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Susana Videira
HISTÓRIA DAS
IDEIAS POLÍTICAS
葡京法律的大学 | 2013/2015 | 大象城堡
História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer
Hemos chegado ao segundo semestre!!! Talvez a incógnita seja ainda maior, talvez a
determinação mais forte. O mais importante, porém, é tentar até se perceber o caminho.
Desejando a maior fortuna e sorte para o semestre, referimos que esta sebenta não invalida e
deve!! Ser complementada, nos seus possíveis erros, com os manuais de referência, incluindo o
dos presentes autores.
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IDADE MÉDIA
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O SACERDOTALISMO MEDIEVAL
A Revolução Cristã:
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povo e na conservação da dinastia. Esta conceção da autoridade será recolhida quase na íntegra
pela tradição cristã.
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imprudentes que permitam condená-lo. Mandam os seus discípulos e alguns herodianos, que
começam por dirigir a Cristo pérfidos cumprimentos: «Mestre, vós que tão bem falais, dizei-nos
a vossa opinião sobre isto: “É permitido pagar tributo a César?”». Jesus pede-lhe uma moeda e
pergunta por sua vez «De quem é esta imagem e esta inscrição?» «De César.», respondem eles.
«Então», diz Jesus, «dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.» Palavras decisivas,
pois indicam que há coisas que César tem o direito de pedir e obter, mas que, em oposição a todo
o pensamento antigo, há outras que Deus reserva para si. Noutras passagens, Cristo proclamará
que o seu «reino não é deste mundo». E ordenará a Pedro, no Jardim das Oliveiras, que volte a
embainhar a espada. Mas se o poder civil é respeitado, a seu lado institui-se uma igreja que é a
transposição do poder originário de Deus para o plano intermédio da humanidade. «Tudo o que
for ligado ou desligado na terra será igualmente ligado ou desligado no céu.» Assim nasce um
dualismo fundamental. Há uma partilha entre duas ordens de vida e uma divisão entre dois
poderes. O poder político tem por domínio o temporal, isto é, o governo dos interesses presentes
da vida humana, combinado com sanções materiais. Inversamente, o poder religioso exerce-se
sobre o intemporal. Diz respeito às relações entre os homens e Deus. O seu domínio é o do
espiritual, do governo dos interesses eternos das almas, com meios de santificação e sanções
apropriadas que, em si, não são de caráter material. O dualismo instaurado pelo Cristianismo é a
tradução normal da mudança que afetou a religião: de assunto do grupo, torna-se assunto
individual.
OS APÓSTOLOS E OS PADRES
A doutrina pauliana: nos primeiros anos da pregação evangélica, a tónica não é posta na
noção de humanidade nem na dualidade de poderes. No interior do Império Romano, os cristãos
das origens formam incontestavelmente uma sociedade. Não passam de comunidades
escondidas e vivem num fervor extremo, muitas vezes à espera do fim do mundo. Depois, o
primeiro ponto do ensino evangélico, o «Dai a César», adquire toda a sua importância. A tónica é
posta na obediência ao poder estabelecido. Apesar das perseguições, ele parece continuar a ser
o invólucro protetor dentro do qual o catolicismo nascente pode desenvolver-se Acima de tudo,
o primado do dever de obediência a César resulta do desejo dos cristãos de responder, pela
doutrina e pelos factos, às calúnias dos pagãos que vêm neles uma seita de revoltados. Nestas
condições, é bastante lógico que, até ao momento em que o Édito de Constantino, em 313, vem
ordenar o fim das perseguições e a tolerância do culto cristão, o dever de submissão às ordens
do soberano seja especialmente realçado, primeiro pelos Apóstolos, depois pelos escritores
cristãos. São Pedro, o primeiro Papa, escreve aos fiéis que se encontram sob a sua jurisdição:
«Submetei-vos a todas as instituições humanas por causa do Senhor, tanto ao rei como àquele
que possui a autoridade suprema, tanto aos governantes, como aos seus delegados.» Estes
ensinamentos serão retomados em pormenor por São Paulo, na Epístola aos Romanos: «Que
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todas as almas se submetam aos soberanos, pois não há poder que não venha de Deus». Trata-
se da famosa fórmula: non est enim potestas nisi a Deo, «não há poder que não venha de Deus».
Por isso os cristãos devem ser «submissos não só por temor, mas por razões de consciência». São
Paulo confirma a doutrina geral nas instruções pastorais que dá aos seus discípulos. Escreve ele
a Tito: «Lembra aos fiéis, meu filho, o dever de se submeterem ao Príncipe e às autoridades, o
dever de lhes obedecerem.» E diz a Timóteo: «Assim, começo por exortar a que se façam preces
súplicas e ações de graças pelos reis e por todos os que estão constituídos em dignidade.» Para
o apóstolo, parece ser essencial lembrar aos fiéis o dever de obediência e ao mesmo tempo levá-
los a rezar pelos que mandam na Cidade. A partir daqui, é possível destacar uma conceção
pauliana da autoridade política. A autoridade do Príncipe impõe-se porque ele é instrumento de
Deus. O príncipe é o executante, quer queira quer não, das intenções da Providência que inspira
os seus atos. É feito para promover o bem e reprimir o mal. Desempenha uma tarefa divina, ainda
que o não saiba. A Igreja constitui uma formação quase exclusivamente espiritual, embora preste
aos fiéis certos serviços de ordem prática, como a assistência aos pobres. Mas a Igreja é
clandestina e o poder público é inteiramente estranho à religião, a ponto de não haver qualquer
ponto de contacto entre si. Os deveres dos cristãos para com o Estado pagão assentam
exclusivamente no direito natural. É em funções de um ministério pelo bem que estes são objeto
de uma obediência diferente e de uma prece ao Deus dos cristãos.
O Império cristão: a situação da Igreja primitiva é clara na sua simplicidade, pois que Reino
e Igreja se movem então em domínios distintos. Já o fim das perseguições vai arrastar, com as
primeiras imbricações constitucionais e pessoais, as primeiras dificuldades intelectuais. A partir
do momento em que o imperador se faz cristão, tudo passa a ser diferente. Os titulares do poder
tornam-se fiéis e, nessa qualidade, também pertencem à Igreja. Por outro lado, esta sai das
catacumbas, a princípio apenas tolerada, depois diretamente reconhecida. Constitui uma
coletividade institucionalizada que supera em importância tudo o que o império podia conter em
matéria de associações organizadas e coloca, na sua acuidade nascente, um problema
“interconstitucional”. A primeira fase era essencialmente de obediência ao poder estabelecido
levada ao extremo. A segunda já comporta certas tentativas dos homens de Estado para
subordinarem a si os homens da Igreja e dos homens da Igreja para ganharem vantagem sobre
os civis.
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que são os príncipes. Crisóstomo compara ainda os que mandam aos médicos, que servem para
nos curar das doenças que nos afligem. As prescrições têm algo de penoso, mas quando se está
doente, é preciso obedecer-lhes. Portanto, é a perversidade que torna indispensável a autoridade.
Segundo o Antigo e o Novo Testamento, se o homem não fosse pecador, o governo seria inútil
Este principado é maior do que o outro; e por isso que o rei baixa a cabeça sob a mão do sacerdote.
A Cidade de Deus: tal como Ambrósio, seu pai em Deus, Agostinho ocupou-se das
relações entre a Igreja e o Império. Encontrava-se em Milão na altura em que o bispo entrou em
luta com a imperatriz Justina. Receando que a mãe do rei-menino mandasse os soldados raptar
Ambrósio, o povo cristão mantinha-se junto do seu bispo e passava as noites na igreja, pronto a
morrer com ele. Semelhante tensão desaparece na altura em que Agostinho, quase no fim da
vida, começa a Cidade de Deus. A Igreja está em paz com o Império. Além disso, o poder civil está
ameaçado; precisa de ser reforçado contra a dissolução interna e, sobretudo, contra as ameaças
do exterior, depois de Roma ter sido tomada por Alarico, à frente dos Godos em 410. Das suas
fileiras erguem-se queixas, seguidas de acusações à religião nova, por ter enfraquecido e
arruinado o Império. Como explica nas Retrações, foi para combater as suas blasfémias e os seus
erros que o zelo ardente da casa do Senhor colocou a pena na mão de Agostinho. Esta refutação
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preenche os cinco primeiros livros da Cidade de Deus. Os cinco seguintes afastam a tese pagã.
Assim, os dez primeiros livros são essencialmente apologéticos. Agostinho esforça-se por
convencer os pagãos de que o cristianismo em nada é o causador dos males que atingem o
império e a capital. O resto da obra é uma exposição das doutrinas cristãs. Descreve o nascimento
das duas Cidades: a Cidade de Deus e a Cidade do Mundo. Mostra o seu desenvolvimento paralelo.
Enuncia os seus fins necessários. A Cidade de Deus não é um tratado de política.
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como o seu sujeito. O homem necessita, por natureza, da sociedade e de uma sociedade dotada
de uma autoridade. Logo, a autoridade é indispensável e transcendente, mas a indicação do seu
titular e a instauração da sua forma concreta são imanentes e efetuam-se por intermédio dos
factos humanos. Aquele que faz do poder coisa sua escamoteia a liberdade e impõe aos cidadãos
um jugo de ferro, como fizeram Mário e Sila em Roma. Ao mesmo tempo, leva a sonhos de guerra
e de conquista. Ora, Santo Agostinho é essencialmente pacifista. O espírito belicoso transforma
a Civitas imperans, aCidade que manda segundo as leis, em Cidade tirânica. Civitas imperiosa, que
não passa da expressão de apetites desenfreados. A missão do poder consiste em fazer reinar a
justiça. Foi com este fim que o domínio foi dado ao rei. A justiça é, em si, anterior ao poder.
Imutável, eterna, soberana, comum no espaço e no tempo, impõe-se a todos os países, a todas
as instituições, a todas as consciências. A autoridade, pensa ele, não é um mal, mas relativamente
à justiça é secundum. O poder tem tudo a temer ao afastar-se da justiça. Segundo os pontos de
vista platónicos, o poder, se ameaçado na sua estabilidade e no seu equilíbrio, é-o igualmente na
sua retidão e na sua tranquilidade. A ausência de justiça desencaminha o poder, e o poder
desencaminhado é um poder que se perde. E aqui aparece a fórmula: «Que são os reinos sem
justiça, se não enormes malfeitorias?» A justiça consiste em desempenhar com a maior exatidão
o seu dever, em dar a cada um, de acordo com a tradição latina, o que lhe é devido sem fraude
nem favor. Considera a autoridade como moralista; indica os deveres que incubem aos seus
titulares e lembra-lhes as responsabilidades. Por fim, trata do mando na qualidade de apóstolo,
a fim de eliminar os resíduos pagãos que ainda sobrevivem. A autoridade, que já São Paulo
concebia como o exercício de um ministério, comporta em Santo Agostinho três ofícios ou oficia:
o officium imperandi: é o serviço de mando. Quem está investido dele deve poder impor
a vontade.
o officium providendi: é o da providência. Através dele, a autoridade assegura a
tranquilidade e a felicidade em vista à qual os homens se agruparam. O dever do chefe é
ver e prever por aqueles que lhe estão subordinados, saber o que é bom para eles e
satisfazer as exigências do seu bem.
o officium consulendi: dá ao chefe o papel de conselheiro do seu povo. A sua autoridade
deve ser posta ao serviço dele. O mando é um aspeto da caridade; os súbditos são irmãos.
Se alguém lhes impõe a sua vontade, é para bem deles, para cumprir perante eles o
grande mandamento, o mandamento evangélico por excelência: «a autoridade deve ser
aceite como um serviço e amada como um beneficio».
Tendo a justiça na base da caridade no topo, a Cidade proporciona a felicidade aos cidadãos.
As formas de poder: estes deveres impõem-se a todos os príncipes, seja qual for a forma do poder.
Logo, a escolha desta é secundária. Pelo que lhe diz respeito. Agostinho não vê vantagem tão decisiva, nem
inconveniente que leve a recorrer a um governo em vez de outro, ou a afastá-lo. Pouco importa, desde que
o depositário do poder não arraste os governados para atos de imoralidade, injustiça ou impiedade. Todo
o governo será, se não bom, pelo menos aceitável, na condição de, em matéria moral e religiosa, respeitar
Deus e respeitar o homem. Agostinho utiliza, com pequenas diferenças, a terminologia clássica da
Antiguidade. O rei injusto é um tirano; a aristocracia injusta é uma fação; o povo injusto merece, como rei
injusto, ser classificado de tirano. A perda de justiça e o seu desconhecimento têm para ele consequências
absolutamente radicais. O principado que desconhece o Direito não é apenas um principado corrompido,
é um principado aniquilado. Mas, com a reserva da manutenção da justiça e do respeito pela religião, todos
os regimes políticos e equivalem, todos têm os mesmos direitos e a mesma autoridade e podem reclamar
a mesma submissão.
A Igreja e o Império: do mesmo modo, seja qual for o regime, o poder civil e o poder eclesiástico,
cada um por seu lado, são bem distintos. Ambos gozam de uma independência soberana. Toda a
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espécie de ingerência de um poder no domínio do outro, é culpável, e perigosa, quer para o bem geral,
quer para o poder que desconhece os limites da sua esfera de competência. Assim, as duas esferas
parecem completamente separadas, Império e Igreja movem-se em dois planos diferentes. O plano da
Igreja é superior, entende que o Império não deve à Igreja serviços de dinheiro, mas somente proteção
contra os inimigos. Invoca a proteção do Império contra os pagãos, contra os judeus. É então levado a
estabelecer um princípio cuja importância domina toda a História da Idade Média e, em parte, dos
tempos modernos: o direito de intervenção do Império nos conflitos de consciência. Mas por amor da
paz, aceita o Império os erros de política e a insuficiência da administração. Em vista a um bem maior,
a Igreja tolera que lhe sejam impostas as leis muito imperfeitas neste mundo. É uma consequência da
sua condição. Na terra, a Igreja é cativa; passa o tempo no exílio. Nesta situação conforma-se a todas
as imperfeições que o Império arrasta atrás de si. Agostinho prefere insistir naquilo que a Igreja dá ao
Estado e que é essencial para a sua subsistência: a virtude dos cidadãos. A Igreja deve ser dentro do
Império uma escola de civismo e fraternidade. Segundo Agostinho, a evolução dos regimes não se deve
ao acaso nem a uma fortuna cega. A este respeito, opõe a Providência cristã à deusa Fortuna, que
usava uma faixa sobre os olhos. A marcha dos reinos e dos impérios processa-se segundo um plano
que Deus conhece, mas que os homens ignoram. Deus, autor e regulador de tudo, não pode deixar os
reinos fora da ordem universal. Os regimes adaptam-se às necessidades, às tendências e até aos
caprichos de cada época. Recebem de Deus, pelas vias já indicadas, a delegação misteriosa de mandar.
Mas a Providência, que preside ao seu nascimento, assiste aos seus avanços e aos seus recuos; segue
a sua evolução; estabelece o seu balanço; verifica o que cumpriram de bem e de mal; compara-os e
regula a sua sorte de acordo com uma justiça rigorosa. Pensa que o cristão tem um dever particular
de lealdade para com um príncipe que é, também ele, um príncipe cristão. Todavia formula, quanto à
imensidão do império, uma critica que merece ser assinalada. Agostinho pensa que a extensão do
Império Romano foi um fator da sua decadência, porque trouxe consigo a corrupção dos costumes e
da administração. Os serviços tornaram-se maus por ausência de controlo e por concussão. O aparato
do Império ultrapassou a sua solidez, e Agostinho, cujo estilo continua a ser, por vezes, o do antigo
retórico, compara-o ao vidro pelo brilho e pela fragilidade. O ideal político na medida em que existe
algum no plano terrestre, é o ideal de uma humanidade unida, mas fracionada em pequenos
principados, o que, moderando-lhes as pretensões por força da exiguidade, tornaria mais fáceis as suas
relações com a Igreja. Entre eles, entrevê uma emulação fraterna. Haveria muitos principados no
mundo, tal como há muitas famílias nas cidades.
O AGOSTINIANISMO POLÍTICO
O desvio do pensamento agostiniano: ao longo dos seus escritos, Agostinho mostra grande confiança
no Imperador cristão. Evita cuidadosamente identificar o Império com a Igreja. Discerne claramente o
caráter legítimo das instituições políticas Proclama que o papel destas é da vontade de Deus para que
a ordem seja mantida, e afirma a necessidade de as pessoas se submeterem a elas em obediência aos
desígnios providenciais, mesmo quando os reis ou imperadores são apóspatas ou pagãos. No entanto,
a conceção “ministerial” do poder secular traz como consequência, com a cristianização do Imperio, a
qualificação do bem como virtude e do mal como pecado. O ministério religioso de que são investidos
os reis e imperadores cristãos faz com que passem a dever obediência aos chefes da Igreja. Mas a
distinção continua a ser nítida. O papa Gelásio I também distingue claramente as duas jurisdições, a
espiritual e a temporal. A sua Decretal é célebre: «A origem da separação dos poderes espirituais e
temporais deve ser procurada na ordem estabelecida pelo divino Fundador da Igreja. A pensar na
fraqueza humana, teve o cuidado de que as duas autoridades ficassem separadas e cada uma
permanecesse no domínio particular que lhe foi atribuído. Os príncipes cristãos devem servir-se do
sacerdócio nas coisas que se referem à salvação. Os padres, por sua vez, devem fazer confiança no que
foi estabelecido pelos Príncipes, em tudo o que respeita aos acontecimentos temporais, de maneira
que o soldado de Deus não se intrometa nas coisas do mundo e que o Soberano temporal nunca se
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pronuncie nas questões religiosas.» Repartimos assim os dois poderes, deve ser providenciado para
que nem um nem outro possam atribuir-se uma autoridade preponderante e para que cada qual
permaneça fiel à missão que lhe é confiada.
O imperialismo carolíngio: no entanto, será feita uma tentativa para reconstruir a ordem
política da humanidade, dando à comunidade cristã uma estrutura que já não seria a do Império
pagão, mas que ultrapassaria as dominações locais e parciais resultantes das grandes invasões
bárbaras. À volta de Carlos Magno, leigos e eclesiásticos vêm o rei dos Francos, assinalado por
Deus para domar a barbárie, converter os povos pagãos e criar entre eles uma comunidade de fé
e de lei semelhante a um Estado. Mas ninguém pensa em dar-lhe a coroa imperial. O mundo
cristão contém três personagens providenciais: o imperador do Oriente, o Papa e o Rei. Este é,
de facto, poderoso e glorioso do que os outros dois, mas contenta-se com o título de “patrício” a
que recorreu para conter e em seguida esmagar os Lombardos e para se erigir em protetor da
Igreja. À volta do Papa ninguém parece disposto a conceder-lhe a dignidade imperial. Os seus
títulos são suficientes. Invoca-se a donatio Constantini, um documento de origem obscura
publicado por volta de 750, onde o Imperador, ao retirar-se para Bizâncio teria formalmente
doado todo o Ocidente ao Papa. Baseada ou não num facto autêntico, a donatio Constantini
traduz uma crença geral. Esta divergência inicial explica as atitudes de Leão III e de Carlos Magno,
por ocasião da coroação deste, a 25 de dezembro do ano 800. Leão III, que precisa de um protetor
e o encontrou em Carlos Magno, quer sagrá-lo Imperador. Mas é essencial que a iniciativa parta
dele. Por isso, atua de surpresa. Sem preparativos coroa Carlos Magno durante as cerimónias do
Natal. Este não aprecia muito um processo tão expedito. De facto, o título imperial não dá a Carlos
Magno nenhum território novo e nenhum direito que não tivesse já, nem sequer sobre o
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Imperium do pontificado, de que o Papa tinha a firme intenção de continuar a ser o soberano
espiritual. Mas confere-lhe grandeza e obrigações morais. Carlos Magno é assim colocado no topo
da hierarquia dos poderes humanos. Torna-se chefe temporal da comunidade cristã, de que o
Papa é o chefe espiritual. Não se trata propriamente de restauração do Império Romano mas da
criação de uma sociedade político-religiosa de tipo novo, cuja conceção decorre diretamente do
agostinianismo político. O exercício da sua elevada função religiosa absorve-lhe a atividade
temporal. Ao fazer do batismo o laço principal entre as nações tão diferentes que conquistou
realiza temporalmente aquela unidade humana, aquela “humanidade” outrora realçada como
ideal evangélico. Caminha-se assim para a realização do agostinianismo político: O Império
concebido como reino da Sabedoria e preparação para a Cidade de Deus… A ideia Imperial de
Carlos Magno é antes de mais uma visão religiosa da ordem do mundo. O Império carolíngio, ao
esvaziar em definitivo a noção de Império, legado da antiguidade, para o substituir pela conceção
nova de uma comunidade com base e fim religiosos, para os substituir pela conceção nova de
uma comunidade com base e fim religiosos, abre intelectualmente as vias para o sacerdotalismo
gregoriano. Cede-lhas na prática quando, por sua vez, entra em decadência. O novo sistema
político, o feudalismo, fruto da anarquia política provoca uma divisão ilimitada, um retalhamento
ao infinito. O papado, que ficou a ser o único poder universal, considera-se então, não só pai e
senhor de todas as Igrejas, mas o substituto da autoridade política definhante. Aquela
impressionante superioridade de todos os elementos da autoridade conduz a uma dominação da
Igreja até sobre o Século.
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como a formula Gregório VII: «É lei da religião cristã que, a seguir a Deus, a autoridade real seja
dirigida pelos cuidados da autoridade apostólica. A Escritura comprova que a autoridade
apostólica e pontifícia apresentará os reis cristãos e todos os outros fieis diante do tribunal divino
e prestará contas a Deus dos seus pecados.» É Rationi peccati, em razão de pecado, que os reis
são dependentes dos papas. A inclusão dos reis na vida moral faz parte da tradição da Igreja.
Gregório VII apoia-se numa declaração de Gelásio I: «Há dois poderes principais, Augusto
Imperador, a reger o mundo, a autoridade sagrada dos Pontífices e o poder Real. A
responsabilidade dos sacerdotes é ainda ais grave porque têm de prestar contas ao tribunal
divino por todos, até pelos Reis.» Mas Gregório VII só reconhece a autoridade dos reis como
legítima na condição de eles a exercerem na Igreja e para a Igreja, de serem os dóceis auxiliares
da justiça sobrenatural de que o papa é o supremo defensor. O Rei é o vigário de Cristo, do Papa.
Nos primeiros tempos do seu pontificado, Gregório VII utiliza fórmulas moderadas. Mas ao longo
do conflito com Henrique IV da Alemanha, a conceção sacerdotal vê-se definitivamente explicada.
Gregório VII que pode, «em nome de São Pedro e de São Paulo, tirar e dar na terra a cada um
conforme os seus merecimentos, os impérios, os reinos, os principados, os ducados, os
marquesatos e todas as possessões dos homens». A doutrina torna-se hirerocrática. O êxito de
Canossa em 1077, com a humilhação do imperador, coroa a obra de Gregório VII, que fica a dever-
se tanto às suas qualidades pessoais de energia e inteligência como às fraquezas dos
interlocutores. O agostinianismo politico soube transforar-se em tradição e fez entrar o domínio
Temporal na Igreja. O rei tornou-se um poder subordinado à Santa Sé; se não é abolido, o ofício
real é esvaziado da sua antiga soberania.
São Bernardo e a alegoria dos dois gládios: Contudo, uma menção especial deve ser feita
a São Bernardo (1090 – 1153). As duas espadas surgem no relato da Paixão. No sermão depois
da Ceia, Jesus indica aos Apóstolos que devem preferir a espada à túnica. E eles respondem que
têm duas espadas. Logo Cristo diz: «É quanto basta». Um pouco mais tarde, Jesus ordena a Pedro,
que tinha cortado uma orelha ao servo do grande sacerdote, que torne a meter a espada na
bainha. Destas duas espadas, São Bernardo extraiu uma simbologia completa. Os dois gládios
representam os poderes espiritual e temporal e são ambos de instituição divina. Mas, pelo facto
de Pedro ter duas espadas, cabe ao sucessor de Pedro conceder o gládio temporal ao imperador.
O príncipe é um agente necessário, pois puxar da espada é indigno das funções sacerdotais ou,
pelo menos, incompatível com elas. «Aquele que diz que a espada não é do Papa não me parece
que ouça com atenção bastante a frase do Senhor quando declara: “Torna a meter o gládio na
bainha.” Este pertence a Pedro e aos seus sucessores e só por ordem deles deve ser usado,
embora não deva sê-lo pela sua própria mão.». «Ambos os Gládios pertencem à Igreja, a saber, o
gládio espiritual e o gládio material [temporal]. Mas este deve ser usado para a Igreja e aquele
pela Igreja; o primeiro pela mão do sacerdote, o segundo pela mão do cavaleiro, mas certamente
por ordem do sacerdote e a mando do imperador.»
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Inglaterra, Thomas Becket, arcebispo da Cantuária, apostrofa o rei: «aquele que te fez rei, para
governar e não para oprimir, háde pedir-te contas com usura dos talentos que te confiou.» E João
da Salisbúria levará a análise ao extremo de formular uma das mais percucientes teorias do
tiranicídio:
1.º Existem duas autoridades distintas mas complementares, feitas para dirigir em
conjunto a cristandade, comunidade universal superior a todas as outras, a ponto de os países
serem apenas províncias suas;
3.º Foi o Papado que fez o Império do Ocidente. O Imperador é um cristão consagrado
que possui, acima de todos os outros, a primazia de ser oficialmente encarregado, por força da
sua sagração, da defesa da Igreja. Exerce o protetorado dos interesses gerais da cristandade.
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achar recurso humano contra o tirano, então é necessário recorrer ao rei de todos, a Deus, que,
no meio das tribulações, socorre no momento próprio». Verifica-se que São Tomás de Aquino, se
acentua e aprofunda o conflito interno do pensamento medieval, entalado entre o regresso do
pensamento antigo e o apelo, já percetível, do pensamento moderno. Efetivamente, a Idade
Média propõe um sistema político homogéneo e exclusivo, assente na ideia de uma comunidade
constituída por Deus e que engloba a humanidade total.
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Origem e forma do poder: à unidade humana, natural e racional, constituída pela Cidade,
é necessário um poder político. Existe em si, conforme à natureza e não procedente de outro
poder humano que lhe seria superior. Tem origem em Deus, mas Deus como criador da natureza.
Formulou a sua teoria num encadeamento de dois silogismos:
Mas a colação desta autoridade, divina na sua essência, é humana nos seus modos. Passa
pelo povo: omnis potestas a Deo per populum. São Tomás formula claramente a doutrina da
Média Via Tomista. A comunidade é necessariamente o primeiro sujeito do poder. Pode
transmiti-lo a uma ou mais pessoas determinadas, por um período limitado e, de preferência, por
tempo indefinido. Ficam assim concretamente demarcadas as várias formas de governo. São
Tomás retoma por sua conta a vulgata de Aristóteles. Distingue três tipos específicos de governo
puro, a monarquia, a aristocracia e a democracia (politeia) e três formas desviadas ou alteradas,
a tirania, a oligarquia e a demagogia (démocratia). Sublinha o caráter moral desta classificação
separando os governos que agem retamente daqueles que agem injustamente quanto ao bem
comum que é o fim da sociedade. São Tomás aceita as formas retas e aprova-as, qualquer que
seja a sua estrutura. Afasta os desvios como sendo injustos, já que visam um bem particular. De
acordo com o mesmo esquema, o poder politico é diferente do poder despótico. O poder político
existe nas províncias ou cidades governadas por um só ou por vários segundo determinadas leis
ou convenções. O poder despótico é ilimitado, tal como o do senhor sobre o escravo. Finalmente,
São Tomás distingue uma terceira forma de poder, o poder real, que não é político nem despótico.
O príncipe governa sem leis, mas a sua liberdade é sábia. Bebe no seu coração a inspiração para
os seus atos, imitando assim a Providência divina.
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desinteressar do bem comum. Por isso, se teoricamente a monarquia pura é o sistema ideal, na
prática deve preferir-se-lhe o regime misto.
O regime misto: o governo misto é, para São Tomás, aquele que conjuga a monarquia, a
aristocracia e o governo popular. Combinação de formas simples, dá origem à sua limitação
recíproca. Há sobretudo duas vantagens a tomar em consideração: é bom que os cidadãos
tenham alguma participação no governo, é o verdadeiro meio para conservar a paz social e
conseguir que todos se vinculem à constituição do país e a defendam; depois, a melhor
organização será aquela que combine com a unidade de ação própria da monarquia a
superioridade de mérito própria da aristocracia, e ainda a liberdade política e a igualdade civil
próprias da democracia. Logo, o melhor regime será aquele em que um único chefe à frente do
Reino governe segundo a lei e a virtude; onde segundo a mesma lei de virtude, determinado
número de magistrados intermédios concorram para a administração; e onde todos os cidadãos,
participando na soberania como eleitores, sejam elegíveis para todas as magistraturas, tanto a
suprema como as subordinadas.
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IDADE MODERNA
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Uma inversão de Tendências: o tomismo como doutrina equilibrada, poderia ter evitado
a inversão de tendências. Mas as conceções do Doutor Angélico têm simultaneamente, a força e
a fraqueza de ultrapassar o seu tempo. O tomismo chega tarde de mais para salvar o Santo
Império. A forma política original, de que a Idade Média estava grávida e que poderia ter nascido
então, diferentemente da Cidade antiga e do Estado moderno, morreu institucionalmente à
nascença. Só a organização da Igreja, muito avançada depois do período dos papas de Avinhão,
beneficiará deste vasto movimento intelectual. O tomismo chega cedo de mais para combater a
violenta reação temporalista do século seguinte e impedir que as tendências laicas assumam o
rigor implacável de um anti-sacerdotalismo radical que estabelece as linhas do absolutismo do
príncipe. O ideal de unidade muda de direção e dá origem a um temporalismo que, para alguns,
resulta sobretudo do despeito. Já que os Papas, por causa das suas constantes dissesções com os
Imperadores, arruinaram o Santo Império, que venha então o poder temporal substituir-se a eles!
A oposição vitoriosa afirma o primado, e até à exclusividade, do poder temporal. Dante Alighieri,
Marsílio de Pádua e Guilherme d’Occam são os seus principais defensores.
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e portanto mais insolente. E, no entanto, qual não era já a veemência do Defensor Pacis! «Para
desmascarar a mentira desses bispos, a vós me dirijo como um arauto da verdade e grito a plenos
pulmões, a vós todos, reis, príncipes, povos, tribos de todas as línguas, não vedes que esse bispo
romano se atribuiu a soberania sobre todos os príncipes, sobre todos os reis do mundo… Pode
imaginar-se peste mais perniciosa, mas perigosa para o repouso, a felicidade e o bem estar de
toda a raça humana… Sob uma mascara de honestidade e decência, o papado é tão perigoso para
o género humano que, se não for travado trará um prejuízo intolerável à civilização e à pátria.» A
inspiração de Marsílio é totalitária. Marsílio retorna a Aristóteles onde São Tomás o havia
corrigido. Ao ter por nula e inexistente a frase de Cristo separando as coisas de César das coisas
de Deus suprime a distinção entre os dois domínios, um dos pontos essenciais da revolução cristã
no aspeto político. Não se limita a proclamar a superioridade do poder temporal, reconduz tudo
a este. Das a primazia ao poder laico não é suficiente, é preciso atribuir-lhe a autoridade total. O
sacerdotalismo era uma espécie de totalitarismo eclesiástico; Marsílio toma a direção
diametralmente oposta. No meio de uma sociedade que leva tão longe o dualismo cristão e
parece tê-lo partilhado por meio de instituições tão poderosas, deixa entrever o ideal de um
Estado que resume todas as manifestações da vida social e governa como senhor em todos os
domínios. Mas Marsílio é menos um percursor do que o protagonista de um retrocesso. Os
argumentos bíblicos ou apostólicos só lhe servem para favorecerem o renascimento da sociedade
paga. Ao escrever que «o mal que desola o nosso tempo, não pôde conhecer Aristóteles», está a
maldizer também a revelação cristã. Ao ligar-se estreitamente ao totalitarismo antigo, deconhece
os direitos fundamentais da pessoa.
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O PRÍNCIPE: MAQUIAVEL
As obras de Maquiavel: numa carta de 9 de abril de 1513, explica assim a sua principal
preocupação: «querendo a sorte que não soubesse discorrer sobre a arte da seda, nem sobre
a arte da lã, nem de ganhos e perdas, eu preciso de me calar, ou de discorrer sobre os
assuntos do Estado». Entre várias obras de que é autor, o Príncipe faz a sua glória. Escreveu-
o no seu retiro forçado e logo a apresentou a Lourenço de Médicis. Os Discursos sobre a
Primeira Década de Tito Lívio não são menos importantes para se conhecer o pensamento
político de Maquiavel. Há que acrescentar ainda o Discurso sobre a Reforma do Estado de
Florença, que faz com que o autor volte a cair em boas graças. Tratou então de redigir a
História Florentina de 1251 a 1492. Ao lado destas obras políticas, Maquiavel escreveu um
tratado, A Arte da Guerra, além de poesias e teatro.
O ideal do Príncipe: o Príncipe é o homem que há de vir, mas também o que deve
conseguir, no duplo sentido do termo. “O Príncipe” é uma obra breve e, a seu ver, as
características do Príncipe são:
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«Aquele que implanta uma ditadura e não mata Bruto, ou que funda uma República e não mata
o filho de Bruto, não há de reinar por muito tempo» Aqui surge a chave do maquiavelismo, a
noção de “Razão de Estado”, seu legado fundamental à corrente política que vais suscitar. A
fórmula encontra-se, em termos aproximativos, no seu amigo e discípulo Guichardin.
Itália unida, armada e despadrada: no entanto, seria errado pensar que o povo não tem
importância para Maquiavel. Com efeito entendia que se devia convencer. No extremo, seria
necessário saber se o povo romano não é para Maquiavel comparável a uma espécie de Príncipe
coletivo. Em todo o caso, o povo virá a desempenhar um papel importante na criação da Itália.
Maquiavel pretende substituir os soldados mercenários dos condottieri por tropas animadas de
um sentimento patriótico, recrutadas em Florença entre os burgueses e o povo. Deste modo, por
lógica e por gosto, Maquiavel reserva um papel importante, nos seus escritos, às coisas militares,
pois o Príncipe é, em primeiro lugar, chefe de guerra. Por fim, é inimigo do clero romano, a que,
paradoxalmente, atribui a sua falta de crença. Maquiavel mostra ressentimento para com os
papas, por terem diminuído e até arruinado fé, quando «um povo religioso é mais fácil de
governar». E acusa o cristianismo de não ser uma religião cívica, opondo-a às religiões antigas,
que punham a tónica naquelas virtudes fortes que fazem um povo poderoso e livre, ao passo que
«a nossa religião coloca a felicidade suprema na humildade, na abjeção, no desprezo das coisas
humanas». Estes princípios parecem tornar «os homens mais fracos… e atreitos a ficar mais
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facilmente à mercê dos maus. Estes viram que a suportar as ofensas do que a vingá-las». Além
disso, está contra o governo de Roma, pois a presença papal afigura-se-lhe o grande obstáculo à
unidade italiana, já que o papado é fraco de mais para garantir a unidade da Itália e forte de mais
para a tolerar. O próprio Maquiavel resumiu a sua política de uma maneira pitoresca. Durante as
longas estadas num albergue, quando do seu exílio aldeão, os bebedores que discutiam com ele,
fartos das suas críticas, preguntavam-lhe: «Mas qual é então a tua bandeira?» Maquiavel meteu
o dedo na taça de chianti e desenhou na mesa uma auriflama onde se lia esta divisa: A Itália unida,
armada e despadrada.
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Situação e deveres do Príncipe cristão: à maneira dos autores medievais, Erasmo constrói
idealmente um Corpus Christianum. O centro desse corpo cristão é Cristo. À volta dele,
estendem-se concentricamente três círculos, dois pequenos e um grande. A primeira zona é
ocupada pelos príncipes da Igreja e pelos sacerdotes: é a zona interna. A zona externa contém a
grande massa de simples leigos, com os pés pesadamente presos à gleba e pertencentes ao Corpo
da Igreja. Entre as duas zonas – interna ou eclesiástica e externa ou laica -, há uma zona
intermédia, constituída pelos príncipes temporais. Quando estes governam com justiça e
proporcionam repouso aos seus povos, participam à sua maneira da dignidade sacerdotal,
situando-se assim muito acima dos que constituem a zona externa do laicado. No entanto, para
ele não há dois cristianismos, um para os príncipes e outro para o comum das pessoas. A religião
de todos deve ser conforme ao ideal evangélico. O príncipe, por estar situado maias acima, deve
superar os outros pelas suas virtudes , prudência e integridade. A lei do sacrifício impõe-se-lhe
como a todos os cristãos. Se tenciona seguir Cristo, deve carregar a sua cruz. Não pode escapar
à lei comum. O Príncipe deve assemelhar-se à imagem de Deus pela Cruz de Cristo e não «pelo
Globo e pela Coroa». Erasmo, embora reconheça direitos ao Príncipe, limita-o fortemente.
Apoiados na primeira doutrina da Igreja nascente, os reis tendem a considerar que se lhes deve
obediência sem discussão, de acordo com o princípio estabelecido pelo apóstolo: omnis potestas
a Deo. Mas esta fórmula de submissão referia-se aos imperadores romanos. «Império, realeza,
majestade, poder, outros tantos termos de um vocabulário pagão.» Ao invés, a soberania cristã
é «administração, benevolência e gestão fiel.» Assim, Erasmo quer que o Príncipe seja escolhido
em atenção aos seus méritos autênticos. O primeiro, a seu ver, consiste em ser pacífico. O
Evangelho é um Evangelho de paz; por isso, o primeiro dever do Príncipe é não fazer a guerra.
Dirigida a Carlos V ou a Francisco I, esta linguagem parece muito ingénua. No entanto, aos olhos
de Erasmo, é sábia, pois aumentar as possessões não constitui vantagem para um Príncipe. Mais
lhe valeria restringi-las, pois ser-lhe-ia mais fácil fazer reinar a justiça num território menos vasto.
Proporcionaria ao seu povo maior prosperidade.
Saint Thomas More: de Erasmo a More, a transição é fácil. Além de serem ambos
humanistas, liga-os uma profunda amizade. Thomas More, nascido em 1478, el Londres,
começou por ser jurista prático e advogado de renome. Ouvem quem sugerisse que não gostava
muito da profissão; no entanto, os rendimentos que dela tirava mostram que era ativo e hábil no
seu exercício. Humanista conversador brilhante e cheio de humor, poeta e artista, conquistou as
boas graças de Henrique VII, que em 1531 o nomeou chanceler de Inglaterra. Mas foi breve o
favor de que gozou, e que acabou por se inverter completamente. Por instigação de Ana Bolena
More foi condenado à morte por Henrique VII, em 1535. A Igreja começou por declará-lo beato,
e em 1935 declarou-o santo. É breve o papel de Thomas More na História Política. A sua influência
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junto de Henrique VIII, monarca absoluto, foi extremamente limitada até ao momento em que,
irritado com a sua resistência, respeitosa mas inflexível, o soberano o fez condenar à morte. Em
contrapartida, ocupa um lugar importante na História das Ideias Políticas, como autor da “Utopia”.
A Utopia: a palavra utopia vem do grego: “não lugar”, “lugar inexistente”, “inencontrável”.
Todas as personagens e países citados têm também nomes fantasiados que traduzem a
irrealidade, quer dos seres, quer das coisas. A capital da Utopia é Amaurota, «a cidade fantasma»,
talvez também a «cidade sombria», ou ainda a «cidade das brumas». O rio que atravessa
Amaurota chama-se Anidro, «o rio sem água». O Rei chama-se Adamos, «o Príncipe sem povo».
Os cidadãos são os Aleopolitas, ou «sem cidade». Quanto ao viajante que descobriu Utopia, More
denomina-o com humor Hitlodeu, «o Vendedor de Quinquilharia». No entanto, essa ilha
inencontrável e minuciosamente descrita. Para o efeito, More começa por recorrer ao exotismo.
Em sua casa há aves, macacos e pedras raras de que faz coleção, e o seu mundo imaginário
inspira-se em larga medida nas descobertas mais recentes. Os descobrimentos americanos serve
de pretexto à efabulação e aos pormenores pitorescos. Mas que importância tem aqui a América,
se se trata de uma ilha inencontrável? Muito simplesmente, Thomas More procura dar ao seu
relato o ponto de apoio picante de uma aventura vivida. Vespúcio deixara alguns companheiros
num forte do Brasil. Um deles regressou a Antuérpia. É uma personagem de aspeto singular, um
aventureiro dos mares com as feições curtidas e um trajo que intriga Thomas More. Arrasta o
homem para casa do seu amigo Pedro Giles e interroga-o. É Hitlodeu, «o vendedor de
quinquilharias», que na sua rota havia visitado um país desconhecido e com estranhos costumes,
a Ilha dos Utopianos. Retornou “por milagre” por Taprobana e Calecute, «onde felizmente
encontrou navios portugueses» que o repatriaram. Outro milagre é o seu encontro com Thomas
More. Mas não haverá terceiro milagre, pois Hitlodeu desaparece. Com tal guia, more poderia
ter representado uma ilha afortunada sob um Sol radioso, com florestas cheias de frutos
saborosos e mulheres selvagens seminuas. Nada disso: o autor procede, em seguida, por
transposição. Erasmo comenta: «ele descreve a Grã-Bretanha que viu e conheceu a fundo». A
Ilha da Utopia é só meio imaginária, pois contém os traços dominantes da Inglaterra. Em primeiro
lugar, a insularidade: inicialmente a Utopia estava ligada à terra por um isto, mas foi separada
pelo rei Utope I. Em seguida, uma população comparável à inglesa distribui-se por 54 cidades,
que correspondem aos 54 condados da Inglaterra. A capital fica à beira de um rio, é atravessada
por uma ponte famosa e está envolta em nevoeiro. Aliás, houve quem contestasse que Amaurota
fosse Londres e assinalasse pormenores que fazem pensar em Antuérpia. De resto, Thomas More
pode perfeitamente ter combinado aspetos das duas cidades, já que se deslocou várias vezes à
segunda em missões diplomáticas. Em todo o caso, os habitantes são ingleses idealizados:
marinheiros, colonizadores e comerciantes, positivos e contudo místicos, em certos aspetos.
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consciência virtuosa e de um coração puro». No entanto, o futuro santo não faz deles cristãos.
Praticam a religião natural, a melhor religião possível na ausência de revelação, do que assinala a
expectativa e contém o pressentimento. Para ele, e de acordo com a conceção tradicional do
catolicismo, o homem, pela sua própria essência, tem necessariamente um valor e um papel livre
na escolha da sua salvação. No entanto, não prefere a religião natural, do mesmo modo que não
opõe a natureza a graça. Insiste vivamente numa natureza humana suscetível de grandeza,
progresso e santidade, apesar de ferida pelo pecado original. A alma conserva, com a sua retidão
primordial, uma inclinação natural para o bem e para a virtude. A isto, Thomas More acrescenta
a tolerância e a liberdade de consciência. O homem nasce para a filosofia e para a virtude; não
deve ser forçado a adquirir estes bens sem ser pelas suas disposições naturais e pelos cuidados
atentos da educação. Thomas More proíbe a propaganda de ideias que considera más, mas
permite aos crentes a discussão. Mais vale mudar os homens e os costumes que as instituições.
Mais vale reformar a vida interior do que a vida pública. Por conseguinte, More indica, sugere e
descreve. Neste aspeto, não há dúvida, que o método descritivo da utopia é bem escolhido. More
procura arrastar os espíritos no seu encalço. Quanto mais protegido estiver pela sua maneira de
se exprimir, mais longe pode chegar. De facto, Henrique VIII nem os seus conselheiros se
preocuparam com a Utopia.
As ideias políticas de Thomas More: é difícil distinguir as ideias políticas de Thomas More
das que professava acerca da família e da propriedade, embora entre estas se verifique uma
curiosa ausência de harmonia. Dá a impressão de ter sido atraído por Platão durante algum
tempo, ao ponto de admitir a comunidade de mulheres. Em contrapartida, a sociedade utópica
assenta na família e numa moral muito tradicional que, no fundo, nada tem de utópico. A
república ideal da Utopia alicerça-se inteiramente sobre a célula familiar e sobre uma conceção
patriarcal. Alarga esta autoridade de maneira a que tudo se regule e ordene no seio da família e
que só se apele à justiça pública quando a enormidade do crime exija o recurso ao Estado. Não
condena absolutamente o divórcio nem, ao que parece, o casamento do padres. Em
contrapartida, é muito severo quanto ao adultério, o único crime privado que deve ser punido
com a morte. A partir destas premissas familiares, seria muito fácil compreender que Thomas
More edificasse uma defesa da propriedade e procurasse tornar proprietários todos os seus
utopianos. Mas, a posição de More é completamente diferente. O povo da utopia é um povo de
amigos; ora, segundo a fórmula platónica, «entre amigos tudo deve ser comum». Aquilo que
Platão considerava um ideal entre amigos deve sê-lo, a fortiori, entre cristãos. A fraternidade
cristã deve levar à comunidade cristã. Por esse motivo abandona a posição tradicional dos
Aristotélicos e dos escolásticos, para quem a propriedade individual era um elemento capital da
liberdade, preferindo-lhe as teses de A República. «Preto plena justiça a Platão, e já não me
surpreende que ele tenha desdenhado fazer leis para os povos que recusam a comunidade de
bens. Aquele grande génio tinha previsto facilmente que o único meio para organizar a felicidade
pública era a aplicação do princípio da igualdade. Ora, a igualdade é impossível num Estado onde
a posse é solitária e absoluta, pois cada um arroga-se aí de diversos títulos e direitos para chamar
a si o mais que pode, e a riqueza nacional, por um maior que seja, acaba por cair na posse de um
pequeno número de indivíduos que só deixam aos outros indigência e miséria… O único meio de
distribuir os bens com igualdade e justiça, e de constituir a felicidade do género humano, é a
abolição da propriedade.» De modo a satisfazer o seu ideal de amizade e fraternidade, Thomas
More imagina então um sistema comunitário em que todos trabalham e cada um trabalha pouco.
Só ficam isentas da obrigação do trabalho quinhentas pessoas que, após seleção, se entregam à
metafísica. Naturalmente, a partir do momento em que existe comunidade de bens, a vida tem
de ser severamente regulamentada, a fim de evitar abusos. Sobre a cidade da Utopia, onde a
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A Utopia como método político: o êxito da obra foi enorme. Atualmente há quem pense
que a Utopia se não é a melhor das Repúblicas, é a melhor das Utopias». Muitas das razões da
popularidade de outrora surpreendem-nos, mas a amplitude do contributo do autor é digna de
apreço. Em primeiro lugar, foi criada um palavra nova, que se tornará e permanecerá corrente.
Poder-se-ia muito simplesmente ter traduzido “Utopia” por “A ilha Inencontrável”. De facto, o
termo utopia tornou-se substantivo comum. Depois, sob o céu da ficção, Thomas More dotou a
política de subtis instrumentos de discussão e prospeção. As características essenciais do método
utópico consistem em dourar alhures, com um pressuposto otimista, tudo aquilo que por cá se
deplora, com um pressuposto crítico, cético ou pessimista. Têm todos uma só ideia: fugir ao
imediato, ao quotidiano, ao limitado, ao repetido. Não há política sem imaginação. Esta é
necessária para pressentir o futuro, para superar o real. Não há obra de doutrina sem alguma
antecipação e, por conseguinte, sem um grão de utopia. Os utopistas são os que, por princípio,
deixam à rédea solta ou, mais exatamente, sistematizam aquilo que imaginam dando-lhe a
consistência do real.
OS REFORMADORES E OS REFORMADOS
Martinho Lutero
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materialização de certas atividades eclesiásticas, embora seja a favor de uma disciplina mais
liberal, não deve ser considerado, como alguns desejariam, um percursor do liberalismo, e ainda
menos do livre pensamento. É essencial compreender que, com Erasmo e More, as críticas se
movem exclusivamente no interior do catolicismo romano. Erasmo acha que a condição prévia
absolutamente necessária ao triunfo da filosofia de Cristo é «permanecer no seio da Igreja,
trabalhá-la constantemente a partir de dentro, mas sem brutalidade nem tumulto – e nunca se
apartar ou dela se deixar expulsar por meio de uma rutura violenta…» A atitude de More é
idêntica. Esta razão por que é necessário fazer uma clara distinção, na história das ideias políticas,
entre os humanistas cristãos e aqueles que vão aceitar, se não provocar, a rutura: entre os
reformadores e os reformados.
Etapas de uma rutura: Lutero nasceu em 1483, em Eisleben, na Turíngia, oriundo de uma
família de mineiros pobres. Os seus biógrafos insistiram com frequência no que a sua juventude
teve de triste e infeliz. Apesar disso, conseguiu estudar em Erfurt. Depois, na sequência de
estranhos acidentes e do risco de ser fulminado por um raio durante uma tempestade, professa
nos Agostinhos e em 1507 é ordenado sacerdote. Muito em breve se torna conhecido e passa a
ser professor na nova Universidade de Wittenberga. É ai que recebe o choque da famosa “venda”
de indulgências. Nessa altura, em 1517, mostra o seu desacordo, se não com Roma, pelo menos
com as práticas de Roma, em 95 proposições que afixa à entrada da igreja do Castelo. Em 1520
rompe definitivamente. No dia de Natal, queima a bula do Papa. Banido do Império pela Dieta de
Worms, é obrigado a esconder-se em Wartburg, nos arredores de Eisenach, depois de ter sido
misteriosamente raptado por quatro cavaleiros. Quando a reforma conquista parte da Alemanha,
recupera a liberdade de movimentos. No refúgio tinha traduzido a Biblia, produzindo assim um
dos primeiros grandes textos religiosos em língua alemã. Um pouco contra a sua vontade, nasceu
a doutrina nova, designada por luteranismo a partir do seu nome, mas cuja sistematização, em A
Confissão de Augsburgo. Morre em 1546, ao mesmo tempo triunfante e desesperado. Triunfante
porque a nova Igreja, por ele instituída, está bem implantada na Alemanha; desesperado porque
o seu temperamento angustiado não lhe consente repouso e porque a Igreja que se constituiu
está, sem dúvida, muito longe da que tinha sonhado.
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instruído a consciência dos poderes seculares, nem tão bem os tenha consolado.» Se, ao exprimir-
se assim, peca contra a modéstia, não se pode dizer que peque contra a verdade. Com efeito, o
poder civil foi por ele tão bem instruído da sua importância e de tal maneira «consolado» que
acabou por tornar-se uma causa de aflição para outros.
A exaltação do poder civil: quando se gaba de ter dado à autoridade civil o sentimento
do seu ofício chega lá por duas vias: uma via direta que é a exaltação do poder civil, e uma via
indireta, que é a liquidação do poder religioso ou eclesiástico em matéria civil ou mista. O
primeiro itinerário vem indicado, designadamente, num ópusculo de começos de 1523, Da
autoridade Secular, e até que ponto se lhe deve obediência. Como todos os escritores cristãos,
Lutero faz referência à Biblia, à epístola de São Paulo aos Romanos e à de São Pedro, em que se
afirma o dever de obediência dos súbditos ao príncipe. Já os comentários são próprios dele e
trazem a marca da sua conceção do mundo terrestre e do mundo celeste. Entende que a
autoridade é necessária, já que os filhos de Adão se separaram em duas partes, aliás, muito
desiguais: os que pertencem ao Reino de Deus e os que Têm o Espirito Santo no coração, por isso
o seu comportamento não pode deixar de ser virtuoso Mas há outros que estão votados ao
pecado. A visão de Lutero é, à sua maneira, tão pessimista como a de Maquiavel. O mundo em
que vivemos «é um albergue onde o Diabo manda juntamente com a patroa». A corrupção é
natural neste mundo, por ser consequência do pecado original. Por sua vez, gera como
consequência a existência do poder. Um povo de santos, um povo de eleitos, não precisaria de
autoridade. Viveria na anarquia, sem autoridade. Pelo contrário, o estado de pecado, em que se
rebola a maior parte da humanidade, exige que um Príncipe imponha ao mal, como faz o domador
ao animal selvagem e mau. Neste ponto, a conceção de Lutero opõe-se claramente à dos tomistas.
Também para eles, o Estado ou o Príncipe são uma necessidade natural, mas em São Tomás a
coerção fica em segundo plano; o poder político é um poder de direção que visa o bem comum
temporal. Para Lutero, o Estado é essencialmente um poder de repressão. Num mundo
corrompido, é inevitável um elemento coercivo. Este deve estar bem armado e, em caso de
necessidade, bater com força. É por isso que Lutero prefere falar do “gládio”, e não do Estado ou
do Príncipe.
O gládio único: A Idade Média usou constantemente a imagem simbólica dos “dois
gládios”. Para Lutero já só há um, que está inteiramente nas mãos do poder civil. E é no gládio,
instrumento de repressão e castigo, que, se resume o poder. O uso da força, o uso da espada,
parece-lhe absolutamente indispensável. Pode até dizer-se que não lhe causa apenas um deleite
sombrio, mas um certo entusiasmo na maneira de encarar o papel do verdugo. «Archeiros,
verdugos, juízes, advogados são os instrumentos da força e do gládio.» Longe de condenar a sua
ação, é preciso exaltá-la, contra os pecadores. Há uma espécie de cadeia infinita de pecados e
sanções, de sanções e pecados: o crime atrai o castigo, o mal atrai o arrependimento. Se o
Príncipe é um tirano, se é cruel e sanguinário, a culpa é do povo. Os homens têm os príncipes que
merecem. O Príncipe é o instrumento das vinganças divinas não só junto do seu povo, mas
também junto dos vizinhos com quem entra em guerra. Crimes coletivos exigem sanções
coletivas. Considera a guerra divina. Lutero faz dela uma punição divina que deve ser conduzida
com vigor, se não com ferocidade. Os valetes que saqueiam Roma mais não fazem que castigar a
grande prostituta pela sua luxúria e cupidez.
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loucos são ao tentarem obrigar as pessoas a acreditar forçar ninguém a acreditar. Por isso, Lutero
clama: os sentimentos não passam na alfândega. Ao proclamar a rigorosa independência das
almas, Lutero deveria afirmar a impossibilidade de uma Igreja de Estado; no entanto, o
luteranismo levará à sua formação. O que ele combate com especial vigor na Igreja católica é um
poder espiritual organizado segundo o protótipo temporal. A sua obra consiste numa espécie de
sublimação do poder religioso, numa desencarnação deste. São numerosas as passagens do
Evangelho que pode invocar a seu favor. «O meu reino não é deste mundo», repete
frequentemente Cristo aos discípulos, que não compreende por aí além o que quer ele dizer. Mas
Lutero compreendeu A Igreja não pode ser outra coisa senão uma sociedade exclusivamente
espiritual, um «Corpo Místico» segundo a teologia pauliana. Não deve encarnar, sob pena de
modificar a sua natureza ao formar uma sociedade humana hierarquizada. Por aqui se vê o
enorme alcance de uma posição que, no centro, nega a construção medieval e repudia, como
algo contra a corrente, tudo o que a Idade Média pôde erigir como sua obra predileta, a
institucionalização da Igreja, começada à saída das catacumbas e prosseguida com êxito após a
pax Constantini. A esta igreja visível, organizada e hierarquizada, que exerce atribuições públicas
de caráter estatal em várias matérias, a teologia luterana contrapõe uma unidade puramente
espiritual e mística, «um reino do espírito que não pode ter outro chefe além de Cristo, que não
pode ter um soberano de carne, nem príncipes exteriores e formais». Assim, para Lutero, a
sociedade religiosa opõe-se ao Estado, acerca do qual as suas ideias são, aliás, bastante
incompletas. Ela é, por essência, uma sociedade não organizada e não autoritária, onde todo os
fiéis podem ser padres e o sacerdócio é universal. «Os cristão não podem conhecer outro
superiores além de Cristo», e a Igreja é coisa exclusiva de Deus. Nestas condições, acaba por
desaparecer como organização social.
A missão dos Príncipes: mas Lutero não pode impedir que o cristão entre em contacto
com as coisas da cidade. Se os crentes se apresentam à porta da cidade, nessa altura têm de
aceitar as suas leis. Existe, assim, ao lado dessa igreja, sem organização, uma cristandade exterior
que é como que o reverso, e que necessita de uma estrutura. A hierarquia católica conseguira-o:
organizara a cristandade exterior, que era a administração da Igreja. Para Lutero, tal construção
foi um trabalho de corrupção. A Igreja incumbiu-se de funções secundárias que corromperam a
pureza da sua missão. Agora, não se devia recair no mesmo erro através de uma construção nova
e que seja, então, confiada à organização terrestre já existente. Aliás, os Príncipes são
normalmente chamados a esta missão, pois se a Igreja é uma sociedade de almas, sem hierarquia,
não é possível recusar-lhes o direito de fazerem parte dela como os demais cristãos No entanto,
ocupam uma posição preponderante. Através de uma interpretação das declarações de São Paulo
sobre a variedade de graças e funções na Igreja, Lutero entende que os Príncipes estão bem
qualificados para assumir a direção dos assuntos no plano humano. Sendo assim, deve ser-lhes
entregue a organização da vida exterior da Igreja. Esta atitude adquire especial nitidez a propósito
da questão da visita às Igrejas. Por uma preocupação de pureza, a parcela terrestre da atividade
da Igreja é subtraída à sua gestão. Se fosse ela a encarregar-se disso, tornaria a cair no erro
medieval. Por sorte, tem a possibilidade de recorrer aos Príncipes, os quais gozarão de plena
competência quanto às manifestações exteriores do espiritual. «Não há que duvidar do dever,
que cabe aos Príncipes, de punir os crimes públicos, as ofensas públicas, as blasfémias notórias.»
A partir do momento em que uma manifestação do espiritual se torna exterior, cai sob a alçada
do Príncipe. «A autoridade não tem que punir a opinião, mas a autoridade combate a
publicidade.» «O dever da autoridade secular é fazer com que não haja divisão, perturbação ou
revolta entre os súbditos.» Se o Príncipe deve impedir a divisão, perturbação e revolta entre os
súbditos, a partir do momento em que haja duas doutrinas em confronto, terá competência para
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eliminar uma delas, a fim de evitar a perturbação e pôr termo à divisão. E assim, passo a passo,
se chega à exclusividade do poder do Estado sobre as coisas religiosas, desde que estas adquiram
um aspeto exterior. Ao penetrarem na cidade terrestre, as consciências “pagam taxa alfandegária”
e devem submeter-se exteriormente. Sem dúvida, permanecem livres no seu foro íntimo. Mas
não há liberdade de consciência no sentido jurídico do termo, já que o Príncipe, para prevenir a
divisão, para travar antecipadamente a sedição, pode proibir a expressão de opiniões dissidentes.
É algo que se afigura especialmente grave. A liberdade humana nasceu o dia em que as coisas de
César e as coisas de Deus foram separadas, no dia em que o totalitarismo antigo foi quebrado
pela palavra de Cristo. Ora, Lutero abandona deliberadamente esta grande conquista do
Cristianismo. Em suma, dá a César tudo o que é deste mundo, sem reservar as coisas de Deus;
por causa desse gesto, a sua doutrina põe termo, não só aos excessos do sacerdotalismo, mas
também ao dualismo Igreja-Estado, conceção fundamental do catolicismo romano.
Preferências políticas de Lutero: uma vez afastada a divisão maior entre os poderes é
descabido considerar divisões menores no exercício do poder político. O monarca luterano,
agente executor das vinganças divinas, não aceita que lhe imponham limites. Ao transpor os que
lhe são ditados por uma consciência cristã, está a garantir a repressão do pecado. Por conseguinte,
ainda que a sua conduta, em si, seja condenável, não o é no plano das consequências, justificadas
pelo seu papel quanto à punição das faltas à lei divina. Lutero, apesar de partidário de um poder
forte e monocrático, é adverso aos reis. Discute com Henrique VIII de Inglaterra e Carlos V é seu
inimigo declarado. No entanto, seria errado fazer de Lutero um campeão das teorias
aristocráticas, como em breve o serão os calvinistas. Houve quem as comparasse à sua teoria da
graça. Se a predestinação divide os homens em eleitos e réprobos, os Príncipes serão duplamente
predestinados. Privilegiados por nascimento, conhecerão também as vantagens da fortuna
temporal. Na realidade, o regime que mais agrada a Lutero não é um regime aristocrático no
sentido de uma oligarquia de nascimento. Ele aspira a uma pluralidade de monarquias, a um
particularismos do Príncipe. É arrastado pelo seu ódio ao universalismo medieval e também pelo
facto de terem sido os Príncipes a garantir o êxito da religião formada. Já a sua hostilidade a um
governo do povo é evidente. Quando da revolta dos anabatistas e por ocasião das “jacqueries”
que ensanguentam a Alemanha e parte da Europa Ocidental, reage violentamente. Nenhum
castigo é suficientemente grande para estes tristes indivíduos: «Caros senhores, livrai-nos, ajudai-
nos; salvai-nos; exterminai e que aquele que tem o poder, atue», proclama contra as hordas
homicidas e saqueadores de campónios. «O poder civil, ministério da cólera divina sobre os
maus… não deve ser misericordioso… pois a sua insígnia não é um rosário ou uma flor de amor,
mas uma espada nua, símbolo de cólera, rigor e castigo.» Nenhuma revolta é justa qualquer que
seja o motivo, pois no fim de contas a rebelião é sempre dos homens contra Deus, já que o Senhor
disse «a vingança pertence-me». O mesmo é dizer que a “jacquerie” é um crime de lesa
majestade divina; longe vai o tempo em que «a autoridade secular jazia nas trevas, oprimida e
ignorada». Se formos além destes factos circunstanciais, verificamos que, o fundo, ele ignora o
Estado como comunidade de cidadãos. A sua conceção do Estado é muito parcelar e muito parcial.
Tudo o que ele conhece é a autoridade de um lado e os súbditos do outro. Baseia-se também na
atitude dos primeiros cristãos, que têm pela frente a autoridade externa de César. Uma vez mais,
abandona tudo o que constituíra o precioso contributo da Idade Média e reduz o Estado ao poder
e o poder à repressão. Dos atributos dos príncipes medievais, a mão da justiça e o gládio, só retém
o segundo.
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João Calvino
De Lutero a Calvino: Jean Chauvin, chamado mais tarde Calvinus (109-1575), não passa,
para alguns, de um adaptador feliz de Lutero, um francês que soube traduzir com clareza a
torrente de ideias confusas e profusas do reformador alemão. Na verdade, há diferenças de
tempo, de meio, de temperamento e de estilo, que certamente influem nos desfasamentos entre
as respetivas ideias políticas. Calvino pertence a outra geração. Desenvolve as suas ideias
religiosas no âmbito de uma sociedade política onde o processo de instauração do regime de
Estado já vai bastante adiantado. A estrutura do Sacro Império Romano-Germânico era fraca, tão
fraca que, na altura em que Carlos V se encontrava no auge da sua glória, bastaram quatro
cavaleiros do Eleitor de Saxe para que Lutero lhe escapasse. Ao invés, Calvino acha-se perante a
monarquia francesa, que nos reinados de Francisco I e Henrique II adquire as formas e forças de
um Estado moderno. Esse Estado soube resolver as suas dificuldades com Roma. Lutero é um
planfletário fogoso que se exprime com veemência e se entrega constantemente a ataques
sociais; possui um temperamento de publicista ou de jornalista. Calvino é jurista de formação.
Estudou na Faculdade de Direito de Orleães, onde recebeu lições notáveis de que nunca se
afastará. Ao passo que Lutero se dispersa numa multitude de escritos. Calvino constrói a
Instituição Cristã, livro excecional. O plano segue uma sábia gradação onde cada capítulo,
logicamente ordenado, é também logicamente enquadrado, coisa muito diferente do caos de
prosa em que se debate Lutero.
A Instituição Cristã: a obra é pela publicada pela primeira vez em Latim, em 1536. Calvino
tem apenas 27 anos, acaba de concluir os estudos e de repente apresenta uma exposição se
falhas do pensamento protestante. Na primeira edição, havia um capítulo, o sexto, dedicado à
liberdade cristã, ao poder eclesiástico e à administração civil. De acordo com os usos, Calvino
dirige o livro a um Príncipe. A dedicatória a Francisco I está impregnada de submissão ao Príncipe
legítimo, mas, ao mesmo tempo, isenta daquela espécie de servilismo tão frequente neste género
de escritos: «Ao mui alto, mui poderoso e mui ilustre Príncipe Francisco, Rei de França, mui cristão,
seu Príncipe e soberano senhor, João Calvino»; esta maneira de saudar um Rei é já a de um
homem livre e quase já de um cidadão. «Paz e saúde e Deus, que o Senhor Rei dos Reis queira
assentar o teu trono em justiça e a tua sede em equidade, mui forte e mui ilustre Rei.» A
legitimidade da autoridade real é assim reconhecida. Os Reformados são bons súbditos e só
pedem que os deixem continuar a sê-lo.
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diferentes das de Lutero, reconhece a humildade por fins da sociedade civil. Mas esta
mediocridade não a torna desinteressante para os cristãos. Do mesmo modo, no plano
económico, o calvinismo não desprezará de modo nenhum os negócios. Até se dedicará à
indústria, e o êxito obtido neste domínio será geralmente entendido como um sinal da bênção
divina. A vida pública pode ser considerada necessária e válida em si. Ao analisá-la encontra dois
três elementos:
Retorna a cada instante ao lealismo. Leva-o ao extremo ao proclamar o dever de obediência aos
magistrados, ainda que maus, pois é de presumir que o seu comportamento é bom. Classifica-o
então de “lealismo heróico”.
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AS POLÍTICAS CATÓLICAS
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e Roma, acabará por se retirar para Lisboa. Em 1617, este grande trabalhador alcança finalmente
o repouso que tanto merecia, ao proferir a frase: «Não sabia que era tão bom morrer.» O Papa
Benedito XIV chamou-lhe Doutor eximius, douotor eminente. Segundo Bossuet, vemos nele toda
a Escola. Suarez é o autor de um importante Tractatus de legibus ac Deo legislatore, em que
expõe a sua conceção do Estado na perspetiva da lei. A teoria por ele formulada é muito bem
acolhida e contém já certas observações sociológicas.
O poder segundo Suarez: para Suarez, o Estado é uma «comunidade perfeita». O critério
seguido é a capacidade do Estado para possuir um governo político. A ideia aristotélica renasce
aqui em toda a sua pureza. Necessário à sociedade perfeita, o poder que a governa é, como a
própria sociedade, de direito natural. De acordo com a natureza das coisas esse poder não reside
em nenhum homem em particular, mas sim nos homens em conjunto. Os homens nascem
naturalmente livres; nenhum deles possui naturalmente direito sobre os outros. A jurisdição
estabelecida sobre outrem vai decorrer apenas do direito positivo. Só este institui a jurisdição do
homem sobre o homem. Deste modo, Suarez demarca-se dos teólogos que baseavam a primeira
autoridade no principado de Adão. Com muita clareza e pertinência, explica que Adão recebeu o
poder de chefe de família, mas não de chefe de Estado. Logo, o poder político só começa no
momento em que, ultrapassado o estádio familiar, se atinge o estádio cívico, com várias famílias
a organizarem-se em comunidade perfeita. O poder, que não reside no homem em particular,
reside nos homens considerados coletivamente. Aqui, Suarez distingue dois tipos de ordens, uma
ordem de justaposição, que é puramente material, e uma ordem moral, que é uma ordem de
integração. Logo que a coletividade é integrada ou deseja sê-lo, deve haver uma cabeça, um chefe,
a zelar pelo seu bem estar e a presidir à sua marcha. A coletividade não é uma universalidade de
homens. Suarez admite como um dado da história, aceite pela razão, a divisão do género humano,
que constitui uma massa demasiado extensa para um só governo. A comunidade política pode
ser perfeita sem ser universal. Assistimos ao abandono do tormento do universal, que marcava a
Idade Média, e à aceitação do facto do Estado nacional. No entanto, os homens só por si, não o
compõem plenamente, pois falta a autoridade que vem de Deus. Suarez retoma o provérbio
paulino, nula potestas nisi a Deo, mas distingue a ação de Deus das preparações humanas. O dom
do poder, feito por Deus aos homens, é uma exigência dos elementos humanamente constituídos.
Suarez insiste vivamente no caráter humano da atribuição deste poder. Suarez, que representa a
tradição autêntica da escolástica, reduz à superfície essa intervenção ao mínimo, ao mesmo
tempo que em profundidade leva ao máximo a sua intensidade. O homem tem um papel
importante na preparação do ascenso ao poder e na colação do poder. Inteiramente provindo de
Deus, como um atributo da natureza, essencial à natureza, o poder só ganha existência efetiva se
os homens estiverem previamente unidos e prontos a formar uma comunidade perfeita. Os
homens preparam o corpo político. Deus informa-o, no sentido escolástico do termo,
concedendo o poder. Em termos de teoria geral do Estado, os homens formam o meio político –
território e população – e determinam também as instituições políticas. Mas, entre Deus e os
homens, o princípio do poder vem de Deus. Se os homens não tiverem estabelecido previamente
a comunidade perfeita, não há sociedade política, não se forma Estado e o poder não é conferido.
Suarez compara o Estado ao lar: «Tal como, no casamento, é necessário o acordo prévio das
vontades para que nasça a sociedade e, a seguir, a autoridade marital.»
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Assim sendo, o modo de governo não é direito divino, nem de direito natural, ao contrário do
poder, mas de direito positivo. Todo o poder, detido por um ou por vários, consoante o governo
é monárquico, oligárquico ou democrático, vem imediatamente dos homens. «Nenhum rei,
nenhum monarca, tem ou teve, segundo a lei ordinária, o principado político imediatamente de
Deus, ou por ato de uma instituição divina, mas por meio da vontade ou da instituição humana.»
«Segundo a lei ordinária» opõe-se ao caso extraordinário de Israel, que, de acordo com a Bíblia,
recebeu diretamente os seus chefes das mãos de Deus. Por conseguinte, é sempre indispensável
uma intervenção social para a atribuição da autoridade. Suarez concebe dois modos: um a que
chama contratual, e o outro quase contratual (do texto latino: vel contractu aut quasi contractu
humano), Por quase contrato, o consentimento social é dado tacitamente pouco a pouco, de
acordo com o crescimento gradual do povo. O Estado, sociedade perfeita, nasce do aumento do
número de famílias, que faz com que a autoridade paternal deixe de ser adequada. A submissão
filial prolonga-se, mas transforma-se num consentimento cívico, o qual pode ser dado pelo
costume, através do comportamento dos cidadãos. Neste caso, existe coincidência entre o
nascimento do poder real e o nascimento da sociedade perfeita ou Estado. Por contrato, o
consentimento social é dado através de um ato voluntário e explícito. A uma sociedade já
formada, uma sociedade natural, atribui-se um rei. Há, então, uma espécie de pacto social.
A resistência deve ser geral. Não deve ser um fenómeno individual. Deve ser
desencadeada pelos órgãos naturais da nação, segundo parecer, devidamente
publicitado, das cidades e dos grandes;
A resistência e a deposição não devem causar males maiores do que os gerados pela
tirania. Deve haver proporcionalidade entre fins e meios. São de excluir os meios
suscetíveis de criar uma situação pior do que a anterior (cláusula propriamente
escolástica e que figura sempre nos moralistas inspirados em São Tomás);
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No que se refere à soberania, Jean-Jaques Rousseau pretende que ela seja inalienável, ao passo
que numerosos teólogos defendem a soberania alienável. No fundo, o pensamento de Suarez é
muito mais matizado. O povo, no ato de transmissão, nunca se despoja completamente do poder.
Abandona o poder em ato, in actu, mas conserva-o em princípio ou em potência, in habitu. De tal
maneira que pode recuperar o poder respeitando o direito positivo. Vai buscar esta análise ao
teólogo anterior, o basco Azpilcueta. De acordo com as suas teses, o povo pode conservar
inicialmente o poder; também pode reavê-lo, se a defesa assim o exigir. Ora, do mesmo modo
que nenhum individuo pode renunciar à sua legitima defesa, a fortiori o povo, que é a coletividade,
não pode renunciar antecipadamente à retomada do poder quando o seu interesse vital é posto
em causa. O povo leigo, depois de ceder aos imperadores e reis, apenas quanto ao uso, o exercício
da jurisdição pode eventualmente regressar ao estado anterior. Assim, os representantes da
Escola professam uma hostilidade de raiz ao absolutismo. No entanto, esta teoria católica do
Estado e do poder, formulada de um modo preciso e firme, não impedirá que em França os
espíritos se desviem para a doutrina do direito divino dos reis. Por muito tempo, esta será
considerada a verdadeira doutrina da Igreja, quando, na realidade é completamente diferente
dela. A oposição voltará a manifestar-se com força no século XIX, quando Leão III estabelecer as
bases de uma democracia de inspiração cristã. Nessa altura, a tese de Suarez consagrará a
legitimidade dos regimes republicanos e democráticos.
O ESTADO SOBERANO
JEAN BODIN
O enigmático Jean Bodin: Jean Bodin nasceu em Angers, em1530. Por certo, foi acima de
tudo um jurista; emitiu opiniões ainda hoje plenas de interesse acerca de problemas de direito
público. Além disso, em 1576 e 1577, como deputado, participou nos estados de Blois, onde
desempenhou um papel importante e tomou posições originais e corajosas sobre vários
problemas. As suas intervenções eram eloquentes, e foi mantendo um diário pormenorizado dos
acontecimentos em que esteve envolvido. Aos acontecimentos exteriores da sua vida, juntou
Bodin a sua volubilidade religiosa e, por conseguinte, política. Numa altura em que o apego a uma
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determinada confissão domina tudo o resto, as suas convicções parecem ter sido muito
flutuantes.
Um autor original: tais variações repercutem-se sore toda a sua obra. Por isso, do ponto
de vista das doutrinas políticas, é muito difícil situá-lo. Havendo nele um pouco de tudo isto: não
é maquiavélico. Não só mantém as distâncias como se empenha em pôr a descoberto a fraqueza
do seu sistema, relatando o fim miserável do herói maquiavélico, César Bórgia. Ao realismo de
Maquiavel opõe um realismo verdadeiro. Não é aristotélico, e chega a ser um detrator de
Aristóteles. Este e Platão foram “tão despachados” nos discursos políticos, que já não há maneira
de fazer uso deles. No formigar de acontecimentos e no fervilhar de doutrinas, considera que os
Antigos estão muito ultrapassados. Por outro lado, e à custa de objeções mal fundamentadas,
entrega-se a uma crítica muito viva da divisão das formas de governo segundo Aristóteles. Por
fim, através de caminhos tortuosos e complicados, acaba por regressar às conceções aristotélicas.
Na verdade, com uma informação muito vasta que a do Estagirita, em matéria de direito e história
comparados, Bodin situa-se, pelo espírito geral da sua obra, na linha aristotélica. Não é tomista,
no sentido de a sua política não resultar de pressupostos de teologia ou de filosofia moral.
Todavia, o seu pensamento liga-se à moral escolástica. A exemplo dela, acredita numa ordem
geral do mundo e, a exemplo dela, encara a política como uma prudência de mandar em justiça
e equidade. Não é utopista, mas a sua imensa erudição leva-o a recorrer a exemplos exóticos e a
referências de aventura. No entanto, o exotismo não é, para Bodin, nostalgia de um país diferente,
mas apenas o recurso a exemplos históricos em vista a apoiar as suas asserções políticas. O que
caracteriza a sua obra é o método histórico. Baseada na experiência pessoal, a sua política assenta
ainda num conhecimento extremamente vasto dos acontecimentos do passado. «É na História
que reside a melhor parte do direito universal.» diz Bodin.
Os seis livros da República: a publicação dos seis livros da República, em 1576, tinha sido
precedida pela publicação de uma outra obra, em Latim, Methodus ad facilem historiarum
cognitionem, que em certos aspetos é uma espécie de introdução metodológica à República.
Trata-se de uma verdadeira politologia, notável não só em extensão, mas também pela sua bela
ordenação. No Livro I, BOdin estuda a soberania em que se assenta a República. No Livro II,
considera a maneira de exercer a soberania, ou seja, as formas políticas. No Livro III ocupa-se da
estrutura administrativa e social da nação. Nos livros IV e V, trata da sua sociologia, estudando as
diferentes fases da vida desse organismo que é a República, as suas condições de equílibrio, as
relações entre as diversas funções e as condições de funcionamento dos regimes. Acrescenta a
estes pontos uma teoria das revoluções e uma teoria dos climas, que fazem lembrar Aristóteles
e preparam Montesquieu. No Livro Vi, considera as finalidades da vida social, a Monarquia ideal,
e expõe certas questões específicas, no tocante à censura, às finanças e à moeda. Apresenta
deste modo a sua noção de República: É o reto governo de vários lares e daquilo que lhes é comum,
com poder soberano. Esta definição comporta especificações que fazem avançar o conhecimento
do Estado e, ao mesmo tempo, o do pensamento do autor:
O reto governo: Bodin afasta, como não sendo República, qualquer comunidade
que não seja governada “retamente”, quer dizer, moralmente. Os membros
desta não são escravos, nem servos. Chama-lhes «Francos súbditos»,
apresentando a fórmula: «domínio de homens livres». Mas estes homens livres
não têm o direito de rebelião. Devem obedecer à lei, ainda que lhes pareça
injusta:
De vários lares: a família é a célula política. «A República, ou tem origem na
família que se multiplica pouco a pouco, ou estabelece-se de repente a partir de
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A soberania, base da classificação das formas políticas: esta conceção da soberania como
o poder que decide em último recurso serve de base a uma classificação das formas políticas, que
vem exposta no Capítulo V do Methodus: «Da constituição das Repúblicas», e no segundo livro
da República, onde se coloca o problema de saber quantas espécies de República existem. A partir
de uma noção rigorosa de soberania, Bodin começa por contestar a existência de regimes mistos
na classificação tradicional de Aristóteles. Afasta «a autoridade de grandes personagens». A
opinião destas é «um erro, quer pelas razões quer pelos exemplos que avançaram». «A
combinação das três Repúblicas não faz diferença nenhuma, visto que a junção dos poderes real,
aristocrático e popular cria somente o Estado popular.» Vai ao ponto de tratar o regime misto
pelo absurdo, vendo nele um sistema de turnos. «Num dia a soberania seria do monarca, no dia
seguinte a menor parte do povo teria o senhorio, e a seguir todo o povo.» Cada um teria «por sua
vez, a soberania, como os senadores romanos depois da morte do Rei tinham o poder soberano
por determinados dias e à vez». Três espécies de Repúblicas «que não durariam mais do que um
mau lar onde a mulher manda no marido». O regime misto, a existir, não passaria de uma situação
passageira e até crítica. A partilha da soberania tem sempre como efeitos inevitáveis os conflitos
de poderes, lutas que levam necessariamente ao triunfo de um das partilhantes. Estabelecer a
monarquia com o Estado popular e com os senhores é coisa impossível, incompatível,
inimaginável. Ainda no desejo de se demarcar de Aristóteles, entende que não se deve ter em
consideração as formas corrompidas ou alteradas de governo, que o que importa é a essência e
não a qualidade, dos regimes. «A qualidade não altera a natureza das coisas.» «Se avaliássemos
o estado das Repúblicas em função das virtudes e vícios, nunca mais daí saíamos.» Evidentemente,
se formos a considerar cada regime naquilo que o torna original, sublinhando as suas
características próprias, qualquer classificação se tornaria impossível. Por conseguinte, as
especificações qualitativas devem ser afastadas como critério. O grau de pureza ou de corrupção
da monarquia não é suficiente para lhe «impor um novo nome». Por isso, Bodin, chega a uma
conclusão muito simples. Um governo caracteriza-se pelo seu órgão soberano, isto é, por aquele
que decide em último recurso, que dita e anula a lei. «Se a soberania reside num só princípe,
dizemos que o Estado é monárquico; se todo o povo participa nela, chamamos-lhe popular, se só
comporta a menor parte do povo, consideramos que o Estado é Aristocrático.» Se as explicações
da República ficassem por aqui, não existia dificuldade, mas a complexidade e a mobilidade do
homem impedem-no de ser fiel ao seu critério único de atribuição da soberania e ao propósito
de não avaliar os regimes qualitativamente. E assim acaba por fazer ressurgir os tipos que antes
afastara.
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O Estado monárquico: é pela terceira forma, o Estado monárquico, que Bodin mais se
interessa. Define-a como «uma espécie de República em que a soberania absoluta reside num só
príncipe». A monarquia é o Estado onde o soberano é um homem e não o povo ou o grupo dos
grandes. Não há monarquia se o Rei não se pronuncia em último recurso, se existe além dele ou
acima dele um tribunal popular ou aristocrático. Também não há monarquia se dois reis
governam em conjunto. A duarquia (ou diarquia) afigura-se-lhe uma espécie de maniqueísmo:
«O mundo tem tanta dificuldade em suportar dois senhores iguais como dois deuses iguais em
poder.» O Estado monárquico pode ser:
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bens e pessoas pelo direito das armas e de boa guerra». Existe não só
soberania, mas também patrimonialidade.
o A monarquia real (ou legitima), difere da tirania pela sua retidão. A
tirania não é legítima, a monarquia sim. Aqui, a legitimidade procede à
conformidade à justiça natural e à lei estabelecida. Não é mera
consequência da acessão ao trono por nascimento. O rei não nasce rei
legitimo, torna-se. É uma qualidade que se adquire, não um dom de
natureza. Assim, à legitimidade não se confunde com a hereditariedade,
e esta não constitui aquela. No entanto, o mais das vezes, acompanha-a.
A monarquia real difere da monarquia senhorial porque «os súbditos
obedecem às leis dos monarcas e o monarca às leis da natureza e porque
se conservam a liberdade natural e a propriedade dos bens dos
súbditos».
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EVOLUÇÃO DO ABSOLUTISMO
O Absolutismo Individualista
A Escola Clássica
“A maravilha da Holanda”: Hugues Cornet (um seu avô, apaixonado pela filha
burgomestre de Delf, aceitara, como condição para o casamento, que os filhos usassem o nome
da mãe, Grotius), nascido em Delf em 1583, o ilustre Grotius surpreendeu, desde os primeiros
anos de vida, o seu meio familiar, os seus concidadãos, e em breve também o estrangeiro. Na
idade da razão, já traduzia versos para Latim sem um único erro. Aos 14 anos, participa na
embaixada a França Henrique IV avista-se com o jovem sábio, “maravilha da Holanda”, cuja
erudição ultrapassa tudo o que se pode imaginar. Brilha nas artes, nas letras, nas ciências, na
poesia e na política. Em breve se torna advogado geral da Holanda e hóspede de Roterdão, e mais
tarde hóspede de honra da Frísia Ocidental e da Holanda. Mas, por essa altura, os Países Baixos
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são devastados por discórdias civis e religiosas. Grotius liga-se a Barneveldt, adversário de Nassau.
Barneveldt é condenado à morte e Grotius é metido no forte de Laevestein “para nunca mais da
lá sair”. Refugiado em França em 1621, é acolhido com liberdade. Encontra hospitalidade e tempo
livre para escrever o seu grande livro, De Jure beli ac pacis (Do Direito da Guerra e da Paz). Por
morte do Príncipe de Nassau, Grotius regressa à Holanda, mas como lhe impõem condições
inaceitáveis, é forçado a exilar-se de novo, desta vez em Hamburgo. Farol do direito internacional,
é nomeado embaixador da Suécia junto do Rei de França pelo chanceler Oxenstiern. Em 1664,
depois de uma viagem, desta vez triunfal, ao seu país, regressa à Suécia. De passagem pela
Alemanha, morre de esgotamento em Rostock, na sequela de uma violenta tempestade sobre o
Báltico (1645).
“De Juri belli ac pacis”: a obra fundamental de Grotius divide-se em três livros, libre três
in quibus jus naturale et gentium, item júris publici paecipue explicantur, três livros que explicam
os princípios do direito da natureza e das gentes e especialmente os do direito público. A sua
publicação terá uma importância considerável. A sua obra é, em primeiro lugar, uma obra de
direito internacional. O seu primeiro objetivo é a regulamentação daquilo a que hoje se chama
“relações internacionais”. Estas, na altura em que Grotius escreve, atravessam uma profunda
crise, pois os antigos princípios do direito feudal, os costumes guerreiros da cavalaria e os
regulamentos eclesiásticos deixaram de ter alcance prático e, até, real significação com o
renascimento dos Estados. Colocam-se novos problemas que, doravante, devem ser resolvidos
entre Estados soberanos. Maquiavel quer resolvê-lo pela força, Vitória pela Justiça. Na prática, a
“razão de Estado” guia os políticos do absolutismo. Quanto a Grotius, pretende dar às relações
internacionais uma base de direito. Como este está ainda por criar, não poderá ser o direito
positivo, mas o direito racional ou natural. Como direito racional e natural, aplicar-se-á a toda a
gente e será um direito universal. Assim, para dar bases sólidas à sua construção internacional,
Grotius, vê-se obrigado a colocar de uma maneira nova os fundamentos do direito e do Estado,
aspeto que interessa diretamente às ideias políticas.
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natural é determinado pela sua própria definição. Abrange tudo o que na vida humana se rege
pelo princípio de sociabilidade. As normas constituem condições necessárias e inevitáveis de uma
comunidade de vida regular. O seu ponto de partida encontra-se no direito privado. Em primeiro
lugar, o respeito do meu e do teu, o reconhecimento da propriedade; em seguida, o cumprimento
dos contratos; por fim, a indemnização dos prejuízos causados a outrem. Grotius encara, assim,
as penas em que se incorre por infração a estas normas. Depois, para lá da esfera do direito
privado, mas pelos mesmos meios, cria a esfera do direito público.
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porque razão não se haveria de permitir a um povo, que só depende de si próprio, a submissão a
um indivíduo ou vários, de maneira a transferir completamente para eles o direito de governar,
sem reservar para si qualquer parcela?». A pregunta é feita por Grotius a quem, ao que parece,
não repugnava uma resposta afirmativa. A qual se afigura inevitável a Thomas Hobbes. O infeliz
Hobbes (1588 – 1679) nasceu prematuramente, assiste à conspiração de pólvoras em 1605;
encontra-se em Paris quando do assassínio de Henrique IV, em 1610; é testemunha da execução
de Strafford de LAud, da derrota naval de Naseby em 1645 e da execução de Carlos I em 1649.
Umas vezes vai a França para se proteger de quem está no poder em Inglaterra; outras vezes vai
a Inglaterra para fugir a quem está no poder em França. Por tudo isso o sentimento dominante
em Hobbes é o medo. Almeja para os homens a paz que existe nas coisas. O seu único desejo é
ver a calma e a união asseguradas. Mas não há possibilidade de paz enquanto subsistirem
faculdades de resistência ao poder, sobretudo se a resistência tem móbeis religiosos, porque a
política transporta para o terreno religioso, ou a religião para o terreno político, desencadeia de
todos os lados paixões verdadeiramente irrefreáveis.
Individualista que teve medo: Hobbes busca apaixonadamente a saída para as suas
angústias num absolutismo que dê todos os poderes ao rei, mas a um rei que assegure a paz e a
tranquilidade. Fá-lo desde a sua primeira obra, Elementos do Direito Natural e Político, que
abrange três partes, libertas, imperium, religio. Finalmente, Leviathan sive de materia frma et
potestate curtatis ecclesiastae et ciuiles (1650). Por medo, torna-se o mais feroz dos estatistas.
Busca a salvação na capitulação perante um indivíduo. Mas essa capitulação não subverte as
bases do seu pensamento. O ponto de partida é o mesmo que o de outros autores maiores da
Escola do direito da natureza e das gentes. Também ele deduz a ordem da natureza do ser
humano individualmente considerado. Também ele funda «o Estado civil» no contrato de união
voluntariamente estipulado pelos súbditos. A diferença está em que o individualismo generoso e
confiante de Grotius se transforma, nele, num individualismo pessimista e fechado. O fundo da
natureza humana é o egoísmo, e não a necessidade altruísta de uma vida em comum. Ao procurar
a comunidade, o homem não o faz para se realizar, nem devido a uma inclinação natural que o
impelisse para os seus semelhantes, mas apenas com vista o seu próprio interesse. A sociedade
nasce do medo que os homens têm dos outros homens e não de uma generosidade recíproca.
Pois o estado de natureza em que os homens se encontram antes de se comprometerem entre
si por meio do contrato era essencialmente perigoso e funesto. No estado de natureza, todos os
homens estão em guerra uns contra os outros. Por possuírem um direito igual relativamente a
todas as coisas, todos cobiçam as mesmas coisas e têm um inclinação comum para se
prejudicarem; são uma fonte constante de perigo e de medo uns para os outros. A lei da natureza,
que atua nessas circunstâncias, é egoísta devido ao seu próprio fundo. Visa a conservação de si
próprio. A sua principal injunção é a busca da segurança. Mas no estado de natureza, os
mandamentos da lei natural não são obrigatórios. Grotius tinha-os estabelecido como fonte de
um dever ara com os outros homens; o pessimismo de Hobbes afasta tal segurança. Enquanto
uma pessoa não tiver a certeza de que a outra cumprirá o compromisso que assumiu, satisfazer
o seu próprio compromisso não serve de nada, no que toca à conservação pessoal. A voz das leis
naturais fica sufocada. O único interesse verdadeiro é então sair do estado de natureza, passando
do status naturalis ao status ciuilis.
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a sua única medida possível, é a utilidade efetiva. O Estado constitui-se para permitir que se tenha
a paz: o homem abandona-lhe o direito ilimitado inerente ao estado de natureza. Total ou
parcialmente, renuncia aos direitos que lhe vinham do estado de natureza, a fim de gozar do
resto. O homem cumpre os deveres naturais de compaixão e reconhecimento, que concorrem
para o objetivo de conservação pessoal. Mas para que exista Estado, não basta um simples acordo
entre homens, é necessária uma união. Os homens têm de deixar de viver como indivíduos
independentes e separados, a fim de formarem uma só vontade. Por conseguinte, não devem
conservar vontade, nem direitos que lhe pertençam. Todos os poderes passam para o Estado,
com a renúncia à resistência, por um lado, e a revogação da delegação assim atribuída, por outro.
E para tal, são necessárias condições à constituição da soberania (summum potestas, summum
imperium). Até agora, tínhamos encontrado dois contratos: o contrato de indivíduos que se
associam entre si e o contrato que os novos associados firmam com aquele em que delegam o
poder supremo. Para Hobbes, só há um pacto: os homens não negoceiam com o soberano, mas
apenas entre eles. Renunciam em proveito do senhor e assumem o compromisso de se submeter
à sua autoridade em absoluto e se condições. Antes da instituição do Estado, só existia a multidão,
que não tinha pela frente nenhuma autoridade com quem tratar; após a sua instituição, a
multidão dissolveu-se por isso mesmo e deixa de existir. A instituição do poder civil vem a ser,
afinal, uma alienação em vez de uma delegação. Já que o soberano é absolutamente estranho ao
ato, e não tem qualquer obrigação porque não assinou nada. Com efeito, este contrato não é
uma limitação do poder absoluto – é precisamente o seu fundamento.
O Leviatã: a consequência deste pacto é fazer da multidão um ser único. Hobbes dá-lhe
um nome extraído da Bíblia, do livro de Job: “Leviatã” ou “Deus mortal”. Um desenho à pena, no
frontispício da obra, representa o corpo do monstro, constituído por uma multidão de indivíduos
microscópicos aglutinados. O conjunto constitui uma personagem medonha que segura nas mãos
o báculo e a espada, atributos do poder espiritual e do poder temporal. Duas séries de símbolos
colocados à frente completam a alegoria. Constituído por uma fusão completa dos indivíduos, o
Estado exerce uma soberania absoluta (imperium absolutum), a que corresponde, naturalmente,
uma monarquia absoluta. A manutenção da paz exige que o soberano disponha de uma
autoridade completa: não deve estar sujeito a nenhuma lei exterior a ele, seja natural ou
eclesiástica. Por conseguinte, o súbdito não tem qualquer direito relativamente ao poder e não
comete falta quando se conforma à ordem do poder. A doutrina de Hobbes dá origem a um
positivismo jurídico radical. Só as leis civis decidem da existência da falta. O adultério não é uma
falta por violar a moral, mas porque o poder interdita «que se tenha trato com uma mulher de
que as leis civis proíbem aproximar-se». As leis civis fixam os requisitos do adultério como lhes
apraz, estabelecendo qual o tipo de relações sexuais que entra essa categoria. Deste modo,
Hobbes retira ao direito e ao Estado toda a dimensão moral. A lei natural, única base em que
fundamenta o direito e amoralidade, não comporta em si qualquer ideia moral. Tudo é dominado
pela necessidade de segurança, pelo instinto físico de conservação pessoal, pela pura lei de
prudência. A política é o domínio do conveniente. Um completo vazio moal cava-se sob as
relações sociais, por sua vez totalmente despojadas dos valores éticos que encerravam. No ponto
de chegada, um poder ilimitado e absoluto sai da união das vontades humanas, mas transcende
essa união. O Estado constitui uma pessoa distinta de todos os indivíduos que reúne em si. A sua
aglutinação não pode ser considerada como constituinte do Estado. Só os que representam o
Estado possuem esse caráter. Há quem pense que se trata de um progresso da teoria do Estado
ao traçar a separação entre o Estado e agregado social. É duvidoso que seja algo de
verdadeiramente meritório. Desligar tão completamente o poder daqueles sobre quem se exerce
tem por resultado dar a esse poder um caráter ao mesmo tempo artificial e ilimitado. Artificial e
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ilimitado: assim é, no fundo, o poder segundo Hobbes. A formação do Leviatã é muito laboriosa.
As cedências seguem-se umas às outras; para pôr termo à guerra de todos contra todos, os
homens aceitam a paz, mas é uma paz concentracionária. Ao homem não resta nada de seu. Não
há recurso possível contra as ordens do Estado, pois tudo o que ele faz também os homens seriam
capazes de fazer. Queixar-se do Estado seria o mesmo que queixar-se de si próprio. Hobbes faz
do soberano o dono da Religião. É um verdadeiro Deus terrestre. O absolutismo retorna às suas
conceções pagãs originárias. Ao reunir na mesma mão o cetro e o báculo, ao confundir o que é
de César com o que pertence a Deus, torna-se totalitário. Hobbes não admite que uma pretensa
autoridade espiritual possa erigir-se como rival do soberano. Ninguém deve servir dois senhores;
há um só poder, o poder civil, que se ocupa de tudo. Aliás, a obediência ao monarca não é
obrigação moral por ser religiosa, mas por ser política. Admitir que as Escrituras são a palavra de
Deus não é ciência, mas fé. Ora a fé nada tem a ver com a política. Mas nem por isso a política se
desinteressa da fé. Apesar disso, Hobbes não se considera intolerante, uma vez que o Estado só
impõe os atos exteriores da religião. Quanto aos corações, só Deus os conhece. Ninguém pede
aos súbditos que acreditem; só têm que obedecer. O que a paz procurada por Hobbes exige não
é a tolerância, é o conformismo. Uma vez concluído o contrato, quando não se depõe o
julgamento próprio e a própria consciência nas mãos do soberano, já não se pode desobedecer.
O ABSOLUTISMO ESCLARECIDO
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IDADE
CONTEMPORANEA
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O PRÉLIBERALISMO ARISTOCRÁTICO
Antes de dominar o século XIX, que se prolonga até 1914, o liberalismo levou um século
a amadurecer e a afirmar-se. Pode, com efeito, situar-se as suas primeiras manifestações por
volta de 1680. Muito antes da morte de Luis XIV, explode a crise da consciência europeia. Esta
ficou a dever-se a fatores históricos deprimentes: a miséria da guerra, a miséria dos invernos
rigorosos e a miséria de uma má política económica e fiscal, que fizeram acreditar numa
reviragem. Mas, no plano das ideias, o que se verifica é um ressurgimento, um segundo
renascimento. Na verdade, o período do absolutismo clássico deixa de ser um esforço, uma
vontade, uma adesão refletida, para se transformar num hábito e num constrangimento, as
tendências inovadoras devidamente preparadas reaparecem prontas a recuperar a força e o vigor;
e a consciência europeia entrega-se de novo à sua eterna busca. Total, imperiosa e profunda, a
retoma, ou continuação do Renascimento, prepara pouco a pouco o século XVIII. Se para falar
com propriedade, se chama “novidade” a uma certa maneira inédita de pôr os problemas ou ao
acrescentar de uma certa tendência, de uma certa vibração. A época da renovação e das
inovações não espera pela passagem do século XVII para o XVIII, pois já desde o fim do século XVII
existem sensíveis transformações. Já em 1705 Leibniz pensa que seria bom que «os príncipes se
persuadissem de que os povos têm o direito de lhes resistir», tratando de definir o Estado como
«uma grande sociedade cujo fim é a segurança comum» e acrescentando que esse Estado deve
dar aos homens a felicidade. Essa felicidade que, em breve, será anunciada como «uma ideia ova
na Europa». Desde a aurora do século XVIII que se vê despontar este culto do indivíduo. Nos
últimos anos do século XVII, começou uma nova ordem. Em política, este novo percurso
manifesta-se por uma rejeição das teses clássicas. Uma oposição geral começa a formar-se:
oposição do alto clero, oposição dos meios esclarecidos, oposição popular; oposição externa. A
primeira é a mais clara, porque, nascendo muito perto do trono e tendo por missão consolidá-lo,
é a única com algumas possibilidades de expressão.
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antipatia que lhe votaram os adversários do liberalismo. Um deles escreve que desprezar Locke
é o começo da sabedoria. “No seu estudo da filosofia, falou tão mal sobre a origem das ideias
como sobre a origem das leis”. Mas pode, sem exagero, ver-se no autor do Ensaio sobre o poder
civil, verdadeira apologia da Revolução que eliminou os Stuart, uma espécie de “anti-Hobbes”.
Incontestavelmente, passa por pensador oficial a partir daquele dia 11 de abril de 1689 em que,
depois de Guilherme d’Orange ter sido coroado em Westminster, se proclama que irá reinar “em
virtude de um direito não diferente em nada do direito de qualquer proprietário a escolher o
representante do seu condado”, e em que aceita o controlo das duas Câmaras, assegurando,
assim, o triunfo do governo parlamentar.
Uma existência apagada: comparada com a importância que têm para a História das
Ideias Políticas, a História da vida de Lock (1632 – 1704) é quase irrelevante. Membro de uma
família puritana, modesta, profundamente religiosa, segue o caminho que a época impunha a
qualquer jovem bem dotado, desejoso de se cultivar e de se qualificar intelectualmente: o
seminário. Embora, a princípio parecesse destinado à teologia, muda para ciências. Torna-se
médico sem ter, ao que parece, acabado o curso. Os seus conhecimentos reais na matéria,
juntamente com a sua constituição doentia e uma certa inaptidão psicológica para constituir
família e seguir uma carreira, vão fazer dele uma dessas numerosas personagens que giravam na
órbita das pessoas importantes o antigo regime e que na vida política contemporânea
acompanham os “ministros”. John Locke exerce, sob o nome de “secretário das apresentações”,
as competências que seriam hoje de um chefe de gabinete. Partilha a fortuna e desgraças de Lord
Asley, que em breve se torna conde. Antes, tinha sido encarregado de uma missão diplomática
junto dos eleitores de Brandeburgo e, mais tarde, fará uma longa estada em França por razões
da saúde e também para adquirir alguma experiência na área económico-social. Mas o episódio
essencial da sua vida ocorre durante o exílio na Holanda. O triunfo provisório de Carlos II faz com
que seja excluído de Oxford. Com a liberdade, se não a vida, ameaçada, alcança o refúgio
continental dos liberais. Aí, as suas ideias vão tornar-se claras e amadurecer num ambiente
particularmente favorável; aí redigirá os grandes livros que lhe hão de trazer glória. De volta a
Inglaterra, permanecerá quase sempre retirado em Oates, publicando dois opúsculos públicos.
Em 28 de outubro de 1704, com 72 anos, morre na sua poltrona, a ouvir Lady Marsham ler para
ele. «A sua morte foi como a sua vida, verdadeiramente piedosa, mas natural, doce e simples»
disse ela.
A liberalização do direito natural: com Grotius, o direito natural moderno substitui a ação
e a vontade pessoal e transcendente de Deus pela ordem imanente à natureza humana. A razão
vê-se confrontada consigo própria, abstraindo de Deus e da revelação. Esta conceção do direito
natural domina durante mais de um século. Parece ser o único direito legítimo, o único possível.
A primeira intervenção decisiva de Locke no desenvolvimento do pensamento político foi tentar
associar o direito natural à liberdade individual. Para isso vai buscar as armas de Hobbes, mas,
desta vez, para as utilizar no sentido da liberdade. A construção dos jusnaturalistas era polivalente.
O estado de natureza e o contrato social são hipóteses que podem servir para vários fins: o estado
de natureza, considerado como estado de guerra, e o contrato social, visto como uma espécie de
capitulação incondicional, conduzem ao absolutismo; mas o estado de natureza, considerado
como estado de paz, e o contrato social, considerado como uma convenção limitada, condicional
e revogável, podem muito bem levar à liberdade. Locke vai ao ponto de achar que são uma
consequência normal da liberdade. «A lei da natureza é de obrigação porque é de liberdade».
O estado de natureza: Locke define o estado de natureza como uma situação dos seres e
das coisas em que não existe sociedade civil, nem sequer uma forma rudimentar. Em que os
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homens são livres e iguais. Trazem em si a luz da razão, que lhes permite distinguir a lei natural e
adaptar-lhes o seu comportamento. Assim, na ausência de uma sociedade civil, existe a família,
com o poder paternal, completamente diferente do poder político. Do mesmo modo, ainda que
não haja sociedade nem poder político, existe o direito de propriedade. É um dos pontos mais
inovadores de Locke, um daqueles em nome dos quais se fez a revolução e que permite a Voltaire
exclamar: «Liberdade e propriedade, eis a divisa dos ingleses!» Este estado de natureza é
considerado por Hobbes como um estado de guerra: «a guerra de todos contra todos». Ao
contrário, Locke, otimista, pensa que é «um estado de paz, de boa vontade, de assistência mútua
e de conservação». Fundamenta a sua convicção no sentimento que cada indivíduo tem da
necessidade da sua própria salvaguarda e na reciprocidade dos comportamentos. Em suma, o
princípio de cada um é a conservação pessoal; o principio de todos, a conservação do género
humano. A diferença fundamental entre o estado de natureza e o estado de sociedade reside
fundamentalmente no facto de as violações do direito natural não serem sancionadas no estado
de natureza, ou, mais exatamente, de o serem de uma maneira anárquica, por iniciativa das
vitimas ou dos seus parentes e amigos. O estado de natureza só conhece a justiça privada. É
precisamente esta ausência de organização duma sanção e, por conseguinte, de salvaguarda
preventiva das pessoas e dos bens, que vai levar ao fim do estado de a natureza. Locke, que pensa
que a América na vasta extensão de terras novas prontas a serem conquistadas, acha que o
estado de natureza é perfeitamente suportável. Com os primeiros elementos da economia liberal,
um outro fator joga a favor da constituição de uma sociedade, desta vez plenamente organizada:
é o uso do dinheiro. Com a sua criação, o homem tende a apropriar-se de bens acima das suas
necessidades. Anteriormente, o homem estava limitado por estas, na impossibilidade e na
inutilidade de conservar o excedente do consumo. Em contrapartida, com o aparecimento do
dinheiro, a poupança e o entesouramento tornam-se possíveis. Por isso, as desigualdades, que a
princípio são diminutas, vão crescendo até que, a certa altura, já não é possível ao homem viver
em paz se a posse dos seus bens não estiver protegida por uma organização adequada, que é
precisamente a organização política. Por outras palavras, os homens têm um interesse evidente
em sair do estado de natureza. Uns por terem doravante problemas de segurança, outros, pelo
contrário, por serem desfavorecidos, todos pensam que poderiam estar melhor. Estariam melhor
se houvesse leis positivas, juízes para as interpretar e um poder executivo para as aplicar. É a
acumulação de riquezas e a desigualdade na sua repartição que explica o desaparecimento do
estado de natureza. Esta análise de Locke nada tem pessimista, porque ele acredita que o
interesse natural que leva qualquer homem a enriquecer não é antissocial. Traduz, assim, uma
ideia que remonta à Reforma e segundo a qual «o sucesso material dos particulares promove o
bem estar público».
O pacto social: uma vez que a lei natural é uma «lei não escrita que só pode encontrar-
se no espírito dos homens», se não houver juiz constituído, «não é assim tão fácil convencer dos
seus erros aqueles que, por paixão ou por interesse, a invocam sem fundamento ou a aplicam
mal». Para escapar ao risco de insegurança, os homens decidem fundar a sociedade política ou
civil. «A fim de evitar os inconvenientes que no estado de natureza perturbam o gozo da
propriedade, os homens entram em sociedade para poder dispor de toda a força pública
destinada a proteger e defender os seus bens e para determinar… as regras fixas que dão a
conhecer a cada um o seu poder natural à sociedade de que fazem parte… Nunca os homens
abandonariam… a liberdade do estado de natureza… se não tivessem de proteger as suas vidas,
a sua liberdade e os seus bens e de assegurar, através de leis relativas ao direito e à propriedade,
a sua paz e tranquilidade.» Assim, existe sociedade civil – e só nestas condições – usando um
certo número de homens se unem de tal maneira que cada um deles renuncia ao seu poder de
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executar a lei natural para o ceder à coletividade. A cláusula fundamental do pacto social está na
renúncia ao direito de reprimir as infrações à lei natural. Para Locke, os homens vivem em
sociedade política porque renunciaram ao direito de reprimir por sua conta infrações e
reconhecem um poder de coação, independente e superior, encarregado de reprimir as violações
à lei. No estado de natureza, cada um faz justiça por suas próprias mãos, e Locke considera que
continua a ser esta a situação da sociedade internacional. Entre os príncipes Luis XIV e Guilherme
III, o único árbitro é Deus. Cada qual faz justiça conforme a força das suas armas. Pelo contrário,
entre dois ingleses, em sociedade política, a coroa ou um funcionário da coroa pronunciar-se-á
sobre o objeto do litígio. E aqui, Locke introduz uma segunda inovação: a sua conceção do estado
de natureza. O poder do corpo político resulta da soma das suas abdicações individuais. O Estado
nasce da renúncia de um certo número de homens que entram em sociedade para constituir um
corpo político. Quando um homem se incorpora ulteriormente numa sociedade política já
estabelecida, tem de aceitar as suas regras, a primeira das quais é não fazer justiça por si. Esta
abdicação não tem, em Locke, uma expressão ilimitada. Nada tem de tirânico, nem de absoluto.
É «um recurso contra a fraqueza e a imperfeição da minoria, uma disciplina necessária à
educação». A fortiori, tendo nascide de um pacto, o poder político só se estende àquilo que é
necessário ao objetivo da sociedade. Ora, entra-se em sociedade para assegurar, graças a um
poder coercivo, independente e autónomo, colocado acima dos indivíduos, o bem estar das
pessoas e a conservação dos bens. Locke não admite que os homens, que deixaram o estado de
natureza, onde não estavam assim tão mal para ficarem melhor, tenham acabado de assinar um
pacto unilateral de submissão ou um contrato que transfere para um homem ou para uma
assembleia um poder absoluto. Por consequência, a formação da sociedade política reduz, mas
não aniquila, as liberdades e as propriedades que existem no estado de natureza. «O poder da
sociedade não pode estender-se para lá do bem comum». Se «a liberdade natural do homem
consiste em não reconhecer na Terra nenhum poder que lhe seja superior, num Estado bem
constituído», que atua no sentido da salvaguarda da comunidade e onde «o poder legislativo é
apenas… confiado para a prossecução de certos fins, povo continua a conservar o direito de
dissolver ou de mudar a legislatura quando se apercebe de que ela atua de maneira contrária à
missão que lhe foi confiada. Porque todo o poder confiado com o objetivo de atingir determinado
fim encontra-se limitado por este». O homem não entra para o Estado com todo o seu ser, mas
só com uma parte deste. Pretende que lhe garantam um certo número de vantagens, em
proporção com o sacrifício que consente. Se não fosse assim, não teria nenhuma razão para
escolher o Estado como forma de vida.
A revolução modelo: esta teoria geral de um Estado limitado fornece-lhe também uma
explicação e uma justificação da época em que vive. Locke liga a revolução inglesa a uma filosofia
política geral. Aquela deixa de ser um simples acidente histórico e perde o seu caráter
evenemencial para adquirir uma ascendência intelectual e um valor universal. O Ensaio sobre o
Poder Civil é, ao mesmo tempo, um texto filosófico e um texto de circunstância. O médico que
acompanha a rainha Maria no seu regresso a Inglaterra é, não só o pai do liberalismo, mas
também o artífice intelectual de uma revolução conseguida. Ele funda filosoficamente a nova
legitimidade. Para que o poder seja legítimo, é preciso que o homem dê a sua adesão à sociedade
civil. Não pode haver sociedade civil sem consentimento dos interessados. Locke não utiliza
termos tão rigorosos como outros autores. Em vez do termo contract, prefere muitas vezes usar
compact ou agreement, que têm um significado menos rígido e um alcance jurídico menos
preciso. O pensamento de Locke adquire um realismo particular. A aceitação, o agreement, pode
ser tácita. A maior parte das vezes adere-se à sociedade política pela simples presença no
território. Esta presença, que equivale a assentimento, é o bastante para obrigar ao cumprimento
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das leis criadas pela comunidade. O meio pacífico de sair da comunidade é aquele que Althusius
tinha formulado: a emigração. A este respeito, Locke, muito ligado a certos lordes que organizam
as deslocações para o ultramar, imagina que o consentimento poderia ser expresso. Aqui não
basta calar e consentir; é preciso manifestar uma vontade positiva. Contudo, não se exige um
consentimento unânime para a criação do Estado. Admite-se uma maioria simples, porque se o
indivíduo pudesse prejudicar os planos do maior número, a sociedade dissolver-se-ia
rapidamente. «Quando um certo número de homens consente em formar uma comunidade ou
um governo, torna-se por isso mesmo independente e constitui um só corpo político em que a
maioria tem o direito de dirigir e obrigar os outros. Se, com efeito, graças ao consentimento de
cada indivíduo, eles formaram uma comunidade, também constituíram esta como um corpo, com
o poder de agir como um só corpo, o que só é possível por vontade e decisão da maioria… É
necessário que o corpo se mova na direção para onde o leva a maior força, quer dizer, o
consentimento da maioria.» Só há, portanto, poder atribuído. Á noção de “mandato” ou de
“delegação”, Locke prefere a noção de trust. Já as Provisões de Oxford, em 1258, se baseavam
na ideia de que o príncipe desempenhava uma missão que lhe fora confiada, com vista a uma
certa finalidade e com a obrigação de atingir um objetivo combinado. O que Locke chama political
trusteeship é, precisamente, um poder confiado dentro de certos limites e com vista a
determinado fim. Além disso, o trust comporta um elemento de confiança recíproca. O
consentimento nunca é dado de uma vez para sempre. É condicional e subordinado ao
comportamento dos governantes, em cujas mãos os governados não abdicaram do poder. A
comunidade permanece soberana. Também os direitos naturais, que são a vida, a liberdade e a
propriedade, continuam a existir no estado social. Os homens apenas abandonaram o direito de
serem eles a zelar pela sua conservação e a punir as infrações.» Enquanto o trustee permanecer
nos limites da sua missão e cumprir as suas obrigações, o pacto mantém-se. Esta conceção da
monarquia – consensual – baseada num pacto, é essencialmente da monarquia inglesa de 1688.
Mas viria ser também a dos Estados Unidos da América. A Revolução Americana é a perfeita
transposição da demonstração de Locke: o Parlamento Inglês tornou-se depositário infiel do trust
que os ingleses de além-mar lhe tinham confiado; cabia então ao povo das treze colónias retirar
o poder ao depositário infiel, através de uma insurreição dirigida contra o Parlamento de
Westminster, e não contra o rei. Um novo governo civil é fundado pela declaração de
independência de 1776.
As instituições que têm a liberdade por objetivo: o terceiro mérito de Locke é acrescentar
ao pacto, baseado na liberdade, instituições que manterão esta liberdade e a tornarão efetiva.
Locke dá às instituições liberais as suas bases técnicas. Encontramos na sua obra o esboço da
monarquia limitada e já os esboços do regime parlamentar e do regime presidencial americano.
As instituições empíricas da monarquia de Guilherme d’Orange transformam-se em instituições
de valor universal para quem desejar estabelecer um governo livre. Primeiro Locke afasta
qualquer hipótese de dominação absoluta. A seu ver, não se trata de um estado social, mas de
um estado de guerra. Se os homens devessem trocar o estado de natureza pelo despotismo, era
bem melhor que permanecessem no estado de natureza. O poder absoluto é, pelo contrário, um
estado social, porque o povo pode colocar à sua frente um soberano ou uma legislatura
permanente, sem reservar para si o direito de ter deputados temporários. «É um erro acreditar
que o poder supremo ou legislativo pode fazer o que quiser, dispor arbitrariamente dos bens dos
súbditos ou tirar-lhes uma parte a seu bel prazer.» O soberano está vinculado pelas cláusulas do
pacto social. Todavia, Locke tem perfeita consciência de que a passagem do absoluto ao arbitrário
é muito fácil, só se houver prescrições exclusivamente morais ou impedimentos puramente
materiais a proibir o absolutismo de resvalar para o despotismo. Por isso, preconiza instituições
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capazes de assegurar, melhor que quaisquer outras, a liberdade. A primeira salvaguarda, e a mais
importante, é a separação de poderes, ou a distinção dos poderes. Mas em Locke a ideia é levada
sensivelmente mais longe; o seu alcance é mais vasto, o rigor maior. O poder divide-se, quanto
ao seu exercício, em três atividades que asseguram a legislação, a execução e a federação. Há,
assim, três domínios de ação: o da lei, a disposição geral; o da aplicação da lei pela administração
e pela justiça; e um terceiro, o das relações internacionais, o poder “federativo”, cujo nome
resume mal o conteúdo, que é o poder de tratar com potências estrangeiras, de declarar guerra,
de fazer a paz ou, de uma maneira geral, de aplicar as regras do direito internacional público ou
privado. Locke não se limita a esta distinção de princípio. Pensa, além disso, que há um enorme
inconveniente, para a liberdade e para o indivíduo, no facto de todas as formas de ação serem
confiadas às mesmas pessoas. É preciso, a todo o custo, separar a elaboração das leis da sua
execução. O poder de fazer as leis deve pertencer a uma assembleia. Ao invés, certos membros
da sociedade, em número reduzido, serão encarregados de aplicar as leis. Os dois poderes serão
diferentes, porque a assembleia que fizer as leis não as executará e os executantes da lei não
participarão na assembleia que as fez, e também porque esta assembleia não será permanente.
O poder legislativo será um poder descontínuo. Um poder temível, porque impõe regras que
obrigam a todos, mas que só se exercerá intermitentemente. A determinação da regra não deve
confundir-se com a sua aplicação, que é da responsabilidade de um poder contínuo. Em
contrapartida, Locke não vê grande inconveniente em que as relações externas – o poder
federativo – se juntem ao poder executivo. Finalmente, a divisão em três poderes ou órgãos,
legislativo, executivo e federativo, reverte a dois, uma vez que a execução no domínio interno e
no domínio externo se encontra num só. No entanto, neste como em muitos outros, Locke, que,
em suma, acaba de criar o liberalismo político, não é inteiramente explícito. Provavelmente, as
suas ideias não teriam atingido tal grau de perfeição, nem uma tão vasta expansão, se não
tivessem sido consagradas por outro génio, ou se graças a outro génio não tivessem sido objeto
de uma “segunda fundação”.
As duas fontes de O Espírito das Leis: antes de o superar, Montesquieu começou por ser
discípulo de Locke e do constitucionalismo britânico. No Ensaio sobre o Poder Civil encontram-se
reunidas «a teoria do poder limitado pelas leis fundamentais do bem público e da liberdade
privada, e a famosa repartição de funções, garantia da liberdade». Mas Montesquieu é também
o sucessor do tradicionalismo aristocrático, a que vai buscar uma parte importante das suas ideias.
Assegurando a confluência das duas tendências, Montesquieu é talvez o mais temível adversário
do absolutismo, porque é o mais realista. A melhor maneira de enfraquecer o poder, no interesse
da liberdade individual, não é transferi-lo, mas partilhá-lo. Ora, a partilha pode ocorrer de duas
maneiras: pode realizar-se no sentido vertical, por interposição, entre o poder e os súbditos, de
corpos intermédios que serão, segundo a tradição aristocrática, depositários de uma parcela do
poder; ou no sentido horizontal, com o reconhecimento de um poder legislativo, de um poder
executivo e de um terceiro poder que, para Locke, era “federativo”, mas que, para Montesquieu,
será “judicial”; três poderes que, colocados lado a lado, servirão mutuamente de contrapeso.
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não o satisfaz por aí além, pois o que procura já em cada texto é o “espírito das leis”. Em 1714
torna-se conselheiro do Parlamento de Bordéus, e depois, a partir de 1716, presidente. É bom
magistrado, correto e trabalhador; mas, mais ainda do que as suas funções, gosta dos tempos
livres que elas lhe deixam para se dedicar à leitura e à escrita. «Tenho a mania de escrever livros»,
dirá. Também apresenta comunicações à Academia de Bordéus sobre matérias científicas. A sua
primeira obra, Cartas Persas (1721) traz-lhe fama graça a frases como esta: «A monarquia é um
estado violento que degenera sempre em despotismo ou em república; o poder nunca pode ser
igualmente partilhado entre o povo e o príncipe, o equilíbrio é muito difícil de conservar.» Graças
também, sem dúvida, ao tem de irreverência e ironia desprendida que transparece em algumas
expressões que utiliza: acerca do rei, diz que prefere um homem que o dispa ou lhe estenda a
toalha, a outro que conquiste cidades ou ganhe batalhas; sobre o papa, pensa que é um velho
ídolo que as pessoas veneram por hábito; e se a nobreza sai mais que arranhada quando escreve
que «o corpo dos lacaios é mais respeitável em França do que noutros sítios: pois aqui é uma
escola de grandes senhores», os parlamentos não saem mais bem tratados, quando afirma que
se «parecem com aquelas grandes ruínas que a gente espezinha». O sucesso leva-o a Paris, onde
os salões lhe abrem as portas. Livre, Montesquieu vai poder viajar. Depois do sucesso das Cartas
Persas e da entrada na Academia, teria podido continuar a escrever, como outros, livros sobre
países nunca vistos. Mas ele tem altas ambições, curiosidades ardentes e grande probidade
intelectual. Antes de abordar os grandes assuntos que o solicitam, sente a insuficiência da sua
preparação. Para remediá-la, faz uma longa viagem de vários anos, que é como que a charneira
da sua existência. De tudo isto, com o imenso talento da sua escrita, Montesquieu poderia ter
tirado imagens coloridas e quadros picantes. Mas, renunciando à facilidade, encerra-se no castelo
de La Brède e deita as mãos à obra para extrair lições das suas viagens, logo recoberta pelas suas
leituras. Em 1734 publica como um capítulo destacado da sua grande obra, Considerações sobre
as Causas da Grandeza e da Decadência dos Romanos, em que aparece o conceito de separação
de poderes: «As leis de Roma tinham dividido sabiamente o poder público num grande número
de magistraturas que se apoiavam, se controlavam e se moderavam entre si.» Depois, ao fim de
vinte anos de esforços O Espírito das Leis é editado em 1748. Em 1750, acrescenta-lhe um
suplemento, uma Defesa do Espírito das Leis. Mas já ultrapassou os sessenta anos e este trabalho
demasiado intenso, arruinou-lhe a saúde; morre em 1755, em Paris, durante uma das suas
habituais viagens.
Dificuldades de O Espírito das Leis: O Espírito das Leis é uma obra imponente, mas
também é uma obra de acesso difícil. O próprio Montesquieu se apercebeu do esforço exigido ao
leitor «por causa da extensão e do peso das matérias». Pensou que era necessário ler tudo e
extrair excertos copiados, uns a seguir aos outros, de volumosos registos. Esta obstinação em
nada deixa de perder, aliada à impossibilidade de se reler, explica a ausência de um plano de
construção do conjunto e a desordem de certas passagens. Também é possível que haja em
Montesquieu uma parcela de desordem deliberada. Procurava, assim, obter um efeito artístico.
E até é possível que tenha agido assim por prudência. Todos os escritores do período absolutista,
a não ser que glorifiquem o Príncipe, precisam de andar com pezinhos de lã. Montesquieu possui
uma grande coragem moral, mas a bravura física não é o seu forte.
Montesquieu politólogo: deve ser esta mesma prudência que impede Montesquieu de
intitular claramente a sua obra de A Política. Abrindo magistralmente o capítulo I do primeiro
livro com uma fórmula que se tornou célebre: «As leis, na sua significação mais extensa, são as
relações necessárias que derivam da natureza das coisas». Todavia, à exceção do título do livro e
de algumas passagens do princípio, é quase exclusivamente ao estudo dos governos que
Montesquieu se consagra. Logo no capítulo II do Livro I, aparece este título: Da natureza dos três
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diferentes governos. A partir daí, a definição dos governo e a determinação da sua natureza e do
seu princípio são fundamentais na trama do texto. As “leis” que, segundo o título genérico, seriam
o objetivo da obra, acabarão por ser apenas consequências e derivações. O índice mostra que a
análise das foras de governo rege todo o desenrolar da obra. O Livro II, com que ela começa
verdadeiramente, procede à diferenciação dos governos e ao estudo da sua natureza. O Livro III
examina os seus princípios. O Livro VIII estuda a sua corrupção. Os Livros VI a XIII extraem as
consequências da existência de diversas formas de governo; consequências quanto à educação
(Livro IV), quanto à legislação (Livro V), quanto à simplicidade das leis civis e penais; quanto à
forma dos julgamentos; quanto ao estabelecimento de penas (Livro VI); quanto às leis
sumptuárias: quanto ao luxo e quanto à condição das mulheres (Livro VII); quanto à força
defensiva e ofensiva (livro IX e X) quanto à liberdade política (Livro XI); quanto às liberdades
individuais (Livro XII); quanto aos impostos (Livro XIII). Aqui e ali, alguns capítulos ou fragmentos,
mais ou menos importantes, analisam as relações entre os governos e os costumes (Livro XIX);
entre governos e o comércio (Livro XX); e entre o governo e a população (Livro XXIV).
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O seu único fim é fixar os perfis dos governos, examinar as suas realizações na história, enumerar
e especificar as condições morais e físicas da sua vigência, instalação, grandeza e declínio. A coisa
política deve ser estudada tal como é, explicada e não julgada. «Eu não justifico os usos, mas
descubro-lhes as razões.»
Os regimes que têm a liberdade por objetivo: contudo, o ato do nascimento da ciência
moderna da sociedade é apenas a primeira face do destino histórico de Montesquieu. A outra é
feita da teoria política que o autor explicou em O Espirito das Leis. Há uma rutura nas intenções,
que corresponde a uma viragem na sua vida. A dado passo da sua obra, o observador torna-se
doutrinário. Surge um ideal político ao qual subordinar a sua investigação. À primeira classificação,
que permanece descritiva, sucede uma segunda, dominada por uma “ideia-mãe”: a da liberdade.
Montesquieu é um observador; procede a investigações no local; ouve testemunhos orais;
examina testemunhos escritos. A sua epígrafe tem, portanto, um sentido esotérico que ele lhe
atribuía no círculo dos íntimos. A “mãe” que não participou no nascimento de O Espírito das Leis
é a Liberdade. Montesquieu escreveu num país onde ela não existia. A sua obra nasceu sem mãe.
No entanto, esta liberdade, mãe das leis justas, descobriu-a nas margens de Além-mancha. E este
encontro tornou-se matéria de deslumbramento. Em Paris, a monarquia desagrada-lhe
profundamente. A que conhece é a monarquia da Regência, «onde a arte de governar mais não
é que a arte de corromper». Ao iniciar a sua grande viagem está inclinado a escolher para modelo
as Repúblicas da Antiguidade. Mas quando visita Génova e Veneza, a sua deceção é completa.
Reencontra à beira do grande canal a corrupção que tinha deixado nas margens do Sena. Em
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contrapartida, a Inglaterra representa para ele o regime por excelência da liberdade. É a grande
viragem da sua obra, o famoso capítulo VI do Livro XI, sobre a constituição inglesa, escrito, sem
dúvida, depois de 1734. Montesquieu abandona a posição de observador imparcial e toma
partido vigorosamente. A primeira consequência da admiração pela Constituição Inglesa é o
abandono dos pontos de vista tradicionais e a proposta de uma nova classificação com a liberdade
por critério. As Repúblicas não são Estados livres por natureza. A inaptidão da República para
trazer liberdade se deve ao facto de ser um regime socialmente indiferenciado, um regime
igualitário, um regime de massas em que todas as partes são homogéneas. Os elementos são
justapostos e não hierarquizados. Satisfaz a igualdade, mas não a liberdade. A monarquia não
tem necessariamente a liberdade por objetivo. Pode visar apenas a glória do Estado ou do
Príncipe. Nesse caso, afasta-se cada vez mais da liberdade, e separa-se cada vez mais da liberdade,
e separa-se dela completamente quando degenera em despotismo. Mas a monarquia torna a
liberdade possível. Sociologicamente é o regime em que a divisão do trabalho social vai mais
longe. A sua estrutura social é diferenciada pela multiplicidade de ordens funções e condições;
uns fazem as leis, outros aplicam-nas, uns governam, outros julgam. Ninguém pode afastar-se da
sua função, nem imiscuir-se na de outrem. As classes moderam o poder do monarca. Os órgãos
do corpo social moderam a autoridade real e moderam-se uns aos outros. A separação de
poderes não se aplica só aos órgãos do governo. É um princípio de ordem geral: a monarquia está,
assim, predisposta a ser um regime liberal. Pode vir a sê-lo acidentalmente; também o pode ser
deliberadamente. Não bastam os obrigações da consciência ou os conselhos da razão. O pode
terá de ser partilhado. Haverá liberdade política, porque de cima abaixo serão mantidos «os
escalões intermédios»; e no topo estabelecer-se-á uma separação de poderes. «A liberdade só
se encontra nos governos moderados.» Mas nem sempre existe nos Estados moderados: só
quando não se abusa do poder. Para que não se possa abusar do poder, é preciso que o poder
trave o poder, segundo uma máxima fundamental d’O Espirito das Leis. Montesquieu começa por
retomar a trilogia de Locke: poder executivo, federativo e legislativo. Depois, sem se explicar
claramente escamoteia o poder federativo. Substitui-o pelo poder judicial, que por sua vez fará
desaparecer, tornando-o invisível e nulo. Restam o poder executivo e o poder legislativo,
repartindo-se este por duas Câmaras. «Eis, portanto, a constituição fundamental de que falamos.
Sendo o corpo legislativo composto por duas partes, cada uma acorrenta a outra pela faculdade
mútua de impedir. As duas estarão ligadas pelo poder executivo, e este, por sua vez, pelo poder
legislativo.» Feitas as contas é do Parlamento inglês que se trata: Câmara dos Comuns, Câmara
dos Lordes e Rei. «Estes três poderes deveriam estar em repouso ou inativos; mas como, pelo
movimento necessário das coisas, são obrigados a agir, terão de o fazer concertadamente.»
O Cidadão de Genébra
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se na Sabóia. Em 1741, parte para Paris com quinze luíses na algibeira. É bem recebido nos meios
mundanos, onde se impõe pelos seus conhecimentos musicais. É graças à música que Diderot o
contrata para colaborador da Enciclopédia, apesar de Rousseau, com mais de 35 anos, ainda não
ter escrito nada. O tema do concurso proposto pela Academia de Dijon incita-o a pegar na pena:
«A contribuição do restabelecimento das letras e das artes para melhorar os costumes.» Esta
questão atua no seu espírito como um catalisador que provoca a cristalização dos seus
sentimentos esparsos e dos seus pensamentos incertos. Diderot orgulha-se de lhe ter dado a
ideia. Mas já estava presente na sua vida. Rousseau, a caminho de Vincennes, é possuído por um
deslumbramento. Uma iluminação revela-lhe a própria filosofia da sua existência. Corrompido
pela sociedade, atribui-lhe um papel corruptor. No Discurso sobre as Ciências e as Artes (1750)
denuncia a sua má influência, colocando-se, assim, em oposição às ideias recebidas.
O período das grandes obras: neste momento, com uma lógica que raramente porá nos
seus atos, Rousseau retira-se do mundo. Recusa as honras e proveitos com que poderia ter sido
cumulado. A sua retirada depressa o levará ao Ermitage (1756) e depois a Montmonercy (1758),
onde desenrola a parte mais fecunda, se não a mais feliz, da sua vida. Dois anos antes, Rousseau
tinha publicado o seu primeiro texto político, o artigo “Economia Política” da Enciclopédia. Este
tema traduz o seu interesse pelas questões sociais, e também a competência que devia ser-lhe
reconhecida na matéria. O Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens, tema
igualmente proposto pela Academia de Dijon não trouxe recompensa a Rousseau. Talvez por se
tratar de uma verdadeira declaração de guerra à sociedade existente: «Vê-se o que se deve
pensar da desigualdade que reina entre todos os povos civilizados, uma vez que é
manifestamente contra a lei da natureza… que uma criança mande num velho, um imbecil
conduza um homem sábio e um punhado de gente se encha de coisas supérfluas, enquanto a
multidão carece do necessário.» A condenação é tão violenta que seria caso para perguntar
porque razão o homem não deixa a sociedade para regressar ao estado de natureza, se na última
parte da obra não houvesse já o esboço de uma construção racional ulterior, o Contrato Social,
onde Jean-Jacques anuncia os problemas que irá abordar, assinalando as suas dificuldades e o
seu interesse. Dois pequenos textos de importância secundária mostram a persistência da suas
preocupações políticas e a intenção de em breve esclarecer estas questões: Juízo sobre a
Polissinodia do abade Saint-Pierre e Juizo sobre o projeto de Paz perpétua d abade Saint-Pierre.
Enfim, em 1761, Rousseau acaba e publica o Contrato Social, que apresenta como um simples
fragmento das “Instituições Políticas” que teria desejado escrever. Assegura que não está
plenamente satisfeito. Mais tarde chega a considerar o Contrato como um livro a reescrever,
embora «já não tenha força, nem tempo».
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do estado de natureza em que os homens ainda são mais felizes do que no primeiro. «Embora se
tenham tornado menos resistentes e a compaixão natural já tenha sofrido alguma alteração, este
período de desenvolvimento das faculdades humanas, mantendo um justo equilíbrio entre a
indolência do estado primitivo e a petulante atividade do nosso amor-próprio, deve ser a época
mais feliz e mais duradoura.» A humanidade sai dela por um funesto acaso: a invenção da
metalurgia e da agricultura. Estas duas formas de trabalho vão gerar a propriedade individual do
solo, a desigualdade, a riqueza e a miséria, as rivalidades, as paixões e as mais desordens temíveis.
Os conflitos e as rixas explodem. Vítimas da fatalidade que faz com que um estado anterior,
depois de abandonado, não possa ser reencontrado, devem doravante, para escapar à destruição
material, associar-se em vez de se combaterem. O Discurso sobre a Desigualdade descreve as
três fases de instalação da sociedade civil. A primeira situação de desigualdade foi criada pela
diferença entre ricos e pobres («o primeiro que tendo cercado um terreno, se apressou a dizer:
isto é meu, e encontrou gente bastante simples para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da
sociedade civil»). A segunda situação surge com a distinção entre governantes e governados,
imposta pelos ricos, que querem que as suas propriedades sejam defendidas pelo aparelho
coercivo de um governo. A terceira situação sobrevém quando, em virtude de os governantes se
terem tornado déspotas, se estabelece a distinção entre senhores e escravos. Tudo isto lembra
os temas caros aos estoicos e aos primeiros cristãos; haveria uma falta misteriosa ou pecado
original. Propriedade privada, escravatura e governo são outras tantas punições. A sociedade civil
é furto de uma evolução infeliz. Esta é natural ao homem, mas da mesma maneira que a
decrepitude do idoso e as muletas do doente. Este do mal-o-menos é, inevitável, dada a
irreversibilidade das transformações sociais.
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assegura a liberdade e, pelo contrário, pode até criar um novo absolutismo. Rousseau, pelo
contrário, acha que obedecer a todos não é obedecer a ninguém, quando se é membro do todo.
A solução reside na desnaturação da liberdade e da igualdade naturais. A cláusula fundamental
do contrato social é a de uma sociedade formada com base na «alienação total de cada associado,
com todos os seus direitos, à comunidade». Mas esta alienação não suprime a liberdade e
igualdade: «desnatura-as». Tratando-se da liberdade, cada um compromete-se com todos, mas
não se entrega a ninguém em particular; o indivíduo não fica sujeito a quem quer que seja, e só
obedece a si próprio. Tendo contratado apenas consigo próprio, é tão livre como anteriormente.
No que respeita à igualdade, a alienação é idêntica para cada um, que «adquire sobre cada um
dos outros exatamente o mesmo direito que lhe cede sobre si.» Liberdade e igualdade são assim
mantidas, mas à liberdade natural sucedeu a liberdade civil, a do cidadão, enquanto a igualdade
natural foi substituída pela igualdade civil, muito diferente daquela espécie de anarquismo que
percorria do Discurso sobre a Desigualdade. Rousseau diz: «Cada um de nós põe em comum a
sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral; e recebemos um corpo
cada membro como parte indivisível de todo.» Esta soberania do corpo social é indivisível,
pertence ao todo e não à parte. A vontade é geral ou não é vontade. Pertence ao povo no seu
todo. O pacto, que funda a sociedade no consentimento dos indivíduos e substitui legitimamente
a liberdade natural pela soberania do corpo social, não pode limitar esta. «Para que o pacto social
não seja uma fórmula vã contém tacitamente um compromisso, o único que pode dar força aos
outros: aquele que recusar obedecer à vontade geral será forçado a fazê-lo por todo o corpo
social.»
A vontade geral: esta vontade geral manifesta-se pela voz da maioria. «Nem sempre é
necessário que seja unânime, mas é necessário que todos os votos sejam contados. Toda a
exclusão formal rompe a generalidade.» O soberano que vai determinar a vontade geral é o
conjunto do povo. É formado pelos particulares que o compõem. «Suponhamos que o Estado é
composto por dez mil cidadãos. Cada membro do Estado tem pela sua parte um décimo milésimo
da autoridade suprema.» Devido a esta conceção atomística ou individualista da soberania, «será
necessário adicionar todas as parcelas para a reconstituir por inteiro. Mas ao proceder assim, não
se corre o risco de que haja uma vontade geral da maioria, por um lado, e uma vontade
minoritária, por outro? Seria compreender mal o que é, «a vontade geral». O que a maioria
escolheu é deveras a vontade geral, mas o que a minoria, por sua conta, reteve, é só uma falsa
ideia da vontade geral. Quando a maioria se pronuncia, a minoria deve inclinar-se e aceitar que a
verdade está na vontade expressa pela maioria. A vontade geral não pode ser confundida com a
vontade de todos. Há aqui um ponto em que Rousseau, muitas vezes difícil de compreender, é
frequentemente mal entendido. A vontade geral é, na verdade, aquilo a que os escolásticos
chamavam «o bem comum». A vontade geral é um instituto que Rousseau atribui ao ser moral e
coletivo que é o corpo político e a que se liga à comum conservação e ao bem-estar geral.». Então
«o bem comum mostra-se nitidamente em todo o lado, só pedindo bem senso para ser visto».
Cada um quere-o no que lhe diz respeito, e pode dizer-se que cada vontade é geral pelo seu
objetivo. Por isso, o corpo funciona por si e os comportamentos conformam-se naturalmente ao
bem público. Trata-se, enfim, de uma conceção moralista, mesmo que se considere o Contrato
Social uma obra de direito. Moralmente, o que é melhor para a comunidade é também melhor
para cada um dos seus membros, individualmente considerado. A vontade geral é a faculdade
que permite ao homem social querer o interesse geral contra o seu interesse particular.
A democracia direta: mas para haver manifestação da vontade geral, há uma condição
absoluta: é preciso que seja o corpo político a proceder à sua descoberta. Só diretamente
consultado é que ele pode fazer leis. Aqui se revela a primeira consequência política prática do
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Social, pelo contrário, a escolha do tipo de governo é relativa, Rousseau retoma a classificação
tradicional de Aristóteles dos governos democrático, aristocrático e monárquico.
O governo democrático: até aqui, admite, em relação a este ponto, a influência das
circunstâncias e introduz elementos de relatividade: terreno, população, clima. Aceita que se
façam comparações e que haja discussão. Contrariamente ao que se poderia presumir não é
partidário do governo democrático. Teoricamente, seria o governo ideal «Quem faz a lei sabe
melhor do que ninguém como ela deve ser executada e interpretada. A melhor constituição é
aquela em que o poder executivo está ligado ao legislativo.» «Se houvesse um povo de Deus,
governar-se-ia democraticamente.» Mas dizer que um governo democrático é feito para um povo
de Deus é, ao mesmo tempo, considerar que não é feito para um povo de Deus é, ao mesmo
tempo, considerar que não é feito para os homens, o que leva Rousseau, depois de encarar a
hipótese desse regime, a relega-lo para um Olimpo constitucional. Primeiro, por uma razão
material: não se pode imaginar o povo sempre reunido para tratar exclusivamente dos negócios
públicos. Se o povo tivesse que ser ao mesmo tempo o autor da lei e o agente da sua execução,
deveria reunir permanentemente. Depois, se o conjunto do povo governasse, o poder legislativo
reabsorveria o executivo. Se o soberano, quer dizer o legislador, e o príncipe, quer dizer o
executivo, fossem a mesma pessoa coletiva, o conjunto do povo formaria, por assim dizer, um
governo sem governo. Esta distinção traz vantagens. As duas vantagens Às vezes estão de acordo
e outras vezes opõem-se. Do seu esforço combinado, da sua concordância ou do seu conflito
depende o funcionamento de toda a máquina. Enfim a confusão entre o legislador e o executivo
obrigaria o corpo político a descer ao pormenor. Ora, a ideia está subjacente a qualquer obra, o
perigo está no peculiar. Se o povo fosse executivo e legislativo ao mesmo tempo «desviaria a sua
atenção da perspetiva geral para a dedicar a objetivos particulares», quando a lei deve ser
expressão da vontade geral, não só na origem, mas também no objetivo. «Tomando o termo na
sua aceção rigorosa , nunca existiu verdadeira democracia e jamais virá a existir. E contra a ordem
natural que o grande número governe e o pequeno seja governado.» Pois que semelhante
governo pressuporia «um Estado muito pequeno onde fosse fácil reunir o povo e onde cada
cidadão pudesse facilmente conhecer todos os outros; em segundo lugar serie necessária uma
grande simplicidade de costumes para prevenir a acumulação de problemas e de discussões
espinhosas; depois teria de existir uma igualdade nas categorias e nas fortunas…; enfim pouco ou
nenhum luxo…[que]corrompe ao mesmo tempo o rico e o pobre, a um pela posse e ao outro pela
cobiça… retirando ao Estado todos os seus cidadãos para os sujeitar uns aos outros e todos eles
à opinião». É precisamente por «não haver governo tão sujeito à guerras civis e às agitações
intestinais como o democrático ou o popular, porque não há nenhum outro que tanto e tão
continuadamente tende a mudar de forma, nem que exija mais vigilância e coragem para manter
a que lhe pertence…», que a conclusão se impõe: «um governo tão perfeito não convém a
homens».
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democracia. Quando um príncipe, pessoa física, dispõe do poder executivo, «não pode haver
governo com mais vigor», mas «também não há nenhum em que a vontade particular exerça
mais influência». E eis que desponta em Rousseau uma certa inquietação: o governo tende
sempre a reforçar-se, ao passo que a soberania tende sempre a abrandar. A assembleia destinada
a fazer as leis reunirá de tempos a tempos, mas o executivo terá caráter permanente. Se for muito
concentrado, se estiver nas mãos de um só, arrisca-se progressivamente a invadir o terreno do
soberano e, finalmente, a aniquilar a democracia.
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longa evolução interna e de enfrentar vitoriosamente os assaltos das doutrinas antagónicas, para
se tornar a vulgata ocidental do século XX. Mas, sem esperar glória póstuma será chamado pelo
Imperador, durante os Cem Dias, para redigir o Ato Adicional às Constituições do Império. E
poderá invocar fidelidade às suas ideias: «Defendi durante 40 anos o mesmo princípio: liberdade
em tudo, na religião, na filosofia, na literatura, na indústria e na política. E, por liberdade, entendo
o triunfo da individualidade, tanto sobre a autoridade que quer governar pelo despotismo, como
sobre as massas que reclamam o direito de a maioria subjugar a minoria.»
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