ISSN: 0103-863X
paideia@usp.br
Universidade de São Paulo
Brasil
Neris de Queiroz, Norma Lucia; Albuquerque Maciel, Diva; Uchôa Branco, Angela
Brincadeira e desenvolvimento infantil: um olhar sociocultural construtivista
Paidéia, vol. 16, núm. 34, agosto, 2006, pp. 169-179
Universidade de São Paulo
Ribeirão Preto, Brasil
anças. Assim, a brincadeira é cada vez mais entendi- afirma que ela é desenvolvida pela criança para seu
da como atividade que, além de promover o desen- prazer e recreação, mas também permite a ela interagir
volvimento global das crianças, incentiva a interação com pais, adultos e coetâneos, bem como explorar o
entre os pares, a resolução construtiva de conflitos, a meio ambiente.
formação de um cidadão crítico e reflexivo (Branco, Como a criança é um ser em desenvolvimen-
2005; DeVries, 2003; DeVries & Zan, 1998; Tobin, to, sua brincadeira vai se estruturando com base no
Wu & Davidson, 1989; Vygotsky, 1984, 1987). que é capaz de fazer em cada momento. Isto é, ela
Hoje, pode-se afirmar que já foi superado par- aos seis meses e aos três anos de idade tem possibi-
te do equívoco, de que o conteúdo imaginário do brin- lidades diferentes de expressão, comunicação e rela-
quedo determinava a brincadeira da criança. Segun- cionamento com o ambiente sociocultural no qual se
do Benjamin (1984), encontra inserida. Ao longo do desenvolvimento, por-
“a criança quer puxar alguma coisa, torna-se tanto, as crianças vão construindo novas e diferentes
cavalo, quer brincar com areia e torna-se pa- competências, no contexto das práticas sociais, que
deiro, quer esconder-se, torna-se ladrão ou guar- irão lhes permitir compreender e atuar de forma mais
da e alguns instrumentos do brincar arcaico ampla no mundo.
desprezam toda a máscara imaginária (na épo- A brincadeira das crianças evolui mais nos seis
ca, possivelmente vinculados a rituais): a bola, primeiros anos de vida do que em qualquer outra fase
o arco, a roda de penas e o papagaio, autênti-
do desenvolvimento humano e neste período, se estrutu-
cos brinquedos, tanto mais autênticos quanto
ra de forma bem diferente de como a compreenderam
menos o parecem ao adulto.” (pp. 76-77).
teóricos interessados na temática (Brougère, 1998). A
Para o autor, quando a criança brinca, além de partir da brincadeira, a criança constroi sua experiência
conjugar materiais heterogêneos (pedra, areia, ma- de se relacionar com o mundo de maneira ativa, vivencia
deira e papel), ela faz construções sofisticadas da experiências de tomadas de decisões. Em um jogo qual-
realidade e desenvolve seu potencial criativo, trans- quer, ela pode optar por brincar ou não, o que é caracte-
forma a função dos objetos para atender seus dese- rística importante da brincadeira, pois oportuniza o de-
jos. Assim, um pedaço de madeira pode virar um ca- senvolvimento da autonomia, criatividade e responsabi-
valo; com areia, ela faz bolos, doces para sua festa lidade quanto a suas próprias ações.
de aniversário imaginária; e, ainda, cadeiras se trans- O termo cultura é entendido aqui a partir das
formam em trem, em que ela tem a função de condu- formulações teóricas de Valsiner (2000), para quem a
to, imitando o adulto (Benjamin, 2002). cultura não se refere apenas a um grupo de indivíduos
Neste trabalho, pretende-se olhar a temática que compartilham características semelhantes, mas
da brincadeira enfatizando três aspectos: primeiro deve ser compreendida como mediação semiótica, que
analisar-se-á o conceito da atividade de brincar a partir integra o sistema psicológico individual e o universo
de autores que a vêem como construída social e cul- social das crianças dela participantes. É no contexto
turalmente; segundo, será destacada a importância da cultura que se dá a construção social, de significa-
do faz-de-conta para o desenvolvimento da criança dos, com base nas tradições, idéias e valores do grupo
pequena; e, por fim será vista a brincadeira no con- cultural que cria e recria padrões de participação, dan-
texto pedagógico vivenciado por crianças em institui- do origem ao desenvolvimento de típicas categorias de
ções de educação infantil, com a intenção de orientar pensamento e de recursos de expressão.
a atuação de professores deste nível de ensino.
Fein (Spodek & Saracho, 1998) afirma que é
Conceito da Atividade de Brincar muito “difícil definir a brincadeira, mas, em certo sen-
“A brincadeira é uma atividade que a criança tido, ela se auto-define” (p. 210). A preocupação em
começa desde seu nascimento no âmbito familiar” conceituar o que é a brincadeira não é apenas dos
(Kishimoto, 2002, p. 139) e continua com seus pares. educadores, mas está na pauta de outros profissio-
Inicialmente, ela não tem objetivo educativo ou de nais, dentre eles psicólogos, filósofos, historiadores e
aprendizagem pré-definido. A maioria dos autores antropólogos.
Brincadeira e Desenvolvimento Infantil 171
No ‘Ciclo de Debates sobre o Brincar’1 , Car- duplo referencial semântico, um formado pelos sis-
valho, Salles, Guimarães e Debortoli (2005), obser- temas construídos ao longo da história social e cul-
varam a diversidade de discursos e concepções do tural dos povos, e o outro formado pela experiência
ato de brincar. Examinando essa questão, Spodek e pessoal e social, evocada em cada ação ou verbali-
Saracho (1998) apontam que a dificuldade em se che- zação do sujeito.
gar a uma definição consensual sobre a brincadeira Para Vygotsky (1998), a criança nasce em um
advém da falta de critérios para se classificar uma meio cultural repleto de significações social e histori-
atividade como tal; assim, em alguns contextos ou camente produzidas, definidas e codificadas, que são
momentos uma atividade pode ser considerada brin- constantemente ressignificadas e apropriadas pelos
cadeira, e deixar de sê-lo em outros, o que depende sujeitos em relação, constituindo-se, assim, em moto-
da relação que se estabelece com a situação, do sig- res do desenvolvimento. Neste sentido, o desenvolvi-
nificado que assume para quem brinca. mento humano para ele se distancia da forma como é
Vygotsky (1998), um dos representantes mais entendido por outras teorias psicológicas, por ser vis-
importantes da psicologia histórico-cultural, partiu do to como um processo cultural que ocorre necessaria-
princípio que o sujeito se constitui nas relações com mente mediado por um outro social, no contexto da
os outros, por meio de atividades caracteristicamente própria cultura, forjando-se os processos psicológi-
humanas, que são mediadas por ferramentas técni- cos superiores, sendo a psique humana, nesta pers-
cas e semióticas. Nesta perspectiva, a brincadeira pectiva, essencialmente social.
infantil assume uma posição privilegiada para a aná- Os processos psicológicos superiores para
lise do processo de constituição do sujeito; r Vygotsky (1987) são constituídos
.ompendo com a visão tradicional de que ela é (...) pelos de domínio dos meios externos do
atividade natural de satisfação de instintos infantis, o desenvolvimento cultural e do pensamento: o
autor apresenta o brincar como uma atividade em que, idioma, a escrita, o cálculo, o desenho, bem
tanto os significados social e historicamente produzi- como pelas funções psíquicas superiores espe-
dos são construídos, quanto novos podem ali emergir. ciais, aquelas não limitadas nem determina-
A brincadeira e o jogo de faz-de-conta seriam consi- das de nenhuma forma precisa e que têm sido
derados como espaços de construção de conhecimen- denominadas pela psicologia tradicional com
tos pelas crianças, na medida em que os significados os nomes de atenção voluntária, memória ló-
que ali transitam são apropriados por elas de forma gica e formação de conceitos (p. 32).
específica. O autor afirma, ainda, que o desenvolvimento
Vygotsky (1998), quando discute em sua teo- humano é um processo dialético, marcado por etapas
ria a gênese e o desenvolvimento do psiquismo hu- qualitativamente diferentes e determinadas pelas ati-
mano, destaca que o processo de significação é ela- vidades mediadas. O homem, enquanto sujeito é ca-
borado por meio da atividade em contextos sociais paz de transformar sua própria história e a da huma-
específicos; o que é interiorizado não é a ‘realidade nidade, uma vez que por seu intermédio muda o con-
em si mesma’ (conceito já ultrapassado na perspecti- texto social em que se insere, ao mesmo tempo em
va socio-construcionista), mas o que esta significa que é modificado.
tanto para os sujeitos em relação, quanto para cada Assim, o que caracteriza a atividade humana é
um em particular. Este movimento de interiorização o emprego de instrumentos, signos ou ferramentas,
transformadora das significações não se dá de ma- que lhe dão um caráter mediado. Entretanto, instru-
neira passiva nem direta, pois o sujeito reelabora, im- mentos e signos são coisas diferentes; os primeiros
primindo sentidos privados ao significado comparti- influenciam a ação humana sobre a atividade e são
lhado na cultura. Nesse processo ele se apropria do externamente orientados. Já os segundos não modifi-
signo em sua função de significação, observando seu cam em nada o objeto da atividade, mas se constitu-
1
Universidade Federal de Minas Gerais,em 2003 e 2004,publicado
em em ferramenta interna dirigida ao controle do in-
no livro Brincares, em 2005, divíduo, sendo orientados internamente.
172 Norma Lucia Neris de Queiroz
Desta maneira, os objetos com os quais a cri- no jogo de faz-de-conta, que assume um papel cen-
ança se relaciona são significados em sua cultura e a tral no desenvolvimento da aquisição da linguagem e
relação estabelecida com eles se modifica à medida das habilidades de solução de problemas por elas
em que a ela se desenvolve. Em um primeiro mo- (Meira, 2003).
mento esta relação é marcada pela predominância Vygotsky (1998) definiu a zona de desenvolvi-
de sentidos convencionais, característicos da cultura mento proximal (ZPD) como:
em que está inserida; o objeto, de certa forma, diz
(...) a distância entre o nível de desenvolvi-
para a criança como deve agir. Com o passar do
mento real, que se costuma determinar através
tempo, de modo gradativo, a relação entre objeto sig- da solução independente de problemas, e o
nificado e ação se altera, tendo a brincadeira um lu- nível de desenvolvimento potencial, determi-
gar de destaque nessa mudança. nado através da solução de problemas sob a
A importância do brincar para o desenvolvi- orientação de um adulto ou em colaboração
mento infantil reside no fato de esta atividade contri- com os companheiros mais capazes (p. 97).
buir para a mudança na relação da criança com os
A brincadeira é, assim, a realização das ten-
objetos, pois estes perdem sua força determinadora
dências que não podem ser imediatamente satisfei-
na brincadeira. “A criança vê um objeto, mas age de
tas. Esses elementos da situação imaginária consti-
maneira diferente em relação ao que vê. Assim, é
tuirão parte da atmosfera emocional do próprio brin-
alcançada uma condição que começa a agir indepen-
quedo. Nesse sentido, a brincadeira representa o fun-
dentemente daquilo que vê.” (Vygotsky, 1998, p. 127).
cionamento da criança na zona proximal e portanto,
Na brincadeira, a criança pode dar outros sen- promove o desenvolvimento infantil (Vygotsky, 1998).
tidos aos objetos e jogos, seja a partir de sua própria Entretanto, Vygotsky chama a atenção quando afir-
ação ou imaginação, seja na trama de relações que ma que definir “o brinquedo como uma atividade que
estabelece com os amigos com os quais produz no- dá prazer à criança, é incorreto” (p. 105), porque para
vos sentidos e os compartilha (Cerisara, 2002).
ele, muitas atividades dão à criança prazeres mais
A brincadeira é de fundamental importância intensos que a brincadeira: por exemplo, uma chupe-
para o desenvolvimento infantil na medida em que a ta para um bebê mesmo que isso não leve à saciação
criança pode transformar e produzir novos significa- da fome. Ele destaca, ainda, que há brincadeiras em
dos. Em situações dela bem pequena, bastante esti- que a própria atividade não é tão agradável, como as
mulada, é possível observar que rompe com a rela- que só agradam às crianças (entre cinco e seis anos
ção de subordinação ao objeto, atribuindo-lhe um novo de idade) se elas considerarem o resultado interes-
significado, o que expressa seu caráter ativo, no cur- sante. Os jogos esportivos podem ser outro exemplo
so de seu próprio desenvolvimento. (não apenas os esportes atléticos, mas os que têm
Para Vygotsky (1998), a criação de situações como regra, ganhadores e perdedores). Estes são
imaginárias na brincadeira surge da tensão entre o freqüentemente acompanhados de desprazer para a
indivíduo e a sociedade e a brincadeira libera a crian- criança que não alcança o resultado favorável, isto é,
ça das amarras da realidade imediata, dando-lhe opor- aquela que perde a partida.
tunidade para controlar uma situação existente Assim, o prazer não pode ser visto como uma
(Cerisara, 2002). As crianças usam objetos para re- característica definidora da brincadeira (Cerisara,
presentar coisas diferentes do que realmente são: 2002). Entretanto, não se deve ignorá-lo, pois ela pre-
pedrinhas de vários tamanhos podem ser alimentos enche necessidades da criança e cria incentivos para
diversos na brincadeira de casinha, pedaços de ma- colocá-la em ação, que é de fundamental importân-
deira de tamanhos variados podem representar dife- cia, uma vez que contribui para mudanças nos níveis
rentes veículos na estrada. Na brincadeira, os signifi- do desenvolvimento humano. Para Cerisara (2002),
cados e as ações relacionadas aos objetos convenci- todo avanço nestes está relacionado a alterações acen-
onalmente podem ser libertados. As crianças utilizam tuadas nas motivações, tendências e incentivos. Tor-
processos de pensamento de ordem superior como na-se, então, necessário lembrar que os interesses
Brincadeira e Desenvolvimento Infantil 173
mudam em função do desenvolvimento e da maturi- faz de conta que está andando de velocípede para
dade do sujeito, pois, o que atrai um bebê não o faz a satisfazer seu desejo, pois não tem consciência das
uma criança um pouco mais velha. Portanto, a matu- motivações e emoções que dão origem à brincadeira.
ridade das necessidades é um tópico importante na Nessa perspectiva, Vygotsky (1998) diz que o brin-
teoria da Psicologia histórico-cultural. quedo difere muito do trabalho e de outras formas de
Vygotsky (1998) afirma que não é possível ig- atividade, uma vez que nele a criança cria uma situa-
norar que a criança satisfaz algumas necessidades ção imaginária, algo reconhecido pelos estudiosos, e
por meio da atividade do brincar. As pequenas ten- que portanto não é novo. Ele afirma que a imaginação
dem a satisfazer seus desejos imediatamente, e o in- é característica definidora da brincadeira e não um atri-
tervalo entre desejar e realizar, de fato, é bem curto. buto de subcategorias específicas do brinquedo.
Já as crianças entre dois e seis anos de idade são Cerisara (2002) coloca que toda situação ima-
capazes de inúmeros desejos, e muitos não podem ginária que envolve o brinquedo já pressupõe regras,
ser realizados naquele momento, mas posteriormente ocultas ou não e que o contrário é verdadeiro, ou seja,
por meio de brincadeiras. Vygotsky (1998) diz que, todo jogo tem, explicitamente ou não, uma situação
(...) se as necessidades não realizáveis imedia- imaginária envolvida. Nesse sentido, o faz-de-conta
tamente, não se desenvolvessem durante os é em especial significativo para o desenvolvimento
anos escolares, não existiriam os brinquedos, infantil, por estar relacionado à imaginação.
uma vez que eles parecem ser inventados justa- Em um esforço para compreender a importân-
mente quando as crianças começam experimen- cia da atividade do brincar para o desenvolvimento
tar tendências irreali-záveis (p. 106). infantil, numa perspectiva co-construtivista, pode-se
Com isto, no espaço da sala de aula, a criança considerar que a criança, desde seu nascimento, se
procura satisfazer seus desejos não realizáveis ime- integra em um mundo de significados construídos his-
diatamente envolvendo-se em um mundo imaginário, toricamente. É por meio da interação com seus pares
onde os não realizáveis podem ser concretizados; a que ela se envolve em processos de negociação, den-
este mundo é que se chama da brincadeira. O autor tre os quais, os de significação e re-significação de si
concebe a imaginação como: mesma, dos objetos, dos eventos e de situações, cons-
truindo e reconstruindo ativamente novos significa-
(...) um processo psicológico novo para a cri- dos.
ança em desenvolvimento; representa uma for-
ma especificamente humana de atividade cons- Valsiner (1988) acrescenta que para analisar o
ciente, não está presente na consciência de desenvolvimento infantil deve-se considerar os ambi-
crianças muito pequenas e está totalmente au- entes em que ocorre a atividade da brincadeira, que
sente em animais. Como todas as funções da são fisicamente estruturados, segundo os significa-
consciência, ela surge originariamente da dos culturais das pessoas responsáveis pela criança.
ação e na interação com o outro (p. 106). Valsiner (2000) aponta, ainda, que ela ocupa um pa-
pel ativo na organização de suas atividades, constru-
Há, portanto, uma crença de senso comum que
indo uma versão pessoal dos eventos sociais que lhe
o brincar da criança é imaginação em ação. Vygotsky
(1998) considera que isto deveria ser invertido, uma são transmitidos pelos membros de sua cultura. Esta
vez que a imaginação, nas crianças em idade da edu- construção é elaborada pelos processos de interação
cação infantil e nos adolescentes, é o brinquedo sem social, canalização e trocas, fazendo uso de recursos
ação. Desta forma, fica claro que o prazer que estas e instrumentos semióticos co-construídos, cujos sig-
vivenciam é controlado por motivações diferentes das nificados estão presentes na “cultura coletiva”. Por
experimentadas por um bebê ao chupar sua chupeta. último, o autor afirma que é preciso considerar que a
Para o autor, nem todos os desejos não satis- criança expressa a compreensão do mundo por meio
feitos dão origem à brincadeira; quando uma criança da ação, e que cada classe social tem um sistema de
quer andar de velocípede e isto não pode ser imedia- significação cultural próprio, relacionado às práticas
tamente concretizado, ela não vai para seu quarto e típicas de seu grupo.
174 Norma Lucia Neris de Queiroz
Pedrosa (1996), em consonância com Valsiner, aceitar ou recusar sugestões, muitos (bola, bonecas,
afirma que a criança desde o seu nascimento interage carrinhos) são, de certa forma, impostos como obje-
com um mundo de significados construídos historica- tos de valor, e daí, graças à força de sua imaginação,
mente; na relação com seus parceiros sociais se en- são transformados em brinquedos admirados e ma-
volve em processos de significação de si, dos outros ravilhosos (Benjamin, 2002).
e dos acontecimentos de seu contexto cultural, cons- As crenças dos adultos sobre a brincadeira in-
truindo e reconstruindo ativamente significados. fantil são geradas em seus sistemas de significado
Nessa perspectiva, destaca-se a importância cultural. Neste sentido, Valsiner (1988) destaca que
de interpretar a brincadeira levando em considera- a criança, como ser ativo, no processo ‘viver a brin-
ção os contextos sociais específicos em que ela ocorre, cadeira’, vai além da cultura de seus pais e professo-
não sendo possível separá-la artificialmente deles; e, res, uma vez que reconstrói as experiências adquiri-
para compreendê-la, deve-se relacionar o valor e o das nos espaços familiares, escolares e comunitári-
lugar que lhe são determinados pela cultura específi- os. Ela, assim, cria, para suas brincadeiras, funções
ca, porque só levando esta em consideração é que e cenários novos para as sugestões sociais, ofereci-
será possível derivar o significado do brincar infantil das por seu grupo; assim, ela externaliza sua subjeti-
em cada uma. vidade sobre os eventos sociais e, ao mesmo tempo,
Assim, a percepção infantil sobre a atividade reconstrói o significado social da brincadeira.
de brincar é marcada pela influência cultural, que se A subjetividade da criança vai se formando nas
torna o elemento de mediação que integra o sistema interações que estabelece com seus parceiros nos
de funções psicológicas desenvolvidas pelo indivíduo contextos cotidianos. Valsiner (1989) acrescenta que
na organização histórica de seu grupo social, por meio o mundo adulto, dependendo de seus valores cultu-
dos processos de interação, canalização e trocas, uti- rais, oferece à criança uma variedade de sugestões e
lizando recursos e instrumentos semióticos co- modos de interação semioticamente marcados pelos
construídos de uma geração mais velha, com os quais modelos sexuais, muitas vezes estereotipados como
a criança entra em contato. masculino, feminino ou indiferenciado. Esta é uma
A cultura, na concepção de Valsiner (2000), das sugestões sociais que levam a criança a brinca-
refere-se à organização estrutural de normas sociais, deiras marcadas pelo gênero, de acordo com a cultu-
valores, regras de conduta e sistemas de significados ra coletiva, o que frequentemente ocorre naqueles
compartilhados pelas pessoas que pertencem a certo em que o menino só pode brincar de carrinho, e me-
grupo com uma história de convivência e relações de nina, de casinha de boneca. As famílias canalizam as
pertencimento. Para ele, a cultura tem duas faces: a) ações, as percepções e representações da criança
como entidade coletiva (significados compartilhados); na direção de assumir um papel social aprovado de
b) como entidade pessoal (significados pessoais). A acordo com suas crenças e valores.
primeira é aprendida pela criança no contexto de suas Para Packer (1994) brincar é uma atividade
experiências em diferentes tipos de ambientes. Es- prática, “na qual a criança constrói e transforma seu
pecialmente os pais e profissionais responsáveis pe- mundo, conjuntamente, renegociando e redefinindo a
los cuidados e educação (escola, creches), devem realidade” (p. 273); “uma construção da realidade, a
procurar organizar o ambiente de forma que este seja produção de um mundo e a transformação do tempo
brincável, isto é, explorável (Dantas, 2002), e que e do lugar em que ele pode acontecer” (p. 271). A
incentive o brincar. participação da criança nesta atividade “requer um
É impossível, porém, a criança fazer a brinca- senso de realidade compartilhado do que é verdadei-
deira em um âmbito apenas relacionado à livre fanta- ro ou falso, certo ou errado” (p.271).
sia; mesmo quando não imita os instrumentos dos Nas afirmações de Valsiner (1998, 2000) e de
adultos, sempre parte de significados culturalmente Pedrosa (1996), a criança é um sujeito ativo da co-
construídos, pois é deles que ela recebe seus primei- construção cultural, o que garante que a cultura de
ros brinquedos, embora tenha certa liberdade para sua geração ultrapasse a dos adultos por ela respon-
Brincadeira e Desenvolvimento Infantil 175
sáveis. Nesta perspectiva, torna-se necessário olhar concretas com objetos para ações com outros signifi-
a brincadeira para além do conceito da atividade de cados, possibilitando avançar em direção ao pensa-
brincar, e examinar o faz-de-conta, que tem desper- mento abstrato. Tanto Piaget quanto Vygotsky con-
tado especial interesse de teóricos, pesquisadores e cebem o faz-de-conta como atividade muito impor-
profissionais que atuam com a educação infantil, lem- tante para o desenvolvimento.
brando a importância dada por Bateson (1972) quan- Recentemente, estudiosos têm argumentado
do se refere aos processos de metacomu-nicação, que o faz-de-conta não é apenas atividade represen-
por meio dos quais as crianças se comunicam entre tativa, mas metarepresentativa. A teoria da mente se
si, indicando se uma interação deve ser interpretada preocupa em investigar “as habilidades das crianças
como “luta” - fisionomia séria, sem sorriso, ou “brin- pré-escolares de compreenderem seus próprios es-
cadeira”- sorriso, gargalhadas, gritinhos de alegria. tados mentais e os dos outros e dessa maneira, predi-
Olhando a Brincadeira de Faz-de-Conta zerem suas ações ou comportamentos” (Jou & Sperb,
Dentre as brincadeiras realizadas pelas crian- 1999, p. 292). Este interesse levou Sperb e Conti
ças, na faixa etária dos três aos sete anos, o faz-de- (1998), a realizarem um estudo com 14 tríades de
conta é a que mais desperta o interesse e tem sido crianças integradas à pré-escola, com idade média
estudada em detalhes. Alguns pesquisadores que tra- de 5 anos e 2 meses, para verificar se este grupo
balham com as teorias do desenvolvimento cognitivo apresentaria habilidades metarepresentativas na brin-
destacam a sua importância como comunicação in- cadeira de faz-de-conta, aqui entendida não “mais
tegrada, ou seja, o faz-de-conta é uma atividade com- como uma representação do mundo de uma forma
plexa e constituinte do sujeito, diferente das que ca- direta, mas sim, representações de representações”
racterizam o cotidiano da vida real, que já aparece (Jou & Sperb, 1999, p.294), tomando como referên-
nos jogos de esconde-esconde que ela tem com os cia para análise as atividades do início da brincadeira
adultos, quando aprende que desaparecer, no jogo, e o relacionamento com os termos mentais a partir
não é algo real, mas inventado para poder brincar das categorias:a) as formas “planejadas”; b) o “en-
(Oliveira, 1996). Piaget (1978), face ao desenvolvi- tender o faz-de-conta no outro”, c) as conceituadas
mento do pensamento infantil, afirma que a brinca- como de termos mentais, ou seja, “expressão do de-
deira de faz-de-conta: sejo”, “direção da interação”, “modulação da
asserção” e “expressão do estado mental”.
“está intimamente ligada ao símbolo, uma vez
que por meio dele, a criança representa ações, Os resultados desse estudo evidenciaram que
pessoas ou objetos, pois estes trazem como as crianças utilizaram mais as atividades de metare-
temática para essa brincadeira o seu cotidia- presentação em relação às categorias “formas pla-
no (contexto familiar e escolar) de uma forma nejadas” e o “entender o faz-de-conta no outro” que
diferente de brincar com assuntos as de termos mentais: “expressão do desejo”, “dire-
fictícios,contos de fadas ou personagens de ção da interação”, “modulação da asserção” e “ex-
televisão (p.76).
pressão do estado mental”;e mais a categoria de “ex-
Neste sentido, ele diz que o pensamento da pressão do desejo” que a “direção de interação”.
criança pequena não é suficientemente preciso e Concluiu-se que a atividade metarepresentativa apre-
maleável para comunicar um conjunto de idéias, en- sentou-se tanto na brincadeira faz-de-conta quanto
tão, o símbolo assume a função de mediador, dando no uso de termos mentais das pré-escolares inves-
oportunidade à criança de expressar seu pensamento. tigadas. Portanto, nessa faixa etária, ela pode possuir
Para Vygotsky (1998), a brincadeira de faz- uma teoria da mente, à medida que evidencia a habi-
de-conta cria uma zona de desenvolvimento proximal, lidade em entender a sua e a dos outros.
pois no momento que a criança representa um objeto Com relação ao faz-de-conta, Sperb e Conti
por outro, ela passa a se relacionar com o significado (1998) discutem a categorização, que coloca três como
a ele atribuído, e não mais com ele em si. Assim, a essenciais: A primeira quando a criança utiliza repre-
atividade de brincar pode ajudar a passar de ações sentações primárias, isto é, vê o mundo de forma di-
176 Norma Lucia Neris de Queiroz
reta e imediata, substituindo o objeto, por exemplo a cação Infantil (MEC, 1998) estabeleceu a brincadei-
mãe, pelo pai. Já a segunda, mais complexa, emerge ra como um de seus princípios norteadores, que a
quando ela usa representações secundárias, entendi- define como um direito da criança para desenvolver
das como representações de representações ou seu pensamento e capacidade de expressão, além de
metarepresentações, atribuindo propriedades imagi- situá-la em sua cultura. Atividades de brincadeira na
nárias aos objetos ou eventos, o que ocorre quando educação infantil são praticadas há muitos anos, en-
ela em interação com um parceiro lhe propõe que tretanto, torna-se imprescindível que o professor dis-
faça de conta que o tempo hoje está ótimo (quando tinga o que é brincadeira livre e o que é atividade
está chovendo) ou que limpe o rosto da boneca que pedagógica que envolve brincadeira. Se quiser fazer
está sujo (sem estar). Neste momento, ela vai além brincadeiras com a turma, deve considerar que o mais
do significado comum dos objetos ou dos eventos importante é o interesse da criança por ela; se seu
sem, entretanto, confundir realidade/não-realidade. objetivo for a aprendizagem de conceitos, habilidades
Por último, em uma das formas mais avançadas do motoras, pode trabalhar com atividades lúdicas, só
faz-de-conta, o objeto é imaginário, por exemplo que aí não está promovendo a brincadeira, mas ativi-
“Faz-de-conta que neste prato tem bolo, neste copo, dades pedagógicas de natureza lúdica.
refrigerante”. Quando é mantida a especificidade da brinca-
Observa-se na categorização de Sperb e Conti deira livre, têm-se elementos fundamentais que de-
(1998) que o faz-de-conta é uma brincadeira que além vem ser considerados: a incerteza, a ausência de con-
de envolver a operação de processos mentais, requer seqüência necessária e a tomada de decisão pela cri-
também a metarepresentação, pois a propriedade de ança; ela emerge como possibilidade de experimen-
opacidade suspende o compromisso com referência tação, na qual o adulto propõe, mas não impõe, convi-
à “verdade”. Assim, ele oferece as primeiras pistas da, mas não obriga, e mantém a liberdade dando al-
de que a criança possui a habilidade de entender sua ternativas (Dantas, 2002). Caso contrário arrisca-se
própria mente e a dos outros, como mostram os re- destruir o interesse da criança, tendo em vista que
sultados do estudo citado. neste momento ela domina o espaço de experiência,
A criança é capaz de entender o faz-de-conta mas o professor pode até interferir na brincadeira li-
e usar processos mentais de forma representacional vre, desde que não utilize estratégia destrutiva do in-
a partir dos três anos de idade (Andrensen, 2005; teresse dela.
Branco, 2005). E é nessa faixa etária que ela passa a Essa intervenção dá-se em dois níveis: De um
dar maior importância ao grupo de pares (Eckerman lado, a não destrutiva do interesse pelo brinquedo;
& Peterman, 2001). O faz-de-conta social implica em Do outro, a proposição, no momento propício e em
negociação; para brincar com outra sobre um mes- associação com a brincadeira, de atividades dirigidas
mo tema, a criança precisa de um acordo quanto aos que tenham uma lógica, elaborada em função de ob-
significados implícitos nos papéis e ações, caso con- jetivos pedagógicos, intencionalmente promovidos
trário, a brincadeira não ocorrerá em grupo. Sendo pelos educadores, tornando-se cada vez mais impor-
assim, as transformações realizadas sobre os objetos tantes à medida que a criança cresce. Intervir na brin-
precisam ser acompanhadas pelos parceiros e, para cadeira nunca dá certeza do que vai acontecer, mas
fazer parte da brincadeira, deve haver a aceitação deve ser assegurada a intenção de a atividade conti-
dos papéis e/ou formas de negociação. nuar a beneficiar o grupo.
Sendo a brincadeira atividade estruturadora e Cabe ao professor, como adulto mais experi-
impulsionadora do desenvolvimento infantil, as pro- ente, estimular brincadeiras, ordenar o espaço inter-
postas educacionais que vêm sendo feitas para a edu- no e externo da escola, facilitar a disposição dos brin-
cação desta faixa etária têm reconhecido a sua im- quedos, mobiliário, e os demais elementos da sala de
portância no contexto da sala de aula (Leme, 2005). aula. Outras formas de intervenção podem ser pro-
O Referencial Curricular Nacional para a Edu- postas visando incitar as crianças a desenvolverem
brincadeira nesta ou naquela direção, mas só como
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