consciência europeia entrega-se de novo à sua eterna busca. Total, imperiosa e profunda, a
retoma, ou continuação do Renascimento, prepara pouco a pouco o século XVIII. Se para falar
com propriedade, se chama “novidade” a uma certa maneira inédita de pôr os problemas ou ao
acrescentar de uma certa tendência, de uma certa vibração. A época da renovação e das
inovações não espera pela passagem do século XVII para o XVIII, pois já desde o fim do século XVII
existem sensíveis transformações. Já em 1705 Leibniz pensa que seria bom que «os príncipes se
persuadissem de que os povos têm o direito de lhes resistir», tratando de definir o Estado como
«uma grande sociedade cujo fim é a segurança comum» e acrescentando que esse Estado deve
dar aos homens a felicidade. Essa felicidade que, em breve, será anunciada como «uma ideia ova
na Europa». Desde a aurora do século XVIII que se vê despontar este culto do indivíduo. Nos
últimos anos do século XVII, começou uma nova ordem. Em política, este novo percurso
manifesta-se por uma rejeição das teses clássicas. Uma oposição geral começa a formar-se:
oposição do alto clero, oposição dos meios esclarecidos, oposição popular; oposição externa. A
primeira é a mais clara, porque, nascendo muito perto do trono e tendo por missão consolidá-lo,
é a única com algumas possibilidades de expressão.

O NASCIMENTO DO LIBERALISMO: LOCKE

Uma influência enorme: a revolução inglesa do século XVII marcou consideravelmente a


ciência política. A luta contra as tendências despóticas de Jaime I e Carlos I de Stuart exprime-se,
em primeiro lugar, através da ação do protagonista da Petição do Direito de 1628, o jurista e
deputado, Sir Edward Coke. A Declaração dos Direitos (The Bill of Rights) de 1689 vai encontrar o
seu defensor na pessoa, muito mais conhecida, do médico-filósofo John Locke. No navio que traz
de volta da Holanda a Greenwich, Maria, Princesa d’Orange e futura Rainha de Inglaterra, tem a
seu lado John Locke, que traz na bagagem dois preciosos manuscritos, os Dois Ensaios sobre o
Governo, ou melhor, sobre o Poder Civil. Os dois livros distinguem-se entre si, embora um seja a
continuação do outro. O primeiro é uma resposta ao Patriarcha de Sir Robert Filmer. O seu autor
defende, baseando-a na origem familiar, a autoridade real. Esta primeira memória tem algum
interesse, mas no futuro terá apenas um papel restrito. O segundo livro é um ensaio sobre a
origem, a extensão e o verdadeiro objetivo do poder civil. Para Locke, as três grandes revoluções
dos século XVII e XVIII – a Revolução Inglesa, a Revolução Americana e a Revolução Francesa –
estavam enraizadas no direito natural. A ação de Loke foi, a contrario, sublinhada pela violenta

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antipatia que lhe votaram os adversários do liberalismo. Um deles escreve que desprezar Locke
é o começo da sabedoria. “No seu estudo da filosofia, falou tão mal sobre a origem das ideias
como sobre a origem das leis”. Mas pode, sem exagero, ver-se no autor do Ensaio sobre o poder
civil, verdadeira apologia da Revolução que eliminou os Stuart, uma espécie de “anti-Hobbes”.
Incontestavelmente, passa por pensador oficial a partir daquele dia 11 de abril de 1689 em que,
depois de Guilherme d’Orange ter sido coroado em Westminster, se proclama que irá reinar “em
virtude de um direito não diferente em nada do direito de qualquer proprietário a escolher o
representante do seu condado”, e em que aceita o controlo das duas Câmaras, assegurando,
assim, o triunfo do governo parlamentar.

Uma existência apagada: comparada com a importância que têm para a História das
Ideias Políticas, a História da vida de Lock (1632 – 1704) é quase irrelevante. Membro de uma
família puritana, modesta, profundamente religiosa, segue o caminho que a época impunha a
qualquer jovem bem dotado, desejoso de se cultivar e de se qualificar intelectualmente: o
seminário. Embora, a princípio parecesse destinado à teologia, muda para ciências. Torna-se
médico sem ter, ao que parece, acabado o curso. Os seus conhecimentos reais na matéria,
juntamente com a sua constituição doentia e uma certa inaptidão psicológica para constituir
família e seguir uma carreira, vão fazer dele uma dessas numerosas personagens que giravam na
órbita das pessoas importantes o antigo regime e que na vida política contemporânea
acompanham os “ministros”. John Locke exerce, sob o nome de “secretário das apresentações”,
as competências que seriam hoje de um chefe de gabinete. Partilha a fortuna e desgraças de Lord
Asley, que em breve se torna conde. Antes, tinha sido encarregado de uma missão diplomática
junto dos eleitores de Brandeburgo e, mais tarde, fará uma longa estada em França por razões
da saúde e também para adquirir alguma experiência na área económico-social. Mas o episódio
essencial da sua vida ocorre durante o exílio na Holanda. O triunfo provisório de Carlos II faz com
que seja excluído de Oxford. Com a liberdade, se não a vida, ameaçada, alcança o refúgio
continental dos liberais. Aí, as suas ideias vão tornar-se claras e amadurecer num ambiente
particularmente favorável; aí redigirá os grandes livros que lhe hão de trazer glória. De volta a
Inglaterra, permanecerá quase sempre retirado em Oates, publicando dois opúsculos públicos.
Em 28 de outubro de 1704, com 72 anos, morre na sua poltrona, a ouvir Lady Marsham ler para
ele. «A sua morte foi como a sua vida, verdadeiramente piedosa, mas natural, doce e simples»
disse ela.

A liberalização do direito natural: com Grotius, o direito natural moderno substitui a ação
e a vontade pessoal e transcendente de Deus pela ordem imanente à natureza humana. A razão
vê-se confrontada consigo própria, abstraindo de Deus e da revelação. Esta conceção do direito
natural domina durante mais de um século. Parece ser o único direito legítimo, o único possível.
A primeira intervenção decisiva de Locke no desenvolvimento do pensamento político foi tentar
associar o direito natural à liberdade individual. Para isso vai buscar as armas de Hobbes, mas,
desta vez, para as utilizar no sentido da liberdade. A construção dos jusnaturalistas era polivalente.
O estado de natureza e o contrato social são hipóteses que podem servir para vários fins: o estado
de natureza, considerado como estado de guerra, e o contrato social, visto como uma espécie de
capitulação incondicional, conduzem ao absolutismo; mas o estado de natureza, considerado
como estado de paz, e o contrato social, considerado como uma convenção limitada, condicional
e revogável, podem muito bem levar à liberdade. Locke vai ao ponto de achar que são uma
consequência normal da liberdade. «A lei da natureza é de obrigação porque é de liberdade».

O estado de natureza: Locke define o estado de natureza como uma situação dos seres e
das coisas em que não existe sociedade civil, nem sequer uma forma rudimentar. Em que os

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homens são livres e iguais. Trazem em si a luz da razão, que lhes permite distinguir a lei natural e
adaptar-lhes o seu comportamento. Assim, na ausência de uma sociedade civil, existe a família,
com o poder paternal, completamente diferente do poder político. Do mesmo modo, ainda que
não haja sociedade nem poder político, existe o direito de propriedade. É um dos pontos mais
inovadores de Locke, um daqueles em nome dos quais se fez a revolução e que permite a Voltaire
exclamar: «Liberdade e propriedade, eis a divisa dos ingleses!» Este estado de natureza é
considerado por Hobbes como um estado de guerra: «a guerra de todos contra todos». Ao
contrário, Locke, otimista, pensa que é «um estado de paz, de boa vontade, de assistência mútua
e de conservação». Fundamenta a sua convicção no sentimento que cada indivíduo tem da
necessidade da sua própria salvaguarda e na reciprocidade dos comportamentos. Em suma, o
princípio de cada um é a conservação pessoal; o principio de todos, a conservação do género
humano. A diferença fundamental entre o estado de natureza e o estado de sociedade reside
fundamentalmente no facto de as violações do direito natural não serem sancionadas no estado
de natureza, ou, mais exatamente, de o serem de uma maneira anárquica, por iniciativa das
vitimas ou dos seus parentes e amigos. O estado de natureza só conhece a justiça privada. É
precisamente esta ausência de organização duma sanção e, por conseguinte, de salvaguarda
preventiva das pessoas e dos bens, que vai levar ao fim do estado de a natureza. Locke, que pensa
que a América na vasta extensão de terras novas prontas a serem conquistadas, acha que o
estado de natureza é perfeitamente suportável. Com os primeiros elementos da economia liberal,
um outro fator joga a favor da constituição de uma sociedade, desta vez plenamente organizada:
é o uso do dinheiro. Com a sua criação, o homem tende a apropriar-se de bens acima das suas
necessidades. Anteriormente, o homem estava limitado por estas, na impossibilidade e na
inutilidade de conservar o excedente do consumo. Em contrapartida, com o aparecimento do
dinheiro, a poupança e o entesouramento tornam-se possíveis. Por isso, as desigualdades, que a
princípio são diminutas, vão crescendo até que, a certa altura, já não é possível ao homem viver
em paz se a posse dos seus bens não estiver protegida por uma organização adequada, que é
precisamente a organização política. Por outras palavras, os homens têm um interesse evidente
em sair do estado de natureza. Uns por terem doravante problemas de segurança, outros, pelo
contrário, por serem desfavorecidos, todos pensam que poderiam estar melhor. Estariam melhor
se houvesse leis positivas, juízes para as interpretar e um poder executivo para as aplicar. É a
acumulação de riquezas e a desigualdade na sua repartição que explica o desaparecimento do
estado de natureza. Esta análise de Locke nada tem pessimista, porque ele acredita que o
interesse natural que leva qualquer homem a enriquecer não é antissocial. Traduz, assim, uma
ideia que remonta à Reforma e segundo a qual «o sucesso material dos particulares promove o
bem estar público».

O pacto social: uma vez que a lei natural é uma «lei não escrita que só pode encontrar-
se no espírito dos homens», se não houver juiz constituído, «não é assim tão fácil convencer dos
seus erros aqueles que, por paixão ou por interesse, a invocam sem fundamento ou a aplicam
mal». Para escapar ao risco de insegurança, os homens decidem fundar a sociedade política ou
civil. «A fim de evitar os inconvenientes que no estado de natureza perturbam o gozo da
propriedade, os homens entram em sociedade para poder dispor de toda a força pública
destinada a proteger e defender os seus bens e para determinar… as regras fixas que dão a
conhecer a cada um o seu poder natural à sociedade de que fazem parte… Nunca os homens
abandonariam… a liberdade do estado de natureza… se não tivessem de proteger as suas vidas,
a sua liberdade e os seus bens e de assegurar, através de leis relativas ao direito e à propriedade,
a sua paz e tranquilidade.» Assim, existe sociedade civil – e só nestas condições – usando um
certo número de homens se unem de tal maneira que cada um deles renuncia ao seu poder de

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executar a lei natural para o ceder à coletividade. A cláusula fundamental do pacto social está na
renúncia ao direito de reprimir as infrações à lei natural. Para Locke, os homens vivem em
sociedade política porque renunciaram ao direito de reprimir por sua conta infrações e
reconhecem um poder de coação, independente e superior, encarregado de reprimir as violações
à lei. No estado de natureza, cada um faz justiça por suas próprias mãos, e Locke considera que
continua a ser esta a situação da sociedade internacional. Entre os príncipes Luis XIV e Guilherme
III, o único árbitro é Deus. Cada qual faz justiça conforme a força das suas armas. Pelo contrário,
entre dois ingleses, em sociedade política, a coroa ou um funcionário da coroa pronunciar-se-á
sobre o objeto do litígio. E aqui, Locke introduz uma segunda inovação: a sua conceção do estado
de natureza. O poder do corpo político resulta da soma das suas abdicações individuais. O Estado
nasce da renúncia de um certo número de homens que entram em sociedade para constituir um
corpo político. Quando um homem se incorpora ulteriormente numa sociedade política já
estabelecida, tem de aceitar as suas regras, a primeira das quais é não fazer justiça por si. Esta
abdicação não tem, em Locke, uma expressão ilimitada. Nada tem de tirânico, nem de absoluto.
É «um recurso contra a fraqueza e a imperfeição da minoria, uma disciplina necessária à
educação». A fortiori, tendo nascide de um pacto, o poder político só se estende àquilo que é
necessário ao objetivo da sociedade. Ora, entra-se em sociedade para assegurar, graças a um
poder coercivo, independente e autónomo, colocado acima dos indivíduos, o bem estar das
pessoas e a conservação dos bens. Locke não admite que os homens, que deixaram o estado de
natureza, onde não estavam assim tão mal para ficarem melhor, tenham acabado de assinar um
pacto unilateral de submissão ou um contrato que transfere para um homem ou para uma
assembleia um poder absoluto. Por consequência, a formação da sociedade política reduz, mas
não aniquila, as liberdades e as propriedades que existem no estado de natureza. «O poder da
sociedade não pode estender-se para lá do bem comum». Se «a liberdade natural do homem
consiste em não reconhecer na Terra nenhum poder que lhe seja superior, num Estado bem
constituído», que atua no sentido da salvaguarda da comunidade e onde «o poder legislativo é
apenas… confiado para a prossecução de certos fins, povo continua a conservar o direito de
dissolver ou de mudar a legislatura quando se apercebe de que ela atua de maneira contrária à
missão que lhe foi confiada. Porque todo o poder confiado com o objetivo de atingir determinado
fim encontra-se limitado por este». O homem não entra para o Estado com todo o seu ser, mas
só com uma parte deste. Pretende que lhe garantam um certo número de vantagens, em
proporção com o sacrifício que consente. Se não fosse assim, não teria nenhuma razão para
escolher o Estado como forma de vida.

A revolução modelo: esta teoria geral de um Estado limitado fornece-lhe também uma
explicação e uma justificação da época em que vive. Locke liga a revolução inglesa a uma filosofia
política geral. Aquela deixa de ser um simples acidente histórico e perde o seu caráter
evenemencial para adquirir uma ascendência intelectual e um valor universal. O Ensaio sobre o
Poder Civil é, ao mesmo tempo, um texto filosófico e um texto de circunstância. O médico que
acompanha a rainha Maria no seu regresso a Inglaterra é, não só o pai do liberalismo, mas
também o artífice intelectual de uma revolução conseguida. Ele funda filosoficamente a nova
legitimidade. Para que o poder seja legítimo, é preciso que o homem dê a sua adesão à sociedade
civil. Não pode haver sociedade civil sem consentimento dos interessados. Locke não utiliza
termos tão rigorosos como outros autores. Em vez do termo contract, prefere muitas vezes usar
compact ou agreement, que têm um significado menos rígido e um alcance jurídico menos
preciso. O pensamento de Locke adquire um realismo particular. A aceitação, o agreement, pode
ser tácita. A maior parte das vezes adere-se à sociedade política pela simples presença no
território. Esta presença, que equivale a assentimento, é o bastante para obrigar ao cumprimento

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das leis criadas pela comunidade. O meio pacífico de sair da comunidade é aquele que Althusius
tinha formulado: a emigração. A este respeito, Locke, muito ligado a certos lordes que organizam
as deslocações para o ultramar, imagina que o consentimento poderia ser expresso. Aqui não
basta calar e consentir; é preciso manifestar uma vontade positiva. Contudo, não se exige um
consentimento unânime para a criação do Estado. Admite-se uma maioria simples, porque se o
indivíduo pudesse prejudicar os planos do maior número, a sociedade dissolver-se-ia
rapidamente. «Quando um certo número de homens consente em formar uma comunidade ou
um governo, torna-se por isso mesmo independente e constitui um só corpo político em que a
maioria tem o direito de dirigir e obrigar os outros. Se, com efeito, graças ao consentimento de
cada indivíduo, eles formaram uma comunidade, também constituíram esta como um corpo, com
o poder de agir como um só corpo, o que só é possível por vontade e decisão da maioria… É
necessário que o corpo se mova na direção para onde o leva a maior força, quer dizer, o
consentimento da maioria.» Só há, portanto, poder atribuído. Á noção de “mandato” ou de
“delegação”, Locke prefere a noção de trust. Já as Provisões de Oxford, em 1258, se baseavam
na ideia de que o príncipe desempenhava uma missão que lhe fora confiada, com vista a uma
certa finalidade e com a obrigação de atingir um objetivo combinado. O que Locke chama political
trusteeship é, precisamente, um poder confiado dentro de certos limites e com vista a
determinado fim. Além disso, o trust comporta um elemento de confiança recíproca. O
consentimento nunca é dado de uma vez para sempre. É condicional e subordinado ao
comportamento dos governantes, em cujas mãos os governados não abdicaram do poder. A
comunidade permanece soberana. Também os direitos naturais, que são a vida, a liberdade e a
propriedade, continuam a existir no estado social. Os homens apenas abandonaram o direito de
serem eles a zelar pela sua conservação e a punir as infrações.» Enquanto o trustee permanecer
nos limites da sua missão e cumprir as suas obrigações, o pacto mantém-se. Esta conceção da
monarquia – consensual – baseada num pacto, é essencialmente da monarquia inglesa de 1688.
Mas viria ser também a dos Estados Unidos da América. A Revolução Americana é a perfeita
transposição da demonstração de Locke: o Parlamento Inglês tornou-se depositário infiel do trust
que os ingleses de além-mar lhe tinham confiado; cabia então ao povo das treze colónias retirar
o poder ao depositário infiel, através de uma insurreição dirigida contra o Parlamento de
Westminster, e não contra o rei. Um novo governo civil é fundado pela declaração de
independência de 1776.

As instituições que têm a liberdade por objetivo: o terceiro mérito de Locke é acrescentar
ao pacto, baseado na liberdade, instituições que manterão esta liberdade e a tornarão efetiva.
Locke dá às instituições liberais as suas bases técnicas. Encontramos na sua obra o esboço da
monarquia limitada e já os esboços do regime parlamentar e do regime presidencial americano.
As instituições empíricas da monarquia de Guilherme d’Orange transformam-se em instituições
de valor universal para quem desejar estabelecer um governo livre. Primeiro Locke afasta
qualquer hipótese de dominação absoluta. A seu ver, não se trata de um estado social, mas de
um estado de guerra. Se os homens devessem trocar o estado de natureza pelo despotismo, era
bem melhor que permanecessem no estado de natureza. O poder absoluto é, pelo contrário, um
estado social, porque o povo pode colocar à sua frente um soberano ou uma legislatura
permanente, sem reservar para si o direito de ter deputados temporários. «É um erro acreditar
que o poder supremo ou legislativo pode fazer o que quiser, dispor arbitrariamente dos bens dos
súbditos ou tirar-lhes uma parte a seu bel prazer.» O soberano está vinculado pelas cláusulas do
pacto social. Todavia, Locke tem perfeita consciência de que a passagem do absoluto ao arbitrário
é muito fácil, só se houver prescrições exclusivamente morais ou impedimentos puramente
materiais a proibir o absolutismo de resvalar para o despotismo. Por isso, preconiza instituições

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capazes de assegurar, melhor que quaisquer outras, a liberdade. A primeira salvaguarda, e a mais
importante, é a separação de poderes, ou a distinção dos poderes. Mas em Locke a ideia é levada
sensivelmente mais longe; o seu alcance é mais vasto, o rigor maior. O poder divide-se, quanto
ao seu exercício, em três atividades que asseguram a legislação, a execução e a federação. Há,
assim, três domínios de ação: o da lei, a disposição geral; o da aplicação da lei pela administração
e pela justiça; e um terceiro, o das relações internacionais, o poder “federativo”, cujo nome
resume mal o conteúdo, que é o poder de tratar com potências estrangeiras, de declarar guerra,
de fazer a paz ou, de uma maneira geral, de aplicar as regras do direito internacional público ou
privado. Locke não se limita a esta distinção de princípio. Pensa, além disso, que há um enorme
inconveniente, para a liberdade e para o indivíduo, no facto de todas as formas de ação serem
confiadas às mesmas pessoas. É preciso, a todo o custo, separar a elaboração das leis da sua
execução. O poder de fazer as leis deve pertencer a uma assembleia. Ao invés, certos membros
da sociedade, em número reduzido, serão encarregados de aplicar as leis. Os dois poderes serão
diferentes, porque a assembleia que fizer as leis não as executará e os executantes da lei não
participarão na assembleia que as fez, e também porque esta assembleia não será permanente.
O poder legislativo será um poder descontínuo. Um poder temível, porque impõe regras que
obrigam a todos, mas que só se exercerá intermitentemente. A determinação da regra não deve
confundir-se com a sua aplicação, que é da responsabilidade de um poder contínuo. Em
contrapartida, Locke não vê grande inconveniente em que as relações externas – o poder
federativo – se juntem ao poder executivo. Finalmente, a divisão em três poderes ou órgãos,
legislativo, executivo e federativo, reverte a dois, uma vez que a execução no domínio interno e
no domínio externo se encontra num só. No entanto, neste como em muitos outros, Locke, que,
em suma, acaba de criar o liberalismo político, não é inteiramente explícito. Provavelmente, as
suas ideias não teriam atingido tal grau de perfeição, nem uma tão vasta expansão, se não
tivessem sido consagradas por outro génio, ou se graças a outro génio não tivessem sido objeto
de uma “segunda fundação”.

O LIBERALISMO ARISTOCRÁTICO: MONTESQUIEU

As duas fontes de O Espírito das Leis: antes de o superar, Montesquieu começou por ser
discípulo de Locke e do constitucionalismo britânico. No Ensaio sobre o Poder Civil encontram-se
reunidas «a teoria do poder limitado pelas leis fundamentais do bem público e da liberdade
privada, e a famosa repartição de funções, garantia da liberdade». Mas Montesquieu é também
o sucessor do tradicionalismo aristocrático, a que vai buscar uma parte importante das suas ideias.
Assegurando a confluência das duas tendências, Montesquieu é talvez o mais temível adversário
do absolutismo, porque é o mais realista. A melhor maneira de enfraquecer o poder, no interesse
da liberdade individual, não é transferi-lo, mas partilhá-lo. Ora, a partilha pode ocorrer de duas
maneiras: pode realizar-se no sentido vertical, por interposição, entre o poder e os súbditos, de
corpos intermédios que serão, segundo a tradição aristocrática, depositários de uma parcela do
poder; ou no sentido horizontal, com o reconhecimento de um poder legislativo, de um poder
executivo e de um terceiro poder que, para Locke, era “federativo”, mas que, para Montesquieu,
será “judicial”; três poderes que, colocados lado a lado, servirão mutuamente de contrapeso.

Montesquieu, magistrado, viajante e escritor: oriundo da antiga nobreza, Montesquieu


nasceu em Bréde, perto de Bordéus, em 1689. Faz tão bons estudos clássicos que às vezes quem
o lê pensa encontrar-se perante uma tradução dieta do latim. Em seguida estudará direito, que

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não o satisfaz por aí além, pois o que procura já em cada texto é o “espírito das leis”. Em 1714
torna-se conselheiro do Parlamento de Bordéus, e depois, a partir de 1716, presidente. É bom
magistrado, correto e trabalhador; mas, mais ainda do que as suas funções, gosta dos tempos
livres que elas lhe deixam para se dedicar à leitura e à escrita. «Tenho a mania de escrever livros»,
dirá. Também apresenta comunicações à Academia de Bordéus sobre matérias científicas. A sua
primeira obra, Cartas Persas (1721) traz-lhe fama graça a frases como esta: «A monarquia é um
estado violento que degenera sempre em despotismo ou em república; o poder nunca pode ser
igualmente partilhado entre o povo e o príncipe, o equilíbrio é muito difícil de conservar.» Graças
também, sem dúvida, ao tem de irreverência e ironia desprendida que transparece em algumas
expressões que utiliza: acerca do rei, diz que prefere um homem que o dispa ou lhe estenda a
toalha, a outro que conquiste cidades ou ganhe batalhas; sobre o papa, pensa que é um velho
ídolo que as pessoas veneram por hábito; e se a nobreza sai mais que arranhada quando escreve
que «o corpo dos lacaios é mais respeitável em França do que noutros sítios: pois aqui é uma
escola de grandes senhores», os parlamentos não saem mais bem tratados, quando afirma que
se «parecem com aquelas grandes ruínas que a gente espezinha». O sucesso leva-o a Paris, onde
os salões lhe abrem as portas. Livre, Montesquieu vai poder viajar. Depois do sucesso das Cartas
Persas e da entrada na Academia, teria podido continuar a escrever, como outros, livros sobre
países nunca vistos. Mas ele tem altas ambições, curiosidades ardentes e grande probidade
intelectual. Antes de abordar os grandes assuntos que o solicitam, sente a insuficiência da sua
preparação. Para remediá-la, faz uma longa viagem de vários anos, que é como que a charneira
da sua existência. De tudo isto, com o imenso talento da sua escrita, Montesquieu poderia ter
tirado imagens coloridas e quadros picantes. Mas, renunciando à facilidade, encerra-se no castelo
de La Brède e deita as mãos à obra para extrair lições das suas viagens, logo recoberta pelas suas
leituras. Em 1734 publica como um capítulo destacado da sua grande obra, Considerações sobre
as Causas da Grandeza e da Decadência dos Romanos, em que aparece o conceito de separação
de poderes: «As leis de Roma tinham dividido sabiamente o poder público num grande número
de magistraturas que se apoiavam, se controlavam e se moderavam entre si.» Depois, ao fim de
vinte anos de esforços O Espírito das Leis é editado em 1748. Em 1750, acrescenta-lhe um
suplemento, uma Defesa do Espírito das Leis. Mas já ultrapassou os sessenta anos e este trabalho
demasiado intenso, arruinou-lhe a saúde; morre em 1755, em Paris, durante uma das suas
habituais viagens.

Dificuldades de O Espírito das Leis: O Espírito das Leis é uma obra imponente, mas
também é uma obra de acesso difícil. O próprio Montesquieu se apercebeu do esforço exigido ao
leitor «por causa da extensão e do peso das matérias». Pensou que era necessário ler tudo e
extrair excertos copiados, uns a seguir aos outros, de volumosos registos. Esta obstinação em
nada deixa de perder, aliada à impossibilidade de se reler, explica a ausência de um plano de
construção do conjunto e a desordem de certas passagens. Também é possível que haja em
Montesquieu uma parcela de desordem deliberada. Procurava, assim, obter um efeito artístico.
E até é possível que tenha agido assim por prudência. Todos os escritores do período absolutista,
a não ser que glorifiquem o Príncipe, precisam de andar com pezinhos de lã. Montesquieu possui
uma grande coragem moral, mas a bravura física não é o seu forte.

Montesquieu politólogo: deve ser esta mesma prudência que impede Montesquieu de
intitular claramente a sua obra de A Política. Abrindo magistralmente o capítulo I do primeiro
livro com uma fórmula que se tornou célebre: «As leis, na sua significação mais extensa, são as
relações necessárias que derivam da natureza das coisas». Todavia, à exceção do título do livro e
de algumas passagens do princípio, é quase exclusivamente ao estudo dos governos que
Montesquieu se consagra. Logo no capítulo II do Livro I, aparece este título: Da natureza dos três

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diferentes governos. A partir daí, a definição dos governo e a determinação da sua natureza e do
seu princípio são fundamentais na trama do texto. As “leis” que, segundo o título genérico, seriam
o objetivo da obra, acabarão por ser apenas consequências e derivações. O índice mostra que a
análise das foras de governo rege todo o desenrolar da obra. O Livro II, com que ela começa
verdadeiramente, procede à diferenciação dos governos e ao estudo da sua natureza. O Livro III
examina os seus princípios. O Livro VIII estuda a sua corrupção. Os Livros VI a XIII extraem as
consequências da existência de diversas formas de governo; consequências quanto à educação
(Livro IV), quanto à legislação (Livro V), quanto à simplicidade das leis civis e penais; quanto à
forma dos julgamentos; quanto ao estabelecimento de penas (Livro VI); quanto às leis
sumptuárias: quanto ao luxo e quanto à condição das mulheres (Livro VII); quanto à força
defensiva e ofensiva (livro IX e X) quanto à liberdade política (Livro XI); quanto às liberdades
individuais (Livro XII); quanto aos impostos (Livro XIII). Aqui e ali, alguns capítulos ou fragmentos,
mais ou menos importantes, analisam as relações entre os governos e os costumes (Livro XIX);
entre governos e o comércio (Livro XX); e entre o governo e a população (Livro XXIV).

Natureza, princípios e formas de governo: o próprio Montesquieu limita com precisão o


seu tema. As formas pré-estatais podem ter interesse, mas não passam de uma introdução à
ciência política. Põe-nas de lado. Diz que não cabem no seu objetivo as sociedades que não têm
um poder supremo definido e constituído. Não considera os povos bárbaros, os povos selvagens,
os povos de caçadores e os povos de pastores; só examina formas acabadas, consideradas hoje
como estatais no sentido próprio do termo. Para as organizar, Montesquieu adota a classificação
utilizada geralmente no seu tempo. Não segue, embora a conheça perfeitamente, a vulgata de
Aristóteles, mas prefere juntar “democracia” e “aristocracia” sob o nome de “República”, como
Estados com várias formas de governo, e dividir o governo de um só em “monarquia” e
“despotismo”. Faz assim progredir consideravelmente a análise política, introduzindo duas
noções novas que distingue com cuidado: a natureza e o princípio. A natureza do governo é o que
faz que ele seja o que é; por outras palavras, a natureza do governo traduz a sua estrutura e o
seu mecanismo. O “princípio” é o que faz agir o governo, a mola que põe em marcha os cidadãos
e modela o espirito geral. Uma vez determinada a natureza e fixado o princípio, Montesquieu
deduz, para cada forma de governo, uma série de consequências rigorosas. Da “natureza” do
governo derivam as “leis políticas”, quer dizer, aquelas que tendem para a organização
governamental. Por outras palavras, da natureza do governo procede o direito constitucional. Do
“princípio” do governo provêm as leis civis e as leis sociais. Estas visam a manutenção de um certo
equilíbrio e a tomada de certas orientações, cujo princípio modela o direito geral público.

As Repúblicas: segundo esta terminologia, os regimes que Montesquieu considera


Repúblicas são, para a Antiguidade, Roma, Atenas e Esparta; e Veneza e Génova para a Idade
Média e os Tempos Modernos. Nestes exemplos, Montesquieu inclui sob o mesmo rótulo a
democracia e a aristocracia, porque naquelas cidades famosas viu-se, em geral, uma e outra
sucederem-se constantemente. Por isso, não as separou. No entanto, a natureza e os princípios
destas duas repúblicas não são os mesmos:

1. A República Democrática: é, por natureza, aquela em que a soberania está


nas mãos do povo que é, em certos aspetos, soberano e, noutros, súbdito.
Como monarca, obedece aos seus desígnios próprios, que exprime através
do sufrágio; como súbdito, obedece a magistrados por ele nomeados. Analisa
muito bem a sua subdistinção entre “democracia direta” e “democracia
representativa”. «O povo detentor do poder soberano deve fazer por sua
própria iniciativa tudo o que pode. Quanto ao resto, tem de fazê-lo por

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intermédio dos ministros.» O princípio da República é a virtude. Parece que,


neste ponto, o próprio Montesquieu teve algumas hesitações. Num aviso em
que se nota ainda uma prudência em tanto temerosa clarifica o seu
pensamento. «Não se trata de uma virtude moral, nem de uma virtude cristã,
é uma virtude política.» A virtude republicana consiste no civismo. Este
reconhece-se por uma maior preferência dada ao interesse público do que
ao próprio interesse, e pelo amor às leis e à pátria. A virtude implica ainda a
igualdade e a frugalidade. O amor à igualdade limita a ambição exclusiva do
desejo, exclusiva da honra, de prestar melhores serviços à pátria do que os
outros cidadãos. «O amor à frugalidade limita o desejo de ter às necessidades
exigidas pela família, ficando o supérfluo para a pátria.» A virtude republicana,
portanto, o amor às riquezas, do qual resultaria um poder que um cidadão
não pode usar em seu próprio favor. Porque esta virtude «numa república é
uma coisa muito simples…, o amor da República…, é um sentimento e não
uma série de conhecimentos», a corrupção raramente começa pelo povo.
Mas se esta virtude deixar de existir, «a República torna-se um despojo; e a
sua força mais não será que o poder de alguns cidadãos e a licenciosidade de
todos». Daqui decorrem os traços principais da legislação de uma república:
as leis devem manter a igualdade; também devem conservar a pureza dos
costumes. O regime implica, assim, uma situação algo medíocre, relacionada
não só com o pequeno número, mas com o comportamento dos habitantes.
A República, tanto para Montesquieu como para os homens do seu tempo, é
um regime que só serve para Estados de pequenas dimensões, Estados-
Cidade;
2. A República aristocrática tem por natureza o facto de a soberania popular
estar nas mãos de alguns. Só uma parte do povo tem o poder soberano; a
outra parte está, para os que governam, como estão, numa monarquia, os
súbditos perante o soberano. A eleição de magistrados faz-se por escolha e
não por sorteio; estabelece-se um senado para regular os assuntos que o
corpo de nobres não é capaz de resolver. O princípio do regime republicano
aristocrático também se baseia na virtude, mas esta já não é o civismo; é a
moderação que o substitui, porque, se assim não fosse, uma República
aristocrática não duraria muito. A moderação por parte dos poderosos
deixará ao povo uma parcela de influência; será preciso criar inquisidores ou
controladores que, se necessário, recorrerão à violência para restabelecer a
liberdade do Estado; será preciso compensar o excesso de poder dos
magistrados com a brevidade do seu mandato; será preciso, enfim, devolver
a justiça ao povo. Se as leis não tiverem estabelecido o tribuno do povo, é
preciso que elas próprias sejam um tribuno.

As monarquias: Esta designação engloba a monarquia propriamente dita e o despotismo.

1. Quando se fala da monarquia, Montesquieu só considera os grandes Estados


contemporâneos. A natureza da monarquia é que o poder soberano esteja
nas mãos de um só homem, que governa através de leis fixas e
preestabelecidas. «O monarca é a fonte de todo o poder político e civil, mas
não absorve toda a autoridade, pois também é da natureza da monarquia ter
poderes intermédios, subordinados e dependentes, que impedem os desejos
momentâneos e caprichosos de um só individuo e asseguram a continuidade

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e o caráter fixo das leis fundamentais.» Assim, o poder intermédio mais


conveniente é o do clero; o mais natural é o da nobreza; um terceiro poder
é dado a um corpo de magistrados que conserva o registo das leis e as
recorda aos príncipes. O princípio da monarquia reside na honra, ou melhor,
nas honras. Considera-as um móbil bizarro e filosoficamente falos, mas na
realidade omnipotente. «Pode levar ao objetivo do governo, como a própria
virtude. Salvaguarda, em todo o caso, a dignidade e a obediência. A honra,
com efeito, dita-nos que jamais o príncipe deve exigir uma ação que nos
desonre, porque ela nos tornaria incapazes de o servir.» Por conseguinte, a
monarquia implica também a desigualdade e privilégios. As leis zelarão por
isso;
2. O despotismo completa a descrição e a análise em profundidade dos regimes
políticos. Montesquieu dá como exemplo o regime dos turcos e de certos
países do Norte da Europa, em particular da Rússia. A natureza do regime é
que o monarca reina sem lei e segundo a sua vontade e os seus caprichos.
Aliás, muitas vezes, o soberano não manda porque não tem tempo; distrai-
se no serralho – quer dizer harém – e deixa os assuntos sérios para um
ministro. O princípio do regime é o medo, com os reflexos que gera. «Para
educar um animal, é preciso evitar cuidadosamente que ele mude de dono,
de lição e de passo. Deve atingir-se-lhe o cérebro com duas ou três ordens e
não mais.» Naturalmente, Montesquieu é muito severo com o despotismo.
«Quando os selvagens da Luisiana querem fruta, cortam a árvore pelo pé e
colhem os frutos. Eis o governo despótico.» Depois desta série de
observações, não se pode negar que Montesquieu tenha ido mais longe no
estudo dos governos do que os autores que o procederam. Com a introdução
das noções de “natureza” e de “princípio”, pela lógica assim conferida às leis
que daí decorrem, fornece uma explicação completa dos governos.

O seu único fim é fixar os perfis dos governos, examinar as suas realizações na história, enumerar
e especificar as condições morais e físicas da sua vigência, instalação, grandeza e declínio. A coisa
política deve ser estudada tal como é, explicada e não julgada. «Eu não justifico os usos, mas
descubro-lhes as razões.»

Os regimes que têm a liberdade por objetivo: contudo, o ato do nascimento da ciência
moderna da sociedade é apenas a primeira face do destino histórico de Montesquieu. A outra é
feita da teoria política que o autor explicou em O Espirito das Leis. Há uma rutura nas intenções,
que corresponde a uma viragem na sua vida. A dado passo da sua obra, o observador torna-se
doutrinário. Surge um ideal político ao qual subordinar a sua investigação. À primeira classificação,
que permanece descritiva, sucede uma segunda, dominada por uma “ideia-mãe”: a da liberdade.
Montesquieu é um observador; procede a investigações no local; ouve testemunhos orais;
examina testemunhos escritos. A sua epígrafe tem, portanto, um sentido esotérico que ele lhe
atribuía no círculo dos íntimos. A “mãe” que não participou no nascimento de O Espírito das Leis
é a Liberdade. Montesquieu escreveu num país onde ela não existia. A sua obra nasceu sem mãe.
No entanto, esta liberdade, mãe das leis justas, descobriu-a nas margens de Além-mancha. E este
encontro tornou-se matéria de deslumbramento. Em Paris, a monarquia desagrada-lhe
profundamente. A que conhece é a monarquia da Regência, «onde a arte de governar mais não
é que a arte de corromper». Ao iniciar a sua grande viagem está inclinado a escolher para modelo
as Repúblicas da Antiguidade. Mas quando visita Génova e Veneza, a sua deceção é completa.
Reencontra à beira do grande canal a corrupção que tinha deixado nas margens do Sena. Em

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contrapartida, a Inglaterra representa para ele o regime por excelência da liberdade. É a grande
viragem da sua obra, o famoso capítulo VI do Livro XI, sobre a constituição inglesa, escrito, sem
dúvida, depois de 1734. Montesquieu abandona a posição de observador imparcial e toma
partido vigorosamente. A primeira consequência da admiração pela Constituição Inglesa é o
abandono dos pontos de vista tradicionais e a proposta de uma nova classificação com a liberdade
por critério. As Repúblicas não são Estados livres por natureza. A inaptidão da República para
trazer liberdade se deve ao facto de ser um regime socialmente indiferenciado, um regime
igualitário, um regime de massas em que todas as partes são homogéneas. Os elementos são
justapostos e não hierarquizados. Satisfaz a igualdade, mas não a liberdade. A monarquia não
tem necessariamente a liberdade por objetivo. Pode visar apenas a glória do Estado ou do
Príncipe. Nesse caso, afasta-se cada vez mais da liberdade, e separa-se cada vez mais da liberdade,
e separa-se dela completamente quando degenera em despotismo. Mas a monarquia torna a
liberdade possível. Sociologicamente é o regime em que a divisão do trabalho social vai mais
longe. A sua estrutura social é diferenciada pela multiplicidade de ordens funções e condições;
uns fazem as leis, outros aplicam-nas, uns governam, outros julgam. Ninguém pode afastar-se da
sua função, nem imiscuir-se na de outrem. As classes moderam o poder do monarca. Os órgãos
do corpo social moderam a autoridade real e moderam-se uns aos outros. A separação de
poderes não se aplica só aos órgãos do governo. É um princípio de ordem geral: a monarquia está,
assim, predisposta a ser um regime liberal. Pode vir a sê-lo acidentalmente; também o pode ser
deliberadamente. Não bastam os obrigações da consciência ou os conselhos da razão. O pode
terá de ser partilhado. Haverá liberdade política, porque de cima abaixo serão mantidos «os
escalões intermédios»; e no topo estabelecer-se-á uma separação de poderes. «A liberdade só
se encontra nos governos moderados.» Mas nem sempre existe nos Estados moderados: só
quando não se abusa do poder. Para que não se possa abusar do poder, é preciso que o poder
trave o poder, segundo uma máxima fundamental d’O Espirito das Leis. Montesquieu começa por
retomar a trilogia de Locke: poder executivo, federativo e legislativo. Depois, sem se explicar
claramente escamoteia o poder federativo. Substitui-o pelo poder judicial, que por sua vez fará
desaparecer, tornando-o invisível e nulo. Restam o poder executivo e o poder legislativo,
repartindo-se este por duas Câmaras. «Eis, portanto, a constituição fundamental de que falamos.
Sendo o corpo legislativo composto por duas partes, cada uma acorrenta a outra pela faculdade
mútua de impedir. As duas estarão ligadas pelo poder executivo, e este, por sua vez, pelo poder
legislativo.» Feitas as contas é do Parlamento inglês que se trata: Câmara dos Comuns, Câmara
dos Lordes e Rei. «Estes três poderes deveriam estar em repouso ou inativos; mas como, pelo
movimento necessário das coisas, são obrigados a agir, terão de o fazer concertadamente.»

A SOBERANIA POPULAR: JEAN-JACQUES ROUSSEAU

O Cidadão de Genébra

Saída de Genébra: na segund ametade do século, a opinião pública desvia-se de Londres


e volta-se para Genébra, ao encontro de Jean-Jacques Rousseau. Sem dúvida, esta cidade é bem
diferente da Cidade-Igreja de Calvino, embora conserve dela certos hábitos, nomeadamente o de
fechar as portas à noite. Este fechar de portas terá uma influência decisiva na via do autor do
Contrato Social. Filho de um pai caído em desgraça e extravagante e de uma mãe que morreu ao
dá-lo à luz, uma escapadela entrega-o à sua carreira errante, à vagabudagem familiar, profissional
e intelectual que marcará o seu espírito e a sua obra. Para evitar uma sanção, Rousseau refugia-

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

se na Sabóia. Em 1741, parte para Paris com quinze luíses na algibeira. É bem recebido nos meios
mundanos, onde se impõe pelos seus conhecimentos musicais. É graças à música que Diderot o
contrata para colaborador da Enciclopédia, apesar de Rousseau, com mais de 35 anos, ainda não
ter escrito nada. O tema do concurso proposto pela Academia de Dijon incita-o a pegar na pena:
«A contribuição do restabelecimento das letras e das artes para melhorar os costumes.» Esta
questão atua no seu espírito como um catalisador que provoca a cristalização dos seus
sentimentos esparsos e dos seus pensamentos incertos. Diderot orgulha-se de lhe ter dado a
ideia. Mas já estava presente na sua vida. Rousseau, a caminho de Vincennes, é possuído por um
deslumbramento. Uma iluminação revela-lhe a própria filosofia da sua existência. Corrompido
pela sociedade, atribui-lhe um papel corruptor. No Discurso sobre as Ciências e as Artes (1750)
denuncia a sua má influência, colocando-se, assim, em oposição às ideias recebidas.

O período das grandes obras: neste momento, com uma lógica que raramente porá nos
seus atos, Rousseau retira-se do mundo. Recusa as honras e proveitos com que poderia ter sido
cumulado. A sua retirada depressa o levará ao Ermitage (1756) e depois a Montmonercy (1758),
onde desenrola a parte mais fecunda, se não a mais feliz, da sua vida. Dois anos antes, Rousseau
tinha publicado o seu primeiro texto político, o artigo “Economia Política” da Enciclopédia. Este
tema traduz o seu interesse pelas questões sociais, e também a competência que devia ser-lhe
reconhecida na matéria. O Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens, tema
igualmente proposto pela Academia de Dijon não trouxe recompensa a Rousseau. Talvez por se
tratar de uma verdadeira declaração de guerra à sociedade existente: «Vê-se o que se deve
pensar da desigualdade que reina entre todos os povos civilizados, uma vez que é
manifestamente contra a lei da natureza… que uma criança mande num velho, um imbecil
conduza um homem sábio e um punhado de gente se encha de coisas supérfluas, enquanto a
multidão carece do necessário.» A condenação é tão violenta que seria caso para perguntar
porque razão o homem não deixa a sociedade para regressar ao estado de natureza, se na última
parte da obra não houvesse já o esboço de uma construção racional ulterior, o Contrato Social,
onde Jean-Jacques anuncia os problemas que irá abordar, assinalando as suas dificuldades e o
seu interesse. Dois pequenos textos de importância secundária mostram a persistência da suas
preocupações políticas e a intenção de em breve esclarecer estas questões: Juízo sobre a
Polissinodia do abade Saint-Pierre e Juizo sobre o projeto de Paz perpétua d abade Saint-Pierre.
Enfim, em 1761, Rousseau acaba e publica o Contrato Social, que apresenta como um simples
fragmento das “Instituições Políticas” que teria desejado escrever. Assegura que não está
plenamente satisfeito. Mais tarde chega a considerar o Contrato como um livro a reescrever,
embora «já não tenha força, nem tempo».

A vida errante: a condenação do Émile pelo Parlamento de Paris obrigou Jean-Jacques a


fugir para a Suíça. Começou, então, para o autor do Contrato Social, uma vida errante. Jean-
Jacques julga-se perseguido. Efetivamente, os enciclopedistas perseguem-no com um ódio tenaz.
Para fugir dos inimigos, entre 1764 e 1768, não pára de viajar. Em Val Travers, acaba as Cartas
Escritas da Montanha (1764), em que o aspeto suíço e genebrino da sua obra política se acentua
em proveito da imaginação. As suas últimas obras são Considerações sobre o Governo da Polónia
e Seu Percurso e Reforma, redigida a pedido de um magnata polaco, e Cartas a Madame Butta
Foco, projeto de Constituição para Córsega. Mas ficaram ambas inéditas, só tendo conhecido
depois da sua morte. Morre em 2 de julho de 1778, em Ermenoville. Conforme desejava, foi
enterrado na ilha dos Peupliers (choupos), no meio do parque. Em 1794 as suas cinzas foram
transferidas para o Panteão.

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Rousseau, discípulo da Escola do Direito Natural: Jean-Jacques Rousseau presta


homenagem a Montesquieu, mas não está de acordo nem com as suas conceções, nem com o
seu método. Retoma, de outra maneira, a crítica dos partidários do absolutismo esclarecido. Na
sua opinião, Montesquieu ficou a meio caminho. «O direito político está ainda por nascer».
Montesquieu – que teria podido criá-la – não se preocupou em traçar-lhe os princípios,
contentou-se «em tratar de direito positivo dos governos estabelecidos». Esta atitude objetiva é,
pelo contrário, condenada por Rousseau, como uma fraqueza fundamental: «Não há nada no
mundo tão diferente como estes dois estudos.» Jean-Jacques pretende dizer o que deve ser e
não o que é. Nele, ganha a maior importância a oposição entre a politologia dogmática e a
politologia positiva, entre o que se poderia chamar a política “especulativa” e a política
“experimental”. Apesar da sua falsa reputação, o Contrato Social é um livro de direito. O subtítulo,
mais exato que o título, mas menos sonoro, é Princípios do direito público. Jean-Jacques utilizou
largamente todas as suas leituras. Não só conhecia as obras destinadas a um público vasto, como
as de Hobbes, de Locke ou de Montesquieu, e ainda textos mais técnicos dos mestres e dos
divulgadores da Escola do direito da natureza e das gentes, expressão com que na época se
denominava a ciência do direito. A sorte de Rousseau foi que, em vez de escrever um livro escolar
num latim pesado ou cheio de ornatos, como fez Grotius, pôs numa obra literária a substância de
um tratado de direito positivo.

O estado de natureza: ao intitular o seu livro Contrato Social, Rousseau prefere


simplesmente um título evocativo a um título neutro. Mas, no fundo, esta escolha segue a
tradição. Toda a Escola do direito da natureza e das gentes – e antes dela a Escolástica – admite
a existência inicial de um “contrato social”, fundador da sociedade civil. Hobbes disse que o
estado de natureza era perigoso, um estado a abandonar, um estado do qual se deve fugir o mais
depressa possível quaisquer que sejam as condições, como se foge de uma casa em chamas
invadida pela peste. Locke, depois dele, acha que o estado de natureza não é necessariamente
bom, nem fatalmente mau. Tanto pode ser superior como inferior ao estado de sociedade. Pensa
que só se sai do estado de natureza para melhor e não para pior, contrariamente a Hobbes;
sobretudo, considera que não se sai a qualquer preço. O “contrato social” funda uma sociedade
de participação limitada. Montesquieu, por sua vez, atém-se às realidades da observação. Afasta
do seu campo de estudo os povos em estado selvagem e só considera o estado social. Para
Rousseau, estado de natureza é o estado de bem aventurança. É a sua utopia, ou melhor, o seu
anacronismo. «Eu vejo o homem saciando a fome debaixo de um carvalho, dessedentando-se no
primeiro regato do caminho, fazendo a cama ao pé da árvore que lhe deu de comer… Os únicos
bens que conhece no universo são o alimento, uma fêmea e o repouso. Os únicos males que teme
são a dor e a fome, não precisa dos seus semelhantes para nada e não reconhece nenhum
individualmente.» O estado de natureza, o verdadeiro e puro estado de natureza é, assim, o
estado selvagem, no qual os homens foram criados e viveram durante milhares de anos.
Caracteriza-se pelo isolamento vagabundo, pela ausência de qualquer linguagem, de qualquer
relação regular, pelo sono da razão e a ignorância da moralidade. Em contrapartida, o homem no
estado de natureza é robusto, são e ágil. Como encontra facilmente o pouco de que precisa, é
completamente feliz. Rousseau pede «que lhe expliquem qual pode ser o tipo de miséria de um
ser livre, cujo coração está em paz e o corpo de boa saúde». No entanto, «para sua mais completa
felicidade e depois para sua infelicidade os homens possuem duas faculdades, a liberdade de
concordar ou resistir e a faculdade de aperfeiçoar». Ajudadas por circunstâncias fortuitas, elas
encaminham o homem para relações com os seus semelhantes, embora conservando a sua plena
independência. Ele quer saborearas alegrias da família, encontrar melhor e mais depressa o que
lhe é necessário, aceder a uma certa moralidade. Há, assim, para Rousseau, um segundo período

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do estado de natureza em que os homens ainda são mais felizes do que no primeiro. «Embora se
tenham tornado menos resistentes e a compaixão natural já tenha sofrido alguma alteração, este
período de desenvolvimento das faculdades humanas, mantendo um justo equilíbrio entre a
indolência do estado primitivo e a petulante atividade do nosso amor-próprio, deve ser a época
mais feliz e mais duradoura.» A humanidade sai dela por um funesto acaso: a invenção da
metalurgia e da agricultura. Estas duas formas de trabalho vão gerar a propriedade individual do
solo, a desigualdade, a riqueza e a miséria, as rivalidades, as paixões e as mais desordens temíveis.
Os conflitos e as rixas explodem. Vítimas da fatalidade que faz com que um estado anterior,
depois de abandonado, não possa ser reencontrado, devem doravante, para escapar à destruição
material, associar-se em vez de se combaterem. O Discurso sobre a Desigualdade descreve as
três fases de instalação da sociedade civil. A primeira situação de desigualdade foi criada pela
diferença entre ricos e pobres («o primeiro que tendo cercado um terreno, se apressou a dizer:
isto é meu, e encontrou gente bastante simples para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da
sociedade civil»). A segunda situação surge com a distinção entre governantes e governados,
imposta pelos ricos, que querem que as suas propriedades sejam defendidas pelo aparelho
coercivo de um governo. A terceira situação sobrevém quando, em virtude de os governantes se
terem tornado déspotas, se estabelece a distinção entre senhores e escravos. Tudo isto lembra
os temas caros aos estoicos e aos primeiros cristãos; haveria uma falta misteriosa ou pecado
original. Propriedade privada, escravatura e governo são outras tantas punições. A sociedade civil
é furto de uma evolução infeliz. Esta é natural ao homem, mas da mesma maneira que a
decrepitude do idoso e as muletas do doente. Este do mal-o-menos é, inevitável, dada a
irreversibilidade das transformações sociais.

O liberalismo de Rousseau: no estado social, o problema consiste em saber como salvar


a liberdade primitiva. Renunciar-lhe seria renunciar à qualidade de homem, aos direitos da
humanidade e, por isso mesmo, aos deveres que ela impõe. Como conciliar, então, as
necessidades de associação e a manutenção da liberdade natural, que não deve ser alienada?
Como fazer com que, simultaneamente, ninguém tenha de suportar um senhor e ninguém tenha
o direito de impor a sua vontade aos outros? À primeira vista, trata-se de exigências atagónicas,
mas Rousseau julga-se em condições de dar uma resposta válida. Na realidade, deu duas
respostas diferentes. Estas divergências explicam-se facilmente. Jean-Jacques começou por
descrever a sociedade existente, descoberta pelo pequeno-burguês calvinista acabado de chegar
de Genebra. E é a isso que ele se dedica por inteiro, Haverá alienação da liberdade pessoal ao
corpo social, mas a soberania do corpo social, em que cada participa, fará com que cada um,
obedecendo-lhe, obedeça apenas a si próprio. Rousseau quer a liberdade, mas à maneira dos
antigos, o que quer dizer que a vê assegurada pela participação na determinação do
comportamento da coletividade, ao passo que a liberdade dos modernos é a do comportamento
individual, tal como tinha discernido perfeitamente Montesquieu, que a deu por objetivo ao
governo constitucional. É uma encruzilhada do liberalismo, em que se abrem dois grandes
caminhos para eliminar o absolutismo do príncipe:

 O primeiro consiste em partilhar o poder. É a solução do tradicionalismo


aristocrático, assim como a do liberalismo nascente;
 Um segundo caminho faz passar o poder do príncipe para a coletividade: para o
povo, com Rousseau.

Em ambos os casos, é o fim do poder absoluto. No primeiro, a unicidade, condição do absolutismo,


rompe-se; no segundo, há transferência do poder pessoal para a coletividade, que para Rousseau
é o povo reunido. Uma parte dos liberais concluirá que a transferência do poder para o povo não

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assegura a liberdade e, pelo contrário, pode até criar um novo absolutismo. Rousseau, pelo
contrário, acha que obedecer a todos não é obedecer a ninguém, quando se é membro do todo.
A solução reside na desnaturação da liberdade e da igualdade naturais. A cláusula fundamental
do contrato social é a de uma sociedade formada com base na «alienação total de cada associado,
com todos os seus direitos, à comunidade». Mas esta alienação não suprime a liberdade e
igualdade: «desnatura-as». Tratando-se da liberdade, cada um compromete-se com todos, mas
não se entrega a ninguém em particular; o indivíduo não fica sujeito a quem quer que seja, e só
obedece a si próprio. Tendo contratado apenas consigo próprio, é tão livre como anteriormente.
No que respeita à igualdade, a alienação é idêntica para cada um, que «adquire sobre cada um
dos outros exatamente o mesmo direito que lhe cede sobre si.» Liberdade e igualdade são assim
mantidas, mas à liberdade natural sucedeu a liberdade civil, a do cidadão, enquanto a igualdade
natural foi substituída pela igualdade civil, muito diferente daquela espécie de anarquismo que
percorria do Discurso sobre a Desigualdade. Rousseau diz: «Cada um de nós põe em comum a
sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral; e recebemos um corpo
cada membro como parte indivisível de todo.» Esta soberania do corpo social é indivisível,
pertence ao todo e não à parte. A vontade é geral ou não é vontade. Pertence ao povo no seu
todo. O pacto, que funda a sociedade no consentimento dos indivíduos e substitui legitimamente
a liberdade natural pela soberania do corpo social, não pode limitar esta. «Para que o pacto social
não seja uma fórmula vã contém tacitamente um compromisso, o único que pode dar força aos
outros: aquele que recusar obedecer à vontade geral será forçado a fazê-lo por todo o corpo
social.»

A vontade geral: esta vontade geral manifesta-se pela voz da maioria. «Nem sempre é
necessário que seja unânime, mas é necessário que todos os votos sejam contados. Toda a
exclusão formal rompe a generalidade.» O soberano que vai determinar a vontade geral é o
conjunto do povo. É formado pelos particulares que o compõem. «Suponhamos que o Estado é
composto por dez mil cidadãos. Cada membro do Estado tem pela sua parte um décimo milésimo
da autoridade suprema.» Devido a esta conceção atomística ou individualista da soberania, «será
necessário adicionar todas as parcelas para a reconstituir por inteiro. Mas ao proceder assim, não
se corre o risco de que haja uma vontade geral da maioria, por um lado, e uma vontade
minoritária, por outro? Seria compreender mal o que é, «a vontade geral». O que a maioria
escolheu é deveras a vontade geral, mas o que a minoria, por sua conta, reteve, é só uma falsa
ideia da vontade geral. Quando a maioria se pronuncia, a minoria deve inclinar-se e aceitar que a
verdade está na vontade expressa pela maioria. A vontade geral não pode ser confundida com a
vontade de todos. Há aqui um ponto em que Rousseau, muitas vezes difícil de compreender, é
frequentemente mal entendido. A vontade geral é, na verdade, aquilo a que os escolásticos
chamavam «o bem comum». A vontade geral é um instituto que Rousseau atribui ao ser moral e
coletivo que é o corpo político e a que se liga à comum conservação e ao bem-estar geral.». Então
«o bem comum mostra-se nitidamente em todo o lado, só pedindo bem senso para ser visto».
Cada um quere-o no que lhe diz respeito, e pode dizer-se que cada vontade é geral pelo seu
objetivo. Por isso, o corpo funciona por si e os comportamentos conformam-se naturalmente ao
bem público. Trata-se, enfim, de uma conceção moralista, mesmo que se considere o Contrato
Social uma obra de direito. Moralmente, o que é melhor para a comunidade é também melhor
para cada um dos seus membros, individualmente considerado. A vontade geral é a faculdade
que permite ao homem social querer o interesse geral contra o seu interesse particular.

A democracia direta: mas para haver manifestação da vontade geral, há uma condição
absoluta: é preciso que seja o corpo político a proceder à sua descoberta. Só diretamente
consultado é que ele pode fazer leis. Aqui se revela a primeira consequência política prática do

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sistema de Rousseau, a exclusão da representação em matéria legislativa. «A soberania não pode


ser representada, pela mesma razão por que não pode ser alienada. Consiste essencialmente na
vontade geral e a vontade geral não se representa. É a mesma ou outra, não há meio-termo. Os
deputados do povo não são nem podem ser seus representantes: são apenas comissários; não
podem concluir nada definitivamente.» Se o povo não intervém para deliberar por si, haverá pelo
menos um referendo de aceitação: «Qualquer lei que o povo não tenha ratificado pessoalmente
não é uma lei.» E eis que uma diatribe bem conhecida. «O povo inglês pensa que é livre, mas está
muito enganado. Só o é durante as eleições dos membros do parlamento; logo que eles são
eleitos torna-se escravo, passa a não ser nada. Nos curtos momentos de liberdade, merece perdê-
la pelo uso que faz dela.» «A ideia de representantes é moderna: vem do governo feudal, desse
iníquo e absurdo governo com o qual a espécie humana se degradou e onde o nome do homem
se desonrou. Nas antigas repúblicas e mesmo na monarquia, nunca o povo teve representante.
Não se conhecia tal palavra» O exercício da soberania não só deve pertencer inicialmente ao
conjunto do povo, mas permanecer aí. Assim, de um ponto de partida bastante difícil de discernir,
com a distinção, muitas vezes imprecisa, entre a vontade de todos e a vontade geral, Rousseau
tira conclusões de uma clareza ainda mais perfeita por se apoiarem na Antiguidade, por um lado,
e na Suíça, por outro. O exercício do poder legislativo pertence ao povo. Por conseguinte, o
governo ideal é o da cidade antiga e da «maior parte dos governos antigos, mesmo monárquicos,
como os dos Macedónios e dos Francos». O povo reúne-se e estatui. Se não puder, os que
legislam em vez dele não serão seus representantes, mas apenas encarregados, o que quer dizer
que o trabalho que fazem é preparatório e que as suas decisões, ad referêndum, só serão
definitivas depois da aceitação pelo povo. A segunda consequência, quase tão importante como
a primeira, é que o monopólio de fazer as leis é reservado ao corpo social, excluindo-se qualquer
partilha. «Os nossos políticos, não podendo dividir a soberania no seu princípio, dividem-na no
seu objetivo: dividem-na em força e em vontade; em poder executivo e poder legislativo; em
direito de tributação, de justiça e de guerra; em administração interna e poder de tratar com o
estrangeiro. Fazem do soberano um ser fantástico e formado por peças cosidas umas às outras…»
E acrescenta: «Os charlatães do Japão despedaçam, diz-se, uma criança à vista dos espectadores;
depois, atirando ao ar, um a um, os seus membros, fazem cair a criança viva e inteirinha. São
assim, pouco mais ou menos, as aldrabices dos nossos políticos; depois de terem desmembrado
o corpo social por meio de um prodígio digno de feira, juntam as peças não se sabe como.» Por
isso, só pode haver uma soberania legítima, a do corpo social: a soberania democrática. Nestas
condições, nem a monarquia, nem a aristocracia ou a oligarquia parecem caber no sistema de
Jean-Jacques Rousseau.

Variedades de governo: contudo, ele admite a existência de diversas formas de governo.


A diferença entre o Estado e o governo, entre a constituição do poder e a do governo, não é nova.
Já no século XVI, Bodin não as confundia e até explicava qual era o critério da soberania: «o poder
de fazer e desfazer as leis». Quanto ao governo é o órgão que aplica as leis; Rousseau sublinha:
«Chamo governo ou suprema administração ao exercício legítimo da autoridade executiva e
chamo príncipe ou magistrado ao corpo encarregado desta administração.» Para ser legítimo, o
governo deve obedecer ao soberano, de que é o ministro. O governo recebe a sua função
somente do povo e não de um povo, de um rei ou de um aristocrata. O povo concede mandatos
regulares e sempre revogáveis ao príncipe ou ao magistrado, «simples funcionários que exercem
em seu nome o poder de que o povo soberano os fez depositários e que não pode limitar,
modificar ou retomar quando lhe apetece; sendo a alienação dum tal direito incompatível com a
natureza do corpo social e contrária ao objetivo da associação...» Se a posse da soberania é
absoluta nas suas prescrições, na medida em que representa a própria essência do Contrato

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Social, pelo contrário, a escolha do tipo de governo é relativa, Rousseau retoma a classificação
tradicional de Aristóteles dos governos democrático, aristocrático e monárquico.

O governo democrático: até aqui, admite, em relação a este ponto, a influência das
circunstâncias e introduz elementos de relatividade: terreno, população, clima. Aceita que se
façam comparações e que haja discussão. Contrariamente ao que se poderia presumir não é
partidário do governo democrático. Teoricamente, seria o governo ideal «Quem faz a lei sabe
melhor do que ninguém como ela deve ser executada e interpretada. A melhor constituição é
aquela em que o poder executivo está ligado ao legislativo.» «Se houvesse um povo de Deus,
governar-se-ia democraticamente.» Mas dizer que um governo democrático é feito para um povo
de Deus é, ao mesmo tempo, considerar que não é feito para um povo de Deus é, ao mesmo
tempo, considerar que não é feito para os homens, o que leva Rousseau, depois de encarar a
hipótese desse regime, a relega-lo para um Olimpo constitucional. Primeiro, por uma razão
material: não se pode imaginar o povo sempre reunido para tratar exclusivamente dos negócios
públicos. Se o povo tivesse que ser ao mesmo tempo o autor da lei e o agente da sua execução,
deveria reunir permanentemente. Depois, se o conjunto do povo governasse, o poder legislativo
reabsorveria o executivo. Se o soberano, quer dizer o legislador, e o príncipe, quer dizer o
executivo, fossem a mesma pessoa coletiva, o conjunto do povo formaria, por assim dizer, um
governo sem governo. Esta distinção traz vantagens. As duas vantagens Às vezes estão de acordo
e outras vezes opõem-se. Do seu esforço combinado, da sua concordância ou do seu conflito
depende o funcionamento de toda a máquina. Enfim a confusão entre o legislador e o executivo
obrigaria o corpo político a descer ao pormenor. Ora, a ideia está subjacente a qualquer obra, o
perigo está no peculiar. Se o povo fosse executivo e legislativo ao mesmo tempo «desviaria a sua
atenção da perspetiva geral para a dedicar a objetivos particulares», quando a lei deve ser
expressão da vontade geral, não só na origem, mas também no objetivo. «Tomando o termo na
sua aceção rigorosa , nunca existiu verdadeira democracia e jamais virá a existir. E contra a ordem
natural que o grande número governe e o pequeno seja governado.» Pois que semelhante
governo pressuporia «um Estado muito pequeno onde fosse fácil reunir o povo e onde cada
cidadão pudesse facilmente conhecer todos os outros; em segundo lugar serie necessária uma
grande simplicidade de costumes para prevenir a acumulação de problemas e de discussões
espinhosas; depois teria de existir uma igualdade nas categorias e nas fortunas…; enfim pouco ou
nenhum luxo…[que]corrompe ao mesmo tempo o rico e o pobre, a um pela posse e ao outro pela
cobiça… retirando ao Estado todos os seus cidadãos para os sujeitar uns aos outros e todos eles
à opinião». É precisamente por «não haver governo tão sujeito à guerras civis e às agitações
intestinais como o democrático ou o popular, porque não há nenhum outro que tanto e tão
continuadamente tende a mudar de forma, nem que exija mais vigilância e coragem para manter
a que lhe pertence…», que a conclusão se impõe: «um governo tão perfeito não convém a
homens».

O governo monárquico: reconhecida a impossibilidade de recorrer a um governo


democrático, deve, então, preferir-se a monarquia, entendida no sentido de poder executivo
individual? Jean-Jacques admite-o, na condição de a monarquia ser aceite pelo conjunto do povo,
isto é, de, na prática, ser eleitoral. Nesse caso, torna-se legítima. Rousseau designa-a «a
monarquia republicana». «Chamo república a todo o Estado regido por leis, seja qual for a sua
forma de administração.» A administração republicana pode ser monárquica. Este tipo será
realizado pela constituição que em breve irá desabrochar do outro lado do Atlântico. Com um
presidente eleito, o regime americano pode ser qualificado como “monarquia republicana”. A
partir desse momento, a conceção clássica dos homens do século XVIII, para quem a República
era o governo da muitos vais ser substituída pela noção de República como equivalente de

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democracia. Quando um príncipe, pessoa física, dispõe do poder executivo, «não pode haver
governo com mais vigor», mas «também não há nenhum em que a vontade particular exerça
mais influência». E eis que desponta em Rousseau uma certa inquietação: o governo tende
sempre a reforçar-se, ao passo que a soberania tende sempre a abrandar. A assembleia destinada
a fazer as leis reunirá de tempos a tempos, mas o executivo terá caráter permanente. Se for muito
concentrado, se estiver nas mãos de um só, arrisca-se progressivamente a invadir o terreno do
soberano e, finalmente, a aniquilar a democracia.

O governo aristocrático: Rousseau prefere uma forma governamental intermédia e, por


fim, pronuncia-se a favor de um governo aristocrático, quer dizer, um Estado democrático em
que o Governo pertence a um pequeno número de homens. Em primeiro lugar a aristocracia
permite distinguir o poder executivo do poder legislativo. Em segundo lugar, o sistema
aristocrático, ao escolher os membros do governo entre um pequeno número de personalidades,
assegura praticamente uma seleção, e daí o elogio espantoso que faz da eleição. Mas Rousseau
é incompreensível se não se distinguir claramente entre o que diz a propósito da soberania e o
que afirma acerca do governo Pode ter sobre o governo uma posição diametralmente oposta à
que tinha sobre a soberania. Enfim, a vantagem de uma oligarquia de governantes é permitir uma
melhor discussão dos assuntos, que serão resolvidos com maior ordem e diligência, dano do
Estado uma credibilidade mais firme. O melhor e mais natural é que sejam os mais sábios a
governar a multidão. Ora, de acordo com o que disse anteriormente, a escolha feita pelo conjunto
do povo será necessariamente uma escolha sábia.

Genebra reencontrada e proibida: a construção de Rousseau não tem, portanto, nada de


irrealista. O seu sistema confia a legislação à assembleia popular. Ora, esta combinação de
aristocracia e democracia, no seio de um regime republicano, é simplesmente uma transposição
e uma idealização do sistema genebrino por parte de um homem que acrescenta ao seu nome o
título de “cidadão de Genebra” e gosta de recordar que «nasceu cidadão de um Estado livre e
soberano». Ainda hoje, espíritos muito diferentes estão de acordo sobre este ponto: Rousseau
projetou no plano eterno as instituições da minúscula República de Genebra. Mas em 1762, a
própria Genebra condena o Contrato Social e obriga o autor a renunciar a uma cidadania que lhe
era tão cara. «Só me resta sofrer ou morrer… quando deixei a França quis honrar com a minha
presença o Estado da Europa que mais estimava e tive a simplicidade de acreditar que me
agradeceriam pela escolha. Enganei-me: a culpa é minha, não se fala mais nisso…» Havia, com
efeito, razões para ficar inquieto, quanto mais não fosse por causa da exaltação da comunidade
a que leva a vontade geral. É que, doravante, o Rousseau anarquizante do Discurso louvará os
benefícios do estado social. Não deverá o cidadão «bendizer sem cessar o feliz instante que o
arrastou para sempre (ao estado de natureza) e que, de um animal estúpido e limitado, fez um
ser inteligente e um homem»? Mas, como «tratar separadamente a política e a moral» é «não
compreender nada nem de uma nem de outra», esta espécie de entusiasmo platónico pela
comunidade é ainda mais preocupante porque, longe de se ater ao plano moral donde partiu a
ideia, tem a sua tradução política no absolutismo. O verdadeiro soberano é, na realidade esta
infalível vontade geral, inalienável e indivisível, outros tantos aspetos que equivalem a dizer que
é absoluta.

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O LIBERALISMO PURO: BENJAMIN CONSTANT

A era liberal: no interior francês, o liberalismo dominante provém da segurança burguesa,


tal como esta se instala depois da Restauração para durar até 1914. Por certo, essa tranquilidade
ser atravessada por duas breves mas violentas tempestades: as Jornadas de Junho e a Comuna.
No exterior, o liberalismo clássico mergulha nesse clima europeu e já largamente realizado, aos
olhos de Benjamin Constant. «A própria divisão da Europa em vários Estados é, graças ao
progresso das luzes, mais aparente do que real. Ao passo que cada povo formava outrora uma
família isolada, inimiga nata das outras famílias, existe agora uma massa de homens com nomes
diferentes e diversas formas de organização social, mas homogénea na sua natureza.» Guerras
breves e limitadas não modificarão durante cem anos esta situação.

O inventor do liberalismo: Émile Faguet atribui a invenção deste a Benjamin Constant. No


entanto, a palavra “liberal” é anterior. Constant, pelo seu lado, prefere designar-se
“independente”. Aliás, não se pode atribuir a um só homem a honra de ter sido o inventor de
uma doutrina que não deixou de evoluir depois da contestação do absolutismo. Mas Benjamin
Constant tem o mérito de a ter libertado de outros elementos que se lhe colavam. Com ele, o
liberalismo puro assume contornos claros e impecáveis. Constant, que nunca soube o que queria,
sempre soube dizer exatamente o que pensava. Conserva, entre todas as mentiras do coração, a
sinceridade do espirito. Devorado pela atividade e sempre febril, gira à volta dos poderes
impaciente por lá entrar. Conselheiro ou oponente acaba por nunca entrar no governo. Em
compensação, é um mestre entre os escritores políticos. A sua frase é perfeita, a sua discussão é
cerrada, a sua argumentação límpida. E como, no fundo, dá uma interpretação relativamente
simples de um mundo complexo, atinge sem dificuldade aquela sedutora claridade que é própria
dos clássicos. Entre os ideólogos que o precedem e os sociólogos que o seguem, Constant tem o
privilégio de ser suficientemente dotado de ideias gerias para agradar ao público culto, a quem
desagradaria um excesso de tecnicismo, e de possuir experiência bastante para escapar ao vazio
dos argumentos artificiais. Não sendo historiador, meditou muito sobre o passado; não sendo
investigador, viajou bastante; não tendo governado, esteve muito próximo do poder e conheceu
as assembleias a ponto de ser mais do que um curioso e amador.

As duas liberdades: qualquer esclarecimento começa com distinções. A primeira a ser


trazida por Constant é a dos dois sentidos que a palavra “liberdade” ganhou ao longo da história.
É a famosa oposição Da liberdade dos antigos comparada com a liberdade dos modernos. «O
objetivo dos antigos era a partilha do poder social entre todos os cidadãos de uma mesma pátria.
Era a isso que chamavam liberdade. O objetivo dos modernos é a segurança nos gozos privados;
e chamam liberdade às garantias dadas pelas instituições para esses gozos.» Incontestavelmente,
é para a liberdade dos modernos que vai a predileção de Constant, porque ele é individualista
antes de ser liberal. O ideal de Costant é o «de assegurar ao homem a disposição e a expansão
de si próprio, onde quer que esteja, por ser homem. Professa «o isolamento orgulhoso e cioso
do individuo na fortaleza dos seus direitos» e formula «o sistema de individualismo mais ousado
e mais extremo concebido por um homem inteligente». «Por liberdade, entendo o triunfo da
individualidade, tanto sobre a autoridade que quer governar pelo despotismo, como sobre as
massas que reclamam o direito de a maioria subjugar a minoria.» As liberdades políticas nada são
«se não houver por detrás delas esses direitos individuais e sociais que são o fundo e a própria
substância da liberdade». Por conseguinte, o indivíduo é proprietário de todas as forças que
vivem nele, dando ao Estado apenas o mínimo de que este necessita para existir e subsistir.

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O Estado minimalitário: o Estado liberal denominar-se-ia assim Estado “minimalitário”,


por oposição antecipada ao Estado totalitário. Claro que Constant usa uma linguagem demasiado
pura para empregar um tal neologismo. Repugna-lhe até usar o termo “Estado”. Em
contrapartida, determina com precisão o sentido que deu à ideia de mínimo de governo. Este não
consiste no menor governo possível. Na sua esfera própria, não poderia existir demasiado
governo. Por isso, é essa esfera própria que deve ser reduzida ao mínimo. O governo achar-se-á
acantonado nas únicas funções que se constituem o seu direito. Aí, a sua força deve ser completa;
para lá desse ponto, a sua força deve ser nula. A determinação da esfera própria do governo não
pode ser obra da lei. Há leis opressivas, leis tirânicas, leis maléficas. Uma outra ilusão, propagada
por Rousseau, consiste em acreditar que a participação do indivíduo no estabelecimento das leis
é um seguro contra todos os riscos. Uma parte da pessoa humana deve, por necessidade, manter-
se individual e independente. «Quando transpõe esta linha, a sociedade é usurpadora, a maioria
e facciosa… Ainda que (a autoridade) fosse a nação inteira, menos o indivíduo que ela oprime,
não seria por isso mais legítima.»

O constitucionalismo: é preciso, portanto, que as instituições sejam estabelecidas e


funcionem de tal maneira que tenham, conforme o desejo de Montesquieu, diretamente «a
liberdade por objetivo». Constant interroga-se acerca dos diversos regimes. O despotismo puro?
Tornou-se impossível num tempo de comércio e de luzes. A aristocracia? É a opressão e o
privilégio, uma reserva feita por uma parte da força social em proveito duma classe, à custa do
indivíduo. A democracia? É a vulgarização do absolutismo. Só há um modo de governo bom,
aquele em que ninguém é soberano e onde tudo é regulado pela constituição. Assim, com
Constant, reforça-se e torna-se exclusiva a ideia de que esta se limita aos regimes que têm a
liberdade por objetivo ou, como diz mais concretamente a declaração de 1789, que asseguram a
separação dos poderes e a garantia das liberdades. Não há liberdade sem constituição e,
reciprocamente, não há constituição sem liberdades. A constituição é o meio essencial pelo qual
a liberdade é assegurada. O próprio regime constitucional é normalmente monárquico. Além da
tradição que representa, só a monarquia constitucional permite o funcionamento do «poder
neutro». O funcionamento concorde dos poderes é atribuído por Constant ao único homem
colocado por via do nascimento em posição eminente, o Rei, que… «ser à parte… nunca pode
fazer parte da cndição comum» Contudo Benjamin Constant aceita a República, se ela for
constitucional. «Entre a monarquia constitucional e a República, a diferença está na forma. Entre
a monarquia constitucional e a monarquia absoluta, a diferença está no fundo.» O «poder
moderador», o terceiro pilar institucional destinado a intervir em caso de crise, quer decidindo a
dissolução da assembleia, quer demitindo o governo.

A democracia constitucional: a República Constitucional, que não é, evidentemente, a


República democrática. Hostil à democracia absoluta, também é inimigo da democracia direta.
Não concebe governo que não seja representativo e só reconhece direitos políticos a quem é
capaz de os exercer. «É indispensável um certo ócio para a aquisição das luzes e para a retidão
do julgamento. Só a propriedade, assegurando o ócio, torna os homens capazes do exercício dos
direitos políticos.» Devemos ver aqui uma conceção deliberadamente e definitivamente
oligárquica ou, para retomar os próprios termos de Benjamin Constant, a liberdade dos antigos
deve ser recusada aos modernos? Para ele, há dois absolutismos igualmente deploráveis: um
monárquico e o outro democrático. O primeiro não se altera se for simplesmente transferido; o
segundo, lá por ser popular, não é melhor. Mas os meios empregados para limitar o absolutismo
de um só indivíduo podem ser eficazes para reduzir os riscos do absolutismo coletivo, que
resultam de uma extensão progressiva do sufrágio. Assim, pode conceber-se um
constitucionalismo democrático. Embrionário na obra de Benjamin Constant, terá de sofrer uma

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longa evolução interna e de enfrentar vitoriosamente os assaltos das doutrinas antagónicas, para
se tornar a vulgata ocidental do século XX. Mas, sem esperar glória póstuma será chamado pelo
Imperador, durante os Cem Dias, para redigir o Ato Adicional às Constituições do Império. E
poderá invocar fidelidade às suas ideias: «Defendi durante 40 anos o mesmo princípio: liberdade
em tudo, na religião, na filosofia, na literatura, na indústria e na política. E, por liberdade, entendo
o triunfo da individualidade, tanto sobre a autoridade que quer governar pelo despotismo, como
sobre as massas que reclamam o direito de a maioria subjugar a minoria.»

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