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Estudar antes de falar

Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 13 de agosto de 2013

O caminho mais curto para a destruição da democracia é fomentar o banditismo por


meio da cultura e tentar controlá-lo, em seguida, pelo desarmamento civil. A esquerda
nacional tem trilhado coerentemente essa dupla via há pelo menos cinco décadas, e
sempre soube perfeitamente qual seria o resultado: o caos social, seguido de
endurecimento do regime se ela estiver no poder, de agitação insurrecional se estiver
fora dele.
Essa estratégia é antiga, clássica, imutável, mas os pretextos com que se legitima
conforme as conveniências do momento têm sido variados o bastante para desnortear
a plateia, que se entrega a animadas e às vezes ferozes discussões sobre os pretextos
mesmos e nunca atina com a unidade do projeto por trás deles. Às vezes, como
acontece no Brasil, nem chega a perceber que entre as duas vias simultâneas existe
alguma relação.
Pessoas mentalmente covardes vendem a mãe para não correr o risco de ser rotuladas
de “teóricas da conspiração”. Rebaixam-se ao ponto de defender de unhas e dentes a
“teoria das puras coincidências”, segundo a qual as ações acontecem sem autores.
Imaginem então o medo que essa gente tem de reconhecer algo que no resto do
mundo já é obviedade patente: que o comunismo não morreu em 1990, que está hoje
mais forte que nunca, sobretudo na América Latina. Treze anos atrás, quando Jean-
François Revel publicou seu último livro, La Grande Parade, ninguém na Europa ou
Estados Unidos o contestou quanto a esse ponto, que no Brasil ainda é um segredo
esotérico.
Há até quem negue que Dilma ou Lula sejam comunistas, mas faz isso porque não
sabe exatamente o que é um comunista e, como em geral os liberais, imagina que é
questão de ideais e ideologias. Na verdade, um sujeito é comunista não porque creia
em tais ou quais coisas, mas porque ocupa um lugar numa organização que age como
parte ou herdeira da tradição revolucionária comunista, com toda a pletora de
variedades e contradições ideológicas aí contida.
A unidade do movimento comunista, sobretudo desde Antonio Gramsci, da New Leftf
americana e do remanejamento dos partidos comunistas após a dissolução da URSS,
é mais de tipo estratégico do que ideológico.
Na verdade, esse movimento, cuja extinção a queda da União Soviética parecia
anunciar como iminente e inevitável, conseguiu prosperar e crescer formidavelmente
desde o começo dos anos 90 só porque abdicou de toda autodefinição doutrinal
homogênea e aprimorou a técnica de articular numa unidade de ação estratégica as
mais variadas correntes e dissidências cuja convivência era impossível até então.
Convicções, portanto, sinceras ou fingidas, não têm aí a mais mínima importância.
Para um sujeito falar com alguma propriedade sobre o movimento comunista, deve
antes ter estudado as seguintes coisas:
(1) Os clássicos do marxismo: Marx, Engels, Lênin, Stálin, Mao Dzedong.
(2) Os filósofos marxistas mais importantes: Lukács, Korsch, Gramsci, Adorno,
Horkheimer, Marcuse, Lefebvre, Althusser.
(3) Main Currents of Marxism, de Leszek Kolakowski.
(4) Alguns bons livros de história e sociologia do movimento revolucionário em geral,
como Fire in the Minds of Men, de James H. Billington, The Pursuit of the Millenium, de
Norman Cohn, The New Science of Politics, de Eric Voegelin.
(5) Bons livros sobre a história dos regimes comunistas, escritos desde um ponto de
vista não-apologético.
(6) Livros dos críticos mais célebres do marxismo, como Eugen von Böhm-Bawerk,
Ludwig von Mises, Raymond Aron, Roger Scruton, Nicolai Berdiaev e tantos outros.
(7) Livros sobre estratégia e tática da tomada do poder pelos comunistas, sobre a
atividade subterrânea do movimento comunista no Ocidente e principalmente sobre as
“medidas ativas” (desinformação, agentes de influência), como os de Anatolyi Golitsyn,
Christopher Andrew, John Earl Haynes, Ladislaw Bittman, Diana West.
(8) Depoimentos, no maior número possível, de ex-agentes ou militantes comunistas
que contam a sua experiência a serviço do movimento ou de governos comunistas,
como Arthur Koestler, Ian Valtin, Ion Mihai Pacepa, Whittaker Chambers, David
Horowitz.
(9) Depoimentos de alto valor sobre a condição humana nas sociedades socialistas,
como os de Guillermo Cabrera Infante, Vladimir Bukovski, Nadiejda Mandelstam,
Alexander Soljenítsin, Richard Wurmbrand.
É um programa de leitura que pode ser cumprido em quatro ou cinco anos por um bom
estudante. Não conheço, na direita ou na esquerda brasileiras, ninguém,
absolutamente ninguém que o tenha cumprido.
Há tanta gente neste país querendo dar palpite no assunto, quase sempre com ares de
sapiência, e ninguém, ou praticamente ninguém, disposto a fazer o esforço necessário
para dar alguma substância às suas palavras.
Nenhum esquerdista honesto o fará sem abjurar da sua crença para sempre. Nenhum
direitista, sem reconhecer que era um presunçoso, um bocó e, em muitos casos, um
idiota útil – às vezes ainda mais útil e mais idiota do que a massa de manobra
esquerdista.
A esquerda prospera na exploração da ignorância, própria e alheia. Onde quer que ela
exerça a hegemonia, impera o mandamento de jamais ler as obras de adversários e
críticos, mas espalhar versões deformadas e caricaturais das suas ideias e biografias,
para que a juventude militante possa odiá-los na ilusão de conhecê-los. Universidades
que professam dar cursos de marxismo capricham nesse ponto até o limite do controle
mental puro e simples.
A direita, bem, a direita cultiva suas formas próprias de auto-ilusão, das quais já falei
bastante neste mesmo jornal. Talvez volte ao assunto em outro artigo.

Morte aos reacionários


Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 10 de dezembro de 1998


Durante algum tempo, acreditei que chamar os outros de “reacionários” era
manifestação de um impulso catalogante primitivo, forma incipiente do pensamento
categorial observada nas camadas inferiores da evolução biológica. A divisão do
mundo em reacionários e progressistas assinalava, segundo essa hipótese, o dualismo
invencível da percepção do mundo nos animais dotados de apenas dois neurônios, um
contra e um a favor, notando-se às vezes a presença de um terceiro incumbido de
paralisar, em caso de dúvida, toda atividade cerebral.
Hoje devo refutar minha própria teoria. Por elementar e grossa que seja, a ação
catalogante já manifesta a capacidade de referência a um objeto externo. Ora, esta
capacidade não pode estar presente em criaturas que ainda não transcenderam o
narcisismo primevo das amebas e protozoários, cuja cosmovisão hermeticamente
umbigocêntrica nada tem a manifestar senão expressões de seu próprio estado interno,
resumindo-se portanto o seu repertório cognitivo em dois juízos, dos quais o primeiro
afirma “que delícia!” e o segundo declara: “Ai, me dói!”
Na célebre classificação das três funções da linguagem por Karl Bühler, o mencionado
ato de rotulação nada tem portanto a ver com a função denominativa – que descreve e
cataloga objetos e estados do mundo –, mas apenas com a função expressiva, que
manifesta o estado do sujeito falante e nada diz exceto sobre ele mesmo.
Força é convir, no entanto, que a terceira função enumerada por Bühler, a função
apelativa, em que o emissor se utiliza da linguagem para agir sobre seus semelhantes,
intimidando-os ou estimulando-os, não está de todo ausente no mencionado
procedimento, e talvez até exerça, nele, o papel preponderante. Prova disto é que,
quando um desses animais chama alguém de reacionário, o efeito que exerce sobre os
ouvintes é infalível e automático, independentemente de o mencionado epíteto ser
inadequado, quer ao seu objeto, quer à correta expressão do sentimento do emissor.
Proferido por um membro da espécie “progressista” (nome científico: Homo adorabilis,
normalmente traduzido por “pessoa maravilhosa”), o epíteto de reacionário às vezes
nada diz sobre o objeto ou o sujeito, mas indica a alta probabilidade de que, no instante
seguinte, a horda estimulada por semelhante apelo se precipitará sobre o objeto para
fazê-lo em pedaços. A mensagem enfim convoca a tribo para uma operação de
linchamento, e raramente o faz sem resposta. Ao longo das décadas, o grito de
“Reacionário!”, proferido ante platéias sensíveis, tem exercido sobre elas um efeito
magnetizante instantâneo, disparando a imediata ação corretiva que extirpará do reino
dos vivos a criatura a quem ocorra a má sorte de ser assim designada.
Mas a ampla comprovação do poder mortífero desse expediente lingüístico, constituída
de cem milhões de reacionários assassinados neste século, longe de sugerir aos
usuários da expressão a conveniência de empregá-la com extrema moderação, ou
mesmo de suprimi-la por completo do arsenal polêmico decente, só fez despertar o
desejo de usá-la com mais freqüência ainda, e mesmo de estender o seu emprego,
originariamente político, a todos os campos da atividade humana, acusando a presença
de reacionários sob toda sorte de moitas artísticas, religiosas, científicas e filosóficas.
Na atual campanha pelo policiamento do vocabulário, que professa suprimir as
palavras sujeitas a despertar ódio coletivo, a seleção dos termos proibidos deveria
banir em primeiro lugar os de eficácia homicida mais comprovada, e, destes, nenhum
supera a palavra “reacionário”: o total de vítimas nos grupos perseguidos por todos os
outros motivos somados (raça, religião, sexo, etc.) não perfaz mais de um quinto do
total de pessoas assassinadas sob a acusação de reacionarismo. No entanto, a própria
campanha pela exclusão das palavras odientas se apresenta, orgulhosamente, como
uma caça mundial aos reacionários. Mais uma vez, na gloriosa história da
modernidade, o assassino veste a toga de juiz e aponta contra suas vítimas o dedo
acusador.

Tudo sob controle


Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 12 de novembro de 1998


O ringue político brasileiro está dividido entre duas e não mais de duas forças:
comunistas e social-democratas. Esquerda e esquerda.
A margem de existência de qualquer política francamente anticomunista é cada vez
mais restrita. Direita e conservadorismo foram criminalizados, e as palavras mesmas
que os designam adquiriram nova significação: consagraram-se como sinônimos de
neonazismo e neofascismo. Usadas mil vezes nesse sentido, adquirem poder letal
quando ocasionalmente referidas a algum liberal incômodo.
Conservadores simplesmente já não existem, e liberais mal são tolerados: os poucos
que restam se atacam uns aos outros como cachorros loucos, cada qual procurando
caprichar mais na demonstração de ferocidade para agradar à platéia esquerdista,
ansiando pela chance de mostrar lealdade a alguma “união nacional” improvisada para
fazer a caveira de algum desastrado remanescente direitista.
Tal como acontece invariavelmente nas situações em que a esquerda domina
hegemonicamente, sua ala mais moderada é incumbida de posar no papel de “direita”,
ocupando o espaço de modo que conservadores e liberais não possam entrar e,
desaparecidos do horizonte, acabem por desaparecer do mundo.
Dentre os social-democratas incumbidos de posar de direita ad hoc , o principal é,
evidentemente, o presidente Fernando Henrique Cardoso.
Nada mais elucidativo, para ilustrar a dubiedade desse misterioso governante, do que
comparar a orientação de sua política econômica com a de sua política educacional.
Um governo que faz todo o possível para ser tomado como representante fiel do
capitalismo globalista ao mesmo tempo que promove a doutrinação em massa de
nossas crianças dentro do mais puro cânone da luta de classes é, afinal, direitista ou
esquerdista?
FHC é um tucano, dirão, aninhado, como é costume das aves da sua espécie, em cima
do muro. Mas há muros e muros: há o muro retórico que separa as facções ideológicas
e há o muro dos tempos que separa o hoje e amanhã, o espetáculo midiático
superficial e a engenhosa gestação do futuro no ventre discreto das sombras.
FHC já se declarou um gramsciano. Como tal, ele não crê na pressa leninista que, na
ânsia de “tomar o poder”, se desdobra entre a concorrência eleitoral nas cidades e a
luta armada nos campos. Ele despreza a superficialidade apressada de petistas e sem-
terra. Ele aposta no tempo, na lenta transfiguração das consciências, na revolução
cultural gramsciana enfim, que avança a passos silenciosos, gradual e segura, sob a
crosta opaca do dia. Por isso ele permanece indiferente às críticas esquerdistas e não
tem medo de se comprometer, se necessário, com “alianças espúrias” destinadas a ser,
no devido tempo, atiradas à lata de lixo da História: lugar apropriado, de fato, a todos
aqueles que, por medo de ficar com medo, buscam acreditar na lenda de que FHC
mudou. Ele mudou, sim, mas de estratégia.
Em compensação – uma compensação que na verdade não compensa nada, apenas
piora tudo formidavelmente –, iludem-se também todos aqueles que, na esquerda,
acreditam que a virada do Brasil rumo ao socialismo nos libertará do poder globalitário.
O mundo unificado está perfeitamente apto a integrar nos seus esquemas um
socialismozinho aqui, outro acolá, resguardada uma certa margem de liberdade
econômica para os grandões, coisa a que aliás a esquerda mundial já deu gentilmente
seu aval sob a elegante denominação de “terceira via”. E, finalmente, os mais iludidos
de todos são os empresários nacionais que proclamam, com ar de tranqüilidade
sapientíssima, que o novo mundo de globalismo tecnocrático está definitivamente
imunizado contra o socialismo. Sim, imunizado ele está: por isto mesmo um socialismo
brasileiro não lhe fará mal nenhum e, aliás, não fará diferença nenhuma.
A política nacional transformou-se num fantástico intercâmbio de ilusões, cuja única
verdade só é visível a léguas de distância e se chama, em Nova York e Genebra,
“gerenciamento de conflitos”. Está tudo, enfim, sob controle, e ninguém tem nada a
perder, exceto os brasileiros.

A origem da nossa confusão


Olavo de Carvalho
Jornal da Tarde, 15 de outubro de 1998
A Independência do Brasil, como a das colônias espanholas, não foi uma
independência senão do ponto de vista jurídico. Política e economicamente, apenas
passamos de uma órbita de influência a outra, em mais um episódio da histórica
rasteira que a coroa britânica deu em seus concorrentes ibéricos.
É claro que, entre os fundadores do País, havia quem fizesse força no sentido de uma
independência mais efetiva. É o caso do grande Andrada, que começou por aconselhar
o País a que não fizesse dívida com os grandes banqueiros europeus, porque a dívida,
afirmava ele, jamais pararia de crescer. Demitimos o Andrada e estamos rolando a
dívida até hoje.
A política inglesa era incentivar rebeliões e reivindicações progressistas nas colônias e
áreas de influência alheias, sempre em defasagem com as possibilidades efetivas da
economia local, para gerar crises e destruir a hegemonia dos impérios concorrentes.
Estimuladas pelos ingleses a dançar num ritmo que não tinham força para acompanhar,
as nações afetadas por essa política desenvolveram um complexo cultural crônico, que
é a contradição de valores básicos: se buscam adaptar-se às exigências éticas e
políticas da civilização progressista, têm de se submeter à potência internacional e
perdem autonomia; se querem preservar a autonomia, têm de negar a seus cidadãos
os novos direitos criados pela sociedade mais avançada. Daí que, nessas nações, os
governos mais democratizantes tendam ao “entreguismo” (JK), e os governos
nacionalistas ao “autoritarismo” (Bernardes, Geisel). O reflexo disto na cultura e na vida
psicológica é um ambiente geral de farsa e irrealidade, onde todas as propostas têm
algum vício secreto e onde ninguém pode dizer plenamente o que pensa, porque todos
se sentem, no fundo, culpados de inconsistência.
Mais tarde o centro ativo da transformação mundial saiu da Europa e foi dividido entre
os Estados Unidos e a União Soviética, hoje parece estar voltando para a Europa
Ocidental. Mas não importa: são sempre os outros que ditam o nosso ritmo e nos
forçam a mudanças que, se ampliam os direitos nominais da população, restringem a
autonomia nacional e, se ampliam a autonomia nacional, atrasam a evolução dos
direitos. Isso acontece hoje, por exemplo, com muita clareza, na questão da ecologia:
ou defendemos o interesse nacional e nos tornamos ecologicamente “atrasados”, ou
adotamos as novas normas ecológicas abdicando de nossa soberania, como ocorre
nas reservas indígenas onde ONGs estrangeiras mandam e desmandam e onde um
cidadão brasileiro não pode sequer entrar. Nenhuma das alternativas nos satisfaz, e
não podemos também dispensar uma ou a outra. As potências que dirigem o nosso
movimento estão plenamente conscientes da posição insustentável de duplo
desconforto em que cronicamente nos colocam. Nós é que, às vezes, não percebemos
o jogo e, aderindo a aparências, a palavras e rótulos atraentes, ora louvamos o
nacionalismo sem assumir a responsabilidade pelo atraso político que ele criará
necessariamente, ora proclamamos idealisticamente novos direitos sociais e políticos
sem termos a coragem de confessar que o preço deles será a nossa submissão maior
a potências internacionais.
Hoje estamos, com FHC, numa fase democratizante-internacionalista; amanhã ou
depois, com Lula ou outro petista no governo, voltaremos ao nacionalismo autoritário
de Vargas (ou – por paradoxal que pareça – de Geisel). Em qualquer dos casos,
sentimos uma profunda frustração, pois nossos melhores esforços são viciados por um
mal secreto. É a contradição básica que torna tão difícil a um brasileiro sustentar um
discurso político coerente: a coerência das idéias torna-se incoerência dos atos, e vice-
versa. Por isso os nossos governantes mais eficazes foram os que tinham o discurso
aparentemente mais ambíguo e mais oco, ideologicamente, e por isso os nossos
políticos mais caracteristicamente “coerentes a seus ideais”, como Luiz Carlos Prestes
e Carlos Lacerda, acabam nada deixando atrás de si senão um rastro de belas
palavras…
Meio farsa, meio tragédia, a nossa independência perenemente semifrustrada poderia
nos levar à loucura, se não fosse a proverbial habilidade do brasileiro para viver na
ambigüidade. Mas esta capacidade é por seu lado parte do estilo tradicionalmente
nacional de vida, que um progressismo moralista hoje nos convida a abandonar em
troca de um rigorismo legalista de tipo americano que, por sua vez, custará ao nosso
país novas submissões. E assim por diante. Até quando?

O Milagre da Solidão
Olavo de Carvalho
Bravo! nº 13, outubro de 1998, edição de primeiro aniversário
Lima Barreto foi, com Cruz e Sousa e Machado de Assis, um dos meus heróis
carlylianos de juventude — “the hero as man of letters” —, o tipo do sujeito que pela
força da auto-educação se eleva acima do meio opressivamente burro e se torna um
educador de seus opressores.
Que os três fossem pretos era coisa que não me comovia especialmente. A
discriminação que você sofre como parte de um grupo tem sempre o contrapeso da
solidariedade entre a multidão de coitados: quanto mais o expelem de um grupo, tanto
mais você se sente integrado no outro, e sempre resta a esperança coletiva de que os
oprimidos de soje sejam os opressores de amanhã. Ruim, mesmo, é a discriminação
que você sofre sozinho, sem o consolo da palavra nós e das ideologias salvadoras,
rejeitado, graças ao estima da diferença, mesmo pelos seus companheiros de raça, de
religião, de bairro, de geração. Aí você não tem para onde correr. Você é o próprio
Cristo na cruz, abandonado por todos, desprovido de semelhantes. Nenhuma ONG vai
fazer lobby em seu favor, nenhuma assembléia da Unesco vai denunciar que você é
vítima de uma grossa sacanagem, a rainha da Inglaterra não vai estipendiar nenhuma
fundação para socorrê-lo, nenhum editorial do The New York Times vai dizer que você
é lindo e maravilhoso como o João Pedro Stédile. Para todos os efeitos, você está
excluído até mesmo da classe dos dscriminados. Você é aquela mancha de meio
milímetro no canto de uma foto do Sebastião Salgado.
Só o sujeito que passou por essa situação sabe que existe, no mundo, um tipo de mal
que supera tudo o que a mídia denuncia, e que pensando bem, é a raiz da porcaria
universal.
Explico-me. O herói do primeiro romance de Lima Barreto, Recordações do Escrivão
Isaías Caminha, não sofre somente porque é preto e pobre. Ele sofre porque é um
sujeito honesto num meio de vigaristas, um autêntico homem de letras num meio de
farsantes, um gentleman no meio de carreiristas vorazes e grosseiros. Enquanto preto
e pobre, consolava-se olhando a multidão de seus companheiros de infortúnio. Mas
quantos semelhantes teria ele nas qualidades excelsas que o destacavam e o
isolavam? Quantos irmãos tinha Cristo na cruz? A parte de Isaías que mais dói não é
sua inferioridade social: é sua superioridade moral.
Mas Isaías traz ainda a marca do ressentimento racial. Ao escrevê-lo, Lima Barreto
sente-se ainda o membro de uma determinada comunidade excluída e fala em nome
dela. O livro resvala às vezes para o desabafo direto e, quanto mais se aproxima de
uma cópia literal da realidade empírica, mais perde em altitude. O próprio Isaías
também é de pouca estatura: ele é melhor que os outros, não mais forte: débil e tímido,
reduz-se a uma vítima passiva das circunstâncias, tudo se resolve numa
horizontalidade deprimente e, como dizia Antonio Machado, “cuán dificil es/ cuando
todo baja/ no bajar también”!
No romance seguinte, Lima Barreto abdica de toda referência a uma injustiça social
presente. O major Quaresma não pertence a nenhum grupo discriminado.
Não tem nenhum handicap que o identifique a esta ou àquela multidão de vítimas. Ele
é auto-suficiente na luta pela vida. É mais forte, mais inteligente e mais valente que seu
antagonista, o presidente Floriano. Quaresma não é discriminado porque algo lhe falte,
mas porque tem força de sobra e a generosidade de querer ajudar a seu povo. Este
segundo herói de Lima Barreto adquire assim uma altitude que faltava a Isaías. Ele já
não é o personagem de um mero drama social, mas o herói de uma tragédia. Segundo
Aristóteles, é essencial que o herói trágico seja um homem poderoso e especial: fora
disso suas desventuras assinalariam apenas uma conjunção acidental de
circunstâncias, suprimível e sem o alcance de uma fatalidade cósmica inexplicável.
Mas a derrota do major ainda é parcialmente explicável. Ele é um gênio criativo, mas,
convenhamos, suas idéias são bem esquisitas. Ele tem esse resíduo de fraqueza, a
meia loucura que o coloca a meio caminho entre o herói e o anti-herói. É por esse
flanco que o inimigo consegue feri-lo. A morte de Quaresma nos deprime, mas não nos
escandaliza como um absurdo completo. Há nela algo de razoável: o ideal do
reformador era incompatível não só com o ambiente mesquinho da República
florianista, mas com a reaidade tout court.
Esse último pretexto da injustiça é enfim abolido num romance seguinte de Lima
Barreto, Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. Gonzaga é um Policarpo Quaresma
sem demência, um Isaías sem o handicap da juventude e da timidez. É um grande
homem em toda a extensão da palavra — e sua vida termina no isolamento e na
resignação, mas não na derrota. Solitário entre seus livros, o sábio desenganado
observa o mundo com um olhar sem ressentimento nem sentimentalismo, cheio de
uma compreensão serena que lembra, por mais de um aspecto, a do conselheiro Aires,
mas livre daquele resíduo de negativismo schopenhaueriano que foi até o fim a marca
registrada de Machado de Assis.
A trilogia barretiana mostra-nos a evolução do ideal do humano do grande escritor,
retratada na gradação espiritual dos heróis: o jovem talentoso esmagado pelo mundo, o
combatente exaltado e semilouco, o sábio estóico soberano e calmo que permanece de
pé enquanto o mundo em torno cai. De personagem a personagem, há uma
progressiva depuração e interiorização do ideal, que vai se afastando da situação
empírica imediata para se tornar cada vez mais universalmente humano e, na mesma
medida, se desliga de todo ressentimento coletivo para encontrar o sentido de uma
vida não na vingança, mas no perdão.
O perdão, aqui, não deve ser entendido na acepção beata e sentimental, mas no
sentido etimoçógico de per-donare, completar o dom: o mundo não nos persegue
porque é mais forte que nós, mas porque é mais fraco. Ele nos persegue porque algo
lhe falta: a sabedoria. Como no verso de Santayana: “O world, thou choosest not the
better part!” . Ao superar o ressentimento coletivo, o sábio “escolhe a melhor parte” e é
o único que, no fim das contas, é rico o bastante para ter o que dar. Gonzaga não é
verdadeiramente derrotado. Expelido do mundo, prossegue a busca da verdade,
sempre disposto a compartilhá-la com o discípulo que o procure. “The hero as man of
letters”: o oprimido tornou-se educador do mundo opressor.
Juntas, as três obras maiores de Lima Barreto formam um poderoso Bildungsroman —
o romance da vitória de uma alma sobre si mesma e, por meio disto, sobre o mundo(*).
A transfiguração do oprimido em benfeitor é um milagre que se repete incessantemente
na história. Raramente houve um sábio, um santo, um mestre cujos prodígios de
generosidade não brotassem dos extremos de discriminação e solidão padecidos na
infância, vencidos e superados pela alquimia da maturidade. É a mensagem final do
Rei Lear: “Ripeness is all”.
Mas isso só acontece àqueles que sofreram a discriminação sozinhos, sem ter uma
raça, um partido, uma ideologia, uma ONG e fundações internacionais a que se
agarrar. Quem tem essas coisas não precisa atravessar o caminho da ascese interior.
Pode encontrar alívio e reconforto na ilusão de que o ódio dos vencidos é um
sentimento moralmente superior ao orgulho dos vencedores. Pode escapar da solidão
fundindo-se na massa vociferante dos comparnheiros de partido, sonhando morticínios
justiceiros que serão, na sua cabecinha imunda, a apoteose do bem. Foi dessa ilusão
sangrenta que a leitura da trilogia de Lima Barreto me libertou, mais de trinta anos
atrás.
A diferença entre povo opressor e povo oprimido é apenas quesão de ocasião, e a
“solidariedade com os primidos” é apenas o véu ideológico que bsuca embelezar e
legitimar, de antemão, os massacres de amanhã. Esse reconforto “ético” é, no fundo,
uma fuga da consciência: todo povo orpimido esconde os lances vergonhosos de sua
própria história, para poder acreditar-se melhor que os opressores. Não há um só
movimento de libertação e de direitos que não se funde nessa mentira essencial, em
que se afiam os espetos de futuros holocaustos. Durante um milênio faraós negros
arrancaram sangue do lombo semita, para terminar sendo vendidos como escravos e
hoje tentar comover o mundo com seu discurso contra os judeus comerciantes de
escravos. Os alemães encontraram na humilhação coletiva a inspiração para perseguir
os judeus, e a fumaça do holocausto ainda santifica o fuzil isralense a cada tiro que
dispara sobre um palestino armado de pedras.
Reihold Niebuhr assinalava a diferença de nível ético, estrutural e intransponível, entre
o indivíduo e a comunidade. Para o indivíduo, o sofrimento pode ser o princípio da
sabedoria. Para a comunidade, é o motor da violência, que puxa o carro da história na
direção da fornalha ardente em cuja beirada um cartaz anuncia: “Justiça e Paz”. Em
face disso, a serenidade de M. J. Gonzaga de Sá é a resposta final aos padecimentos
do jovem Isaías Caminha, e o heroísmo semilouco de Policarpo é uma etapa, a ser
vencida, no caminho do entendimento.

(*) É a única obra desse gênero na nossa literatura, se descontarmos a novela de


Guimarães Rosa A Hora e Vez de Augusto Matraga, a que o filme de Roberto Santos
deu interpretação inversa, injetando-lhe aquela mistura de negativismo brasileiro e
marxismo de botequim que torna a redenção de Matraga um gesto inútil por não se
enquadrar, como ato isolado, na estratégia geral do Partido.
Copiado, para a posteridade, deste blog que pode desaparecer a qualquer momento e
é a única fonte deste grandioso texto em toda a internet.
***

Ciência e demência
Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 20 de agosto de 1998


Vocês já tiveram a ingrata ocasião de tentar aplacar os temores de um paranóico
quanto à conspiração urdida pelo universo para destruí-lo?
Quem tentou conhece a dificuldade do empreendimento. Toda argumentação é
impotente no caso. Um doente de paranóia raciocina tão bem quanto qualquer outra
pessoa, às vezes até um pouco melhor: o medo acende todos os seus bytes de uma
vez e ele nos prova , por a + b, que as rotas dos aviões foram propositadamente
desviadas para bombardear sua casa, que seu vizinho instalou no porão uma máquina
para ler seus pensamentos, etc., etc. Logo percebemos que o erro dele não está no
raciocínio, mas nas premissas. Ele parte de informações erradas, porque lhe faltam
certas percepções intuitivas e o senso das proporções. Como estas coisas só se
adquirem por experiência direta, e as palavras só podem transmitir signos e não os
fatos mesmos, é inútil tentar reconduzir o infeliz à realidade comum: nosso discurso cai
e se perde no fosso intransponível entre dois mundos eternamente separados.
É desesperador.
Pois bem: de uns anos para cá, discutir com certos intelectuais – chamemô-los assim –
tornou-se uma experiência desse tipo. Eles falam, raciocinam, argumentam como se
fossem pessoas normais, porém, depois de uns minutos de conversa, percebemos que
eles simplesmente não sabem do que estamos falando.Provavelmente a dose de
informações eruditas desencontradas ou falsas que receberam na universidade os
desarticulou de tal modo que se tornaram incapazes de confiar em suas próprias
percepções. Não crendo mais no que enxergam individualmente, apegam-se com
desespero ao que imaginam coletivamente. É o primeiro grau da maluquice: a histeria.
Mas o histérico, se toma o imaginado como percebido, ao menos só faz isto em estado
de excitação. Aos poucos, porém, a quantidade de estímulo necessária para produzir o
equívoco vai diminuindo, como num experimento de hipnose, em que a força do hábito
faz com que sinais cada vez mais brandos emitidos pelo hipnotizador bastem para
produzir o transe. O sujeito que começara por confundir intensidade e realidade termina
por afirmar, com toda a calma e frieza, que realmente não sabe se um feto humano é
humano, que não enxerga diferença moral entre fazer sexo com uma mulher adulta e
com um bebê de 2 anos, que não vê distinção de qualidade entre a Catedral de
Chartres e as obras de Basquiat, que entre o carinho físico e uma facada no estômago
a diferença é apenas de grau, que a consciência humana não existe, que o amor de
uma mãe por seus filhos é efeito da exploração capitalista do proletariado, etc., etc. Aí
ele está totalmente esquizofrênico e provou, portanto, sua habilitação a uma cátedra
universitária.
Um psicastênico não percebe coisas por trás das palavras, e o enviamos ao médico;
um desconstrucionista também não, e lhe confiamos a educação de nossos filhos.
O chamado progresso do conhecimento obriga-nos a discutir, fingindo seriedade,
assuntos que um pythecantropus erectus desprezaria como indignos de sua
inteligência. Sempre que me vejo na contingência de ter de fazer isso, tenho de me
imbuir daquele espírito de mentira piedosa que se sobrecarrega de precauções para
não contrariar o louco de frente. Tenho medo de terminar como os empregados
do Henrique IV de Pirandello, os quais, à força de fingir que são cortesãos de Henrique
IV para não contrariar o patrão maluco que imagina que é Henrique IV, terminam
acreditando que são mesmo cortesãos de Henrique IV. Quando não agüento mais e
parto para a gozação ostensiva, creiam: faço-o somente em legítima defesa da minha
saúde.
Uma das mais trágicas ironias da História é que o prestígio social da ciência tenha
contribuído para reduzir multidões inteiras de intelectuais a um estado de idiotice mal
disfarçado pela linguagem pedante em que se expressa. Pois a ciência é apenas uma
das formas derivadas da razão, e cultuada fora de um senso global da racionalidade se
torna um fetiche hipnótico. Quando um sujeito, sob a pressão da vida moderna, vai
perdendo a capacidade de perceber certas coisas, certas qualidades, certas
diferenças, ele pressente, num primeiro momento, que está ficando maluco. Mas, em
seguida, quando lê que “não há provas científicas” de que essas coisas existam, sente
um alívio tremendo e, escorado na autoridade da ciência, proclama que cego é quem
as vê. Raramente ou nunca um sujeito imbuído dessa ilusão encontrará um professor
honesto para lhe ensinar que a ausência atual de provas científicas é, na rigorosa
acepção do método, fraquíssimo argumento contra a existência do que quer que seja,
principalmente daquilo que se conhece de longa data por percepção direta. Mas, para
ensinar isto, é preciso algo mais que conhecimento científico: é preciso saber o que é
ciência e o que não é – e isto, em pleno apogeu da autoridade científica, se tornou para
a quase totalidade das classes falantes algo como um mysterium tremendum.

TV Stalin
Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 25 de junho de 1998


A TV Futura continua ensinando às criancinhas que o uso do masculino “homem” para
designar toda a humanidade é um odioso preconceito machista, sem lhes explicar por
que raio de motivo o feminino “humanidade” usado para designar ambos os sexos não
seria um odioso preconceito feminista.
Sujeitos metidos a educadores deveriam, antes de tudo, tentar recuperar o seu senso
da linguagem, abalado pelo consumo excessivo de panfletagem política e pela carência
de alimento intelectual sólido.
Mas o que se passa na TV Futura é algo mais grave do que uma exibição de
ignorância presunçosa.
Essa emissora, cujos anúncios despertaram no telespectador a esperança de ter um
canal cultural à altura das exigências contemporâneas, logo mostrou não ser nada mais
que uma central de doutrinação comunista, empenhada em adornar com um feitio
visual moderno e um vocabulário americanizado as velhas mentiras do Komintern.
O intuito político que a inspira se tornou patente na retransmissão comentada da
minissérie Anos Rebeldes , baseada no livro 1968: O Ano que Não Terminou , de
Zuenir Ventura. (Zuenir, para os que não sabem, é aquele colunista carioca que se
notabilizou por ter clamado pioneiramente por medidas policiais contra os “crimes do
pensamento”, antecipando uma medida saneadora que será decerto adotada na
república socialista dos seus sonhos.)
Nessa retransmissão, a separação dos bonzinhos e dos malvados, que até as crianças
de 5 anos já sabem relativizar, apareceu absolutizada por uns comentários
pretensamente científicos que, sob a desculpa de “reconstituir a História”, na verdade a
fabricavam no molde dos preconceitos ideológicos mais rasteiros: os comunistas eram
sempre jovens lindos imbuídos dos mais altos ideais democráticos, enquanto seus
adversários eram movidos apenas pela sede de poder, por interesses econômicos
mesquinhos e pelo desejo sádico de oprimir os fracos.
Numa época em que até o Batman já reconheceu que o Coringa tinha lá suas razões,
esse insólito retorno ao maniqueísmo explícito não pode, no entanto, ser compreendido
como mero anacronismo simplório: por trás de sua aparente inépcia existe a opção
consciente e maquiavélica por um esquematismo doutrinário que, se falha às
exigências da cultura superior, atende com superior eficácia aos desígnios da
manipulação publicitária.
Para inculcar na população uma visão falseada dos fatos históricos, os responsáveis
pela minissérie omitiram completamente as ligações do movimento esquerdista com o
governo cubano que àquela altura já havia fuzilado mais de 10 mil pessoas. Omitiram
que os militantes da guerrilha, em vez de cultuar qualquer ideal democrático, riam da
“democracia burguesa”, cuja única serventia, diziam, era a de um trampolim para a
revolução comunista. Omitiram que a única democracia desejada por Marighela ou
Câmara Ferreira era o “centralismo democrático” que haviam aprendido na URSS.
Omitiram que, quando os “jovens idealistas” da esquerda nacional recusavam alinhar-
se com a ditadura soviética, não era por amor à liberdade, mas por adesão à política
ainda mais autoritária de Mao Tsé-tung, carrasco de 60 milhões de chineses.
Os responsáveis pela minissérie fizeram isso conscientemente, deliberadamente, para
impedir que ocorresse ao público a única pergunta decisiva: os militares, quaisquer que
fossem seus defeitos e seus enganos, não tinham alguma razão ao prever que a
chegada daquela gente ao poder seria o início de décadas de massacre ininterrupto,
como o fora até então qualquer governo comunista em toda parte e sem exceção? Se,
para evitar isso, cometeram excessos, foram estes por acaso comparáveis ao banho
de sangue que Marighelas e tutti quanti fariam se tivessem vencido, como seus
queridos parceiros internacionais fizeram em Cuba, no Camboja, em Angola e por toda
parte onde puderam? Nestes dias em que se tornou moda desenterrar cadáveres, fazer
essas perguntas seria exumar o único cadáver que a esquerda deseja manter
sepultado para sempre: o cadáver da verdade histórica.
É evidente que existia, em muitos esquerdistas e terroristas, algo como um idealismo,
se bem que pervertido pelo realismo cínico da doutrinação partidária. Que exaltem
esse idealismo, que o beatifiquem da maneira mais bocó, vá lá. O que não se pode
aceitar é o esquematismo fanático que nega, in limine , qualquer sinal de virtude nos
combatentes do outro lado, atribuindo aos adeptos da ideologia mais assassina que já
existiu no mundo o monopólio do bem universal, pelo simples fato de serem jovens,
como se não fosse jovem, por fatalidade biológica inerente ao exercício da violência
física, a maioria dos terroristas, incendiários, dinamitadores e assassinos em geral.

Girard: A revolução
Olavo de Carvalho

Bravo!, Junho de 1998


O nome de René Girard não é desconhecido nesta parte do mundo. De vez em quando
aparece citado, de passagem, em alguma tese universitária. Seu livro mais famoso, La
Violence et le Sacré (1972), foi traduzido pela Vozes e a edição está esgotada.
O que espanta não é que após tal sucesso nenhum editor brasileiro se interessasse em
publicar Le Bouc Émissaire (1982), La Route Antique des Hommes Pervers (1985) e
outras obras memoráveis do mesmo autor. O fenômeno pode refletir apenas a
intermitência do stop and go, típica das economias subdesenvolvidas. O que espanta é
a capacidade que o nosso meio universitário teve de absorver em discreto silêncio algo
de um pensamento tão explosivo, continuando em seguida confortavelmente instalado
nas suas convicções dominantes, como se ele não as houvesse abalado em nada.
Entre a insensibilidade pétrea e o fingimento puro e simples, algum fator desconhecido
parece ter imunizado essa gente contra qualquer advertência de que o leão escapou da
jaula. Mas não custa repetir o aviso: René Girard está à solta. O que ele vem fazendo –
preparem-se – pode-se resumir na fórmula única de um plano supremamente maligno:
destruir a quaternidade sagrada positivismo-marxismo-estruturalismo-freudismo que
domina o horizonte das ciências humanas, e colocar em seu lugar nada menos que o
bom e velho cristianismo.
Mesmo no Velho Mundo, onde o sacerdócio do culto estabelecido se sente mais
fortinho ao ponto de não querer deixar sem resposta uma provocação desse calibre, as
reações tomaram apenas a forma de imprecações e rosnados, seguidos de um silêncio
amuado. “Fantasias!”, protestou Claude Lévi-Strauss – e mais não disse nem lhe foi
perguntado. Nenhuma objeção detalhada o bastante para passar por séria elevou-se
contra o empreendimento girardiano, que vai exercendo uma influência cada vez maior
nos terrenos mesmos onde a exclusão do cristianismo desfrutava do prestígio de uma
exigência metodológica primeira.
O mais irônico da história é que Girard é homem alheio à agitação intelectual
parisiense, vivendo há quase meio século em Stanford, Califórnia, e publicando em
inglês boa parte de sua obra.
Mas onde, precisamente, ataca Girard o templo do academicismo? “Não se vence
realmente senão aquilo que se substitui”, dizia Nietzsche. Girard não perde tempo
criticando teorias e escolas: oferece uma explicação melhor para os fenômenos sobre
os quais elas reinavam soberanas, e ei-las desprovidas de razão de ser, pairando no ar
como inúteis flocos de espuma.
A substituição é global e repentina. Onde cada uma dessas escolas, além de ter lá
suas fragilidades intrínsecas, não conseguia abranger senão um grupo especializado
de fenômenos, deixando os outros às vizinhas que não raro a contradiziam na base, o
sistema Girard, como veio a ser chamado, reúne tudo num bloco – leis, instituições,
costumes, mitologias, valores, obras de arte – e submete o conjunto a um mesmo
princípio explicativo, simples e poderosamente convincente. A nova chave das ciências
humanas demite, de um só golpe, o complexo de Édipo e a luta de classes, as
estruturas do parentesco e todos os demais ícones teóricos, que só conservam seu
antigo prestígio em longínquas terras do Terceiro Mundo ainda não abaladas pelos
ecos da revolução girardiana.
O princípio encontrado por Girard pode-se resumir em um parágrafo. Todas as
instituições humanas têm origem ritual, e o ritual resume-se no sacrifício. O sacrifício
consiste em descarregar sobre um bode expiatório, vítima inocente e indefesa, os ódios
e tensões acumulados que ameaçavam romper a unidade social. Estes ódios e
tensões, por sua vez, surgem da impossibilidade de conciliar os desejos humanos. A
razão desta impossibilidade reside no caráter mimético do desejo: cada homem não
deseja isto ou aquilo simplesmente porque sim, porque é bonito, porque é gostoso,
porque satisfaz alguma necessidade, mas sim porque é desejado também por outro ser
humano, cujo prestígio cobre de encantos, aos olhos do primeiro, um objeto que em si
pode ser inócuo, ruim, feio ou prejudicial. O mimetismo é o tema dominante da
literatura, assim como o sacrifício do bode expiatório é o tema dominante, se não único,
da mitologia universal e do complexo sistema de ritos sobre o qual se ergue, aos
poucos, o edifício político e judiciário. A vítima é escolhida entre as criaturas isoladas,
inermes, cuja morte não ofenderá uma família, grupo ou facção: ela não tem
vingadores, sua morte portanto detém o ciclo da retaliação mútua. Mas a paz é
provisória. Por um tempo, a recordação do sacrifício basta para restabelecê-la. Nesta
fase a vítima sacrificial se torna retroativamente objeto de culto, como divindade ou
herói cultural. Ritualizado, o sacrifício tende a despejar-se sobre vítimas simbólicas ou
de substituição: um carneiro, um boi. Quando o sistema ritual perde sua força
apaziguante, renascem as tensões, espalha-se a violência que, se não encontrar novas
vítimas sacrificiais, leverá tudo ao caos e à ruína. A sociedade humana ergue-se assim
sobre uma violência originária, que o rito ao mesmo tempo encobre e reproduz.
Mas essa violência funda-se, essencialmente, numa ilusão. O sacrifício não tem, por si,
o poder de gerar efeitos benéficos. Se estes acabam por se produzir, é por intermédio
da crença generalizada que despeja os ódios sociais no inocente e aplaca uma sede
de vingança irracional que a sociedade atribui a um deus, mas que vem dela mesma.
Esta crença, por sua vez, vem do desejo mimético, que, se escolhe por objeto uma
miragem, pode se satisfazer igualmente com uma miragem de causa quando se trata
de explicar a origem dos males humanos.
Assim fecha-se o sistema: o mimetismo causa a insatisfação, a insatisfação causa os
ódios, os ódios ameaçam a ordem social, a ordem social se restaura mediante o
sacrifício do inocente, que então vira mais um deus no panteão do engano universal.
O ciclo sacrificial só é rompido uma única vez na História, com o advento do
cristianismo. Cristo proclama a inocência das vítimas, a inocuidade dos sacrifícios, a
falsidade dos deuses vingativos: “Todos os que vieram antes de Mim são ladrões.” Ele
substitui a vingança social pelo arrependimento individual, restabelecendo o nexo
racional entre os atos e as conseqüências, antes nublado pela mitologia sacrificial. Da
desmistificação do sistema antigo nasce não somente a consciência moral autônoma,
mas a possibilidade do conhecimento objetivo da natureza: Cristo inaugura a primeira
civilização – a nossa – que sabe haver mais justiça no perdão do que na vingança,
mais verdade no nexo impessoal de causas e efeitos do que na atribuição de um poder
maligno àqueles que desejamos matar.
A massa de documentos que Girard, paleógrafo de formação, submeteu a meticulosas
análises de texto para comprovar sua teoria é impressionante: vai das primeiras
mitologias indo-arianas às obras de Proust.
Não menos impressionante é a mudança de perspectiva que, sob o impacto da teoria
girardiana, sofre a nossa visão das idéias e conflitos contemporâneos. O totalitarismo,
por exemplo, aparece como o estado fatal a que caminha um mundo que, tendo
rejeitado o antigo sistema mitológico sacrificial, não deseja pôr em seu lugar o
cristianismo: não há saída senão voltar à matança de vítimas humanas, sob os nomes
de “burguesia”, “judeus”, “reacionários”, “negros impuros”, “políticos corruptos”, etc. O
nazismo surge, a essa luz, como uma oposição frontal ao cristianismo, preconizada por
Nietzsche em páginas que defendem, abertamente, o retorno aos sacrifícios humanos.
O socialismo, em contrapartida, é o simulacro que pretende substituir o cristianismo,
sugando as energias cristãs para colocá-las a serviço da caça ao bode expiatório. Nas
democracias capitalistas, o mais temível forma de anticristianismo é o “politicamente
correto”, onde cada grupo, divinizando a própria autovitimização, se nomeia o
sacerdote de novas vinganças sacrificiais.
Girard não diz isto em parte alguma, mas é altamente corroborador de suas
interpretações o fato de que, de todos os povos discriminados e perseguidos, o único
que não explora seus sofrimentos como meio para a conquista do poder de vingança é
justamente aquele que mais vítimas forneceu à violência do século XX: o povo cristão,
do qual pereceram pelo menos trinta milhões de membros no altar da perseguição
religiosa – o jamais mencionado holocausto cristão.
Girard também não cita, entre seus precursores, certamente porque o desconhece, o
nome do psiquiatra húngaro Lipot Szondi. Mas não é possível pensar em fenômenos
como o desejo mimético e o bode expiatório sem lembrar a teoria do “complexo de
Caim” que esse grande sábio colocou no lugar do artificioso “complexo de Édipo”
freudiano, já na década de 20. Mas Szondi foi, ele próprio, um bode expiatório: ao lado
dessa teoria, defendia também a raiz genética das doenças mentais, o que na época
era considerado puro nazismo pela escola culturalista dominante (que preferia culpar “a
educação”, “os pais” etc.). Não ficava bem chamar Szondi de nazista, porque ele era
judeu; mas, tão logo saiu do campo de concentração onde o haviam posto os nazistas,
foi colocado na geladeira do esquecimento pelos democratas e socialistas.
29/05/98

Provas científicas
Olavo de Carvalho
Jornal da Tarde, 28 de maio de 1998
Os esforços devotados de intelectuais e da mídia para provar que o Brasil é um país
racista seriam desnecessários se o Brasil fosse racista. Ninguém teve de provar
cientificamente o racismo da África do Sul. Quando a prova tem de ser obtida mediante
contorcionismos estatísticos, o que fica provado é apenas o desejo incontido que uma
certa elite tem de produzir, desde cima, um conflito racial que jamais brotaria de baixo
espontaneamente, como de fato não brotou.
Mas essa política pode considerar-se vencedora desde que foi apadrinhada pela Rede
Globo de Televisão, fabricante monopolística da mentalidade nacional. Não passa um
dia sem que mensagens a atestar as supostas inclinações racistas do nosso povo
sejam marteladas e remarteladas por meio de noticiários, entrevistas e novelas, até
tornar-se, pela repetição goebbelsiana, verdade evangélica, cuja contestação acabará
por se tornar, por sua vez, crime de racismo: está próximo o dia em que louvar a
democracia racial brasileira dará cadeia.
Não sei se a responsabilidade, no caso, incumbe aos proprietários da Rede Globo ou
aos iluminados da esquerda ali inseridos, que, agindo segundo uma técnica muito
conhecida nos anais da estratégia revolucionária, se aproveitam de algum cochilo da
direção e se apressam a mandar na empresa como se já fosse propriedade do futuro
Estado comunista.
Afinal, muito antes de o “politicamente correto” tomar de assalto a cultura do Novo
Mundo, já circulava a ordem do Comintern, de 1931, para que os comunistas
buscassem acirrar a luta entre as raças, dando-lhe um sentido de luta de classes
(William Waack, Camaradas , São Paulo, Cia. das Letras, 1993). Como diria
Vicentinho: “A luta continua”; agora, em rede nacional de televisão.
O novo capítulo da série vem sob a forma de mais uma mentira impingida ao público
como verdade científica. Uma pesquisa da assistente social Maria Inês da Silva
Barbosa, celebrada pela GNT como prova final (mais uma!) do racismo brasileiro,
informa que negros e brancos, em São Paulo, não morrem das mesmas causas: os
brancos sucumbem mais de enfarte (9,8%), os negros, de homicídio (7,5%, contra
2,5% de brancos). A sociedade racista branca , conclui a pesquisadora, está
exterminando sistematicamente os negros .
Os números podem ser válidos, mas a conclusão é pura fraude. Em primeiro lugar, a
raça branca é mais sujeita a doenças cardíacas do que a negra, o que já basta para
explicar a diferença do número de enfartes. Quanto ao de homicídios, para concluir que
se deve a um racismo exterminador seria preciso provar que foram, na maioria,
cometidos por brancos. Pois caso seja maior entre os negros não somente o número
de vítimas, mas também o de assassinos, o resultado da pesquisa sugerirá apenas, se
tanto, que os negros são mais violentos que os brancos. Ora, esta conclusão,
declarada em público, seria instantaneamente rotulada de racista, mas não o é menos
a sua contrária, que resulta em atribuir aos brancos, mediante a ocultação de um dado
essencial, a responsabilidade global pelos homicídios de vítimas negras, mesmo os
cometidos por negros. Ou não haverá racismo algum em forçar o resultado de uma
pesquisa para acusar de homicida uma raça inteira, contanto que seja a branca?
A pesquisadora escondeu muito mal suas intenções ao declarar que o racismo da
África do Sul ou do Alabama, com seus morticínios, seus guetos, sua virtual proibição
de casamentos mistos, nunca foi nada pior que o nosso “racismo sutil” – tão sutil, digo
eu, que só se materializa sob a forma abstrata de frações numa estatística, e mesmo
assim não se torna visível senão aos olhos da fé.
“Para mim, racismo é racismo”, afirmou a entrevistada, atestando sua carência do
senso das proporções.
Ora, entre uma sociedade que diluiu tão bem as desavenças raciais que elas, se não
sumiram de todo, acabaram por se reduzir a uma vaga e evanescente tendência
subconsciente, e uma outra que as exacerbou numa cultura que enfatiza a identidade
racial acima da unidade do gênero humano, qual a mais racista e perversa, qual a mais
justa, bondosa, sábia?
Mas há outra diferença. Foi por seus méritos próprios, pela sua sabedoria espontânea
e quase sem a intromissão do Estado que o povo brasileiro conseguiu reduzir ao
mínimo a discriminação racial neste país. Na África do Sul, nos Estados Unidos, uma
cultura arraigadamente racista teve de ser controlada pela polícia e pelos tribunais, e,
sob todo o peso da máquina repressiva, ainda explode, de vez em quando, em
descargas de uma violência sem paralelo na nossa história.
Quem pode negar essa diferença sem uma considerável dose de cegueira intelectual
ou de interesses políticos maliciosos?

O capital
Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 14 de maio de 1998


Todos os políticos, intelectuais, artistas, líderes comunitários, enfim, todas as pessoas
maravilhosas querem que o povo brasileiro seja rico e feliz (subentendendo-se que o
dinheiro não traz felicidade a quem não o tem). Para esse fim, concebem programas de
ação que consistem em distinguir quem deve ir para o governo e quem deve ir para a
cadeia (ou, nos casos agudos, para o cemitério). Os programas divergem somente
quanto aos grupos de pessoas que formam as duas colunas da lista. Os militares
achavam que eles mesmos deveriam estar no governo, e na cadeia os que achavam o
contrário, isto é, os chamados corruptos e subversivos . Hoje, os esquerdistas acham
que quem deve estar no governo são eles, e na cadeia os corruptos e reacionários ,
isto é, todos os outros.
Descontados os eufemismos e outras figuras de estilo, é nisso, substancialmente, que
consiste o chamado debate nacional.
Não posso assegurar que a distribuição dos lugares mais confortáveis e mais
desconfortáveis da sociedade seja totalmente irrelevante para o destino do bolso
popular, mas tenho razões para crer que há outros fatores que deveriam ser
examinados antes de se decidir tão transcendente disputa.
Um deles é o seguinte. Lao-tsé já dizia que sem dinheiro é muito difícil fazer dinheiro.
Não disse exatamente com essas palavras, mas disse. Significa que para ser rico é
preciso fazer alguma coisa e esta coisa custa alguma coisa. Tão decisiva é esta
segunda coisa, que recebeu o nome de capital. Quaisquer que sejam as ações a
cumprir para tornar você rico, o capital é que lhe dá os meios de executá-las –
despesas de material e transporte, sustento próprio e dos subordinados durante a
realização do projeto, etc., etc.
Só há quatro métodos para obter o capital.
O primeiro é ter sorte. Ter sorte é estar de bem com o céu e receber dele aquilo de que
se precisa, como por exemplo um alimento no deserto ou um caminho no meio do mar.
Moisés usou muito este método na fuga do Egito, com sucesso comprovado.
A Bíblia fornece várias receitas de como praticá-lo, em duas versões, antiga e moderna
ou judaica e cristã. Ambas exigem que você confie, reze, seja um bom sujeito, não
mexa com a mulher do próximo e, de modo geral, não encha o saco.
O segundo, mais apropriado aos descrentes, é usar aquilo que você já tem e espremer,
se existirem, as últimas gotas de um limão seco que já deu cinco limonadas. Num velho
filme de Sidney Lumet, O Homem do Prego (“ The Pawnbroker ”) , o usurário – judeu,
mas morbidamente ateu – representado por Rod Steiger explicava a técnica ao jovem
porto-riquenho que queria montar um negócio: “Viva apenas de pão seco, use sempre
o mesmo par de calças, reduza para a metade a ração de leite das crianças e, se
chorarem de fome, espanque-as. Ao fim de umas poucas décadas você terá o capital
para começar.”
As eruditas páginas de Karl Marx sobre a acumulação primitiva do capital não valem
essas palavras, ainda que reproduzidas imperfeitamente.
O terceiro método é roubar, supondo-se que você tenha suficiente força física – um
precioso capital natural – para derrubar seu vizinho e torcer-lhe o pescoço antes de
esvaziar-lhe a carteira, posto que haja nela o que justifique tamanho risco. Caso não se
trate de enriquecer um indivíduo, mas uma nação, é preciso ter armas e soldados em
número superior ao do adversário, o que supõe que antes de recorrer a este terceiro
método se tenha praticado o primeiro ou o segundo, ou ambos, durante um bom
tempo.
O quarto e último método é pedir a quem tem, seja sob a forma de empréstimos, seja
de investimentos. Nas duas hipóteses é preciso aceitar a seguinte conseqüência
implacável: se você conseguir ficar rico, um outro sujeito vai ficar mais rico ainda, e, se
você não conseguir deixar de ser pobre, ele vai deixar você mais pobre ainda.
Não há um quinto método. O problema com o Brasil é que nenhum dos quatro nos
agrada. A resistência a todos está, como se diz, na nossa cultura, a qual, por mal dos
pecados, é obra das mesmas pessoas maravilhosas que querem pôr umas às outras
na cadeia com o objetivo de enriquecer o povo.
Objetamos ao primeiro que é demorado e incerto (além de anticientífico), ao segundo
que é escorchante, ao terceiro que é imperialista e ao quarto que resulta, segundo dizia
Leonel Brizola, em intoleráveis “perdas internacionais”.
Não dispondo, portanto, de capital, não podemos agir no campo econômico. Em
compensação, atuamos com raro entusiasmo e proficiência no terreno mais próximo
dele, que é a política. A política consiste, segundo Carl Schmitt, em favorecer os
amigos e sacanear os inimigos – o que é precisamente o que temos feito, empregando
para isso o melhor de nossos recursos financeiros, intelectuais, jurídicos, musculares,
vegetais, animais e hidromineralógicos.
Não é um método de gerar riqueza, mas não deixa de ser um método de repartir
equitativamente os bens existentes: quando todos tivermos passado um tempo no
governo e um tempo na cadeia, estará realizada a justa redistribuição da riqueza,
preconizada pela Constituição. Aí pode ser que estejamos felizes, e sempre nos restará
a esperança de que, se o dinheiro não traz felicidade, a felicidade venha talvez a trazer
dinheiro.

A vitória do mais apto


Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 30 de abril de 1998


O que tem circulado de besteira a respeito de “darwinismo social” é de natureza a
sugerir que o homem não apenas descende do macaco, mas quase chega a ombrear-
se, em inteligência, a esse seu engenhoso antepassado.
Emprega-se essa expressão, sistematicamente, num contexto em que denota a
concorrência capitalista brutal, que esmagaria os pequeninos se não fossem
socorridos, em tempo, pelo igualitarismo marxista.
O socialismo aparece aí como a antítese por excelência da struggle for life, como o
chamado celeste à resolução fraternal dos conflitos que, abolindo a competição natural,
estabelecerá sobre a Terra a igualdade contratual dos fracos e dos fortes.
Karl Marx, infelizmente, não concordava com isso. Entusiasta do evolucionismo, propôs
a Darwin (que modestamente rejeitou a oferta) dedicar-lhe a segunda edição de O
Capital, e enxergava na luta de classes o exato equivalente histórico da seleção
natural. No seu entender, nada ilustraria de maneira mais eloqüente a “sobrevivência
dos mais aptos” do que a futura vitória do proletariado sobre a burguesia, espécie
votada à extinção por sua incapacidade de ajustar-se evolutivamente ao
desenvolvimento dos meios de produção.
O paralelismo não ficou na teoria. Vitoriosa a Revolução de Outubro, o evolucionismo
foi integrado na doutrina oficial do Estado soviético, com a incumbência de justificar
cientificamente a extinção sistemática dos dissidentes, dos alienados e dos inúteis.
Mais tarde, a ideologia que associa a mudança revolucionária com o sucesso e a
saúde foi levada às últimas conseqüências, quando os inimigos do regime passaram a
ser tratados como doentes mentais: submetidos pela força a injeções de haloperidol
que tanto acalmam os delirantes quanto perturbam os sãos, acabavam mostrando
sintomas delirantes que tornavam necessário tratá-los com injeções de haloperidol – o
que bem demonstra a infalibilidade da medicina evolucionista.
Fora e antes do mundo comunista, houve alguns doutrinários que buscaram associar a
seleção do mais apto à concorrência comercial e buscar nela um argumento para
legitimar a exploração imperialista dos povos mais fracos. Mas essa corrente encontrou
sempre forte resistência, sobretudo dos conservadores, que viam na concorrência
capitalista uma “seleção inversa” que privilegiava, em vez dos melhores, os piores e os
mais descarados. Foi também abominada pelos principais artistas e escritores, como
Tolstoi e Flaubert, a quem repugnava uma ética de alpinistas sociais. Enfim, foi
taxativamente condenada pela Igreja, que, rejeitando o darwinismo tout court, não teria
como engolir seus corolários político-ideológicos. O darwinismo social foi enfim, nos
países capitalistas, nada mais que uma idéia entre outras, jamais hegemônica,
sobretudo jamais elevada ao status de uma doutrina do Estado.
Os únicos lugares do mundo onde foi apadrinhada oficialmente pelo culto estatal foram,
de um lado, a Alemanha nazista, de outro, os países comunistas. Ambos esses
totalitarismos encaravam a História, substancialmente, como uma concorrência
darwiniana entre as espécies. A diferença era apenas de nuance: para os nazistas,
“espécie” queria dizer “raça”; para os comunistas, “classe”. O método para realizar a
sobrevivência dos mais aptos, em ambos os casos, era o mesmo: matar os inaptos.
Para maior glória da teoria darwiniana, houve mesmo uma concorrência evolutiva entre
os dois evolucionismos estatais. A competição mostrou, acima de toda dúvida, que o
mais apto era o comunismo: matando mais gente, sobreviveu mais tempo. E, enquanto
o nazismo se encontra hoje sepultado sob toneladas de filmes, livros e jornais que o
marcaram para sempre com o estigma do horror e da monstruosidade, seu concorrente
vitorioso ainda desfruta, depois de oficialmente extinto, uma honrada sobrevida
espiritual nas pessoas laureadas de seus porta-vozes acadêmicos e eclesiásticos, em
cuja conduta intelectual ninguém parece enxergar nada de particularmente indecoroso.
Se isto não prova o darwinismo, prova ao menos a reencarnação.
Mas, se menciono os eclesiásticos, não é por acaso. Para fazer uma idéia de quanto a
força darwiniana do comunismo superou a capacidade de sobrevivência de seu
adversário, basta atentar para o seguinte fato: enquanto a Igreja católica hoje se
submete a um abjeto mea culpa ante a mídia por “não ter combatido vigorosamente o
nazismo” – imitando os acusados dos Processos de Moscou que para posar de bons
meninos confessavam crimes que não tinham cometido -, o clero católico parece
jamais ter sentido vergonha alguma do “pacto de Metz”, pelo qual, mediante promessa
de não fazer nas declarações oficiais do Concílio Vaticano II nenhuma denúncia
concreta contra o regime comunista que àquela época já matara 100 milhões de
pessoas, se obteve para esse divino conclave o aplauso unânime da mídia elegante,
que até hoje ressoa aos nossos ouvidos como um hino de amor à hipocrisia universal.
Também a Igreja, afinal, evolui.

Esquerda inteligente
Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 19 de fevereiro de 1998


Se a esquerda conquistou a hegemonia cultural neste país, não foi só por meio de
truques sujos – ocupação forçada de espaços na mídia, badalação mútua entre seus
próceres, patrulhamento ideológico, etc. Foi também por mérito. Na década de 60,
quando começou a etapa decisiva da sua escalada, a esquerda pensante estava na
sua melhor forma. Uma corrente ideológica só se torna a expressão legítima do seu
tempo quando se mantém um pouco acima dele e consegue enxergar a linha do seu
horizonte. Naquela época, a esquerda tinha uma visão global, conseguia dar ao
panorama do mundo a inteligibilidade de um sentido. Hoje ela perdeu a unidade do
sentido e o controle intelectual dos dados: não entende mais nada, não sabe onde está
e se agita no escuro como uma ratazana presa num bueiro. Sua única certeza é o ódio
irracional que sente por aquilo que não compreende. No empenho de preservar à força
uma hegemonia que rapidamente vai se tornando mero simulacro, ela atira para todos
os lados, na esperança vã de que sua impotência teórica possa ser compensada por
uma retórica de insultos e de apelos moralísticos.
Nem tudo, porém, é baixeza e estupidez no templo do esquerdismo letrado. Alguns
sinais de vida inteligente e de nobreza de espírito ainda se notam ali, e o mais luminoso
deles – justamente o mais desprezado pela massa dos intelectuais militantes – é a obra
de Roberto Mangabeira Unger. Ela é extensa demais para ser analisada aqui, e por isto
me limito a chamar a atenção para um de seus muitos méritos, no qual se manifesta
também a sua limitação intrínseca.
Em seu livro Conhecimento e Política , que, publicado em 1978 pela Forense, ainda
não despertou a atenção que merece, Unger faz a crítica das premissas psicológicas
subentendidas nas teorias políticas que sustentam o liberalismo capitalista. Tais
premissas, segundo ele, implicam uma visão dualista que separa tragicamente a razão
e o sentimento, o público e o privado, as exigências da ordem social e as necessidades
interiores do homem.
Na desocultação dessas premissas psicológicas Unger mostra uma notável capacidade
de apreender as intenções fundamentais por trás de uma variedade imensa de idéias e
acontecimentos. É muito séria, também, a crítica que ele faz da mutilação espiritual que
essas premissas impõem ao ser humano.
Mas ele passa a muitos metros do alvo ao supor que essa crítica se aplicará, por
extensão e mutatis mutandis , ao liberalismo como prática social. Nem por um
momento ele parece suspeitar que a mesma prática pode ser sustentada – e de fato o
foi – a partir de premissas psicológicas inteiramente diversas e até opostas. Na
verdade, uma prática bem-sucedida nem sempre é prova da teoria que a legitima,
podendo ser resultado de causas supervenientes não previstas na teoria.
O sistema político inglês, por exemplo, não é um traslado plano e raso das idéias
liberais, mas o resultado do enxerto delas num tronco muito antigo, cuja seiva brota de
tradições religiosas medievais às quais o liberalismo, em teoria, era francamente hostil.
Do mesmo modo, o sistema norte-americano jamais refletiu o puro e incontaminado
liberalismo da teoria, mas, ao contrário, apenas o resultado de sua fusão com um
legado religioso profundamente conservador e tradicionalista, cujas premissas
psicológicas são radicalmente opostas àquelas que Unger aponta como características
do liberalismo. Seria interessante que ele examinasse, por exemplo, o
transcendentalismo de Emerson ou a “ética da lealdade” de Josiah Royce, e se
perguntasse como elementos tão estranhos ao mencionado dualismo puderam se
integrar tão utilmente na ideologia do capitalismo norte-americano.
Malgrado a profundidade do olhar que Mangabeira Unger lança sobre o subconsciente
moral do capitalismo, ele não escapa às limitações inerentes ao que chamarei razão
progressista : a confusão entre ideal e futuro, que, atribuindo a um futuro indeterminado
– e portanto necessariamente sempre adiado – o prestígio e a autoridade do
supratemporal, se arroga o direito de tudo julgar segundo uma norma tanto mais
dogmática e autofundamentada quanto mais mutável e deslizante.
É em grande parte com base no viés progressista, e não com plena isenção, que Unger
empreende sua crítica do liberalismo. Essa crítica é ideológica no sentido restritivo da
palavra, isto é, ela amplia desproporcionalmente certos aspectos de seu objeto e
diminui outros, não em razão de simples ênfase pedagógica ou figura de linguagem,
mas com vistas a um resultado político.
O próprio liberalismo, como teoria e proposta de reforma política, nada mais foi que um
momento do perpétuo deslizamento progressista, momento “superado” quando novas
críticas e novas propostas fatalmente emergiram, para atribuir ao liberalismo as culpas
que ele, por sua vez, atribuíra a seu antecessor na série. A proposta de Mangabeira
Unger é um momento posterior do mesmo processo, um novo adiamento do ajuste de
contas entre as idéias e suas conseqüências práticas.

Duas notas de ano-novo


Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 8 de janeiro de 1998


Quando um dia se escrever a história das nossas dívidas intelectuais, um capítulo bem
extenso será dedicado ao filósofo Romano Galeffi, nascido em Montevarchi, Itália, em
17 de novembro de 1915 e morto em Salvador (BA) no primeiro dia deste ano-novo.
Entre outras coisas que fez por nós desde que se instalou neste país em 1949, ele
criou a disciplina de crítica de arte nas nossas universidades, primeiro passo para o
reconhecimento da profissão. Quando depois se fundou uma Associação Brasileira de
Críticos de Arte e ele tentou se inscrever como sócio, seu registro foi recusado por
anos a fio: oficialmente, Galeffi só se tornou “crítico de arte” um ano e meio antes de
morrer.
Membro do Instituto Brasileiro de Filosofia, catedrático de Estética da Universidade
Federal da Bahia, Galeffi muitas vezes representou o Brasil em congressos
internacionais, com trabalhos que revelavam a contínua floração criadora de seu
pensamento, não abatida nem mesmo pelas doenças graves que atormentaram seus
últimos anos. Foi escritor forte, eloqüente, traduzindo em português deliciosamente
italianado, mas perfeito, um pensamento que não raro se elevava ao mais genuíno
arrebatamento espiritual. Sua produção escrita, na qual se destaca a melhor obra sobre
Kant já produzida neste país, foi sempre vítima de revisores imbecis que trocavam
“teleológico” por “teológico” e coisas do gênero, obrigando o autor a corrigir exemplar
por exemplar.
Galeffi estudou com os principais filósofos italianos do século: Benedetto Croce,
Giovanni Gentile, Franco Lombardi, Ugo Spirito. Tinha especial afeição a Croce, do
qual foi discípulo, mas jamais repetidor passivo. A filosofia de Croce, com efeito,
esgota-se numa pura metodologia das “ciências do espírito”, que ele subdivide em
Lógica, Estética, Ética e Econômica, conforme as quatro dimensões mutuamente
irredutíveis em que se projeta o espírito humano: o verdadeiro, o belo, o bem e o útil.
Galeffi tornou-se um pensador original ao dar o passo que seu mestre não quisera dar:
argumentando que o espírito não podia ser apenas a soma de suas partes, concluía
que a quaternidade croceana deixara subentendida uma quinta dimensão, a dimensão
do espírito propriamente dito, a dimensão da unidade. Com isto, a metodologia
croceana adquiria uma profundidade metafísica ante a qual o próprio Croce havia
recuado, temeroso de sair do círculo do cultural e do histórico, que constituía o extremo
limite do seu pensamento.
Casado com uma cultíssima filóloga, Galeffi foi ainda o fundador de uma família de
batalhadores culturais, sem cuja atividade incansável o intercâmbio cultural Brasil- Itália
não teria sido o que foi. Os Galeffi sempre fizeram de sua casa o ponto de conexão
quase obrigatório pelo qual entravam no Brasil professores, escritores, artistas que
traziam a este país o aporte vitamínico de uma das mais poderosas culturas do mundo.
A dra. Gina Galeffi, por sua vez, muito sacrificou de sua carreira científica para se
dedicar aos pobres e desabrigados da cidade de Salvador, desde uma época em que a
caridade não era “politicamente correta” e só trazia a seu praticante o desprezo dos
pseudo-intelectuais de narizinho empinado.
Não vou dizer que Romano Galeffi morreu satisfeito. Morreu amargurado, vendo o
obscurecimento injusto em que caíra seu trabalho e amaldiçoando a ingratidão
mesquinha que cercava as obras sociais de sua esposa.
Recebeu algumas homenagens, nada mais que justas, nos últimos anos. Mas nunca as
duas únicas homenagens que um homem de pensamento realmente deseja: a edição
decente de suas obras, a discussão séria de suas idéias.
Católico anticlerical – uma combinação bem italiana -, Galeffi acreditava firmemente na
vida após a morte. Muitos de nós também acreditam. Mas isto não é motivo para
deixarmos para a eternidade a reparação de todas as injustiças. Há alguma coisa,
modesta, mas decisiva, que podemos fazer aqui e agora: confessar que não soubemos
merecer Romano Galeffi.
***
O indefectível dr. Emir Sader já começou o ano informando a um estupefato mundo por
que este país perdeu a chance de se tornar uma coisa linda. É que em 1964 o
imperialismo ianque tomou Brasília e está lá até hoje, o malvado. Quando eu tinha 17
aninhos, os sujeitos que diziam essas coisas me pareciam muito intelectuais. Meu
sonho era ser um deles quando crescesse. Eu não percebia que a conditio sine qua
non para isso era, precisamente, não crescer. Pessoas como o dr. Sader permanecem
infantis para poder projetar sobre uma imagem paterna negativa todo o mal que
carregam dentro de si.
O imperialismo ianque pode ter nos feito algum dano, porém qual o peso real dele na
produção do nosso destino histórico? Basta comparar esse destino com o de um país
que se livrou dos gringos quase na mesma época em que, segundo o dr. Sader,
caíamos sob o domínio deles. Cuba não apenas ficou isenta da exploração imperialista,
mas ainda recebeu, durante 30 anos, uma ajuda anual soviética de US$ 6 bilhões; e
ganhou, em remédios e alimentos, mais US$ 400 milhões anuais enviados pelos
exilados cubanos de Miami, com o que se tornou a primeira ditadura do mundo a ser
alimentada pela generosidade de suas próprias vítimas. Com todas essas condições
excepcionalmente favoráveis, conseguiu baixar, na escala dos PNBs da América
Latina, dos primeiros para os últimos lugares. Para chegar a esse brilhante resultado, o
governo de Fidel fuzilou pelo menos 9 mil pessoas e, tendo alcançado em certa época
a taxa recorde de 100 mil prisioneiros políticos, ainda tinha, no ano passado, pelo
menos 1.173, segundo a ONU. Como se vê, nenhum país necessita da ajuda do
imperialismo ianque para fazer de si uma bela porcaria.

Cumprindo meu dever


Olavo de Carvalho

O Globo, 30 de dezembro de 2000


Um homem de pensamento deve ser fiel à verdade tal como ela se lhe apresenta a
cada momento no exame das questões concretas, sem deixar-se envolver por uma
atmosfera mental que tinja todo o seu horizonte de consciência com uma tonalidade
geral e prévia de “esquerda”, de “direita” ou seja lá do que for. Pessoalmente, nunca
me manifestei a favor de nenhuma política “de direita”, e é por pura indução psicótica e
ressentimento de complexados que uns sujeitos de esquerda tentam enxergar em mim
um feroz direitista. Deduzem isto das críticas que lhes faço. Raciocinam na base
schmittiana do “Quem não está conosco está do outro lado”, mostrando que nem
sequer em imaginação podem conceber que exista uma inteligência livre, capaz de
atacar o mal sem cair no automatismo mentecapto de supor que a simples inversão da
ruindade faria dela um bem.
Logicamente falando, a posição política de um indivíduo jamais pode ser inferida das
críticas, por mais duras, que dirija a uma ideologia ou partido, pela simples razão de
que críticas idênticas podem ser feitas desde várias posições ideológicas. O sionismo
foi atacado com igual vigor pela extrema-direita e pelos comunistas. O
fundamentalismo islâmico é tão abominado pelos cristãos conservadores quanto pela
esquerda feminista e gay ou pelos liberais modernistas e ateus.
Só uma tomada de posição positiva em favor de determinadas políticas é que define
identidade e compromisso ideológicos. A crítica é livre e pode vir de todas as direções.
A mentalidade comunista, no entanto, desconhece a tal ponto a liberdade de
pensamento, subjuga tão pesadamente a inteligência ao comando partidário, que
chega a catalogar a ideologia de um sujeito não pelas intenções e valores que ele
professe, mas pela simples conjecturação hipotética e quase sempre paranóica do
benefício político ou publicitário que partidos ou correntes possam auferir de suas
palavras, ainda que oportunisticamente e contra a vontade dele. Na imaginação dos
comunistas, ninguém afirma “x” ou “y” com a simples intenção de dizer a verdade, mas
sempre com a premeditação de algum resultado político, mesmo remotíssimo. É que
eles pensam assim, eles são indiferentes à verdade e à falsidade e só abrem a boca
em vista de efeitos políticos. Por isso imaginam que o resto da Humanidade também é
assim.
Foi com base nesse raciocínio alucinadamente projetivo que o Estado soviético chegou
a condenar como crime a indiferença política, por julgar que ela denotava sinistras
intenções contra-revolucionárias. Boris Pasternak foi parar na cadeia por conta disso.
Da minha parte, estou persuadido de que o homem de pensamento deve ser
escrupulosamente comedido ao opinar a favor de qualquer política em especial: ele
deve simplesmente fazer a crítica do que é ruim e perverso, deixando ao público e aos
políticos, àqueles que se orgulham de ser “homens práticos” e que têm o dever de sê-
lo, a decisão de políticas positivas que hão de suprimir ou remediar o mal.
Ademais, se critico a esquerda é porque hoje só existe esquerda. Não há direita
nenhuma no Brasil. Há direitistas, mas cada um fechado nas suas convicções privadas,
sem qualquer ação de conjunto. A prova mais patente é que a palavra “direita” só
aparece na imprensa com conotações sombrias e criminais, jamais como a designação
de uma corrente política que tenha o direito de existir como qualquer outra. Apontar um
homem como direitista é acusá-lo de conspirador, de golpista, de corrupto, de
torturador. Tanto é assim, que qualquer delito cometido em interesse próprio por
analfabetos coronéis do sertão é imediatamente atribuído à “direita”, o que é pelo
menos tão absurdo quanto enxergar motivação ideológica esquerdista em todos os
crimes cometidos por meninos de rua. Só se pode falar nesse tom, impunemente, de
uma minoria de párias sem voz nem poder. O curioso é que aqueles mesmos que sem
temor de represália falam da direita nesses termos, provando com isto que ela não tem
poder nenhum, querem nos fazer crer que ela existe, que ela é uma força organizada e
manda no Brasil. Tudo isso é puro histrionismo de uma esquerda que sabe que está no
poder mas não deseja assumir as responsabilidades de sua situação.
Hoje o establishment é esquerdista, a oposição também. Leiam as cartilhas de
marxismo-leninismo do Ministério da Educação e me digam se um governo que educa
as crianças nessa mentalidade não é comunista em espírito, conformado
provisoriamente com o capitalismo que não pode suprimir. E qual governo sem forte
inspiração comunista desejaria a supressão do sigilo bancário? Nessas condições,
seria hipocrisia eu falar mal da “direita” só para me fazer de bom menino e afetar uma
independência estereotipada. A independência autêntica não teme os rótulos que lhe
queiram impor e não foge deles mediante o apelo a discursos de ocasião. Diz o que
tem de dizer, e pronto. A confusão que façam em torno dela corre por conta da malícia
e da sem-vergonhice de cada um

O maior problema do mundo


Olavo de Carvalho

Época, 30 de dezembro de 2000


De todas as “questões para o próximo milênio”, esta é uma que ninguém sabe
resolver
O maior problema do mundo não é a miséria, não é a guerra, não é a delinqüência. É
dar uma função socialmente útil às pessoas que produzem esses males, de modo que
parem de produzi-los. Nenhum desses problemas surge do acaso ou do mero efeito
inconsciente das ações das massas anônimas. Cada um deles surge da iniciativa de
pessoas e grupos dotados do poder de agir.
Só há três classes de pessoas poderosas: os ricos, os chefes político-militares e os
intelectuais. Dessas três, só a primeira encontrou seu lugar no mundo. Ela organizou
tão bem sua atividade que, além de liberar forças produtivas jamais sonhadas (como
salientava Marx), tornou a economia uma máquina de prosperidade geral capaz de
funcionar sozinha, sem muita interferência do Estado. A classe dos ricos – a burguesia
– cumpriu seu papel: abrir o caminho de dias melhores para toda a humanidade. Só
que, para fazer isso, ela tornou a economia o centro da vida, organizando as outras
duas esferas do poder – a político-militar e a intelectual – pelo modelo de administração
das fábricas ou dos bancos. O capitalismo racionalizou e burocratizou o Estado, a
Justiça, os exércitos e a vida intelectual. Um chefe militar é hoje um funcionário, como
é funcionário o homem de ciência. Na vida político-militar não há mais lugar para
caudilhos ou condottieri, tal como na esfera do conhecimento há cada vez menos lugar
para o sábio independente.
Isso fez com que entre essas duas esferas e a da economia surgisse uma diferença
radical. Na economia há patrões e empregados, os primeiros apostando na
inventividade pessoal e no risco, os segundos na segurança e na rotina. Tanto a
margem de iniciativa dos primeiros quanto as garantias sociais dos segundos se
ampliam com o tempo, diferenciando bem os tipos humanos correspondentes. Nada
disso há nas esferas político-militar e intelectual. Aí não há patrões. Todos são
empregados. Todos estão enquadrados no regulamento que reduz ao mínimo o campo
das decisões e da criatividade pessoal. O gênio, a inventividade, a audácia refluem
para a única esfera restante: a economia. Por isso ainda é possível um Bill Gates. Mas
já imaginaram um Bill Gates da política, da guerra, da ciência, da filosofia? Não, não há
mais lugar no mundo para Júlio César, Carlos Magno, Leibniz ou Aristóteles.
Tudo isso estaria muito bem se as pessoas dotadas de gênio e iniciativa nessas
esferas se conformassem com o estado de coisas. Mas essa conformidade não parece
ser compatível com a natureza humana. As personalidades vigorosas, rejeitadas pelo
sistema, continuam surgindo. Não encontrando espaço, abrem-no com os cotovelos.
Num sistema que as acolhesse, teriam sido gênios criadores. Rejeitadas pelo mundo
real, rejeitam a realidade. Inventam outra, impossível, e tornam-se artífices da
destruição. Tornam-se Lenin, Hitler, Stalin, Mao. Tornam-se chefes de máfias. Tornam-
se inventores de idéias macabras, capazes de seduzir as massas e levá-las ao
suicídio. Tornam-se os senhores da morte, da miséria, do caos.
Nosso tempo não produziu nenhum Aristóteles, nenhum Moisés, nenhum criador de
mundos. Produziu mais gênios do Mal que qualquer outro período da História. Sem
eles, a existência, ou pelo menos a dimensão atual de todos os males apontados no
início deste artigo, seria inconcebível.
Já sabemos como organizar a economia. Só não sabemos organizá-la de modo a
evitar a marginalização que transforma os gênios em titãs excluídos e os devolve à
História na forma de furacões. Este é o maior problema do mundo. Teremos um milênio
inteiro para encontrar sua solução?

atos e mexericos
Olavo de Carvalho

O Globo, 16 de dezembro de 2000


Nunca no Brasil o povo teve
opiniões tão taxativas sobre “Quem quer que empreenda falar da idiotice, hoje em dia,
assuntos que desconhece e corre o risco de sofrer insulto: podem acusá-lo de
não deseja conhecer. Nunca se pretensão ou de querer perturbar o curso da evolução
acreditou tão piamente que histórica” – Robert Musil
para estar na verdade basta
repetir frases feitas, amparado na alegre solidariedade de uma roda de amigos que
dizem sim. Nunca a fé mais obtusa foi aceita com tanta facilidade como sinônimo de
saber esclarecido. Nunca o mero ouvir dizer se substituiu tão completamente ao
conhecimento.
Em tais circunstâncias, a revelação de fatos em contrário, em vez de poder abalar ou
relativizar essas opiniões, é recebida como um abuso intolerável, que em última análise
deveria mesmo ser proibido.
Os fatos sobre o Rio Grande, que um eficiente “cordon sanitaire” lograra manter longe
do conhecimento do público, e que foram revelados pela primeira vez fora daquele
estado no meu artigo da semana passada, não parecem ter suscitado nos corações
esquerdistas o menor princípio de dúvida quanto às belezas que à distância e por mero
contágio labial atribuem ao Governo Olívio Dutra. Ao contrário, despertaram apenas a
típica reação de bater no carteiro, culpando-o pelas más notícias. Um fragmento de
conversa de dois intelectuais, entreouvido por acaso numa elegante livraria do Rio,
ilustra esse estado de espírito:
— Como é que deixam o cara escrever essas coisas?
– Você sabe, o que deixa o sujeito mais furioso é que ninguém desceu ao nível dele
para responder…
– Você sabe, a grande mágoa dele é não estar na Academia.
– Sei.
— E o que o cara fez com o Carpeaux, hein? Transformou ele num católico!
– O que mais me assusta é que, nesse vazio em que vivemos hoje, um sujeito como
esse pode ter impacto, sabe como é, ter seguidores…
– Pois é.
– E aquilo é tudo financiado, você sabe.
– Óbvio! É tudo financiado! Tem gente por trás. É o ovo da serpente.
E por aí vai. Conversas como essa rolam mais que cachaça, madrugadas a dentro, em
ambientes universitários supostamente cultos. Sei delas porque seus ecos respingam
diariamente na minha caixa postal eletrônica. E é sempre a mesma coisa: a mesma
conjeturação psicótica de conspirações milionárias por trás de cada opinião pessoal de
um notório pobretão, a mesma malícia ingênua, a mesma tagarelice sonsa de caipiras
que se dão ares de “insiders” e trocam informações de bastidores sobre coisas que
cada um ignora mais completamente que o outro.
A proliferação desses mexericos, que decerto não chegam a me magoar, mas que me
assustam quando os considero como índices do grau de consciência da nossa classe
letrada, tem uma origem muito simples. Quando comecei a escrever sobre a
degradação da inteligência nacional, em 1995, uns quantos representantes dela (NB:
da degradação) saíram em campo, mostrando seus títulos doutorais como dentes de
leão, com a pose de quem ia fazer em picadinhos, num relance, o intruso
desrespeitoso. Levaram as respostas que mereciam, botaram o rabo entre as pernas e
se recolheram às suas respectivas insignificâncias, ou “cátedras”, restringindo-se daí
por diante a falar de mim para rodas de alunos, “intra muros”, longe da arena
jornalística e do execrável direito de resposta, instituição burguesa da qual tanto me
prevaleci. Por menos que eu freqüentasse esses ambientes – pois minha mãe me
ensinou a ver por onde ando –, cada passo dessa disseminação academo-epidêmica
de tolices chegou ao meu conhecimento, ora pela boca de observadores intrigados que
me relatavam o que tinham ouvido em classe, ora por meio dos próprios mexeriqueiros,
que traíam o segredo da causa, depositando-o em listas de discussão e em “chats” da
Internet, sem imaginar que fofoca atrai fofoca e que algum curioso sempre acabaria
copiando as mensagens e remetendo-as a mim com um pedido de explicações aliás
impossível de atender, pois certas condutas estão abaixo da possibilidade de ser
explicadas. O tempo acabou condensando no meu HD um precioso acervo documental
do puerilismo e da inconcebível estreiteza mental dos ambientes acadêmicos
dominados pelo espírito de militância, ou militantância.
Sei que ao contar isso dou a essas crianças crescidas um motivo para novas analogias
cinematográficas eruditamente alarmantes:
— Estão vendo? A serpente no ovo tem os Mil Olhos do Dr. Mabuse. É a Gestapo,
cara!
Mas, por mais que essas almas hipersensíveis a zunzuns sejam impermeáveis aos
fatos, vou lhes fornecer mais um.
A história do jornalista gaúcho processado por dizer o óbvio, que lhes contei na semana
passada, não parou por ali. Quarta-feira, 13 de dezembro, a 5a. Câmara Criminal de
Justiça de Porto Alegre, julgando o pedido de “habeas-corpus” impetrado pelo
advogado Paulo Couto e Silva em favor de Gilberto Simões Pires, decidiu que não é
crime dizer que as pessoas que usam crianças para a propaganda de ideologias
violentas estão usando crianças para a propaganda de ideologias violentas. A bela
vitória judicial obtida pelo comentarista da TV RBS no processo absurdo e insolente
que lhe moveu o Governo do Rio Grande do Sul é um marco memorável na história da
liberdade de imprensa neste país. Mas, justamente por ser memorável, não será
memorizado. Será omitido dos registros jornalísticos até desaparecer por completo.
Daqui a alguns anos, quando eu voltar a mencioná-lo, certos leitores se sentirão por
isso autorizados a colocá-lo em dúvida e a me exigir provas, no mesmo tom de
cobrança ríspida com que se dirigem a mim, hoje, quando falo do serviço de
espionagem petista – aquele mesmo que, denunciado em 1993, sumiu tão
completamente do noticiário que agora já pode, desde a confortável invisibilidade que o
protege, mover os cordões da mídia para dar a aparência de coisa ilícita às atividades
de seu concorrente legal, a Abin.

Os que não pensam


Olavo de Carvalho

Época, 9 de dezembro de 2000


O sujeito pensa que disse, mas não disse nada
Não posso deixar de aplaudir a sugestão do ministro Weffort de que o grego e o latim
devem voltar a nossas escolas. A sugestão, é claro, parecerá odiosa aos cretinos que
imaginam que a cultura é um instrumento que você compra para fazer com ela o que
quiser, e com base nessa premissa alegam que as línguas clássicas “não servem para
nada”. É característico do semiletrado não compreender a cultura senão como utensílio
ou como adorno, sem enxergar que ela não existe para nós fazermos alguma coisa
com ela, mas para ela fazer algo conosco: para nos construir e nos fortalecer enquanto
seres capazes de consciência.
Nada no repertório dos conhecimentos humanos tem esse poder educativo como os
estudos clássicos. Uma boa injeção de gramática latina e filosofia grega, na juventude,
nos torna imunes, na idade madura, à infinidade de estupefacientes culturais que hoje
danam as melhores inteligências.
Não digo que esse remédio, sozinho, possa deter a alucinante precipitação da
inteligência nacional ladeira abaixo. Mas pode melhorar a compreensão da linguagem,
que hoje raia, nas elites, o analfabetismo funcional.
Arrastados no declínio da fala geral, mesmo os homens mais preparados acabam por
perder de todo a compreensão do que lêem e mesmo do que dizem.
Tomo como exemplo a declaração do deputado José Genoíno: “Há dois documentos da
Igreja que prezo muito e coloco no mesmo patamar do Manifesto Comunista: Os Dez
Mandamentos e O Sermão da Montanha”.
Se Os Dez Mandamentos põem Deus acima de todas as coisas, o homem que diz
amá-los tanto quanto a uma filosofia que professa expulsar Deus dos céus está, no ato,
declarando que para ele o culto a Deus e o ódio a Deus valem exatamente o mesmo.
Obviamente pode-se desprezar por igual essas duas coisas, ou amá-las em sentido
desigual, mas jamais amá-las por igual. Isso decorre da simples apreensão do sentido
do enunciado, e é esta apreensão que na declaração do deputado falha por completo.
Considerados na mesma clave de sentido, Os Dez Mandamentos e o Manifesto
Comunista nunca têm valores idênticos. Se um diz a verdade, o outro mente.
Não há terceira alternativa. Nem Genoíno nem qualquer outro ser humano pode amá-
los “no mesmo patamar” sem, no ato, declarar guerra àquilo que diz. Se ele afirmasse
que seu coração oscila entre dois pólos, ou então que ama os dois textos em planos
diversos, ou que nenhum deles lhe diz nada exceto como documento histórico, tudo
estaria bem. Ao expor como emblema convencional da harmonia dos contrários algo
que, de fato, é a mútua hostilidade dos incompatíveis, ele cai no tipo de linguagem
auto-hipnótica que hoje domina nossos debates públicos, uma linguagem que, em vez
de despertar a consciência, a entorpece.
Quando tentei explicar isso a uma platéia que não era de iletrados nem de estudantes,
mas de juízes de Direito, alguns me objetaram que eu estava exigindo rigor lógico de
uma frase que deveria ser compreendida em sentido poético ou plurissenso; e tive a
maior dificuldade para explicar à platéia a diferença entre a multiplicidade de sentidos
da fala poética e a ausência de sentido de uma afirmação que se eletrocuta a si
mesma. Pois para compreender isso é preciso captar a diferença entre uma mera
contradição lógico-formal (já que uma verdade pode ser perfeitamente expressa em
termos contraditórios) e a contradição efetiva, real, entre dois atos interiores que não
podem coexistir exceto como erro de auto-interpretação do falante, isto é, como sinal
de que ele, rigorosamente, não sabe o que diz.

O direito de investigar
Olavo de Carvalho

Época, 25 de novembro de 2000


Enfraquecer a Abin é dar ao PT o monopólio da espionagem
Já que tanto se fala de “arapongas”, vale a pena lembrar que o termo, extraído de uma
novela cômica da Globo, entrou em circulação na política, uns anos atrás, para
designar não os agentes secretos do governo, mas os de um serviço de espionagem
privado, ilegal, mantido pelo PT sob a direção de um técnico treinado em Cuba, o
deputado José Dirceu.
Naquele tempo, as denúncias do governador Esperidião Amin contra a pequena KGB
foram rapidamente abafadas, e os arapongas petistas puderam continuar até hoje seu
trabalho, tranqüilamente surrupiando documentos e bisbilhotando a vida de meio
mundo sem ser jamais incomodados ou investigados. Os agentes da Abin não
desfrutam igual privilégio. Ao menor abuso, são submetidos àquele “controle externo”
do qual a espionagem petista, by special appointment, está completamente isenta.
No entanto, se a Abin cometeu algum abuso, a existência mesma de seu rival petista é
mais que abuso: é crime. A gritaria geral contra o abuso, já que acompanhada de não
menos geral silêncio no que diz respeito ao crime, tem por óbvia finalidade amarrar as
mãos da autoridade constituída e conferir ao serviço secreto ilegal o monopólio dos
meios de investigar. Se o governo aceitar esse jogo, acabará transformando a Agência
Brasileira de Inteligência em Agência Brasileira de Burrice. Não é nada impossível que
as informações reservadíssimas veiculadas pela imprensa na semana passada tenham
sido, elas próprias, obtidas por agentes petistas, numa operação montada para
consolidar a superioridade da espionagem ilegal sobre o serviço secreto oficial – um
avanço formidável na montagem do poder paralelo preconizado por Lênin, que,
segundo demonstrou José Giusti Tavares no estudo Totalitarismo Tardio: o Caso do PT
(Porto Alegre, Mercado Aberto, 2000), é a quintessência da estratégia petista.
Mas, além disso, é simplesmente obsceno aceitar como pressuposto indiscutível a
afirmação de que houve abuso por parte da Abin. Qualquer brasileiro que seja persona
grata aos altos escalões do governo cubano é suspeito de envolvimento numa
estratégia revolucionária continental associada aos narcotraficantes colombianos e
deve, no mínimo, ser observado.
Um governo que, sabendo da existência de uma revolução em marcha nas fronteiras,
se abstivesse de investigar os possíveis colaboradores internos da operação estaria
simplesmente entregando o país aos revolucionários. E o que muita gente está
exigindo do governo é que ele não apenas abdique de investigar os agressores, mas
consinta docilmente em ser investigado por eles.
No entanto, se nosso presidente, depois de tantas concessões degradantes, fizer mais
essa, não haverá nisso nada de estranho. Há sérios indícios de que, seguindo
estritamente a sugestão que recebeu do cientista político Alain Touraine, ele prepara
para o ano que vem uma guinada à esquerda, de modo a tornar-se o virtual chefe da
transição brasileira para o socialismo. Que mais poderia ele querer dizer com “a grande
virada” que anuncia para 2001? Eleito com o apoio suicida de liberais iludidos com a
cantilena do “fim do comunismo”, ele parece não ter mesmo outro sonho na vida senão
o de se tornar o Kerenski que deu certo.
PS.: Um leitor acusa-me de ser avesso ao debate e para prová-lo alega que respondi
aos argumentos do doutor Borroni-Biancastelli. Mudou o conceito de debate ou mudei
eu?

A mentira como sistema


Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 23 de novembro de 2000


Logo que me afastei do Partido Comunista, aos 22 anos, conservei uma visão do
marxismo como teoria errada, mas valiosa. Três décadas de estudos persuadiram-me
de que ele é uma doutrina não apenas falsa, mas mentirosa até à medula.
Marx mente nos seus pressupostos filosóficos, mente na sua apresentação da História,
mente nas suas teorias econômicas e mente nos dados estatísticos com que finge
comprová-las. De sua obra nada se aproveita, exceto o treino dialético que se ganha
em duelar com um mentiroso astuto.
Perguntar se suas mentiras são propositais ou inconscientes – e nesta última hipótese
tentar salvar uma suposta “boa intenção” por trás da falsidade – é ignorar por completo
as diferenças entre consciência normal e sociopática.
Karl Marx foi com toda a evidência um sociopata, uma alma na qual a nebulosa mistura
de verdade e falsidade era um traço permanente, uma compulsão irresistível, não se
aplicando a esse caso a distinção entre a reta intenção da vontade e as falhas
involuntárias da inteligência, com que explicamos os erros dos homens normais.
É impossível não perceber algo dessa mistura já em Hegel, seu antecessor e, de certo
modo, mestre. Toda a filosofia de Hegel funda-se na premissa de que “o Ser, sem suas
determinações, é idêntico ao Nada”, uma afirmação à qual ele confere validade objetiva
absoluta embora sabendo que ela só tem significado quando referida não ao Ser e sim
apenas ao conhecimento que temos dele, e que ampliada para fora desse domínio é
uma sentença totalmente desprovida de significado. Digo “embora sabendo” porque é
impossível que um homem dotado da destreza lógica de Hegel não percebesse, nessa
pedra fundamental da sua doutrina, a rachadura lógica entre uma meia-verdade e um
“flatus vocis”. Mas Hegel, firmemente decidido a construir um sistema universal, não se
deteve ante o que, aos olhos de sua ambição, pareceu um detalhe desprezível. Seguiu
em frente, misturando em doses cada vez mais complexas as meias-verdades às
meias mentiras à medida que a construção se avolumava.
Marx partiu dessa monstruosa falsificação teorética para erigir, em cima dela, a
falsificação da existência real, a ação historicamente falseada de milhões de seres
humanos que consagraram suas próprias vidas e sacrificaram milhões de vidas alheias
no altar da mentira sistematizada.
Como foi possível que chegasse a recrutar tantos discípulos, a agitar tão vastas forças
sociais e políticas, a desfigurar a face do mundo a ponto de torná-lo indistingüível do
inferno?
O sociopata, como o esquizofrênico, é uma alma dividida, mas dividida de tal modo que
as partes separadas, sem jamais juntar-se num confronto consciente, concorrem para
uma meta comum determinada pela vontade, o que o torna notavelmente capacitado
para a ação – ao contrário do esquizofrênico – na mesma medida em que incapacitado
para o julgamento moral de si próprio.
Enquanto na psique normal a base da ação eficaz é a coerência entre consciência
cognitiva e vontade, no sociopata é a separação delas que produz aquela desenvoltura,
aquela liberdade, que lhe permite agir eficazmente onde o homem são seria detido por
escrúpulos de consciência. A força de vontade, no sociopata, não reflete a firmeza de
uma convicção madura e consciente, mas a inescrupulosidade de um desejo
avassalador que vence todas as hesitações sufocando a voz da consciência quando
esta lhe cobra os direitos da verdade ou simplesmente lhe relembra a fragilidade da
condição humana. A força do homem são está na unidade da sua alma; a do sociopata,
na impossibilidade de unificar-se, que o leva a espalhar a dubiedade e a confusão por
onde passe. A primeira é idêntica à “simplicidade” bíblica; a segunda, à complexidade
irremediável de uma ruptura interna que se automultiplica indefinidamente. A primeira
reflete o “sim, sim – não, não” do mandamento de Jesus; a segunda é a voz do
“bilingüis maledictus”, o homem de língua bífida incapaz de dizer sem desdizer.
Daí a diferença entre a dialética clássica, de Sócrates e Aristóteles, e a dialética
moderna de Hegel e Marx. A primeira era a arte de reduzir as contradições à unidade; a
segunda, a técnica de fazê-las proliferar até que não possam mais ser abrangidas na
unidade de uma visão intelectual e extravasem para a vida ativa, semeando o ódio e a
guerra sem fim. A primeira supera as contradições da “práxis” na unidade superior da
consciência contemplativa; a segunda alastra para o reino da “práxis” o ódio a si
mesmo que atormenta o intelecto incapaz de repouso contemplativo.

Ética sociopática
Olavo de Carvalho
Época, 18 de novembro de 2000
Maquiavelismo revolucionário camuflado em luta pela ética faz mal à saúde moral
do país
Outro dia escrevi que Fidel Castro começara sua carreira assassinando um político
qualquer só para cavar favores de um inimigo da vítima. Alguém replicou, indignado,
que não era justo polemizar contra o regime cubano mediante “ataques à vida pessoal”
de seu representante. Estão vendo por que digo que o atual esquerdismo brasileiro não
é um fanatismo simples, mas um fanatismo de sociopatas? O simples fanático não
chega ao desvario de proclamar que um homicídio político é puro assunto de foro
íntimo do homicida, sem peso no julgamento de seu desempenho de homem público.
Para tanto é preciso que ele tenha sacrificado no altar de sua fé o último vestígio de
discernimento ético. Fanatismo, por si, não implica dessensibilização moral. Essa é, em
contrapartida, a definição mesma da sociopatia.
Não se trata, evidentemente, de sociopatia individual e espontânea, mas coletiva e
induzida. Milhões de brasileiros estão se deixando reduzir à completa obtusidade pela
prostituição de seu senso ético a uma formidável mentira eleitoral. Um partido que, em
seus planos estratégicos, se propõe implantar no país um regime comunista de tipo
cubano, mas em sua propaganda escamoteia esse dado essencial e vende uma
imagem ideologicamente inócua de probidade administrativa, está, com toda a
evidência, introduzindo um grave desvio de foco nas discussões públicas. O PT, de
fato, parece ter menos corruptos que os outros partidos. Ao sugerir, porém, que essa
diferença o torna especialmente apto a governar com lisura num regime democrático,
ele omite que ela é apenas um subproduto da disciplina revolucionária voltada à
destruição desse regime. Todo partido revolucionário é, nesse sentido aparente,
“honesto”: não porque respeite as leis e a ordem, mas porque os rigores da guerra
contra a lei e a ordem não lhe permitem o luxo de sacrificar a estratégia geral a
ambições individuais. Ele não pode dizer isso em público, mas pode se aproveitar
dessa mesma circunstância para fazer da luta em favor da moral a mais perfeita
camuflagem de uma radical insinceridade. Não foi à toa que Antonio Gramsci fez do
partido revolucionário a nova encarnação do Príncipe de Maquiavel.
Falando em nome dos mais altos anseios éticos, usando de sua falsa identidade até
mesmo como instrumento de chantagem psicológica para instilar sentimentos de culpa
nos eleitores que votassem contra ele, o bem-sucedido discurso petista ficou muito
abaixo, não digo das injunções superiores de uma ética de virtudes, mas das
exigências mais comezinhas do Código de Defesa do Consumidor.
Nunca, na história psicológica deste país, uma estratégia tão visceralmente fraudulenta
logrou colocar a seu serviço, mediante propaganda enganosa, os sentimentos mais
nobres e elevados de tantos eleitores. Nunca aquilo que há de melhor na alma dos
cidadãos foi tão maquiavelicamente usado, desvirtuado, prostituído.
Corruptio optimi pessima: não há improbidade administrativa que possa se comparar,
na malignidade de seus efeitos profundos, a essa propositada deformação da
inteligência moral de um povo. Não espanta, pois, que pessoas submetidas a tamanha
deseducação acabem se estupidificando a ponto de julgar que homicídios políticos
sejam detalhes da vida pessoal, inaptos a manchar no mais mínimo que seja uma bela
carreira de homem público

Precauções de leitura
Olavo de Carvalho
O Globo, 18 de novembro de 2000
Uma grande bobagem que você pode fazer ao estudar a história das idéias filosóficas é
compará-las umas às outras no mesmo plano, como teorias científicas ou visões da
realidade, diferentes apenas segundo o ponto de vista adotado, os talentos pessoais de
seus criadores e a mentalidade das épocas.
Muitas doutrinas famosas não são de maneira alguma teorias sobre a realidade, nem
tiveram jamais a pretensão de sê-lo. Surgidas no bojo de grandes projetos de ação
política, são ficções propositais calculadas para produzir impressões na opinião pública
e predispô-la às condutas que se supõem adequadas à consecução desses projetos.
São, no sentido mais estrito, informação estrategicamente manipulada. Não se
destinam a diagnosticar, descrever ou compreender a realidade, mas a produzi-la – ou
melhor, a produzir uma falsa realidade que atue sobre a realidade efetiva, no
mesmíssimo sentido em que um falso rumor de traição conjugal, soprado aos ouvidos
de um marido ciumento, pode induzi-lo a um crime passional de verdade.
Não são teorias: são atos políticos. Discuti-las como teorias pode ser útil apenas para
desmascarar a falsa identidade científica que se arrogam, mas, precisamente, esse
desmascaramento não pode ser feito sem um conhecimento prévio do projeto que
encobrem e que ocultamente as modela.
Uma precaução elementar no estudo de qualquer doutrina é averiguar se seu autor
corresponde ao tipo do homo theoreticus, do estudioso sincero que irá às últimas
conseqüências na investigação da verdade, pouco importando a quem favoreçam ou
desfavoreçam os resultados de suas investigações, ou se, ao contrário, é um líder, um
chefe, um homem de ação e revolucionário interessado em transformar o mundo.
Neste último caso, a hipótese de que a verdade objetiva prevaleça em seu pensamento
é uma casualidade que pode se dar aqui ou ali, em afirmações parciais, mas que no
conjunto deve ser considerada improvável e remota.
Há, evidentemente, o caso intermediário do educador, que é homem de ação e produz
teorias. A diferença é que a ação do educador visa a transformar almas individuais – as
de seus alunos atuais e virtuais – e não o Estado, as leis e a sociedade, pelo menos de
maneira direta e intencional. Esse tipo de ação não só é compatível com a fidelidade ao
saber objetivo, mas de certo modo a exige.
Até certo ponto, todo filósofo é um educador e não pode deixar de sê-lo. Idêntica
observação pode-se fazer, mutatis mutandis, quanto ao “médico de almas”, que é um
tipo especial de educador.
Há também a possibilidade de que o autêntico homem de saber, em certas
circunstâncias, tome posição em questões políticas específicas, sem comprometer-se
num plano de reforma do mundo que chegue a determinar, por si, os princípios de sua
doutrina. Se esse é o caso, suas opções políticas refletirão sua orientação teórica geral
(ou as mudanças dela), e não ao inverso.
Mas, feitas estas ressalvas, vigora a distinção entre o homo theoreticus e o homo
politicus. A noção marxista de ideologia, com sua hipótese pueril de que todas as idéias
têm, por igual, objetivos políticos inconfessados, só serviu para obscurecer essa
distinção, que não obstante continua indispensável.
Platão, por exemplo, é caracteristicamente homo politicus. Na sua famosa “Carta
sétima”, ele admite que o objetivo de sua obra é a reforma do Estado. Mas não seria
preciso isso para alertar-nos da conveniência de ler os seus escritos não como
descrições da realidade, e sim como montagens de uma realidade postiça que ele quer
impingir a seus discípulos em vista de um resultado. Como autor de um projeto político,
Platão não deve ser julgado só pelo teor intelectual de suas idéias, mas segundo a
elevação das intenções, a lisura dos métodos e o caráter útil ou danoso dos resultados
de sua ação na História.
Se não fosse por isso, certas argumentações capciosas que ele atribui a Sócrates — e
que não teriam o menor sentido justamente no contexto de uma disputa entre o novo
espírito de rigor socrático e o arsenal consagrado de prestidigitações sofísticas que ele
pretende desmascarar – teriam de ser explicadas como lapsos de lógica ou como
mentiras gratuitas.
A primeira hipótese deve ser afastada porque muitos desses erros são demasiado
grosseiros para alguém que não podia ignorar os critérios dialéticos que, na sua própria
academia, já vinham sendo ensinados por um seu discípulo (Aristóteles). A segunda
faria de Platão um leviano indigno de atenção.
Platão, pois, quando mente, tem algo em vista, como é próprio dos políticos, e muitos
de seus erros são mentiras propositais. Isto deve ser levado em conta na interpretação
da sua obra, enquanto a de Aristóteles se coloca mais na pura dimensão teorética e
pode ser compreendida de maneira mais literal. Quando ele diz algum absurdo (y que
los hay, los hay), é simples erro científico, que pode danificar em mais ou em menos o
conjunto do sistema, mas não requer a sondagem de motivações ocultas.
Mas, se tais precauções são indispensáveis no estudo dos clássicos, quanto mais não
o seriam no da produção científica de uma época em que praticamente toda a classe
acadêmica vive a soldo de governos, serviços secretos, partidos políticos, ONGs e
outras organizações decididas a moldar o mundo? Nessa época, a autoridade
intelectual em estado puro é tão rara quanto o puro heroísmo ou a pura santidade. A
quota de ação política embutida na produção acadêmica é tão imensa que, num
impressionante número de casos, a leitura de teses universitárias só é proveitosa para
técnicos em informação estratégica, aptos a identificar e neutralizar, nelas, o elemento
de desinformação. Para os demais, é apenas auto-intoxicação mental.

O leninismo eterno
Olavo de Carvalho
O Globo, 11 de novembro de 2000
Durante anos a imprensa ocidental assegurou que havia um grave conflito entre os
governos socialistas da Rússia e da Albânia. A fonte da notícia eram as rádios estatais
dos dois países, captadas pelo serviço secreto americano, que transmitiam pesadas
recriminações mútuas entre os déspotas soviéticos e os altivos governantes de uma
naçãozinha que se cansara de ser satélite. As dissensões internas, afirmavam os
comentaristas, prenunciavam a dissolução do monolito soviético, a modernização do
regime, a abertura ao Ocidente, o retorno das liberdades civis. Enquanto isso, o
intercâmbio diplomático e comercial entre Rússia e Albânia continuava normalmente,
os representantes de cada lado eram bem recebidos no outro, mas a imprensa de
Nova York e Londres explicava que eles estavam apenas tentando “resolver suas
divergências”.
Passados 40 anos, ex-agentes da KGB revelaram que as emissões da rádio albanesa,
além de vir em língua praticamente desconhecida na Rússia, só eram ouvidas em
Moscou pelos funcionários do serviço secreto, ao passo que as russas nem sequer
chegavam até a Albânia, porque não havia retransmissão pelas torres locais. A troca de
insultos tinha sido, enfim, uma emissão exclusiva para o público ocidental…
Os habitantes de países democráticos, onde os jornalistas vasculham tudo e a
oposição revela documentos secretos dos órgãos de segurança para esculhambar com
o Governo, dificilmente podem imaginar a facilidade com que um regime totalitário,
controlando as fontes de informação, logra impor, para aquém ou além de suas
fronteiras, uma imagem totalmente falsa do que nele se passa.
De modo mais geral, o movimento socialista, no poder ou fora dele, notabilizou-se pelo
talento de mostrar-se tanto mais dividido e debilitado – e por isto mesmo menos
ortodoxo e mais aberto a inovações democráticas – justamente nos momentos em que
mais estreitamente cerrava fileiras para um esforço conjunto em estratégias de longo
prazo.
Poucos não-militantes compreendem o sentido dialético do raciocínio socialista, onde
cada decisão traz em seu bojo o resultado oposto, calculado para germinar em segredo
e vir à luz de repente, pronto e realizado, como se surgido do nada, confundindo e
paralisando os adversários. Pelo menos três vezes o truque obteve sucesso em escala
planetária, levando o mundo a acreditar que o socialismo havia desistido de sua
ortodoxia e de seus planos de expansão, precisamente quando ele se preparava para
ampliar seus domínios e exercer sobre eles um controle ainda mais rígido.
A primeira foi em 1921, quando Lenin abriu a Rússia aos investimentos estrangeiros.
Foi uma onda mundial de alívio. Capitais acorreram em profusão, celebrando o fim do
pesadelo revolucionário. Quando a injeção acabou de produzir seus efeitos curativos
sobre a economia russa, veio a brutal antítese dialética: a repentina estatização total da
indústria, dos bancos e da agricultura, a consolidação do Estado policial.
A segunda foi a dissolução do Comintern, em maio de 1943, um aceno de boa vontade
aos aliados antinazistas, que o interpretaram como prova de que o comunismo
abandonara suas ambições revolucionárias e se transformara em puro progressismo
patriótico. Franklin Roosevelt chegou a assegurar que Stalin não era comunista de
maneira alguma. O resultado, logo depois, foi a ocupação de meia Europa pelos
exércitos soviéticos e a implantação do comunismo na China.
A terceira foi a “desestalinização”, em 1956, entre aplausos gerais do Ocidente à
cansada ideologia revolucionária que generosamente abdicava de si mesma.
Resultados: revolução cubana e expansão formidável do socialismo na Ásia e na
África.
Por isso mesmo, não é nada estranho que, quanto mais a esquerda brasileira proclama
seu estado de divisão, a perda de sua identidade ideológica e sua conseqüente
disposição de abrir-se à modernização capitalista, mais firme e coesa ela avance rumo
à conquista do poder, mais ela consolida seu braço armado, seu serviço de
espionagem, sua posição de mando na mídia e seu domínio sobre a linguagem, o
imaginário e as reações emocionais das classes cultas.
Ninguém mais, fora da esquerda, sabe o que é dialética ou como funciona o princípio
leninista do “centralismo democrático”. Por isso ninguém entende que uma aparência
de anarquia e pluralismo é a melhor e a mais tradicional fachada para a consecução de
uma estratégia unitária de longo prazo.
Pela mesma razão, todas as análises do desempenho eleitoral do PT que li até agora
se dividem em duas espécies: metade é falta de informação, a outra metade é
desinformação.
Solidamente protegida da luz pela geral ignorância de seus métodos, a estratégia, no
entanto, às vezes deixa o rabo à mostra. Numa entrevista recente, o sr. Luiz Inácio Lula
da Silva, após dar por implícito que a meta do PT é o socialismo, rejeitou
categoricamente a hipótese de uma social-democracia, inviável, segundo ele, num país
tão pobre (ou que tal lhe parece). Mas um socialismo, se não é social-democracia, que
raio de coisa há de ser senão o bom e velho leninismo?

A verdadeira direita
Olavo de Carvalho

O Globo, 5 de novembro de 2000


Se nas coisas que escrevo há algo que irrita os comunas até à demência, é o contraste
entre o vigor das críticas que faço à sua ideologia e a brandura das propostas que lhe
oponho: as da boa e velha democracia liberal. Eles se sentiriam reconfortados se em
vez disso eu advogasse um autoritarismo de direita, a monarquia absoluta ou, melhor
ainda, um totalitarismo nazifascista. Isso confirmaria a mentira sobre a qual construíram
suas vidas: a mentira de que o contrário do socialismo é ditadura, é tirania, é
nazifascismo.
Um socialista não apenas vive dessa mentira: vive de forçar os outros a desempenhar
os papéis que a confirmam no teatrinho mental que, na cabeça dele, faz as vezes de
realidade. Quando encontra um oponente, ele quer porque quer que seja um nazista.
Se o cidadão responde: “Não, obrigado, prefiro a democracia liberal”, ele entra em
surto e grita: “Não pode! Não pode! Tem de ser nazista! Confesse! Confesse! Você é
nazista! É!” Se, não desejando confessar um crime que não cometeu, muito menos
fazê-lo só para agradar a um acusador, o sujeito insiste: “Lamento, amigo, não posso
ser nazista. No mínimo, não posso sê-lo porque nazismo é socialismo”, aí o socialista
treme, range os dentes, baba, pula e exclama: “Estão vendo? Eis a prova! É nazista! É
nazista!”
Recentemente, cem professores universitários, subsidiados por verbas públicas,
edificaram toda uma empulhação dicionarizada só para impingir ao público a lorota de
que quem não gosta do socialismo deles é nazista. Não se trata, porém, de pura
vigarice intelectual. A coisa tem um sentido prático formidável. Ajuda a preparar futuras
perseguições. Consagrado no linguajar corrente o falso conceito geral, bastará aplicá-lo
a um caso singular para produzir um arremedo de prova judicial. Para condenar um
acusado de nazismo, será preciso apenas demonstrar que ele era contra o socialismo.
Hoje esse raciocínio já vale entre os esquerdistas. Quando dominarem o Estado, valerá
nos tribunais. Valerá nos daqui como valeu nos de todos os regimes socialistas do
mundo.
Intimidados por essa chantagem, muitos liberais sentem-se compelidos a moderar suas
críticas ao socialismo. Mas isso é atirar-se na armadilha por medo de cair nela. Já digo
por que.
Socialismo é a eliminação da dualidade de poder econômico e poder político que, nos
países capitalistas, possibilita – embora não produza por si — a subsistência da
democracia e da liberdade. Se no capitalismo há desigualdade social, ela se torna
incomparavelmente maior no socialismo, onde o grupo que detém o controle das
riquezas é, sem mediações, o mesmo que comanda a polícia, o exército, a educação, a
saúde pública e tudo o mais. No capitalismo pode-se lutar contra o poder econômico
por meio do poder político e vice-versa (a oposição socialista não faz outra coisa). No
socialismo, isso é inviável: não há fortuna, própria ou alheia, na qual o cidadão possa
apoiar-se contra o governo, nem poder político ao qual recorrer contra o detentor de
toda riqueza. O socialismo é totalitário não apenas na prática, mas na teoria: é a teoria
do poder sintético, do poder total, da total escravização do homem pelo homem.
A formação de uma “nomenklatura” onipotente, com padrão de vida nababesco,
montada em cima de multidões reduzidas ao trabalho escravo, não foi portanto um
desvio ou deturpação da idéia socialista, mas o simples desenrolar lógico e inevitável
das premissas que a definem. É preciso ser visceralmente desonesto para negar que
há uma ligação essencial e indissolúvel entre elitismo ditatorial e estatização dos meios
de produção.
O socialismo não é mau apenas historicamente, por seus crimes imensuráveis. É mau
desde a raiz, é mau já no pretenso ideal de justiça em que diz inspirar-se, o qual, tão
logo retirado da sua névoa verbal e expresso conceitualmente, revela ser a fórmula
mesma da injustiça: tudo para uns, nada para os outros.
Porém, no próprio capitalismo, qualquer fusão parcial e temporária dos dois poderes já
se torna um impedimento à democracia e ameaça desembocar no fascismo. Não há
fascismo ou nazismo sem controle estatal da economia, portanto sem algo de
intrinsecamente socialista. Não foi à toa que o regime de Hitler se denominou
“socialismo nacional”. Stalin chamava-o, com razão, “o navio quebra-gelo da
revolução”. Por isso os socialistas, sempre alardeando hostilidade, tiveram intensos
namoros com fascistas e nazistas, como nos acordos secretos entre Hitler e Stalin de
1933 a 1941, na célebre aliança Prestes-Vargas etc. Já com o liberalismo nunca
aceitaram acordo, o que prova que sabem muito bem distinguir entre o meio-amigo e o
autêntico inimigo.
Por isso mesmo, é uma farsa monstruosa situar nazismo e fascismo na extrema-direita,
subentendendo que a democracia liberal está no centro, mais próxima do socialismo.
Ao contrário: o que há de mais radicalmente oposto ao socialismo é a democracia
liberal. Esta é a única verdadeira direita. É mesmo a extrema direita: a única que
assume o compromisso sagrado de jamais se acumpliciar com o socialismo.
Nazismo e fascismo não são extrema-direita, pela simples razão de que não são direita
nenhuma: são o maldito centro, são o meio-caminho andado, são o abre-alas do
sangrento carnaval socialista. Os judeus, perseguidos em épocas anteriores, podiam
usar do poder econômico para defender-se ou fugir: o socialismo alemão, estatizando
seus bens, expulsou-os desse último abrigo. Isso seria totalmente impossível no liberal-
capitalismo. Só o socialismo cria os meios da opressão perfeita.
Não, a crítica radical ao socialismo não nos aproxima do nazifascismo. O que nos
aproxima dele é uma crítica tímida, debilitada por atenuações e concessões. E essa,
meus amigos, eu não farei nunca

Trágica leviandade
Olavo de Carvalho
Época, 21 de outubro de 2000
Incapazes de transformar a si mesmos, os esquerdistas buscam transformar o
mundo
Jamais conheci um esquerdista que chegasse a sê-lo por etapas, por experiência
acumulada e avaliação ponderada dos fatos. Todos tomam posição logo de cara na
entrada da adolescência, antes de saber coisa alguma do mundo, e passam o resto da
vida julgando tudo à luz dessa opção inicial. Nada lhes parece mais normal, portanto,
que presumir que as opiniões contrárias às suas tenham se originado de escolhas
igualmente irracionais, apenas com signo invertido.
Acontece que a quase totalidade dos pensadores anticomunistas é constituída de
indivíduos que um dia foram comunistas e depois mudaram de idéia por um lento, difícil
e doloroso processo de autodesmascaramento. As obras de Arthur Koestler, Irving
Kristol, David Horowitz, Whittaker Chambers, Milovan Djilas, Daniel Bell e tantos outros
– hoje excluídas do mercado livreiro – não são apenas “argumentações” em favor de
uma “posição”: são expressões de uma experiência longamente amadurecida no
isolamento e na árdua conquista de si. Cada um desses homens pagou um alto preço
moral por suas idéias, enquanto as dos comunistas foram recebidas, prontas e
gratuitas, de um ambiente juvenil onde circulavam como frases feitas.
É verdade que, para muitos comunistas, sua escolha ideológica trouxe provações e
riscos. Mas justamente isso lhes deu um pretexto edificante para que se dispensassem
de questionar as doutrinas às quais tinham oferecido a vida. Quem, depois de passar
por perseguições, prisão, tortura, há de querer reconhecer que sofreu tudo isso por
uma mentira? Assim, o heroísmo esquerdista é de ordem apenas física e social, sem
profundidade interior: quanto mais o militante tem a coragem de padecer por suas
crenças, mais covardemente foge do risco de se decepcionar com elas. Ademais, seu
sofrimento tem sempre o reconforto da solidariedade coletiva, organizada, mundial.
Sozinho, no cárcere, ele tem a certeza de que milhões lutam a seu lado. Quem haverá
de querer, no fundo do poço, abdicar desse último consolo?
Mas é precisamente esse heroísmo em dose dupla que se encontra nos homens que,
após sofrer perseguição de seus adversários políticos, consentiram em suportar,
solitários, o ódio de seus antigos companheiros. Heroísmo, na verdade, triplo, pois
entre a primeira e a segunda provação vem o mais difícil: a travessia do deserto, a luta
para vencer a si mesmo. Por isso os clássicos do anticomunismo têm aquela tensão
moral, aquele peso das decisões plenamente responsáveis e aquela high seriousness
que faltam por completo às obras de seus adversários. Se as biografias pessoais de
Marx, Lênin, Mao, Stálin e Fidel são uma galeria de baixezas (envolvem desde rituais
satanistas e crueldade para com os familiares até pedofilia), não são menos
deprimentes os perfis intelectuais de um cínico imoralista como Brecht (o homem que
disse dos acusados no Processo de Moscou: “Se eles são inocentes, merecem ser
fuzilados precisamente por isso”), de um sabujo profissional como Lukács, sempre
pronto a mudar de opinião sob comando, ou de um palhaço verboso como Jean-Paul
Sartre, sem falar nas dúzias de vigaristas acadêmicos que o famoso experimento Sokal
desmascarou definitivamente.
Há uma trágica leviandade em homens que, incapazes de transformar a si mesmos, se
dispõem a “transformar o mundo”. Que mundo pode nascer daí senão uma pantomima
sangrenta?

Efeitos da ‘grande marcha’


Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, São Paulo, 26 de outubro de 2000


A Justiça Eleitoral existe, como o próprio nome o diz, para que as eleições sejam
justas. Mas ela se compõe de funcionários públicos e, desde que apareceu neste país
um fenômeno chamado “a grande marcha da esquerda para dentro do aparelho de
Estado”, essa classe vem se tornando cada vez mais suspeita de estar interessada em
tudo, menos em eleições justas. Pois a “grande marcha” consiste em ocupar o maior
número de empregos públicos, com a finalidade de colocar o aparelho de Estado a
serviço de um partido, o qual então passa a exercer o governo sem ser governo,
desfrutando das prerrogativas do poder sem as suas concomitantes responsabilidades.
Essa operação foi calculada por seu inventor, Antonio Gramsci, para ser realizada de
maneira lenta e sorrateira, de modo que os próprios governantes acabem sendo
responsabilizados pelos efeitos globais nefastos das ações de funcionários infiltrados
na burocracia para desmoralizá-lo e enfraquecê-lo.
Um exemplo da eficácia alucinante desse procedimento foi obtido já durante o governo
militar. O regime, por ser autoritário e não totalitário, desejava a apatia política do povo
e não fez nenhum esforço para doutriná-lo segundo os valores do movimento de 1964
(o totalitarismo, ao contrário, exige doutrinação maciça). Essa atitude deixou à mercê
da oposição de esquerda a rede de instrumentos editoriais, jornalísticos e escolares de
formação da opinião pública (o que, entre outras coisas, resultou na ampliação
formidável do mercado de livros esquerdistas). Uma das poucas tentativas de
doutrinação feitas pelos militares foi a introdução, nas escolas, das aulas de “Educação
Moral e Cívica”. Mas tão displicente foi essa tentativa que o Partido Comunista se
aproveitou da oportunidade para lotar de bem treinados agitadores as cátedras da nova
disciplina, as quais assim se tornaram uma rede de propaganda comunista subsidiada
pelo governo. É claro que muitos professores ideologicamente descomprometidos
também se apresentaram para suprir as vagas, mas os militantes faziam o mesmo
como tarefa partidária, de modo que, no conjunto, o plano comunista de apropriar-se
dos recém-abertos canais de doutrinação não concorreu com uma premeditação igual
de signo ideológico contrário, mas apenas com a resistência amorfa de uma massa
politicamente indiferente e sem direção. A brutal politização marxista das escolas, que
hoje culmina nas barbaridades ideológicas impingidas às crianças pelos manuais
publicados pelo próprio Ministério da Educação, começou precisamente aí.
O mais notável foi que, ocupado em reprimir a guerrilha, o governo militar não apenas
deu rédea solta à ala “pacífica” e gramsciana da esquerda, mas até lhe concedeu
substanciais incentivos. O principal editor comunista da época jamais deixou de
receber subsídios oficiais, até que, com a abertura política, começou a ter dificuldades
financeiras e acabou vendendo sua empresa.
Jamais interrompida, rarissimamente denunciada, a “grande marcha” parece enfim ter
chegado à Justiça Eleitoral, que, nos últimos tempos, tomou pelo menos três decisões
bastante suspeitas. Primeiro, proibiu menções adversas à aliança do PT com o
movimento “gay” (v. meu artigo no JT de 20 de setembro); depois, mandou distribuir
cartazes que incentivavam o eleitor a votar “para mudar”, o que é mensagem de signo
ideológico indiscutivelmente nítido; por fim, vetou propagandas do candidato do PPB à
Prefeitura de São Paulo que apresentavam sua concorrente como adepta da causa
abortista – uma afirmação cuja veracidade é empiricamente confirmável por qualquer
um.
Cada uma dessas decisões, isoladamente, pesa pouco. Somadas – se ainda não
vierem outras –, talvez não sejam capazes de decidir uma eleição. Mas, na escala
minimalista de uma estratégia que aposta antes na somatória de milhares de ações
imperceptíveis do que nos riscos da propaganda espetacular, elas vêm engrossar o
caudal da “revolução cultural” gramsciana, a mutação sutil e persistente dos padrões
de percepção do povo brasileiro, cujos resultados, em São Paulo e em outras cidades
importantes, já estão em vias de se traduzir em resultados eleitorais superficialmente
limpos e profundamente sujos.
É impossível não ver simultaneamente um efeito da “grande marcha” na greve da
polícia pernambucana, claramente ilegal e insurrecional, e em mil e um outros fatos
que parecem isolados, mas cuja origem comum está sempre num funcionalismo
público bem adestrado para trabalhar contra quem paga seu salário.

O futuro da liberdade
Olavo de Carvalho
O Globo, 21 de outubro de 2000
Na sua última entrevista, publicada postumamente em setembro de 1997, François
Furet dizia que o maior problema da sociedade liberal-capitalista é sua dificuldade de
construir um corpo político, pois a idéia mesma que funda o liberalismo, a doutrina da
autonomia individual, resiste a encarnar-se na forma de uma estrutura política, de um
Estado. O sucesso do comunismo e do fascismo, prosseguia o historiador, deveu-se ao
fato de que, em contraste com essa incapacidade crônica do liberalismo, pensavam o
corpo social como unidade e davam a essa unidade uma expressão política também
unitária, por meio do Partido-Estado.
Esse diagnóstico fornece a melhor explicação para o fato de que no próprio seio do
liberalismo as tendências centralizadoras e estatizantes ressurgem ciclicamente sob
novas roupagens e novas denominações, algumas delas diabolicamente enganosas
porque alegam inspirar-se nos próprios ideais do liberalismo.
A constatação desse estado de coisas sugere automaticamente uma pergunta: uma
sociedade politicamente centrífuga não tem outra alternativa senão ceder de vez às
ofertas de unificação totalitária ou viver eternamente de arranjos de ocasião entre a
liberdade de jure e as concessões de facto a um crescente poder centralizador?
Furet não dá nenhuma resposta, mas passa de raspão por ela e nem percebe que é
uma resposta. A dificuldade de encontrar uma fórmula política, segundo ele,
manifestou-se da maneira mais patente naquela sucessão de crises que foi a
Revolução Francesa, ao passo que “permaneceu escondida no caso da Revolução
Americana, revolução demasiado fácil, transcorrida sob as bênçãos da religião a um
povo cristão, que não teve a necessidade de renegar um passado aristocrático e feudal
e teve ainda a sorte de encontrar uma centena de grandes homens políticos”.
Não é muito certo dizer que os americanos tiveram “dificuldade” de encontrar uma
fórmula política. O que eles tiveram foi uma profunda indiferença pela busca dessa
fórmula. O testemunho é de Aléxis de Tocqueville: meio século depois da
independência, as pequenas comunidades, núcleos da vida americana, ainda se
orgulhavam de viver à margem de toda autoridade central, unidas às comunidades
vizinhas tão-somente pelos laços de comércio, religião e cultura. A dificuldade apareceu
mais tarde e, de certo modo, artificialmente. Apareceu por iniciativa da própria classe
política, que buscou forçar a unificação jurídico-administrativa do país, condição prévia
para a consecução dos grandes planos imperiais que tinha em vista. Conforme
assinalei em meu livro “O jardim das aflições” (cinco anos antes da dupla Negri & Hardt
a quem a nossa intelectualidade símia credita essa descoberta), as ambições
centralizadoras e imperialistas germinavam no espírito dessa classe já antes mesmo da
Revolução e cresceram inteiramente por fora das aspirações da sociedade americana,
a qual, sendo indiferente ao Estado, teria de sê-lo mais ainda ao crescimento dele para
além-fronteiras.
Se essa sociedade pôde evitar os conflitos que viriam a marcar a História da França, foi
graças a três fatores. Primeiro, a religião, uma religião tanto mais arraigada na alma do
povo quanto mais livre da contaminação estatal, pois fora justamente para proteger seu
culto religioso de toda interferência governamental que os pioneiros tinham vindo para
o Novo Mundo. Essa religião, popular e extra-oficial, mas ao mesmo tempo
conservadora e apegada às tradições, dava aos americanos sua unidade moral, mais
funda e decisiva que qualquer unidade política. Em segundo lugar, a economia. Sua
base, religiosa até à medula, era a “sociedade de confiança” de que fala Alain
Peyrefitte, ou a “ethics of loyalty” enaltecida por Josiah Royce: a liberdade de comprar
e vender, fundada na comum expectativa da lealdade espontânea de todos para com
todos.
Por fim, a cultura. Até hoje a elite americana – presidentes de empresas, oficiais do
Exército, homens de letras – provém de uns 200 colégios particulares, que,
desprezando os supostos avanços tão afoitamente assimilados pela pedagogia estatal,
conservaram quase intacto o método educacional de antes da Revolução, baseado nos
“três rr” – reading, writing, arithmetics – e na leitura dos clássicos: a boa e velha liberal
education. Esse método produziu a “centena de grandes homens” que decidiu o
destino da América.
Religião livremente fiel às tradições, economia sã fundada na moral religiosa e uma
elite de homens conscientes dos valores básicos da civilização: eis os três fatores que
puderam superar a contradição entre liberalismo e estrutura política, poupando ao povo
americano os fracassos sangrentos da Revolução Francesa. Pois esta, em
contrapartida, ocorreu numa sociedade onde a religião era burocratizada e infectada de
mundanismo, a economia era centralizada pelo Estado sanguessuga e a cultura era um
festival de insanidades, obra da nova classe intelectual leviana e fútil, vaidosa e cheia
de afetado desdém pelo que estivesse acima da sua compreensão. Não podendo
apostar nem na religião, nem na cultura, nem na economia, a França arriscou tudo – e
tudo perdeu – na busca insana do corpo político perfeito.
Eis aí a lição que François Furet nos deu sem perceber: o futuro de uma sociedade
baseada na liberdade individual não depende do utópico e insaciável “aperfeiçoamento
das instituições”, mas da religião sincera, da ética nos negócios e da formação
intelectual da elite: de tudo aquilo, enfim, que é desprezado por um país louco que, à
imitação da França revolucionária, deposita todas as suas esperanças na política e no
Estado.

Da piedade ao orgulho
Olavo de Carvalho
Época, 7 de outubro de 2000
O trajeto do catolicismo de esquerda termina na beatificação do Mal
“Lênin era completamente indiferente ao sofrimento humano, que só o comovia quando
apto a sublinhar seu ódio ao capitalismo.” Quem diria que essa observação de Franz
Borkenau sobre o inimigo jurado do cristianismo viria um dia a poder aplicar-se, ipsis
litteris, aos sacerdotes da Igreja de Cristo?
No entanto, quem ler as declarações de certos bispos brasileiros nos últimos anos
haverá de reparar que, nelas, a piedade e a compaixão, longe de ocupar o centro e o
topo de seu universo de valores, estão sempre subordinadas a um projeto político,
reduzidas a instrumentos e adornos retóricos da luta de classes: não é qualquer
sofrimento que merece a atenção dessa gente – é só aquele que, exposto, sirva para
despertar o ódio e a revolta contra o governo, os ricos ou o FMI.
Isso é empiricamente verificável por simples análise textual, e basta para comprovar
que tais indivíduos não são cristãos nem mesmo num sentido remoto e figurado da
palavra. São simplesmente comunistas. São movidos pela mesma ambição milenarista
que tornava Lênin tão insensível ao padecimento alheio quanto sensível às
oportunidades de aproveitá-lo politicamente.
Compaixão é sofrer junto, é partilhar de uma dor que nem sempre se pode aliviar. É
afeição que não entra em nosso peito sem trazer consigo a lembrança de nossa
fragilidade, portanto a exigência incontornável da humildade e da paciência. Um dos
atrativos mágicos do socialismo é justamente a perspectiva de nos libertar desse
sentimento constrangedor, absorvendo-o e superando-o na síntese moral de um
serviço prestado à História. O Bem, aí, identifica-se com a vitória sobre o presente, com
a criação do “mundo melhor”. A convicção de servir ativamente a esse Bem infunde no
homem tamanho amor-próprio que ele já não precisa das virtudes passivas, restos
sombrios de uma era de submissão e impotência.
Por isso o comunista não se deixa afetar pelo sofrimento de seus contemporâneos. Ele
já lhes deu o que há de melhor: sua luta pelo futuro, sua promessa de construção do
socialismo. Que mais poderiam exigir?
Com as velhas virtudes abandonadas, vai embora também a consciência de culpa – e
o neovirtuoso, com a maior naturalidade, subtrai-se aos julgamentos humanos. Aponte-
lhe os pecados, e ele não verá em você senão a obstinação do Mal antigo que resiste
ao advento do novo Bem. Já não há outro pecado no mundo senão o “reacionarismo”:
quem está livre deste é puro por definição e eternamente imaculado e imaculável, faça
o que fizer.
É por isso que o saldo de 100 milhões de mortos e a miséria indescritível criada pelas
economias socialistas não abalam em nada a boa consciência esquerdista, imersa de
uma vez por todas numa atmosfera embriagante de autobeatificação que transfigura
em expressões supremas do Bem e do amor todos os crimes e desvarios: L’amour en
action voilà la révolution. É também por isso que com tanta desenvoltura a mais
anticristã das ideologias se adorna do encanto residual de um cristianismo em
dissolução. Esse fenômeno encontra sua cabal explicação, com séculos de
antecedência, na fórmula de Agostinho: “Todos os vícios se apegam ao Mal, para que
se realize; só o orgulho se apega ao Bem, para que pereça”.
É dos pastores desse novo culto que o rebanho foge, buscando abrigo nas igrejas
evangélicas

Ainda Sacco e Vanzetti


Olavo de Carvalho
Zero Hora (Porto Alegre), 8 de outubro de 2000
Como alguns leitores me escreveram mostrando curiosidade sobre as coisas que eu
disse do episódio Sacco e Vanzetti, vou dar aqui mais algumas informações. A
importância do caso não é só histórica. O mito Sacco e Vanzetti é um dos fundamentos
da credibilidade da esquerda no imaginário popular, e aliás foi inventado exatamente
para isso. Tal é o motivo da ira com que o “establishment” esquerdista reage a toda
investigação séria do assunto: se você deixa de acreditar na inocência ultrajada de
Sacco e Vanzetti, deixa de acreditar em muitas outras coisas em que ele precisa que
você acredite.
Quem inventou a lenda não foi propriamente Willi Münzenberg. Foi Fred Moore, um
advogado cocainômano que trabalhava para o Comitê de Defesa organizado pelos
anarquistas. Quando Willi Münzenberg se apossou do Comitê em 1925, foi com o
objetivo de angariar simpatias entre a população imigrante, acumular autoridade moral
para a esquerda e extorquir dinheiro. Ele chegou aos EUA investido dessa precisa
missão e logo percebeu o potencial do caso. O fato de os acusados serem anarquistas
e não comunistas cabia como uma luva na “política da retidão”. O processo já ia
perdendo interesse da mídia, mas Münzenberg o ressuscitou em grande estilo, fazendo
dele um espetáculo de escala mundial. Passeatas, congressos e coletas foram
organizados por toda parte, de Paris a São Paulo. Em Montevidéu a massa reunida
ameaçou matar o cônsul americano se os apelos da defesa não fossem atendidos. Até
hoje, de tempos em tempos, a máquina é reativada. Só na década de 70 apareceram,
até onde sei, dois musicais, um filme, uma tela de Ben Shahn exposta no Whitney
Museum e duas canções, uma de Woody Guthrie, outra de Ennio Morricone,
interpretada por Joan Baez.
A própria magnitude desse aparato desmascara a tese da conspiração capitalista
armada para condenar inocentes militantes. Pois a lenda da inocência ultrajada sempre
teve a seu lado toda a força do capital e da mídia, sem que nada de comparável se
erguesse em favor da versão da promotoria, que só subsistiu em livros e teses
universitárias fora do alcance da multidão.
Um desses livros foi “Tragedy in Dedham”, de Francis Russel (1962). Mas livros nada
podem contra musicais, filmes, discos e passeatas, que acabaram produzindo a
absolvição “post mortem” assinada em 1977. Em 1986 Russel voltou à carga, trazendo
uma novidade temível: o último sobrevivente do Comitê, um militante anarquista de
nome Ideale Gambera, deixara uma declaração assinada, registrada em cartório e
lacrada, para ser aberta após sua morte, que veio a ocorrer em 1982. O novo livro de
Russel, “Sacco and Vanzetti: The Case Resolved” baseava-se nesse documento, no
qual Gambera confessava que todos os membros do Comitê estavam cientes da
culpabilidade de Nicola Sacco e decidiram mentir em prol da causa.
O próprio Sacco, autor do disparo fatal contra o guarda da fábrica de sapatos em
Braintree, mentira o tempo todo, pois sabia que Vanzetti fôra apenas testemunha do
crime. Só que, para inocentar o companheiro, Sacco precisaria admitir sua própria
culpa, desmontando a farsa. O esforço de sustentar a mentira sob pressão foi a causa
das sucessivas crises psicóticas que acometeram Sacco e da tentativa de suicídio que
o levou ao hospital em 1923. Vanzetti, por seu lado, não mentiu ao alegar inocência, e
sim ao recusar-se a delatar seu execrável amigo. Foi homem digno, que se tornou
cúmplice “ex post facto” por lealdade à causa anarquista, mas também pelo sentimento
de auto-exaltação histérica que lhe inspirava inflamados discursos sobre seu próprio
heroísmo. No caso dele pode-se falar, sim, em inocência sacrificada: mas ela foi
sacrificada no altar da propaganda esquerdista.
Essas revelações, no entanto, são inócuas contra a força onipresente da indústria de
espetáculos. Também não bastou para desfazer a lenda, a partir de 1992, a abertura
dos arquivos da KGB (depositária dos documentos de suas antecessoras, GPU e
NKVD), que revelou o lado financeiro da encenação. Sacco & Vanzetti tornaram-se de
fato uma próspera empresa, mas pouco benefício receberam dela: do meio milhão de
dólares coletados pela campanha de Münzenberg ao redor do mundo entre 1925 e
1927 (uma fortuna monstruosa, para a época), o Comitê de Defesa recebeu apenas 6
mil dólares. O resto foi financiar serviços de espionagem. O sucesso da operação
elevou às nuvens a credibilidade de Münzenberg ante o governo soviético e lhe valeu a
promoção para a chefia da cadeia de jornais e estúdios de cinema comunistas em
Paris, cargo no qual ele viria a organizar a rede de “companheiros de viagem”
europeus, tornando-se virtualmente o diretor de cena no teatro de fantoches que foi a
vida intelectual européia na década de 30.

Socialismo e cara-de-pau
Olavo de Carvalho

O Globo, 7 de outubro de 2000


Um dos mais notórios apóstolos do socialismo nestas plagas, cujo nome não declinarei
para que não digam que é perseguição, gabava-se outro dia de que a esquerda
sempre foi a primeira a reconhecer o fracasso da URSS.
Quatro décadas de experiência não bastaram para me habituar à cara-de-pau
esquerdista. Ainda me surpreendo quando, batendo nela com os nós dos dedos, ouço
o inconfundível “toc-toc” da madeira velha. Como os livros anticomunistas foram
desaparecendo de circulação desde os anos 60, enquanto seus contrários abarrotavam
cada vez mais as prateleiras das livrarias (mostrando que a censura extra-oficial das
patrulhas foi muito mais persistente do que a censura governamental), é uma delícia,
para essa gente, poder falar à platéia jovem com a plena segurança de que ela ignora
tudo da história do socialismo, ou pelo menos de que só a conhece pela versão
conveniente.
Nenhum sujeito com menos de 50 anos conhece hoje os nomes de Viktor Kravchenco,
Walter Krivitsky, Elizabeth Bentley, Whittaker Chambers. Se os conhecesse, saberia a
que prodígios de falsificação e difamação organizada a esquerda pôde chegar para
ocultar a divulgação de qualquer notícia que pudesse manchar a santa imagem do
comunismo.
Kravchenco, um exilado russo em Paris, publicou em 1946 o primeiro testemunho
detalhado sobre os campos de concentração soviéticos. Imediatamente ergueu-se
contra ele o vozerio maciço da intelectualidade francesa – numa gama que ia do
comunista Roger Garaudy e seu “companheiro de viagem” Jean-Paul Sartre até as
revistas católicas “Esprit” e “Témoignage Chrétien” (pois na França os Boffs & Bettos já
abundavam naquela data) – para acusá-lo de ser um mentiroso a soldo da CIA.
Homem simples, Kravchenco enfrentou com brio a assembléia de vacas sagradas,
processando seus detratores e trazendo para diante do júri dezenas de ex-prisioneiros,
entre os quais Margarete Buber-Neumann, neta do eminente filósofo Martin Buber, que
confirmaram de ponta a ponta seu depoimento. Sartre et caterva foram condenados a
pagar indenização, mas o vencedor, velho e extenuado, morreu logo depois da batalha.
Então foi fácil para seus inimigos fazer baixar sobre o caso uma pesada e durável
cortina de silêncio. O livro de Kravchenco, “Escolhi a liberdade”, é hoje impossível de
encontrar exceto em sebos.
Whittaker Chambers e Elizabeth Bentley, ex-agentes do Comintern, descreveram as
operações secretas de que tinham participado nos EUA, deixando claro que o Partido
Comunista americano e sua rede de colaboradores informais nos meios elegantes não
eram senão uma fachada da espionagem soviética. O establishment universitário fez o
possível para desqualificar os depoimentos de ambos, ainda que confirmados pelo de
Krivitsky, um general com alto posto na NKVD que fugiu para o Ocidente e, logo após
contar o que sabia, apareceu morto a tiros num hotel em Washington, sendo sua
memória sepultada sob densas camadas de material acadêmico difamatório. As
memórias de Chambers, “Witness”, um dos mais belos livros da língua inglesa,
desapareceram dos catálogos das editoras.
Após o fim da Guerra Fria, os governos ocidentais suspenderam todo esforço
sistemático de propaganda anticomunista. A esquerda, em vez de retribuir o gesto
cavalheiresco, aproveitou-se da trégua unilateral para consolidar sua posição nos
meios intelectuais. Nas décadas de 70 e 80, a produção de teses anti-Kravchenco, anti-
Chambers etc. foi tão intensa que, na entrada dos anos 90, a doutrina de que a
esquerda americana era puramente autóctone e sem qualquer ligação significativa com
a URSS podia se considerar triunfante. Então… Bem, então veio a queda da URSS e a
abertura dos arquivos da KGB. Aí houve choro e ranger de dentes. Toneladas de
telegramas, de bilhetes cifrados, de ordens de serviço, de recibos milionários vieram à
tona. Hoje não é mais possível ocultar: cada palavra de Kravchenco, de Krivitsky, de
Bentley, de Chambers era verdade, assim como as de Robert Conquest, o primeiro
historiador científico dos Processos de Moscou, fartamente difamado entre seus pares.
O estado de espírito atual, entre acadêmicos que estudam o assunto, pode ser
resumido nos títulos de dois livros de pesquisadores que mergulharam a fundo nos
arquivos de Moscou. O primeiro é o de John Lewis Gaddis, publicado pela Oxford
University Press: “We now know”, “Agora nós sabemos”. O segundo é o de Richard Gid
Powers (Yale University Press), “Not without honor”, “Não sem honra” – o
reconhecimento de que o anticomunismo americano não foi uma sórdida campanha de
mentiras, mas um sério esforço de fazer prevalecer a verdade sob o fogo cerrado de
um exército mundial de prestigiosos vigaristas. Até ao remoto Brasil a onda de
revelações trouxe alguma luz, mostrando que o famoso “ouro de Moscou”, longamente
explicado como invenção maldosa da CIA, havia com efeito tilintado nos bolsos de
nossos grotescos heroizinhos comunistas.
Depois disso, que mais restava à esquerda senão passar um tardio e vergonhoso
recibo do fato consumado? Foi assim que em 1997 apareceu o “Livro negro do
comunismo”, que, comprovando item por item as denúncias direitistas que a esquerda
mundial desmentira desde a década de 30, ainda procurava diminuir a extensão
quantitativa do desastre mas não conseguia reduzir o número de vítimas do
comunismo para baixo da cifra dos cem milhões. Mesmo assim, o livro não saiu sem
provocar reações indignadas (tipo “Onde já se viu dar munição ao inimigo?”), nem sem
suscitar a produção de um atabalhoado e ineficacíssimo contraveneno, o qual, sob o
título “O livro negro do capitalismo”, só é levado a sério, precisamente, pela anônima
figuraça aludida no início deste artigo, cujo anonimato preservo, também, por julgar que
esse deveria ser o seu estado natural.

A mão esquerda
Olavo de Carvalho
Época, 30 de setembro de 2000
Hoje ela é poderosa porque é invisível; a outra mão ainda nem começou a se
mexer
Algo que os eleitores ignoram completamente hoje em dia é que os partidos de
esquerda não funcionam como os outros partidos. Estes se constituem exclusivamente
de seus membros inscritos, de seus funcionários, diretores e representantes no
Legislativo e no Executivo. A esquerda, além de tudo isso, conserva toda a rede de
conexões secretas que sempre formou a base da militância revolucionária, que se
expandiu formidavelmente durante os anos de clandestinidade e, após a restauração
democrática, ampliou-se mais ainda sob a proteção da mentalidade conciliadora e
preguiçosa da direita.
Para fazer face a isso, simplesmente não há direita organizada. Confiando na
soberania do processo eleitoral, os partidos conservadores ocupam-se exclusivamente
dos mecanismos ostensivos de propaganda e coleta de votos. Estão completamente
fora das áreas extra-oficiais, que foram deixadas à mercê da voracidade esquerdista,
num convite a que arrombasse uma porta aberta. Hoje eles não têm sequer militantes
para contrabalançar a gritaria da esquerda em manifestações de massa. Nunca mais,
neste país, se viu um confronto de rua, violento ou pacífico, entre grupos de direita e de
esquerda. Onde quer que apareça o povão reunido, é sob as ordens da esquerda. A
esquerda tem o monopólio das ruas, a direita faz intrigas de gabinete: o estereótipo
publicitário esquerdista tornou-se realidade.
Mas, além das organizações de massa, a esquerda tem quatro armas decisivas, todas
secretas ou discretas: a rede de espiões e informantes; a rede de disciplinados agentes
de influência na mídia e nas universidades; a rede de colaboradores bem encaixados
em postos essenciais da polícia, da Justiça, da administração pública; e a rede de
ONGs sempre prontas a dar respaldo internacional a toda palavra de ordem das
lideranças locais.
Isso permite ações de grande envergadura, cujos efeitos chovem de vários lados
simultaneamente, dando a impressão de uma harmonia espontânea das várias
correntes da opinião pública. Em cada emergência, basta acionar as redes e pronto:
daqui vem uma notícia de TV, de lá uma manifestação pública, de acolá uma peça de
teatro infantil, de mais adiante um comentário na imprensa de Paris ou de Londres, um
sermão repetido em todas as igrejas, um parecer técnico firmado por autoridade
científica sempre insuspeitíssima. Eis como se cria, sob encomenda, a fachada de
unanimidade avassaladora que parece brotar do coração do povo tão naturalmente
quanto o sol nasce ou o vento sopra. Tais operações não são, de maneira alguma,
raras e excepcionais. São o dia-a-dia de um movimento que, há mais de um século,
cultiva a prática das ações encobertas e tem no espírito de clandestinidade um dos
componentes tradicionais de seu modo de ser.
Este país não conhecerá a normalidade democrática enquanto a esquerda não abdicar
de sua eterna vocação de agir por baixo do pano sob a desculpa de que é perseguida e
coitadinha demais para ser sincera e franca. Há também a hipótese de a direita
começar a conspirar, por seu lado, para quebrar a mão invisível que hoje move os
cordões da opinião pública. Mas então restará a pergunta temível: uma das mãos
paralisará a outra ou as duas se unirão para nos estrangular?

Aviso aos espertalhões


Olavo de Carvalho

O Globo, 30 de setembro de 2000


Tempos atrás escrevi para uma revista um artigo sobre a espionagem chinesa no
laboratório nuclear de Los Alamos. O presidente Clinton mandara abafar as
investigações do FBI, ao mesmo tempo que agentes do seu Governo pressionavam
estúdios de cinema para que retirassem de circulação vários filmes, entre os quais
“Kundun”, de Martin Scorsese, e “Sete anos no Tibete”, de Jean-Jacques Annaud, que
denunciavam atrocidades chinesas no Tibete (um milhão de mortos, àquela altura). O
presidente dos Estúdios Disney confirmara, em entrevista, ter cedido às pressões,
segundo ele, para não prejudicar as negociações entre empresas americanas e o
Governo chinês.
O artigo, embora não contivesse nada de novo e se limitasse a resumir coisas que eu
tinha lido nas colunas de Thomas Sowell, David Horowitz e Joseph Farah, os melhores
comentaristas da imprensa conservadora americana (que no Brasil, é verdade,
ninguém lê), suscitou escândalo. Pessoas que achavam que entendiam do assunto
julgaram-no excessivamente venenoso porque insinuava uma cumplicidade de Clinton
com o militarismo chinês para interpretar fatos que, segundo elas, podiam ser
facilmente explicados pelos interesses comerciais dos EUA na China.
Por esse miúdo acontecimento pode-se avaliar o quanto a classe letrada brasileira
ainda está presa à visão folclórica que crê poder compreender toda a política exterior
americana pela mistura estereotipada de comercialismo e anticomunismo que talvez
tenha até bastado para caracterizá-la, grosso modo, durante um curto período no pós-
guerra, mas que hoje se tornou apenas um pretexto para pseudo-intelectuais do
Terceiro Mundo se apegarem a uma cegueira atávica.
Depois do caso de Los Alamos, muita coisa veio à tona. As ligações da atual elite
governante americana com o comunismo revelaram-se mais profundas do que o mais
paranóico dos mccarthystas podia ter suspeitado.
O vice-presidente Al Gore, por exemplo, é filho do senador Albert Gore, cuja carreira
política foi financiada pelo big boss do petróleo, Armand Hammer. Hammer, que se
gabava de ter Albert Gore “no bolso”, foi um dos capitalistas ocidentais que investiram
pesadamente na economia soviética após a revolução, ganhando muito dinheiro com a
consolidação da ditadura comunista. Amigo íntimo de Lênin, ele sempre ostentou a
imagem do puro capitalista interesseiro e sem ideologia: o protótipo mesmo do
pragmatismo apolítico que, durante o Governo Clinton, serviu de pretexto para justificar
os favores concedidos à China, inclusive a abstenção de examinar ali as violações de
direitos humanos, que em todos os demais países (inclusive o Brasil) o stablishment
americano fiscaliza com olhos de águia e denuncia com implacável rigor.
Mas desde a abertura dos arquivos soviéticos essa imagem mostrou ser apenas uma
máscara de safadeza vulgar usada para encobrir algo de verdadeiramente sinistro:
Hammer, segundo o provam documentos recém-publicados pela “Yale University
Press”, era de fato um membro oficial da rede de financiamento do Comintern. Seus
negócios eram pura fachada de uma imensa máquina de guerra soviética contra os
EUA. Um deles, um banco sediado na Estônia, fazia a lavagem de dinheiro para o
Partido Comunista americano. Outra empresa sua, a Allied Drug and Chemical
Company, foi usada para furar o bloqueio econômico, passando à URSS produtos
químicos vitais.
Armand era filho de Julius Hammer, fundador do Communist Labor Party americano e
médico condenado à prisão pela morte de uma paciente durante um aborto ilegal.
Gente finíssima. Logo após a tomada do poder pelos comunistas, pai e filho foram viver
na URSS, numa luxuosa mansão da época tzarista.
Tal é a origem dos recursos que fizeram de Al Gore um rapaz de futuro. Nos tempos
em que os EUA ligavam para a moral e para o anticomunismo, essa história bastaria
para vetar uma candidatura a juiz de paz no estado de Idaho.
Mas o exemplo de Hammer é altamente instrutivo. Onde quer que você veja um
capitalista advogando um pragmatismo aproveitador que — por acaso, por mero acaso
— favoreça interesses comunistas ao mesmo tempo que contribui para impingir à
opinião pública a imagem do capitalismo como um regime cínico, amoral e sem
escrúpulos, é melhor investigar quem é que o “tem no bolso”. Há quase um século os
comunistas possuem know-how bastante para lucrar duplamente com esse gênero de
prestidigitações: ganham dinheiro e ainda enlameiam a reputação do adversário.
Como a classe afluente no Brasil é prodigiosamente inculta e sem formação moral, é
grande, neste país, o número de empresários prósperos que se gabam de personificar
uma síntese de astúcia amoral e neutralidade ideológica que lhes parece o supra-sumo
da modernidade. Quando pensam encarnar o espírito mesmo do capitalismo, não
sabem que esse capitalismo foi inventado por Lênin e Armand Hammer. O outro
capitalismo, o verdadeiro, é aquele que, segundo Adam Smith, necessita da
honestidade como um peixe precisa de água; aquele que, segundo Alain Peyrefitte, tem
por único fundamento a confiança dos homens na lealdade de seus semelhantes.
Querer praticar esse capitalismo sem uma firme convicção moral e um firme
compromisso político é querer dirigir um caminhão em alta velocidade lendo ao mesmo
tempo um exemplar da “Playboy”.
Os que pensam que podem fazê-lo imaginam que são capitalistas, mas não são: são
os parasitas e estranguladores do capitalismo. Acreditando-se espertos, são os
fantoches com que, no teatrinho didático da propaganda comunista, os instrutores
ilustram para os aprendizes a lição de Lênin: “Incentivar a corrupção e denunciá-la.”

Palmas para Keynes


Olavo de Carvalho
Época, 16 de setembro de 2000
Ele fez do capitalismo o regime mais confortável para a esquerda
Cresci ouvindo dizer que Lord Keynes fora o salvador do capitalismo. Precisei de uma
vida inteira para descobrir que o desgraçado protegera o círculo de espiões soviéticos
em Cambridge, que a aplicação de suas teorias nos Estados Unidos dera a maior
zebra e só a guerra conseguira resgatar do naufrágio o New Deal inspirado por ele.
A mágica besta da economia keynesiana consistia em fazer do Estado o maior dos
capitalistas, colocando-o à frente de grandes projetos industriais. De imediato, tinha um
efeito formidável, porque gerava empregos. À objeção de que a longo prazo isso
resultaria numa inflação dos diabos, os impostos subiriam até o céu, os operários
seriam pagos com papel pintado e teriam de se matar de trabalhar para sustentar uma
burocracia cada vez mais voraz, Keynes respondeu com a célebre evasiva: “A longo
prazo, estaremos todos mortos”. Keynes, de fato, morreu em 1946, mas a maioria dos
americanos ainda viveu para carregar o Estado keynesiano nas costas até que Ronald
Reagan cortasse os impostos em 1981, iniciando a recuperação econômica de que os
EUA se beneficiam até hoje.
De onde vinha então o prestígio de Keynes? Vinha da esquerda. A roda de milionários,
estrelas de Hollywood e intelectuais mundanos que nos anos 30 personificavam a
moda do stalinismo chique – tal era, em substância, a platéia de seu show. Os fios
juntavam-se. Stálin havia determinado que o Partido Comunista dos EUA não cuidaria
de organizar o proletariado, mas só de arregimentar o beautiful people para subsidiar o
comunismo europeu e dar-lhe o respaldo moral de celebridades com aparência de
independentes. Daí a profusão de espiões comunistas e “companheiros de viagem” nos
altos círculos da Era Roosevelt. A ampliação da burocracia estatal era de interesse
direto para essa gente. Quando, na década de 60, a difusão das obras de Antonio
Gramsci ensinou aos esquerdistas que para tomar o poder eles não precisariam fazer
uma insurreição, bastaria que dominassem o aparelho de Estado pouco a pouco e de
dentro, gramscismo e keynesianismo descobriram que tinham sido feitos um para o
outro. De seu matrimônio espontâneo nasceu a esquerda atual. A base dela já não está
no proletariado, soberbamente conservador, mas na burocracia administrativa e
judiciária, nos organismos internacionais, nas ONGs, na imprensa, nas universidades –
e, de outro lado, no variado leque de “minorias”, as quais, recrutadas segundo os
critérios mais desencontrados (sexuais, etários, raciais, regionais), não têm em comum
senão o ressentimento sem objeto e a dependência da tutela do Estado, o que faz
delas a massa de manobra ideal para keynesianos e gramscianos.
Essa esquerda ocupa os melhores postos, come a parte mais nutritiva das verbas do
orçamento, faz as leis, impera sobre a mídia e, ao mesmo tempo, fala em nome dos
revoltados contra o establishment – os quais, precisamente, não sabem que ela é o
establishment.
Lord Keynes não salvou o capitalismo. Se o fizesse, seria odiado pela esquerda. O que
ele fez foi tornar o capitalismo o mais confortável dos regimes para a elite esquerdista,
criando a base econômica da “longa marcha para dentro do aparelho de Estado”
planejada por Gramsci. Eu também o aplaudiria, se meu sonho na vida fosse ser um
comunista chique.

Origens do comunismo chique


Olavo de Carvalho
Zero Hora, 10 de setembro de 2000
Já na década de 20, Stalin, julgando com razão que seria muito difícil controlar uma
revolução do outro lado do Atlântico, decidiu que o Partido Comunista dos EUA não
devia ser organizado com vistas à tomada do poder, mas à sustentação financeira e
publicitária do comunismo europeu. Por isso o comunismo americano sempre se
dedicou menos à organização do proletariado do que à arregimentação de milionários,
artistas de Hollywood e intelectuais de renome. Para o embelezamento da imagem
comunista, era importante que esses “companheiros de viagem” não se tornassem
membros do Partido, mas conservassem sua figura de personalidades independentes,
de modo que suas manifestações de apoio, acionadas nos momentos propícios,
parecessem iniciativas pessoais e livres, ditadas pela coincidência inocente e
espontânea entre os objetivos comunistas e os altos ideais de uma humanidade
apolítica.
O sucesso do novo estilo, que contrastava com a imagem tradicional de austeridade
proletária, fez com que fosse adotado também na Europa Ocidental, marcando toda
uma época. Mais que uma época: o “glamour” do comunismo chique perpetuou um
modelo pelo qual ainda se recorta o figurino da intelectualidade mundana em Nova
York, invejado e imitado pela macacada letrada do Terceiro Mundo: vão a uma
exposição de Sebastião Salgado e saberão do que estou falando.
Pessoas que ignoram esses fatos têm uma resistência obstinada a acreditar que
efeitos tão vastos possam ter sido planejados por uma elite discreta, quase secreta.
Preferem apegar-se à crença tola de que tudo acontece espontaneamente – crença
que repousa na hipótese de um fluido metafísico em vez da ação concreta de homens
atentos e espertos sobre homens distraídos e tolos. Mas a propagação espontânea
tem, sim, algum papel. Os técnicos do Comintern, contando com a facilidade com que
modas e cacoetes se espalham entre intelectuais mundanos, usavam calculadamente
esse efeito e o denominavam “criação de coelhos”.
A própria elite às vezes tem simplesmente sorte. Ninguém poderia prever que o estilo
do comunismo norte-americano iria sobreviver à queda de prestígio do regime
soviético, perpetuando-se sob a forma da “New Left”, que nos anos 60 pôde continuar
trabalhando pelo totalitarismo sem que sua bela imagem de independência fosse
contaminada pelo que se passava na URSS. Mas às vezes também dá azar. Os dois
principais responsáveis pela criação do comunismo chique, Karl Radek e Willi
Münzenberg, terminaram mortos por ordem de Stalin, tão logo o sucesso mesmo da
operação os tornou inúteis. A idéia inicial fora concebida por Radek, um dos pioneiros
da Revolução Russa, e realizada sob a direção de Münzenberg, um gênio da
propaganda.
Para vocês fazerem uma idéia da eficiência diabólica de Münzenberg, basta mencionar
que foi ele o criador do mito Sacco e Vanzetti. Décadas depois do julgamento,
demonstrada mil vezes a culpa de um e a cumplicidade de outro no assassinato de um
homem desarmado que implorava por piedade, desmascarada a trama publicitária
pelas confissões de membros da equipe de Münzenberg, o que ainda resta na
imaginação popular é a lenda dos operários inocentes sacrificados por uma sórdida
trama capitalista.
“Expert” em farsas duráveis, Münzenberg foi ainda o inventor de outros instrumentos
típicos da propaganda comunista que de tempos em tempos são novamente retirados
da cartola e sempre funcionam, como o “manifesto de intelectuais”, a passeata de
celebridades e, “last not least”, os julgamentos simulados, eleições simuladas,
plebiscitos simulados. A CNBB, portanto, tem por quem puxar. O estilo é o homem.
Münzenberg foi também o criador daquilo a que chamava “política da retidão”. É um
elemento fundamental do comunismo chique: consiste em não bater de frente na
sociedade democrática, mas em parasitar o prestígio de seus ideais morais, fazendo
com que “companheiros de viagem” criteriosamente selecionados posem como seus
mais representativos porta-vozes. Assim o apelo a esses ideais pode ser modulado e
dirigido conforme os interesses de uma estratégia que sutilmente, e como quem não
quer nada, vai levando a sociedade cada vez mais longe deles e mais perto da
revolução comunista. Nossas campanhas da “ética” e “contra a miséria” foram apenas
a aplicação dessa técnica: nem elevaram o padrão moral da nação nem diminuíram a
pobreza, mas criaram a atmosfera na qual, hoje, o treinamento de guerrilheiros é
financiado por verbas do governo sem que isto suscite o menor escândalo. O espírito
de Willi Münzenberg continua baixando no terreiro político brasileiro.

Astúcias Indígenas
Olavo de Carvalho
Jornal da Tarde, 31 de agosto de 2000
Os índios que anarquizaram os festejos de 500 anos de Brasil e foram reprimidos pela
polícia estão exigindo uma indenização bilionária. Um dos pretextos é: “danos
culturais”. Mas quanto o Estado deveria cobrar deles pelo dano que, a serviço de
potências estrangeiras, infligem à cultura nacional ao negar publicamente a
legitimidade da existência do Brasil enquanto nação? Sim, quando proclamam que o
território é deles, que todos os que viemos nas caravelas ou nas levas de imigrantes
somos intrusos e usurpadores, o que reivindicam é a reintegração de posse do maior
latifúndio que já existiu na face da Terra, e a conseqüente dissolução do Estado
indevidamente instalado na sua propriedade por um bando de posseiros, arrivistas e
criminosos.
Um Estado que aceita discutir nesses termos não precisa nem mesmo ser destruído:
ele já acabou. Pois o protesto dos índios não se voltou contra o governo, contra o
regime, contra esta ou aquela lei: voltou-se, com toda a força de uma irracionalidade
fingida, contra a civilização brasileira no todo – excetuado o elemento indígena – e
portanto contra a existência do organismo estatal que é a cristalização jurídica e
política da sua obra de cinco séculos. Que o façam de maneira acentuadamente
paradoxal, abrigando-se à sombra das leis de um Estado soberano para negar a
soberania do mesmo Estado, é um curto-circuito lógico que poderia ser atribuído à
ingenuidade pretensiosa de povos ainda mal despertos para as realidades complexas
da civilização moderna, se não fosse antes um nonsense planejado, obra da astúcia
dos estrategistas europeus e norte-americanos que os orientam, todos eles bem
treinados na técnica de suscitar crises pela estimulação contraditória da opinião
pública, na arte de desarmar a reação de um povo pelo choque dos sofismas
paralisantes. Criar “movimentos sociais” no Terceiro Mundo é hoje uma profissão
especializada, ensinada a alunos europeus e norte-americanos em cursos de alto nível
nos organismos internacionais. Nenhuma, absolutamente nenhuma reivindicação ou
agitação se elevou neste país nos últimos vinte anos sem ser planejada por
engenheiros sociais estrangeiros, subdiada por fundações e governos estrangeiros,
respaldada pela mídia estrangeira e enquadrada meticulosamente numa estratégia
global em que os interesses dos reclamantes entram apenas como gatilhos para
desencadear transformações que vão muito além do que esses enfezados marionetes
possam imaginar.
Cada um desses movimentos é pura chantagem, calculada para desferir um golpe
mortal na soberania do Estado brasileiro. É mais um passo na marcha incessante e
brutal de centralização, onde um poder maior, com pretensões ao monopólio, dissolve
os poderes intermediários com a ajuda dos grupos menores, descontentes com a
situação local.
Já escrevi, outrora, em defesa das culturas indígenas. Mas, hoje, discutir a justiça ou
injustiça da causa indígena em abstrato e fora do contexto político mundial é cair num
engodo lógico, num jogo de diversionismo hipnótico. Ninguém que queira justiça
começa por negar a autoridade do próprio tribunal ao qual recorre. O que os índios e
seus mentores estão exigindo não é justiça: é a destruição do tribunal.
A manifestação ocorrida nos festejos tem as marcas inconfundíveis de uma operação
planejada por cientistas comportamentais para gerar artificialmente um
constrangimento sem saída: permiti-la seria dar caráter oficial à negação da
legitimidade do Estado brasileiro; reprimi-la é expor-se a humilhações na mídia
internacional e a chicanas jurídicas como esse grotesco pedido de indenização.
Os índios, um dia, foram povos indefesos, que só sobreviveram à derrota graças à
generosidade do vencedor, generosidade que eles próprios jamais tiveram para com as
tribos que guerreavam. Hoje, eles são uma arma temível nas mãos das potências que
regem o mundo, e aproveitam-se dessa situação para tirar vantagens abusivas e
destruir o Estado que os acolheu e lhes deu direitos especiais. A malícia de sua
estratégia revela que já não têm mais nada do pretenso caráter “primitivo” que um dia
justificou a promulgação desses direitos: alcançaram a maioridade, tornaram-se um
grupo político moderno, astucioso e perigoso, aliado de interesses imperialistas e
inimigo jurado da nação brasileira.

A oportunidade dos liberais


Olavo de Carvalho
Zero Hora (Porto Alegre), 13 de agosto de 2000
A esquerda tornou-se hegemônica porque sabe para onde quer ir e sabe fazer as
pessoas pensarem que, ajudando-a a chegar lá, estão indo para onde elas próprias
querem. A direita só sabe o que não quer e, mesmo quando luta pelos mais óbvios
interesses do povo, dá a impressão de estar agindo no interesse próprio. Isto acontece
porque ela própria está enfeitiçada pelo discurso esquerdista e, quando abre a boca
para se defender, só sabe repetir palavras que a acusam.
Todo comunista sabe que, no vocabulário da sua ideologia, a expressão “luta pela
democracia” tem um significado específico, bem diferente do que tem na linguagem
corrente: designa uma etapa do processo revolucionário, a ser superada
imediatamente após sua consecução e transformada o mais rápido possível em
comunismo explícito. Mas, precisamente, as outras pessoas não sabem disso — e,
quando se aliam aos comunistas no combate por um objetivo qualquer, por exemplo
“direitos civis”, não fazem a mínima idéia de que seus esforços para a obtenção dessa
meta específica já foram enquadrados na estratégia mais vasta de seus aliados, à qual
acabarão servindo sem perceber.
Por isso mesmo, na luta pela redemocratização do Brasil, o retorno à normalidade
democrática foi apenas uma parte dos objetivos alcançados — a parte menor e
secundária. A maior e principal foi a hegemonia comunista do processo. Pelos frutos os
conhecereis: hoje a esquerda detém não somente noventa por cento do eleitorado nos
grandes centros, mas domina a máquina de denúncias e investigações com que
destrói, com provas ou sem provas, a reputação de quem a incomode. Em resultado, a
guerra contra a corrupção não diminuiu a corrupção em nada, mas fez subir até às
nuvens o poder de manipulação esquerdista da opinião pública. Do mesmo modo,
campanhas sentimentalóides contra a miséria — feitas com o único propósito de
absorver na estratégia esquerdista o aparato nacional de assistência social — não
atenuaram em nada a pobreza, mas abriram perspectivas deliciosamente ilimitadas
para a dominação moral das consciências pelo “establishment” esquerdista. Pelos
frutos os conhecereis.
Para fazer face ao assalto esquerdista generalizado, a direita liberal não conta senão
com um recurso ideológico específico e limitado: a apologia da economia de mercado.
Os liberais são tão eficientes e valorosos na luta por esse item único quanto são
omissos e indefesos em tudo o mais. Ante o avanço simultâneo do adversário em todas
as frentes, apegam-se à defesa de uma cidade, de um bairro, de um edifício, com o
desespero de quem deu a guerra por perdida e já não deseja salvar senão esse último
símbolo da sua honra guerreira.
Para complicar, a insistência exclusiva nesse item joga os liberais contra outras
correntes de opinião que, sendo tão anticomunistas quanto eles, identificam liberalismo
com dominação globalista e olham com temor e desconfiança a possibilidade de maior
ingerência estrangeira nos assuntos nacionais. Entre o comunismo que abominam e o
neoliberalismo que temem, essas correntes estão hoje isoladas e sem ação. Como
nelas há muitos militares, os comunistas já perceberam sua importância vital e fazem
esforços diuturnos para conquistá-las. Mas não o conseguiram ainda. Para os liberais
ganharem a simpatia delas, basta que saibam distinguir entre o autêntico liberalismo
que defendem e a fraude do “neoliberalismo” imperialista, intenvencionista (e, no fundo,
socialista) dos srs. Clinton e Blair. O “establishment” globalista mundial está hoje
francamente à esquerda. Essa é a melhor oportunidade para um diálogo entre liberais
e nacionalistas, de modo a impedir que estes acabem colaborando, por falta de opção,
com o velho jogo stalinista de vender o comunismo com embalagem de nacionalismo.
Eu seria o último a desejar a extinção da esquerda ou a sua redução à completa
impotência. Já vi esse filme e não gostei. É preciso que exista uma esquerda, que
exista uma direita, que ambas consintam em jogar o jogo democrático do rodízio
eleitoral e que ninguém se utilize da democracia como meio provisório de chegar a…
alguma outra coisa. Não tem sentido falar em estabilidade democrática e ao mesmo
tempo fazer da democracia um trampolim para outro tipo de regime, sobretudo para
aquele que, eufemisticamente, se autodenomina “democracia popular”. O que não
pode continuar é essa situação aberrante em que só um dos lados fala, só um dos
lados acusa, só um dos lados faz e acontece e, ao mesmo tempo, esse mesmo lado se
queixa e se faz de coitadinho, choramingando contra o “discurso único”, como se o
único discurso em circulação, fora do estreito círculo dos profissionais da economia,
não fosse o dele próprio.
Independentemente de decidir se no Brasil do futuro cada um de nós ficará com a
direita, com a esquerda ou fora de ambas, fortalecer a direita liberal é hoje o dever
número um de quem, tendo conhecido a ditadura neste país ou em qualquer outro,
sabe quanto vale a democracia.

Nacional-masoquismo
Olavo de Carvalho
Época, 12 de agosto de 2000
O nacionalismo brasileiro quer
conservar os anéis e sacrificar os dedos
“Pseudomorfose” é formação simulada. Na filosofia de Oswald Spengler, designa a
cultura que começa a tomar impulso próprio, mas depois se revela nunca ter passado
de apêndice, de sombra de uma vizinha mais forte.
O Brasil é uma pseudomorfose da cultura americana? Não sei, mas, se algo pode ser
alegado em favor dessa hipótese, está justamente no modo brasileiro de ser
nacionalista. É no estilo de nossa auto-afirmação nacional que se vêem com nitidez os
traços de um espírito servil e dependente, que quanto mais clama por autonomia mais
o faz nos termos ditados de fora, e quanto mais se remexe mais aperta o laço que o
prende.
A política de dominação global age em quatro frentes: a abertura econômica, a
implantação de padrões culturais, a conquista da hegemonia territorial e o
enfraquecimento divisionista dos Estados nacionais. Dos quatro pontos, o menos
perigoso é o primeiro: a experiência mundial já provou que qualquer país pode
beneficiar-se da globalização econômica sem perder nada da identidade cultural e da
soberania territorial e política. Mas nosso nacionalismo oferece obstinada resistência à
penetração estrangeira no campo econômico e se abre gostosamente, deleitosamente,
canalhamente a ela em tudo o mais. Por exemplo, quem não viu, ainda há pouco, as
mesmas pessoas que fervem de indignação ante a venda de empresas estatais irem
engrossar o cordão do indigenismo importado, que além de lutar pela transferência de
fatias inteiras de nosso território para a administração de ONGs estrangeiras ainda tem
a impérvia cara-de-pau de negar, em nome de direitos ancestrais recém-inventados em
Nova York e Genebra, a unidade da cultura brasileira e a legitimidade mesma da
existência do Brasil enquanto nação? Nada neste mundo pode explicar que uma ou
duas ou 100 empresas públicas sejam bens tão mais vitais e mais dignos de ser
preservados que a unidade cultural, o território e a soberania juntos.
Na mesma linha de conservar os anéis sacrificando os dedos, os apóstolos de estatais
não vêem nada de mais em que parcelas da administração pública sejam transferidas
para ONGs financiadas do Exterior, como se vem fazendo com o “serviço civil”, que
anualmente porá a mão-de-obra gratuita de milhões de jovens brasileiros à disposição
de entidades notoriamente ligadas a interesses estrangeiros.
Pior ainda, esses mesmos sujeitos estão na linha de frente do combate destinado a
destruir o modelo brasileiro de integração racial para implantar, em lugar dele, o
americano. O modelo brasileiro não é perfeito, mas é, até agora, o melhor do mundo.
Ele consiste em dissolver as diferenças de raça no convívio diário, no sincretismo
cultural e na miscigenação, com um mínimo de interferência estatal no processo. O
americano constitui-se de grupos separados, cada um fortemente impregnado de sua
identidade racial, convivendo sob a proteção do Estado-bedel e de uma parafernália de
leis que fomentam a suspeita de todos contra todos, na base cínica do dividir para
reinar. Trocar aquele por este é um despropositado sacrifício masoquista, é importar o
problema em vez de exportar a solução.
Com nacionalistas como esses, quem precisa de imperialistas?
A escolha fundamental
Olavo de Carvalho
O Globo, 12 de agosto de 2000
Para o cristianismo, o judaísmo, o islamismo e todas as tradições espirituais do mundo,
cada vida humana tem um propósito, um sentido, que permanece amplamente invisível
às pessoas em torno, que para o próprio indivíduo só se revela aos poucos, e que só
se esclarecerá por completo quando essa vida, uma vez encerrada, puder ser medida
na escala da suprema perfeição, da suprema sabedoria, da suprema santidade. Essa
escala é essencialmente a mesma para todas as épocas e lugares, e se torna
conhecida pelos exemplos dos santos e profetas – no cristianismo, o exemplo do
próprio Deus encarnado. O problema humano fundamental é descobrir o meio de cada
um se aproximar desse ideal unitário através da variedade de suas expressões
simbólicas e doutrinais, bem como das contradições e mutações da vida mesma.
Para as modernas ideologias revolucionárias, a vida individual não tem nenhum sentido
e só adquire algum na medida da sua participação na luta pela sociedade futura. É a
consecução desse objetivo que servirá de medida para a avaliação dos atos
individuais. Atingida a meta, tudo o que tenha concorrido para “apressá-la”, mesmo o
pecado, a fraude, o crime e o genocídio, será resgatado na unidade do sentido final e
portanto considerado bom. O que contribua para “atrasá-la” será mau. O mal e o bem
resumem-se, em última análise, no “reacionário” e no “progressista”. No entanto, como
não há prazo predeterminado para o desenlace salvador, o “apressar” e o “atrasar” têm
sentidos ambíguos, que se alternam conforme as contradições do movimento histórico.
Um déspota, um tirano, o supra-sumo do reacionarismo para seus contemporâneos,
pode se tornar retroativamente progressista caso se descubra que contribuiu, “malgré
lui”, para acelerar um processo que desconhecia por completo. Numa outra fase, o
julgamento pode inverter-se, conforme as novas interpretações de “atraso” e
“aceleração” pertinentes no momento. Luís XIV, Ivan o Terrível, Robespierre ou Stalin já
passaram várias vezes do céu para o inferno e vice-versa.
Os modelos de conduta do homem espiritual formam um panteão estável, um
patrimônio civilizacional adquirido, onde cada indivíduo pode buscar a inspiração que o
habilite a agir bem, independentemente das convicções reinantes na sua época e no
seu meio, ao passo que os modelos do revolucionário são entidades móveis que nada
valem sem a aprovação do consenso contemporâneo. Joana d’Arc e Francisco de
Assis puderam ser santos contra a autoridade coletiva. Mas ninguém pode fazer a
revolução contra o consenso revolucionário.
Na perspectiva espiritual, a meta da existência é cada um buscar sua perfeição na vida
de agora, fazendo o bem a pessoas de carne e osso que podem lhe responder e julgá-
lo, dizendo se foi um bem de verdade ou um falso bem que só lhes trouxe o mal. Na
ótica revolucionária, o que importa é “transformar o mundo” e beneficiar as gerações
futuras, pouco importando o mal que isto custe à geração atual. O destinatário do bem
está portanto ausente e não pode julgá-lo, exceto através de seus autonomeados
representantes, que são precisamente aqueles mesmos autonomeados benfeitores.
Na visão tradicional, os exemplos de perfeição são muitos e sua conduta está
meticulosamente registrada nos livros sacros e nos depoimentos dos crentes. Já a
sociedade perfeita nunca existiu e o único modelo à nossa disposição é uma hipótese
futura, cuja descrição idealizada é em geral muito vaga e alegórica, quando não
completamente evasiva.
“Tudo o que sobe, converge”, dizia Teilhard de Chardin. O estudo das religiões
comparadas mostra a profunda unidade e coerência das grandes tradições no que diz
respeito às virtudes essenciais. Por isto os profetas judeus são modelos de perfeição
para os cristãos, os sábios hindus para os muçulmanos, e assim por diante. Já na
esfera revolucionária, quanto mais um homem encarne a sua própria ideologia com
perfeição, como Lênin e Stalin, Hitler e Mussolini, tanto mais ele se torna odioso e
abominável aos seguidores de outros partidos. No máximo pode haver entre eles a
mútua admiração invejosa de quem desejaria apropriar-se dos talentos do inimigo para
mais facilmente poder destruí-lo. Não há virtude fora da fidelidade partidária.
As virtudes do homem espiritual são explícitas e definidas, têm um conteúdo conceitual
identificável: piedade, generosidade, sinceridade, etc. As do revolucionário são
ocasionais, utilitárias e instrumentais. Na terminologia de Max Scheler, a ética do
religioso é “material”, visa a condutas e atos específicos; a do revolucionário é “formal”,
reduz-se a uma equação genérica de fins e meios. Por isso o homem espiritual,
conhecendo o conceito da conduta certa, pode se guiar a si mesmo, fazendo o bem de
acordo com a sua consciência sem ter de seguir ninguém. Já o revolucionário só pode
estar na conduta certa quando age de acordo com a “linha justa” do movimento
revolucionário tal como esta é formulada, a cada etapa, pela liderança e pelas
assembléias. A possibilidade de conduta independente é aí nula e autocontraditória.
Não existe a mínima possibilidade de acordo entre as éticas das grandes tradições
espirituais e a mentalidade revolucionária de qualquer espécie que seja. Um dia cada
homem terá de escolher. Aqueles que escamoteiam a fatalidade inescapável dessa
escolha, buscando embelezar as ideologias revolucionárias com frases copiadas das
tradições espirituais, fazem isso porque, na verdade, já escolheram. Como dizia
Simone Weil, estar no inferno é imaginar, por engano, que está no céu.

URSS

O comunismo dos imbecis


Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 14 de maio de 2015
Definir o comunismo como “estatização dos meios de produção”, como o fazem o sr.
Marco Antonio Villa e seus admiradores, que por incrível que pareça existem, é
descrevê-lo pelo sistema econômico ideal que lhe serve de bandeira e slogan, e não
pela sua realidade de movimento político e intelectual com um século e meio de uma
história tremendamente complexa.
É explicar fatos históricos pela definição de uma palavra no dicionário, procedimento no
qual nenhuma pessoa com mais de doze anos de idade tem o direito de confiar.
Procedimento que se revela ainda mais pueril e inaceitável quando a definição é usada
como premissa de um raciocínio (ou raciossímio, diria o Reinaldo Azevedo) segundo o
qual um partido que não prega ou pratica ostensivamente a estatização dos meios de
produção não pode ser comunista de maneira alguma.
Pois, ao longo de toda a sua história, os grandes partidos comunistas do mundo, a
começar pelo da própria URSS, preferiram quase sempre deixar essa meta hipotética e
longínqua num discreto segundo plano, ou omiti-la completamente, concentrando-se
em objetivos concretos mais imediatos que pudessem compartilhar com outros partidos
e forças, ampliando a base das suas alianças possíveis.
Característica, nesse sentido, foi a política do Front Popular, que na década de 30
angariou apoio mundial para a URSS na base de um discurso “antifascista”, onde tudo
soava como se nenhuma incompatibilidade tivesse existido jamais entre o regime
comunista e os interesses da burguesia democrática dos países ocidentais.
O velho Partido Comunista Brasileiro de Luís Carlos Prestes sempre falou muito menos
em estatizar a economia do que em “defender os interesses nacionais” e a “burguesia
nacional”, supostamente ameaçados pelo capital estrangeiro.
No período da luta contra a ditadura militar, então, não se ouvia um só comunista, fora
do meio estudantil enragé ao qual pertencia o sr. Villa, pregando estatização do que
quer que fosse: só clamavam por “democracia”.
Mao Dzedong, no início da carreira, falou tanto em patriotismo antijaponês e foi tão
discreto no que diz respeito ao fim do livre mercado, que superou Chiang Kai-Shek nas
simpatias do governo americano, ante o qual fez fama de “reformador agrário cristão”.
Mesmo quando se fala em estatização, na maior parte dos casos ela é sempre parcial
e aplicada de tal modo que não fira indiscriminadamente os interesses da burguesia e o
direito a toda propriedade privada dos meios de produção, mas pareça mesmo
favorecê-los a título de “aliança entre Estado e iniciativa privada”. Mesmo no Chile de
Allende foi assim.
Sendo, malgrado todas as suas mutações e ambiguidades, um movimento organizado
de escala mundial, o comunismo sempre comportou uma variedade de subestratégias
locais diferenciadas, as quais, não raro, se pareciam tanto com um comunismo de
dicionário quanto as intrigas diplomáticas do Vaticano se parecem com a salvação da
alma.
A famosa “solidariedade comunista internacional” consiste precisamente numa bem
articulada divisão de trabalho, de modo que as ações dos partidos comunistas locais
contribuam para o sucesso mundial do movimento pelas vias mais diversas e às vezes
até incompatíveis em aparência.
Nos anos 30 do século passado, Stálin ordenou que o Partido Comunista Americano se
abstivesse de tentar organizar a militância proletária e, em vez disso, se concentrasse
em ganhar o apoio de bilionários, de intelectuais célebres e do beautiful people da
mídia e do show business, na base de apelos ao “pacifismo”, aos “direitos humanos” e
à “democracia”, de modo que o discurso comunista se tornasse praticamente
indistinguível dos ideais formadores do sistema americano.
Nessa perspectiva, arregimentar militantes e intoxicá-los de doutrina marxista era muito
menos importante do que seduzir possíveis “companheiros de viagem”, pessoas que,
sem ser comunistas nem mesmo em imaginação, pudessem, nos momentos decisivos,
colaborar com as iniciativas do Partido e com os interesses da URSS, usando,
justamente, da sua boa fama de insuspeitas de comunismo.
Foi por isso que o Partido, na América, sempre foi uma organização minúscula, dotada
de um poder de influência desproporcional com o seu tamanho.
O objetivo dessa estratégia era não só criar em torno do comunismo uma aura de
humanismo inofensivo, mas também fazer do capitalismo americano a fonte de dinheiro
indispensável à sustentação de um movimento político sempre deficitário quase por
definição.
A operação teve sucesso não só em desviar para a URSS e para o PCUSA quantias
vultuosas provenientes das grandes fortunas privadas, mas em transformar o próprio
governo americano no principal mantenedor e patrono do regime soviético, que sem
isso não teria sobrevivido além dos anos 40.
Quanto a este segundo ponto, é evidente que simples idiotas úteis e agentes de
influência não poderiam ter obtido tão esplêndido resultado; eles serviram apenas para
dar suporte moral e político à ação de agentes de interferência, profissionais de
inteligência altamente treinados, cuja infiltração maciça nos altos postos do governo de
Washington, como se sabe hoje, foi muito além do que poderia ter calculado, na época,
o infeliz senador Joe McCarthy.
Por todos esses exemplos vê-se como é imbecil esperar que um partido saia pregando
a “estatização dos meios de produção” para só então notar que ele é comunista.
O próprio PT já deixou clara, para quem deseje vê-la, a sua quádrupla função e tarefa
no movimento comunista internacional:
1. No plano diplomático, alinhar o Brasil com o grande bloco antiocidental encabeçado
pela Rússia e pela China. O BRICS não é nada mais que uma extensão embelezada
da Organização de Cooperação de Shanghai, que já expliquei aqui em 2006 (leia aqui).
2. Na esfera de ação continental, salvar e fortalecer o movimento comunista, como bem
o reconheceram as Farc, mediante a criação do Foro de São Paulo e de um sistema de
proteção que permita a transfiguração da narcoguerrilha, ameaçada de extinção no
campo militar, em possante e hegemônica força política e econômica.
3. Por meio de empréstimos ilegais e da corrupção, usar os recursos do capitalismo
brasileiro para salvar os regimes comunistas economicamente moribundos, como os de
Cuba e de Angola.
4. Na política interna, eliminar as oposições, aparelhar o Estado e estabelecer de
maneira lenta, discreta e anestésica um poder hegemônico indestrutível.
Quem tem toda essa complexa e portentosa missão a cumprir há de ser louco de sair
por aí pregando “estatização dos meios de produção” para assustar e pôr em fuga a
burguesia local, sem cuja colaboração o cumprimento da tarefa se torna impossível?
Na perspectiva do sr. Marco Antonio Villa, nada disso é atividade comunista, já que
falta “estatizar os meios de produção”.
A desproporção entre a complexidade do fenômeno comunista e a estreiteza mental de
um autor de livrinhos compostos de recortes de jornal já é patética por si, sem que ele
precise ainda enfatizá-la afetando sua superioridade de portador de um diploma ante
os que, sem diploma nenhum, conhecem a matéria porque a estudaram.
Como eu mesmo me incluo entre estes últimos, sendo tão carente de estudos formais
quanto Machado de Assis, João Ribeiro, Capistrano de Abreu, Luís da Câmara
Cascudo, Manuel Bomfim, José Veríssimo e outros construtores maiores da cultura
brasileira, deve parecer mesmo revoltante ao sr. Villa que eu tenha acumulado mais
honrarias acadêmicas, prêmios literários, citações em trabalhos universitários e
aplausos de grandes intelectuais de três continentes do que ele, com seu canudinho da
PUC e seu currículo mirim, poderá angariar em trinta reencarnações, caso existam.
Entre os anos 40-70 do século passado, a idolatria dos diplomas, tão característica da
Primeira República e tão bem satirizada nos romances de Lima Barreto, parecia uma
doença infantil finalmente superada numa época em que a cultura brasileira ia
vencendo o subdesenvolvimento e igualando-se às de países mais ricos.
Um quarto de século de “Nova República”, e sobretudo doze anos de PT no poder,
trouxeram-na de volta com força total, numa espécie de compensação ritual que,
sentindo vagamente no ar a ausência da alta cultura desfeita em pó, busca apegar-se
supersticiosamente aos seus símbolos convencionais, como o viúvo inconsolável que
dorme agarrado a um chumaço de cabelos da falecida, para trazê-la de volta.
Não é de todo coincidência que entre os sacerdotes desse culto caquético se
destacassem justamente alguns daqueles que minutos antes perguntavam “Diploma
para quê? ” e buscavam persuadir a nação de que a fé democrática trazia como
corolário a obrigação de eleger um semianalfabeto presidente da República.
Uma vez que o Partido domina as universidades, é indispensável que elas
monopolizem a atividade cultural, marginalizando e achincalhando toda criação ou
pensamento independente.
Se o sr. Villa colabora gentilmente com esse empreendimento, não há nisso nada de
estranho, já que ele se empenha também em acobertar as atividades do Foro de São
Paulo, reduzindo todo combate antipetista a uma “luta contra a corrupção” imune ao
pecado mortal de anticomunismo.
Qualquer que seja o caso, num país em que cinquenta por cento dos formandos das
universidades são comprovadamente analfabetos funcionais, todo portador de um
diploma deveria pensar duas vezes antes de exibi-lo como prova de competência, para
não falar de superioridade.

Mensagem do passado
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 2 de abril de 2015
A Editora Boitempo publicou em tradução o romance de Leonardo Padura, “El Hombre
que Amaba a los Perros”, com o título de “O Homem que Amava os Cachorros”.
Eu teria preferido “Cães”, porque, ao lidar com uma língua irmã da sua própria, o
tradutor deve ter o bom gosto e bom senso de escolher, seja palavras de igual raiz com
significado idêntico nas duas línguas, seja palavras que inexistem no idioma original,
jamais palavras idênticas com significado diverso. “Cachorro”, em espanhol, é “filhote”.
Talvez o tradutor achasse que “cão” é termo do vocabulário “burguês”.
Mas o problema maior não é esse. Dedicada eminentemente à promoção de ideias e
autores comunistas, a equipe da Boitempo mostrou que é capaz de traduzir e divulgar
um dos grandes romances do século, ganhando algum dinheiro com ele, sem se deixar
afetar pelo seu conteúdo no mais mínimo que seja.
É um caso de insensibilidade literária que raia a psicastenia. Pois raramente, no
mundo, o comunismo, não nos detalhes do imensurável horror físico que produziu, mas
nas profundezas da deformidade psicopática que o inspira, foi descrito em termos tão
cruamente realistas como nesse livro: é uma imagem do inferno ou, para usar as
palavras do autor, algo que se parece “antes a um castigo divino do que a uma obra de
homens”.
Com base em farta documentação, só complementando-a com a especulação
imaginativa nos pontos onde isso é indispensável, o livro conta a história dos últimos
anos de vida de Leon Trotski e do seu assassino, Ramon Mercader, paralelamente à do
narrador, um escritor cubano reduzido à impotência criadora pelas imposições da
burocracia castrista empenhada em tudo rebaixar e mediocrizar.
Os três são homens que apostaram tudo no socialismo e aos quais só resta, no fim da
história, a consciência amarga da “vida inteira que poderia ter sido e que não foi”.
Embora a maior parte do enredo se passe no tempo de Stalin, o romancista não apela
ao expediente costumeiro de trocar “comunismo” por “stalinismo”, usado para
branquear a imagem do regime nas épocas subsequentes, mas mostra com muita
clareza que, de um modo ou de outro, a mistura de violência assassina e mendacidade
alucinante que caracterizou o stalinismo se conservou em ação em todos os países
comunistas, muitas décadas depois da morte do ditador.
Padura, que nasceu e ainda mora em Cuba, publicando seus livros no México, viveu
tudo isso de perto e colocou no personagem do narrador de “El Hombre que Amaba a
los Perros” muito da sua experiência pessoal.
Hoje os brasileiros se espantam ante um governo que lhes rouba bilhões de reais
enquanto, com a maior cara dura, continua posando de paladino da moralidade, e,
rejeitado por noventa por cento da população, ainda se faz de porta-voz do “povo”
contra a “elite”.
Se conhecessem algo da história do comunismo, como a trama urdida por Stalin para
dar cabo de Trotski, entenderiam que a mendacidade psicopática, em proporções tão
vastas que raiam o diabolismo puro e simples, não é uma invenção do PT: é inerente à
mentalidade comunista em todas as épocas e lugares.
Os capítulos finais deste livro mostram o próprio assassino de Trotski, Ramon
Mercader, consciente de haver jogado sua vida fora numa farsa demoníaca, concebida
para fazer de Trotski, então um exilado sem dinheiro e quase sem seguidores, chutado
de cá para lá por todos os governos do mundo, o todo-poderoso líder de uma
conspiração global para derrubar o governo soviético com a ajuda simultânea – porca
miséria! — dos nazistas e dos americanos.
Durante décadas, Mercader foi adestrado para odiar Trotski com todas as suas forças,
só para descobrir, depois, que na realidade nada sabia contra ele além de balelas e
invencionices absurdas e antinaturais, injetadas em sua cabeça com violência
comparável à do golpe de picareta no crânio com que ele deu fim à existência da sua
vítima.
Após ter ido parar na cadeia num dos muitos expurgos que eram rotina na política
soviética, o próprio agente secreto que treinou e disciplinou a mão assassina de
Mercader tem, na velhice, a mesma consciência de ter servido apenas aos caprichos
insensatos de um ditador enlouquecido pelo medo, que não se acalmaria antes de
haver eliminado da face da Terra todos os seus inimigos reais, hipotéticos, virtuais ou
totalmente imaginários.
Especialmente significativa é uma personagem secundária, a mãe de Mercader,
Caridad. Mulher frígida que o marido burguês corrompe para ver se desperta nela o
desejo sexual, ela se entrega então a uma vida devassa e ao consumo de drogas,
chegando a uma tentativa de suicídio.
Só emerge da depressão quando encontra uma saída existencial no comunismo e
reestrutura sua personalidade com base nos valores da militância, tornando-se uma
combatente fanática, odiando o marido e o capitalismo como se fossem uma só
entidade e contribuindo decisivamente para fazer do filho um assassino a soldo de
Stalin.
Eu não poderia ter encontrado melhor ilustração para o conceito do outsider como
militante, que descrevi em artigo recente neste mesmo jornal (leia aqui).
No fim, o desencanto de Caridad é o mesmo de Ramón e de seu instrutor, com a
diferença de que ela não tem nem mesmo a força deles para meditar sobre a
insensatez do seu passado.
O vazio, a secura, a tristeza vã e desesperançada que são tudo o que resta a esses
homens quando compreendem a pantomima tola e sangrenta da qual se fizeram
servidores e agentes, são a mensagem derradeira legada pelo século XX à presente
geração, aí incluídos os editores brasileiros incapazes de ouvi-la.
Não é preciso dizer que perseguições em massa, cruéis e insensatas, no mais puro
modelo stalinista, aconteceram também na China comunista, em Cuba, no Vietnã, no
Camboja, em todos os países-satélites da URSS e por toda parte onde a opinião
comunista tenha saído do subsolo psicopático que lhe é natural e conquistado um lugar
de respeito na sociedade.
O modelo universalizou-se. A única coisa que varia é a dosagem respectiva da
violência e da mendacidade que a fórmula da loucura comunista assume em distintos
lugares do mundo.
Nos países onde não tem força bastante para tomar o poder pelas armas, o
comunismo apela à estratégia gramsciana do engodo geral e, por isso mesmo, como
aconteceu no Brasil, rouba mais do que mata, pelo menos até que o produto do roubo,
crescendo até dimensões oceânicas, lhe assegure a posse dos meios de matar.

Guerra fria ou guerra assimétrica?


Olavo de Carvalho
Folha de São Paulo, 27 de julho de 2014

Aceita ainda no Brasil, como dogma inquestionável, a visão popular da Guerra Fria
como uma luta sorrateira e implacável entre duas potências que se odiavam pode hoje
ser atirada à lata de lixo como um estereótipo enganoso, história da carochinha
inventada para dar aos cérebros preguiçosos a ilusão de que entendiam o que se
passava.
Nos últimos decênios, tantos foram os fatos trazidos à luz pela decifração dos códigos
Venona (as comunicações em código entre a embaixada da União Soviética em
Washington e o governo de Moscou) e pela pletora de documentos desencavados dos
arquivos soviéticos, que praticamente nada da opinião chique dominante na época
permanece de pé.
Na verdade, a ocupação principal do governo e da mídia soviéticos no período foi
mentir contra os Estados Unidos, enquanto seus equivalentes americanos se
dedicavam, com igual empenho, a mentir a favor da URSS. Não só mentir: acobertar
seus crimes, proteger seus agentes, favorecer seus interesses acima dos de nações
amigas e, não raro, da própria nação americana.
Em lugar do equilíbrio de forças que, secundado ou não por um obsceno
equivalentismo moral, ainda aparece na mídia vulgar e nas Wikipédias da vida como
retrato histórico fiel, o que se vê hoje é que o conflito EUA-URSS foi aquilo que mais
tarde se chamaria “guerra assimétrica”, em que um lado combate o outro e o outro
combate a si mesmo.
Não que não houvesse, da parte americana, um decidido e vigoroso anticomunismo,
disposto a tudo para deter o avanço soviético na Europa, na Ásia, na África e na
América Latina. Tantas foram as personalidades que se destacaram nesse combate –
jornalistas, escritores, artistas, políticos, militares, agentes dos serviços de inteligência
– e tão gigantescos foram os seus esforços, que daí deriva o que possa haver de
legítimo na visão dos EUA como o inimigo por excelência do movimento comunista.
Basta citar os nomes de George S. Patton, Douglas MacArthur, Robert Taft, Whittaker
Chambers, Joseph McCarthy, Eugene Lyons, Sidney Hook, Fulton Sheen, Edgar J.
Hoover, James Jesus Angleton, Robert Conquest, Barry Goldwater, para entender por
que o anticomunismo se projetou como uma imagem típica da América, não só no
exterior como perante os próprios americanos.
Porém, examinado caso por caso, o que se verifica é que em cada um deles a força
inspiradora foi a iniciativa pessoal e não uma política de governo; e que, praticamente
sem exceção, todos os que se destacaram nessa luta foram boicotados, manietados
pelas autoridades de Washington (mesmo quando eles próprios faziam parte do
governo) e achincalhados pela mídia, pelo sistema de ensino e pelo show business, em
vida ou pelo menos postumamente. Não raro, sabotados e perseguidos pelos seus
próprios pares republicanos e conservadores, temerosos de parecer mais
anticomunistas do que o anti-anticomunismo vigente no mundo chique permitia.
Em suma: enquanto a sociedade americana fervilhava de anticomunismo, a política
oficial, de Roosevelt em diante, e com a exceção notável da gestão Ronald Reagan, foi
sistematicamente a do colaboracionismo nem sempre bem disfarçado.
O que explica isso é que os agentes soviéticos infiltrados no governo e na grande mídia
não eram cinquenta e poucos, como pensava o infeliz Joe McCarthy, o qual pagou por
esse cálculo modestíssimo o preço de tornar-se o senador americano mais odiado de
todos os tempos. Eram – sabe-se hoje – mais de mil, muitos deles colocados em
postos elevados da hierarquia, onde às vezes fizeram muito mais do que “influenciar”:
chegaram a determinar o curso da política externa americana, sempre, é claro, num
sentido favorável à URSS. O exemplo mais clássico foi a deterioração das relações
entre EUA e Japão, que culminou no ataque a Pearl Harbor – um plano
engenhosíssimo concebido em Moscou para livrar a URSS do perigo de uma guerra
em duas frentes, jogando contra os americanos a fúria nipônica mediante um jogo bem
articulado entre a “Orquestra Vermelha” de Richard Sorge em Tóquio e o conselheiro
presidencial Harry Hopkins em Washington.
Mas os capítulos da saga colaboracionista se acumulam numa profusão alucinante até
a gestão Clinton, quando o estímulo governamental a investimentos maciços na China
fez de um país falido uma potência inimiga ameaçadora.
Não creio que essa história – talvez a mais bem documentada do século XX – tenha
sido jamais contada no Brasil. Mesmo nos EUA ela circula apenas entre intelectuais e
historiadores de ofício, enquanto o povão ainda segue a lenda oficial. É uma história
demasiado vasta e complexa para que eu pretenda resumi-la aqui.
O que posso fazer é sugerir alguns livros que darão ao leitor uma visão do estado das
pesquisas hoje em dia:
Diana West, American Betrayal. The Secret Assault on Our Nation’s Character(St.
Martin’s, 2013).
Herbert Rommerstein and Eric Breindel: The Venona Secrets. Exposing Soviet
Espionage and America’s Traitors (Regnery, 2000).
John Earl Haynes and Harvey Klehr: Venona. Decoding Soviet Espionage in America
(Yale University Press, 1999).
Allen Weinstein and Alexander Vassiliev: The Haunted Wood. Soviet Espionage in
America. The Stalin Era (Random House, 1999).
Paul Kengor: Dupes. How America’s Adversaries Have Manipulated Progressives for a
Century (ISI Books, 2010).
Arthur Hermann, Joseph McCarthy: Reexamining the Life and Legacy of America’s
Most Hated Senator (Free Press, 2000).
M. Stanton Evans: Blacklisted by History. The Untold Story of Senator Joe McCarthy
(Crown Forum, 2007).
Robert K. Willcox: Target: Patton. The Plot to Assassinate General George S. Patton
(Regnery, 2008)

Eurasianismo e genocídio
Olavo de Carvalho
Folha de São Paulo, 19 de junho de 2014

Não é muito difícil entender que uma ideologia voltada à reconstrução de um dos
impérios mais sangrentos de todos os tempos acabará, mais dia menos dia, revelando
a sua própria índole cruel e homicida.
Estudantes da Universidade Estatal de Moscou estão exigindo a demissão do prof.
Alexandre Duguin por ter defendido, desde o alto da sua cátedra, a matança
sistemática dos ucranianos, que segundo ele não pertencem à espécie humana.
“Matem, matem, matem”, disse ele. “Não há mais o que discutir. Digo isso como
professor.”
A declaração integral e exata está aos 17m50s deste vídeo: http://goo.gl/YSjcB3
O Império Eurasiano tal como o concebem Alexandre Duguin e seu principal discípulo,
o presidente Vladimir Putin, é uma síntese da extinta URSS com o Império tzarista.
Como a teoria que fundamenta o projeto é por sua vez uma fusão de marxismo-
leninismo, messianismo russo, nazismo e esoterismo, e como dificilmente se encontra
no Ocidente algum leitor que conheça o suficiente de todas essas escolas de
pensamento, cada um só enxerga nela a parte que lhe é mais simpática, comprando às
cegas o resto do pacote.
Os saudosistas do stalinismo veem nela a promessa do renascimento da URSS.
Conservadores aplaudem o seu moralismo repressivo soi disant religioso. Velhos
admiradores de Mussolini e do Führer apreciam a sua concepção francamente
antidemocrática do Estado, bem como seu desprezo racista pelos povos destinados à
sujeição imperial.
Esoteristas, seguidores de René Guénon e Julius Evola, julgam que ela é a encarnação
viva de uma “metapolítica” superior, incompreensível ao vulgo, mais ou menos como
aquela que é descrita pelo romancista (e esoterista ele próprio) Raymond Abellio, em
La Fosse de Babel. Muçulmanos acabam às vezes aderindo ao projeto por conta do
seu indisfarçado e odiento anti-ocidentalismo, na vaga esperança de utilizá-lo mais
tarde como trampolim para a criação do Califado Universal, que por sua vez os
“eurasianos” acreditam poder usar para seus próprios fins.
Não seria errado entender o eurasianismo como uma sistematização racionalizada do
caos mental internacional. Neste sentido, sua unidade essencial não pode ser buscada
no nível ideológico, mas na estratégia de conjunto que articula num projeto de poder
mundial uma variedade de discursos ideológicos heterogêneos e, em teoria,
conflitantes.
Não se deve pensar, no entanto, que esse traço definidor é único e original. Ao
contrário do que geralmente se imagina, todos os movimentos revolucionários, sem
exceção, cresceram no terreno fértil da confusão das línguas. O eurasianismo só de
destaca dos outros por cultivar, desde a origem, uma consciência muito clara desse
fator e, portanto, um aproveitamento engenhoso do confusionismo revolucionário.
Qualquer que seja o caso, o uso da violência genocida como instrumento de ocupação
territorial está tão arraigado nos seus princípios estratégicos que, sem isso, o projeto
inteiro não faria o menor sentido.
Essa obviedade não impede, no entanto, que cada deslumbrado do eurasianismo
continue vendo nele só aquilo que bem entende, tapando os olhos para as partes
desagradáveis. Se milhões de idiotas fizeram isso com o marxismo durante um século
e meio, recusando-se a enxergar o plano genocida que ele trazia no seu bojo desde o
princípio – e explicando “ex post facto” os crimes e desvarios como meros acidentes de
percurso – , por que não haveriam de dar uma chance ao mais novo e fascinante
estupefaciente revolucionário à venda no mercado?
***
A propósito do xingamento coletivo à Sra. Dilma Rousseff, que tanto indignou o ex-
presidente Lula e o levou abrir guerra contra os que “não sabem do que somos
capazes”, coloquei na minha página do Facebook estas duas notinhas, que se
tornaram imediatamente virais e que acho oportuno reproduzir aqui:
(1) O governo petista habituou a população a desrespeitar tudo – a ordem, a família, a
moral, as Forças Armadas, a polícia, as leis, o próprio Deus. Se esperava sair ileso e
ser aceito como a única coisa respeitável no meio do esculacho universal, então é até
mais louco do que parece.”
(2) O sr. Lula xingou o então presidente Itamar Franco de “f. da p.”, disse que a cidade
de Pelotas é “exportadora de veados”, gabou-se (por brincadeira, segundo Sílvio
Tendler) de tentar estuprar um colega de cela e confessou (em entrevista à Playboy) ter
nostalgia dos tempos em que os meninos do Nordeste faziam – se é que faziam – sexo
com cabritas e jumentas. É a pessoa adequada para dar lições de respeitabilidade à
nação brasileira. Todo mundo sabe do que ele é capaz.”

Debilidades
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 2 de junho de 2013

Em artigo recente, expliquei que um dos mais velhos truques do movimento


revolucionário é limpar-se na sua própria sujeira, cuja existência negava até a véspera.
Desde a queda da URSS, a maneira mais usual de aplicar esse truque consiste em
jurar que tudo aquilo que durante setenta anos todos os comunistas do mundo
chamaram de comunismo não foi comunismo de maneira alguma: foi capitalismo.
Mediante essa simples troca de palavras a ideia comunista sai limpa e inocente de todo
o sangue que se derramou para realizá-la, e gentilmente solicita da plateia um novo
crédito de confiança, isto é, mais sangue, jurando que desta vez vai ser um pouquinho
só, um tiquinho de nada. Por exemplo, varrer Israel do mapa ou exterminar a raça
branca.
O apresentador dessa modesta sugestão não explica nunca como bilhões de pessoas
inspiradas na teoria histórica mais científica de todos os tempos – insuperável, no dizer
de Jean-Paul Sartre –, puderam se enganar tão profundamente quanto àquilo que elas
mesmas estavam fazendo, nem como foi que ele próprio, subindo acima de Lenin, de
Stálin, de Mao Dzedong e de tantos luminares do marxismo, foi o primeirão a enxergar
a luz.
Nem muito menos explica como é possível, de uma teoria que ensina a unidade
substancial de ideia e prática, se pode obter uma separação tão radical dessas duas
coisas que uma delas saia inteiramente limpa e a outra inteiramente suja.
Mas esse pessoal é assim mesmo: quando chega na página seguinte, já esqueceu a
anterior.
Dois exemplos recentes vêm-nos da Sra. Lúcia Guimarães, que é talvez o caso mais
típico de ignorância elegante no jornalismo brasileiro, e da srta. Yoani Sanchez, uma
abnegada que procura salvar a imagem do comunismo cubano isolando-a de um breve
erro de percurso de apenas meio século.
O argumento das duas é substancialmente o mesmo: não se pode culpar o comunismo
por nada do que aconteceu na URSS, na China, no Camboja ou em Cuba, porque o
comunismo é a posse e domínio dos meios de produção pelos proletários, e não pelo
Estado como se viu nesses lugares.
Dona Lúcia chega a passar pito no dramaturgo David Mamet porque este diz que a
doce promessa de Karl Marx, “De cada um conforme suas possibilidades a cada um
conforme suas necessidades” não passa de uma expressão cifrada para justificar a
espoliação de todos pelo Estado.
Em todos os regimes comunistas foi isso o que se deu realmente, mas ainda assim
Dona Lúcia assegura que Mamet “levaria nota baixa em marxismo, porque o
espantalho invocado por Mamet estava pensando numa utopia do proletariado, não do
Estado”.
No mesmo sentido pronuncia-se Yoani Sanchez para jurar que em Cuba nunca houve
comunismo, apenas capitalismo de Estado.
Não é preciso observar que assim, com um estalar de dedos, a teoria que se
apresentava como idêntica à sua encarnação histórica se torna uma ideia pura
platônica, um ente metafísico separado, imune a toda contaminação deste baixo
mundo.
Eu não seria cruel de esperar dessas duas criaturas a compreensão dessa sutileza,
mas elas poderiam ao menos ter lido um dos mais célebres parágrafos de Karl Marx,
no Manifesto Comunista:
“A última etapa da revolução proletária é a constituição do proletariado como classe
dominante… O proletariado servir-se-á da sua dominação política para arrancar
progressivamente todo o capital da burguesia, para centralizar todos os meios de
produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado…”
Aí não existe, no mais mínimo que seja, o antagonismo que aquelas duas inteligências
iluminadas acreditaram enxergar entre o Estado e o proletariado: o Estado é o
proletariado organizado, o proletariado organizado é o Estado. E o proletariado
organizado não é outra coisa senão o Partido.
A profecia da “autodissolução do Estado” na apoteose dos tempos é somente uma
figura de linguagem, um jogo de palavras, uma pegadinha infernal. Marx explica que,
como tudo pertencerá ao Estado, este já não existirá como entidade distinta, mas a
própria sociedade será o Estado.
É uma curiosa inversão da regra biológica de que quando o coelho come alface não é
o coelho que vira alface, mas a alface que vira coelho. Se o Estado engole a
sociedade, não é o Estado que desaparece: é a sociedade. Que a sociedade
dominada, esmagada e anulada não sinta mais o peso da dominação não quer dizer
que esta não exista, mas que o dominado está exausto e estupidificado demais para
tomar consciência dela. É o totalitarismo perfeito em que, nas palavras de Antonio
Gramsci, o poder do Partido-Estado já não é percebido como tal, mas se torna “uma
autoridade onipresente e invisível como a de um imperativo categórico, de um
mandamento divino”.
Um exame atento dos textos de Karl Marx teria bastado, em plena metade do século
19, para perceber neles o Gulag, o Laogai e centenas de milhões de mortos, todo o
terror e misérias dos regimes comunistas como consequências incontornáveis da
própria lógica interna da teoria, caso tentasse sair do papel para encarnar-se na
História.
Marx, Engels e Lenin em pessoa reconheceram isso inúmeras vezes, enaltecendo o
genocídio e a tirania como “parteiros da História”. Que, decorridos cento e sessenta e
tantos anos, ainda haja tantas pessoas que insistam em explicar como fruto de
desagradáveis coincidências aquilo que a própria teoria exige como condição sine qua
non da sua realização é, decerto, uma das provas mais contundentes de uma
debilidade intelectual que não deixa de refletir, talvez, alguma debilidade de caráter.

A história invertida
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 14 de abril de 2013

O confronto entre militares e terroristas na América Latina dos anos 60-70 foi um
episódio da Guerra Fria, onde os atores locais, sem prejuízo de suas convicções e
decisões próprias, ecoavam, em última instância, as estratégias respectivas das duas
grandes potências em disputa: os EUA e a URSS.
Nada do que então se passou no continente pode ser compreendido sem ter isso
em conta.
Se perguntarmos qual dos dois protagonistas estrangeiros interferiu mais
profundamente no cenário latino-americano, a única resposta honesta é: a URSS.
Do ponto de vista militar, isso é de uma obviedade gritante. Os EUA jamais
chegaram a ter, na época, quarenta mil soldados, quinze mil técnicos em armamentos,
setecentas baterias anti-aéreas, 350 tanques e cento e tantos mísseis balísticos
intercontinentais instalados em nenhum dos seus países aliados na América Latina,
como a URSS teve em Cuba já a partir de 1962 na chamada “Operação Anadyr”. (v.
Gus Russo and Stephen Molton, Brothers in Arms. The Kennedys, the Castros and the
Politics of Murder, New York, Bloomsbury, 2008, p. 158 e aqui).
No que diz respeito à espionagem propriamente dita, a superioridade soviética
surge ainda mais nítida no caso do Brasil em especial. Nada do que a CIA ou qualquer
outro serviço secreto norte-americano possa ter feito aqui se compara às proezas da
KGB, que chegou a instalar um grampo no gabinete do presidente João Figueiredo (v.
George Schpatoff, KGB. História Secreta, Curitiba, Juruá, 2000, pp. 381 ss.),
interceptar 21 mil mensagens sigilosas do nosso Ministério das Relações Exteriores e
ter a seu serviço, como agente pago, nada menos que um embaixador brasileiro em
Moscou (v. Christopher Andrew and Vasili Mitrokhin, The World Was Going Our Way.
The KGB and the Battle for the Third World, New York, Basic Books, 2005, p. 105).
Se daí passamos ao campo das chamadas “medidas ativas” (desinformação,
infiltração, guerra psicológica, agentes de influência etc.), a supremacia soviética no
Brasil daqueles anos assume as proporções de um poder absoluto e incontrastável. Em
1964, a KGB tinha várias dezenas de jornalistas brasileiros na sua folha de
pagamentos (confissão do próprio chefe da agência soviética no Brasil, Stanislav
Bittman, em The KGB and Soviet Disinformation: An Insider’s View). Que o número
deles se multiplicou nos anos seguintes não é algo de que se possa duvidar. Muitos
jornalistas brasileiros, naquele período, fizeram estágios na URSS, na China, na
Tchecoslováquia, na Alemanha Oriental, na Polônia e em Cuba. Uns poucos gabam-se
disso até hoje, seguros de que o público amestrado já não verá aí o menor motivo de
suspeita. Mas naqueles países, onde todos os órgãos de mídia nada mais eram do que
extensões da polícia secreta, é quase impensável que algum jornalista estrangeiro
fosse admitido sem ser em seguida recrutado como agente de influência. Como
assinalam John Earl Haynes, Harvey Klehr e Alexander Vasiliev em Spies: The Rise
and Fall of the KGB in America (Yale University Press, 2009), os soviéticos foram
sempre os campeões absolutos no recrutamento de jornalistas. Nos EUA, hoje
conhecem-se um por um os nomes daqueles que, na mídia americana, serviram à KGB
e ao GRU (serviço secreto militar). No Brasil, esse capítulo da história do nosso
jornalismo é ainda um tabu, mas é evidente que sem ele nada se compreende do
período, principalmente porque em plena ditadura militar os comunistas chegaram a
controlar praticamente toda a grande mídia no país
(v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/111124dc.html,http://www.olavodecarvalho.o
rg/semana/111125dc.html e http://www.olavodecarvalho.org/semana/111130dc.html) e a
dominar também o mercado livreiro através das suas grandes casas editoras
(Civilização Brasileira, Brasiliense, Vitória etc.). Nem falo, é claro, dos agentes de
influência que vindo do bloco soviético se espalharam pelos EUA e pelas democracias
européias, forjando aí a imagem demoníaca do governo brasileiro que acabou por se
consagrar como dogma internacional inabalável.
O conjunto forma uma orquestra formidável, ao lado da qual a voz do
imperialismo ianque mal soava como o miado de um gatinho doente. Ao longo de toda
aquela época, e depois mais ainda, tanto os EUA quanto o governo brasileiro se
abstiveram de fazer qualquer esforço sério para ganhar os “corações e mentes” dos
formadores de opinião neste país. Em plena ditadura, os jornalistas “de direita” nas
redações contavam-se nos dedos das mãos e eram abertamente hostilizados por seus
colegas.
Por fim, até hoje não se fez uma avaliação razoável da quantidade de recursos
mobilizados pelas ditaduras de Cuba, da China, da URSS e seus países satélites para
treinar, equipar e financiar não só os terroristas brasileiros mas os militantes
encarregados de lhes dar apoio político sem participar dos combates. Foi uma
operação de proporções gigantescas, que na imagem pública hoje em dia só aparece
sob a forma de menções esporádicas a “exilados”, como se os comunistas só fossem
para aqueles países quando obrigados a isso pelo governo militar.
Em comparação com a profundidade e amplitude da intervenção cubano-soviética no
continente, e especialmente no Brasil, a ação dos EUA naqueles anos caracterizou-se
pela raridade, timidez e omissão, limitando-se no mais das vezes a acordos entre
governos. Se a imagem que se consagrou na mídia e no ensino foi exatamente a
inversa, isso é mais uma prova do sucesso de uma operação que prossegue ainda
hoje, tendo a seu serviço tanto os megafones quanto as mordaças.

O que está acontecendo


Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 29 de agosto de 2012
A mitologia infantil que a população consome sob o nome de “jornalismo” ensina que
o Leitmotiv da história mundial desde o começo do século XX foi o conflito entre
“socialismo” e “capitalismo”; conflito que teria chegado a um desenlace em 1990 com a
queda da URSS. Desde então, reza a lenda, vivemos no “império do livre mercado” sob
a hegemonia de um “poder unipolar”, a maldita civilização judaico-cristã personificada
na aliança EUA-Israel, contra a qual se levantam todos os amantes da liberdade:
Vladimir Putin, Fidel Castro, Hugo Chávez, Mahmud Ahmadinejad, a Fraternidade
Muçulmana, o Partido dos Trabalhadores, a Marcha das Vadias e o Grupo Gay da
Bahia.
A dose de burrice necessária para acreditar nessa coisa não é mensurável por
nenhum padrão humano. No entanto, não conheço um só jornal, noticiário de TV ou
curso universitario, no Brasil, que transmita ao seu público alguma versão diferente. A
história da carochinha tornou-se obrigatória não só como expressão da verdade dos
fatos mas como medida de aferição da sanidade mental: contrariá-la é ser
diagnosticado, no ato, como louco paranóico e “teórico da conspiração”.
Como já me acostumei com esses rótulos e começo até a gostar deles, tomo a
liberdade de passar ao leitor, em versão horrivelmente compacta, algumas informações
básicas e arquiprovadas, mas, reconheço, difíceis de acomodar num cérebro
preguiçoso:
A suprema elite capitalista do Ocidente – os Morgans, os Rockefellers, gente
desse calibre – jamais moveu uma palha em favor do “capitalismo liberal”. Ao contrário:
tudo fez para promover três tipos de socialismo: o socialismo fabiano na Europa
Ocidental e nos EUA, o socialismo marxista na URSS, na Europa Oriental e na China e
o nacional-socialismo na Europa central. Gastou, nisso, rios de dinheiro. Criou o parque
industrial soviético no tempo de Stálin, a indústria bélica do Führer e, mais
recentemente, a potência econômico-militar da China. Nos conflitos entre os três
socialismos, o fabiano saiu sempre ganhando, porque é o único que tem a seu serviço
a tecnologia mais avançada, uma estratégia flexível para todas as situações e, melhor
ainda, todo o tempo do mundo (o símbolo do fabianismo é uma tartaruga). O nazismo,
cumprida sua missão de liquidar as potências européias e dividir o mundo entre a elite
ocidental e o movimento comunista (precisamente segundo o plano de Stálin), foi
jogado na lata do lixo da História; do fim da II Guerra até o término da década de 80, só
subsistiu sob a forma evanescente de “neonazismo”, um fantasma acionado pelos
governos comunistas para assustar criancinhas e desviar atenções.
O fabianismo nunca foi inimigo do socialismo marxista: adora-o e cultiva-o, porque a
economia marxista, incapaz de progresso tecnológico, lhe garante mercados cativos, e
também porque sempre considerou o comunismo um instrumento da sua estratégia
global. Os comunistas, é claro, respondem na mesma moeda, tentando usar o
socialismo fabiano para seus próprios fins e infiltrando-se em todos os partidos
socialistas democráticos do Ocidente. Os pontos de atrito inevitáveis são debitados na
conta da “cobiça capitalista”, fortalecendo a autoridade moral dos comunistas ante os
idiotas do Teceiro Mundo e, ao mesmo tempo, ajudando os fabianos a apertar os
controles estatais sobre as economias do Ocidente, estrangulando o capitalismo a
pretexto de salvá-lo. Os “verdadeiros crentes” do liberalismo econômico é que pagam o
pato: sem poder suficiente para interferir nas grandes decisões mundiais, tornaram-se
mera força auxiliar do socialismo fabiano e, em geral, nem mesmo o percebem, tão
horrível é essa perspectiva para as suas almas sinceras.
Mas às vezes a concorrência fraterna entre fabianos e comunistas desanda: com a
queda da URSS, aqueles acharam que tinha chegado a hora de colher os lucros da
sua longa colaboração com o comunismo, e caíram sobre a Rússia como abutres,
comprando tudo a preço vil, inclusive as consciências dos velhos comunistas. O núcleo
da elite soviética, porém, a KGB, não consentiu em amoldar-se ao papel secundário
que agora lhe era destinado na nova etapa da revolução mundial. Admitiu a derrota do
comunismo, mas não a sua própria. Levantou a cabeça, reagiu e criou do nada uma
nova estratégia independente, o eurasianismo, mais hostil a todo o Ocidente do que o
comunismo jamais foi. O fabianismo, que nunca foi de brigar com ninguém e sempre
resolveu tudo na base da sedução e da acomodação (inclusive com Stálin e Mao),
finalmente encontrou um oponente que não aceita negociar. A “Guerra Fria” foi, em
grande parte, puro fingimento: a elite Ocidental concorria com o comunismo sem nada
fazer para destruí-lo. Ao contrário, ajudava-o substancialmente. Putin não é um
concorrente: é um inimigo de verdade, cheio de rancor e sonhos de vingança. A
verdadeira “Guerra Fria” só agora está começando, e aliás já veio quente. A
concorrência entre “capitalismo” e “socialismo” foi um véu ideológico para uso das
multidões, mas a luta entre Oriente e Ocidente é para valer. Não por coincidência, o fiel
da balança é o Oriente Médio, a meio caminho entre os dois blocos. Ali as nações
muçulmanas terão de decidir se continuam servindo de instrumento dócil nas mãos dos
russos, se aceitam a acomodação com a elite fabiana ou se querem mesmo fazer do
mundo um vasto Califado. A elite Ocidental, que fala pela boca do sr. Barack Hussein
Obama, parece decidida a fazê-las pender nesta última direção, por motivos que, de
tão malignos e imbecis, escapam ao meu desejo de compreendê-los. Isso, caros
leitores, é o que está acontecendo, e nada disso você lerá na Folha nem no Globo.

Onipresente e invisível
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 26 de março de 2012
Ao ouvir dizer que vive numa “democracia”, o cidadão comum imagina que, malgrado
algumas tramas sórdidas urdidas pelos políticos por trás das cortinas, o esquema de
poder que domina a sociedade coincide com a estrutura visível das instituições e, em
última instância, pode ser controlado mediante a pressão do clamor público ou o
exercício do voto. Algum resíduo oculto, aqui e ali, será mais cedo ou mais tarde
revelado pelos bravos jornalistas que destampam as latrinas e vasculham os esgotos,
expondo os ladrões e conspiradores à luz do dia para que sofram as penas da lei. Não
obstante falhas ocasionais, no conjunto o sistema, aerado pelos bons ventos da
liberdade de imprensa, encarna os ideais iluministas da transparência e da
racionalidade.
Lamento informar que há pelo menos vinte anos esse sistema cessou de existir. O
poder dos governos sobre as populações civis já é praticamente incontrolável,
reduzindo cada vez mais a um mero formalismo jurídico a diferença entre democracia e
ditadura. Não, não se trata de nenhuma “teoria da conspiração”. Conspirações existem,
mas não são elas que produzem esse estado de coisas. Ao contrário, é ele que torna
viável, hoje em dia, a criação de um governo global onipotente, imunizado contra
qualquer tentativa de controle popular. O fenômeno resulta da convergência de três
fatores:
Primeiro: A complexidade crescente da administração pública, continuamente
fortalecida pelos aportes da tecnologia e das ciências sociais, fornece aos governos
toda sorte de instrumentos para implantar as medidas que bem desejem sem ter de
passar pelo controle legislativo nem muito menos pelo debate público. Das decisões
fundamentais que alteraram a estrutura de poder no mundo nas últimas duas décadas,
diluindo soberanias e transferindo a autoridade dos Estados para organismos
internacionais, somente uma parte ínfima chegou a ser matéria de discussão
parlamentar, e a maioria nem sequer recebeu da mídia uma cobertura proporcional à
vastidão das conseqüências políticas que produziu.
Segundo: A progressiva concentração dos meios de comunicação nas mãos de um
reduzido número de grandes grupos econômicos íntimos do poder estatal, associada à
tomada das redações por uma nova geração de jornalistas ideologicamente
comprometidos, transformou jornais, revistas e canais de TV, de veículos de
informação e debate, em agências de engenharia comportamental e controle político. A
censura de notícias inconvenientes, a exclusão das opiniões divergentes, a promoção
descarada dos ídolos da esquerda, a militância sistemática em favor dos objetivos
propugnados pela revolução globalista tornaram-se quase que normas de redação,
cinicamente impostas por toda parte como a expressão pura do jornalismo mais neutro
e objetivo. Da noite para o dia, valores e critérios explosivamente revolucionários,
hostis aos sentimentos de quase toda a população, passaram a ser apresentados
como se fossem a opinião majoritária e obrigatória, o padrão supremo da normalidade.
Em todo o Ocidente não há, por exemplo, um só grande jornal ou canal de TV que não
trate toda oposição às propostas gayzistas e abortistas como conduta aberrante e
criminosa, dando a impressão de que os novos códigos de comportamento que se
deseja implantar são consensos universais milenares, só rejeitados por fanáticos e
doentes mentais. É evidente que isso não é jornalismo nenhum, é um teatro psicológico
planejado para produzir mudanças comportamentais. É a engenharia da complacência,
da qual já falei.
Terceiro: a queda da URSS deixou desorientadas e órfãs as massas militantes por toda
parte, liberando um enorme potencial humano que, não sabendo viver sem uma “causa
social” que justifique sua existência, foi facilmente remanejado para servir, agora
fartamente subsidiado pela elite financeira, sob as novas bandeiras da revolução
global. Foi a vitória completa do fabianismo e do gramscismo sobre as versões mais
arcaicas do movimento comunista. Com velocidade impressionante, as militâncias
locais foram unificadas, criando, pela primeira vez na História humana, a possibilidade
de mobilizações de massa quase instantâneas em escala mundial – a mais formidável
máquina de pressão política e intimidação psicológica que o mundo já conheceu.
Sob o influxo desses três fatores, a velha democracia representativa tornou-se apenas
a camuflagem jurídica e publicitária de novos esquemas de poder que a maioria dos
cidadãos não compreende e em geral não conhece.
Graças a isso, o avanço da tirania global é hoje tão rápido, tão intenso, tão
avassalador, que para registrar, simplesmente registrar a sucessão diária dos fatos que
o exemplificam, seria preciso um jornal inteiro, não este pobre comentário semanal.
Não se passa um dia sem que se criem novas estruturas de poder, novos meios de
controle social, novos instrumentos de manipulação psicológica destinados a ter um
impacto brutal, quase sempre destrutivo, não só na política e na economia, mas na vida
privada e na mente de todos os seres humanos colocados sob a sua órbita. E esses
fatos se desenrolam, quase todos, à margem da atenção pública, seja porque são
produzidos por meios burocráticos discretos, contornando o debate, seja porque não
chegam a ser noticiados, seja porque o são de maneira propositadamente deficiente,
sumária e eufemística, de modo que somente uma fração mínima e inofensiva da
população se dê conta do seu verdadeiro alcance e significado.
O sonho de Antonio Gramsci, o “poder onipresente e invisível”, já é uma realidade em
todo o mundo ocidental.

Saltos qualitativos
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 26 de dezembro de 2011
Quando falo da transmutação de direitos humanos elementares em instrumentos de
controle opressivo, por favor resguardem-se de ver nesse fenômeno um processo
histórico-social espontâneo, um “resultado impremeditado das ações humanas”, como
diria Max Weber. É transformação planejada. Estrategistas de grande porte controlam o
processo, sabendo que os resultados finais serão muito diferentes daqueles esperados
pela massa ignara de militantes, idiotas úteis e, é claro, inimigos também. Nenhuma
proposta social vinda de cérebros marxistas tem jamais – repito: jamais – as finalidades
nominais com que se apresenta ao público geral. As verdadeiras finalidades só são
conhecidas daqueles que têm as qualificações intelectuais para participar das
discussões sérias num círculo mais discreto de planejadores e líderes. Nada é secreto,
mas, na prática, a lógica da coisa é inacessível tanto aos militantes comuns quanto,
mais ainda, ao público leigo.
Um exemplo clássico é a estratégia Cloward-Piven
(v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/090305dc.html), alardeada como um plano
de ajuda aos desamparados, mas, no círculo íntimo, admitida francamente como um
artifício para gerar crise econômica, quebrar a previdência social e deixar, no fim das
contas, os desamparados ainda mais desamparados – o que será em seguida
explorado para impelir ao movimento um “salto qualitativo”, passando das meras
reivindicações previdenciárias ao clamor revolucionário ostensivo do Occupy Wall
Street. Tudo isso pensado com meio século de antecedência. O público leigo e mesmo
os analistas políticos usuais logo perdem o fio da meada e não atinam com a
continuidade do processo, enquanto os planejadores comunistas, habituados a cálculos
de longuíssimo prazo, vão conduzindo o fluxo da transformação desde uma confortável
invisibilidade, disfarçados em “fatores estruturais”, “causas sociais” e mil e uma
camuflagens verbais elegantes que impedem o público de enxergar os verdadeiros
agentes por trás de tudo.
A expressão “salto qualitativo” é a chave do negócio. Nenhum intelectual marxista de
certo gabarito ignora essa teoria de inspiração hegeliana, exposta por Mao Dzedong
mas implícita na doutrina de Marx desde o começo. Diz ela que qualquer acumulação
quantitativa, ultrapassado um certo limite, produz uma mudança da qualidade, do
estado, das propriedades do fator acumulado. O exemplo clássico dado por Mao é o da
água que, aquecida, se transforma em vapor, perdendo propriedades que tinha no
estado líquido e adquirindo novas que são inerentes ao estado gasoso.
Não é, como pensava Mao, uma lei universal, aplicável a todas as esferas da realidade.
É no entanto uma constatação empírica, que vale para certos conjuntos de fenômenos,
especialmente da sociedade humana. Baseei-me nela, por exemplo, para descrever a
figura do “metacapitalista”: o sujeito que enriquece tanto com a liberdade econômica
que, depois de um certo ponto, já não pode mais sujeitar-se às oscilações do mercado
e tem de passar a controlá-lo. A transfiguração do capitalista em monopolista é um
“salto qualitativo”. A imagem da água e do vapor não é uma fórmula geral, é apenas um
símbolo, que condensa analogicamente vários processos similares. Mas, dentro de
certos limites, esses processos funcionam.
Sempre que a intelligentzia revolucionária lança campanhas que persistentemente
impelem a sociedade numa certa direção, é porque sabe que o acúmulo de forças
nessa direção chegará por fim a um “salto qualitativo”, desviando o conjunto para um
rumo totalmente diverso e produzindo resultados que a maioria sonsa contemplará
atônita, sem saber de onde vieram. Só à luz do cálculo marxista esses resultados
fazem sentido, mas mesmo dentro do movimento revolucionário só os happy
few sabem fazer esse cálculo e gerenciar sua aplicação racional. Não é assunto para
qualquer militante bobão, nem para qualquer bobão liberal-conservador que meça o QI
dos comunistas pelo dele próprio.
A facilidade com que os artífices da mutação revolucionária levam a sociedade para
onde bem desejam contrasta da maneira mais patética, é verdade, com a sua total
incapacidade de criar uma economia decente a partir do momento em que destróem o
último inimigo e assumem o controle absoluto do poder estatal.
Os liberais, que só pensam em economia e vêem a impotência do socialismo nessa
área, deduzem daí que o marxismo é falso em tudo, um amontoado de besteiras que
não merece atenção. Mas o marxismo só é uma teoria econômica em aparência. Ele é,
a rigor, a teoria e estratégia da transformação revolucionária da sociedade – e, nesse
campo, é perfeitamente realista e eficiente. O fato de que não sirva para fazer uma
economia prosperar não significa que seja incapaz de destruir muitas economias,
muitas sociedades, muitas nações, e, mesmo no meio do mais majestoso fracasso
econômico, aumentar o poder internacional da elite revolucionária, como de fato
aconteceu desde a queda da URSS. O sentimento de superioridade que os liberais têm
ante o marxismo é como o de um empresário de boxe que, por saber fazer dinheiro
com esse esporte, se imaginasse também habilitado a subir ao ringue e nocautear
Wladimir Klitschko. Não existe superioridade absoluta, transferível automaticamente a
todos os domínios da ação humana. Eu, por exemplo, sou capaz de fazer em
picadinhos qualquer debatedor comunista que se meta a besta comigo, mas, se fosse
competir com um deles em matéria de sugar verbas estatais, não saberia nem por
onde começar. Quanto mais eles perdem a discussão, mais se enchem de dinheiro.

opiando os russos
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 19 de agosto de 2011
No extraordinário relato que publicou sob o título Darkness at Dawn. The Rise of the
Russian Criminal State(Yale: Universty Press, 2003), David Satter, ex-correspondente
do Wall Street Jounal em Moscou, conta que o novo regime russo subseqüente à
queda da URSS já nasceu criminoso porque a comissão de privatizações, no governo
Yeltsin, não ligava a mínima para saber de onde vinha o dinheiro com que as empresas
estatais eram compradas às pencas em leilões bilionários. Em geral vinha do próprio
governo, pelas mãos de funcionários ladrões. Ou vinha do narcotráfico. Ninguém nem
perguntava. Só o que queriam era privatizar tudo o mais rápido possível, para criar do
nada uma classe capitalista sem lei, nem ordem, nem moralidade. Nem mesmo
combater as quadrilhas criminosas lhes parecia necessário: afinal, elas faziam dinheiro,
que era tudo o que importava.
Somada à súbita liberação geral dos preços, essa política, perto da qual o assalto
estatal à nação e à Igreja na Revolução Francesa de 1789 fica parecendo uma rifa em
colégio de freiras, não demorou a produzir os resultados logicamente previsíveis: em
poucos meses, 99 por cento das poupanças tinham desaparecido, deixando o povo à
míngua, enquanto no topo da sociedade uma nova casta de barões ladrões abria
caminho mediante expedientes singelos como explodir as casas dos seus concorrentes
ou abater a tiros os funcionários do Estado que não se rendessem à sedução das
propinas, àquela altura tidas como instrumentos normais de negociação.
Se perguntamos por que os responsáveis pelas privatizações russas optaram por uma
estratégia tão obviamente suicida, a resposta é simples e vem da boca dos próprios
personagens, com uma candura admirável: eram todos homens de formação marxista,
não só acostumados a um ambiente de crueldade incomum, mas persuadidos de que a
“acumulação primitiva do capital” só é possível através do roubo, do saque, da
desumanidade e da violência descontrolada. Para eles, o que estava acontecendo na
Rússia era simplesmente natural, inevitável, imune a todo julgamento humano.
Ao abdicar do comunismo, adotaram o capitalismo tal como o comunismo o concebia.
Simplesmente passaram a achar bom o que antes achavam ruim, sem modificar no
mais mínimo que fosse a imagem que faziam dele até então.
Essa imagem é obviamente falsa. O próprio Karl Marx sabia disso quando a inventou
como engodo proposital, falsificando os dados estatísticos do Parlamento britânico (os
famosos Blue Books) para dar a impressão de que o capitalismo era filho do
banditismo, quando a verdade era exatamente o contrário: um capitalismo selvagem
primitivo, incipiente, só veio a ganhar força e vigor quando o ambiente social e
psicológico foi saneado pelo império da lei e da ordem, incluída aí a influência da fé
religiosa. Se a noção marxista já era falsa com relação ä Inglaterra, que Marx tomara
como modelo universal, mais absurda ainda ela se revelava no confronto com o
exemplo americano, onde um sistema de leis e instituições humanitárias, fortemente
impregnado de moral cristã, antecedera de décadas o florescimento capitalista que aí
viria a brotar com energia mais pujante do que em qualquer outro país.
Logo no começo de “O Capital”, Karl Marx avisa que seu modelo de capitalismo não se
baseia na sondagem dos fatos históricos, mas na “força da abstração”. Ele despe o
capitalismo de todos os elementos sociais, culturais, psicológicos, éticos e religiosos
que o prepararam, e o descreve como simples esquema econômico descarnado,
fundado na exploração de algo que ele chama a “mais-valia”. Com a ambigüidade
característica dos pensadores revolucionários, porém, ele se esquece da advertência
que acabou de fazer e logo passa a tratar esse capitalismo abstrato como se fosse
realidade histórica concreta. O dano que com isso ele trouxe à economia mundial foi
duplo: primeiro, o fiasco monumental da economia soviética; depois, o descalabro do
capitalismo criminal russo.
Mas houve um terceiro dano, mais sutil e de conseqüências incalculáveis: ele inoculou
o abstratismo econômico na mente de seus adversários, levando-os a apoiar
entusiasticamente o desatino das privatizações soviéticas e a acreditar, com maior
insanidade ainda, que a introdução da economia de mercado na China traria consigo a
liberalização do regime político.
É uma trágica ironia que a crença cega no primado da economia como motor da
História tenha se impregnado tão profundamente nas almas daqueles que mais
deveriam contestá-la. Tal como os privatizadores russos, muitos “formadores de
opinião” ocidentais em matéria de política e economia amam o capitalismo, mas
pensam como marxistas. É como achar que entre os encantos peculiares de uma bela
mulher se encontra o fato de a referida sofrer de AIDS.
Uma coisa que sempre me impressionou entre os liberais é a paixão com que aderem
à escola austríaca de economia, tratando-a como um conjunto de fórmulas gerais
abstratas, transportáveis às mais diferentes situações, sem jamais mostrar o mínimo
interesse pelas condições culturais muito peculiares que na Viena do começo do século
XX permitiram e fomentaram a emergência dessa escola. Esse desinteresse, mais
pronunciado entre os economistas brasileiros que entre os de qualquer outra
nacionalidade, é tanto mais imperdoável porque aquele período da história cultural
austríaca foi um dos mais vigorosos e criativos de todos os tempos, e não se pode
imaginar um surto de genialidade eclodindo entre meia dúzia de economistas sem ter
nada a ver com o que se passava em torno. A Viena daquela época era um ambiente
de intercâmbio intelectual intenso, propiciando a fecundação mútua entre os mais
diversos campos da atividade intelectual e artística. A economia de Ludwig von Mises e
Friedrich von Hayek não é uma “coisa em si”, brilhando isolada no céu das ideias
puras: é o fruto de uma atmosfera intelectual de intenso diálogo entre todas as
disciplinas das artes e das ciências, atmosfera que, por sua vez, não se pode
compreender sem a referência ao quadro político do Império Austro-Húngaro.
Ironicamente, duas das fontes mais valiosas para o estudo desse período têm
traduções brasileiras. “O Mundo que Eu Vi”, memórias de Stefan Zweig, e dezenas de
estudos sobre obras e idéias austríacas ao longo dos “Ensaios Reunidos” de Otto
Maria Carpeaux foram bastante lidos no Brasil nos anos 50 e 60. Hoje estão
completamente esquecidos, e a simples sugestão de que um economista as leia deve
soar como apelo a um diletantismo indigno de profissionais sérios. “The Austrian Mind:
an Intellectual and Social History, 1848-1938”, de William M. Johnston (University of
California Press, 1972) dará aos interessados uma visão da prodigiosa riqueza
intelectual e humana de onde brotaram as intuições econômicas não só de von Mises e
Hayek, mas também de Joseph Schumpeter, Carl Menger e tantos outros. Não há
desculpa para a ignorância satisfeita dos economistas liberais que acreditam poder
compreender a escola austríaca sem saber de onde ela saiu. Essa atitude reflete uma
obsessão dinheirista que, por sua vez, tem sua origem remota no íncubo marxista que
há décadas se apossou da mente antimarxista. Os que hoje pontificam sobre a
economia brasileira desde um ponto de vista liberal sem levar na mais mínima conta os
fatores intelectuais, culturais, psicológicos éticos e religiosos do destino econômico das
nações são privatizadores russos mal disfarçados.

América Latina

Estudar antes de falar


Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 13 de agosto de 2013

O caminho mais curto para a destruição da democracia é fomentar o banditismo por


meio da cultura e tentar controlá-lo, em seguida, pelo desarmamento civil. A esquerda
nacional tem trilhado coerentemente essa dupla via há pelo menos cinco décadas, e
sempre soube perfeitamente qual seria o resultado: o caos social, seguido de
endurecimento do regime se ela estiver no poder, de agitação insurrecional se estiver
fora dele.
Essa estratégia é antiga, clássica, imutável, mas os pretextos com que se legitima
conforme as conveniências do momento têm sido variados o bastante para desnortear
a plateia, que se entrega a animadas e às vezes ferozes discussões sobre os pretextos
mesmos e nunca atina com a unidade do projeto por trás deles. Às vezes, como
acontece no Brasil, nem chega a perceber que entre as duas vias simultâneas existe
alguma relação.
Pessoas mentalmente covardes vendem a mãe para não correr o risco de ser rotuladas
de “teóricas da conspiração”. Rebaixam-se ao ponto de defender de unhas e dentes a
“teoria das puras coincidências”, segundo a qual as ações acontecem sem autores.
Imaginem então o medo que essa gente tem de reconhecer algo que no resto do
mundo já é obviedade patente: que o comunismo não morreu em 1990, que está hoje
mais forte que nunca, sobretudo na América Latina. Treze anos atrás, quando Jean-
François Revel publicou seu último livro, La Grande Parade, ninguém na Europa ou
Estados Unidos o contestou quanto a esse ponto, que no Brasil ainda é um segredo
esotérico.
Há até quem negue que Dilma ou Lula sejam comunistas, mas faz isso porque não
sabe exatamente o que é um comunista e, como em geral os liberais, imagina que é
questão de ideais e ideologias. Na verdade, um sujeito é comunista não porque creia
em tais ou quais coisas, mas porque ocupa um lugar numa organização que age como
parte ou herdeira da tradição revolucionária comunista, com toda a pletora de
variedades e contradições ideológicas aí contida.
A unidade do movimento comunista, sobretudo desde Antonio Gramsci, da New Leftf
americana e do remanejamento dos partidos comunistas após a dissolução da URSS,
é mais de tipo estratégico do que ideológico.
Na verdade, esse movimento, cuja extinção a queda da União Soviética parecia
anunciar como iminente e inevitável, conseguiu prosperar e crescer formidavelmente
desde o começo dos anos 90 só porque abdicou de toda autodefinição doutrinal
homogênea e aprimorou a técnica de articular numa unidade de ação estratégica as
mais variadas correntes e dissidências cuja convivência era impossível até então.
Convicções, portanto, sinceras ou fingidas, não têm aí a mais mínima importância.
Para um sujeito falar com alguma propriedade sobre o movimento comunista, deve
antes ter estudado as seguintes coisas:
(1) Os clássicos do marxismo: Marx, Engels, Lênin, Stálin, Mao Dzedong.
(2) Os filósofos marxistas mais importantes: Lukács, Korsch, Gramsci, Adorno,
Horkheimer, Marcuse, Lefebvre, Althusser.
(3) Main Currents of Marxism, de Leszek Kolakowski.
(4) Alguns bons livros de história e sociologia do movimento revolucionário em geral,
como Fire in the Minds of Men, de James H. Billington, The Pursuit of the Millenium, de
Norman Cohn, The New Science of Politics, de Eric Voegelin.
(5) Bons livros sobre a história dos regimes comunistas, escritos desde um ponto de
vista não-apologético.
(6) Livros dos críticos mais célebres do marxismo, como Eugen von Böhm-Bawerk,
Ludwig von Mises, Raymond Aron, Roger Scruton, Nicolai Berdiaev e tantos outros.
(7) Livros sobre estratégia e tática da tomada do poder pelos comunistas, sobre a
atividade subterrânea do movimento comunista no Ocidente e principalmente sobre as
“medidas ativas” (desinformação, agentes de influência), como os de Anatolyi Golitsyn,
Christopher Andrew, John Earl Haynes, Ladislaw Bittman, Diana West.
(8) Depoimentos, no maior número possível, de ex-agentes ou militantes comunistas
que contam a sua experiência a serviço do movimento ou de governos comunistas,
como Arthur Koestler, Ian Valtin, Ion Mihai Pacepa, Whittaker Chambers, David
Horowitz.
(9) Depoimentos de alto valor sobre a condição humana nas sociedades socialistas,
como os de Guillermo Cabrera Infante, Vladimir Bukovski, Nadiejda Mandelstam,
Alexander Soljenítsin, Richard Wurmbrand.
É um programa de leitura que pode ser cumprido em quatro ou cinco anos por um bom
estudante. Não conheço, na direita ou na esquerda brasileiras, ninguém,
absolutamente ninguém que o tenha cumprido.
Há tanta gente neste país querendo dar palpite no assunto, quase sempre com ares de
sapiência, e ninguém, ou praticamente ninguém, disposto a fazer o esforço necessário
para dar alguma substância às suas palavras.
Nenhum esquerdista honesto o fará sem abjurar da sua crença para sempre. Nenhum
direitista, sem reconhecer que era um presunçoso, um bocó e, em muitos casos, um
idiota útil – às vezes ainda mais útil e mais idiota do que a massa de manobra
esquerdista.
A esquerda prospera na exploração da ignorância, própria e alheia. Onde quer que ela
exerça a hegemonia, impera o mandamento de jamais ler as obras de adversários e
críticos, mas espalhar versões deformadas e caricaturais das suas ideias e biografias,
para que a juventude militante possa odiá-los na ilusão de conhecê-los. Universidades
que professam dar cursos de marxismo capricham nesse ponto até o limite do controle
mental puro e simples.
A direita, bem, a direita cultiva suas formas próprias de auto-ilusão, das quais já falei
bastante neste mesmo jornal. Talvez volte ao assunto em outro artigo.

Crocodilos em pânico
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 24 de julho de 2013

Antes de analisar qualquer coisa que o sr. Mauro Santayana escreva, é preciso saber
que ele trabalhou como comentarista político da Rádio Praga, órgão oficial do governo
comunista checo, e foi nada menos que redator-chefe das emissões em português da
Rádio Havana. Essas estações nunca praticaram o jornalismo, no sentido normal do
termo. Eram órgãos de desinformação, partes integrantes da polícia política comunista.
A segunda ainda é. Chamar o sr. Santayana de “jornalista” tout court, sem esclarecer o
uso específico que ele faz dessa fachada profissional, é sobrepor um formalismo
burocrático-sindical à realidade substantiva do trabalho que ele exerce. Ele é, sob
todos os aspectos possíveis e imagináveis, um agente de influência comunista. O
jornalismo é o canal, não a substância da sua atividade.
Um agente de influência não faz propaganda comunista. Mantém-se numa
posição discreta, equilibrada, e só procura influenciar as autoridades e os formadores
de opinião em pontos determinados, precisos, para induzi-los a decisões que sirvam à
estratégia comunista sob pretextos que não pareçam comunistas de maneira alguma.
Esse esforço só se intensifica e sobe de tom quando se trata de medidas urgentes,
vitais para a sobrevivência do movimento comunista. É só aí que o lobo perde a
compostura ovina, rosna, mostra os dentes e sai mordendo.
No momento a coisa mais urgente e vital para o comunismo na América Latina é
afastar a ameaça de uma investigação fiscal no Foro de São Paulo. É urgente e vital
porque há 23 anos essa entidade gasta fortunas incalculáveis, transportando
incessantemente centenas de politicos, intelectuais, militantes e terroristas entre todas
as capitais do continente, hospedando-os nos melhores hotéis, sem jamais informar à
população de onde veio o dinheiro. O envolvimento de alguns de seus membros mais
prestigiosos no narcotráfico é fato notório, comprovado por depoimento do traficante
Fernandinho Beira-Mar e pelos computadores do ex-comandante das Farc, Raul
Reyes, apreendidos pelo exército colombiano.
O Foro de São Paulo é o comando estratégico do movimento comunista latino-
americano. Faz e desfaz governos, interfere na política interna de dezenas de países,
decide os destinos do continente, fornece cobertura a terroristas e narcotraficantes e,
segundo confissão do seu fundador e nosso ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, faz
tudo isso de modo calculado para que “as pessoas não percebam do que estamos
falando” (sic). Chamar isso de conspiração não é portanto uma “teoria”. É usar o termo
apropriado para definir um fato tal como descrito pelo seu autor principal.
Durante dezesseis anos o Foro cresceu em segredo, sob a proteção da mídia
cúmplice que negava a sua existência e que, quando não pôde mais fazer isso, passou
a mostrá-lo sob aparência maquiada, como um inofensivo “clube de debates”. A
desconversa não pegou, é claro, em primeiro lugar porque nenhum clube de debates
emite resoluções unânimes repletas de comandos a ser seguidos pelos participantes;
e, em segundo lugar, porque o próprio fundador da coisa deu com a língua nos dentes,
no discurso que pronunciou no décimo-quinto aniversário de fundação da entidade.
A simples ajuda mútua entre os partidos legais e as quadrilhas de teroristas e
narcotraficantes que o compõem já bastaria para fazer do próprio Foro, como um todo,
uma organização criminosa no sentido mais estrito e legal do termo, mesmo sem
levantar a hipótese, praticamente inevitável, de que a troca de vantagens políticas
importasse em benefícios financeiros ilícitos para qualquer das partes.
No entanto, entre tantos segredos que preenchem a história do Foro, as finanças
são ainda o mais bem guardado. Mesmo depois que, forçado pelas circunstâncias a
passar do silêncio ao exibicionismo histriônico, o seu atual dirigente Valter Pomar
decidiu embelezá-lo como entidade transparente e aberta ao público, nem uma palavra
veio à sua boca em resposta à pergunta decisiva e proibida: Quem paga a festa?
Quem pagou durante 23 anos? As Farc? O governo brasileiro? O petróleo do sr. Hugo
Chávez? Cadê os recibos? Cadê as notas fiscais? Cadê as autorizações de despesa?
Quem lançou essa pergunta, semanas atrás, fui eu
(v.http://www.olavodecarvalho.org/semana/130626dc.html). Esperava que, como todas
as anteriores que coloquei no ar, ela caísse em ouvidos moucos. Para minha surpresa,
alguns grupos de jovens, que não conheço e que não me consultaram em nada,
deram-lhe atenção e fizeram dela uma das bandeiras do seu movimento “Marcha das
Famílias”. Embora a passeata que organizaram contra o comunismo reunisse não mais
de cem pessoas, ela espalhou pelas ruas e pela internet o mais óbvio, inegável e
legítimo dos pedidos: auditoria no Foro de São Paulo, já!
Aí, é claro, foi o pânico. Antes mesmo que qualquer solicitação formal de uma
investigação fosse enviada ao Ministério Público ou à Receita Federal, era preciso criar
contra ela uma predisposição hostil para dissuadir as autoridades, a priori, da tentação
de atendê-la.
Primeiro veio então a página do “Opera Mundi” que, naquele tom lacrimejante
próprio dos crocodilos, se queixava de que o Foro “sofria ameaças violentas”.
Coitadinho. Ele só tem, para defendê-lo, os exércitos de Cuba e da Venezuela, as
tropas das Farc e a militância armada do MST e da Via Campesina, sem contar o
governo brasileiro. Não é mesmo para ficar aterrorizado ante umas dezenas de
estudantes que o xingam pela internet?
Mas logo depois dessa palhaçada entrou em cena, como era de se esperar, o sr.
Mauro Santayana. E veio com uma conversa muito mais interessante. Veremos no
próximo artigo.

A história invertida
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 14 de abril de 2013

O confronto entre militares e terroristas na América Latina dos anos 60-70 foi um
episódio da Guerra Fria, onde os atores locais, sem prejuízo de suas convicções e
decisões próprias, ecoavam, em última instância, as estratégias respectivas das duas
grandes potências em disputa: os EUA e a URSS.
Nada do que então se passou no continente pode ser compreendido sem ter isso
em conta.
Se perguntarmos qual dos dois protagonistas estrangeiros interferiu mais
profundamente no cenário latino-americano, a única resposta honesta é: a URSS.
Do ponto de vista militar, isso é de uma obviedade gritante. Os EUA jamais
chegaram a ter, na época, quarenta mil soldados, quinze mil técnicos em armamentos,
setecentas baterias anti-aéreas, 350 tanques e cento e tantos mísseis balísticos
intercontinentais instalados em nenhum dos seus países aliados na América Latina,
como a URSS teve em Cuba já a partir de 1962 na chamada “Operação Anadyr”. (v.
Gus Russo and Stephen Molton, Brothers in Arms. The Kennedys, the Castros and the
Politics of Murder, New York, Bloomsbury, 2008, p. 158 e aqui).
No que diz respeito à espionagem propriamente dita, a superioridade soviética
surge ainda mais nítida no caso do Brasil em especial. Nada do que a CIA ou qualquer
outro serviço secreto norte-americano possa ter feito aqui se compara às proezas da
KGB, que chegou a instalar um grampo no gabinete do presidente João Figueiredo (v.
George Schpatoff, KGB. História Secreta, Curitiba, Juruá, 2000, pp. 381 ss.),
interceptar 21 mil mensagens sigilosas do nosso Ministério das Relações Exteriores e
ter a seu serviço, como agente pago, nada menos que um embaixador brasileiro em
Moscou (v. Christopher Andrew and Vasili Mitrokhin, The World Was Going Our Way.
The KGB and the Battle for the Third World, New York, Basic Books, 2005, p. 105).
Se daí passamos ao campo das chamadas “medidas ativas” (desinformação,
infiltração, guerra psicológica, agentes de influência etc.), a supremacia soviética no
Brasil daqueles anos assume as proporções de um poder absoluto e incontrastável. Em
1964, a KGB tinha várias dezenas de jornalistas brasileiros na sua folha de
pagamentos (confissão do próprio chefe da agência soviética no Brasil, Stanislav
Bittman, em The KGB and Soviet Disinformation: An Insider’s View). Que o número
deles se multiplicou nos anos seguintes não é algo de que se possa duvidar. Muitos
jornalistas brasileiros, naquele período, fizeram estágios na URSS, na China, na
Tchecoslováquia, na Alemanha Oriental, na Polônia e em Cuba. Uns poucos gabam-se
disso até hoje, seguros de que o público amestrado já não verá aí o menor motivo de
suspeita. Mas naqueles países, onde todos os órgãos de mídia nada mais eram do que
extensões da polícia secreta, é quase impensável que algum jornalista estrangeiro
fosse admitido sem ser em seguida recrutado como agente de influência. Como
assinalam John Earl Haynes, Harvey Klehr e Alexander Vasiliev em Spies: The Rise
and Fall of the KGB in America (Yale University Press, 2009), os soviéticos foram
sempre os campeões absolutos no recrutamento de jornalistas. Nos EUA, hoje
conhecem-se um por um os nomes daqueles que, na mídia americana, serviram à KGB
e ao GRU (serviço secreto militar). No Brasil, esse capítulo da história do nosso
jornalismo é ainda um tabu, mas é evidente que sem ele nada se compreende do
período, principalmente porque em plena ditadura militar os comunistas chegaram a
controlar praticamente toda a grande mídia no país
(v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/111124dc.html,http://www.olavodecarvalho.o
rg/semana/111125dc.html e http://www.olavodecarvalho.org/semana/111130dc.html) e a
dominar também o mercado livreiro através das suas grandes casas editoras
(Civilização Brasileira, Brasiliense, Vitória etc.). Nem falo, é claro, dos agentes de
influência que vindo do bloco soviético se espalharam pelos EUA e pelas democracias
européias, forjando aí a imagem demoníaca do governo brasileiro que acabou por se
consagrar como dogma internacional inabalável.
O conjunto forma uma orquestra formidável, ao lado da qual a voz do
imperialismo ianque mal soava como o miado de um gatinho doente. Ao longo de toda
aquela época, e depois mais ainda, tanto os EUA quanto o governo brasileiro se
abstiveram de fazer qualquer esforço sério para ganhar os “corações e mentes” dos
formadores de opinião neste país. Em plena ditadura, os jornalistas “de direita” nas
redações contavam-se nos dedos das mãos e eram abertamente hostilizados por seus
colegas.
Por fim, até hoje não se fez uma avaliação razoável da quantidade de recursos
mobilizados pelas ditaduras de Cuba, da China, da URSS e seus países satélites para
treinar, equipar e financiar não só os terroristas brasileiros mas os militantes
encarregados de lhes dar apoio político sem participar dos combates. Foi uma
operação de proporções gigantescas, que na imagem pública hoje em dia só aparece
sob a forma de menções esporádicas a “exilados”, como se os comunistas só fossem
para aqueles países quando obrigados a isso pelo governo militar.
Em comparação com a profundidade e amplitude da intervenção cubano-soviética no
continente, e especialmente no Brasil, a ação dos EUA naqueles anos caracterizou-se
pela raridade, timidez e omissão, limitando-se no mais das vezes a acordos entre
governos. Se a imagem que se consagrou na mídia e no ensino foi exatamente a
inversa, isso é mais uma prova do sucesso de uma operação que prossegue ainda
hoje, tendo a seu serviço tanto os megafones quanto as mordaças.

A promessa autoadiável
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 30 de agosto de 2010
Quando o nosso presidente diz: “Ainda não sabemos que tipo de socialismo
queremos”, ele ecoa aquilo que é talvez o mais clássico Leitmotiv do pensamento
revolucionário. Karl Marx já opinava que era inútil tentar descrever como seria o
socialismo, já que este iria se definindo a si mesmo no curso da ação anticapitalista. O
argumento com que Lula justifica sua afirmativa – leiam em America Libre – é
exatamente esse. Em 1968, entre as explosões de coquetéis Molotov que tiravam o
sono do establishmentfrancês, Daniel Cohn-Bendit declarava, com orgulho, que os
estudantes revolucionários queriam “uma forma de organização social radicalmente
nova, da qual não sabem dizer, hoje, se é realizável ou não”. E a versão mais
sofisticada do marxismo no século XX, a Escola de Frankfurt, baseou-se inteiramente
na convicção de que qualquer proposta definida para a construção do socialismo é
bobagem: só o que importa é fazer “a crítica radical de tudo quanto existe”. Critiquem,
acusem, caluniem, emporcalhem, destruam tudo o que encontrem pela frente, e
alguma coisa melhor vai acabar aparecendo espontaneamente. Se não aparecer, tanto
melhor: a luta continua, como diria Vicentinho. Herbert Marcuse resumiu o espírito da
coisa em termos lapidares: “Por enquanto, a única alternativa concreta é somente uma
negação.” Tal como o Deus da teologia apofática, o alvo final do movimento
revolucionário é sublime demais para que seja possível dizer o que é: só se pode dizer
o que não é – e tudo o que não participa da sua indefinível natureza divina está
condenado à destruição. Destruição que não virá num Juízo Final supramundano, com
a repentina absorção do tempo na eternidade – coisa na qual os revolucionários não
acreditam –, e sim dentro da História terrestre mesma, numa sucessão macabra de
capítulos sangrentos: não podendo suprimir todo o mal num relance, só resta ao
movimento revolucionário a destruição paciente, progressiva, obstinada, sem limite,
nem prazo, nem fim. Cumpre-se assim a profecia de Hegel, de que a vontade de
transformação revolucionária não teria jamais outra expressão histórica senão “a fúria
da destruição” (v. meu artigo “Uma lição de Hegel”, aqui publicado em 14 de novembro
de 2008, http://www.olavodecarvalho.org/semana/081114dc.html).
Nessas condições, é óbvio que duzentos milhões de cadáveres, a miséria e os
sofrimentos sem fim criados pelos regimes revolucionários não constituem objeção
válida. O revolucionário faz a sua parte: destrói. Substituir o destruído por algo de
melhor não é incumbência dele, mas da própria realidade. Se a realidade não chega a
cumpri-la, isso só prova que ela ainda é má e merece ser destruída um pouco mais.
É claro que, na política prática, os revolucionários terão de apresentar algumas
propostas concretas, uma aqui, outra acolá, seduzindo mediante engodo os patetas
que não compreendem a sublimidade do negativo. Mas essas propostas não visam
jamais a produzir no mundo real os benefícios que anunciam: visam somente a
enfatizar a maldade do mundo e a aumentar, na mesma proporção, a força de empuxe
do movimento destruidor. Eis a razão pela qual este último não conhece fracassos:
como o processo avança mediante contradições dialéticas, todo fracasso de uma
proposta concreta, aumentando a quota de mal no mundo, se converte
automaticamente em sucesso da obra revolucionária de destruição. Nada incrementou
o poder do Estado comunista como o fracasso retumbante da coletivização da
agricultura na URSS e na China (50 milhões de mortos em menos de dez anos). O
fracasso de Stalin em usar o nazismo como ponta-de-lança para a invasão das
democracias ocidentais converteu-se em aliança destas com os soviéticos e na
subseqüente concessão de metade do território europeu ao domínio comunista:
precisamente o objetivo inicial do plano. A queda da URSS, em vez de extinguir o
comunismo, espalhou-o pelo mundo todo sob novas identidades, confundindo o
adversário ao ponto de induzir os EUA à passividade cúmplice ante a ocupação da
América Latina pelos comunistas. E assim por diante.
Mais ainda: como as propostas concretas não têm nenhuma importância em si
mesmas, não apenas cabe trocar uma pela outra a qualquer momento, mas pode-se
com igual desenvoltura defender políticas contraditórias simultaneamente, por exemplo
incentivando o sex lib, o feminismo e o movimento gay no Ocidente, ao mesmo tempo
que se fomenta o avanço do fundamentalismo islâmico que promete matar todos os
libertinos, feministas e gays. Só se escandaliza com isso quem seja incapaz de
perceber a beleza dialética do processo.
Se não têm nenhum compromisso com qualquer proposta concreta, muito menos
podem os revolucionários ter algum sentimento de culpa ante os resultados medonhos
das suas ações. O que quer que aconteça no trajeto é sempre explicado, seja como
destruição necessária, justa portanto, seja como reação do mundo mau, que deste
modo atrai sobre si novas destruições, ainda mais justas e necessárias. Isso é tanto
mais assim porque o estado paradisíaco final a ser atingido (ou a demonstrar-se
impossível por ser o mundo ainda mais mau do que o revolucionário supunha no
começo) não pode ser descrito ou definido de antemão, mas tem de criar-se por si
mesmo no curso do processo. Por isso o movimento revolucionário não pode
reconhecer como obra sua nenhum estado de coisas que ele venha a produzir
historicamente. O que quer que esteja acontecendo não é jamais – “ainda” não é – o
socialismo, o comunismo, a jóia perfeita na qual o movimento revolucionário poderá
reconhecer, no momento culminante do Fim da História, o seu filho unigênito: é sempre
uma transição, uma etapa, uma conjuntura provisória, criada não pelo movimento
revolucionário, mas pelo confronto entre este e o mundo mau; confronto que por sua
vez faz parte, ainda, do próprio mundo mau, ao qual portanto cabem todas as culpas.
Por sua própria natureza, a promessa indefinida é auto-adiável, e nenhum preço que se
pague por ela pode ser considerado excessivo, não sendo possível um cálculo de
custo-benefício quando o benefício também é indefinido.
A oitava maravilha do mundo, na minha modesta opinião, é que pessoas alheias ou
hostis aos ideais revolucionários imaginem ser possível uma convivência pacífica e
democrática com indivíduos que, pela própria lógica interna desses ideais, se colocam
acima de todo julgamento humano e só admitem como medida das suas ações um
resultado futuro que eles mesmos não podem nem querem dizer qual seja ou quando
virá. Só o conservador, o liberal-democrata, o crente devoto da ordem jurídica, pode
imaginar que a disputa política com os revolucionários é uma civilizada concorrência
entre iguais: o revolucionário, por seu lado, sabe que seu antagonista não é um igual,
não é nem mesmo um ser humano, é um desprezível mosquito que só existe para ser
esmagado sob as rodas do carro da História.

Rabo à mostra
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 3 de agosto de 2010
Que o PT não tenha nenhuma ligação com as Farc é uma alegação que não se pode
aceitar nem a título de hipótese. Mesmo sem levar em conta as atas completas do Foro
de São Paulo, nem os favores obscenos do governo Lula ao representante farqueano
Olivério Medina, nem a completa omissão governamental ante as provas de atividade
criminosa das Farc no nosso território, nem a revelação dos serviços de leva-e-traz
oferecidos pelo sr. Marco Aurélio Garcia entre a narcoguerrilha colombiana e o então
ministro Luiz Felipe Lampreia, até uma criança de cinco anos é capaz de compreender
os seguintes fatos e juntar os pontos:
1. O Foro de São Paulo é a coordenação estratégica do movimento comunista na
América Latina.
2. O sr. Luís Ignácio Lula da Silva e o líder das Farc, Raul Reyes, já presidiram juntos
uma assembléia do Foro, e juntos participaram de todas as outras.
3. É impossível conceber que os dois coordenadores máximos de uma estratégia
comum não tenham nenhuma ligação, nenhuma comunidade de interesses, nenhuma
atividade conjunta.
Quem fez a afirmação número 1 foi o próprio PT, no vídeo preparatório do seu III
Congresso. A número 2 veio da boca do próprio Raul Reyes em 2003, em entrevista
à Folha de S. Paulo, e nenhum representante do PT jamais a desmentiu desde então. A
número 3 é uma exigência incontornável da inteligência humana. Negá-la é fazer-se de
besta. Ou ser besta sem precisar fazer-se tal.
E não venham dizer que tudo isso é coisa de antigamente, que uma vez na presidência
o PT cortou todos os laços com as Farc. Só para dar um exemplo, um modesto
exemplo de como as coisas não são assim: em plena gestão Lula o seu assessor de
imprensa, Gilberto Carvalho, continuou dirigindo, de parceria com o chefe militar das
Farc, Manuel Marulanda Vélez (“Comandante Tirofijo”), a revista de propaganda
comunista “América Libre”. Como poderiam fazê-lo sem ter ligação nenhuma é algo
que só se alcança conceber, se é que se alcança, em estado alterado de consciência.
A propalada ausência de ligações não é algo que mereça discussão, nem mesmo
atenção. É uma desconversa insultuosa, inadmissível, que falta ao mais elementar
respeito para com o ouvinte, o eleitorado em geral, a nação inteira, as leis e a
moralidade. A simples tentativa de impingir ao público uma mentira tão grosseira, tão
boba, tão pueril, já é mostra daquele cinismo ilimitado que caracteriza a mentalidade
sociopática, incapaz de medir, seja a feiúra dos seus atos, seja a inverossimilhança das
palavras que os encobrem.
Quem quer que venha com esse tipo de subterfúgio só prova duas coisas. Primeira:
que tem muito a esconder. Segunda: que ao tentar esconder-se está deixando o rabo à
mostra.
O Brasil, como vários outros países da América Latina, é governado por bandidos
perigosos, frios, calculistas, organizados, firmemente decididos a sujar-se até à
medula, a cometer as mais inconcebíveis baixezas para manter e ampliar
ilimitadamente o seu poder. Felizmente, não são tão espertos quanto se imaginam.
Retorcendo-se em dores para fingir um sorriso de tranqüilidade superior, só o que
conseguem produzir é um sorriso amarelo. Desmentem-se, atrapalham-se, gaguejam
e, no fim das contas, dão a cara a tapa. Só não levam o tapa porque neste país não há
mais homem que o desfira. Nunca um crime esteve tão patente à vista de todos, nunca
tantos desviaram o olhar para não ter de enxergá-lo.
Com aquela ligação esses bandidos estão fazendo o mesmo que fizeram com o Foro
de São Paulo inteiro: primeiro negarão peremptoriamente a sua existência; depois
buscarão dar-lhe aparência de coisa mínima, inofensiva, sem peso nem substância; por
fim, quando sentirem que o perigo do escândalo já passou, começarão a trombeteá-la
aos quatro ventos como façanha gloriosa, merecedora da gratidão da espécie humana.
Contarão, para isso, com a colaboração servil da mídia inteira e de praticamente todas
as lideranças políticas, empresariais, religiosas, culturais, judiciais e militares deste
país. Aqueles que, dessa massa de escravos e sicofantas, se levantarem por um
minuto para esboçar um vago muxoxo, para encenar um débil lamento entre prudentes
pedidos de desculpas e depois voltar ao confortável silêncio de sempre, serão
celebrados como heróis, porque a alma popular se aviltou tanto que já não consegue
conceber o heroísmo senão como paródia, como chanchada, como jogo de cena.

Sun-Tzu às avessas
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 13 de julho de 2010
Talvez seja preciso estar na América Latina para enxergar este fenômeno e crer nos
próprios olhos: o fracasso econômico do socialismo e o desmantelamento da URSS
não debilitaram no mais mínimo que fosse o movimento comunista. Transmutado,
reorganizado, investido de novas estratégias de uma complexidade e sutileza
alucinantes, ele avança com passo mais seguro que nunca, subjugando nação após
nação, consolidando seu domínio nos organismos internacionais, nos órgãos de mídia,
nas instituições de alta cultura e no sistema judiciário até mesmo dos países que mais
valentemente se opunham ao comunismo uma década e meia atrás. O mais
impressionante de tudo foi a rapidez com que cacoetes mentais e critérios automáticos
de julgamento criados por ideólogos comunistas para desmantelar a cultura adversária
se impregnaram, com força hipnótica, nos círculos de “formadores de opinião” em todo
o Ocidente, erigindo uma formidável barreira de preconceitos paralisantes contra
qualquer veleidade de anticomunismo. Em menos de quinze anos, cada item do
programa comunista, com nome apenas levemente alterado, se impôs ao mundo como
um dogma inatacável, sacrossanto, imbuído da autoridade moral de tudo julgar e
condenar sem poder jamais ser ele próprio submetido a exame. O simples ato de
denunciar a origem comunista desses slogans e chavões é estigmatizado como prova
de fanatismo ou paranóia. Mesmo homens que jamais desejariam vê-los postos em
prática se esmeram em protegê-los dos ataques da “extrema direita”, termo redefinido
para abranger tudo o que esteja à direita do centro – um centro que se move cada vez
mais para a esquerda.
Investida do privilégio do inomeável, a ação comunista torna-se invisível e onipresente
ao ponto de poder com a maior facilidade debitar seus próprios crimes na conta do
adversário, induzindo-o a lutar contra si mesmo no momento em que ele mais
precisaria reunir forças para resistir ao ataque. Em muitos países do Ocidente, a
investida islâmica, apoiada e municiada pelos comunistas, desencadeou uma onda de
ódio, não ao Islam, mas à religião em geral e, para cúmulo de absurdo, especialmente
à cristã, fazendo com que muitos povos reneguem a única tradição religiosa que jamais
possuíram, a única que poderia restaurar seu senso de unidade cultural sem o qual
toda resistência se mostra impossível. Essa reação autodestrutiva não é, decerto,
espontânea. Como já se repetiu tantas vezes na História, um exército de liberais
“progressistas”, embriagado de abstratismo doutrinal e cego ante a realidade histórica
concreta, se aproveita da confusão do momento para tentar novamente destruir seu
desafeto de sempre, sem querer ver que, com isto, só fomenta a derrota geral e o
advento de uma tirania que, com toda a certeza, estará nos antípodas de todo
liberalismo. Sun-Tzu ensinava que o segredo da vitória é conhecer o adversário e
conhecer-se a si mesmo. Com a ajuda dos “progresistas”– por desgraça, os
dominadores absolutos da mídia ocidental –, o front comunista-islâmico logrou fazer
com que o adversário o ignore e se ignore a si mesmo, ao ponto de querer furar
alegremente os próprios olhos na véspera da batalha decisiva.
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Sob as ordens do inimigo


Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 23 de junho de 2010
Contei aqui outro dia o caso de um de meus amigos mais inteligentes, anticomunista e
católico fervoroso, líder de uma valente campanha anti-aborto no Brasil, que me
recomendou um livro William F. Engdahl, o qual, dizia ele, rastreava com muita
exatidão a origem do movimento abortista no projeto global de controle da natalidade
concebido e financiado pelos Rockefellers e outros banqueiros internacionais.
Lendo o livro, notei que Engdahl se aproveitava de uma denúncia verídica para jogar
sobre a elite americana todas as culpas dos males do mundo, ocultando a ação dos
comunistas e dos muçulmanos. O que ele omitia era tão importante quanto o que
mostrava, mas meu amigo, com toda a sua experiência de décadas na militância
católica, não se dera conta de nada. Só começou a desconfiar de alguma coisa quando
lhe mostrei os vídeos de propaganda anti-americana que Engdahl fizera para a
televisão estatal russa.
Quase na mesma época, outro amigo meu, igualmente talentoso e brilhante, e tão
anticomunista quanto o primeiro, apareceu defendendo com ardor a liberação das
drogas, com base na concepção liberal de que o Estado não deve se meter na conduta
privada dos cidadãos. Nem de longe lhe ocorria que a aplicação direta e rasa desse
preceito abstrato nas condições históricas presentes da América Latina resultaria na
imediata consagração das Farc como empresa capitalista normal e partido político
legítimo, entregando-lhes de mão beijada tudo o que elas não haviam logrado obter
pela violência.
Um terceiro amigo, americano, militante conservador, lutava pela destruição de todas
as lideranças republicanas que se acomodassem, por motivos de mera tática eleitoral,
a alianças mesmo temporárias com a elite esquerdista. Para ele, toda política que não
seguisse literalmente os preceitos da moral bíblica era coisa do diabo. Em vão tentei
mostrar-lhe que a implantação forçada do cristianismo como regra da politica exigiria
uma concentração formidável do poder estatal, estrangulando a democracia a pretexto
de defendê-la e, em última instância, realizando por meios extra-econômicos a profecia
enunciada por Friedrich Hayek em O Caminho da Servidão. Afinal, o primeiro regime
totalitário da modernidade e a organização da massa militante requerida para implantá-
lo não foram invenções nem de comunistas nem de fascistas, mas de João Calvino na
Suíça protestante.
Em Washington D.C., o Hudson Institute, o mais prestigioso think tank americano,
realizou uma sessão em homenagem à tradição espiritual sufi, enaltecendo-a como
alternativa ao radicalismo islâmico. Não apareceu ali um único expert para lembrar à
platéia que a ocupação cultural e física do Ocidente pelo Islam não surgiu com os
atentados terroristas nem com a imigração em massa, mas é um antigo projeto
das taríqas, as organizações esotéricas sufis.
Na Colômbia, o presidente Uribe combate bravamente as guerrilhas, ao mesmo tempo
que, no afã de levar às suas últimas conseqüências o princípio abstrato da igualdade
democrática, não só apóia todas as iniciativas da revolução cultural esquerdista mas
oferece cargos públicos e proteção militar aos amigos e cúmplices das Farc, ajudando-
os a obter pela via pacífica da sedução e do engodo o que não puderam conquistar
pelo terror. Política análoga segue no Brasil o candidato presidencial José Serra:
reprime eficazmente a criminalidade no Estado que governa, mas se recusa a falar ou
agir contra a aliança PT-Farc que a fomenta e protege.
Em todos os países da Europa Ocidental, os entusiastas da democracia moderna
tentam fechar as portas à invasão islâmica ao mesmo tempo que buscam destruir os
últimos valores civilizacionais cristãos que poderiam protegê-los do invasor.
Em suma, do ponto de vista de liberais e conservadores, tudo parece constituir-se de
processos isolados, de fatores inconexos, de elementos separados. As guerrilhas não
têm nada a ver com a mídia internacional que as apóia, a mídia é totalmente isolada
dos organismos internacionais cujo discurso ela repete ipsis litteris, as ONGs ativistas
alimentadas por dinheiro do narcotráfico não têm nenhum envolvimento com o
narcotráfico, o narcotráfico por sua vez não tem nenhuma conexão com os serviços
secretos russos e chineses que já o controlam desde a década de 60, a política e o
crime são entidades estanques, a invasão islâmica não tem nada a ver com o esquema
globalista euro-americano que a protege descaradamente, os banqueiros internacionais
que financiam movimentos subversivos não são jamais subversivos em si mesmos.
Nada tem nada a ver com nada, e a História, no fim das contas, se constitui apenas da
somatória fortuita de curiosas coincidências. Qualquer tentativa de juntar os pontos
parece a essas delicadas criaturas um sinal de paranóia conspirativa e, sobretudo, uma
tremenda falta de educação.
Em contrapartida, qualquer militante esquerdista, ainda que sem experiência, apreende
intuitivamente a unidade por trás de todos esses processos, mesmo os mais
heterogêneos em aparência, pelo simples fato de que diariamente os vê convergir com
a harmonia de esquadrões bem disciplinados no ataque geral ao inimigo comum, a
civilização do Ocidente.
À articulação mundial da esquerda corresponde a completa desarticulação e
fragmentação das direitas, não só no plano da ação estratégica, mas da simples
percepção dos fatos.
Os marxistas sempre acusaram seu inimigo burguês de ter uma visão abstratista e
mecanizada das coisas, incapaz de apreender a unidade do processo histórico. Se no
passado essa acusação foi injusta, hoje em dia ela é a correta e fidedigna expressão
dos fatos. Por preguiça mental, covardia e inépcia presunçosa, os liberais e
conservadores tornaram-se aquilo que os marxistas queriam que eles fossem.
Cedendo ao inimigo, permitiram que ele os moldasse conforme bem lhe convinha.

Apostando contra o tempo


Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 21 de agosto de 2009
Quando comecei a alertar os leitores quanto ao Foro de São Paulo, mais de uma
década atrás, ainda era possível fazer alguma coisa para deter, sem muitas dores ou
traumas, o crescimento do monstro. Agora, que ele tem o apoio do governo americano
e transformou a OEA em instrumento de suas ambições ilimitadas, só atos de bravura
incomum, sustentados numa visão estratégica implacavelmente lúcida, podem livrar a
América Latina do risco iminente – ou promessa segura – de uma ditadura socialista
continental. Mas será concebível que duas décadas de adestramento contínuo na
prática da covardia e da alienação produzam de repente uma explosão de coragem e
lucidez?
Sei que, medido na escala mental da elite brasileira, o problema, ainda hoje, parece
nem existir. Basta ler as palavras entusiásticas com que o presidente da Confederação
Nacional da Indústria, deputado Armando Monteiro Neto, saudou o presidente da
República ao homenageá-lo com o Grande Colar da Ordem do Mérito, conferido por
aquela entidade:
“A abertura ao diálogo marcou sua história e, no presente, se consolidou como
característica de seu governo… Com uma agenda de preservação dos fundamentos
macroeconômicos e de inovação social, o Brasil se diferenciou. Ganhou confiança
interna e transformou-se em exemplo para a América Latina e o mundo”
(V. http://pt.org.br/portalpt/index.php?
option=com_content&task=view&id=80330&Itemid=195).
Não digo que a “preservação dos fundamentos macroeconômicos” tenha sido de todo
irreal. Digo, sim, que julgar só por ela o desempenho de um presidente, ignorando que
a política econômica do presente governo se enquadra na estratégia maior de
dominação continental do Foro de São Paulo, é coisa de um oportunismo imediatista
imperdoável, voluntariamente cego para as conseqüências históricas de suas opções
de momento.
Já expliquei e vou explicar de novo, com requintes de didatismo que normalmente só
seriam necessários no ensino pré-escolar:
O Brasil foi o criador e é o centro de comando do Foro de São Paulo; como tal, fica na
retaguarda, orientando e protegendo as vanguardas incumbidas das ações táticas mais
imediatas, espetaculosas e arriscadas.
Acalmar e até contentar o empresariado local é a condição sine qua nonpara que o
governo petista possa, sem risco de crises e hostilidades, ir fortalecendo discretamente
a máquina de guerra do Foro de São Paulo, já hoje habilitada a ocupar manu militari o
continente inteiro, só não o fazendo para não correr o risco de abortar um processo
que, pelas vias mais indiretas da política, da subversão cultural e do fomento ao
banditismo, se anuncia de sucesso praticamente inevitável.
Afinal, o governo que “preserva os fundamentos macroeconômicos” é o mesmo que
acoberta a ação das Farc no Brasil, aplaude todos os arreganhos militaristas de Hugo
Chávez, abre o nosso território à ocupação por organismos internacionais e sacrifica
até os mais óbvios direitos da nação para favorecer o crescimento dos governos de
esquerda nos países em torno. Quando um presidente explode de indignação e chega
a desferir palavrões contra um de seus próprios ministros pelo simples fato de que este
cedeu à tentação de defender os interesses nacionais em vez de sacrificá-los à cobiça
estrangeira (v. http://congressoemfoco.ig.com.br/coluna.asp?
cod_canal=14&cod_publicacao=29210), é óbvio que algo de muito estranho, para não
dizer de abertamente criminoso, se passa nas altas esferas da República,
transformadas em agentes locais de um esquema internacional de dominação.
Ajudando a consolidar o poder e prestígio desse governo, por simples gratidão a
pequenas vantagens momentâneas que ele lhe oferece, a Confederação Nacional da
Indústria contribui, involuntariamente decerto, para que em breve tempo o Brasil se
transforme numa singularidade geopolítica jamais vista no mundo: uma nação
capitalista cercada de regimes comunistas e governada pelo próprio agente que os
criou. Quanto tempo durará esse capitalismo quando o processo da revolução
continental em torno estiver completado, é pergunta inteiramente desnecessária: ele
durará o tempo exato para que cada empresário escolha entre submeter-se a um
comissário político ou transformar-se ele próprio em comissário político.
***
Em tempo: Kenneth Maxwell, aquele mesmo consultor do CFR segundo o qual o Foro
de São Paulo não existe (v. www.olavodecarvalho.org/semana/11232002globo.htm),
aparece agora na Folha (onde mais poderia ser?) jurando que “os latino-americanos
são unânimes em seu apoio a Manuel Zelaya, o presidente hondurenho derrubado”.
Já desisti de pensar que o problema desse pretenso historiador é incompetência.
Ninguém com diploma de curso primário pode crer seriamente que um governante foi
derrubado por falta de inimigos. Maxwell é mentiroso, ponto final. É um desinformante
profissional. Eis o único motivo pelo qual é tão apreciado pelo jornal do sr. Frias, órgão
da mídia desconstrucionista que não acredita na existência da realidade.

O deserto dos gringos


Olavo de Carvalho
=p style="text-align: justify;" align="center">Digesto Econômico, julho/agosto de 2009
Se para cada página que se escreveu alertando contra a internacionalização da
Amazônia fosse retirada daquele território uma área de vinte metros quadrados, a
Amazônia já seria internacional faz muito tempo. O terror da cobiça estrangeira
incorporou-se ao imaginário nacional pelo menos desde a presidência Arthur Bernardes
(1922-1926), alimentado menos pela iminência de perigos reais do que pela má-
consciência de possuirmos um território bem maior que a nossa capacidade de
defendê-lo, só preservado como unidade, precisamente, pelo desinteresse blasé dos
presumidos invasores que, como os tártaros de Italo Calvino, não se fazem notar senão
por sua longa, humilhante, insuportável demora em atacar-nos.
A tagarelice que ainda hoje e com intensidade crescente fomenta o perpétuo e jamais
recompensado estado de alarma contrasta, da maneira mais patética, com a
incapacidade nacional de fazer face às duas únicas ações efetivas empreendidas até
agora para violar a nossa soberania naquele pedaço do planeta: a transferência de
imensas faixas de terra para “nações indígenas” biônicas e a intensa presença das
Farc na região amazônica. Tanto se gritou contra ameaças imaginárias, que nada se
pôde fazer contra as agressões efetivas, principalmente porque não vieram da direção
tradicionalmente esperada – o tão execrado e temido “imperialismo ianque” –, mas do
flanco simetricamente oposto: a esquerda internacional. Que esta era de fato a única
fonte possível de arranhões e fraturas na nossa integridade territorial, eis uma
obviedade que eu já vinha advertindo faz mais de uma década, sem merecer atenção,
é claro, de ouvidos programados para ouvir tão-somente o contrário.
O caso Raposa Serra do Sol ilustra, da maneira mais deprimente, a facilidade com que
os organismos internacionais, diretamente ou através da imensurável rede de partidos
de esquerda, ONGs militantes e órgãos de mídia cúmplices, nos impõem as mudanças
que bem entendam, sem suscitar senão reações débeis e impotentes. Com a mesma
desenvoltura arrogante com que nos proíbem de fumar, de ler notícias tidas como
indesejáveis, de ter armas para defesa da nossa vida e propriedade, de usar certas
palavras em público ou de julgar as coisas segundo a nossa própria religião, elas
removem milhares de brasileiros de suas terras para entregá-las a ongueiros
travestidos de índios, e todo o clamor nacional contra isso, ao esbarrar na vontade
implacável de nossos mandantes estrangeiros, vai definhando, definhando, até esvair-
se num lamento inaudível.
Quanto às Farc, senhoras absolutas do narcotráfico na América Latina inteira graças ao
Plano Colômbia do Sr. Bill Clinton, que as deixou intactas enquanto removia do
caminho os seus concorrentes, suas atividades no Brasil, sob o patrocínio político e
moral do Foro de São Paulo, estendem-se deste a floresta amazônica, onde entram e
saem como se fosse sua própria casa, trazendo drogas, comprando armas, matando
uns brasileiros, recrutando outros, até as escolas onde vendem cocaína impunemente
às nossas crianças; desde os altos escalões da República onde seus parceiros brilham
nos ministérios e no comando do PT, até as ruas das grandes capitais onde seus
agentes terceirizados do Comando Vermelho e do PCC mantêm a população sob o
regime do terror, contribuindo com uma quota significativa para o nosso recorde
mundial de 50 mil homicídios por ano.
É chocante comparar a passividade nacional ante esses duas desgraças efetivas e
presentes com o reiterado empenho alarmista voltado contra a fantasiosa e a rigor
impossível “invasão ianque”, empenho movido, sobretudo, pelos próprios membros,
amigos, simpatizantes e idiotas úteis do Foro de São Paulo. Que os invasores reais
mantenham a nação hipnotizada e sonsa, desviando suas atenções para o temor de
invasões hipotéticas, é mais que compreensível: a mentira e a camuflagem são da
essência mesma da estratégia. Mas que elites políticas, intelectuais, econômicas e
militares sem nenhum interesse direto nesse engodo se deixem iludir por ele, é sinal de
um estado de alienação que o mero comodismo não explica.
Este fenômeno não pode ser compreendido sem um breve exame das peculiaridades
do nacionalismo brasileiro.
Por toda parte, a idéia nacionalista, desde que existe, está associada ao sentido
histórico, ao culto de valores e símbolos consolidados por uma longa experiência
comum e transmitidos de geração em geração. No Brasil não há nada disso. O
desprezo pelo passado, o total desconhecimento das conquistas históricas e das
grandes criações culturais que poderiam dar fundamento a um nacionalismo genuíno já
se tornou um dado constante da mentalidade pública ao ponto de que a simples
menção a esse patrimônio é recebida, nas escolas ou em qualquer conversa
doméstica, com estranheza e chacotas. O elemento mais essencial de uma cultura
nacionalista – o amor à língua – falta por completo nos nossos hábitos e afeições.
Entre os intelectuais, o desprezo aos fundadores do país e aos heróis que
consolidaram a nacionalidade é quase um dever moral, exceto quando o personagem,
acidentalmente, pode ser aproveitado como símbolo do ressentimento esquerdista,
como é o caso do marinheiro João Cândido ou da figura vaga e nebulosa de Zumbi dos
Palmares.
No tempo dos militares, o primeiro e único filme brasileiro que glorificava em grande
estilo os heróis da Independência foi recebido pela elite intelectual com nada menos
que nojo, ao passo que o livro de Júlio José Chiavenato, “Genocídio Americano”, que
acusava o país de uma infinidade de crimes hediondos imaginários, recebia aplausos e
louvores.
Nada ilustra melhor o caráter paradoxal e autodestrutivo do nosso nacionalismo do que
o Movimento Modernista de 1922, cuja máxima expressão literária, o “Macunaíma” de
Mário de Andrade, retrata o caráter nacional com as feições mais abjetas e
desprezíveis, enquanto a pretensa afirmação da “língua brasileira”, rompendo os laços
culturais com Portugal, e privando-nos assim do influxo benéfico das poderosas
conquistas culturais portuguesas do século XX, tornou-nos escravos da moda francesa
e institucionalizou um linguajar de um artificialismo sufocante, miseravelmente datado.
Nessas condições, o mais lógico seria dizer que no Brasil não há nacionalismo
nenhum, que a tendência nacional é para uma cultura de ódio à Pátria. Essa cultura, de
fato, existe, mas, como camuflagem e compensação psicológica, colocou-se em cima
dela um tipo peculiar de falso nacionalismo, voltado não para os valores espirituais da
história, mas para a geografia e o valor material do território. Ao desprezo por tudo o
que de mais elevado os brasileiros criaram ao longo dos séculos faz contraponto o
culto idolátrico das terras, do minério, do potencial hidrográfico e, mais recentemente,
da “biodiversidade” – tudo isso acompanhado, é claro, do temor de que os estrangeiros
nos roubem essas maravilhas.
Expressão de uma mentalidade provinciana, deformada pelo materialismo mais vil,
esse tipo de nacionalismo jamais poderia fomentar, nas almas que ele afeta, uma
reflexão frutífera e realista sobre os problemas nacionais. Muito menos poderia
alimentar, nelas, aquele tipo de vida intelectual superior que é necessário para que a
classe dos formadores de opinião chegue a ter uma compreensão séria da posição do
país na história política e espiritual do mundo.
O nacionalismo brasileiro é apenas uma forma quase demencial de alienação da
realidade.
Esse gênero de deformidade mental aparece sobretudo quando a atividade das
inteligências não é movida por um desejo sincero de conhecer a realidade, muito
menos de elevar-se espiritualmente, mas passa a refletir motivações menores,
oportunismos de momento. A tendência nacional para uma forma degradada e
impotente de nacionalismo, que já existia pelo menos desde a proclamação da
República, veio a ser fortalecida por quatro oportunismos sucessivos:
1. Quando Stalin, na década de 30, ordenou que os Partidos Comunistas explorassem
as tensões entre nações ricas e pobres, bem como entre diferentes grupos étnicos,
dando-lhes o teor de “luta de classes”, isto imediatamente gerou um falso nacionalismo
de esquerda que se permitia depreciar todas as tradições nacionais, apenas odiando o
“imperialismo americano” mais do que odiava a elas. A retórica gerada por esse tipo de
nacionalismo fazia o possível para aviltar os heróis e símbolos nacionais, a religião
majoritária que unificara o país, as Forças Armadas, etc., exaltando, ao mesmo tempo,
o “povo anônimo” que, significativamente, nunca aparecia simbolizado por honestos
trabalhadores, mas por bandidos e prostitutas.
2. A Revolução de 30 e a ditadura Vargas buscaram implantar, em oposição a isso,
uma imagem nacionalista rósea, de agência de turismo, dando aos comunistas ainda
mais motivos de desprezo e chacota.
3. Novo empenho nesse sentido foi feito pelos governos militares entre 1964 e 1978,
sobretudo na base da publicidade maciça sustentada por slogans de uma estupidez
sem par. Um governo que fora elevado ao poder por um movimento de reação
anticomunista absteve-se, vergonhosamente, de toda luta cultural contra o comunismo,
buscando, ao contrário, desviar as atenções para um patriotismo postiço incumbido de
superar por mágica as tensões ideológicas.
4. Após a redemocratização, muitos militares, sentindo sua classe acossada e
humilhada pela mídia, buscaram alívio na exploração de um discurso nacionalista que
os aproximasse da esquerda. Nada podia aviltar mais as Forças Armadas do que essa
tentativa de seduzir seus inimigos que, por seu lado, nada cediam, mas continuavam
diariamente, na mídia e nas instituições de cultura, a mover guerra aberta contra a
honra dos militares, recorrendo até ao expediente de acusá-los de crimes imaginários,
impossíveis. Na revista de ESG sucediam-se artigos “anti-imperialistas” – muitos deles
na base do alarmismo amazônico – que não se distinguiam em nada daquilo que se
podia ler em publicações comunistas. Num círculo de oficiais nacionalistas, cheguei a
ouvir o apelo de um conhecido líder esquerdista a que a antiga esquerda armada e os
militares esquecessem suas antigas desavenças e se unissem num esforço comum
contra “o imperialismo” e o “neo-liberalismo”. Os aplausos que se seguiram foram a
prova de que a honra militar era coisa do passado. Aplausos idênticos vi e ouvi de
quase setecentos oficiais militares, no Clube da Aeronáutica, quando da apresentação
do então candidato presidencial Luís Inácio Lula da Silva. O ressentimento militar pelo
corte de verbas durante o governo Fernando Henrique tinha levado aqueles homens a
cortejar o apoio daqueles que diariamente cuspiam na imagem das Forças Armadas e
não davam um minuto de descanso aos acusados de “tortura”.
Como é possível que um nacionalismo inspirado em oportunismos tão torpes e
mesquinhos gere uma visão correta da realidade, um diagnóstico adequado da
situação e a defesa eficaz dos interesses nacionais no quadro do mundo?
Um nacionalismo genuíno ainda está para surgir no Brasil. Como ele é o pressuposto
de uma verdadeira compreensão do problema amazônico, esta compreensão ainda vai
demorar um pouco. No momento, até mesmo oficiais militares, excitados ante a
perspectiva de um caso de amor com seus inimigos de ontem, estão mais preocupados
com as bases americanas na Colômbia do que com os quadrilheiros das Farc que já
dominam grande parte do nosso território e, através do Foro de São Paulo, governam o
Brasil. Nunca houve um só caso de ocupação permanente de um país estrangeiro por
tropas americanas. Mas há casos e mais casos de dissolução de soberanias nacionais
por penetração insistente de tropas guerrilheiras, mesmo não tão equipadas, ricas e
politicamente bem sustentadas como as Farc. A constância com que os nossos
pretensos patriotas cedem tudo para o lado mais ameaçador e se intoxicam de alarmas
contra perigos inexistentes é a prova mais evidente de uma alienação que torna o país
cada vez mais fraco, mais indefeso contra os perigos reais.

A OEA, órgão do Foro de São Paulo


Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 20 de julho de 2009
A teoria de que o think tank democrata “Diálogo Interamericano” controla o Foro de São
Paulo foi lançada pelo meu amigo José Carlos Graça Wagner no começo dos anos 90,
uma época em que ninguém no Brasil – muito menos ele próprio – tinha uma visão
clara do esquema globalista em ação nos EUA. O dr. Wagner foi o pioneiro nas
investigações sobre o Foro de São Paulo, mas tão longe da realidade ele estava
quanto a esse ponto em particular, que interpretava as ações do Diálogo em termos do
interesse nacional dos EUA, acreditando que o apoio dado por aquela entidade à
esquerda latino-americana visava a conter o fluxo da imigração ilegal que ameaçava a
segurança interna daquele país. Transcorrida uma década e meia de apoio constante
da esquerda democrata à abertura das fronteiras para os ilegais, essa hipótese deve
ser considerada apenas um erro já longamente superado. Desenterrá-la é deixar-se
hipnotizar por um fantasma.
Que houve colaboração entre o Diálogo e o Foro, não se pode negar. Pelo menos um
encontro discreto entre representantes das duas entidades aconteceu em maio de
1993. O fato foi completamente ocultado pela grande mídia norte-americana e só saiu
na edição cubana do Granma no dia 5 daquele mês. Como no ano passado eu
recebesse dos arquivos do Dr. Graça Wagner um recorte parcial da matéria, pedi que
um assistente meu buscasse o texto integral na Biblioteca do Congresso. A coleção
completa do Granma estava lá: só faltava a edição de 5 de maio de 1993. A mesma
lacuna observou-se em várias outras bibliotecas, alimentadas por aquele organismo
central. Coincidência ou não, a então diretora da seção latino-americana da Biblioteca
do Congresso era a mesma pessoa que havia organizado o encontro entre o Diálogo e
o Foro quinze anos antes.
Por mais comprometedor que seja esse episódio, não se deve exagerar a sua
importância, porque depois dele aconteceram tantos outros contatos diretos entre
agentes globalistas de maior porte e representantes do Foro de São Paulo, e até
mesmo das Farc, que as conversações de 1993 não podem ser vistas, hoje, senão
como o vago começo de um flerte que já se estabilizou como casamento faz muito
tempo. Mais ainda, esses contatos envolveram membros do CFR, Council on Foreign
Relations, entidade todo-poderosa da qual o Diálogo Interamericano não passa de uma
subestação retransmissora. Expliquei isso em artigo aqui publicado em 5 de junho de
2006.
Longe de representar uma expressão do poderio nacional americano (embora se utilize
dele para seus próprios fins), o esquema globalista que protege a esquerda radical e o
narcotráfico na América Latina tem o propósito declarado de quebrar a hegemonia dos
EUA, facilitando a transformação da ONU em governo mundial. A eleição de Barack
Obama, forçada por meio do controle absoluto dos meios de comunicação, que privou
o eleitorado de informações essenciais sobre um candidato suspeitíssimo no qual
jamais votaria se soubesse quem ele era, foi uma etapa importante do processo. Todas
as medidas tomadas pelo presidente desde sua posse são perfeitamente coerentes
com os objetivos de seus mentores: debilitar militarmente os EUA, destruir a economia
nacional por meio do gasto público desenfreado e da inflação, desmantelar a
resistência nacionalista (especialmente a direita religiosa), isolar Israel, favorecer a
ascensão islâmica e proteger por todos os meios, inclusive os mais obviamente
imorais, a esquerda radical na América Latina. Nunca um presidente norte-americano,
com a modesta exceção de Jimmy Carter, foi tão coerentemente inimigo do seu país.
Sua mais recente iniciativa nesse sentido não poderia ser mais clara: condenando
Honduras numa seção em que a parte acusada não teve o menor direito de defesa, a
OEA consolidou-se como escritório de advocacia a serviço do castrochavismo, do
narcotráfico e de tudo o que pode existir de mais anti-americano ao Sul do Rio Grande.
Mais realista do que os tagarelas iluminados da nossa mídia, ainda e sempre
empenhados em camuflar as ações do Foro de São Paulo sob toneladas de
desconversas anestésicas, a imprensa de Honduras foi direto ao ponto: informou que,
pelos bons préstimos de Barack Obama, o Foro de São Paulo assumiu o controle da
OEA.

Antonio Gramsci

Cretinices gramscianas (II)


Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 7 de junho de 2015
A teoria embutida no espaço entre o fato e a generalização que Gramsci dela extrai é a
própria teoria gramsciana da hegemonia, segundo a qual a cultura reinante em
qualquer época ou lugar é o instrumento pelo qual a classe dominante impõe sua
ditadura mental a toda a população.
Interpor uma teoria entre os fatos e a conclusão, em vez de esperar que a própria
acumulação de fatos sugira a conclusão, já é trapaça suficiente para desmoralizar
qualquer teorizador.
Mas a teoria da hegemonia ultrapassa os últimos limites da vigarice razoável e tenta
nos fazer engolir como realidade universal e constante algo que é uma impossibilidade
material pura e simples.
Essa impossibilidade já estava presente na teoria marxista da “ideologia de classe”, da
qual a “hegemonia” gramsciana é um prolongamento.
Se cada classe tem uma ideologia que é a expressão idealizada dos seus interesses
materiais, então, das duas uma: ou cada um dos seus membros está atrelado de uma
vez para sempre à ideologia da sua classe como se fosse uma segunda natureza; ou,
ao contrário, pode abjurar dela e aderir à ideologia de outra classe, como fez, ou
acreditava fazer, o próprio Karl Marx.
Só que neste caso não há mais conexão orgânica entre classe e ideologia; tudo se
torna uma questão de livre escolha e não há mais “ideologia de classe” nenhuma, só a
ideologia que cada indivíduo, livremente, atribui à sua classe ou a uma outra qualquer,
conforme a interpretação que faça dos interesses desta ou daquela.
Gramsci agrava formidavelmente a situação ao declarar que quem produz a ideologia
não são propriamente os membros de cada classe, mas sim os “intelectuais” que a
representam sem ter de pertencer necessariamente a ela.
Esses representantes são “intelectuais orgânicos” da burguesia e do proletariado. Mas,
se o são sem precisar ser eles próprios burgueses ou proletários, a conexão entre eles
e a classe que representam não pode ser “orgânica” de maneira nenhuma e sim
matéria de livre escolha, nada impedindo que um intelectual passe, ideologicamente,
da “burguesia” para o “proletariado” (como Georg Lukács) ou vice-versa (Eric Hoffer,
por exemplo).
Ademais, quem infunde nos intelectuais a “ideologia de classe”? Para que o burguês
adestrasse intelectuais na ideologia burguesa seria preciso que ele, na condição de
mestre, a dominasse melhor que os discípulos: esse burguês seria, então, um
superintelectual, um intelectual dos intelectuais, o maître à penser da intelectualidade,
reduzindo-a à condição de mera repetidora do discurso aprendido.
Mutatis mutandis, e piorando ainda mais as coisas, os “intelectuais orgânicos” do
proletariado se tornariam meninos de escola operária, tomando lições de dialética
hegeliana e materialismo histórico com professores pedreiros e ferramenteiros.
Essas situações caricaturais não existem na realidade, no mínimo porque o próprio
Gramsci nos assegura que quem cria as ideologias das classes não são as próprias
classes, e sim os intelectuais.
Nem poderia ser de outra forma. No mínimo a transposição de interesses materiais
numa linguagem de valores, ideias e teorias requer um considerável treinamento
especializado nas áreas de filosofia e ciências humanas, que nem um capitalista nem
um operário poderiam adquirir nas horas vagas. (Sob esse aspecto é interessante
comparar o gramscismo com a teoria da “violência simbólica” de Pierre Bourdieu, outro
ídolo, ainda que menorzinho, da intelectualidade esquerdista; (leia aqui e aqui).
Mas, então, nem a ideologia proletária é proletária nem a burguesa é burguesa: são
ambas puras criações de intelectuais, que as atribuem a esta ou àquela classe, sem
precisar consultá-las, conforme interpretem livremente os “interesses” de cada uma.
Não é coincidência, pois, que Karl Marx já tivesse descrito a “ideologia proletária”
inteira antes de ter visto de perto um único proletário.
Na melhor das hipóteses, o burguês e o proletário se tornam “tipos ideais” que existem
apenas na cabeça do intelectual para fins de comparação com personagens reais que
só se parecem com eles de maneira longínqua e esquemática.
Gramsci não admite explicitamente essa conclusão inevitável da sua teoria, mas, como
quem não quer nada, extrai dela uma consequência prática que, para o bom
entendedor, já denuncia a falácia da construção inteira.
Quem cria as ideologias de classe? Os intelectuais. Quem, com base nela, cria a
hegemonia, o controle geral do pensável e do impensável? Os intelectuais. Quem
lidera a revolução? Os intelectuais. Quem assume o poder por meio da revolução? Os
intelectuais.
Burgueses e proletários são, no fim das contas, apenas os emblemas dos times em
jogo. É de espantar que no paraíso burguês os burgueses sejam esfolados com
impostos, induzidos a financiar filmes e shows que os demonizam e a contribuir com
rios de dinheiro para organizações esquerdistas que prometem matá-los?
É de espantar que no paraíso proletário os proletários sejam submetidos a condições
de trabalho escravo, privados do direito de greve, removidos de um lugar para outro
sem poder reclamar, policiados vinte e quatro horas por dia e obrigados a entoar
cânticos de glória ao Supremo Intelectual e Guia dos Povos?
Tudo não passa, então, de uma disputa de poder entre dois grupos de intelectuais,
cada um defendendo os interesses que atribui a uma classe à qual não tem de
pertencer e que na maior parte dos casos não foi consultada a respeito.
O que é líquido e certo, embora Gramsci não o diga, é que os intelectuais orgânicos
“da burguesia” não pretendem tomar o lugar dela; quem o pretende são os outros, os
“intelectuais proletários”.
Nunca se viu um escritor apologista do capitalismo ansioso para deixar de lado seus
afazeres intelectuais e tornar-se industrial ou especulador da bolsa. Em contrapartida,
nenhum, absolutamente nenhum “intelectual proletário” que eu conheça planeja fazer a
revolução proletária para depois continuar vivendo modestamente das suas funções de
professor, jornalista ou pesquisador científico.
Tomar o poder e exercê-lo na máxima medida das suas possibilidades é a essência e
missão da intelectualidade revolucionária. O que ela quer não é assumir o lugar da
intelectualidade direitista, mas o da burguesia.
Isso torna evidente que, na maior parte dos casos, ela disputa o poder com um grupo
que não o detém nem o deseja. Basta isso para explicar a inermidade estrutural da
intelectualidade conservadora e liberal ante o avanço esquerdista.
É algo que não tem nada a ver com superioridade ou inferioridade intelectuais, mas
com desejo ou falta de desejo de poder. Quando o sr. Lula sentenciou que seus
inimigos “não tinham perspectiva de poder”, acertou na mosca.
Para completar a fantasia com um toque de alucinação, Gramsci admite que nem todos
os intelectuais participam conscientemente da “luta de classes”. Alguns – em geral a
maioria deles – são indiferentes à política e se satisfazem com suas ocupações
filosóficas, científicas ou artísticas, sem se preocupar em saber quem isso vai favorecer
nas próximas eleições.
A esse grupo Gramsci denomina “intelectuais tradicionais”, acrescentando que são
neutros e apolíticos só em imaginação, por falsa consciência; na verdade são servos
inconscientes do status quo tanto quanto os intelectuais orgânicos “burgueses”.
Ou seja: os “intelectuais proletários” estão em perpétua disputa de poder não somente
com intelectuais orgânicos burgueses que não aspiram ao poder, mas com toda uma
comunidade intelectual que não quer nem saber da existência dessa disputa.
A consequência disso, do ponto de vista cognitivo, é devastadora: o intelectual
esquerdista explica toda a sociedade como uma projeção inversa dos seus próprios
valores e metas, pouco lhe importando a auto explicação que os demais grupos e
indivíduos tenham a apresentar.
Para ele, a sociedade, a história, a existência humana inteira giram em torno do seu
objetivo grupal, da sua luta pelo poder, que no seu entender move todo o restante
como o cão abana a cauda. Ele, em suma, é o fator ativo, o criador da História, a única
realidade efetiva: todo o resto da humanidade são sombras que se mexem à sua voz
de comando.
É uma visão horrivelmente autocêntrica, solipsista, psicótica mesmo, que se espalha
com facilidade entre estudantes universitários pelo simples fato de que é a mais
reconfortante compensação neurótica do seu justo sentimento de inutilidade social.
***
Não é só na esquerda militante que o pensamento de Gramsci inocula o seu veneno
alienador e estupidificante. Chego a pensar que basta admirá-lo um pouquinho,
suspender o juízo crítico por uns instantes, para que algo do besteirol gramsciano entre
e permaneça para sempre.
Por ocasião de um de seus últimos chiliques anti-olavéticos, cuja razão de ser escapa
ao entendimento humano, o sr. Marco Antônio Villa, na ânsia doida de exaltar tudo o
que critico, chegou a proclamar que a subsistência da democracia na Itália do pós-
guerra foi obra do gramscismo imperante no Partido Comunista Italiano.
É com certeza a coisa mais burra que já saiu da boca de um pretenso historiador.
Raiva descontrolada é vexame na certa. O regime democrático só sobreviveu na Itália
graças à derrota acachapante que, contra todas as previsões iluminadas, a Democracia
Cristã de Alcide De Gasperi, mobilizando o apoio de toda a população católica na
primeira eleição geral realizada após a queda do fascismo, impôs em 18 de abril de
1948 ao Front Popular comunista, que desde então foi saindo do cenário político, por
etapas sucessivas, para a lata de lixo da História.
Se o sr. Villa quiser alguma bibliografia sobre o assunto, posso lhe fornecer, mas só se
ele pedir com jeito.

Cretinices Gramscianas (I)


Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 1 de junho de 2015
Como foi que o comunopetismo, após cinco décadas de hábil e continuado esforço
para conquistar a hegemonia segundo a receita de Antonio Gramsci, caiu do sucesso
avassalador para o fracasso total em apenas um dia, a data fatídica de 15 de março?
A resposta é simples: a receita gramsciana está errada. Não funciona. Não vale nada,
seja como análise da estrutura do poder, seja como fórmula para conquistá-lo. Serve
para infundir na esquerda um entusiasmo temporário que termina por jogá-la num
buraco ainda mais fundo do que aquele do qual pareceu tirá-la no começo.
Tal como o marxismo clássico, o revisionismo de Bernstein e Kautsky, o leninismo, o
stalinismo, o trotskismo, o maoísmo, a teoria “foquista” de Régis Débray, o marxismo
estrutural de Louis Althusser e não sei mais quantas versões e remodelagens, o
gramscismo nunca passou de mais uma na série interminável de formas ilusórias, entre
patéticas e mortíferas, de que o marxismo se revestiu no empenho louco de dominar a
realidade total e moldar o curso da História.
Um traço essencial do pensamento esquerdista, cuja disseminação nas escolas
brasileiras basta por si só para explicar o decréscimo de capacidade dos nossos
estudantes, jornalistas, professores universitários e intelectuais em geral, é aquele que,
à falta de melhor nome, chamo “indução mediada”.
No processo normal do conhecimento científico, o acúmulo de fatos convergentes
sugere uma constante, que então se consolida em hipótese descritiva e deve ser
testada no confronto com possíveis fatos divergentes, antes mesmo de adquirir o
estatuto de “teoria”.
Na visão esquerdista das coisas, entre os fatos e a hipótese descritiva já se interpõe
toda uma teoria prévia – carregada, sempre, de moralismo acusador – que não só
obriga os fatos a ir na direção desejada, mas obstaculiza, proíbe e impossibilita de
antemão o confronto com os fatos divergentes, ao ponto de que o simples fato de
alegá-los se torna prova da acusação embutida.
Notem bem: eu não disse que isso acontece de vez em quando, que é um cochilo
frequente entre pensadores de esquerda. Disse que é um traço essencial e infalível,
presente mesmo nas criações mais altas da intelectualidade esquerdista e sem o qual
ela não poderia ser esquerdista de maneira alguma.
A teoria interposta tem uma infinidade de versões, mas pode-se resumir numa
premissa simples e unívoca: Todos os males do mundo provêm de que aqueles que
estão no poder não somos nós (comunistas e afins). Levei décadas para perceber que
essa premissa, com toda a candura da sua estupidez brutal, está presente em cada
linha não só dos “clássicos do marxismo”, Marx, Engels, Lênin, Stalin, Mao, mas dos
militantes intelectuais marxistas mais sofisticados, como Lukacs, Sartre, Merleau-Ponty,
Foucault, Althusser, Gramsci.
Retire-a, e tudo o que eles escreveram não passará de um imenso e insensato non
sequitur, tirando dos fatos conclusões que eles não sustentam nem em sonhos. Ponha-
a de volta, e tudo começará a fazer sentido, mas não como teoria científica e sim como
camuflagem pseudocientífica de uma intransigente e psicopática reivindicação de
poder.
O próprio Marx já confessou isso implicitamente na sua 11a. Tese sobre Feuerbach:
“Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo; o que importa é transformá-lo. ”
Se o filósofo pode exercer a sua atividade contemplativa longe dos altos escalões do
poder e sem nenhuma intenção nem mesmo de frequentá-los, “transformar o mundo”
requer, como primeiríssima condição, o poder de fazê-lo. Tudo, absolutamente tudo no
pensamento marxista, marxiano, pró-marxista e marxistóide depende
fundamentalmente dessa premissa, sem a qual ele não poderia ser o que é.
Isso quer dizer que, mesmo ao falar de assuntos que estão aparentemente a léguas de
qualquer luta pelo poder – as tragédias de Ésquilo, a arquitetura das catedrais ou a
música de Mozart – o intelectual marxista (uso o termo lato sensu) está sempre
investigando a mesma questão ou série de questões: Quem está no poder, como
chegou lá, como podemos tirá-lo de lá e ocupar o lugar dele?
Tudo, absolutamente tudo entre o céu e a terra, é examinado sob esse prisma e
somente sob ele. A variedade mesma dos assuntos que interessam aos marxistas é a
prova de que essa perspectiva obsessivamente limitada e limitadora pode ser
estendida a todos os objetos possíveis, já que tudo pode ser útil para a conquista do
poder, da mesma maneira que tudo pode ser meio ou obstáculo para a conquista de
qualquer outro objetivo humano: a felicidade, a salvação da alma, a glória de uma
nação ou raça, a prosperidade geral, a paz universal etc. etc.
Tudo o que existe, sob qualquer modo que seja, se torna então um instrumento de
dominação, e todo o problema consiste em saber como tomá-lo dos seus detentores
passados e presentes e entregá-los aos comunistas.
Imaginem, por exemplo, em quê se transforma, na perspectiva marxista (repito: lato
sensu), o estudo da linguagem.
Antonio Gramsci enfatiza que em muitas línguas o adjetivo “bom” vem da mesma raiz
que significa “rico” ou, como no latim, é ele próprio um sinônimo de “rico”.
O consensus bonorum omnium, “consenso de todos os homens bons”, a que Cícero
apela contra o sedicioso Catilina, não é outra coisa senão a opinião dos ricos e
poderosos, os membros do Senado, os optimates em oposição aos populares.
É um fato. Mas Gramsci interpreta-o como prova de que a linguagem é por excelência
um instrumento da hegemonia, o controle do que a sociedade pode ou não pode
pensar. Na medida em que acredita que os ricos são os bons, ela se sentirá inibida de
agir contra eles.
Mas, se fosse assim, todas as palavras do idioma deveriam enaltecer as virtudes dos
ricos e vituperar os vícios dos pobres. Não poderia existir, por exemplo, a palavra
corruptio, que no uso romano significava eminentemente induzir ao mal por meio de
propinas – um modo de agir que é próprio dos ricos e não está ao alcance dos pobres.
Nem poderia existir o verbo spolio, spoliare, que, em contraste com outras acepções do
verbo “roubar”, como subripio, latrocinor, surrupio etc., designa eminentemente a
espoliação do fraco pelo forte, do pobre pelo rico.
Se a linguagem fosse propriedade dos ricos e instrumento da sua glória, toda palavra
que por si insinuasse alguma coisa contra eles deveria ser suprimida do vocabulário.
Se não o é, é pela simples razão de que as palavras não são consagradas no
vocabulário dominante pela classe dominante, mas pelos gramáticos e escritores, que
tanto faz serem pobres ou ricos, assim como pelo uso popular repetido, que se
prolonga pelos séculos e transcende quaisquer disputas momentâneas de poder.
“Bom” ser usado como sinônimo de “rico” não significa que os ricos sejam sempre
bons, o que seria uma crença demasiado pueril para ter qualquer eficácia retórica, mas,
simplesmente, que é melhor ser rico que ser pobre — uma verdade que os pobres
conhecem até mais que os ricos.
Isso sem contar o fato banal de que qualquer adjetivo pode ser usado em sentido literal
ou em sentido irônico, dependendo da construção da frase. Para usar os termos
clássicos de Saussure, o significado das palavras não é decidido no nível da língua,
mas no da fala – no uso concreto que as pessoas fazem da língua.
O cão, o lobo e o rato
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 8 de maio de 2015
Giambattista Vico ensinava que nada conhecemos tão bem quanto aquilo que nós
mesmos inventamos. O sr. Marco Antonio Villa ilustra essa regra com perfeição.
Após declarar, em artigo do Globo, que, “na política é indispensável, ao enfrentar um
adversário, conhecê-lo” – abertura triunfal que realiza às mil maravilhas o ideal literário
do Conselheiro Acácio -, ele inventa um PT à imagem e semelhança da sua própria
estreiteza mental e o enfrenta até mesmo com certa bravura.
No seu entender, o PT nada tem de comunista. É apenas “um mix original que associa
pitadas de caudilhismo, com resquícios da ideologia socialista no discurso — não na
prática —, um partido centralizado e a velha desfaçatez tupiniquim no trato da coisa
pública, tão brasileira como a caipirinha que seu líder tanto aprecia”.
Desprovido de todo aparato marxista e de toda conexão com o movimento comunista
mundial e suas tradições, reduzido a um fenômeno folclórico local sem nenhuma
retaguarda estratégica, o partido governante está pronto para ser demolido na base de
puras notícias de TV, sem o menor combate ideológico ou sondagem das suas
conexões internacionais.
Foi nisso que se especializou o sr. Villa, e ele desempenha essa tarefa pelo menos tão
bem quanto o faria qualquer aprendiz de jornalismo.
Dos que temem que na sua atitude haja um excesso de presunção otimista ele se livra
com meia dúzia de petelecos, rotulando-os de “exaltados e néscios”, proferidores de
“puras e cristalinas bobagens”, culpados de “absoluto desconhecimento político e
histórico”, de restaurar “o rancoroso discurso da Guerra Fria”, de usar “conceituações
primárias que não dão conta do objeto” e de retirar do baú da História o anticomunismo
primário”, isso quando alguns deles não chega mesmo a ser, como ele disse na TV, um
“astrólogo fascista embusteiro metido a líder político”.
Tendo assim alcançado um recorde jornalístico de insultos por centímetro de coluna,
ele se sente preparado para provar cientificamente a ausência de comunismo no PT. E
eis como ele se desincumbe da tarefa:
“O petismo impôs seu ‘projeto criminoso de poder’… sem que tivesse necessidade de
tomar pela força o Estado. O processo clássico das revoluções socialistas do século
XX não ocorreu. O ‘assalto ao céu’ preconizado por Marx.. foi transmutado numa
operação paulatina de controle da máquina estatal no sentido mais amplo, o
atrelamento da máquina sindical, dos movimentos sociais, dos artistas, intelectuais,
jornalistas, funcionando como uma correia de transmissão do petismo.”
Quem quer que tenha estudado o assunto, ao menos um pouquinho, entende, logo ao
primeiro exame, que isso que o sr. Villa acaba de descrever é a aplicação fiel,
milimetricamente exata, da estratégia de Antonio Gramsci para a conquista do poder
pelos comunistas.
Nada de tomar o Estado pela força, nada de “assalto aos céus”. Em vez disso, a lenta e
quase imperceptível “ocupação de espaços”, ou, nos termos do sr. Villa, “o atrelamento
da máquina sindical, dos movimentos sociais, dos artistas, intelectuais, jornalistas”.
Faz quase seis décadas que o movimento comunista internacional em peso adotou
essa estratégia, por ser ela a única compatível com a política de “coexistência pacífica”
entre a URSS e as potências ocidentais, preconizada por Nikita Kruschev no discurso
que proferiu em 1956 no XX Congresso do Partido Comunista soviético.
Ou seja: a prova cabal de que o PT não é um partido comunista é que ele faz
exatamente o que todos os partidos comunistas do Ocidente fazem há sessenta anos.
Não é de tapar a boca de qualquer astrólogo fascista embusteiro?
O sr. Villa mostra-nos um bicho de pele grossa, orelhas grandes, seis toneladas de
peso e duas presas de marfim, mas se lhe dizemos que é um elefante ele sobe nas
tamanquinhas e diz que são “conceituações primárias”.
Como exemplo do que deveria ser uma conceituação mais sofisticada, ele reconhece
que o PT é leninista, mas só “na estrutura, não na ação”.
Precisamente: leninista na estrutura, gramsciano na ação. Como o próprio Gramsci
recomendava. Mas pensar que isso é comunismo é “pura e cristalina bobagem”, não é
mesmo? Especialmente para quem, nada sabendo de Gramsci e muito menos das
longas discussões entre intelectuais gramscianos que prepararam e preparam cada
decisão do PT, descreve o gramscismo sem saber que é gramscismo e jura, de mãos
postas, que o PT jamais teve outro estrategista senão Macunaíma, nem outra
inspiração senão a caipirinha.
“Como falar em marxismo se Lula sequer leu uma página de Marx?”, pergunta o sr.
Villa. Bem, no tempo em que eu andava com os comunistas só vi dois deles lendo
Marx. O terceiro era eu. Os outros liam exemplares de A Voz Operária e as resoluções
do Comitê Central. O próprio Rui Falcão mal conhecia o Manifesto Comunista.
Mas isso é só uma curiosidade. O fato é que o sr. Lula não leu talvez uma só página de
Marx, mas o sr. Frei Betto leu muitas, além de um bocado de Gramsci, e há décadas
exerce as funções de cérebro do ex-presidente. Ou o sr. Frei Betto, coautor da
Constituição cubana, co-fundador do Foro de São Paulo e mentor reconhecido de um
gratíssimo sr. Lula, não é ele próprio comunista?
No entanto, se o argumento do sr. Villa não vale para o caso do sr. Lula, vale para o do
próprio sr. Villa. Ele definitivamente não é comunista, já que não leu Marx. Se tivesse
lido, não teria escrito esta lindeza:
“Quando Lula chegou ao Palácio do Planalto, o partido só tinha de socialista o
vermelho da bandeira e a estrela. A prática governamental foi de defesa e incentivo do
capitalismo. Em momento algum se falou em socialização dos meios de produção.”
Pois Marx ensinava, precisamente, que a socialização dos meios de produção não
seria possível antes de totalmente desenvolvidas as forças produtivas do capitalismo.
O processo, dizia ele, poderia levar décadas ou até séculos. Para um partido comunista
que chegue ao poder por via democrática, numa nação capitalista, o único caminho
possível para o socialismo, sobretudo desde 1956, é desenvolver as forças produtivas
do capitalismo ao mesmo tempo que as atrela ao Estado por meio de impostos e
regulamentos e vai aos poucos – invisivelmente, dizia Antonio Gramsci – conquistando
a hegemonia e neutralizando as oposições.
É precisamente o que o PT faz. Já me expliquei um pouco a esse respeito um ano
atrás, neste mesmo jornal (leia aqui).
Mas nem o próprio Lênin, que subiu ao poder nas ondas de uma revolução armada e
tinha todos os instrumentos para governar pelo terror, saiu logo falando em estatizar.
Fez como o PT: deu um incentivo ao capitalismo enquanto montava o sistema de poder
hegemônico, tomando gradativamente dos burgueses os meios de ação política
enquanto os mantinha anestesiados por meio de vantagens financeiras imediatas.
Foi isso o que ele resumiu na máxima: “A burguesia nos venderá a corda com que a
enforcaremos”. Nem mesmo em teoria Lênin pensou em estatização imediata. Ao
contrário. Dizia ele: “O meio para esmagar a burguesia é moê-la entre as pedras da
inflação e do imposto.”
Se o PT faz exatamente isso, é a prova cabal, segundo o sr. Villa, de que ele não é um
partido comunista de maneira alguma.
O sr. Villa fala ainda contra o conceito de “bolivarianismo” quando aplicado ao PT.
Nisso ele tem razão, mas não pelos motivos que alega. Ele investe contra o termo
“bolivarianismo”, porque, no seu entender, Hugo Chávez só escolheu Simon Bolívar
como símbolo da sua revolução por achar que “a crise do socialismo real tinha chegado
ao seu ponto máximo e não havia mais nenhuma condição de ter como referência o
velho marxismo-leninismo”.
Isso é absolutamente falso.
Em primeiro lugar, adotar a máscara nacionalista, populista ou coisa que o valha não
foi, como sugere o sr. Villa, um arranjo de última hora, uma alternativa de emergência
adotada no ponto extremo de uma crise do marxismo, mas é um dos hábitos mais
velhos e constantes do movimento comunista, que desde os anos 30 do século
passado veio se camuflando como “progressismo”, “terceiromundismo”, “movimento
dos não-alinhados”, “antifascismo”, “anticolonialismo”, “teologia da libertação”, “filosofia
da libertação”, “pan-africanismo” etc. etc. etc.
Segundo: O próprio sr. Villa qualifica o bolivarianismo de “fachada”, mas parece ignorar
que toda fachada é fachada de alguma coisa. Como em 2010 Hugo Chávez, reeditando
a célebre confissão tardia de Fidel Castro, admitiu publicamente sua condição de
marxista, já não é preciso nenhum esforço divinatório para saber o que se escondia por
trás do “bolivarianismo”.
Terceiro: No Brasil o termo “bolivarianismo” tem servido sobretudo como subterfúgio
eufemístico para evitar a palavra proibida, “comunismo”, que o sr. Villa quer proibir
ainda mais.
Aliás esse é um dos fenômenos linguísticos mais lindos de todos os tempos, uma
conspiração de duas forças antagônicas que colaboram para silenciar o óbvio.
Os comunistas não querem que ninguém fale de comunismo porque, na estratégia de
Antonio Gramsci, a revolução comunista só pode prosperar sob o manto da mais
confortável invisibilidade (exemplo, os dezesseis anos de silêncio geral sobre o Foro de
São Paulo).
Os anticomunistas também não querem que se fale de comunismo porque precisam
que todo mundo acredite que saíram vencedores na Guerra Fria, sepultando o
comunismo de uma vez para sempre.
O sr. Villa alista-se decididamente nesta segunda facção:
“Considerar o PT um partido comunista revela absoluto desconhecimento político e
histórico… Não passa de conceder sentido histórico ao rançoso discurso da Guerra
Fria. O Muro de Berlim caiu em 1989 mas tem gente em Pindorama que ainda não
recebeu a notícia.”
Talvez o sr. Villa, que não chegou a 1956, tenha saltado direto para 1989, mas é seguro
que não chegou a 2000, quando o filósofo Jean-François Revel, num livro de sucesso
mundial (La Grande Parade, Paris, Plon, 2000), fez a pergunta decisiva: Como tinha
sido possível que o movimento comunista, desmoralizado na URSS, em vez de
desaparecer por completo, crescesse até proporções gigantescas na década seguinte?
As explicações eram muitas: adoção da estratégia gramsciana, troca da antiga
estrutura hierárquica por uma organização mais flexível em “redes”, fuga generalizada
ante a responsabilidade pelas atrocidades do regime comunista etc. etc.
Mas essas respostas não vêm ao caso, já que o sr. Villa não percebeu nem a pergunta.
Não se vende remédio a quem não sabe que está doente.
Que o sr. Villa está doente, não se discute. A estreiteza do seu campo de visão é
decididamente anormal. É um tipo de glaucoma intelectual. Só que o doente de
glaucoma fisico se queixa quando o seu ângulo visual diminui, ao passo que o sr. Villa
se gaba e se pavoneia.
“Estou pouco me lixando para o Foro de São Paulo”, declarou ele na TV tempos atrás,
mostrando que, do alto da sua infinita superioridade, uma coisinha de nada como a
maior organização política que já existiu no continente não merecia o dispêndio de uma
gota sequer dos seus prodigiosos dons intelectuais.
Nós, os primários, os embusteiros, os fascistas, admitimos que nada podemos
compreender do PT se o encaramos como um fenômeno estritamente local, fazendo
abstração tanto das suas raízes (que remontam à criação da “teologia da libertação”
por Nikita Kruschev; leia aqui), quanto das verbas estrangeiras que o alimentaram por
décadas ou dos compromissos e conexões internacionais que determinam cada passo
na consecução da sua estratégia.
Mas essas coisas são grandes demais para o campo visual do sr. Villa. Ele
simplesmente as suprime e, fingindo desprezo ao que ignora, despeja insultos sobre
quem as conhece.
Não desejo mal ao sr. Villa. O PT minúsculo que ele enxerga é uma parte do PT real, e
ele até que faz o possível para trazer algum dano a esse pedacinho.
O cão de pastor que em defesa do redil se atraca com o lobo não há de achar ruim se
um rato, pisoteado por acaso na confusão da luta, inventa de roer o dedão do invasor.

Por linhas tortas


Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 30 de abril de 2015
Na vasta bibliografia sobre temas nacionais, especialmente a assinada por autores de
esquerda, não há tópico mais abundantemente estudado, explorado, revirado de alto a
baixo, do que “a revolução brasileira”. Perdão. É com maiúsculas: Revolução Brasileira.
Livros com esse título, ou com essa expressão no título, foram produzidos por Nelson
Werneck Sodré, Franklin de Oliveira, Octávio Malta, Celso Furtado, Pessoa de Moraes,
Guerreiro Ramos, Azevedo do Amaral, Jamil Almansur Haddad, Florestan Fernandes,
Moisés Vinhas, Danton Jobim, Hélio Silva, José Maria Crispim, Celso Brant e uma
infinidade de outros, sem contar aqueles, muito mais numerosos, que trataram do
mesmo assunto sem ostentá-lo no título.
Pode parecer estranho o interesse quase obsessivo por esse fenômeno num país que
não atravessou nenhuma experiência comparável às revoluções da França, da
América, da Rússia, da Espanha ou mesmo do México, limitando-se a nossa sanha
revolucionária, a escaramuças locais com derramamento de sangue relativamente
modesto no ranking internacional.
No entanto, a referência naqueles títulos não é a nenhum episódio histórico em
particular, grande ou pequeno. “Revolução brasileira”, na acepção geral que o termo
assumiu numa longa tradição de “interpretações do Brasil”, designa algo como um rio
que flui, uma história inteira, um processo intermitente na superfície, contínuo no fundo.
Na verdade, não houve um único grande acontecimento histórico que se pudesse
chamar “Revolução Brasileira”. É a série inteira dos pequenos que leva esse nome,
designando uma intenção, uma teleologia simbólica subjacente a todos eles: o
processo pelo qual o povo, inicialmente um bando de desgarrados e escravos mantidos
em obediência estrita sob o peso de uma clique de altos funcionários e senhores de
terras (mais tarde banqueiros e capitães de indústria), vai aos poucos emergindo de um
estado de passividade abjeta para tentar se tornar o senhor e autor da sua própria
História, sempre com sucesso inferior às suas mais ambiciosas expectativas, e por isso
mesmo fadado a repetir a tentativa de novo e de novo, em escala um pouco maior.
Contra quem se volta precisamente esse processo? Qual a “classe dominante” que se
tenta remover de cima para dar espaço à iniciativa popular? As tentativas de defini-la
em termos do marxismo ortodoxo, como “burguesia capitalista exploradora do
proletariado”, falharam miseravelmente, tal a míngua de proletários e burgueses num
país de poucas indústrias, onde a burguesia industrial só conseguiu ela própria algum
espaço quando carregada no colo pela ditadura estatista, semifascista, de Getúlio
Vargas.
Na verdade, os autores marxistas não conseguiram sequer entrar num acordo quanto
às etapas iniciais e mais remotas do processo, anteriores à Independência, uns falando
de “feudalismo”, outros de “capitalismo rural”, outros, ainda, propondo a teoria de uma
formação socioeconômica sui generis, alheia às categorias usuais do marxismo, o
“escravismo colonial”.
Quem melhor definiu o vilão da história, a meu ver, foi Raymundo Faoro, no clássico Os
Donos do Poder. Formação do Patronato Político Brasileiro (Globo, 1958; ainda prefiro
a primeira edição à versão reescrita de 1974, mais volumosa).
Partindo de noções obtidas em Max Weber, Faoro redefinia a índole e os objetivos da
Revolução Brasileira em termos mais adequados à realidade do que qualquer marxista
teria podido fazer no lugar dele. E eu não conseguiria resumir sua tese com mais
exatidão do que o fez Fábio Konder Comparato (leia aqui):
“Para Raymundo Faoro, a sociedade brasileira – tal como a portuguesa, de resto – foi
tradicionalmente moldada por um estamento patrimonialista, formado, primeiro, pelos
altos funcionários da Coroa, e depois pelo grupo funcional que sempre cercou o Chefe
de Estado, no período republicano. Ao contrário do que se disse erroneamente em
crítica a essa interpretação, o estamento funcional governante, posto em evidência por
Faoro, nunca correspondeu àquela burocracia moderna, organizada em carreira
administrativa, e cujos integrantes agem segundo padrões bem assentados de
legalidade e racionalidade. Não se trata, pois, daquele estamento de funcionários
públicos encontrável nas situações de ‘poderio legal com quadro administrativo
burocrático’ da classificação weberiana, mas de um grupo estamental correspondente
ao tipo tradicional de dominação política, em que o poder não é uma função pública,
mas sim objeto de apropriação privada. ”
O livro demorou para atrair a atenção pública, mas a segunda edição apareceu como
uma balsa para os náufragos numa época em que, esfaceladas as guerrilhas, a
esquerda brasileira buscava caminhos para a redemocratização do país e ansiava por
um discurso que não soasse demasiado comunista aos ouvidos do governo militar –
um esforço cujo primeiro resultado objetivo veio com a fundação do PT em 1980.
Faoro tornou-se quase espontaneamente o santo padroeiro do novo partido. Sua casa
era frequentada assiduamente pelo sr. Luís Inácio Lula da Silva, que em 1989 chegou a
convidá-lo, em vão, para ser candidato à vice-presidência.
Vestindo a camiseta faoriana de inimigo primordial da apropriação privada dos poderes
públicos, o PT fez um sucesso tremendo nos anos 90, como denunciador-mor da
corrupção nas altas esferas federais e promotor de uma vasta campanha pela “ética na
política”, que resultou na quase beatificação do seu líder principal (quando Lula viajava
pelas áreas mais pobres do Nordeste, doentes vinham lhe pedir que os curasse por
imposição de mãos, como os reis da França).
Àquela altura, o partido parecia mesmo resumir e encarnar o espírito da “Revolução
Brasileira”, com toda a expectativa messiânica embutida nesse símbolo. Daí a vitória
espetacular de Lula na eleição de 2002.
Aconteceu – sempre acontece alguma coisa – que a liderança esquerdista em geral, e
a petista em especial, não lia nem seguia só Raymundo Faoro. Desde os anos 60-70
lia com deleitação crescente os Cadernos do Cárcere e as Cartas de Antonio Gramsci,
o fundador do Partido Comunista Italiano e criador da estratégia comunista mais sutil e
mais calhorda de todos os tempos: a “revolução cultural” a ser implementada mediante
a “ocupação de espaços” em todos os órgãos da administração pública, da mídia, do
ensino etc., para culminar no momento em que todo o povo seria socialista sem saber
e o partido se tornaria “um poder onipresente e invisível”.
Se Faoro forneceu ao PT a sua identidade aparente e a base do seu discurso “ético”,
foi Gramsci quem deu à agremiação a sua estratégia e as suas táticas substantivas.
“Gramscismo sob pretextos faorianos” é uma expressão que resume perfeitamente
bem a política do PT ao longo de toda a sua existência.
Nunca um partido teve tão bela oportunidade de colocar em prática uma estratégia
estritamente comunista sob uma camuflagem weberiana tão insuspeita.
Tudo parecia perfeito. Diante de uma plateia sonsa, a quem a sugestão de que
houvesse algum comunismo nisso soava como delírio de “saudosistas da Guerra Fria”,
o partido foi “ocupando espaços” e concentrando poder até fazer da administração
federal inteira – sem contar o sistema de ensino e a mídia – o instrumento servil dos
seus objetivos privados.
Nenhum, nenhum dos seus guias iluminados notou que era impossível fazer isso sem
que o partido se transformasse, ele próprio, no odioso e odiado “estamento
burocrático”, com o formidável agravante de que, na ânsia de concentrar todo o poder
em suas mãos, e sempre enleado na boa consciência de servir à causa da Revolução
Brasileira, passou a roubar, trapacear e explorar o povo incomparavelmente mais do
que todos os estamentos anteriores.
Faoro morreu em maio de 2003, quatro meses depois de Lula tomar posse no seu
primeiro mandato, e não teve tempo de meditar, nem muito menos de alertar o PT,
quanto ao desastre que a síntese artificiosa e perversa, o “faorogramscismo”,
anunciava como desenvolvimento fatal do processo.
Inevitavelmente, os papéis se inverteram: transmutado por obra do gramscismo na
encarnação máxima e mais cínica do “tipo tradicional de dominação política, em que o
poder não é uma função pública, mas sim objeto de apropriação privada”, o PT, quando
por fim a população em massa se voltou contra ele, revoltada ante os maiores
escândalos financeiros de todos os tempos, no fundo dos quais ela enxergava ainda
que vagamente a premeditação gramsciana, viu-se perdido, desorientado, atônito, seus
líderes ora escondendo-se no palácio como aristocratas assustados na Paris de 1789,
ora tentando camuflar o medo mediante bravatas truculentas de um ridículo sem par.
Sim, a Revolução Brasileira está nas ruas. É ela, e não outro personagem qualquer. E
veio com mais força do que nunca, brotando da pura espontaneidade popular, quase
sem líderes (ou com tantos que se diluem uns aos outros), sem dinheiro, sem respaldo
em partidos – o povo contra o “estamento burocrático”. Como diria o próprio alvo
supremo da ira popular, “nunca ânftef na iftória dêfte paíf” esse povo demonstrou
vontade tão firme e inabalável de ser seu próprio mentor e guia, de criar sua própria
História, de mandar às favas todos os importantões e de calar de vez as bocas dos
mentirosos. A começar pelas da sra. Rousseff e do sr. Lula.
Quem mandou o PT confiar nas falsas espertezas do gramscismo? Deus realmente
escreve direito por linhas tortas.

Aprendendo com o povão


Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 10 de abril de 2015
A queda abrupta na audiência da TV Globo ilustra algo que venho dizendo aqui há
semanas: a revolta popular não é só contra meia dúzia de políticos ladrões, nem só
contra a sra. Dilma Rousseff, o PT ou mesmo o Foro de São Paulo: é contra toda a
elite que os protegeu e os legitimou no poder à força de mentiras e desconversas.
Sempre de joelhos ante as modas estrangeiras mais idiotas, e manipulados por
intelectuais ativistas que, a despeito da sua mediocridade, sempre deslumbraram as
suas mentes ainda mais medíocres, os donos dos nossos meios de comunicação
puseram todos os seus formidáveis recursos a serviço de uma “revolução cultural”, cuja
simples existência ignoravam, e que foi, aliás, concebida precisamente para ser levada
a cabo por idiotas úteis que a ignoravam.
Antonio Gramsci é bastante explícito quanto a esse ponto: não se trata de “conquistar
corações e mentes”, como afirmou esse asno pomposo que ocupa o Ministério da
Educação, mas, bem ao contrário, de fazer com que “todos sejam socialistas sem
sabê-lo”, de dominar o “senso comum” a tal ponto que massas inteiras da população
repitam chavões e slogans sem ter a menor ideia da sua origem e da sua função num
plano estratégico de conjunto.
A diferença entre o antigo militante proletário conquistado para a causa do comunismo
e o moderno servidor da revolução cultural é tão imensurável que, por si, basta para
ilustrar a elasticidade psicopática da mente revolucionária, sempre pronta a trocar de
atitude, de discurso e de valores cada vez que julga isso necessário para o aumento do
seu poder.
O primeiro decorava manuais de marxismo-leninismo, era hipersensível ao menor
desvio da ortodoxia partidária e proclamava orgulhosamente sua condição de
comunista militante, sacrificando bens, vida, honra e liberdade, tudo pela causa.
Em volta dele existiam, é claro, alguns idiotas úteis sem cultura marxista, que se
associavam à luta por motivos subjetivos totalmente estranhos ao marxismo, que
levavam o militante genuíno às gargalhadas.
Na militância gramsciana, as proporções inverteram-se: o grosso da contingente
compõe-se de idiotas úteis, os militantes doutrinados reduziram-se a uma discreta elite
dirigente que não faz a menor questão de que seus seguidores saibam por que a
seguem.
Os motivos subjetivos, que antes eram apenas acréscimos acidentais ao corpo da luta
revolucionária, tornaram-se a propaganda oficial, que na mesma medida perdeu toda
unidade e coerência, estilhaçando-se numa poeira alucinante de chavões e cacoetes
mentais desencontrados, bons para todos os temperamentos e preferências, incluindo
a expressão histérica das insatisfações mais fúteis que o marxista puro-sangue de
antigamente desprezava como “pequeno-burguesas”.
A pessoa e os feitos do sr. Jean Wyllys ilustram esse estado de coisas da maneira mais
didática que se pode imaginar. Na sua ânsia de juntar num front comum tudo quanto
lhe pareça antiocidental e anticristão, ele exige que as escolas esmigalhem de vez os
cérebros das crianças com aulas simultâneas de gayzismo e de islamismo.
Cada pequeno brasileiro será portanto informado de que ele deve fazer aquilo que, se
ele fizer, será punido com pena de morte.
Às vezes as pessoas clamam contra a “doutrinação marxista” nas escolas, mas
“doutrinação” é eufemismo: os tempos da doutrinação já passaram. O que ali se faz é
infinitamente mais destrutivo do que qualquer doutrinação. Pascal Bernardin, no livro
Maquiavel Pedagogo (veja aqui), descreveu em minúcias como as técnicas adotadas
na educação das crianças hoje em dia são calculadas para induzir mudanças de
comportamento sem passar pela aprovação consciente.
Não se trata de “conquistar corações e mentes”, mas de adestrar os corpos no
aprendizado da macaquice.
O apelo à consciência é cada vez mais reduzido, ao ponto de que aquele que passou
por esse treinamento se torna incapaz de perceber as mais grotescas incoerências no
seu discurso, mesmo quando elas tornam irrealizável na prática aquilo que ele
proclama como seu sonho e ideal.
O sr. Jean Wyllys é o produto perfeito e acabado de um sistema de ensino montado
para produzir idiotas úteis em escala industrial.
É evidente que, abolido o confronto ideológico explícito, dissolvida a ortodoxia marxista
num farelo de estereótipos para todos os gostos, cada freguês podendo escolher à
vontade os “direitos humanos”, a “anti-homofobia”, o “antirracismo”, o culto de uma
lendária superioridade espiritual do Oriente, a mitologia indigenista, a liberação das
drogas, os delírios da New Age, o ressentimento feminista, o islamismo ou tudo isso de
uma vez, o mero fato de um sujeito ser pessoalmente um bilionário capitalista, e,
eventualmente o dono de uma rede de canais de TV, não o torna imune, no mais
mínimo que seja, à contaminação de uma lepra mental que assume todas as formas e
o assalta por todos os lados.
Foi assim que os donos da mídia, sem percebê-lo nitidamente, e até mesmo negando-o
peremptoriamente, se tornaram servidores da “revolução cultural” que os abomina e
despreza ao ponto de imaginá-los – pasmem! – responsáveis pelos movimentos de
protesto anti-PT.
O sr. João Pedro Stedile proclamando “A Globo fez tudo isso”, ao mesmo tempo que os
manifestantes escorraçavam os repórteres da Globo a cusparadas – eis uma cena
representativa da confusão monstruosa que o gramscismo produziu na mente
brasileira.
Enquanto os “intelectuais” e “formadores de opinião” mostravam cada vez mais nada
entender do que estava acontecendo, exemplificando eles próprios o estado de turva
inconsciência reinante, o povão, quase por milagre, apreendeu a unidade oculta por
trás dos rostos cambiantes e inumeráveis do seu inimigo, e se voltou contra ele com
uma determinação e uma coragem admiráveis.
Domingo ele vai nos dar mais uma lição a respeito.

Um cadáver no poder (II)


Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 29 de janeiro de 2015

Volto à análise da Teologia da Libertação.


Se a coisa e até o nome que a designa vieram prontos da KGB, isso não quer dizer que
seus pais adotivos, Gutierrez, Boff e Frei Betto, não tenham tido nenhum mérito na sua
disseminação pelo mundo. Ao contrário, eles desempenharam um papel crucial nas
vitórias da TL e no mistério da sua longa sobrevivência.
Os três, mas principalmente os dois brasileiros, atuaram sempre e simultaneamente em
dois planos. De um lado, produzindo artificiosas argumentações teológicas para uso do
clero, dos intelectuais e da Cúria romana. De outro lado, espalhando sermões e
discursos populares e devotando-se intensamente à criação da rede de militância que
se notabilizaria com o nome de “comunidades eclesiais de base” e viria a constituir a
semente do Partido dos Trabalhadores. “Base” é aliás o termo técnico usado
tradicionalmente nos partidos comunistas para designar a militância, distinguindo-a dos
líderes. Sua adoção pela TL não foi mera coincidência. Quando os pastores se
transformaram em comissários políticos, o rebanho tinha mesmo de tornar-se “base”.
No seu livro E a Igreja se Fez Povo, de 1988, Boff confessa que foi tudo um “plano
ousado”, concebido segundo as linhas da estratégia da lenta e sutil “ocupação de
espaços” preconizada pelo fundador do Partido Comunista Italiano, Antonio Gramsci.
Tratava-se de ir preenchendo aos poucos todos os postos decisivos nos seminários e
nas universidades leigas, nas ordens religiosas, na mídia católica e na hierarquia
eclesiástica, sem muito alarde, até chegar a época em que a grande revolução
pudesse exibir-se a céu aberto.
Logo após o conclave que o elegeu, em 1978, o papa João Paulo I teve um encontro
com vinte cardeais latino-americanos e ficou muito impressionado com o fato de que a
maioria deles apoiava ostensivamente a Teologia da Libertação. Informaram-lhe, na
ocasião, que já havia mais de cem mil “comunidades eclesiais de base” disseminando
a propaganda revolucionária na América Latina. Até então, João Paulo I conhecia a TL
apenas como especulação teórica. Nem de longe imaginava que ela pudesse ter se
transformado numa força política de tais dimensões.
Em 1984, quando o cardeal Ratzinger começou a desmontar os argumentos teóricos
da “Teologia da Libertação”, já fazia quatro anos que as “comunidades eclesiais de
base” tinham se transfigurado num partido de massas, o Partido dos Trabalhadores,
cuja militância ignora maciçamente quaisquer especulações teológicas, mas jura que
Jesus Cristo era socialista porque assim dizem os líderes do partido.
Dito de outro modo, a pretensa argumentação teológica já tinha cumprido o seu papel
de alimentar discussões e minar a autoridade da Igreja, e fora substituída,
funcionalmente, pela pregação aberta do socialismo, onde o esforço aparentemente
erudito de aproximar cristianismo e marxismo cedia o passo ao manejo de chavões
baratos e jogos de palavras nos quais a militância não procurava nem encontrava uma
argumentação racional, mas apenas os símbolos que expressavam e reforçavam a sua
unidade grupal e o seu espírito de luta.
O sucesso deste segundo empreendimento foi proporcional ao fracasso do trio na
esfera propriamente teológica. É possível que na Europa ou nos EUA um formador de
opinião com pretensões de liderança não sobreviva à sua desmoralização intelectual,
mas na América Latina, e especialmente no Brasil, a massa militante está a léguas de
distância de qualquer preocupação intelectual e continuará dando credibilidade ao seu
líder enquanto este dispuser de um suporte político-partidário suficiente.
No caso de Boff e Betto, esse suporte foi nada menos que formidável. Fracassadas as
guerrilhas espalhadas em todo o continente pela OLAS, Organización Latino-
Americana de Solidariedad, fundada por Fidel Castro em 1966, a militância se refugiou
maciçamente nas organizações da esquerda não-militar, que iam colocando em prática
as ideias de Antonio Gramsci sobre a “ocupação de espaços” e a “revolução cultural”. A
estratégia de Gramsci usava a infiltração maciça de agentes comunistas em todos os
órgãos da sociedade civil, especialmente ensino e mídia, para disseminar propostas
comunistas pontuais, isoladas, sem rótulo de comunismo, de modo a obter pouco a
pouco um efeito de conjunto no qual ninguém visse nada de propaganda comunista,
mas no qual o Partido, ou organização equivalente, acabasse controlando mentalmente
a sociedade com “o poder invisível e onipresente de um mandamento divino, de um
imperativo categórico” (sic).
Nenhum instrumento se prestava melhor a esse fim do que as “comunidades eclesiais
de base”, onde as propostas comunistas podiam ser vendidas com o rótulo de
cristianismo. No Brasil, o crescimento avassalador dessas organizações resultou, em
1980, na fundação do Partido dos Trabalhadores, que se apresentou inicialmente como
um inocente movimento sindicalista da esquerda cristã e só aos poucos foi revelando
os seus vínculos profundos com o governo de Cuba e com várias organizações de
guerrilheiros e narcotraficantes. O líder maior do Partido, Luís Inácio “Lula” da Silva,
sempre reconheceu Boff e Betto como mentores da organização e dele próprio.
Nascido no bojo do comunismo latino-americano por intermédio das “comunidades
eclesiais de base”, o Partido não demoraria a devolver o favor recebido, fundando, em
1990, uma entidade sob a denominação gramscianamente anódina de “Foro de São
Paulo”, destinada a unificar as várias correntes de esquerda e a tornar-se o centro de
comando estratégico do movimento comunista no continente.
Segundo depoimento do próprio Frei Betto, a decisão de criar o Foro de São Paulo foi
tomada numa reunião entre ele, Lula e Fidel Castro, em Havana. Durante dezessete
anos o Foro cresceu em segredo, chegando a reunir aproximadamente duzentas
organizações filiadas, misturando partidos legalmente constituídos, grupos de
sequestradores como o MIR chileno e quadrilhas de narcotraficantes como as Farc,
que juravam nada ter com o tráfico de drogas mas então já costumavam trocar
anualmente duzentas toneladas de cocaína colombiana por armas contrabandeadas do
Líbano pelo traficante brasileiro Fernandinho Beira-Mar.
Quando Lula foi eleito presidente do Brasil, em 2002, o Foro de São Paulo já havia se
tornado a maior e mais poderosa organização política em ação no território latino-
americano em qualquer época, mas sua existência era totalmente desconhecida pela
população e, quando denunciada por algum investigador, cinicamente negada. O
bloqueio chegou ao seu ponto mais intenso quando, em 2005, o sr. Lula, já presidente
do Brasil, confessou em detalhes a existência e as atividades do Foro de São Paulo. O
discurso foi publicado na página oficial da Presidência da República, mas mesmo
assim a grande mídia em peso insistiu em fingir que não sabia de nada.
Por fim, em 2007, o próprio Partido dos Trabalhadores, sentindo que o manto de
segredo protetivo já não era necessário, passou a alardear aos quatro ventos os feitos
do Foro de São Paulo, como se fossem coisa banal e arqui-sabida. Somente aí os
jornais admitiram falar do assunto.
Por que o segredo podia agora ser revelado? Porque, no Brasil, toda oposição
ideológica tinha sido eliminada, restando apenas sob o nome de “política” as disputas
de cargos e as acusações de corrupção vindas de dentro da própria esquerda; ao
passo que, na escala continental, os partidos membros do Foro de São Paulo já
dominavam doze países. As “comunidades eclesiais de base” haviam chegado ao
poder. Quem, a essa altura, iria se preocupar com discussões teológicas ou com
objeções etéreas feitas vinte anos antes por um cardeal que levara a sério o sentido
literal dos textos e mal chegara a arranhar a superfície política do problema?
Nos doze anos em que permaneceu no poder, o PT expulsou do cenário toda oposição
conservadora, partilhando o espaço político com alguns aliados mais enragés e com
uma branda oposição de centro-esquerda, e governou mediante compras de
consciências, assassinatos de inconvenientes e a apropriação sistemática de verbas de
empresas estatais para financiar o crescimento do partido.
A escalada da cleptocracia culminou no episódio da Petrobrás, onde o desvio subiu à
escala dos trilhões de reais, configurando, segundo a mídia internacional, o maior caso
de corrupção empresarial de todos os tempos. Essa sucessão de escândalos provocou
algum mal-estar na própria esquerda e constantes reclamações na mídia, levando a
intelligentsia petista a mobilizar-se em massa para defender o partido. Há mais de uma
década os srs. Betto e Boff estão ocupados com essa atividade, na qual a teologia só
entra como eventual fornecedora de figuras de linguagem para adornar a propaganda
partidária. A TL havia assumido, finalmente, sua mais profunda vocação.
Quem quer que leia os escritos de Gutierrez, Boff e Betto descobre facilmente as suas
múltiplas inconsistências e contradições. Elas revelam que esse material não resultou
de nenhum esforço teorizante muito sério, mas do mero intuito de manter os teólogos
de Roma ocupados em complexas refutações teológicas enquanto a rede militante se
espalhava por toda a América Latina, atingindo sobretudo populações pobres
desprovidas de qualquer interesse ou capacidade de acompanhar essas altas
discussões.
Os boiadeiros chamam isso de “boi-de-piranha”: jogam um boi no rio para que os
peixes carnívoros fiquem ocupados em devorá-lo, enquanto uns metros mais adiante a
boiada atravessa as aguas em segurança.
Intelectualmente e teologicamente, a TL está morta há três décadas. Mas ela nunca foi
um movimento intelectual e teológico. Foi e é um movimento político adornado por
pretextos teológicos artificiosos e de uma leviandade sem par, lançados nas águas de
Roma a título de “boi de piranha”. A boiada passou, dominou o território e não existem
piranhas de terra firme que possam ameaçá-la.
Sim, a TL está morta, mas o seu cadáver, elevado ao posto mais alto da hierarquia de
comando, pesa sobre todo um continente, oprimindo-o, sufocando-o e travando todos
os seus movimentos. A América Latina é hoje governada por um defunto.

Onipresente e invisível
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 26 de março de 2012
Ao ouvir dizer que vive numa “democracia”, o cidadão comum imagina que, malgrado
algumas tramas sórdidas urdidas pelos políticos por trás das cortinas, o esquema de
poder que domina a sociedade coincide com a estrutura visível das instituições e, em
última instância, pode ser controlado mediante a pressão do clamor público ou o
exercício do voto. Algum resíduo oculto, aqui e ali, será mais cedo ou mais tarde
revelado pelos bravos jornalistas que destampam as latrinas e vasculham os esgotos,
expondo os ladrões e conspiradores à luz do dia para que sofram as penas da lei. Não
obstante falhas ocasionais, no conjunto o sistema, aerado pelos bons ventos da
liberdade de imprensa, encarna os ideais iluministas da transparência e da
racionalidade.
Lamento informar que há pelo menos vinte anos esse sistema cessou de existir. O
poder dos governos sobre as populações civis já é praticamente incontrolável,
reduzindo cada vez mais a um mero formalismo jurídico a diferença entre democracia e
ditadura. Não, não se trata de nenhuma “teoria da conspiração”. Conspirações existem,
mas não são elas que produzem esse estado de coisas. Ao contrário, é ele que torna
viável, hoje em dia, a criação de um governo global onipotente, imunizado contra
qualquer tentativa de controle popular. O fenômeno resulta da convergência de três
fatores:
Primeiro: A complexidade crescente da administração pública, continuamente
fortalecida pelos aportes da tecnologia e das ciências sociais, fornece aos governos
toda sorte de instrumentos para implantar as medidas que bem desejem sem ter de
passar pelo controle legislativo nem muito menos pelo debate público. Das decisões
fundamentais que alteraram a estrutura de poder no mundo nas últimas duas décadas,
diluindo soberanias e transferindo a autoridade dos Estados para organismos
internacionais, somente uma parte ínfima chegou a ser matéria de discussão
parlamentar, e a maioria nem sequer recebeu da mídia uma cobertura proporcional à
vastidão das conseqüências políticas que produziu.
Segundo: A progressiva concentração dos meios de comunicação nas mãos de um
reduzido número de grandes grupos econômicos íntimos do poder estatal, associada à
tomada das redações por uma nova geração de jornalistas ideologicamente
comprometidos, transformou jornais, revistas e canais de TV, de veículos de
informação e debate, em agências de engenharia comportamental e controle político. A
censura de notícias inconvenientes, a exclusão das opiniões divergentes, a promoção
descarada dos ídolos da esquerda, a militância sistemática em favor dos objetivos
propugnados pela revolução globalista tornaram-se quase que normas de redação,
cinicamente impostas por toda parte como a expressão pura do jornalismo mais neutro
e objetivo. Da noite para o dia, valores e critérios explosivamente revolucionários,
hostis aos sentimentos de quase toda a população, passaram a ser apresentados
como se fossem a opinião majoritária e obrigatória, o padrão supremo da normalidade.
Em todo o Ocidente não há, por exemplo, um só grande jornal ou canal de TV que não
trate toda oposição às propostas gayzistas e abortistas como conduta aberrante e
criminosa, dando a impressão de que os novos códigos de comportamento que se
deseja implantar são consensos universais milenares, só rejeitados por fanáticos e
doentes mentais. É evidente que isso não é jornalismo nenhum, é um teatro psicológico
planejado para produzir mudanças comportamentais. É a engenharia da complacência,
da qual já falei.
Terceiro: a queda da URSS deixou desorientadas e órfãs as massas militantes por toda
parte, liberando um enorme potencial humano que, não sabendo viver sem uma “causa
social” que justifique sua existência, foi facilmente remanejado para servir, agora
fartamente subsidiado pela elite financeira, sob as novas bandeiras da revolução
global. Foi a vitória completa do fabianismo e do gramscismo sobre as versões mais
arcaicas do movimento comunista. Com velocidade impressionante, as militâncias
locais foram unificadas, criando, pela primeira vez na História humana, a possibilidade
de mobilizações de massa quase instantâneas em escala mundial – a mais formidável
máquina de pressão política e intimidação psicológica que o mundo já conheceu.
Sob o influxo desses três fatores, a velha democracia representativa tornou-se apenas
a camuflagem jurídica e publicitária de novos esquemas de poder que a maioria dos
cidadãos não compreende e em geral não conhece.
Graças a isso, o avanço da tirania global é hoje tão rápido, tão intenso, tão
avassalador, que para registrar, simplesmente registrar a sucessão diária dos fatos que
o exemplificam, seria preciso um jornal inteiro, não este pobre comentário semanal.
Não se passa um dia sem que se criem novas estruturas de poder, novos meios de
controle social, novos instrumentos de manipulação psicológica destinados a ter um
impacto brutal, quase sempre destrutivo, não só na política e na economia, mas na vida
privada e na mente de todos os seres humanos colocados sob a sua órbita. E esses
fatos se desenrolam, quase todos, à margem da atenção pública, seja porque são
produzidos por meios burocráticos discretos, contornando o debate, seja porque não
chegam a ser noticiados, seja porque o são de maneira propositadamente deficiente,
sumária e eufemística, de modo que somente uma fração mínima e inofensiva da
população se dê conta do seu verdadeiro alcance e significado.
O sonho de Antonio Gramsci, o “poder onipresente e invisível”, já é uma realidade em
todo o mundo ocidental

Onipresente e invisível
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 26 de março de 2012
Ao ouvir dizer que vive numa “democracia”, o cidadão comum imagina que, malgrado
algumas tramas sórdidas urdidas pelos políticos por trás das cortinas, o esquema de
poder que domina a sociedade coincide com a estrutura visível das instituições e, em
última instância, pode ser controlado mediante a pressão do clamor público ou o
exercício do voto. Algum resíduo oculto, aqui e ali, será mais cedo ou mais tarde
revelado pelos bravos jornalistas que destampam as latrinas e vasculham os esgotos,
expondo os ladrões e conspiradores à luz do dia para que sofram as penas da lei. Não
obstante falhas ocasionais, no conjunto o sistema, aerado pelos bons ventos da
liberdade de imprensa, encarna os ideais iluministas da transparência e da
racionalidade.
Lamento informar que há pelo menos vinte anos esse sistema cessou de existir. O
poder dos governos sobre as populações civis já é praticamente incontrolável,
reduzindo cada vez mais a um mero formalismo jurídico a diferença entre democracia e
ditadura. Não, não se trata de nenhuma “teoria da conspiração”. Conspirações existem,
mas não são elas que produzem esse estado de coisas. Ao contrário, é ele que torna
viável, hoje em dia, a criação de um governo global onipotente, imunizado contra
qualquer tentativa de controle popular. O fenômeno resulta da convergência de três
fatores:
Primeiro: A complexidade crescente da administração pública, continuamente
fortalecida pelos aportes da tecnologia e das ciências sociais, fornece aos governos
toda sorte de instrumentos para implantar as medidas que bem desejem sem ter de
passar pelo controle legislativo nem muito menos pelo debate público. Das decisões
fundamentais que alteraram a estrutura de poder no mundo nas últimas duas décadas,
diluindo soberanias e transferindo a autoridade dos Estados para organismos
internacionais, somente uma parte ínfima chegou a ser matéria de discussão
parlamentar, e a maioria nem sequer recebeu da mídia uma cobertura proporcional à
vastidão das conseqüências políticas que produziu.
Segundo: A progressiva concentração dos meios de comunicação nas mãos de um
reduzido número de grandes grupos econômicos íntimos do poder estatal, associada à
tomada das redações por uma nova geração de jornalistas ideologicamente
comprometidos, transformou jornais, revistas e canais de TV, de veículos de
informação e debate, em agências de engenharia comportamental e controle político. A
censura de notícias inconvenientes, a exclusão das opiniões divergentes, a promoção
descarada dos ídolos da esquerda, a militância sistemática em favor dos objetivos
propugnados pela revolução globalista tornaram-se quase que normas de redação,
cinicamente impostas por toda parte como a expressão pura do jornalismo mais neutro
e objetivo. Da noite para o dia, valores e critérios explosivamente revolucionários,
hostis aos sentimentos de quase toda a população, passaram a ser apresentados
como se fossem a opinião majoritária e obrigatória, o padrão supremo da normalidade.
Em todo o Ocidente não há, por exemplo, um só grande jornal ou canal de TV que não
trate toda oposição às propostas gayzistas e abortistas como conduta aberrante e
criminosa, dando a impressão de que os novos códigos de comportamento que se
deseja implantar são consensos universais milenares, só rejeitados por fanáticos e
doentes mentais. É evidente que isso não é jornalismo nenhum, é um teatro psicológico
planejado para produzir mudanças comportamentais. É a engenharia da complacência,
da qual já falei.
Terceiro: a queda da URSS deixou desorientadas e órfãs as massas militantes por toda
parte, liberando um enorme potencial humano que, não sabendo viver sem uma “causa
social” que justifique sua existência, foi facilmente remanejado para servir, agora
fartamente subsidiado pela elite financeira, sob as novas bandeiras da revolução
global. Foi a vitória completa do fabianismo e do gramscismo sobre as versões mais
arcaicas do movimento comunista. Com velocidade impressionante, as militâncias
locais foram unificadas, criando, pela primeira vez na História humana, a possibilidade
de mobilizações de massa quase instantâneas em escala mundial – a mais formidável
máquina de pressão política e intimidação psicológica que o mundo já conheceu.
Sob o influxo desses três fatores, a velha democracia representativa tornou-se apenas
a camuflagem jurídica e publicitária de novos esquemas de poder que a maioria dos
cidadãos não compreende e em geral não conhece.
Graças a isso, o avanço da tirania global é hoje tão rápido, tão intenso, tão
avassalador, que para registrar, simplesmente registrar a sucessão diária dos fatos que
o exemplificam, seria preciso um jornal inteiro, não este pobre comentário semanal.
Não se passa um dia sem que se criem novas estruturas de poder, novos meios de
controle social, novos instrumentos de manipulação psicológica destinados a ter um
impacto brutal, quase sempre destrutivo, não só na política e na economia, mas na vida
privada e na mente de todos os seres humanos colocados sob a sua órbita. E esses
fatos se desenrolam, quase todos, à margem da atenção pública, seja porque são
produzidos por meios burocráticos discretos, contornando o debate, seja porque não
chegam a ser noticiados, seja porque o são de maneira propositadamente deficiente,
sumária e eufemística, de modo que somente uma fração mínima e inofensiva da
população se dê conta do seu verdadeiro alcance e significado.
O sonho de Antonio Gramsci, o “poder onipresente e invisível”, já é uma realidade em
todo o mundo ocidental.

Mau exemplo
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 22 de fevereiro de 2010
Que o sr. Marco Aurélio Garcia e Dona Dilma Roussef cochichassem entre si alguma
opinião sobre a vida intelectual brasileira já seria, da parte deles, uma presunção
descabida. Mas quando a emitem em público, e o fazem dando-se ares de quem dita
regras de perfeição, entram em cheio no campo da obscenidade.
Pessoas que ocupam ou disputam cargos públicos deveriam refrear um pouco os seus
impulsos exibicionistas antes de sair dando o mau exemplo de pontificar ex
catedra sobre assuntos que estão acima da sua competência e até da sua
compreensão.
Nem o ministro nem a candidata escreveram jamais um livro, deram um curso ou
proferiram uma conferência que se notabilizasse pela amplitude da erudição, pela
profundidade do pensamento ou pela criatividade das idéias. Nada produziram, sequer,
que os ombreasse à estatura mediana da classe acadêmica. Não são pensadores, nem
artistas, nem educadores, nem profissionais da ciência. Não são sequer jornalistas.
Não têm com a vida intelectual senão a relação distante — e até inversa — de quem se
beneficia das aparências dela para fins de propaganda partidária ou promoção pessoal.
No mundo da alta cultura, não passam de parasitas e aproveitadores. O único direito
que lhes cabe, em tais matérias, é o de calar-se humildemente e dar ouvidos a quem
sabe mais. Que se atrevam a ir um passo além disso, e devem ser escorraçados de um
recinto onde sua presença só serve para tudo aviltar e prostituir.
No fundo, o atrevimento da sua crítica aos “subintelectuais de direita”
(http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1602201005.htm) revela menos uma empáfia
consciente do que uma falha de percepção, uma total incapacidade de apreender, não
o mero sentido das palavras que empregam, mas as dimensões e proporções da
situação de discurso, a relação entre fala e realidade, a diferença abissal entre aquilo
que dizem e aquilo que são. Eles falam como autoridades no assunto precisamente
porque ignoram que o desconhecem. Tomam-se a si próprios como unidades de
medida porque não percebem o imensurável da distância que dele os separa.
Nada têm nisso, porém, de excepcionais e singulares. Sua conduta mental está entre
as mais típicas da burrice geral brasileira, tal como a literatura a exemplifica e qualquer
educador com algum senso de observação pode confirmar. Essa conduta não se
compõe só da alienação existencial, do abismo entre pensamento abstrato e
experiência concreta, mas da fusão desse handicap com um talento todo especial para
o mimetismo lingüístico. O brasileiro, com efeito, capta num relance os novos giros
verbais que lhe chegam do ambiente e passa de imediato a utilizá-los com um agudo
senso de eficácia persuasória, desacompanhado, porém, de qualquer compreensão da
sua carga semântica efetiva. Só para dar um exemplo tirado da minha própria
experiência pessoal, quando meus dois livros sobre a ciência da argumentação
repuseram em circulação a velha expressãoargumentum ad hominem, a nova geração,
que a desconhecia por completo, notou o potencial ofensivo do termo e passou a
empregá-lo a torto e a direito para fins de ataque, com a desenvoltura mais
autoconfiante, sem ter a menor idéia das distinções e precauções que esse emprego
exige (por exemplo, um exemplum in contrarium, logicamente uma das refutações mais
legítimas, é com freqüência apresentado sob a forma aparente de mera
argumentação ad hominem). Centenas de expressões extraídas diretamente dos meus
escritos circulam hoje por aí com sentido diminuído, coisificado, prova de que foram
copiadas por mimetismo instantâneo e não absorvidas mediante compreensão séria do
seu significado. A velocidade mesma com que se operam esses golpes de parasitagem
verbal faz com que se tornem, por sua vez, infinitamente reprodutíveis e se alastrem
em proporções epidêmicas, daí resultando que, no fim das contas, todo o debate
público nacional se reduza a um obsessivo intercâmbio de camuflagens.
Juntem à deficiente ancoragem na realidade o mimetismo lingüístico superficial, e terão
a fórmula exata do impostor inconsciente, do vigarista que só consegue ludibriar os
outros porque primeiro se ludibriou a si próprio ao ponto de poder praticar a vigarice
com um elevado sentimento de idoneidade e mérito.
Dona Dilma e o ministro Garcia exemplificam perfeitamente essa síndrome, cuja
disseminação em escala nacional consolida a incultura presunçosa como uma espécie
de título acadêmico, de especialidade científica ou prova de superioridade. Tal é hoje o
típico “intelectual de esquerda” que se apresenta como modelo normativo e cobra da
direita o dever de copiá-lo, sob pena de condená-la como “subintelectual”.
Não que subintelectuais inexistam na direita. Existem, e o primeiro a apontá-los ao
descrédito sou em geral eu mesmo. Porém o mais burro deles é ainda superior a Dilma
Roussef e Marco Aurélio Garcia, que só são “intelectuais” no sentido elástico e figurado
que o termo possui em Antonio Gramsci.

Obra-prima de vigarice
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 12 junho de 2009
“Queimada”, dirigido em 1969 por Gillo Pontecorvo e estrelado por Marlon Brando,
Evaristo Marquez e Renato Salvatori, é um dos pontos altos do cinema comunista
italiano – uma espécie de segundo neo-realismo, nascido nos anos 60 sob a inspiração
de uma década e meia de leitura das obras de Antonio Gramsci pelos intelectuais
militantes, tanto do PCI quanto das organizações maoístas e trotsquistas. A escola,
intelectualmente sofisticada, de uma coerência ideológica e estratégica notável, foi
inaugurada por “O Bandido Giuliano”, de Francesco Rosi, e “O Assassino”, de Elio Petri
(ambos de 1961), e, com a ajuda do esquema de propaganda de Hollywood, veio a
alcançar sucesso internacional ainda maior que o do que seu antecessor do imediato
pós-guerra, muito menos uniforme ideologicamente.
Outros marcos na história desse movimento foram “Accatone”, de Pier Paolo Pasolini
(1962), “A China Está Próxima”, de Marco Bellocchio (1967), “Investigação sobre um
Cidadão Acima de Qualquer Suspeita”, de Elio Petri (1969), “O Conformista”, de
Bernardo Bertolucci (1970), “A Classe Operária Vai ao Paraíso”, de Elio Petri (1971) e
“O Caso Mattei”, de Francesco Rosi (1972).
A tônica desses filmes é mostrar a sociedade capitalista como uma infernal engenhoca
protofascista de dominação, fundada na alienação das consciências, na prática
endêmica da violência real e simbólica e na desinformação sistemática das multidões.
Não há mal, desde a criminalidade até os amores fracassados e as doenças mentais,
que aí não seja atribuído à ação maligna e camuflada da elite capitalista. Com um estilo
narrativo frio e impessoal, evitando com cuidado o tom abertamente propagandístico e
simulando investigação documentária dos acontecimentos (recurso usado com outros
fins pelo primeiro neo-realismo), a escola consegue dar ares de pura realidade às mais
prodigiosas falsificações históricas e sociológicas, ludibriando as multidões de patetas
que guincham e se retorcem de prazer diante dessas coisas nos festivais de cinema
como macaquinhos eletrizados por uma máquina de orgasmos.
“Queimada” é uma verdadeira aula de interpretação marxista da História, tanto mais
persuasiva porque compõe com detalhes históricos bastante exatos um conjunto
perfeitamente ilógico, cuja absurdidade só aparece quando o espectador, se advertido
– o que raramente acontece –, se dá conta dos pontos essenciais astutamente
omitidos.
A história é a seguinte. Em 1815, Sir William Walker (Marlon Brando), guerreiro e
agente secreto mercenário, é contratado para armar um golpe de Estado na ilha de
Queimada, colônia portuguesa, e, sob o pretexto de republicanismo e abolição da
escravatura, transferir da monarquia portuguesa para uma companhia privada britânica
o monopólio da produção local de açúcar. Ele realiza seus objetivos por meio de três
operações sucessivas e articuladas: primeiro, uma rebelião de escravos, artificialmente
fomentada para desestabilizar o governo local, encenada sob a liderança do negro
José Dolores, que o próprio Sir Walker adestra para isso; segundo, a tomada do poder
por um grupo de intelectuais e políticos ambiciosos, insatisfeitos com o regime colonial
e chefiados por um idealista bocó, Teddy Sanchez; terceiro, a instalação de um regime
republicano liberal e corrupto sob a presidência de Teddy Sanchez, com a conseqüente
assinatura de uma cessão de direitos para a exploração da cana-de-açúcar e a
contratação dos antigos escravos como assalariados da companhia inglesa. Sir William
volta para a Inglaterra, onde leva uma vida de bebedeiras e arruaças (dando-se a
entender que a sórdida operação antiportuguesa arruinara o seu caráter). Passados
dez anos, os trabalhadores das plantações de cana, insatisfeitos com os salários de
fome recebidos dos novos patrões, iniciam nova rebelião, sob a liderança do mesmo
José Dolores, agora porém a sério e decididos a tomar as rédeas do governo em suas
próprias mãos. Teddy Sanchez, aterrorizado, incapaz de controlar a situação, pede
ajuda aos empresários ingleses, que vão buscar Sir William num botequim nojento
onde ele se diverte em campeonatos de pugilismo com a ralé de Londres, e o enviam
de volta à ilha, com plenos poderes para sufocar a revolta. Vendo que a coisa tomara
as proporções de uma verdadeira revolução social, Sir William apela ao expediente
extremo, mandando atear fogo às plantações e queimando vivos os trabalhadores
rebeldes junto com suas famílias. Quando, vitorioso pela segunda vez, o guerreiro
genocida vai embarcar de volta para a Inglaterra, o sobrevivente José Dolores,
disfarçado de carregador, mata-o a facadas.
Há muitos elementos historicamente verossímeis nesse enredo: a ação inglesa por trás
dos movimentos de independência das colônias portuguesas e espanholas; a liderança
republicana verbosa e sem iniciativa própria; o aproveitamento de um arremedo de
revolta popular como pretexto para a tomada do poder por uma elite corrupta; a
transformação dos escravos em mão-de-obra barata para o capital estrangeiro; e até o
agravamento da situação dos ex-escravos, soltos no mundo para lutar pela vida em
condições desiguais. Abrilhantado por uma direção ágil de Pontecorvo e pela
interpretação contundente de Marlon Brando, “Queimada” tem tudo para passar por um
condensado esquemático fiel e quase científico dos movimentos de independência de
muitas colônias portuguesas, inclusive o Brasil, onde o filme, exibido durante a fase
mais dura da repressão militar às guerrilhas, sugeria a histéricas platéias estudantis a
explicação mais fácil do que estava acontecendo no país e assim indicava o exemplo
de José Dolores como o mais óbvio caminho a seguir.
Naquela época, pouquíssimos espectadores poderiam ter reparado em duas omissões
capciosas que, no fundo, eram todo o segredo do impacto da narrativa. Desde logo, se
até para encenar uma rebelião incipiente seguida de um golpe de Estado os habitantes
da ilha – escravos mais elite branca – precisaram da ajuda estrangeira, como poderiam
os escravos, sozinhos, sem armamento, sem nenhum treino político e só com as duas
ou três artimanhas de guerrilheiro amador que Sir William ensinara a José Dolores,
montar uma verdadeira revolução social capaz de derrubar o regime republicano?
Jamais ocorreu uma rebelião desse tipo em nenhuma nação do Terceiro Mundo sem a
maciça ajuda estrangeira, e nada, além do puro embuste narrativo, explica que possa
ter ocorrido em Queimada. Para os fins propagandísticos visados por Gillo Pontecorvo,
era necessário associar capitalismo com imperialismo e revolução comunista com
espontaneidade popular autóctone, condensando na tela o velho ardil da propaganda
estalinista – ainda hoje inspirador do Fórum Social Mundial – que pinta o livre mercado
como traição a serviço do estrangeiro e o comunismo como patriotismo.
Em segundo lugar, impressionadas com o retrato aparentemente verossímil do frio
maquiavelismo capitalista, as platéias também se esqueciam de perguntar que raio de
cálculo econômico era aquele, que, para a suposta salvaguarda de interesses
empresariais, destruía pelo fogo a matéria-prima, os meios de produção e praticamente
a totalidade da mão-de-obra disponível, tornando inviável qualquer atividade
econômica na ilha por muitas décadas à frente e instaurando ali o monopólio do nada.
Sir William emerge da sua segunda excursão à ilha como vencedor, sob a aparente
satisfação das classes dominantes, mas, se algum equivalente dele do mundo real
cometesse um desatino militar e ecômico como o que ele promoveu em Queimada,
quem logicamente desejaria matá-lo não seria José Dolores, e sim os donos da
empresa.
Observado segundo os critérios da própria verossimilhança histórica da qual se
pavoneia, “Queimada” perde todo impacto dramático e se revela uma farsa idiota,
postiça até o desespero, composta por um pseudo-intelectual de meia idade para a
deleitação masturbatória de jovens aspirantes a pseudo-intelectuais.
Não há um só filme dessa escola que não se baseie nesse mesmo tipo de engodo
miserável, e, compreensivelmente, não há um só deles que não tenha sido louvado
uniformemente pela crítica mundial como uma obra-prima de realismo e honestidade
narrativa.
Mais grotesco ainda esse gênero de filme se torna quando considerado não apenas na
sua composição interna, mas nas condições sociológicas da sua produção. Se o
capitalismo é mesmo como eles o descrevem, um sistema de escravização mental e
física destinado a manter as multidões na total ignorância das causas da sua miséria,
como se explica que a indústria mundial de espetáculos, infinitamente mais rica do que
os usineiros de Queimada, subsidie e aplauda tantos filmes anticapitalistas como os de
Gillo Pontecorvo, Francesco Rosi e tutti quanti, em vez de espalhar nos cinemas a
apologia visual das belezas do livre mercado? A separação estanque entre as idéias
dos intelectuais ou artistas e a sua condição existencial e social concreta é uma doença
mental endêmica nas classes letradas do mundo Ocidental e, decerto, um dos pilares
em que se assenta hoje em dia a efetiva escravização das consciências pela elite
globalista.
Tanto no Brasil quanto em vários outros países, as obras do segundo neo-realismo
italiano fizeram as cabeças de duas gerações de espectadores e, na condição de
“clássicos”, desfrutam ainda de um prestígio considerável . Não duvido que milhares ou
milhões de Emires Sáderes tenham absorvido desses filmes, e não dos livros que não
leram, a substância mesma da sua ideologia e do seu modo de ser.

Os insuspeitíssimos
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 9 de março de 2009
Se você se interessa pelos rumos da política mundial, chega um dia em que tem de
escolher entre compreender os fatos e continuar tentando parecer um sujeito normal e
equilibrado. Normalidade e equilíbrio são coisas altamente desejáveis, mas um esforço
exagerado para simular calma e ponderação quando na verdade você está perplexo e
desorientado prova apenas que você é um neurótico incapaz de suportar suas próprias
emoções. Como o calmante artificial mais popular consiste em negar as realidades
perturbadoras, há muito tempo os estrategistas revolucionários e os engenheiros
sociais a seu serviço já aprenderam a usá-lo como instrumento de controle da opinião
pública. O truque é de um esquematismo espantoso: eles simplesmente adotam o
curso de ação mais ousado, estranho, inesperado e inverossímil, e ao mesmo tempo
estigmatizam como louco paranóico quem quer que diga que estão fazendo algo de
anormal. De cada dez cidadãos, nove caem no engodo. A insegurança mesma da
situação faz a maioria apegar-se a falsos símbolos convencionais de normalidade,
sufocando os fatos estranhos sob o peso dos lugares-comuns consagrados e assim
ajudando a tornar ilusoriamente secreto o que na verdade está à vista de todos.
Os exemplos de aplicação dessa estratégia desde o início do século XX são tantos,
que seu estudo bastaria para constituir uma disciplina científica independente. Vou aqui
citar apenas um, cuja magnitude contrasta com a escassez de interesse geral em
conhecê-lo.
Desde a década de 20, enquanto os regimes comunistas promoviam a mais brutal e
ostensiva perseguição aos cristãos nos seus territórios, os grandes estrategistas do
comunismo – numa gama que vai de Stálin a Antonio Gramsci – já haviam chegado à
conclusão de que, nas nações democráticas, o ataque frontal à Igreja não ia funcionar:
o que era preciso era infiltrar-se nela, corrompê-la e destruí-la por dentro, esvaziá-la de
todo conteúdo espiritual e usá-la como caixa de ressonância para as palavras-de-
ordem emanadas do comando revolucionário.
Todo mundo já ouviu falar disso. Não há quem não saiba que há comunistas na Igreja.
Mas quantos são eles? Quem são? Quais as suas formas de ação? Como identificá-
los, denunciá-los e expulsá-los? Será razoável imaginar que a substância letal injetada
no corpo da Igreja se reduza aos mais óbvios e barulhentos “padres de passeata”,
como os chamava Nelson Rodrigues, e que não haja por trás deles agentes de nível
incomparavelmente mais alto, agindo de maneiras mais discretas, camufladas e
decisivas? Aí, de súbito, cessa toda curiosidade. As perguntas mais naturais –
inevitáveis mesmo, para o fiel que se preocupe com a integridade da Igreja – começam
a parecer, de repente, inconveniências de mau gosto, sinais de doença mental,
manifestações de desrespeito à hierarquia eclesiástica. A pretexto de evitar o
escândalo, reprime-se a investigação do crime, semeando escândalos mil vezes
maiores no futuro.
Recentemente, Bella Dodd, ex-agente soviética que já denunciara a infiltração
comunista na Igreja em seu livro “The School of Darkness”, consentiu em dar ao
público, pela primeira vez, uma idéia mais exata das dimensões do fenômeno. Ela
disse que havia milhares de agentes encarregados da operação, cada um tratando de
colocar em seminários e outras instituições religiosas o maior número possível de
“adormecidos”, isto é, agentes sem nenhuma missão imediata, encarregados de
apenas permanecer dentro da Igreja, construindo identidades aparentes de católicos
fiéis, aguardando instruções que poderiam vir dentro de uma, duas ou três décadas.
Bella Dodd, sozinha, colocou na Igreja mais de mil e duzentos “adormecidos”. O total
dos agentes infiltrados só nas décadas de 30 e 40 dificilmente estará abaixo de cem
mil, sem contar os que vieram depois, quase que certamente em número maior. Muitos
desses só entraram em ação na época do Concílio Vaticano II. Outros continuam
subindo discretamente na hierarquia ou em organizações leigas, onde uma de suas
mais óbvias funções é apagar os sinais da sua própria presença e, sob os pretextos
mais santos, desestimular todo anticomunismo sistemático, boicotando os grupos e
organizações que insistam em continuar obedecendo à ordem de Pio XII, transmitida a
todos os católicos do mundo, para que combatessem o comunismo até com risco de
suas próprias vidas.
Mais nefasta do que a tagarelice dos notórios padres vermelhos é a ação
amortecedora, castradora, empreendida desde dentro e desde cima por prelados e
líderes leigos aparentemente respeitáveis, imunes a qualquer suspeita, cuja função
estratégica não é pregar o comunismo, mas simplesmente secar as fontes do
anticomunismo católico até que a Igreja se resuma, como no Brasil de hoje se resume,
à Igreja esquerdista militante e agresssiva de um lado, e de outro a Igreja apolítica,
omissa, silenciosa, manietada, debilitada e doente.
Muitos, para justificar o injustificável, alegam o primado do espiritual. Nossa missão,
dizem, é orar e buscar a santidade, não sair em campo de armas em punho. Mas a
hipocrisia desses indivíduos revela-se da maneira mais patente tão logo são testados:
se permanecem silenciosos e tímidos quando suas organizações e a Igreja como um
conjunto são difamadas e cobertas de injúrias pela esquerda, muito outra é sua reação
quando alguém os critica desde um ponto de vista cristão e denuncia sua omissão e
preguiça. Aí reagem com a fúria de mil demônios, desancando o infeliz como se fosse
um rebelde, um heresiarca, um dinamitador de sacristias.
Muitos dos que fazem isso, é claro, não são agentes infiltrados. São apenas covardes
genuínos, afetados da síndrome de simulação de normalidade que mencionei no início
deste artigo. Mas é impossível que estes, tímidos por natureza, entrem em combate
com tanta presteza sem ser incitados pelos primeiros. Simplesmente não é verossímil
que tanta omissão em face do comunismo, aliada a tanta virulência contra o
anticomunismo, não tenha nada de comunista nas fontes que a inspiram.

Brasil

Merquior para idiotas


Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 21 de agosto de 2015

Sempre que aparece algum intelectual conservador ou liberal, a Folha de S. Paulo se


apressa a infundir nos seus leitores a impressão de que se trata de fenômeno
inusitado, anormal, necessitado de explicação.
Nisso consiste uma das principais missões das suas páginas ditas “culturais”: alimentar
a crença de que as pessoas inteligentes e cultas são normalmente de esquerda. A
premissa subjacente, sem a qual essa idiotice não teria a menor credibilidade, é que os
diretores e redatores da porcaria são, eles próprios, não apenas inteligentes e cultos,
mas o padrão e medida da cultura e inteligência alheias.
Só que para acreditar nessa premissa é preciso ser inculto e burro.
Numa era que produziu Chesterton e Yeats, Bernanos e Mauriac, Eliot e Hopkins,
Borges e Lawrence, Papini e D’Annunzio, Faulkner e Céline, Broch, Hofmansthal,
George, Solzhenitsyn e uma infinidade de outros gênios reacionários, acreditar que a
alta cultura vem predominantemente da esquerda só pode ser coisa de consumidores
de literatura lowbrow – exatamente como a plateia de estudantes e professores
universitários brasileiros a que se dirige a Folha de S. Paulo.
A Folha não é um caso isolado: praticamente toda a “grande mídia” brasileira é
cúmplice dessa palhaçada. O jornal do sr. Frias apenas capricha mais na performance.
Mas, quando a superioridade intelectual de um autor direitista é visível demais, ou
quando ele faz mais sucesso do que a padrão da decência esquerdista pode admitir,
então é preciso apelar a um de dois remédios desesperados. O primeiro é suprimir
totalmente o nome da criatura, na esperança de que desapareça da memória popular.
Adotaram esse tratamento com pelo menos quatro dos maiores escritores brasileiros:
Gustavo Corção, Antônio Olinto, João Camilo de Oliveira Torres e o embaixador J. O.
de Meira Penna. Quando o procedimento falha, não logrando fazer com que ao sumiço
do nome se siga a desaparição das obras nas prateleiras das livrarias, então a única
saída é o gerenciamento de danos: proclamar que o cidadão, sendo tão
manifestamente genial, não podia ser, no fundo, bem no fundo, tão reacionário quanto
parecia. Talvez fosse até um pouquinho esquerdista.
O caso mais extremo e mais significativo é José Guilherme Merquior. Decorrido quase
um quarto de século da sua morte, ainda é preciso recorrer a esse expediente para
atenuar o desconforto sem fim que sua existência provoca nas almas sensíveis da
esquerda chique.
A isso dedicou-se o repórter Marco Antônio Almeida na edição do último dia 23,
concedendo ao escritor, com generosidade olímpica, o estatuto de “conservador
civilizado”, e separando-o, mediante essa idiossincrasia sublime, da horda de bárbaros
e trogloditas onde avultam os nomes de Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Oliveira
Lima, Ruy Barbosa, Eduardo Prado, Gilberto Freyre, Guimarães Rosa, Nelson
Rodrigues, João Camilo, Gustavo Corção e tantos outros, dos quais o autor destas
linhas é com certeza o menor e o mais canibal.
Por desencargo de consciência, o repórter, antes de escrever essa coisa, me enviou
sete perguntas, de cujas respostas, num total de três páginas, ele aproveitou
exatamente duas linhas, tendo-me feito trabalhar para o sr. Frias não somente de
graça, mas em vão.
Reproduzo aqui essas respostas, na íntegra, para que o leitor confirme por si mesmo
que elas já neutralizavam antecipadamente a trapaça auto lisonjeira do esquerdismo
folhístico, motivo aliás perfeitamente razoável para que não fossem publicadas.
1) Como o senhor avalia o legado da obra de Merquior hoje? É um nome importante na
história do pensamento liberal brasileiro?
– Fundamental sob todos os aspectos. Ninguém no Brasil sintetizou melhor a essência
do “argumento liberal” – como ele mesmo intitulou um dos seus livros – nem mostrou
mais claramente o antagonismo que existe entre os ideais liberais e as modas
intelectuais “pós-modernas”.
2) Merquior escreveu no prefácio de “As Ideias e as Formas”: “é possível atacar o
marxismo, a psicanálise e a arte de vanguarda sem ser reacionário em política,
ciências humanas e estética? ”. Você acha que ele conseguiu equilibrar esses fatores?
– Críticas ao marxismo, à psicanálise e à arte de vanguarda são, quase que por
definição, independentes de qualquer tomada de posição ante as correntes políticas do
dia. Não vejo a menor necessidade de “equilibrar” uma coisa com a outra.
Por outro lado, é certo que, na sua fase “liberal” ele não escreveu nada de tão bom
quanto Saudades do Carnaval, produto ainda da sua formação esquerdista.
3) Podemos, talvez com alguma simplificação, dividir a obra de Merquior em dois
grupos – os livros de crítica literária e os livros de crítica cultural/filosofia/política. Hoje,
qual desses grupos teria mais relevância?
– Os dois. Tudo o que o Merquior escreveu é indispensável à formação de um
brasileiro que se pretenda letrado.
4) Como você situa “De Anchieta a Euclides” em relação a outras histórias clássicas de
nossa literatura (Candido, Bosi, Wilson Martins, por exemplo)?
– É, de longe, a melhor de todas. Foi uma desgraça que o Merquior não tivesse
concluído o segundo volume.
5) Merquior recebeu muitas críticas também. Algumas acusações feitas a ele por
alguns críticos e acadêmicos, em uma breve pesquisa que fiz:
– excesso de citações (para alguns ele seria autor não de ensaios, mais de notas de
leitura, tamanha a quantidade de notas em seus textos);
– ausência de ideias originais;
– estilo burocrático e árido, vulgar em certos aspectos (como ao usar o termo
“lacanagem”).
O que acha disso?
– A primeira dessas três críticas é coisa de caipira. O quadro de referências do
Merquior é o universo da erudição acadêmica, onde a citação meticulosa de fontes é
obrigação elementar. Ademais, quando um escritor cita autores e livros que
desconheço, agradeço-lhe a gentileza e imediatamente vou comprar os livros. Os que,
em vez disso, o criticam pelo benefício que receberam, são ingratos, preguiçosos e
invejosos. Non raggionam di lor…
A ausência de ideias originais é um fato, mas não vale como crítica. Não se critica um
autor por não ser algo que ele nunca quis ser. O Merquior nunca foi um filósofo. Foi um
historiador, crítico, erudito e ensaísta. Sua esfera preferencial de ação era a
interpretação das obras alheias, do pensamento alheio. Que é que há de errado nisso?
Além do mais, que ideias seus críticos produziram, além de ideias de jerico?
O terceiro ponto é interessante. O estilo do Merquior era eminentemente acadêmico, e
ele procurava aliviá-lo introduzindo aqui e ali alguns arranjos do sermo vulgaris, mas
são elementos soltos, que não se integram no todo por um esforço de síntese
estilística. É só por isso que dão má impressão, embora alguns sejam de uma
comicidade notável. O melhor, no meu entender, é “derrida ou desce”.
O verdadeiro ponto fraco do Merquior, do ponto de vista político, foi que, rompendo
ideologicamente com a esquerda, ele continuou psicologicamente dependente de seus
antigos companheiros de esquerdismo, aos quais cortejava com delicadezas de
namorado enquanto eles o achincalhavam e difamavam. Ele queria convencê-los, não
vencê-los, enquanto eles só queriam destrui-lo. Ele nunca percebeu a diferença.
6) Outra crítica contundente diz que a visão de Merquior tendia ao conformismo, ao
reacionário. Isso por conta da defesa que ele fazia da sociedade moderna. De acordo
com essa visão, Merquior, em sua defesa da sociedade racional, capitalista, liberal e
cientificista, não via razão para repulsa ou condenação diante do mundo atual. Ou seja,
Merquior contesta a arte modernista, de vanguarda, mas não a sociedade que a
produz. Indo até mesmo contra seus preceitos de interação entre arte e contexto
histórico, ele dissociava a estética e produção vanguardista do meio que a produziu. O
que você acha desta crítica feita a ele?
– Em primeiro lugar, quem disse que o reacionarismo é um defeito? Os críticos do
Merquior partem dessa premissa como se fosse uma verdade auto evidente, o que só
mostra que são bocós deslumbrados, “verdadeiros crentes” desprovidos de espírito
crítico. Quase todos os grandes escritores e pensadores, de Homero a Shakespeare,
Goethe e Dostoievski, de Platão e Aristóteles a Leibniz e Schelling, foram reacionários.
Devemos jogar tudo isso fora só para agradar a algum semianalfabeto esquerdista que
se acha intelectual?
É verdade que a argumentação do Merquior em defesa do liberal-cientificismo está
cheia de erros, eu mesmo já assinalei alguns, mas aqui não é o lugar de discutir isso.
Em segundo lugar, associar os desvarios da vanguarda ao “capitalismo tardio” é uma
bobagem descomunal inventada por Gyorgy Lukacs só para bajular o governo
soviético. “A sociedade”, como tal, não produz arte nenhuma. Quem a produz são
indivíduos autônomos, no mais das vezes pensando contra a sociedade. Só os
medíocres e conformistas são “filhos do seu tempo”. Os gênios criadores são pais dele.
7) A identificação de Merquior como um liberal, um intelectual de direita, e a
participação no governo Figueiredo prejudicaram a recepção da obra dele?
– Certamente. O Merquior tinha essa fraqueza de querer subir na hierarquia do
funcionalismo público, e com frequência era um pouco puxa-saco de seus superiores.
Isso pode ter queimado a sua reputação e até feito mal à sua saúde, mas não
prejudicou em nada a sua produção intelectual. E não creio que aparatchniks,
servidores profissionais de totalitarismos sangrentos, tenham a menor autoridade moral
para criticar o Merquior nesse ponto.

Sexólogos mirins (II)


Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 26 de junho de 2015
Todo animal cresce e se desenvolve no sentido de alcançar a realização das
potencialidades máximas da sua espécie, não de qualquer outra. Esse auge é o que se
chama “maturidade”.
Uma vaca leiteira alcança a maturidade quando se torna capaz de produzir quarenta
litros de leite por dia. Um urso, quando se torna grande, pesado, forte e feroz o
bastante para matar outros ursos — fêmeas e filhotes inclusive. Um bloodhound,
quando se torna capaz de seguir uma pista por cem quilômetros.
A escala do desenvolvimento sexual que expus na primeira parte deste artigo (leia
aqui) é própria e exclusiva do ser humano. Ela é a medida de aferição da maturidade
humana. Quem não chegou à última etapa está abaixo da medida humana.
Pode estar evoluindo para alcançá-la ou pode estar fazendo o possível para estacionar
nas primeiras etapas, tomadas fetichisticamente como se fossem a essência última do
fenômeno sexual. Pode estar até se esforçando para que outros também estacionem. A
característica fundamental do sociólogo mirim é o ódio à maturidade.O que há de mais
belo, nobre e elevado no ser humano é justamente o processo no qual, por
transmutações sucessivas, o mais egoísta dos instintos se transfigura em bondade,
generosidade, perdão e auto-sacrifício. Abdicar disso é renunciar à vocação humana e
tentar competir com outras espécies animais naquilo que lhes é próprio.
Esse processo não deve ser confundido com algum pretenso “conflito entre matéria e
espírito” – um chavão gnóstico que, nesta época de confusão mental estupenda,
muitos tomam como cristão. O impulso evolutivo está dentro do próprio instinto sexual,
que se compõe ao mesmo tempo de uma ânsia de auto-satisfação e de uma tendência
incoercível à busca de um objeto.
O conflito permanente entre o centrípeto e o centrífugo, entre imanência e
autotranscendência é inerente à própria força sexual, e é isso que faz dela, de maneira
inteiramente natural, o motor do processo evolutivo que descrevi.
É patente que os sexólogos mirins não observaram suficientemente o fenômeno sobre
o qual pontificam, já que nem mesmo chegam a notar a sua natureza contraditória e
dialética, mas o tomam simploriamente como uma força unívoca voltada à busca de
uma generalidade chamada “prazer”.
O Brasil não será um país adulto enquanto os sexólogos mirins não forem expulsos da
vida pública.
O impulso sexual primário é uma pura agitação interna do organismo, uma mera
urgência fisiológica que aparece sem a necessidade de nenhum excitante externo e
pode ser satisfeita por mera fricção mecânica da genitália – masculina ou feminina.
Esse impulso – a libido — é uma energia sem alvo: não vem com nenhum objeto
definido, mas tem de encontrá-lo e fixar-se nele com a ajuda da emoção imaginativa,
seja estética (níveis III e IV), seja moral (níveis V e VI).
O impulso sexual permanece mais ou menos o mesmo ao longo de toda a vida de um
indivíduo. É como um motor que, por si, não determina o rumo do veículo, mas
depende, para isso, de um piloto capaz de enxergar o terreno e escolher os trajetos.
A progressiva fixação do impulso nos sucessivos objetos não o modifica em nada,
apenas o integra em funções diferentes conforme o objeto que a emoção imaginativa
lhe oferece vai se tornando mais sutil, mais rico e mais complexo.
A escalada de seis níveis está, em princípio, ao alcance de todos os seres humanos,
mas qualquer um está sujeito a voltar a uma fase anterior, sobretudo se não logra
encontrar ou possuir o novo objeto que o atrai para um “salto evolutivo” da consciência
e para um novo e mais elevado patamar da experiência erótica.
É evidente que só quem percorreu o trajeto inteiro está habilitado a formar uma visão
abrangente e objetiva da experiência sexual, que os outros só enxergam de maneira
parcial e subjetivista – não raro solipsista – determinada pela sua fixação numa etapa
que se recusa a passar.
Infelizmente, este último é o caso da maioria dos “formadores de opinião”,
universitários ou midiáticos, que se oferecem gentilmente para modelar a vida sexual
alheia segundo a medida do seu próprio subdesenvolvimento existencial.***
Um exemplo característico é a tendência ou vício de denominar “amor”,
indiscriminadamente, toda e qualquer expressão do desejo sexual. Nessa perspectiva,
é fácil condenar qualquer restrição às práticas sexuais mais grosseiras como um
atentado contra o “amor”. Mas é evidente que o termo “amor” só é cabível quando se
fala do terceiro nível para cima.
No primeiro estamos no reino da pura fisiologia, no segundo tudo não passa de reflexo
condicionado. Num deles o objeto está ausente; no outro, é apenas o gatilho ocasional
que dispara uma reação do organismo. Amor sem objeto é contradição de termos.
A característica mais fundamental do desejo sexual é a tensão permanente entre o
impulso interno de auto-satisfação orgânica e a busca do objeto externo, o foco que o
limita e ao mesmo tempo o intensifica.
No primeiro nível, a safisfação deve ser obtida da maneira mais rápida, material e
direta possível. Mas o sexo é um impulso imanente que busca transcender-se. Do
segundo nível em diante, a satisfação é adiada cada vez mais, em vista de um
acréscimo de qualidade.
Nos dois primeiros níveis, é tudo fisiologia, nada mais. Nos niveis III e IV, o objeto é
definido pela imaginação estética. Nos níveis V e VI o estético é transcendido pelo
impulso moral: generosidade, proteção, compreensão, amparo, carinho etc.
Essa diferenciação de níveis é característica do ser humano, estando ausente em
todas as demais espécies animais. Ela é a sexualidade propriamente humana. Nesse
sentido, a escalada que vai desde a necessidade orgânica até as expressões mais
elevadas do amor altruísta é a via normal e portanto normativa da vida sexual humana.
Mesmo aqueles que não são capazes de diferenciar claramente os seis níveis têm uma
vaga antevisão disso, como o prova o fato de que condenam as condutas sexuais
egoístas – ao mesmo tempo que, paradoxalmente, chamam tudo de “amor”.
Um exemplo especialmente deprimente de sexologia infantilizada nos é fornecido pelos
“formadores de opinião” que definem a pedofilia como “uma forma de amor”. Um
professor de filosofia que diz que a pedofilia é “amor”, como fazem os srs. Clovis de
Barros e Paulo Ghiraldelli, está obviamente desqualificado para o exercício de tão séria
atividade intelectual.
Não por ter dito uma imoralidade. Há imoralidades que são filosoficamente valiosas (as
obras de Nietzsche estão repletas delas). Nem por ter feito apologia do crime. Ele pode
ter dito o que disse com puro intuito teorizante, em tese, sem desejo de incentivar. Está
desqualificado por manifesta incapacidade de fazer uma distinção fenomenológica
elementar.
A pedofilia, pela sua estrutura mesma, nunca pode ser amor a uma pessoa, porque é
fixação simbólica na sua imaturidade, isto é, numa situação cronológica passageira. As
crianças crescem, tornam-se adultas e perdem interesse para o pedófilo, que tem de
buscar novos objetos de prazer na mesma faixa etária dos anteriores.
Por definição, a fixação erótica numa circunstância externa não é amor a uma pessoa.
Na nossa escala, a pedofilia, como o fetichismo ou o sadomasoquismo, está no nível II
e não tem absolutamente nada a ver com o amor – embora a convivência entre o
pedófilo e sua vítima possa despertar secundariamente algum tipo de emoção
amorosa, pelo menos unilaterial, como o ativista homossexual Rudi van Dantzig
documentou muito claramente no seu pungente depoimento For a Lost Soldier (The
Gay Men’s Press, 1996).
Qualquer primeiranista de filosofia, ou melhor, qualquer cidadão inteligente sem treino
filosófico, tem de ser capaz de fazer essa distinção quase instintivamente. Outro
exemplo de puerilismo é o clamor gayzista pela legalização do “casamento gay” sob a
alegação de “igualdade de direitos”.
As leis do matrimônio civil ou religioso não foram feitas para proteger, exaltar e
fomentar o sexo heterossexual, mas, bem ao contrário, para moderar e controlar a sua
prática, às vezes drasticamente.
A proposta do “casamento gay”, ao contrário, visa a legitimar, a tornar respeitável e
inatacável a homossexualidade em todas as suas formas e versões, inclusive grupais,
obscenas, ofensivas e públicas como aquelas da Parada Gay.
O casamento tal como a sociedade o conhece há milênios é uma autolimitação
voluntária do impulso heterossexual, em vista de valores mais altos.
O casamento gay, ao contrário, é um salvo conduto para que uma classe de pessoas
tenha um direito ilimitado aos prazeres sexuais que bem deseje, da maneira e no local
que bem entenda, livre das limitações legais e morais que pesam sobre o restante da
espécie humana.
(Não deixa de ser deprimentemente irônico que, numa época em que tanto se discute
“maioridade penal”, esta mesma noção tenha se reduzido a uma formalidade
cronológica totalmente esvaziada de qualquer referência aos traços substantivos que
constituem a maioridade psicológica e moral, sem os quais ela não faz o menor
sentido.)
Se existe algo como a noção de “maioridade legal”, é porque obviamente o exercício de
determinadas funções na sociedade – a começar pela mais geral e disseminada, a
“cidadania” — requer a maioridade substantiva, a maturidade da alma e do espírito, da
qual a maioridade legal não é senão um sinal convencional de reconhecimento.
Não obstante, desaparecida do cenário mental a noção da maioridade substantiva, o
exercício de altas funções sociais se tornou compatível com a mais rasteira imaturidade
psicológica. Pessoas como os srs. Clovis de Barros, Paulo Ghiraldelli, Jean Willys,
Gregório Duvivier e similares são aqueles que denomino “sexólogos mirins”: crianças
crescidas que dão lições de moral aos adultos.
Um critério elementar e patente de maturidade é a atitude do cidadão para com seus
próprios impulsos sexuais.
Um ser humano maduro, equilibrado e saudável não hesitará em pensar, falar e agir
contra os seus mais óbvios interesses sexuais, em nome de valores que lhe pareçam
mais altos. Um homossexual pode fazer isso? Pode. Karol Eller e meu aluno Alexandre
Seltz, homossexuais assumidos, deram exemplo disso, ao posicionar-se contra os
excessos blasfematórios do movimento gayzista.
Mas a essência da ideologia gayzista consiste precisamente em colocar o desejo
homoerótico acima de todos os valores reais, possíveis e imagináveis. Por isso é que
digo: um homossexual pode ser uma pessoa madura, equilibrada e saudável. Um
gayzista, nunca. E é por isso que os gayzistas não respeitam nada nem ninguém. Eles
simplesmente não podem fazê-lo sem ter de abdicar do princípio mais básico da sua
ideologia.
É quase impossível um gayzista entender isso, pois para tanto precisaria reconhecer
que sua pretensão de mando é incomparavelmente maior que a dos mais
empedernidos machistas conservadores e que o que ele deseja não é a “igualdade de
direitos” e sim a mais cínica e prepotente desigualdade, que um adulto normalmente
desenvolvido jamais exigiria.
Numa sociedade saudável, os adultos mal desenvolvidos e imaturos permanecem nas
camadas mais baixas da hierarquia social, onde podem fazer relativamente pouco dano
às demais pessoas. A principal característica de uma sociedade doente é a ascensão
de almas imaturas e atrofiadas aos postos mais altos, de onde podem impor o seu
subdesenvolvimento moral e emocional como padrão normativo para uma sociedade
inteira.
Não é possível corrigir os males sociais mais graves sem devolver essas pessoas ao
anonimato do qual jamais deveriam ter saído.

A lição de um sonho
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 30 de dezembro de 2013

Trabalhando dia e noite na reforma do meu escritório, cansado de serrar e martelar


estantes para cinco mil livros, deixei cair um pesadíssimo arquivo que quase
esmigalhou o meu dedão do pé direito. Para prevenir infecção, os médicos me deram
um maldito antibiótico que provocou náuseas, diarréia, dor de cabeça, dispepsia e
umtotal desgosto de viver. Assim fragilizado, pela primeira vez na vida senti alguma
tristeza diante de tanto ódio imbecil e sem motivo que se joga sobre mim no Facebook,
em blogs e por toda parte onde haja cretinos ansiosos para opinar. Nunca tinha sentido
isso antes, mas uma noite destas tive um sonho que deve indicar alguma coisa.
Eu estava perdido na estrada, a pé, de madrugada, por ter descido do ônibus no lugar
errado, procurando um Walmart inexistente. Não havia perigo, porque eu estava
armado, mas andava e andava e não chegava a parte alguma nem via nada em torno,
só escuridão. Então apareceu um carro, e eu, na esperança de uma carona, lhe fiz
sinal. Havia dois homens dentro, um deles desceu, disse que me conhecia e começou
a falar mal de mim. Pedi que expusesse alguma idéia minha, e confirmei que ele não
conhecia nenhuma delas, só o que sabia de mim eram fantasias. Vi que dali não ia sair
carona nenhuma e, só de sacanagem, encostei o cano do revólver na barriga do sujeito
para forçá-lo a me levar para algum lugar onde eu pudesse tomar condução. Ele teve
um piripaque, desmaiou e quando acordou estava totalmente idiota, não lembrava
quem era nem o que estava fazendo ali. O outro homem havia desaparecido. Pensei:
“Este aqui me odeia tanto que acreditou, seriamente, que eu ia matá-lo; daí ficou
aterrorizado e entrou em pane. E agora, que é que eu faço com esse f. da p. delirante
caído na estrada, sem o raio deum hospital por perto?” Não conseguindo resolver esse
problema, acordei.
Esse sonho expressa uma verdade psicológica fundamental, da qual tomei
consciência, por assim dizer, na carne: o ódio histérico e sem motivo traz em si mesmo
o seu próprio castigo; inspira um temor desproporcional da coisa odiada e se volta
contra o seu portador.
Jamais serei suficientemente grato ao dr. Andrew Lobaczewski, o médico psiquiatra
que durante anos estudou o comportamento da elite comunista polonesa e chegou a
conclusões altamente esclarecedoras sobre a relação entre psicopatia e histeria na
política e na sociedade.
Ilustrando o fenômeno exemplarmente, o Brasil de hoje é a típica sociedade histérica
governada por psicopatas, que o dr. Lobazewski descreve em “Political Ponerology”.
Numa alma bem estruturada, as emoções refletem espontaneamente o senso das
proporções e a realidade da situação. A afeição, a esperança, o temor, a ansiedade, o
ódio são proporcionais aos seus objetos e, nesse sentido, funcionam quase como
órgãos de percepção. Afiná-las para que cheguem a esse ponto é o objetivo de toda
educação das emoções. Na sociedade histérica, porém, cada um só pode alcançar
esse objetivo mediante umtremendo esforço de tomada de consciência e de auto-
reeducação. O que deveria ser simplesmente o padrão da normalidade humana torna-
se uma árdua conquista pessoal.
O filósofo romeno Andrei Pleshu, que conheceu o Rio de Janeiro quarenta anos atrás,
dizia, brincando: “O Brasil é um país onde ninguém tem a obrigação de ser normal.”
Com o tempo, o gracejo, como tantos outros, se transfigurou em tragédia: no Brasil dos
nossos dias é proibido ser normal. O mero senso das proporções é estigmatizado como
preconceito fascista, e não há alternativa senão acompanhar o fingimento histérico
geral que não acredita no que vê, mas no que imagina. O ódio histérico ao que se
desconhece tornou-se obrigatório, prova de boa conduta.
Para avaliar o quanto a alma brasileira se deteriorou ao longo das últimas décadas,
basta ler as observações do gringo que detestou a experiência de viver neste país ( ver
aqui) e compará-las à noção do “homem cordial” criada nos anos 30 do século XX por
Sérgio Buarque de Hollanda e desenvolvida numa discussão com Ribeiro Couto e
Cassiano Ricardo. Na época, a “cordialidade” podia até parecer um traço saliente do
brasileiro em geral, mas setenta mil homicídios por ano, Black Blocks na rua e a
profusão de gente espumando de raiva contra o que ignora fazem-no soar como piada
cínica.
A reeducação das emoções é impossível sem passar primeiro pela reeducação da
inteligência, de modo que esta assuma, pouco a pouco, o comando da alma inteira e se
torne o centro da personalidade em vez de umpenduricalho inútil a serviço da
autojustificação histérica.Ser inteligente é, nesse sentido, como já lembrava Lionel
Trilling, a primeira das obrigações morais. Sem inteligência, até as virtudes mais
excelsas se tornam caricaturas de si mesmas

A moral do Brasil
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 17 de outubro de 2013

Se você quer entender e não tem medo de perceber em que tipo de ambiente mental
está metido nesse nosso Brasil, nada melhor do que estudar um pouco a Teoria do
Desenvolvimento Moral de Lawrence Kohlberg. Enunciada pela primeira vez em 1958 e
depois muito aperfeiçoada, ela mede o grau de consciência moral dos indivíduos
conforme os valores que motivam as suas ações, numa escala que vai do simples
reflexo de autopreservação natural até o sacrifício do ego ao primado dos valores
universais.
Kohlberg, que foi professor de psicologia na Faculdade de Educação em Harvard,
desenvolveu alguns testes para avaliar o desenvolvimento moral, mas os críticos
responderam que isso só media a interpretação que os indivíduos testados faziam de si
mesmos, não a sua motivação efetiva nas situações reais. Essa dificuldade pode ser
neutralizada se em vez de testes tomarmos como ponto de partida as condutas reais,
discernindo, por exclusão, as motivações que as determinaram.
Os graus admitidos por Kohlberg são seis. No mais baixo e primitivo, em que a conduta
humana faz fronteira com a dos animais, a motivação principal das ações é o medo do
castigo. É o estágio da “Obediência e Punição”. No segundo (“Individualismo e
Intercâmbio”), o indivíduo busca conscientemente a via mais eficaz para satisfazer a
seus próprios interesses e entende que às vezes a reciprocidade e a troca são
vantajosas.No terceiro (“Relações Interpessoais”), os interesses imediatos cedem lugar
ao desejo de captar simpatia, de ser aceito num grupo, de sentir que tem “amigos” e
distinguir-se dos estranhos, dos concorrentes e inimigos.
No quarto (“Manutenção da Ordem”), o indivíduo percebe que há uma ordem social
acima dos grupos e empenha-se em obedecer as leis, em cumprir suas obrigações. No
quinto (“Contrato Social e Direitos Individuais”), ele se torna sensível à diversidade de
opiniões e entende a ordem social não como imperativo mecânico, mas como um
acordo complexo necessário à convivência pacífica entre os divergentes.
No sexto e último (“Princípios Universais”), ele busca orientar sua conduta por valores
universais, mesmo quando estes entram em conflito com os seus interesses pessoais,
com a vontade dos vários grupos ou com a ordem social presente.
Essas seis motivações refletem três níveis de moralidade: os dois primeiros expressam
a “moralidade pré-convencional”; os dois intermediários, a “moralidade convencional”,
e os dois últimos, a “moralidade pós-convencional”.
Se não atentamos para os discursos, mas para as escolhas reais que as pessoas fa
zem na vida, não é preciso observar muito para notar que os indivíduos que nos
governam, bem como os seus porta-vozes na mídia e nas universidades, não passam
do terceiro estágio, o mais baixo da moralidade convencional, em que a identidade, a
coesão e a solidariedade interna do grupo prevalecem sobre a ordem social, as leis, os
direitos dos adversários e quaisquer valores universais que se possa conceber (e que
desde esse nível de consciência são mesmo inconcebíveis, embora nada impeça que
sua linguagem seja macaqueada como camuflagem dos desejos do grupo).
Duas condutas típicas atestam-no acima de qualquer dúvida possível. De um lado, a
mobilização instantânea e geral em favor dos condenados do Mensalão. O instinto de
autodefesa grupal predominou aí de maneira tão ostensiva e tão pública sobre as
exigências da lei e da ordem, que até pessoas identificadas ideologicamente ao partido
governante se sentiram escandalizadas diante dessa conduta.
De outro lado, não havendo nenhum movimento político “de direita” que se oponha ao
grupo dominante, este dirige seus ataques contra meros indivíduos e movimentos de
opinião sem a menor expressão política, fingindo e depois até sentindo ver neles uma
ameaça eleitoral ou o perigo de um golpe de Estado. Aí o instinto de autodefesa grupal
assume as dimensões de uma fantasia persecutória que se traduz na necessidade de
calar por todos os meios qualquer voz divergente, por mais débil e apolítica que seja.
Também não é preciso nenhum estudo especial para mostrar que essa conduta, normal
na adolescência, quando a solidariedade do grupo é uma etapa indispensável na
consolidação da identidade pessoal, não é de maneira alguma aceitável em cidadãos
adultos investidos de prestígio, autoridade e poder de mando. Aí ela passa a
caracterizar precisamente a associação mafiosa, a solidariedade no crime.
É evidente que, numa sociedade onde essa é a mentalidade do grupo dominante, os
níveis superiores de consciência moral (pós-convencionais) se tornam cada vez mais
abstratos e inapreensíveis, de modo que o máximo de moralidade que se concebe é o
quarto grau, o apego à lei e à ordem. Os indivíduos cuja conduta evidencia essa
motivação tornam-se então emblemas do que de mais alto e sublime uma sociedade
moralmente degradada pode imaginar, e são quase beatificados. O ministro Joaquim
Barbosa é o exemplo típico.
Os dois graus superiores da escala são exemplificados por um número tão reduzido
de pessoas, que já não têm nenhuma presença ou ação na sociedade e passam a
existir apenas em versão caricatural, como fornecedores de chavões para legitimar e
embelezar as condutas mais baixas.
A autopreservação paranooica do grupo dominante envolve-se com frequência na
linguagem dos “direitos humanos” (quinto grau), e qualquer imbecil que tenha lido a
Bíblia já sai usando a Palavra de Deus (sexto grau) como porrete para atemorizar os
estranhos e impor a hegemonia do grupo “fiel” sobre os “infiéis” e “hereges”.
Isso, e nada mais que isso, é a moralidade nacional.

Monopólio e choradeira
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 4 de setembro de 2013

Quando os comunistas da internet vociferam contra a mídia burguesa, é bom saber que
a mídia burguesa são eles mesmos atuando em dois níveis: dominam os grandes
jornais e canais de TV desde dentro para usá-los como veículos de desinformação e ao
mesmo tempo descem o porrete neles desde fora para dar mais credibilidade à
desinformação.
Isso é uma regra básica dos manuais de desinformátsiya. Desinformação só funciona
quando a mentira não vem da boca de um inimigo notório e sim de alguém de
confiança da vítima. Se você lê no Vermelho.org, no blog de Paulo Henrique Amorim ou
no Baixamiro Borges alguma grossa denúncia contra os Estados Unidos, contra a
Igreja, contra Israel, contra os militares ou contra os liberais e conservadores, pode
desconfiar que é propaganda esquerdista. Mas se lê a mesma coisa na Folha, no
Globo ou no Estadão, imagina que é informação idônea, imparcial, puro jornalismo.
Para que servem então o Vermelho.org, o Paulo Henrique Amorim, o Baixamiro Borges
e similares? Servem precisamente para isso. São a substância de contraste que dá
credibilidade à “grande mídia” quando esta, num estilo mais comedido, mente
igualzinho a eles.
Secundariamente, podem servir também para alimentar de bobagens estimulantes a
militância partidária. Para enganar o público maior, politicamente indefinido, é preciso
veículos com uma fama de “direitistas”, criada exatamente para esse fim.
Se você examinar caso por caso, verá que desde a década de 60 – em pleno regime
militar –, os altos cargos da nossa mídia são quase todos ocupados por militantes ou
simpatizantes da esquerda, que ao mesmo tempo, ou em fases alternadas da sua
carreira profissional, publicam semanários “nanicos” ou, hoje em dia, blogs
“alternativos”, dando à plateia ingênua a impressão de que são a arraia miúda em luta
contra a poderosa indústria de comunicações.
Isso é a essência mesma do trabalho de desinformação.
Os leitores em massa ignoram que o próprio modelo do jornalismo profissional
“moderno”, de corte americano, foi implantado no Brasil principalmente por comunistas,
que o modularam para que servisse aos seus próprios fins sem dar muito na vista.
Confiram na tese “Preparados, Leais e Disciplinados: os Jornalistas Comunistas e a
Adaptação do Modelo de Jornalismo Americano no Brasil, de Afonso de Albuquerque e
Marco Antonio Roxo da Silva, da
UFF(http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2007/resumos/R1052-1.pdf).
Foi graças a essa operação que, por exemplo, os setenta milhões de vítimas do
comunismo chinês, quarenta milhões do comunismo soviético, dois milhões do
comunismo cambojano e cem mil do comunismo cubano praticamente desapareceram
dos nossos jornais e canais de TV, onde, ao contrário, sempre houve espaço e tempo
de sobra para umas dúzias de guerrilheiros mortos pelo regime militar. Deformar o
senso das proporções é essencial para dessensibilizar a população ante os crimes dos
comunistas e hipersensibilizá-la para tudo quanto seja nocivo ao comunismo.
Para dar somente um exemplo, basta notar que nunca a presença maciça de
comunistas em postos de destaque nas redações foi denunciada como sinal de viés
ideológico, mesmo quando se tratasse de aparatchniks treinados em Moscou e
Pequim.
Ninguém jamais se queixou de que Otávio Brandão, Nabor Caires de Brito, Mário
Augusto Jacobskind, Mauro Santayana, Cláudio Abramo, Élio Gaspari, Roberto Múller,
João Sant’Anna, Alcelmo Góis, Fernando Morais, Paulo Moreira Leite e mais uma
infinidade – alguns até líderes do PCB, do PC do B ou de organizações trotsquistas;
outros, notórios empregados de governos comunistas – fossem diretores de jornais ou
tivessem colunas de página inteira à sua disposição.
Basta, entretanto, que algum jornalista sem qualquer vínculo partidário, apenas não
muito simpático pessoalmente à esquerda, assuma um cargo de editor ou ganhe um
espacinho em qualquer jornal, revista ou programa de TV, e imediatamente chovem
protestos de todo lado.
Os casos de Augusto Nunes e Reinaldo Azevedo são apenas os mais recentes. Minha
estréia em O Globo foi imediatamente respondida por uma campanha para que minha
coluna fosse suprimida.
Milhares de blogs comunistas financiados por ONGs internacionais pululam na internet
sem que ninguém ache estranho, mas basta aparecer um blog “de direita”, mesmo sem
qualquer vínculo organizacional e subsidiado apenas com o parco dinheiro de seus
editores, e imediatamente a coisa é alardeada como um escândalo intolerável, um
crime de lesa-pátria.
O leitor comum não tem a menor ideia de como essas coisas funcionam, nem das
dimensões do poder esquerdista que transforma a mídia nacional praticamente inteira
em órgão de desinformação comunista (sem isso teria sido impossível esconder por
dezesseis anos a existência do Foro de São Paulo ou continuar escondendo até hoje a
denúncia do ex-agente soviético Ladislav Bittman sobre jornalistas brasileiros pagos
pela KGB). E os profissionais que sabem de tudo não têm, é claro, o menor interesse
em dar o serviço.
Com toda a evidência, os comunistas da nossa mídia acham que a coisa mais normal
e natural do mundo é possuir o monopólio do espaço jornalístico no Brasil – e ainda
choramingar como se fossem uns coitadinhos desprovidos do direito à palavra.
Essa impressão postiça de naturalidade já se alastrou para todas as classes letradas,
infectando o “senso comum” ao ponto de ninguém mais enxergar o monopólio como
tal, e mencioná-lo é candidatar-se ao rótulo de “teórico da conspiração”. A mentira
alcança a perfeição quando impugná-la se torna uma doença mental.

A primeira vítima
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 19 de junho de 2013

Quaisquer que venham a ser os desenvolvimentos da onda de protestos no Brasil, sua


primeira vítima está ali, caída no chão para não se levantar nunca mais, e ninguém
sequer se deu conta da sua presença imóvel e fria: é a “direita” brasileira.
Durante décadas, desde os tempos do governo militar, os partidos e movimentos de
esquerda vieram construindo sistemática e obstinadamente o seu monopólio das
mobilizações de massa, enquanto o que restava da “direita” , atropelado e intimidado
por acontecimentos que escapavam à sua compreensão, ia se contentando cada vez
mais com uma concorrência puramente eleitoral, tentando ciscar nas urnas umas
migalhas do que ia perdendo nas ruas.
Não sei quantas vezes tentei explicar a esses imbecis que o eleitor se pronuncia
anonimamente de quatro em quatro anos, ao passo que a militância organizada se faz
ouvir quantas vezes bem deseje, todos os dias se o quiser, dando o tom da política
nacional e impondo sua vontade até mesmo contra um eleitorado numericamente
superior.
Mas a ideia de formar uma militância liberal e conservadora para disputar o espaço na
praça pública lhes inspirava horror. Como iriam bater de frente na hegemonia do
discurso “politicamente correto”, se este, àquela altura, já se havia impregnado tão
fundo nos seus próprios cérebros que já não viam perspectiva senão imitá-lo e
parasitá-lo, na ânsia de ludibriar o eleitor e conservar assim os seus cargos, ainda que
ao preço de esvaziá-los de qualquer mensagem ideológica diferenciada e própria?
Era inútil tentar fazê-los ver que, com isso, se enredavam cada vez mais,
voluntariamente, na “espiral do silêncio” (v. Elisabeth Noelle-Neumann, The Spiral of
Silence, The University of Chicago Press, 1993), técnica de controle hegemônico em
que uma das facções é levada sutilmente a abdicar da própria voz, deixando à inimiga
o privilégio de nomeá-la, defini-la e descrevê-la como bem entenda.
Alguns eram até idiotas o bastante para se gabar de que faziam isso por esperteza,
citando o preceito de Maquiavel: aderir ao adversário mais forte quando não se pode
vencê-lo. Belo mestre escolheram. O autor doPríncipe foi um bocó em matéria de
política prática, um fracassado que esteve sempre do lado perdedor.
Assim, foram se encolhendo, se atrofiando, se adaptando servilmente ao estado de
coisas, até o ponto em que já não tinham outra esperança de sobrevivência política
senão abrigar-se sob o guarda-chuva do próprio governo que nominalmente diziam
combater.
Ao longo de todo esse tempo, ia crescendo a insatisfação popular com um partido que
fomentava abertamente o banditismo assassino, cultivava a intimidade obscena com
terroristas e narcotraficantes, tomava terras de produtores honestos para dá-las à
militância apadrinhada e estéril, estrangulava a indústria mediante impostos, demolia a
educação nacional ao ponto de fazer dela uma piada sinistra e, last not least, expandia
a corrupção até consagrá-la como método usual de governo.
Milhões de brasileiros frustrados, humilhados, viam claramente o abismo em que o país
ia mergulhando. Essa massa de insatisfeitos, como o demonstravam as pesquisas, era
acentuadamente cristã e conservadora.
Em 2006 escrevi: “Com ou sem nome, a direita é 70 por cento dos brasileiros. Um
programa político ostensivamente conservador teria portanto sucesso eleitoral
garantido”. Mas, com obstinação suicida, a “direita” se recusava a assumir sua missão
de porta-voz da maioria. Apostava tudo nas virtudes alquímicas da autocastração
ideológica.
“Um pouco mais adiante – escrevi na mesma ocasião – , ela agravou mais ainda a sua
situação, quando, após a revelação dos crimes do PT, perdeu a oportunidade de
denunciar toda a trama comunista do Foro de São Paulo e, por covardia e comodismo,
se limitou a críticas moralistas genéricas e sem conteúdo ideológico.”
Etanto tempo se passou, tão grande foi o vazio, que de recuo em recuo essa direita foi
abrindo, que a própria esquerda acabou notando a necessidade de preenchê-lo,
mesmo ao preço de sacrificar uma parte de si própria e, como sempre acontece nas
revoluções, cortar as cabeças da primeira leva de revolucionários para encerrar a fase
de “transição” e saltar para as rupturas decisivas, as decisões sem retorno. Há mais de
um ano o Foro de São Paulo vinha planejando esse salto, contando, para isso, com os
recursos do próprio governo, somados aos da elite globalista fomentadora de
“primaveras”.
Como não poderia deixar de ser em tais circunstâncias, o clamor da massa
conservadora acaba se mesclando e se confundindo com os gritos histéricos do
esquerdismo mais radical e insano, tudo agora instrumentalizado e canalizado pela
única liderança ativa presente no cenário.
Condensando simbolicamente essa absorção, a vaia despejada sobre a presidenta
Dilma Rousseff no Estádio Nacional de Brasília, autêntica manifestação popular
espontânea, já não se distingue da agitação planejada e subsidiada que acabou por
utilizá-la, retroativamente, em proveito próprio.
Não se pode dizer que a esquerda tenha “roubado a voz” da direita, pois a recebeu de
presente. A opção pelo silêncio, o hábito reiterado da autocastração expulsou a direita
nacional de um campo que lhe pertencia de direito e de fato, e terminou por matá-la.
Ela não se levantará nunca mais.
A insatisfação conservadora transmutou-se em baderna revolucionária e já não tem
nem mesmo como reconhecer de volta o seu próprio rosto. Talvez algumas cabeças
esquerdistas venham a rolar no curso do processo, mas as da direita já rolaram todas.

Autoridades
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 25 de abril de 2013

Quanto mais tempo fico nos Estados Unidos, mais nítida se torna, aos meus olhos,
uma diferença crucial entre o Brasil de hoje e as nações civilizadas: é a completa
ausência, no nosso país, de qualquer debate científico ou filosófico, pelo menos audível
em público, ou mesmo de qualquer consciência, entre as classes alfabetizadas, de que
esses debates existem em algum lugar do planeta.
Só esse fenômeno, por si, já basta para mostrar que algo aí deu muito errado, que a
vida dos brasileiros está indo numa direção francamente regressiva, incompatível com
o estado da nossa economia e com a pretensão nacional de representar algum papel
significativo no cenário do mundo.
Nos EUA e na Europa, não há ideia, não há doutrina, não há crença estabelecida, por
mais oficial e majoritária que seja, que não sofra contestações e desafios o tempo todo,
que não se veja obrigada a buscar argumentos cada vez mais elaborados para
defender um prestígio que assim não arrisca jamais congelar-se em ídolo tribal, em
tabu sacrossanto.
Qualquer professor universitário ou intelectual público que, desafiado, se feche em
copas e fuja à discussão sob o pretexto de que suas crenças são lindas demais para
rebaixar-se a um confronto com a ideia adversária, cai imediatamente para o segundo
escalão, quando não se torna objeto de chacota. Os próprios correligionários do prof.
Richard Dawkins arrancaram-lhe o couro quando ele, afetando inatingível superioridade
olímpica, se esquivou a um debate com o filósofo William Lane Craig.
Nem mesmo a classe jornalística, tão burra e presunçosa em Nova York como em toda
parte, confunde o consenso escolar – aquele corpo de teorias e crenças que o apoio
majoritário consagrou como aptas para ser transmitidas às crianças – com a vida nas
altas esferas intelectuais onde tudo, mesmo o aparentemente óbvio, pode e deve ser
desafiado, contestado, forçado a buscar novos e cada vez mais sólidos fundamentos.
No Brasil só existe o consenso escolar. Ele impera sobre as cabeças dos intelectuais
com a mesma autoridade indiscutível com que se impõe, nas salas de aula, aos
trêmulos e indefesos corações infantis.
Basta você questionar de leve algum item do Credo ginasiano, e as reações indignadas
mostram o escândalo, o horror que você despertou nas almas virgens, jamais tocadas
antes pelas dúvidas que, em outros países, pululam por toda parte e alimentam
discussões sem fim.
Especialmente os ídolos da ciência popular, Newton, Galileu, Darwin ou Einstein,
adquiriram no Brasil o estatuto de divindades intocáveis, e não só entre meninos de
ginásio, mas entre professores universitários, cientistas e formadores de opinião.
Critique um desses habitantes do Olimpo, e o tom das respostas lhe mostrará, por a +
b, que neste país até mesmo banalidades arqui-sabidas dos historiadores por toda
parte são novidades escandalosas e provas incontestáveis de que você é um louco.
Quando mencionei, por exemplo, as consequências nefastas que o mecanicismo
newtoniano espalhou na cultura europeia – fato que já é de domínio público pelo
menos desde o século 19 –, só não me xingaram a mãe porque não acreditavam que
alguém capaz de atentar contra a memória do autor dos Princípios Matemáticos da
Filosofia Natural pudesse jamais ter tido mãe.
Quando escrevi que o próprio Charles Darwin fora o inventor do design inteligente, hoje
tão abominado pelos evolucionistas – coisa que não pode ser ignorada por ninguém
que tenha lido algo mais que as orelhas de A Origem das Espécies –, fui imediatamente
rotulado como fanático religioso indigno de ocupar um espaço na mídia.
Quando expliquei que sem o conhecimento do simbolismo astrológico é impossível
compreender direito as concepções cosmológicas de Sto. Tomás de Aquino ou a
estética das catedrais góticas – o que é a obviedade das obviedades para quem haja
estudado o assunto –, passei a ser chamado pejorativamente de “astrólogo” pelos srs.
Rodrigo Constantino e Janer Cristaldo, que, como ninguém ignora, são autoridades
insignes em História medieval.
Adistância, em suma, entre o que se discute desses assuntos na Europa e nos EUA e o
que se sabe a respeito no Brasil já se ampliou de tal modo, que ter algum
conhecimento nessas áreas se tornou realmente perigoso: a ignorância completa e
radical é hoje a única fonte de credibilidade, o único depósito de premissas onde o
opinador pode buscar argumentos com a certeza de que soarão razoáveis ante uma
plateia ainda mais ignorante que ele.
Tendo violado essa regra, tornei-me o único comentarista brasileiro de mídia ao qual
incumbe, sempre e sistematicamente, o ônus da prova – com o detalhe de que, quando
termino de provar tudo direitinho, os fulanos mudam de assunto e encontram outro
motivo qualquer para continuar achando ruim.
Às vezes chegam, nisso, a requintes de imbecilidade jamais alcançados antes no
universo. Indignados de que, num artigo aliás excelente sobre Otto Maria Carpeaux, o
prof. Maurício Tuffani citasse de passagem o meu nome, alguns leitores ofereceram a
singela sugestão de que eu fosse excluído para sempre de toda mídia. O autor do
artigo, então, com a maior paciência, explicou que no caso isso não era possível, por
ter sido eu mesmo o editor de um dos livros de Carpeaux ali mencionados.
Com toda a evidência, os remetentes prescindiam de ter lido o livro para decidir quem
podia ou não podia ser citado num comentário a respeito. Era o argumentum ad
ignorantiam elevado às alturas de um mandamento divino: quanto menos você sabe,
maior a sua autoridade na matéria.

Ideólogo é a mãe
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 20 de março de 2013

A baixeza de caráter sempre acaba transparecendo na deformidade da linguagem,


especialmente sob a forma dos cacoetes de estilo e da impropriedade do vocabulário.
Em artigo recente e muito oportuno, Roberto Romano lembra um desses cacoetes, que
se tornou marca registrada da linguagem fascista: o uso de aspas pejorativas como
armas de extermínio das reputações. Quando não se sabe o que alegar contra um
sujeito, apela-se a esses sinais gráficos na esperança de que, fincados dos dois lados
de um qualificativo – mesmo que seja o simples nome de uma atividade profissional –,
valham magicamente como sua total e peremptória negação.
Entre aspas, a vitória transfigura-se em derrota, o talento em inépcia, o advogado em
rábula, o general em recruta e o santo em charlatão: pelo menos tal é a expectativa dos
aspeadores. Disso deveria saber eu, que cheguei a ser, no dizer de Bruno Tolentino, “o
mais aspeado filósofo brasileiro” – mas por que deveria preocupar-me com um truque
bobo que só revela, nos seus praticantes, a mentalidade pueril e um toque de
analfabetismo funcional? Escritores que se prezam empregam as aspas para indicar
citações, conotações alusivas ou ambiguidades deliberadas, e evitam dar-lhes sentido
pejorativo porque sabem que isso é só para aqueles a quem a natureza avara negou
até mesmo o dom de insultar criativamente, tão abundante na linguagem popular do
Brasil.
Mas outra deformidade típica, endêmica nos jornais e nas cátedras deste país, é o vício
de forçar um termo a carregar-se de conotação ofensiva até fazê-lo perder o último
vestígio de referência à sua significação própria. O exemplo mais renitente é o uso
comunista do adjetivo “fascista”: na ânsia de associar a seus adversários a lembrança
sinistra das ditaduras de Hitler e Mussolini, estampam-no com entusiasmo feroz no
rosto dos que defendem a liberdade de mercado, a redução do poder do Estado, a
independência entre os poderes e as garantias legais da democracia parlamentar – o
oposto simétrico de qualquer coisa que mereça, na escala objetiva, o nome de
“fascismo”.
Não por coincidência, as pessoas que fazem isso são aquelas mesmas que mais
frequentemente apelam ao recurso fascista das aspas pejorativas.
Outro exemplo é o uso da palavra “ideólogo” como rótulo depreciativo. “Ideologia” é um
sistema de ideias destinadas não a descrever ou analisar a realidade, mas a criar e
fortalecer a unidade de um partido, de um grupo ou movimento político e a orientar –
justificando-os e enaltecendo-os – os seus planos para a tomada e a manutenção do
poder.
Basta compreender essa definição para perceber imediatamente que aqueles que
tentam rebaixar o meu trabalho rotulando-me “ideólogo” são nada mais que charlatães
e difamadores desprovidos do mais mínimo fragmento de credibilidade.
Para que essa rotulação tivesse algum valor, seria preciso que os rotuladores
pudessem responder às seguintes perguntas: Que partido? Que grupo? Que
movimento? Que planos? Não podem.
O público a que me dirijo não constitui um grupamento político nem mesmo num
sentido remotamente analógico, não tem nenhuma unidade organizacional ou atividade
militante e nem sequer encontros ou congressos onde pudesse sonhar com uma vaga
tomada do poder num futuro hipotético e inalcançável. E por mais meticulosamente que
se examinem os meus escritos e aulas, não se encontrará aí o menor esboço de algum
plano nesse sentido.
Quanto aos grupos e classes existentes para além das fronteiras desse círculo, é mais
do que óbvio que não me dirijo a nenhum deles em especial, não os represento no
mais mínimo que seja e não tenho sequer por eles um pouco de afeição ou respeito,
condição sine qua non para que desejasse orientá-los ou liderá-los politicamente.
Seria eu o ideólogo da burguesia, essa classe que não sonha senão em abrigar-se à
sombra do Estado? Dos militares, que se rebaixaram à condição de funcionários
públicos, totalmente esquecidos de que seu dever de lealdade é para com o Estado e
não para com qualquer partido que o açambarque e prostitua a serviço de seus
próprios interesses? Dos estudantes, que só pensam em comunismo, sexo e drogas?
Dos pobres e oprimidos, que não leem uma só linha do que escrevo e só acreditam no
Big Brother Brasil?
Ricos ou pobres, fardados ou à paisana, meus leitores, ouvintes e alunos são
indivíduos isolados, sem a menor ambição ou possibilidade de agir politicamente.
Chamar “ideólogo” a quem há anos se dirige a essas pessoas sem lhes acenar nem de
longe com algum projeto político é esvaziar a palavra “ideologia” de todo significado
substantivo para fazer dela um grotesco arremedo de insulto, um porrete de isopor,
uma faca sem cabo nem lâmina que só expõe ao ridículo o seu usuário, especialmente
quando este é, ele próprio, o porta-voz notório de um grupo político atuante e
constituído. Quem pode ser mais patético do que aquele que usa como ofensa o
próprio termo que mais apropriadamente o define?
Não por coincidência, os que se entregam a esse exercício de masoquismo
inconsciente não estão só na esquerda, como os srs. Caio Navarro de Toledo,
Adalberto Monteiro, Altamiro Borges ou a equipe do Vermelho.org, mas também alguns
na direita, como o prof. Alexandre Duguin ou os srs. Rodrigo Constantino e Joel
Pinheiro.
Em vista do exposto, a esses todos a única resposta merecida seria “Ideólogo é a
mãe”, se justamente o último dos mencionados não constituísse exceção, de vez que,
no seu caso, ideólogo não é a mãe e sim o pai – ideólogo do partido da Marina Silva.

Como sempre
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 8 de outubro de 2012
Vivendo num país onde, malgrado a corrupção nas altas esferas, o empenho diário de
evitar o mal e fazer a coisa certa ainda é uma realidade vivente no seio de tantas
famílias e uma referência incontornável até mesmo para a mídia mais mentirosa e
vendida, a degradação dos padrões de julgamento moral no Brasil surge aos meus
olhos com uma clareza estonteante. Notem bem: eu não disse padrões de conduta,
disse padrões de julgamento. A prática do crime aí tornou-se tão normal e corriqueira
que ela própria determina os critérios com que será julgada, nivelando tudo por baixo.
O bem, o heroísmo e a santidade desapareceram do repertório das possibilidades
humanas, até mesmo imaginárias, de tal modo que as virtudes mais banais e
obrigatórias se tornaram a medida máxima de aferição das ações, e o simples fato de
um funcionário cumprir o regulamento basta para elevá-lo ao céu dos modelos divinos.
No julgamento do Mensalão, todo mundo esperava que os juízes agissem da maneira
usual, isto é, se deixassem vender. Como não fizeram isso, como não fizeram vista
grossa àquilo que até um cego podia enxergar com nitidez cristalina, foram
instantaneamente transfigurados nas encarnações mais sublimes das virtudes pátrias,
recebendo louvores que nunca foram concedidos a José Bonifácio de Andrada e Silva,
ao Duque de Caxias ou ao Beato José de Anchieta.
Não vai nisso, é claro, qualquer crítica ou tentativa de depreciar o desempenho
de Suas Excelências. Quem está julgando errado não são os juízes, é a sociedade
brasileira, que elevou a vigarice e o crime a símbolos convencionais da normalidade e
já se deslumbra até o ponto do desvanescimento e do orgasmo quando alguém
simplesmente se abstém de praticar a esperada sacanagem.
Nessa escala diminuída, não é de espantar que a própria extensão dos delitos
cometidos e punidos tenha sido reduzida à sua medida mínima, como se fossem meros
pecados individuais e não a expressão direta, racional e inevitável da estratégia política
global que dirige o curso dos acontecimentos neste país desde há uma década.
Nenhum dos réus do processo agiu por conta própria, nem no seu interesse
pessoal exclusivo. Todos tinham a consciência clara – e por isso mesmo, a seus
próprios olhos, totalmente limpa – de trabalhar para a glória e o poder do seu partido,
para a consolidação da hegemonia esquerdista, que se colocava acima das leis não
por um desvio acidental, mas com o propósito deliberado de destruir o sistema vigente
e legitimar, pelo hábito repetido, o império soberano de uma nova autoridade: o “poder
onipresente e invisível” de que falava Antonio Gramsci.
Esquecer a dimensão estratégica desses crimes, usando as culpas individuais como
cortina de fumaça para encobrir o plano global que os gerou, não é de maneira alguma
fazer justiça: é inocentar o grande culpado, punindo em vez dele os seus
colaboradores. O fato é que nem os juízes, nem os analistas de mídia, nem os
formadores de opinião em geral conhecem, seja os planos estratégicos da esquerda
brasileira como um todo, seja, mais ainda, a tradição marxista que os inspira e
determina. Todos julgam, assim, desde uma visão minimalista onde os detalhes
aparecem soltos e o projeto maior permanece incólume por trás do sacrifício de seus
estafetas e office boys. Quem quer que tenha estudado um pouco de estratégia
comunista – o que não é o caso de nenhum desses ilustres opinadores – sabe que
toda a conduta do partido revolucionário se orienta com o propósito de usar
temporariamente o direito burguês como instrumento não só para impor em nome dele
um direito novo e antagônico, mas de apressar a desaparição de todo o direito,
substituindo-o pelos decretos onipotentes da elite iluminada que comanda o processo.
Onde quer que um partido imbuído da ambição revolucionária de mudar a sociedade
de alto a baixo ascenda ao poder, usando para isso os pretextos mais respeitáveis da
moralidade convencional – como o fez o PT ao longo da sua fulgurante carreira de
denunciador da corrupção alheia –, a imoralidade e o crime se imporão logo em
seguida, não como desvios e aberrações, mas como instrumentos preferenciais para
demolir o senso estabelecido da moral e da justiça e, na subseqüente confusão geral
das consciências, impor um novo padrão de julgamento, onde a vontade revolucionária
é o critério supremo e único do bem e da verdade.
Tudo isso está ocorrendo bem diante dos olhos sonsos e cegos de uma opinião pública
que não apenas se contenta, mas entra em êxtase quando o partido criminoso entrega
à justiça seus agentes menores para preservar-se politicamente, limpando-se na sua
própria sujeira, como sempre.

O mito da imprensa nanica – II


Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 25 de novembro de 2011

Em segundo lugar, a denominação mesma de “imprensa nanica” é altamente


enganosa. A exposição montada pelo Instituto Vladimir Herzog para celebrar o
lançamento da sua série de DVDs auto-hagiográficos deu uma prova fisicamente
visível daquilo que as palavras dos entrevistados pareciam negar: o gigantismo da
mídia esquerdista no Brasil no tempo da ditadura. Só no exterior, foram cento e
doze jornais e revistas, mais cento e dez no Brasil – sem contar as publicações
acadêmicas e inumeráveis jornais de grêmios estudantis, praticamente todos de
esquerda, que multiplicariam esse número por dez ou vinte. Isso não é imprensa
nanica. É um império midiático de proporções colossais. Tentem fazer uma idéia do
custo global da operação, da extensão da mão-de-obra envolvida, da quantidade
enorme de exemplares produzidos. Quantos jornais e revistas conservadores, de
direita, surgiram no Brasil nos últimos vinte anos – período equivalente ao do regime
militar? Nenhum. Simplesmente não há dinheiro para isso. Proponha uma publicação
conservadora ou cristã a empresários brasileiros, e eles daí por diante evitarão ser
vistos em sua companhia. Se não existisse a internet, onde se mantém um blog com
cinqüenta reais por ano, a opinião conservadora teria simplesmente desaparecido do
território nacional.
Imprensa nanica? Eu sei o que é imprensa nanica. Minha amiga Anca Cernea, na
Romênia, tem uma bela coleção de jornais de oposição publicados ali e na Polônia
durante o regime comunista. São miseráveis folhetos mimeografados ou pasquins de
quatro páginas compostos com tipos móveis, impressos em máquinas de fundo de
quintal e distribuídos por mãos trêmulas, em vielas escuras, longe da polícia.
Isso é imprensa nanica, isso é combate heróico contra uma ditadura. Nada dos
produtos de alta qualidade, desenhados por artistas de primeira ordem, impressos nas
mais importantes gráficas comerciais e vendidos em bancas, à vista de todo mundo. É
certo que muitos órgãos da imprensa esquerdista foram de curta duração, mas outros
permaneceram em circulação por muitos anos, não raro com o sucesso espetacular
de O Pasquim e Movimento. Também é verdade que viviam sob a ameaça da censura,
mas o mesmo acontecia com os jornais da grande mídia. Nenhum “nanico” foi tão
censurado quanto o Estadão e o Jornal da Tarde: as notícias substituídas por versos de
Camões, no primeiro, e por receitas culinárias, no segundo, dariam para preencher
muitas edições de Opiniãoou A Voz Operária.
Quando pergunto pelas fontes de sustentação financeira da “mídia nanica”, há dois
erros crônicos que devem ser afastados desde logo. De um lado, a coisa mais fácil do
mundo é fazer chacota da expressão “ouro de Moscou”, para inibir toda veleidade de
investigar a interferência soviética na política nacional. De outro lado, seria bobagem
tentar explicar a mídia alternativa como um todo com base na hipótese do dinheiro
soviético. Vamos por partes.
O “ouro de Moscou” não era nem um pouco mitológico. Ladislav Bittman, o chefe da
inteligência soviética no Brasil em 1964, informou que, na ocasião, a agência já tinha
mais de cem jornalistas brasileiros na sua folha de pagamentos. É claro que sem saber
os nomes deles e sem averiguar como se desenvolveu sua relação com o governo da
URSS nas décadas seguintes, nada se pode compreender realisticamente da história
da mídia esquerdista no Brasil. Em 17 de fevereiro de 2001, em artigo publicado na
revista Época, convoquei os jornalistas brasileiros a entrevistar aquele agente e tirar o
caso a limpo. O silêncio rancoroso com que a sugestão foi recebida ainda ressoa nos
meus ouvidos. Foi também em vão que tentei persuadir empresários brasileiros a
subsidiar um historiador russo – que vivera no Brasil e dominava a língua portuguesa –
a investigar o assunto nos arquivos do Partido Comunista soviético, então abertos aos
pesquisadores estrangeiros. Pelas expressões em seus rostos, tive a impressão de que
lhes dissera alguma imoralidade.
Mas é claro que, no conjunto, a mídia esquerdista no período militar não dependeu
substancialmente da ajuda soviética. Suas fontes de dinheiro eram múltiplas e
heterogêneas, incluindo empresários e banqueiros locais, além de verbas provenientes
das organizações terroristas, de organismos internacionais e, por baixo do pano, do
próprio governo (Ênio Silveira, o maior editor comunista do Brasil, criador da Revista
Civilização Brasileira, que tão decisivo papel desempenhou na reorientação estratégica
dos movimentos de esquerda depois do golpe de 1964, me confessou pouco antes de
morrer que sua editora só sobrevivera graças aos favores do general Golbery). A
variedade dessas fontes parece dar àquela indústria editorial os ares de produto
espontâneo e anônimo da sociedade, mas uma coisa é óbvia: sem uma imensa rede
de conexões, apoios e proteções, estendendo-se de Montevidéu a Moscou, de Paris a
Nova York e de Argel a Santiago do Chile, ninguém poderia ter inundado o espaço
legente deste e de outros países com uma massa de duzentos e vinte e dois jornais e
revistas – um feito digno do próprio Willi Münzenberg, o “Milionário Vermelho”. Essa
rede não tinha sua coesão assegurada senão pelas metas políticas comuns a todo o
movimento comunista internacional. Movimento que, àquela altura, se compunha de
muitas facções diversas e relativamente independentes, mas todas unidas, ao menos
nos instantes decisivos, contra o “inimigo comum”: o “imperialismo ianque” e seus
supostos “agentes no Terceiro Mundo”, entre os quais, evidentemente, os militares
latino-americanos.
A premissa básica da qual deve partir o estudo da mídia alternativa antimilitar no Brasil
é aquela que, num depoimento marcado por sinceridade inaudita, foi colocada pelo
sociólogo Herbert de Souza, o “Betinho”: o movimento revolucionário é sempre e
invariavelmente um fenômeno internacional. A unidade da sua atuação no mundo é
complexa e dialética, mas nem por isso menos real. Sem o apoio do movimento
comunista internacional, nada do que os jornalistas de esquerda fizeram no Brasil e no
exterior teria sido jamais possível. Nesse sentido, suas ações não podem ser
compreendidas no puro contexto local, isolado das condições internacionais que as
possibilitaram.
Ora, enquanto no Brasil os militantes da esquerda jornalística posavam como
defensores da democracia e das liberdades públicas, qual era a atividade essencial
desempenhada simultaneamente pela rede comunista que os apoiava e protegia? Essa
atividade pode ser resumida numa única palavra: matar. Durante os anos da nossa
ditadura militar, os governos comunistas mataram dois milhões de pessoas no
Camboja, 1,5 milhão na Revolução Cultural chinesa, meio milhão na Etiópia, duzentos
mil no Vietnã, outro tanto no Tibete, cem mil em Cuba, pelo menos um milhão em
vários países da África. E notem que isso foi depois do seu período de maior violência
genocida (anos 30 a 60). Como é possível que cúmplices e beneficiários ideológicos de
tanta maldade se sentissem sinceramente escandalizados ante as mortes de trezentos
e poucos militantes armados que ao mesmo tempo faziam duzentas vítimas entre seus
inimigos? Quando se ouviu a imprensa “nanica” reclamar contra o que seus
companheiros e protetores internacionais faziam em quatro continentes? Mais se
escreveu e se falou no Brasil sobre a morte de Vladimir Herzog ou de Carlos Lamarca
do que sobre milhões de civis desarmados que ao mesmo tempo eram assassinados
pelos parceiros daqueles “combatentes pela democracia”.
Eis a razão pela qual a base econômico-social da “mídia alternativa” brasileira jamais é
sondada em profundidade por aqueles que professam, com hipocrisia exemplar, fazer a
reconstituição documental da sua história. Ela é uma caixa-preta que, quando aberta,
revela o que ninguém quer saber.
Derramar toneladas de lágrimas de crocodilo quando morre um terrorista, e ao mesmo
tempo negar às vítimas do comunismo um olhar de piedade, um minuto de atenção, tal
tem sido a atitude permanente com que a militância mais cruel e assassina que já
existiu consegue se fazer passar, ante o olhar das massas, como vítima inocente da
brutalidade alheia. A essa duplicidade moral acrescenta-se uma astuta distribuição
geográfica dos sentimentos fingidamente humanitários. É inevitável que, operando em
escala global, os comunistas levem vantagem em alguns países e saiam perdendo em
outros. Nestes últimos, tratam de encobrir as pistas de suas conexões internacionais,
de modo a bloquear toda comparação entre os males que ali sofrem e os padecimentos
muito maiores que, no mesmo momento, estão impondo a outros povos, em outros
lugares. Nossa “midia alternativa” seguiu essa receita à risca, criando a imagem de
uma esquerda nacional isolada do universo, sem culpa pelo que seus patronos e
cúmplices faziam no resto do planeta. Restauradas as devidas comparações, sua
presunção de heroísmo e santidade revela seu verdadeiro rosto de farsa cínica e
macabra

Comunismo

O comunismo dos imbecis


Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 14 de maio de 2015
Definir o comunismo como “estatização dos meios de produção”, como o fazem o sr.
Marco Antonio Villa e seus admiradores, que por incrível que pareça existem, é
descrevê-lo pelo sistema econômico ideal que lhe serve de bandeira e slogan, e não
pela sua realidade de movimento político e intelectual com um século e meio de uma
história tremendamente complexa.
É explicar fatos históricos pela definição de uma palavra no dicionário, procedimento no
qual nenhuma pessoa com mais de doze anos de idade tem o direito de confiar.
Procedimento que se revela ainda mais pueril e inaceitável quando a definição é usada
como premissa de um raciocínio (ou raciossímio, diria o Reinaldo Azevedo) segundo o
qual um partido que não prega ou pratica ostensivamente a estatização dos meios de
produção não pode ser comunista de maneira alguma.
Pois, ao longo de toda a sua história, os grandes partidos comunistas do mundo, a
começar pelo da própria URSS, preferiram quase sempre deixar essa meta hipotética e
longínqua num discreto segundo plano, ou omiti-la completamente, concentrando-se
em objetivos concretos mais imediatos que pudessem compartilhar com outros partidos
e forças, ampliando a base das suas alianças possíveis.
Característica, nesse sentido, foi a política do Front Popular, que na década de 30
angariou apoio mundial para a URSS na base de um discurso “antifascista”, onde tudo
soava como se nenhuma incompatibilidade tivesse existido jamais entre o regime
comunista e os interesses da burguesia democrática dos países ocidentais.
O velho Partido Comunista Brasileiro de Luís Carlos Prestes sempre falou muito menos
em estatizar a economia do que em “defender os interesses nacionais” e a “burguesia
nacional”, supostamente ameaçados pelo capital estrangeiro.
No período da luta contra a ditadura militar, então, não se ouvia um só comunista, fora
do meio estudantil enragé ao qual pertencia o sr. Villa, pregando estatização do que
quer que fosse: só clamavam por “democracia”.
Mao Dzedong, no início da carreira, falou tanto em patriotismo antijaponês e foi tão
discreto no que diz respeito ao fim do livre mercado, que superou Chiang Kai-Shek nas
simpatias do governo americano, ante o qual fez fama de “reformador agrário cristão”.
Mesmo quando se fala em estatização, na maior parte dos casos ela é sempre parcial
e aplicada de tal modo que não fira indiscriminadamente os interesses da burguesia e o
direito a toda propriedade privada dos meios de produção, mas pareça mesmo
favorecê-los a título de “aliança entre Estado e iniciativa privada”. Mesmo no Chile de
Allende foi assim.
Sendo, malgrado todas as suas mutações e ambiguidades, um movimento organizado
de escala mundial, o comunismo sempre comportou uma variedade de subestratégias
locais diferenciadas, as quais, não raro, se pareciam tanto com um comunismo de
dicionário quanto as intrigas diplomáticas do Vaticano se parecem com a salvação da
alma.
A famosa “solidariedade comunista internacional” consiste precisamente numa bem
articulada divisão de trabalho, de modo que as ações dos partidos comunistas locais
contribuam para o sucesso mundial do movimento pelas vias mais diversas e às vezes
até incompatíveis em aparência.
Nos anos 30 do século passado, Stálin ordenou que o Partido Comunista Americano se
abstivesse de tentar organizar a militância proletária e, em vez disso, se concentrasse
em ganhar o apoio de bilionários, de intelectuais célebres e do beautiful people da
mídia e do show business, na base de apelos ao “pacifismo”, aos “direitos humanos” e
à “democracia”, de modo que o discurso comunista se tornasse praticamente
indistinguível dos ideais formadores do sistema americano.
Nessa perspectiva, arregimentar militantes e intoxicá-los de doutrina marxista era muito
menos importante do que seduzir possíveis “companheiros de viagem”, pessoas que,
sem ser comunistas nem mesmo em imaginação, pudessem, nos momentos decisivos,
colaborar com as iniciativas do Partido e com os interesses da URSS, usando,
justamente, da sua boa fama de insuspeitas de comunismo.
Foi por isso que o Partido, na América, sempre foi uma organização minúscula, dotada
de um poder de influência desproporcional com o seu tamanho.
O objetivo dessa estratégia era não só criar em torno do comunismo uma aura de
humanismo inofensivo, mas também fazer do capitalismo americano a fonte de dinheiro
indispensável à sustentação de um movimento político sempre deficitário quase por
definição.
A operação teve sucesso não só em desviar para a URSS e para o PCUSA quantias
vultuosas provenientes das grandes fortunas privadas, mas em transformar o próprio
governo americano no principal mantenedor e patrono do regime soviético, que sem
isso não teria sobrevivido além dos anos 40.
Quanto a este segundo ponto, é evidente que simples idiotas úteis e agentes de
influência não poderiam ter obtido tão esplêndido resultado; eles serviram apenas para
dar suporte moral e político à ação de agentes de interferência, profissionais de
inteligência altamente treinados, cuja infiltração maciça nos altos postos do governo de
Washington, como se sabe hoje, foi muito além do que poderia ter calculado, na época,
o infeliz senador Joe McCarthy.
Por todos esses exemplos vê-se como é imbecil esperar que um partido saia pregando
a “estatização dos meios de produção” para só então notar que ele é comunista.
O próprio PT já deixou clara, para quem deseje vê-la, a sua quádrupla função e tarefa
no movimento comunista internacional:
1. No plano diplomático, alinhar o Brasil com o grande bloco antiocidental encabeçado
pela Rússia e pela China. O BRICS não é nada mais que uma extensão embelezada
da Organização de Cooperação de Shanghai, que já expliquei aqui em 2006 (leia aqui).
2. Na esfera de ação continental, salvar e fortalecer o movimento comunista, como bem
o reconheceram as Farc, mediante a criação do Foro de São Paulo e de um sistema de
proteção que permita a transfiguração da narcoguerrilha, ameaçada de extinção no
campo militar, em possante e hegemônica força política e econômica.
3. Por meio de empréstimos ilegais e da corrupção, usar os recursos do capitalismo
brasileiro para salvar os regimes comunistas economicamente moribundos, como os de
Cuba e de Angola.
4. Na política interna, eliminar as oposições, aparelhar o Estado e estabelecer de
maneira lenta, discreta e anestésica um poder hegemônico indestrutível.
Quem tem toda essa complexa e portentosa missão a cumprir há de ser louco de sair
por aí pregando “estatização dos meios de produção” para assustar e pôr em fuga a
burguesia local, sem cuja colaboração o cumprimento da tarefa se torna impossível?
Na perspectiva do sr. Marco Antonio Villa, nada disso é atividade comunista, já que
falta “estatizar os meios de produção”.
A desproporção entre a complexidade do fenômeno comunista e a estreiteza mental de
um autor de livrinhos compostos de recortes de jornal já é patética por si, sem que ele
precise ainda enfatizá-la afetando sua superioridade de portador de um diploma ante
os que, sem diploma nenhum, conhecem a matéria porque a estudaram.
Como eu mesmo me incluo entre estes últimos, sendo tão carente de estudos formais
quanto Machado de Assis, João Ribeiro, Capistrano de Abreu, Luís da Câmara
Cascudo, Manuel Bomfim, José Veríssimo e outros construtores maiores da cultura
brasileira, deve parecer mesmo revoltante ao sr. Villa que eu tenha acumulado mais
honrarias acadêmicas, prêmios literários, citações em trabalhos universitários e
aplausos de grandes intelectuais de três continentes do que ele, com seu canudinho da
PUC e seu currículo mirim, poderá angariar em trinta reencarnações, caso existam.
Entre os anos 40-70 do século passado, a idolatria dos diplomas, tão característica da
Primeira República e tão bem satirizada nos romances de Lima Barreto, parecia uma
doença infantil finalmente superada numa época em que a cultura brasileira ia
vencendo o subdesenvolvimento e igualando-se às de países mais ricos.
Um quarto de século de “Nova República”, e sobretudo doze anos de PT no poder,
trouxeram-na de volta com força total, numa espécie de compensação ritual que,
sentindo vagamente no ar a ausência da alta cultura desfeita em pó, busca apegar-se
supersticiosamente aos seus símbolos convencionais, como o viúvo inconsolável que
dorme agarrado a um chumaço de cabelos da falecida, para trazê-la de volta.
Não é de todo coincidência que entre os sacerdotes desse culto caquético se
destacassem justamente alguns daqueles que minutos antes perguntavam “Diploma
para quê? ” e buscavam persuadir a nação de que a fé democrática trazia como
corolário a obrigação de eleger um semianalfabeto presidente da República.
Uma vez que o Partido domina as universidades, é indispensável que elas
monopolizem a atividade cultural, marginalizando e achincalhando toda criação ou
pensamento independente.
Se o sr. Villa colabora gentilmente com esse empreendimento, não há nisso nada de
estranho, já que ele se empenha também em acobertar as atividades do Foro de São
Paulo, reduzindo todo combate antipetista a uma “luta contra a corrupção” imune ao
pecado mortal de anticomunismo.
Qualquer que seja o caso, num país em que cinquenta por cento dos formandos das
universidades são comprovadamente analfabetos funcionais, todo portador de um
diploma deveria pensar duas vezes antes de exibi-lo como prova de competência, para
não falar de superioridade.

O cão, o lobo e o rato


Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 8 de maio de 2015
Giambattista Vico ensinava que nada conhecemos tão bem quanto aquilo que nós
mesmos inventamos. O sr. Marco Antonio Villa ilustra essa regra com perfeição.
Após declarar, em artigo do Globo, que, “na política é indispensável, ao enfrentar um
adversário, conhecê-lo” – abertura triunfal que realiza às mil maravilhas o ideal literário
do Conselheiro Acácio -, ele inventa um PT à imagem e semelhança da sua própria
estreiteza mental e o enfrenta até mesmo com certa bravura.
No seu entender, o PT nada tem de comunista. É apenas “um mix original que associa
pitadas de caudilhismo, com resquícios da ideologia socialista no discurso — não na
prática —, um partido centralizado e a velha desfaçatez tupiniquim no trato da coisa
pública, tão brasileira como a caipirinha que seu líder tanto aprecia”.
Desprovido de todo aparato marxista e de toda conexão com o movimento comunista
mundial e suas tradições, reduzido a um fenômeno folclórico local sem nenhuma
retaguarda estratégica, o partido governante está pronto para ser demolido na base de
puras notícias de TV, sem o menor combate ideológico ou sondagem das suas
conexões internacionais.
Foi nisso que se especializou o sr. Villa, e ele desempenha essa tarefa pelo menos tão
bem quanto o faria qualquer aprendiz de jornalismo.
Dos que temem que na sua atitude haja um excesso de presunção otimista ele se livra
com meia dúzia de petelecos, rotulando-os de “exaltados e néscios”, proferidores de
“puras e cristalinas bobagens”, culpados de “absoluto desconhecimento político e
histórico”, de restaurar “o rancoroso discurso da Guerra Fria”, de usar “conceituações
primárias que não dão conta do objeto” e de retirar do baú da História o anticomunismo
primário”, isso quando alguns deles não chega mesmo a ser, como ele disse na TV, um
“astrólogo fascista embusteiro metido a líder político”.
Tendo assim alcançado um recorde jornalístico de insultos por centímetro de coluna,
ele se sente preparado para provar cientificamente a ausência de comunismo no PT. E
eis como ele se desincumbe da tarefa:
“O petismo impôs seu ‘projeto criminoso de poder’… sem que tivesse necessidade de
tomar pela força o Estado. O processo clássico das revoluções socialistas do século
XX não ocorreu. O ‘assalto ao céu’ preconizado por Marx.. foi transmutado numa
operação paulatina de controle da máquina estatal no sentido mais amplo, o
atrelamento da máquina sindical, dos movimentos sociais, dos artistas, intelectuais,
jornalistas, funcionando como uma correia de transmissão do petismo.”
Quem quer que tenha estudado o assunto, ao menos um pouquinho, entende, logo ao
primeiro exame, que isso que o sr. Villa acaba de descrever é a aplicação fiel,
milimetricamente exata, da estratégia de Antonio Gramsci para a conquista do poder
pelos comunistas.
Nada de tomar o Estado pela força, nada de “assalto aos céus”. Em vez disso, a lenta e
quase imperceptível “ocupação de espaços”, ou, nos termos do sr. Villa, “o atrelamento
da máquina sindical, dos movimentos sociais, dos artistas, intelectuais, jornalistas”.
Faz quase seis décadas que o movimento comunista internacional em peso adotou
essa estratégia, por ser ela a única compatível com a política de “coexistência pacífica”
entre a URSS e as potências ocidentais, preconizada por Nikita Kruschev no discurso
que proferiu em 1956 no XX Congresso do Partido Comunista soviético.
Ou seja: a prova cabal de que o PT não é um partido comunista é que ele faz
exatamente o que todos os partidos comunistas do Ocidente fazem há sessenta anos.
Não é de tapar a boca de qualquer astrólogo fascista embusteiro?
O sr. Villa mostra-nos um bicho de pele grossa, orelhas grandes, seis toneladas de
peso e duas presas de marfim, mas se lhe dizemos que é um elefante ele sobe nas
tamanquinhas e diz que são “conceituações primárias”.
Como exemplo do que deveria ser uma conceituação mais sofisticada, ele reconhece
que o PT é leninista, mas só “na estrutura, não na ação”.
Precisamente: leninista na estrutura, gramsciano na ação. Como o próprio Gramsci
recomendava. Mas pensar que isso é comunismo é “pura e cristalina bobagem”, não é
mesmo? Especialmente para quem, nada sabendo de Gramsci e muito menos das
longas discussões entre intelectuais gramscianos que prepararam e preparam cada
decisão do PT, descreve o gramscismo sem saber que é gramscismo e jura, de mãos
postas, que o PT jamais teve outro estrategista senão Macunaíma, nem outra
inspiração senão a caipirinha.
“Como falar em marxismo se Lula sequer leu uma página de Marx?”, pergunta o sr.
Villa. Bem, no tempo em que eu andava com os comunistas só vi dois deles lendo
Marx. O terceiro era eu. Os outros liam exemplares de A Voz Operária e as resoluções
do Comitê Central. O próprio Rui Falcão mal conhecia o Manifesto Comunista.
Mas isso é só uma curiosidade. O fato é que o sr. Lula não leu talvez uma só página de
Marx, mas o sr. Frei Betto leu muitas, além de um bocado de Gramsci, e há décadas
exerce as funções de cérebro do ex-presidente. Ou o sr. Frei Betto, coautor da
Constituição cubana, co-fundador do Foro de São Paulo e mentor reconhecido de um
gratíssimo sr. Lula, não é ele próprio comunista?
No entanto, se o argumento do sr. Villa não vale para o caso do sr. Lula, vale para o do
próprio sr. Villa. Ele definitivamente não é comunista, já que não leu Marx. Se tivesse
lido, não teria escrito esta lindeza:
“Quando Lula chegou ao Palácio do Planalto, o partido só tinha de socialista o
vermelho da bandeira e a estrela. A prática governamental foi de defesa e incentivo do
capitalismo. Em momento algum se falou em socialização dos meios de produção.”
Pois Marx ensinava, precisamente, que a socialização dos meios de produção não
seria possível antes de totalmente desenvolvidas as forças produtivas do capitalismo.
O processo, dizia ele, poderia levar décadas ou até séculos. Para um partido comunista
que chegue ao poder por via democrática, numa nação capitalista, o único caminho
possível para o socialismo, sobretudo desde 1956, é desenvolver as forças produtivas
do capitalismo ao mesmo tempo que as atrela ao Estado por meio de impostos e
regulamentos e vai aos poucos – invisivelmente, dizia Antonio Gramsci – conquistando
a hegemonia e neutralizando as oposições.
É precisamente o que o PT faz. Já me expliquei um pouco a esse respeito um ano
atrás, neste mesmo jornal (leia aqui).
Mas nem o próprio Lênin, que subiu ao poder nas ondas de uma revolução armada e
tinha todos os instrumentos para governar pelo terror, saiu logo falando em estatizar.
Fez como o PT: deu um incentivo ao capitalismo enquanto montava o sistema de poder
hegemônico, tomando gradativamente dos burgueses os meios de ação política
enquanto os mantinha anestesiados por meio de vantagens financeiras imediatas.
Foi isso o que ele resumiu na máxima: “A burguesia nos venderá a corda com que a
enforcaremos”. Nem mesmo em teoria Lênin pensou em estatização imediata. Ao
contrário. Dizia ele: “O meio para esmagar a burguesia é moê-la entre as pedras da
inflação e do imposto.”
Se o PT faz exatamente isso, é a prova cabal, segundo o sr. Villa, de que ele não é um
partido comunista de maneira alguma.
O sr. Villa fala ainda contra o conceito de “bolivarianismo” quando aplicado ao PT.
Nisso ele tem razão, mas não pelos motivos que alega. Ele investe contra o termo
“bolivarianismo”, porque, no seu entender, Hugo Chávez só escolheu Simon Bolívar
como símbolo da sua revolução por achar que “a crise do socialismo real tinha chegado
ao seu ponto máximo e não havia mais nenhuma condição de ter como referência o
velho marxismo-leninismo”.
Isso é absolutamente falso.
Em primeiro lugar, adotar a máscara nacionalista, populista ou coisa que o valha não
foi, como sugere o sr. Villa, um arranjo de última hora, uma alternativa de emergência
adotada no ponto extremo de uma crise do marxismo, mas é um dos hábitos mais
velhos e constantes do movimento comunista, que desde os anos 30 do século
passado veio se camuflando como “progressismo”, “terceiromundismo”, “movimento
dos não-alinhados”, “antifascismo”, “anticolonialismo”, “teologia da libertação”, “filosofia
da libertação”, “pan-africanismo” etc. etc. etc.
Segundo: O próprio sr. Villa qualifica o bolivarianismo de “fachada”, mas parece ignorar
que toda fachada é fachada de alguma coisa. Como em 2010 Hugo Chávez, reeditando
a célebre confissão tardia de Fidel Castro, admitiu publicamente sua condição de
marxista, já não é preciso nenhum esforço divinatório para saber o que se escondia por
trás do “bolivarianismo”.
Terceiro: No Brasil o termo “bolivarianismo” tem servido sobretudo como subterfúgio
eufemístico para evitar a palavra proibida, “comunismo”, que o sr. Villa quer proibir
ainda mais.
Aliás esse é um dos fenômenos linguísticos mais lindos de todos os tempos, uma
conspiração de duas forças antagônicas que colaboram para silenciar o óbvio.
Os comunistas não querem que ninguém fale de comunismo porque, na estratégia de
Antonio Gramsci, a revolução comunista só pode prosperar sob o manto da mais
confortável invisibilidade (exemplo, os dezesseis anos de silêncio geral sobre o Foro de
São Paulo).
Os anticomunistas também não querem que se fale de comunismo porque precisam
que todo mundo acredite que saíram vencedores na Guerra Fria, sepultando o
comunismo de uma vez para sempre.
O sr. Villa alista-se decididamente nesta segunda facção:
“Considerar o PT um partido comunista revela absoluto desconhecimento político e
histórico… Não passa de conceder sentido histórico ao rançoso discurso da Guerra
Fria. O Muro de Berlim caiu em 1989 mas tem gente em Pindorama que ainda não
recebeu a notícia.”
Talvez o sr. Villa, que não chegou a 1956, tenha saltado direto para 1989, mas é seguro
que não chegou a 2000, quando o filósofo Jean-François Revel, num livro de sucesso
mundial (La Grande Parade, Paris, Plon, 2000), fez a pergunta decisiva: Como tinha
sido possível que o movimento comunista, desmoralizado na URSS, em vez de
desaparecer por completo, crescesse até proporções gigantescas na década seguinte?
As explicações eram muitas: adoção da estratégia gramsciana, troca da antiga
estrutura hierárquica por uma organização mais flexível em “redes”, fuga generalizada
ante a responsabilidade pelas atrocidades do regime comunista etc. etc.
Mas essas respostas não vêm ao caso, já que o sr. Villa não percebeu nem a pergunta.
Não se vende remédio a quem não sabe que está doente.
Que o sr. Villa está doente, não se discute. A estreiteza do seu campo de visão é
decididamente anormal. É um tipo de glaucoma intelectual. Só que o doente de
glaucoma fisico se queixa quando o seu ângulo visual diminui, ao passo que o sr. Villa
se gaba e se pavoneia.
“Estou pouco me lixando para o Foro de São Paulo”, declarou ele na TV tempos atrás,
mostrando que, do alto da sua infinita superioridade, uma coisinha de nada como a
maior organização política que já existiu no continente não merecia o dispêndio de uma
gota sequer dos seus prodigiosos dons intelectuais.
Nós, os primários, os embusteiros, os fascistas, admitimos que nada podemos
compreender do PT se o encaramos como um fenômeno estritamente local, fazendo
abstração tanto das suas raízes (que remontam à criação da “teologia da libertação”
por Nikita Kruschev; leia aqui), quanto das verbas estrangeiras que o alimentaram por
décadas ou dos compromissos e conexões internacionais que determinam cada passo
na consecução da sua estratégia.
Mas essas coisas são grandes demais para o campo visual do sr. Villa. Ele
simplesmente as suprime e, fingindo desprezo ao que ignora, despeja insultos sobre
quem as conhece.
Não desejo mal ao sr. Villa. O PT minúsculo que ele enxerga é uma parte do PT real, e
ele até que faz o possível para trazer algum dano a esse pedacinho.
O cão de pastor que em defesa do redil se atraca com o lobo não há de achar ruim se
um rato, pisoteado por acaso na confusão da luta, inventa de roer o dedão do invasor.

Você estar comunisto?


Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 5 de dezembro de 2014
O falecido Jean Mellé, fundador e diretor do “Notícias Populares”, que se tornaria um
clássico do jornalismo de escândalo, era um refugiado romeno que tinha sólidas razões
para odiar o comunismo. Grande e musculoso, de vez em quando agarrava um de seus
subordinados pela goela e, com um olhar feroz de grão-inquisidor, perguntava: “Você
estar comunisto?”. Se a resposta fosse “Não”, ele se dava por satisfeito.
Em noventa por cento dos casos, o interrogado era um membro do Partido e saía rindo
do patrão cujo poder ameaçador se neutralizava a si mesmo com uma dose patética de
ingenuidade.
Na verdade, Mellé não era nada ingênuo. Conhecia de trás para diante a ambiguidade
escorregadia da conduta dos comunistas. Não tinha a menor ilusão de que andassem
com foice e martelo estampados na testa ou declarassem de bom grado sua identidade
ideológica. Contentava-se com a resposta sumária somente porque não dominava a
língua nacional o suficiente para encompridar a discussão. Queria apenas infundir um
pouco de medo no coração dos comunas, e conseguia. Eles vingavam-se com
risadinhas forçadas que espalhavam o mito do adversário simplório, grandão bobo que
até crianças poderiam enganar. Mentiam, e mentiam sobre a mentira: ocultavam sua
filiação partidária e fingiam que tinham conseguido ludibriar “a direita”. A satisfação com
que se entregavam a esse empreendimento acabava por se impregnar nas suas
mentes, transfigurando o fingimento ocasional numa sintomatologia histérica completa
e o autoengano num estilo de vida permanente.
Decorrido meio século, o movimento comunista ainda tem no jornalismo brasileiro um
exército de colaboradores fiéis cuja tática persuasiva habitual e praticamente única
consiste em inventar uma versão ridiculamente simplória do comunismo, atribuí-la aos
direitistas e, demolindo-a com duas ou três piadinhas sem graça, cantar vitória, ficando
assim provado que o comunismo não existe, que é apenas uma fantasia paranoica de
direitistas raivosos. É o bom e velho recurso erístico do “homem de palha”, que nessas
pessoas já se tornou uma segunda natureza.
Alguns dos praticantes dessa mágica besta são homens tarimbados, treinados em
Havana e Praga. A prova mais patente do poder que adquiriram nas redações é a
naturalidade com que estágios em centros de propaganda e desinformação na Cortina
de Ferro entram nos seus currículos como provas de “experiência jornalística”, como se
a técnica de mentir fosse a mesmíssima coisa que a de relatar os fatos. É óbvio que,
ao menos nos velhos tempos, muitas dessas gentis criaturas eram agentes pagos de
serviços secretos comunistas. Seus nomes, com atraso de meio século, vão sendo
pouco a pouco revelados pelos documentos arquivados em Praga no Instituto para o
Estudo dos Regimes Totalitários (ver aqui e aqui).
Outros, mais jovens, não precisaram viajar para adquirir as manhas da prosa
comunista. Aprenderam-nas por aqui mesmo, em faculdades de jornalismo que os
cavalheiros mencionados no parágrafo anterior transformaram em centros de
adestramento da militância pelo menos desde a década de 70 do século passado.
O primeiro sinal de que você é inteligente é a sua capacidade de perceber que um
outro é mais inteligente. Mutatis mutandis, o primeiro sinal de burrice é supor, sempre,
que o outro é mais burro do que é. Nisso consiste o artifício de retórica erística a que
me referi: O sujeito define o comunismo da maneira mais simplória e mecânica e,
argumentando que esse comunismo não existe (como de fato não pode existir), conclui
que todo anticomunismo é uma doença mental, fonte de violência e “crimes de ódio”.
A definição usada nesse truque é a seguinte: o comunismo é a estatização completa,
repentina e ostensiva dos meios de produção e de toda propriedade particular. O
governante pega o microfone e anuncia: “Olhe aqui, gente, eu sou comunista. Agora
quem manda nesta porcaria é o comunismo. Passem aí as suas propriedades ou vão
para o Gulag.”Para tipos como o sr. Jô Soares e outras cabeças iluminadas que guiam
o pensamento nacional, o fato de que isso nunca tenha acontecido é a prova cabal de
que o perigo comunista não passa de uma invencionice criada para justificar um golpe
de Estado ou coisa pior.
Em contraste com essa desconversa vagabunda, vejamos o que é o comunismo de
verdade, na sua teoria e na sua prática no mundo.
Karl Marx ensinava que a estatização dos meios de produção – etapa inicial da
construção do socialismo – seria um processo complexo que deveria se estender por
muitas décadas ou séculos, e que não poderia nem mesmo começar antes que os
meios capitalistas de produção alcançassem o seu máximo desenvolvimento possível.
A última coisa que um governante comunista deve fazer – sobretudo se chegou ao
poder pelas vias democráticas usuais e sem derramamento de sangue — é portanto
sair estatizando tudo, desmantelando a classe capitalista. Ao contrário: deve ajudar os
capitalistas a ganhar o máximo de dinheiro que possam, ao mesmo tempo que os
destitui dos seus meios de ação política e ideológica. A função do capitalista nessa fase
do socialismo é fazer dinheiro e não dar palpite, tornando-se tanto mais próspero
quanto mais politicamente inócuo e subserviente à elite governante comunista.
Seduzidos pelos ganhos fáceis, os capitalistas vão transferindo aos comunistas todo o
seu poder ideológico, de modo que, em prazo relativamente breve, quatro coisas
acontecem:
(1) Em pleno regime de prosperidade capitalista, só há ideias comunistas em
circulação. De maneira mais ostensiva ou mais camuflada, a propaganda comunista se
torna o único discurso vigente na sociedade. As ideias concorrentes desaparecem ao
ponto de se tornarem impensáveis. Subsistem, na melhor das hipóteses, como vagos
mitos de outras épocas. Um restinho de “ideologia capitalista” permanece no ar,
reduzido à apologia da eficiência econômica, que os comunistas seriam os últimos a
negar.
(2) A riqueza deixa de ser um meio de ação política independente e se reduz a
instrumento da propaganda comunista. Cada capitalista gasta rios de dinheiro elegendo
comunistas e financiando o ódio ao capitalismo.
(3) Ter uma imensa conta bancária dá menos poder do que uma carteirinha do Partido
ou um cargo público qualquer. O poder político-ideológico é transferido da burguesia
para a elite partidária sem que a propriedade capitalista sofra qualquer arranhão visível.
(4) Os comunistas, por seu lado, podem tanto se gabar de ser os dominadores
absolutos da situação como continuar a se fazer de vítimas indefesas da burguesia.
Passam do discurso ameaçador às lágrimas de autocomiseração com a maior
facilidade, e a incoerência mesma da sua atitude serve para desnortear ainda mais o
adversário.
Nessa etapa, não há guerra econômica. Não se trata de tomar as propriedades dos
burgueses, mas de destituí-los de seus meios de autodefesa ideológica.
Esse é o programa que o governo do PT vem cumprindo à risca, esse é o esquema
comunista real e genuíno. Ele não é um homem de palha, muito menos é uma ameaça:
é a realidade em que vivemos.

O ovo e o pinto
Olavo de Carvalho
Folha de São Paulo, 3 de agosto de 2014

Meu artigo anterior suscitou uma pergunta interessante na área de comentários: se há


tanta gente nas altas esferas colaborando com o comunismo, como é que ele ainda
não dominou o mundo?
A primeira e mais óbvia resposta é que “o comunismo” como regime, como sistema de
propriedade, é uma coisa, e o “movimento comunista” enquanto rede de organizações
é outra. O primeiro é totalmente inviável, mas por isso mesmo o segundo pode crescer
indefinidamente sem jamais ser obrigado a realizá-lo, limitando-se, em vez disso, a
colher os lucros do que vai roubando, usurpando, prostituindo e destruindo pelo
caminho.
São duas faixas de realidade completamente distintas, que se mesclam numa confusão
desnorteante sob a denominação de “comunismo”.
Uma analogia tornará as coisas mais claras. Nenhum ser humano pode levar uma vida
razoável com base numa loucura, mas, por isso mesmo, nada o impede de ficar cada
vez mais louco: ele se estrepa, mas a loucura progride. A força da loucura consiste
precisamente em furtar-se ao teste de realidade. Os comunistas não podem realizar a
economia comunista. Se têm uma imensa facilidade em arrebanhar pessoas para que
lutem por esse fim irrealizável, é precisamente porque ele é irrealizável, o que é o
mesmo que dizer: inacessível a toda avaliação objetiva de resultados.
Jamais existirá uma economia comunista da qual seus criadores digam: “Eis aqui o
comunismo realizado. Podem julgar-nos e dizer se cumprimos ou não as nossas
promessas.” É da natureza mais íntima do ideal comunista ser uma promessa
indefinidamente autoadiável, imune, por isso, a todo julgamento humano. Seu prestígio
quase religioso vem exatamente disso: o comunismo traz o Juízo Final do céu para a
Terra, mas também sem data marcada.
Daí o aparente paradoxo de um movimento que, quanto mais cresce e mais poderoso
se torna, mais se afasta dos seus fins proclamados. A esse paradoxo acrescenta-se um
segundo: quanto mais se afasta desses fins, mais o movimento está livre para alegar
que foi traído e que tem direito a uma nova oportunidade, com meios mais “puros”. Mas
o paradoxo dos paradoxos reside numa faixa ainda mais profunda.
Se alguém diz que vai fazer o impossível, com certeza não fará nada ou fará outra
coisa. Se fizer, poderá ao mesmo tempo dar a essa coisa o nome daquilo que pretendia
e alegar que ela ainda não é, ou que não é de maneira alguma, aquilo que pretendia.
Daí a ambiguidade permanente do discurso comunista, que pode sempre se alardear
um movimento poderoso destinado a uma vitória inevitável, e ao mesmo tempo
minimizar ou negar a sua própria existência, jurando que ela não passa de uma “teoria
da conspiração”, de uma invencionice de lacaios do capital.
É alucinante, mas é o que acontece todos os dias. Definitivamente, a mente comunista
não funciona segundo os cânones da psicologia usual, mas segue uma lógica própria,
onde se misturam, em doses indistinguíveis, a habilidade dialética, o autoengano
histérico e a mendacidade psicopática.
Por isso mesmo é que o crescimento vertiginoso do movimento comunista acompanha,
“pari passu”, não a decadência do capitalismo, mas a escalada do seu sucesso. O
comunismo como regime, como sistema econômico, não existe nem existirá nunca. O
comunismo só pode existir como movimento político que vive de parasitar o capitalismo
e, por isso mesmo, cresce com ele.
Mas, por mais que sobreviva e se fortaleça, o corpo parasitado não sai ileso da
parasitagem: limitado cada vez mais à função de fornecedor de recursos e pretextos
para o parasita, ele vai perdendo todos os valores morais, religiosos e culturais que
originalmente o inspiraram e reduzindo-se à mecanicidade do puro jogo econômico,
cada vez mais fácil de criticar, enquanto o parasita se adorna de todo o prestígio da
moral e da cultura.
O modus operandi dessa parasitagem é duplo: de um lado, as economias comunistas
só sobrevivem graças à ajuda capitalista vinda do exterior. De outro, em cada nação, o
crescimento da economia capitalista alimenta cada vez mais a cultura comunista.
Na mesma medida em que a mais absoluta inviabilidade impede a construção da
economia comunista, o comunismo militante alcança vitória atrás de vitória no seu
empenho de transformar o capitalismo numa geringonça infernal e sem sentido. Toda a
lógica do comunismo, em última análise, deriva da idéia hegeliana do “trabalho do
negativo”, ou destruição criativa.
Mas “destruição criativa” é apenas uma figura de linguagem, uma metonímia. A
destruição de uma coisa só pode dar lugar ao crescimento de outra se esta for movida
desde dentro por uma força criativa própria, que nada deve à destruição. Esperar que a
destruição, por si, crie alguma coisa, é como querer que nasça um pinto de um ovo
frito.

Assassinos da inteligência
Olavo de Carvalho
Folha de São Paulo, 17 de junho de 2014

Pensar, até um burro pensa. O que distingue a espécie humana é sua capacidade de
confrontar o pensado com o conjunto dos conhecimentos disponíveis e regular o curso
do pensamento pela escala de credibilidade que vai do possível ao verossímil, ao
provável ou razoável e, em certos casos, à certeza.
Aristóteles já ensinava isso.
Infelizmente, no Brasil, raros opinadores têm o senso dessas distinções. A maioria
imagina que para pensar com proveito basta um pouco de lógica formal e algum
domínio dos chavões mais caros ao coraçãozinho da plateia.
Em debate recente, o professor Igor Fuser, uma estrela do “cast” universitário
esquerdista, assegurou que “não se pode julgar um regime pelo número das suas
vítimas”. Dez minutos depois, desmentia-se fragorosamente ao alegar que a ditadura
brasileira “perseguiu milhares de pessoas” e que o número de cristãos assassinados no
mundo está muito abaixo dos 100 mil por ano –subentendendo, portanto, que a
ditadura foi um horror e que os matadores de cristãos nos países islâmicos e
comunistas não são tão maus quanto se diz.
Mas o pior não é isso. Mesmo sem esses autodesmentidos grotescos, a afirmativa
geral que os antecedeu –a mais comumente alegada por devotos comunistas
empenhados em salvar a honra dos governos mais assassinos que o mundo já
conheceu– é perfeitamente desprovida de sentido. Para perceber isso basta medi-la
com a escala de credibilidade.
Em política, admite-se universalmente, as certezas absolutas são raras ou inexistentes.
O meramente possível reflete a liberdade da fantasia, o verossímil é apenas questão
de opinião, gosto ou preferência. Não servem como argumentos. Resta a probabilidade
razoável. Quem quer que argumente seriamente em política procura nos convencer de
que a razão, com altíssima probabilidade, está do seu lado.
Acontece, para a tristeza dos tagarelas, que todo argumento de probabilidade depende
eminentemente do elemento quantitativo que o fundamenta explícita ou implicitamente.
Se digo que o candidato X vai vencer as próximas eleições com uma probabilidade de
zero a cem por cento, não disse absolutamente nada. Tanto vale dizer que um governo
é igualmente malvado se não matou ninguém ou se matou milhões de pessoas.
Quando um comunista esperneia contra o que chama de “contabilidade macabra”, tem,
é claro, uma boa razão para fazê-lo. Contados os cadáveres, é impossível negar que o
comunismo foi o flagelo mais mortífero que já se abateu sobre a humanidade. Diante
disso, só resta apegar-se ao subterfúgio insano de que o macabro não reside em fazer
cadáveres e sim em contá-los.
Somando à insanidade o fingimento, a proibição de contar tem de ser suspensa
quando se fala de regimes “de direita”, donde se conclui que os 400 terroristas mortos
no regime militar –a maioria deles de armas na mão– são um placar muito mais
hediondo e revoltante do que os 100 milhões de civis desarmados que os heróis do
comunismo assassinaram na URSS, na China, na Hungria, em Cuba etc.
O senso das quantidades e proporções é a exigência mais básica e incontornável não
só da conduta honesta, mas da racionalidade em geral. Dissolvendo-o pouco a pouco
na plateia, os fúseres da vida destroem não só a moralidade pública, mas as próprias
condições elementares do funcionamento normal da inteligência humana.
Se nas universidades brasileiras há uma quota de 40 a 50% de alunos analfabetos
funcionais, isso não se deve só a uma genérica “má qualidade do ensino”, mas ao fato
de que há décadas o discurso comunista e pró-comunista onipresente espalha, nas
mentes dos estudantes, doses maciças de estimulação contraditória e obstáculos
cognitivos estupefacientes

O comunismo real
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 13 de abril de 2014

Nos dicionários e na cabeça do povinho semi-analfabeto das universidades, a diferença


entre capitalismo e comunismo é a de um “modo de produção”, ou, mais
especificamente, a da “propriedade dos meios de produção”, privada num caso, pública
no outro. Mas isso é a autodefinição que o comunismo dá a si mesmo: é um slogan
ideológico, um símbolo aglutinador da militância, não uma definição objetiva. Se até os
adversários do comunismo a aceitam, isto só prova que se deixaram dominar
mentalmente por aqueles que os odeiam – e esse domínio é precisamente aquilo que,
no vocabulário da estratégia comunista, se chama “hegemonia”.
Objetivamente, a estatização completa dos meios de produção nunca existiu nem
nunca existirá: ela é uma impossibilidade econômica pura e simples. Ludwig von Mises
já demonstrou isso em 1921 e, após umas débeis esperneadas, os comunistas
desistiram de tentar contestá-lo: sabiam e sabem que ele tinha razão.
Em todos os regimes comunistas do mundo, uma parcela considerável da economia
sempre se conservou nas mãos de investidores privados. De início, clandestinamente,
sob as vistas grossas de um governo consciente de que a economia não sobreviveria
sem isso. Mais tarde, declarada e oficialmente, sob o nome de “perestroika” ou
qualquer outro. Tudo indica que a participação do capital privado na economia chegou
mesmo a ser maior em alguns regimes comunistas do que em várias nações tidas
como “capitalistas”.
Isso mostra, com a maior clareza possível, que o comunismo não é um modo de
produção, não é um sistema de propriedade dos meios de produção. É um movimento
político que tem um objetivo totalmente diferente e ao qual o símbolo “propriedade
pública dos meios de produção” serve apenas de pretexto hipnótico para controle das
massas: é a cenoura que atrai o burro para cá e para lá, sem que ele jamais chegue ou
possa chegar ao prometidíssimo e inviabilíssimo “modo de produção comunista”.
No entanto, se deixaram a iniciativa privada à solta, por saber que a economia é por
natureza a parte mais incontrolável da vida social, todos os governos comunistas de
todos os continentes fizeram o possível e o impossível para controlar o que fosse
controlável, o que não dependesse de casualidades imprevisíveis mas do
funcionamento de uns poucos canais de ação diretamente acessíveis à intervenção
governamental.
Esses canais eram: os partidos e movimentos políticos, a mídia, a educação popular, a
religião e as instituições de cultura. Dominando um número limitado de organizações e
grupos, o governo comunista podia assim controlar diretamente a política e o
comportamento de toda a sociedade civil, sem a menor necessidade de exercer um
impossível controle igualmente draconiano sobre a produção, a distribuição e o
comércio de bens e serviços.
Essa é a definição real do comunismo: controle efetivo e total da sociedade civil e
política, sob o pretexto de um “modo de produção” cujo advento continuará e terá de
continuar sendo adiado pelos séculos dos séculos.
A prática real do comunismo traz consigo o total desmentido do princípio básico que lhe
dá fundamento teórico: o princípio de que a política, a cultura e a vida social em geral
dependem do “modo de produção”. Se dependessem, um governo comunista não
poderia sobreviver por muito tempo sem estatizar por completo a propriedade dos
meios de produção. Bem ao contrário, o comunismo só tem sobrevivido, e sobrevive
ainda, da sua capacidade de adiar indefinidamente o cumprimento dessa promessa
absurda. Esta, portanto, não é a sua essência nem a sua definição: é o falso pretexto
de que ele se utiliza para controlar ditatorialmente a sociedade.
Trair suas promessas não é, portanto, um “desvio” do programa comunista: é a sua
essência, a sua natureza permanente, a condição mesma da sua subsistência.
Compreensivelmente, é esse mesmo caráter dúplice e escorregadio que lhe permite
ludibriar não somente a massa de seus adeptos e militantes, mas até seus inimigos
declarados: os empresários capitalistas. Tão logo estes se deixam persuadir do
preceito marxista de que o modo de produção determina o curso da vida social e
política (e é quase impossível que não acabem se convencendo disso, dado que a
economia é a sua esfera de ação própria e o foco maior dos seus interesses), a
conclusão que tiram daí é que, enquanto estiver garantida uma certa margem de ação
para a iniciativa privada, o comunismo continuará sendo uma ameaça vaga, distante e
até puramente imaginária. Enquanto isso, vão deixando o governo comunista ir
invadindo e dominando áreas cada vez mais amplas da sociedade civil e da política,
até chegar-se ao ponto em que a única liberdade que resta – para uns poucos, decerto
– é a de ganhar dinheiro. Com a condição de que sejam bons meninos e não usem o
dinheiro como meio para conquistar outras liberdades.
Ao primeiro sinal de que um empresário, confiado no dinheiro, se atreve a ter suas
próprias opiniões, ou a deixar que seus empregados as tenham, o governo trata de
fazê-lo lembrar que não passa do beneficiário provisório de uma concessão estatal que
pode ser revogada a qualquer momento. O sr. Silvio Santos é o enésimo a receber
esse recado.
É assim que um governo comunista vai dominando tudo em torno, sem que ninguém
deseje admitir que já está vivendo sob uma ditadura comunista. Por trás, os comunistas
mais experientes riem: “Ha! Ha! Esses idiotas pensam que o que queremos é controlar
a economia! O que queremos é controlar seus cérebros, seus corações, suas vidas.”

O nariz do viking
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 12 de dezembro de 2013

Desculpem voltar ao assunto, mas a inépcia da classe universitária neste país é uma
fonte de inspiração inesgotável para este deslumbrado colunista. Há coisas que o gênio
mais excelso não conseguiria inventar, que não existem nem entre o céu e a terra nem
na nossa vã filosofia, mas que jorram da idiotice aos borbotões, num fluxo incessante
de criatividade que só encontra igual, mutatis mutandis, no primeiro capítulo do
Gênesis.
Leiam esta frase da nossa já conhecida profa. Luciana Ballestrin: “Mesmo os velhos e
os contemporâneos clássicos do liberalismo político moderado são capazes de aceitar
a tolerância, a diferença, a liberdade de expressão…”
O tom de superior condescendência sugere que a tolerância, o respeito à diferença etc.
são virtudes tão bem repartidas entre vários regimes políticos, que até mesmo os
liberais são capazes de praticá-las um pouquinho.
No mundo real, porém, ninguém ignora que essas virtudes foram inventadas pelos
liberais e só existem nos sistemas políticos que o liberalismo criou ou nos quais deixou
sua marca profunda. Elas são o liberalismo. Em todos os outros regimes, só o que se
vê é rigidez, intolerância, perseguição, encarceramento e matança dos divergentes.
Não podendo negar esse fato, mas odiando reconhecê-lo, a articulista da Carta Maior
apela ao expediente pueril de atenuá-lo mediante o uso do modo comparativo. Mas
comparações só funcionam quando há elementos a ser comparados, e no caso não há
nenhum.
No mundo moderno não há exemplos de tolerância e liberdade fora do liberalismo. Não
se trata portanto de uma comparação autêntica, mas de um fingimento, de uma
comparação postiça, absurda, produzida à força para fins puramente pejorativos.
Fingindo louvar um mérito, a professora o achincalha ao dividi-lo com quem não o tem,
deixando ao seu portador único e genuíno só um tiquinho, uma lasquinha da virtude
supostamente geral, como quem dissesse: “Até mesmo os ovíparos botam ovos.”
Para piorar um pouco mais as coisas, ela não reconhece essas virtudes políticas nem
mesmo em todos os liberais, mas só nos “moderados”. Fica subentendido que existem
liberais radicais que as negam. Mas a única facção radical que existe nas hostes
liberais é o libertarianismo, que em vez de negar a tolerância e a liberdade as amplia
até à demência. Se alguém entre os liberais aceita moderá-las em vista de outras
considerações, são precisamente… os moderados.
Vem mais: “Seria um tanto contraproducente esboçar nessas linhas argumentos e
razões que tentem comprovar que o Brasil não é governado por comunistas e que a
universidade brasileira não está intoxicada pelo marxismo.” Se ela dissesse que
esboçar esses argumentos é “desnecessário”, entenderíamos que, na sua opinião, são
pontos pacíficos, fatos notórios que nem é preciso provar.
É obviamente isso o que ela deseja que o leitor acredite. Mas, ao escolher a palavra
com que vai dizê-lo, ela se trai e diz o inverso. Reiterar a demonstração do óbvio pode
ser desnecessário, tedioso, supérfluo. “Contraproducente”, nunca: uma demonstração
é contraproducente quando, em vez de dar o resultado esperado, produz o seu oposto
e, no esforço de repetir a pretensa certeza adquirida, acaba por demoli-la. A professora
sabe que é precisamente isso o que aconteceria se ela tentasse provar a inexistência
da hegemonia marxista nas nossas universidades, pela simples razão de que essa
hegemonia é um fato.
Em tão constrangedora circunstância, ela tenta fazer o leitor engolir como verdade
notória e arquiprovada algo que ao mesmo tempo ela confessa não poder provar de
maneira alguma. Tentando ser esperta, só prova que é mesmo uma boboca. Numa das
tiras de Hagar, o Horrível, o robusto viking encontra seu amigo magrinho, cujo nome
esqueci, esmurrando vigorosamente o próprio nariz. “Que raio de coisa é essa?”,
pergunta o chefe. E o outro, todo orgulhoso: “Um guerreiro precisa vencer-se a si
mesmo.” A professora Ballestrin estudou nessa escola.
Completando: “Da mesma maneira estéril, argumentar que o eurocentrismo, o
colonialismo e o progresso moderno não são completamente afastados do marxismo e
que justamente por isso, ele encontra resistência nos movimentos decoloniais latino-
americanos.”
Não liguem para a palavra “decoloniais”: é o neologismo pedantíssimo com que alguns
intelectuais anticolonialistas de Nova York insinuam que ainda são colonizados,
coitadinhos. O que a professora está dizendo é que eles se irritam com os parágrafos
em que Marx reconhece o papel positivo do colonialismo europeu no desenvolvimento
das forças produtivas.
Contudo, ver nessa ranhetice de detalhe uma “resistência ao marxismo” é como dizer
que Lênin “resistiu ao marxismo” quando achou que podia fazer a revolução com meia
dúzia de intelectuais em vez de esperar pelo proletariado.
Não faz o menor sentido ressaltar a “importância das várias correntes do marxismo, do
vulgar e ortodoxo para o crítico e arejado” (sic), e depois imaginar que as diferenças
que as separam sejam “resistências ao marxismo”. Todas essas divergências e uma
infinidade de outras brotam dentro de um marco conceitual que permanece
estritamente marxista.
Cada vez que os comunistas divergem uns dos outros, isso é explicado, dentro do
movimento, como uma prova da sua pujança e riqueza de perspectivas, e, fora, como
uma prova de que o comunismo acabou e de que preocupar-se com ele é “paranoia”.
A professora Ballestrin pensa que pode fazer as duas coisas de uma vez. Por isso
mesmo, acaba não fazendo nem uma, nem a outra.
Bobinha
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 1 de dezembro de 2013
Na Carta Maior desta semana, uma professora de ciências políticas da Universidade
Federal de Pelotas, Luciana Ballestrin, adverte que enxergar alguma
hegemonia comunista nas instituições superiores de ensino é “paranóia” e insinua que,
ao contrário, o verdadeiro perigo que se esboça no horizonte nacional é o do fascismo.
A prova que ela oferece desse deslumbrante diagnóstico é que três pessoas
reclamaram contra o comunismo universitário. Firmemente disposta a dizer qualquer
coisa contra essas três minguadas vozes, ela as acusa, ao mesmo tempo, de provir de
“um gueto” e de obter “grande repercussão na mídia”.
É notório que, entre os estudantes universitários brasileiros, quatro em cada
dez são analfabetos funcionais. Temo que entre os professores da área de humanas
essa proporção seja de nove para dez. A profa. Ballestrin é mais um exemplo para a
minha coleção. Ela fracassa tão miseravelmente em compreender o significado das
palavras que emprega, que no seu caso o adjetivo “funcional” é quase um eufemismo.
Desde logo, se os direitistas vivem num “gueto”, quem os colocou lá?
Enclausuraram-se por vontade própria ou foram expelidos da mídia, das cátedras e de
todos os ambientes de cultura superior pela política avassaladora de “ocupação de
espaços” que a esquerda aí pratica desde há mais de meio século? Um gueto, por
definição, não é um hotel onde a minoria se hospede voluntariamente para desfrutar os
prazeres de uma vida sombria, fechada e opressiva, sem perspectivas de participação
na sociedade maior. É uma criação da maioria dominante, um instrumento de exclusão
usado para neutralizar ou eliminar as presenças inconvenientes. A maior prova de que
o esquerdismo domina o espaço é que a direita vive num gueto. Ao acusá-la
precisamente disso, essa porta-voz do esquerdismo oficial só dá testemunho contra si
própria.
Com igual destreza ela maneja a segunda acusação: a de que as três vozes
obtiveram “grande repercussão na mídia”. Que grande repercussão? Alguma delas foi
manchete de um jornal, foi alardeada no horário nobre da Globo, deu ocasião a uma
série infindável de reportagens, congressos de intelectuais e debates no Parlamento
como acontece com qualquer denúncia de “crimes da ditadura” ocorridos cinqüenta
anos atrás? Nada disso. Foram apenas noticiadas aqui e ali, discretamente, num tom
de desprezo e chacota. Mas, para a profa. Ballestrin, mesmo isso já é excessivo. Ela
nem percebe que, ao protestar que três direitistas saíram do gueto, ela os está
mandando de volta para lá.
Mas onde ela capricha ao máximo em não entender nada é ao enxergar uma
“paranóia” em três denúncias isoladas, só notáveis pela raridade, e nenhuma nos gritos
de alarma contra a “ameaça fascista” que pululam aos milhares, com estridência
obscena, em publicações e salas de aula por todo o país. Na própriaCarta Maior o
toque de alerta antifascista ressoa diariamente. Qualquer observador isento nota a
desproporção entre a iminência objetiva desses dois perigos e a intensidade do temor
real ou fingido que despertam. Apontar o avanço comunista é apenas registrar as
vitórias que centenas de organizações comunistas alardeiam e celebram nas
assembléias do Foro de São Paulo (prontas, decerto, a negá-las em público quando
lhes convém). Mas e o fascismo? Onde estão as organizações que o representam, os
partidos que buscam elevá-lo ao poder, as verbas bilionárias que o sustentam, a
militância adestrada para impô-lo a um povo inerme, os milhares de livros que infectam
com o vírus fascista as prateleiras das livrarias e as bibliotecas das universidades?
Nada disso existe. Nada, absolutamente nada. Tanto não existe, que, para fingir que
existe, é preciso até mesmo chamar de fascistas as massas de agitadores comunistas
pagos pelo governo para espalhar o terror nas ruas e forçar a transição para o
socialismo explícito e descarado.
A inversão das proporções é, decerto, um dos traços mais típicos e constantes
da mentalidade revolucionária, mas nem todos a ostentam com a cândida desenvoltura
dessa mulherzinha boba.
Saber qual orientação ideológica predomina em determinado ambiente social não
deveria ser muito difícil para uma “cientista política”, especialmente quando esse
ambiente é o dela própria – o seu departamento universitário. Ela poderia perguntar,
por exemplo, quantos de seus colegas votam na esquerda, quantos na direita. Ou
poderia, com um pouco mais de esforço, averiguar a linha ideológica majoritária dos
autores cuja leitura eles recomendam a seus alunos. Poderia até, se quisesse, fazer
inspeção semelhante em outros departamentos de ciências humanas pelo Brasil a fora,
para verificar se as várias correntes de pensamento estão aí representadas
equitativamente ou se uma delas predomina até o ponto do monopolismo absoluto.
Tudo isso, no entanto, para a profa. Ballestrin, é esforço excessivo, cruel e
desumano. Tudo o que se pode exigir dela é que raciocine pelo método histérico da
auto-impregnação auditiva. Eis como funciona. Nos seus anos de estudante, você faz
um esforço danado para macaquear o discurso dos seus professores. Ouve, presta
atenção e imita cada
de linguagem, cada cacoete, cada chavão. Quando por fim consegue falar como eles,
você ouve o que você próprio diz e, orgulhoso de tamanha realização, acredita que é
tudo verdade. Então está maduro para lecionar e para escrever artigos na Carta Maior.

Monopólio e choradeira
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 4 de setembro de 2013

Quando os comunistas da internet vociferam contra a mídia burguesa, é bom saber que
a mídia burguesa são eles mesmos atuando em dois níveis: dominam os grandes
jornais e canais de TV desde dentro para usá-los como veículos de desinformação e ao
mesmo tempo descem o porrete neles desde fora para dar mais credibilidade à
desinformação.
Isso é uma regra básica dos manuais de desinformátsiya. Desinformação só funciona
quando a mentira não vem da boca de um inimigo notório e sim de alguém de
confiança da vítima. Se você lê no Vermelho.org, no blog de Paulo Henrique Amorim ou
no Baixamiro Borges alguma grossa denúncia contra os Estados Unidos, contra a
Igreja, contra Israel, contra os militares ou contra os liberais e conservadores, pode
desconfiar que é propaganda esquerdista. Mas se lê a mesma coisa na Folha, no
Globo ou no Estadão, imagina que é informação idônea, imparcial, puro jornalismo.
Para que servem então o Vermelho.org, o Paulo Henrique Amorim, o Baixamiro Borges
e similares? Servem precisamente para isso. São a substância de contraste que dá
credibilidade à “grande mídia” quando esta, num estilo mais comedido, mente
igualzinho a eles.
Secundariamente, podem servir também para alimentar de bobagens estimulantes a
militância partidária. Para enganar o público maior, politicamente indefinido, é preciso
veículos com uma fama de “direitistas”, criada exatamente para esse fim.
Se você examinar caso por caso, verá que desde a década de 60 – em pleno regime
militar –, os altos cargos da nossa mídia são quase todos ocupados por militantes ou
simpatizantes da esquerda, que ao mesmo tempo, ou em fases alternadas da sua
carreira profissional, publicam semanários “nanicos” ou, hoje em dia, blogs
“alternativos”, dando à plateia ingênua a impressão de que são a arraia miúda em luta
contra a poderosa indústria de comunicações.
Isso é a essência mesma do trabalho de desinformação.
Os leitores em massa ignoram que o próprio modelo do jornalismo profissional
“moderno”, de corte americano, foi implantado no Brasil principalmente por comunistas,
que o modularam para que servisse aos seus próprios fins sem dar muito na vista.
Confiram na tese “Preparados, Leais e Disciplinados: os Jornalistas Comunistas e a
Adaptação do Modelo de Jornalismo Americano no Brasil, de Afonso de Albuquerque e
Marco Antonio Roxo da Silva, da
UFF(http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2007/resumos/R1052-1.pdf).
Foi graças a essa operação que, por exemplo, os setenta milhões de vítimas do
comunismo chinês, quarenta milhões do comunismo soviético, dois milhões do
comunismo cambojano e cem mil do comunismo cubano praticamente desapareceram
dos nossos jornais e canais de TV, onde, ao contrário, sempre houve espaço e tempo
de sobra para umas dúzias de guerrilheiros mortos pelo regime militar. Deformar o
senso das proporções é essencial para dessensibilizar a população ante os crimes dos
comunistas e hipersensibilizá-la para tudo quanto seja nocivo ao comunismo.
Para dar somente um exemplo, basta notar que nunca a presença maciça de
comunistas em postos de destaque nas redações foi denunciada como sinal de viés
ideológico, mesmo quando se tratasse de aparatchniks treinados em Moscou e
Pequim.
Ninguém jamais se queixou de que Otávio Brandão, Nabor Caires de Brito, Mário
Augusto Jacobskind, Mauro Santayana, Cláudio Abramo, Élio Gaspari, Roberto Múller,
João Sant’Anna, Alcelmo Góis, Fernando Morais, Paulo Moreira Leite e mais uma
infinidade – alguns até líderes do PCB, do PC do B ou de organizações trotsquistas;
outros, notórios empregados de governos comunistas – fossem diretores de jornais ou
tivessem colunas de página inteira à sua disposição.
Basta, entretanto, que algum jornalista sem qualquer vínculo partidário, apenas não
muito simpático pessoalmente à esquerda, assuma um cargo de editor ou ganhe um
espacinho em qualquer jornal, revista ou programa de TV, e imediatamente chovem
protestos de todo lado.
Os casos de Augusto Nunes e Reinaldo Azevedo são apenas os mais recentes. Minha
estréia em O Globo foi imediatamente respondida por uma campanha para que minha
coluna fosse suprimida.
Milhares de blogs comunistas financiados por ONGs internacionais pululam na internet
sem que ninguém ache estranho, mas basta aparecer um blog “de direita”, mesmo sem
qualquer vínculo organizacional e subsidiado apenas com o parco dinheiro de seus
editores, e imediatamente a coisa é alardeada como um escândalo intolerável, um
crime de lesa-pátria.
O leitor comum não tem a menor ideia de como essas coisas funcionam, nem das
dimensões do poder esquerdista que transforma a mídia nacional praticamente inteira
em órgão de desinformação comunista (sem isso teria sido impossível esconder por
dezesseis anos a existência do Foro de São Paulo ou continuar escondendo até hoje a
denúncia do ex-agente soviético Ladislav Bittman sobre jornalistas brasileiros pagos
pela KGB). E os profissionais que sabem de tudo não têm, é claro, o menor interesse
em dar o serviço.
Com toda a evidência, os comunistas da nossa mídia acham que a coisa mais normal
e natural do mundo é possuir o monopólio do espaço jornalístico no Brasil – e ainda
choramingar como se fossem uns coitadinhos desprovidos do direito à palavra.
Essa impressão postiça de naturalidade já se alastrou para todas as classes letradas,
infectando o “senso comum” ao ponto de ninguém mais enxergar o monopólio como
tal, e mencioná-lo é candidatar-se ao rótulo de “teórico da conspiração”. A mentira
alcança a perfeição quando impugná-la se torna uma doença mental.
Respostas infalíveis

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 10 de agosto de 2010

Em 2002, tivemos uma disputa presidencial entre quatro candidatos que em uníssono
alardeavam a condição de esquerdistas como o seu mais elevado título de glória. Tão perfeita
homogeneidade ideológica, que nem mesmo os militares tinham ousado impor ao cenário
político nacional, só se vira, antes, nas eleições soviéticas ou chinesas, mas a “grande mídia”
inteira fez questão de abafar a estranheza do fenômeno e, com aquela mistura de cinismo e
estupidez genuína que tão bem a caracteriza, celebrou o pleito como uma apoteose da
democracia.

Em 2006, o candidato tido como de direita por seu adversário rejeitava esse rótulo e, provando-
se bom menino, evitava qualquer demonstração de anti-esquerdismo, por tímida que fosse. O
simples fato de que ele tampouco se declarasse esquerdista foi aceito universalmente como
prova cabal de “pluralismo”. Quod erat demonstrandum.

Finalmente, em 2010, chegamos ao ponto em que todas as precauções retóricas já se revelam


desnecessárias: o próprio presidente da República sente-se à vontade para proclamar a
completa ausência de direitistas entre os candidatos à sucessão como sinal de perfeição
democrática. A democracia, segundo S. Excia. e a unanimidade das mentes iluminadas que nos
guiam, consiste portanto numa assembléia de esquerdistas que se xingam uns aos outros de
direitistas. That’s all. Que mais se poderia desejar? Toda aspiração diversa é extremismo,
saudades da ditadura, racismo, fanatismo genocida ou, como na velha União Soviética, sintoma
de desequilíbrio mental. Um momento. Eu disse “aspiração”? Não é preciso nem isso. Basta que
você, sem nenhuma divergência ideológica, se sinta um pouco incomodado com a aliança PT-
Farc, e todo o repertório dos insultos autoprobantes será despejado sobre a sua cabeça, sem
que lhe reste, diante de tão irrespondíveis argumentos, senão o último recurso dos bate-bocas
infantis: macaquear a ofensa, chamar o acusador de direitista.

Se a administração estatal logrou controlar a economia ao ponto de emitir notas fiscais antes
que algum comerciante tenha a ousadia de fazê-lo, o aparato político-ideológico da esquerda
conseguiu dominar tão bem o universo mental da nacionalidade que já ninguém, dentro do
território pátrio, pode desviar-se um só milímetro da semântica oficial, ou ao menos não pode
fazê-lo sem o sentimento constrangedor de ter cometido uma gafe imperdoável, talvez um
crime hediondo.

Para maior felicidade geral, o fato de que esse estado de coisas coincida, no tempo, com a
prosperidade dos grandes grupos econômicos que têm negócios com o governo é festejado
como prova de sucesso do capitalismo nacional, embora, na ciência econômica e no são
entendimento humano, ele defina precisamente o socialismo. Mas os brasileiros já se
habituaram tão confortavelmente a chamar as coisas pelos nomes inversos que já nem reparam
nesse detalhe. Por exemplo: decorridos vinte anos da fundação do Foro de São Paulo, o fato de
que esse monstrengo domine uma dúzia de países e ocupe a presidência da OEA é evidência
irrefutável de que ele é apenas um bando de velhinhos saudosistas, sem força ou
periculosidade que mereçam atenção. Experimente lançar dúvida sobre essa certeza augusta
num encontro de empresários, e agüente, se puder, os olhares de desprezo.

Nada, nenhuma demonstração lógica, evidência factual ou desgraça espetacular – nem mesmo
a tragédia rotineira dos cinqüenta mil brasileiros assassinados por ano – parece capaz de
despertar as nossas classes rechonchudas do seu otimismo beócio, sustentado nos quatro
pilares da ortodoxia elegante, quatro fórmulas infalíveis que a tudo respondem como se
tivessem saído fresquinhas da oficina literária de Bouvard e Pécuchet:

1. “Lula mudou.”

2. “O comunismo acabou.”

3. “Direita e esquerda não existem.”

4. “Você quer voltar aos tempos da Guerra Fria.”

Quem, diante de tamanha sapiência, ousaria discutir?

democracia

O que estou fazendo aqui


Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 8 de fevereiro de 2016
A característica fundamental das ideologias é o seu caráter normativo, a ênfase no
dever ser. Todos os demais elementos do seu discurso, por mais denso ou mais ralo
que pareça o seu conteúdo descritivo, analítico ou explicativo, concorrem a esse fim e
são por ele determinados, ao ponto de que as normas e valores adotados decidem
retroativamente o perfil da realidade descrita, e não ao inverso.
Isso não quer dizer que às ideologias falte racionalidade: ao contrário, elas são
edifícios racionais, às vezes primores de argumentação lógica, mas construídos em
cima de premissas valorativas e opções seletivas que jamais podem ser colocadas em
questão.
Daí que, como diz A. James Gregor, o grande estudioso do fenômeno revolucionário
moderno, o discurso ideológico seja enganosamente descritivo, quando parece estar
falando da realidade, nada mais faz do que buscar superfícies de contraste e pontos de
apoio para o mundo melhor, cuja realização é seu objetivo e sua razão de ser.
Se o cidadão optou pelo socialismo, ele descreverá o capitalismo como antecessor e
adversário, suprimindo tudo aquilo que, na sociedade capitalista, não possa ser
descrito nesses termos.
Se escolheu a visão iluminista da democracia como filha e culminação da razão
científica, descreverá o fascismo como truculência irracional pura, suprimindo da
História as décadas de argumentação fascista, tão racional quanto qualquer outro
discurso ideológico que prepararam o advento de Mussolini ao poder.
Tendo isso em vista, a coisa mais óbvia do mundo é que nenhum dos meus escritos e
nada do que eu tenha ensinado em aula tem caráter ideológico, e que descrever-me
como “ideólogo da direita”, ou ideólogo do que quer que seja, só vale como pejorativo
difamatório, tentativa de me reduzir à estatura mental do anão que assim me rotula.
Podem procurar nos meus livros, artigos e aulas. Não encontrarão qualquer
especulação sobre a boa sociedade, muito menos um modelo dela.
Posso, no máximo, ter subscrito aqui ou ali, de passagem e sem lhe prestar grande
atenção, este ou aquele preceito normativo menor em economia, em educação, em
política eleitoral ou em qualquer outro domínio especializado, sem nenhuma tentativa
de articulá-los e muito menos de sistematizá-los numa concepção geral, numa
ideologia.
Isso deveria ser claro para qualquer pessoa que saiba ler, e de fato o seria se a fusão
de analfabetismo funcional, malícia e medo caipira do desconhecido não formasse
aquele composto indissolúvel e inalteravelmente fedorento que constitui a forma mentis
dos nossos “formadores de opinião” hoje em dia (refiro-me, é claro, aos mais populares
e vistosos e à sua vasta plateia de repetidores no universo bloguístico, não às
exceções tão honrosas quanto obscuras, das quais encontro alguns exemplos neste
mesmo Diário do Comércio).
É óbvio que essas pessoas são incapazes de raciocinar na clave do discurso
descritivo. Não dizem uma palavra que não seja para ?tomar posição?, ou melhor, para
ostentar uma auto-imagem lisonjeira perante os leitores, devendo, para isso, contrastá-
la com algum antimodelo odioso que, se não for encontrado, tem de ser inventado com
deboches, caricaturações pueris e retalhos de aparências.
A coisa mais importante na vida, para essas criaturas, é personificar ante os holofotes
alguns valores tidos como bons e desejáveis, como por exemplo “a democracia”, “os
direitos humanos”, “a ordem constitucional”, “a defesa das minorias”, etc. e tal,
colocando nos antípodas dessas coisas excelentíssimas qualquer palavra que lhes
desagrade.
Alguns desses indivíduos tiveram as suas personalidades tão completamente
engolidas por esses símbolos convencionais do bem, que chegam a tomar qualquer
reclamação, insulto ou crítica que se dirija às suas distintas pessoas como um atentado
contra a democracia, um virtual golpe de Estado.
O desejo de personificar coisas bonitas como a democracia e a ordem constitucional é
aí tão intenso que, no confronto entre esquerda e direita, os dois lados se acusam
mutualmente de “golpistas” e “fascistas”. Melhor prova de que se trata de meros
discursos ideológicos não se poderia exigir.
Da minha parte, meus escritos políticos dividem-se entre a busca de conceitos
descritivos cientificamente fundados e a aplicação desses conceitos ao diagnóstico de
situações concretas, complementado às vezes por prognósticos que, ao longo de mais
de vinte anos, jamais deixaram de se cumprir.
Dessas duas partes, a primeira está documentada nas minhas apostilas de aulas
(especialmente dos cursos que dei na PUC do Paraná), a segunda nos meus artigos de
jornal.
Os leitores destes últimos não têm acesso direto à fundamentação teórica, mas
encontram neles indicações suficientes de que ela existe, de que não se trata de
opiniões soltas no ar, mas, como observou Martin Pagnan, de ciência política no
sentido estrito em que a compreendia o seu mestre e amigo, Eric Voegelin.
Não há, entre os mais incensados “formadores de opinião” deste país – jornalísticos ou
universitários –, um só que tenha a capacidade requerida, já não digo para discutir
esse material, mas para apreendê-lo como conjunto.
Descrevo aí as coisas como as vejo por meio de instrumentos científicos de
observação, pouco me importando se vou “dar a impressão” de ser democrata ou
fascista, socialista, neocon, sionista, católico tradicionalista, gnóstico ou muçulmano.
Tanto que já fui chamado de todas essas coisas, o que por si já demonstra que os
rotuladores não estão interessados em diagnósticos da realidade, mas apenas em
inventar, naquilo que lêem, o perfil oculto do amigo ou do inimigo, para saber se, na
luta ideológica, devem louvá-lo ou achincalhá-lo.
A variedade mesma das ideologias que me atribuem é a prova cabal de que não
subscrevo nenhuma delas, mas falo numa clave cuja compreensão escapa ao estreito
horizonte de consciência dos ideólogos que hoje ocupam o espaço inteiro da mídia e
das cátedras universitárias.
Suas reações histéricas e odientas, suas poses fingidas de superioridade olímpica, sua
invencionice entre maliciosa e pueril, seus afagos teatrais de condescendência
paternalista entremeados de insinuações pérfidas, são os sintomas vivos de uma
inépcia coletiva monstruosa, como jamais se viu antes em qualquer época ou nação.
O que neste país se chama de “debate político” é de uma miséria intelectual
indescritível, que por si só já fornece a explicação suficiente do fracasso nacional em
todos os domínios: economia, segurança pública, justiça, educação, saúde, relações
internacionais etc.
Digo isso porque a intelectualidade falante demarca a envergadura e a altitude
máximas da consciência de um povo. Sua incapacidade e sua baixeza, que venho
documentando desde os tempos do Imbecil Coletivo (1996), mas que depois dessa
época vieram saltando do alarmante ao calamitoso e daí ao catastrófico e ao infernal,
refletem-se na degradação mental e moral da população inteira.
De todos os bens humanos, a inteligência – e inteligência não quer dizer senão
consciência – se distingue dos demais por um traço distintivo peculiar: quanto mais a
perdemos, menos damos pela sua falta. Aí as mais óbvias conexões de causa e efeito
se tornam um mistério inacessível, um segredo esotérico impensável. A conduta
desencontrada e absurda torna-se, então, a norma geral.
Durante quarenta anos, os brasileiros deixaram, sem reclamar, que seu país se
transformasse no maior consumidor de drogas da América Latina; deixaram que suas
escolas se tornassem centrais de propaganda comunista e bordéis para crianças;
deixaram, sem reclamar, que sua cultura superior fosse substituída pelo império de
farsantes semi-analfabetos; deixaram, sem reclamar, que sua religião tradicional se
prostituísse no leito do comunismo, e correram para buscar abrigo fictício em pseudo-
igrejas improvisadas onde se vendiam falsos milagres por alto preço; deixaram, sem
reclamar, que seus irmãos fossem assassinados em quantidades cada vez maiores,
até que toda a nação tivesse medo de sair às ruas e começasse a aprisionar-se a si
própria atrás de grades impotentes para protegê-la; deixaram, sem reclamar, que o
governo tomasse as suas armas, e até se apressaram em entregá-las, largando suas
famílias desprotegidas, para mostrar o quanto eram bonzinhos e obedientes. Depois de
tudo isso, descobriram que os políticos estavam desviando verbas do Estado, e aí
explodiram num grito de revolta: “Não! No nosso rico e santo dinheirinho ninguém
mexe!”
A rebelião popular contra os comunolarápios não nasce de nenhuma indignação moral
legítima, mas emana da mesma mentalidade dinheirista que inspira os corruptos mais
cínicos.
Não só o dinheiro é aí o valor mais alto, talvez o único, mas tudo parece inspirar-se na
regra: “Eu também quero, senão eu conto para todo mundo”. É óbvio que, se essa
mentalidade não prevalecesse no nosso meio social, jamais a corrupção teria subido
aos níveis estratosféricos que alcançou com o Mensalão, o Petrolão etc.
O ódio ao mal não é sinal de bondade e honradez: faz parte da dialética do mal odiar-
se a si mesmo, mover guerra a si mesmo e proliferar por cissiparidade.
O mais significativo de tudo é que fenômeno de teratologia moral tão patente, tão
visível e tão escandaloso não mereça sequer um comentariozinho num jornal, quando
deveria ser matéria de mil estudos sociológicos.
Querem maior prova de que os luminares da mídia e das universidades não têm o
menor interesse em conhecer a realidade, mas somente em promover suas malditas
agendas ideológicas?
Foi por isso que, mais de vinte anos atrás, cheguei à conclusão de que toda solução
política para os males do país estava, desde a raiz, inviabilizada pelo caráter fútil e
perverso das discussões públicas.
Só havia um meio – difícil e trabalhoso, mas realista – de mudar para melhor o curso
das coisas neste país, e esse curso não passava pela ação político-eleitoral. Era
preciso seguir, “sem parar, sem precipitar e sem retroceder”, como ensinava o Paulo
Mercadante, as seguintes etapas:
1. Revigorar a cultura superior, treinando jovens para que pudessem produzir
obras à altura daquilo que o Brasil tinha até os anos 50-60 do século passado.
2. Higienizar, assim, o mercado editorial e a mídia cultural, criando aos poucos um
novo ambiente consumidor de alta cultura e saneando, dessa maneira, os debates
públicos.
3. Sanear a grande mídia, mediante pressão, boicote e ocupação de espaços.
4. Sanear o ambiente religioso — católico e protestante.
5. Sanear, gradativamente, as instituições de ensino.
6. Por fim, elevar o nível do debate político, fazendo-o tocar nas realidades do país
em vez de perder-se em chavões imateriais e tiradas de retórica vazia. Esta etapa
não seria atingida em menos de vinte ou trinta anos, mas não existe ?caminho das
pedras?, não há solução política, não há fórmula ideológica salvadora. Ou se
percorrem todas essas etapas, com paciência, determinação e firmeza, ou tudo
não passará de uma sucessão patética de ejaculações precoces.
Esse é o projeto a que dediquei minha vida, e do qual os artigos que publico na mídia
não são senão uma amostra parcial e fragmentária. Imaginar que fiz tudo o que fiz só
para criar um “movimento de direita” é, na mais generosa das hipóteses, uma estupidez
intolerável.
Quanto ao ítem número um, não se impressionem com os apressadinhos que, tendo
absorvido superficialmente alguns ensinamentos meus, já quiseram sair por aí,
brilhando e pontificando, numa ânsia frenética de aparecer como substitutos
melhorados do Olavo de Carvalho.
Esses são apenas a espuma, bolhas de sabão que o tempo se encarregará de
desfazer. Tenho ainda uma boa quantidade de alunos sérios que continuam se
preparando, em silêncio, para fazer o bom trabalho no tempo devido.

Ilusões democráticas (I)


Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 14 de agosto de 2015
Um “princípio”, em filosofia, é uma afirmativa auto fundante e universalmente válida,
que portanto não depende de nenhuma outra nem é limitada por quaisquer
considerações externas.
Um mecanismo bem conhecido da mente humana, no entanto, faz com que as
afirmativas mais débeis e incertas sejam tomadas como princípios absolutos
justamente porque os seus propugnadores não sabem fundamentá-las nem são
capazes de atinar com as consequências da sua aplicação. Despida de toda conexão
lógica e de toda ligação com a realidade da experiência, a ideia solta paira no ar como
uma divindade indestrutível, tanto mais hipnoticamente persuasiva quanto mais idiota.
Todos nós gostamos de viver numa democracia. No mínimo, acreditamos, como
Churchill, que ela é o pior dos regimes, excetuados todos os outros. Quando vemos a
facilidade com que ela se autodestrói, cedendo lugar a toda sorte de tiranias, ficamos
consternados e imaginamos que isso se deve à concorrência desleal de concepções
antagônicas. Mas essas concepções não teriam o poder mágico de obscurecer as
vantagens óbvias de viver numa democracia se esta mesma não sofresse de alguma
debilidade intrínseca que a torna vulnerável, mesmo aos ataques mais grosseiros e
imbecis.
A debilidade principal da democracia reside, segundo entendo, no fato de que, sendo
uma excelente ideia prática e nada mais, ela buscou desde o início escorar-se em
fundamentos teóricos falsamente absolutos que a colocam num estado permanente de
autocontradição e têm de ser diariamente negados, relativizados ou atenuados para
que ela possa continuar funcionando. A democracia vive de expedientes
antidemocráticos e sorrisos amarelos.
O primeiro e o mais capenga desses fundamentos é a noção de que o ser humano
nasce investido de “direitos inalienáveis”. Um direito, como demonstrou Simone Weil no
seu majestoso livro L’Enracinement, não é nada senão uma obrigação de alguém mais.
Se digo que as crianças têm o direito à alimentação, significa que alguém tem a
obrigação de alimentá-las. Um direito não é algo que exista em si, é apenas o efeito da
obrigação.
Proclamar um direito sem definir o titular da obrigação correspondente é cuspir bolhas
de sabão, é fingimento histérico. Foi por isso que Deus ditou a Moisés Dez
Mandamentos, dez obrigações, não dez direitos. Mas, quando o Rei Luís XVI disse que
A Declaração dos Direitos do Homem nada seria sem uma Declaração dos Deveres,
cortaram-lhe a cabeça. A democracia começou tomando uma consequência como
princípio e matando quem percebesse a inversão.
Isso não quer dizer que os direitos fossem errados, na prática. O problema é que
nenhuma sociedade pode sobreviver sem impor obrigações. Como as obrigações
foram banidas da esfera dos princípios, a incumbência de defini-las acabou cabendo à
legislação comum, donde resultou a criação desse monstrengo que é o Poder
Legislativo permanente, uma corporação de centenas de pessoas que passam o tempo
todo criando obrigações e proibições para todas as outras. Milhares, centenas de
milhares de obrigações e proibições. Leis em quantidade inabarcável por qualquer
cérebro humano.
Era preciso ser muito sonso para não perceber que por essa via o Estado logo se
tornaria o mediador onipresente de todas as relações humanas, estrangulando a
liberdade em nome da qual os direitos foram proclamados.

Recordações inúteis
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 7 de março de 2012
Uma fraqueza crônica do pensamento liberal é que, em sua resistência obstinada e não
raro heróica ao crescimento do poder estatal, acaba por fazer vista grossa ao fato de
que nem sempre os movimentos revolucionários e ditatoriais concentram o
poder no Estado, mas às vezes fora dele. Na verdade, nenhum movimento poderia se
apossar do Estado se primeiro não se tornasse mais poderoso que ele, criando meios
de ação capazes de neutralizar e sobrepor-se a qualquer interferência estatal adversa,
bem como, é claro, de manobrar o Estado desde fora e utilizá-lo para seus próprios
fins. Qualquer principiante no estudo do leninismo sabe disso.
Que a esquerda petista e pró-petista estava destinada a dominar por completo o
Estado brasileiro sem encontrar a mais mínima resistência, é coisa que para mim já
estava clara pelo menos desde 1993, quando as famosas CPIs mostraram ser o nosso
Parlamento nada mais que um bichinho dócil às injunções da grande mídia, alimentada
e manobrada por sua vez pelo onipresente e onissapiente serviço de informações do
PT. Foi naquele ano que publiquei A Nova Era e a Revolução Cultural, dando ciência –
a quem não desejava ciência nenhuma, por achar que já possuia todas – de que a
petização integral do Brasil era apenas questão de tempo. Mal havia então, entre os
liberais, quem imaginasse sequer que o PT pudesse vir a ter alguma chance de eleger
um presidente da República. E todos me olhavam como a um egresso do Pinel quando
eu lhes dizia que, quando isso viesse a acontecer, como fatalmente aconteceria, seria
numa ocasião em que o Estado já estivesse completamente dominado por dentro e por
fora, a conquista do governo federal nada mais constituindo que a oficialização
derradeira de um fato longamente consumado.
Enquanto isso, a intelectualidade liberal gastava todos os seus neurônios no empenho
idealístico de defender no plano doutrinário a economia de mercado e a liberdade
democrática, duas coisas que a esquerda nem pensaria em atacar muito seriamente
naquele momento, já que precisava de ambas para poder parasitá-las e continuar
crescendo até ficar forte o bastante para subjugá-las, deformá-las e, no devido tempo
(que só agora está chegando) extingui-las.
Havia até quem celebrasse a proliferação das ONGs como um progresso notável da
democracia liberal, na medida em que, consagrando as vias não-oficiais de ação social
e política, fortalecia a sociedade civil contra as pretensões avassaladoras do
gigantismo estatal.
Em vão advertia eu a essas criaturas que a “sociedade civil” era o terreno de escolha
para a penetração das forças revolucionárias, decididas a só se lançar à conquista do
poder de governo quando estivessem seguras de controlar, por vias não-oficiais, todos
os meios possíveis de modelagem da opinião pública, assim como todos os canais de
financiamento estatal e privado de uma multidão de empreendimentos revolucionários
maiores e menores, setorizados e discretos o bastante para que seu efeito de conjunto
simulasse uma transformação espontânea da mentalidade popular. A própria
disseminação do termo, insistia este insano colunista, refletia a influência crescente e
anônima do pensamento de Antonio Gramsci, naquela época já o autor mais estudado
e mais citado em todas as faculdades de letras e de ciências humanas no Brasil, só
ignorado por aqueles que mais interesse deveriam ter em defender-se da revolução
gramscista.
O primeiro sinal de que alguém havia me prestado alguma atenção não veio senão
decorrida quase uma década, e não veio dos liberais. Um artigo memorável do general
José Fábrega, publicado em jornal de pequena circulação, mostrou que entre os
militares havia ainda alguma inteligência desperta, o que veio a se comprovar nos anos
seguintes com os dois livros espetaculares, tecnicamente perfeitos, do general Sérgio
Augusto de Avelar Coutinho, A Revolução Gramscista no Ocidente (Rio, Estandarte,
2002) e Cadernos da Liberdade (Belo Horizonte, Grupo Inconfidência, 2004),
infelizmente publicados tarde demais para poder inspirar qualquer ação eficaz contra o
projeto de controle hegemônico da sociedade brasileira, àquela altura já praticamente
vitorioso. O general Coutinho faleceu em 27 de dezembro de 2011
(v. http://www.forte.jor.br/tag/general-sergio-augusto-de-avellar-coutinho/), amargurado
de ver a facilidade estonteante com que a malícia organizada – que a estratégia de
Gramsci não passa disso – havia se apoderado do país. O que mais o entristecia era
que um processo de dominação tão óbvio, tão patente, tão bem explicado de antemão
e tão fácil de compreender, pudesse ter sido aplicado a toda uma nação de maneira tão
anestésica e imperceptível que qualquer gemido de protesto acabasse soando como
extravagância intolerável e quase sinal de demência. Se no resto do mundo a vida imita
a arte, no Brasil ela imita a piada: nossa democracia realizou à risca, com séculos de
atraso, a boutade de Jonathan Swift sobre o cidadão que morreu mas, não tendo sido
avisado disso, continuava acreditando que estava vivo.

Recordações inúteis
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 7 de março de 2012
Uma fraqueza crônica do pensamento liberal é que, em sua resistência obstinada e não
raro heróica ao crescimento do poder estatal, acaba por fazer vista grossa ao fato de
que nem sempre os movimentos revolucionários e ditatoriais concentram o
poder no Estado, mas às vezes fora dele. Na verdade, nenhum movimento poderia se
apossar do Estado se primeiro não se tornasse mais poderoso que ele, criando meios
de ação capazes de neutralizar e sobrepor-se a qualquer interferência estatal adversa,
bem como, é claro, de manobrar o Estado desde fora e utilizá-lo para seus próprios
fins. Qualquer principiante no estudo do leninismo sabe disso.
Que a esquerda petista e pró-petista estava destinada a dominar por completo o
Estado brasileiro sem encontrar a mais mínima resistência, é coisa que para mim já
estava clara pelo menos desde 1993, quando as famosas CPIs mostraram ser o nosso
Parlamento nada mais que um bichinho dócil às injunções da grande mídia, alimentada
e manobrada por sua vez pelo onipresente e onissapiente serviço de informações do
PT. Foi naquele ano que publiquei A Nova Era e a Revolução Cultural, dando ciência –
a quem não desejava ciência nenhuma, por achar que já possuia todas – de que a
petização integral do Brasil era apenas questão de tempo. Mal havia então, entre os
liberais, quem imaginasse sequer que o PT pudesse vir a ter alguma chance de eleger
um presidente da República. E todos me olhavam como a um egresso do Pinel quando
eu lhes dizia que, quando isso viesse a acontecer, como fatalmente aconteceria, seria
numa ocasião em que o Estado já estivesse completamente dominado por dentro e por
fora, a conquista do governo federal nada mais constituindo que a oficialização
derradeira de um fato longamente consumado.
Enquanto isso, a intelectualidade liberal gastava todos os seus neurônios no empenho
idealístico de defender no plano doutrinário a economia de mercado e a liberdade
democrática, duas coisas que a esquerda nem pensaria em atacar muito seriamente
naquele momento, já que precisava de ambas para poder parasitá-las e continuar
crescendo até ficar forte o bastante para subjugá-las, deformá-las e, no devido tempo
(que só agora está chegando) extingui-las.
Havia até quem celebrasse a proliferação das ONGs como um progresso notável da
democracia liberal, na medida em que, consagrando as vias não-oficiais de ação social
e política, fortalecia a sociedade civil contra as pretensões avassaladoras do
gigantismo estatal.
Em vão advertia eu a essas criaturas que a “sociedade civil” era o terreno de escolha
para a penetração das forças revolucionárias, decididas a só se lançar à conquista do
poder de governo quando estivessem seguras de controlar, por vias não-oficiais, todos
os meios possíveis de modelagem da opinião pública, assim como todos os canais de
financiamento estatal e privado de uma multidão de empreendimentos revolucionários
maiores e menores, setorizados e discretos o bastante para que seu efeito de conjunto
simulasse uma transformação espontânea da mentalidade popular. A própria
disseminação do termo, insistia este insano colunista, refletia a influência crescente e
anônima do pensamento de Antonio Gramsci, naquela época já o autor mais estudado
e mais citado em todas as faculdades de letras e de ciências humanas no Brasil, só
ignorado por aqueles que mais interesse deveriam ter em defender-se da revolução
gramscista.
O primeiro sinal de que alguém havia me prestado alguma atenção não veio senão
decorrida quase uma década, e não veio dos liberais. Um artigo memorável do general
José Fábrega, publicado em jornal de pequena circulação, mostrou que entre os
militares havia ainda alguma inteligência desperta, o que veio a se comprovar nos anos
seguintes com os dois livros espetaculares, tecnicamente perfeitos, do general Sérgio
Augusto de Avelar Coutinho, A Revolução Gramscista no Ocidente (Rio, Estandarte,
2002) e Cadernos da Liberdade (Belo Horizonte, Grupo Inconfidência, 2004),
infelizmente publicados tarde demais para poder inspirar qualquer ação eficaz contra o
projeto de controle hegemônico da sociedade brasileira, àquela altura já praticamente
vitorioso. O general Coutinho faleceu em 27 de dezembro de 2011
(v. http://www.forte.jor.br/tag/general-sergio-augusto-de-avellar-coutinho/), amargurado
de ver a facilidade estonteante com que a malícia organizada – que a estratégia de
Gramsci não passa disso – havia se apoderado do país. O que mais o entristecia era
que um processo de dominação tão óbvio, tão patente, tão bem explicado de antemão
e tão fácil de compreender, pudesse ter sido aplicado a toda uma nação de maneira tão
anestésica e imperceptível que qualquer gemido de protesto acabasse soando como
extravagância intolerável e quase sinal de demência. Se no resto do mundo a vida imita
a arte, no Brasil ela imita a piada: nossa democracia realizou à risca, com séculos de
atraso, a boutade de Jonathan Swift sobre o cidadão que morreu mas, não tendo sido
avisado disso, continuava acreditando que estava vivo.

Democracia normal e patológica – I


Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 5 de outubro de 2011
A patologia depende da fisiologia. Não é possível saber se um órgão está doente
quando não se tem idéia de como ele deveria funcionar normalmente. O mesmo
princípio vigora na análise política. Não se pode falar de uma doença política da
democracia quando não se tem uma idéia clara do que é uma democracia normal.
Felizmente para o estudioso, as democracias normais não somente existem, mas são
mesmo as nações mais visíveis e influentes do mundo. Malgrado as forças patológicas
que permanentemente as assaltam desde dentro e desde fora, e malgrado a
inabilidade com que por vezes se defendem, essas democracias ainda exibem uma
vitalidade invejável. A Inglaterra e os EUA são as mais antigas. Alguns países
escandinavos consolidaram-se como democracias normais desde a segunda metade
do século XIX. A Alemanha, a Itália e a França, após várias tentativas falhadas, só
conseguiram se estabilizar nessa condição após o término da II Guerra Mundial. A
democracia israelense nasceu junto com o próprio Estado de Israel, em 1947. As
democracias normais mais novas são a Espanha, Portugal e alguns países do Leste
Europeu libertados do jugo comunista no começo dos anos 90. Material para estudo e
comparação, portanto, não falta. Só um cretino ou alguém interessado em confundir
propositadamente as coisas pode ignorar o que é normalidade democrática, ou chamar
por esse nome algo que não é nem democracia nem muito menos normal.
Que é, no período histórico nascido desde a Revolução Americana, uma democracia
política normal no Ocidente? Se o conceito genérico de “democracia” pode ser definido
por traços meramente jurídico-formais como a existência de uma ordem constitucional,
partidos políticos, liberdade de imprensa etc., a mera presença desses traços é comum
às democracias saudáveis e as doentes. A normalidade do sistema democrático tem de
ser aferida por diferenças substantivas que o mero formalismo não apreende.
Normalidade democrática é a concorrência efetiva, livre, aberta, legal e ordenada de
duas ideologias que pretendem representar os melhores interesses da população: de
um lado, a “esquerda”, que favorece o controle estatal da economia e a interferencia
ativa do governo em todos os setores da vida social, colocando o ideal igualitário acima
de outras considerações de ordem moral, cultural, patriótica ou religiosa. De outro, a
“direita”, que favorece a liberdade de mercado, defende os direitos individuais e os
poderes sociais intermediários contra a intervenção do Estado e coloca o patriotismo e
os valores religiosos e culturais tradicionais acima de quaisquer projetos de reforma da
sociedade. Representadas por dois ou mais partidos e amparadas nos seus
respectivos mentores intelectuais e órgãos de mídia, essas forças se alternam no
governo conforme as favoreça o resultado de eleições livres e periódicas, de modo que
os sucessos e fracassos de cada uma durante sua passagem pelo poder sejam
mutuamente compensados e tudo concorra, no fim das contas, para o benefício da
população. Entre a esquerda e a direita estende-se toda uma zona indecisa de
mesclagens e transigências, que podem assumir a forma de partidos menores
independentes ou consolidar-se como política permanente de concessões mútuas
entre as duas facções maiores. É o “centro”, que se define precisamente por não ser
nada além da própria forma geral do sistema indevidamente transmutada às vezes em
arremedo de facção política, como se numa partida de futebol o manual de instruções
pretendesse ser um terceiro time em campo.
Nas beiradas do quadro legítimo, florescendo em zonas fronteiriças entre a política e o
crime, há os “extremismos” de parte a parte: a extrema esquerda prega a submissão
integral da sociedade a uma ideologia revolucionária personificada num Partido-Estado,
a extinção completa dos valores morais e religiosos tradicionais, o igualitarismo forçado
por meio da intervenção fiscal, judiciária e policial. A extrema direita propõe a
criminalização de toda a esquerda, a imposição da uniformidade moral e religiosa sob a
bandeira de valores tradicionais, a transmutação de toda a sociedade numa militância
patriótica obediente e disciplinada. Não é o apelo à violência que define,
ostensivamente e em primeira instância, os dois extremismos: tanto um quanto o outro
admitem alternar os meios violentos e pacíficos de luta conforme as exigências do
momento, submetendo a frias considerações de mera oportunidade, com notável
amoralismo e não sem uma ponta de orgulho maquiavélico, a escolha entre o
morticínio e a sedução. Isso permite que forjem alianças, alternadamente ou ao mesmo
tempo, com gangues de delinqüentes e com os partidos legítimos, às vezes
desfrutando gostosamente de uma espécie de direito ao crime. Não é uma coincidencia
que, quando sobem ao poder ou se apropriam de uma parte dele, os dois favoreçam
igualmente uma economia de intervenção estatista. Isto não se deve ao slogan de que
“os extremos se tocam”, mas à simples razão de que nenhuma política de
transformação forçada da sociedade se pode realizar sem o controle estatal da
atividade econômica, pouco importando que seja imposto em nome do igualitarismo ou
do nacionalismo, do futurismo utópico ou do tradicionalismo mais obstinado. Por essa
razão, ambos os extremismos são sempre inimigos da direita, mas, da esquerda, só de
vez em quando. A extrema esquerda só se distingue da esquerda por uma questão de
grau (ou de pressa relativa), pois ambas visam em última instância ao mesmo objetivo.
Já a extrema direita e a direita, mesmo quando seus discursos convergem no tópico
dos valores morais ou do anti-esquerdismo programático, acabam sempre se revelando
incompatíveis em essência: é materialmente impossível praticar ao mesmo tempo a
liberdade de mercado e o controle estatal da economia, a preservação dos direitos
individuais e a militarização da sociedade. Isso é uma vantagem permanente a favor da
esquerda: alianças transnacionais da esquerda com a extrema esquerda sempre
existiram, como a Internacional Comunista, o Front Popular da França e, hoje, o Foro
de São Paulo. Uma “internacional de direita” é uma impossibilidade pura e simples.
Essa desvantagem da direita é compensada no campo econômico, em parte, pela
inviabilidade intrínseca do estatismo integral, que obriga a esquerda a fazer periódicas
concessões ao capitalismo.
Embora essas noções sejam óbvias e facilmente comprováveis pela observação do
que se passa no mundo, você não pode adquiri-las em nenhuma universidade
brasileira nem na leitura dos comentários politicos usuais, pois praticamente todo
mundo que abre a boca para falar de política neste país, com exceções tão minguadas
quanto inaudíveis, é parte interessada e beneficiária da confusão geral, a começar
pelos professores universitários e comentaristas de mídia.
No próximo artigo, aplicarei os conceitos aqui resumidos à análise da democracia
brasileira.

Democracia normal e patológica – I


Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 5 de outubro de 2011
A patologia depende da fisiologia. Não é possível saber se um órgão está doente
quando não se tem idéia de como ele deveria funcionar normalmente. O mesmo
princípio vigora na análise política. Não se pode falar de uma doença política da
democracia quando não se tem uma idéia clara do que é uma democracia normal.
Felizmente para o estudioso, as democracias normais não somente existem, mas são
mesmo as nações mais visíveis e influentes do mundo. Malgrado as forças patológicas
que permanentemente as assaltam desde dentro e desde fora, e malgrado a
inabilidade com que por vezes se defendem, essas democracias ainda exibem uma
vitalidade invejável. A Inglaterra e os EUA são as mais antigas. Alguns países
escandinavos consolidaram-se como democracias normais desde a segunda metade
do século XIX. A Alemanha, a Itália e a França, após várias tentativas falhadas, só
conseguiram se estabilizar nessa condição após o término da II Guerra Mundial. A
democracia israelense nasceu junto com o próprio Estado de Israel, em 1947. As
democracias normais mais novas são a Espanha, Portugal e alguns países do Leste
Europeu libertados do jugo comunista no começo dos anos 90. Material para estudo e
comparação, portanto, não falta. Só um cretino ou alguém interessado em confundir
propositadamente as coisas pode ignorar o que é normalidade democrática, ou chamar
por esse nome algo que não é nem democracia nem muito menos normal.
Que é, no período histórico nascido desde a Revolução Americana, uma democracia
política normal no Ocidente? Se o conceito genérico de “democracia” pode ser definido
por traços meramente jurídico-formais como a existência de uma ordem constitucional,
partidos políticos, liberdade de imprensa etc., a mera presença desses traços é comum
às democracias saudáveis e as doentes. A normalidade do sistema democrático tem de
ser aferida por diferenças substantivas que o mero formalismo não apreende.
Normalidade democrática é a concorrência efetiva, livre, aberta, legal e ordenada de
duas ideologias que pretendem representar os melhores interesses da população: de
um lado, a “esquerda”, que favorece o controle estatal da economia e a interferencia
ativa do governo em todos os setores da vida social, colocando o ideal igualitário acima
de outras considerações de ordem moral, cultural, patriótica ou religiosa. De outro, a
“direita”, que favorece a liberdade de mercado, defende os direitos individuais e os
poderes sociais intermediários contra a intervenção do Estado e coloca o patriotismo e
os valores religiosos e culturais tradicionais acima de quaisquer projetos de reforma da
sociedade. Representadas por dois ou mais partidos e amparadas nos seus
respectivos mentores intelectuais e órgãos de mídia, essas forças se alternam no
governo conforme as favoreça o resultado de eleições livres e periódicas, de modo que
os sucessos e fracassos de cada uma durante sua passagem pelo poder sejam
mutuamente compensados e tudo concorra, no fim das contas, para o benefício da
população. Entre a esquerda e a direita estende-se toda uma zona indecisa de
mesclagens e transigências, que podem assumir a forma de partidos menores
independentes ou consolidar-se como política permanente de concessões mútuas
entre as duas facções maiores. É o “centro”, que se define precisamente por não ser
nada além da própria forma geral do sistema indevidamente transmutada às vezes em
arremedo de facção política, como se numa partida de futebol o manual de instruções
pretendesse ser um terceiro time em campo.
Nas beiradas do quadro legítimo, florescendo em zonas fronteiriças entre a política e o
crime, há os “extremismos” de parte a parte: a extrema esquerda prega a submissão
integral da sociedade a uma ideologia revolucionária personificada num Partido-Estado,
a extinção completa dos valores morais e religiosos tradicionais, o igualitarismo forçado
por meio da intervenção fiscal, judiciária e policial. A extrema direita propõe a
criminalização de toda a esquerda, a imposição da uniformidade moral e religiosa sob a
bandeira de valores tradicionais, a transmutação de toda a sociedade numa militância
patriótica obediente e disciplinada. Não é o apelo à violência que define,
ostensivamente e em primeira instância, os dois extremismos: tanto um quanto o outro
admitem alternar os meios violentos e pacíficos de luta conforme as exigências do
momento, submetendo a frias considerações de mera oportunidade, com notável
amoralismo e não sem uma ponta de orgulho maquiavélico, a escolha entre o
morticínio e a sedução. Isso permite que forjem alianças, alternadamente ou ao mesmo
tempo, com gangues de delinqüentes e com os partidos legítimos, às vezes
desfrutando gostosamente de uma espécie de direito ao crime. Não é uma coincidencia
que, quando sobem ao poder ou se apropriam de uma parte dele, os dois favoreçam
igualmente uma economia de intervenção estatista. Isto não se deve ao slogan de que
“os extremos se tocam”, mas à simples razão de que nenhuma política de
transformação forçada da sociedade se pode realizar sem o controle estatal da
atividade econômica, pouco importando que seja imposto em nome do igualitarismo ou
do nacionalismo, do futurismo utópico ou do tradicionalismo mais obstinado. Por essa
razão, ambos os extremismos são sempre inimigos da direita, mas, da esquerda, só de
vez em quando. A extrema esquerda só se distingue da esquerda por uma questão de
grau (ou de pressa relativa), pois ambas visam em última instância ao mesmo objetivo.
Já a extrema direita e a direita, mesmo quando seus discursos convergem no tópico
dos valores morais ou do anti-esquerdismo programático, acabam sempre se revelando
incompatíveis em essência: é materialmente impossível praticar ao mesmo tempo a
liberdade de mercado e o controle estatal da economia, a preservação dos direitos
individuais e a militarização da sociedade. Isso é uma vantagem permanente a favor da
esquerda: alianças transnacionais da esquerda com a extrema esquerda sempre
existiram, como a Internacional Comunista, o Front Popular da França e, hoje, o Foro
de São Paulo. Uma “internacional de direita” é uma impossibilidade pura e simples.
Essa desvantagem da direita é compensada no campo econômico, em parte, pela
inviabilidade intrínseca do estatismo integral, que obriga a esquerda a fazer periódicas
concessões ao capitalismo.
Embora essas noções sejam óbvias e facilmente comprováveis pela observação do
que se passa no mundo, você não pode adquiri-las em nenhuma universidade
brasileira nem na leitura dos comentários politicos usuais, pois praticamente todo
mundo que abre a boca para falar de política neste país, com exceções tão minguadas
quanto inaudíveis, é parte interessada e beneficiária da confusão geral, a começar
pelos professores universitários e comentaristas de mídia.
No próximo artigo, aplicarei os conceitos aqui resumidos à análise da democracia
brasileira.

Princípios de uma política conservadora


Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 27 de junho de 2011
Estes princípios não são regras a ser seguidas na política prática. São um conjunto de
critérios de reconhecimento para você distinguir, quando ouve um político, se está
diante de um conservador, de um revolucionário ou de um “liberal”, no sentido brasileiro
do termo hoje em dia (que é uma indecisa mistura dos dois anteriores).
1. Ninguém é dono do futuro. “O futuro pertence a nós” é um verso do hino da
Juventude Hitlerista. É a essência da mentalidade revolucionária. Um conservador fala
em nome da experiência passada acumulada no presente. O revolucionário fala em
nome de um futuro hipotético cuja autoridade de tribunal de última instância ele
acredita representar no presente, mesmo quando nada sabe desse futuro e não
consegue descrevê-lo senão por meio de louvores genéricos a algo que ele não tem a
menor idéia do que seja. Quando o ex-presidente Lula dizia “Não sabemos qual tipo de
socialismo queremos”, ele presumia saber (1) que o socialismo é o futuro brilhante e
inevitável da História, quando a experiência nos mostra que é na verdade um passado
sangrento com um legado de mais de cem milhões de mortos; (2) que ele e seus
cúmplices têm o direito de nos conduzir a uma repetição dessa experiência, sem outra
garantia de que ela será menos mortífera do que a anterior exceto a promessa verbal
saída da boca de alguém que, ao mesmo tempo, confessa não saber para onde nos
leva. A mentalidade revolucionária é uma mistura de presunção psicótica e
irresponsabilidade criminosa.
2. Cada geração tem o direito de escolher o que lhe convém. Isto implica que nenhuma
geração tem o direito de comprometer as subseqüentes em escolhas drásticas cujos
efeitos quase certamente maléficos não poderão ser revertidos jamais ou só poderão
sê-lo mediante o sacrifício de muitas gerações. O povo tem, por definição, o direito de
experimentar e de aprender com a experiência, mas, por isso mesmo, não tem o direito
de usar seus filhos e netos como cobaias de experiências temerárias.
3. Nenhum governo tem o direito de fazer algo que o governo seguinte não possa
desfazer. É um corolário incontornável do princípio anterior. As eleições periódicas não
fariam o menor sentido se cada governo eleito não tivesse o direito e a possibilidade de
corrigir os erros dos governos anteriores. A democracia é, portanto, essencialmente
hostil a qualquer projeto de mudança profunda e irreversível da ordem social, por pior
que esta seja em determinado momento. Nenhuma ordem social gerada pelo decurso
dos séculos é tão ruim quanto uma nova ordem imposta por uma elite iluminada que se
crê, sem razão, detentora do único futuro desejável. No curso dos três últimos séculos
não houve um só experimento revolucionário que não resultasse em destruição,
morticínio, guerras e miséria generalizada. Não se vê como os experimentos futuros
possam ser diferentes.
4. Nenhuma proposta revolucionária é digna de ser debatida como alternativa
respeitável num quadro político democrático. A revogabilidade das medidas de governo
é um princípio incontornável da democracia, e toda proposta revolucionária, por
definição, nega esse princípio pela base. É impossível colocar em prática qualquer
proposta revolucionária sem a concentração do poder e sem a exclusão, ostensiva ou
camuflada, de toda proposta alternativa. Não se pode discutir alternativas com base na
proibição de alternativas.
5. A democracia é o oposto da política revolucionária. A democracia é o governo das
tentativas experimentais, sempre revogáveis e de curto prazo. A proposta
revolucionária é necessariamente irreversível e de longo prazo. A rigor, toda proposta
revolucionária visa a transformar, não somente uma sociedade em particular, mas a
Terra inteira e a própria natureza humana. É impossível discutir democraticamente com
alguém que não respeita sequer a natureza do interlocutor, vendo nela somente a
matéria provisória da humanidade futura. É estúpido acreditar que comunistas,
socialistas, fascistas, eurasianos e tutti quanti possam integrar-se pacificamente na
convivência democrática com facções políticas infinitamente menos ambiciosas. Será
sempre a convivência democrática do lobo com o cordeiro.
6. A total erradicação da mentalidade revolucionária é a condição essencial para a
sobrevivência da liberdade no mundo. A mentalidade revolucionária não é um traço
permanente da natureza humana. Teve uma origem histórica – por volta do século XVIII
– e terá quase certamente um fim. O período do seu apogeu, o século XX, foi o mais
violento, o mais homicida de toda a História humana, superando, em número de vítimas
inocentes, todas as guerras, epidemias, terremotos e catástrofes naturais de toda
ordem observadas desde o início dos tempos. Não há exagero nenhum em dizer que a
mentalidade revolucionária é o maior flagelo que já se abateu sobre a humanidade. É
uma questão de números e não de opinião. Recusar-se a enxergar isso é ser um
monstro de insensibilidade. Toda política que não se volte à completa erradicação da
mentalidade revolucionária, da maneira mais candente e explícita possível, é uma
desconversa criminosa e inaceitável, por mais que adorne sua omissão com belos
pretextos democráticos, libertários, religiosos, moralísticos, igualitários, etc.

Excesso de democracia
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 3 de janeiro de 2011
Faz seis meses que Alejandro Peña Esclusa está preso na Venezuela. Pesa contra ele
o testemunho de Francisco Chávez Abarca, segundo as autoridades venezuelanas um
perigosíssimo terrorista equatoriano que o teria apontado como seu contato local. Não
se sabe exatamente o que significa “ser um contato”. Um agente de viagens, por
exemplo, é um contato. Um carregador de malas no aeroporto não o é menos. Pareceu
irrelevante aos acusadores de Peña Esclusa o detalhe de que jamais tenha se
comprovado entre ele e a testemunha alguma ligação tão íntima quanto a de um turista
com um carregador de malas. A periculosidade apocalíptica de Chávez Abarca pode-se
medir pelo único crime que ele comprovadamente cometeu: roubo de carros. A
confiabilidade do seu testemunho avalia-se pela circunstância de que, preso ao
desembarcar na Venezuela, foi rapidamente interrogado e em seguida enviado a Cuba,
tornando-se invisível e inacessível, não só aos advogados de defesa como ao próprio
juiz do processo. A idoneidade deste último, por sua vez, torna-se evidente pelos
sucessivos e furibundos ataques públicos que desferiu contra o réu, praticamente
anunciando a sentença antes do julgamento.
Tudo isso é a prova inequívoca de que o nosso presidente tinha toda a razão ao
declarar que a Venezuela padece de um excesso de democracia: diante de tão sábias
palavras de um amigo e conselheiro, o governo Chávez decidiu eliminar a
excrescência, mandando à prisão um dos mais destacados líderes democráticos do
país e limitando portanto o exercício da democracia às proporções compatíveis com a
ditadura. Afinal, não é democrático discriminar uma proposta política só porque é
ditatorial. A democracia perfeita exige dosar igualitariamente as pretensões dos dois
tipos de regimes, assegurando ao cidadão, ao mesmo tempo, a liberdade de expressão
e a certeza de ir para o cárcere no caso de exercê-la.
Peña Esclusa alimentou essa certeza desde a ascensão do chavismo. Quando em
março de 2010 nos encontramos no Estado do Alabama, cuja Assembléia Legislativa
lhe prestava as homenagens devidas a um campeão da democracia na América Latina
(v. http://fuerzasolidaria.org/?p=3006), ele já me anunciou que seus dias de liberdade
estavam contados. Sugeri que pedisse asilo político nos EUA, mas ele preferiu
aguardar que se cumprisse aquilo que lhe parecia ser, mais dia, menos dia, o destino
de todos os combatentes pela liberdade no seu país.
Segundo informações da família, ele está resistindo bem ao tratamento carcerário.
Fisicamente vigoroso (ex-campeão venezuelano de caratê), esse homem de uma
calma imperturbável sabe que já se pode considerar moralmente vitorioso sobre um
poltrão abjeto que só se notabilizou pela constância com que enfia o rabo entre as
pernas sempre que desafiado cara a cara.
Se essa vitória moral pode se transmutar em triunfo político, só o tempo dirá. Mas uma
das condições para isso é não permitir que uma das farsas processuais mais patentes
da história jurídica latino-americana venha a ser esquecida, somando ao
encarceramento injusto a penalidade ainda mais injusta do silêncio cúmplice.
Posso um dia esquecer tudo o que Alejandro Peña Esclusa fez pela democracia no
continente, mas jamais esquecerei o que ele não fez contra ela: ele está tão
comprometido com o terrorismo quanto eu com a campanha pela beatificação de São
Lula.

Presenças honrosas
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 1 de outubro de 2010
Entre os quase sessenta mil signatários do “Manifesto em Defesa da Democracia”, há
decerto um bom contingente de cidadãos – nos quais me incluo – que jamais se
deixaram enganar pelo “novo paradigma” imposto à política brasileira desde a
ascensão das esquerdas ao primeiro plano do espetáculo nacional. Mas há também
uma parcela de celebridades da mídia, do show business, da política e do mundo
empresarial, das quais não se pode dizer o mesmo. O próprio site do Manifesto
incumbe-se de distinguir os dois grupos, reunindo o segundo nos links “Assinaturas em
destaque” e “Artigos em destaque”
(v. http://www.defesadademocracia.com.br/categorias/artigos/page/2/).
Significativamente, a quase totalidade dos nomes aí “destacados” são de pessoas que
integram uma das seguintes categorias:
(1) Contribuíram ativa e entusiasticamente para a criação do monstro petista e até hoje
não lhe fazem restrições – quando as fazem – senão limitadas e pontuais.
(2) Sem ser petistas ou simpatizantes, julgaram a ascensão do PT um fenômeno
positivo para a democracia e a defenderam galhardamente contra quem quer que, com
base na leitura dos próprios documentos internos do partido, advertisse que se tratava
de uma organização revolucionária de alta periculosidade.
(3) Fizeram tudo o que podiam para bloquear ou inibir a divulgação da existência e das
atividades do Foro de São Paulo, entidade com que o PT salvou e restaurou o
movimento comunista latino-americano, ameaçado de extinção no começo da década
de 90.
(4) Repetidamente denunciaram toda veleidade de anticomunismo como uma ameaça
temível e um abuso inaceitável, ajudando a criar assim a atmosfera de hegemonia
esquerdista na qual o triunfo do PT, como personificação mais pura do esquerdismo
nacional, se tornava claramente inevitável (v. meu artigo de setembro de 2004,
“Assunto encerrado”, http://www.olavodecarvalho.org/semana/040212jt.htm).
Atribuindo a esses indivíduos um lugar de revevo, o site do Manifesto dá a entender
que a presença de suas assinaturas infunde no documento um valor a mais,
revestindo-o de uma autoridade moral que a mera quantidade de signatários não
poderia lhe conferir.
O critério de julgamento aí subentendido é, por si, toda uma lição de sociologia quanto
à mentalidade daquilo que o sr. Presidente chama de “azé-lite”. Basta assimilar essa
lição para compreender por que o país chegou ao ponto em que se tornou necessário
arrebanhar às pressas sessenta mil pessoas para defender uma democracia que, ainda
meses atrás, tantas delas proclamavam firmada e consolidada – vejam vocês – pelo
fato mesmo da ascensão petista.
O que os destaques do site evidenciam, desde logo, é que, no sentimento geral da
“azé-lite”, o mérito supremo, em política, não consiste em perceber os perigos em
tempo de preveni-los, mas em recusar-se obstinadamente a enxergá-los, ou a deixar
que alguém mais os enxergue, até quando já nada mais reste a fazer contra eles senão
assinar um manifesto – o último recurso dos derrotados.
Com toda a evidência, as opiniões, nesse meio, não valem pelo seu coeficiente de
veracidade, de oportunidade estratégica ou de eficácia preditiva, mas, justamente ao
contrário, só são admitidas como dignas de alguma atenção – ainda assim parcial e
seletiva – quando obtêm finalmente o nihil obstat dos últimos a saber. Um sindicato de
maridos traídos não seria talvez tão lerdo e recalcitrante em tomar ciência das más
notícias.
Mas a lentidão paquidérmica em admitir os fatos não é causa sui. Ela vem do apego
supersticioso da “azé-lite” à lenda de que o movimento comunista não existe e de que
toda tentativa de denunciá-lo só pode ser coisa de extremistas de direita, saudosistas
da Guerra Fria, loucos de pedra e teóricos da conspiração. Essa lenda foi criada para
infundir naquelas pessoas a ilusão de que o fim do regime militar traria magicamente
ao Brasil uma democracia estável, de tipo europeu – ilusão necessária, precisamente,
para que a gradual mas inevitável ascensão de comunistas e pró-comunistas ao poder
absoluto aparecesse a seus olhos como o fruto espontâneo da “evolução democrática”
e não como o resultado de um planejamento maquiavélico de longo prazo, que os
documentos do PT e do Foro de São Paulo atestam para além de toda dúvida razoável.
A expressão “azé-lite” é tardia. Muito antes dela, em 1996, no meu livro O Imbecil
Coletivo, eu já havia dado a essa faixa social o nome de “pessoas maravilhosas”,
observando que para tornar-se uma delas você deveria antes de tudo acreditar que,
embora o comunismo não exista, ser comunista é chique e ser anticomunista é brega.
Agora, na página do Manifesto, até uma pessoa indiscutivelmente maravilhosa como o
sr. Luiz Eduardo Soares, que viu na publicação daquele meu livro um sinal alarmante
de ressurgimento da abominável direita, sai gritando, tarde demais, contra os
“bolcheviques e gambás” (sic) que se apossaram do país.
Pessoa maravilhosa é também o sr. Luís Garcia, que ainda em 2008
(v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/090113dc.html) se orgulhava de tudo ter
feito para lotar de esquerdistas as páginas de opinião de O Globo e muito se
arrependia de haver ali encaixado, mesmo a título de balanceamento fingido, um único
direitista que fosse. Num gesto inusitado para um chefe de redação, o sr. Garcia
chegou até a puxar, nas páginas do mesmo jornal, uma discussão com esse direitista –
que não era outro senão eu –, para alegar que o referido, ao alertar contra o poder
crescente do esquerdismo continental, estava era enxergando crocodilos embaixo da
cama.
Ainda ontem, crocodilos, gambás e bolcheviques só existiam na minha imaginação
perversa. De repente, surgindo do nada, tomaram posse do circo inteiro e assombram
as noites das pessoas maravilhosas que riam de quem os enxergava.
Já nem falo dos srs. Hélio Bicudo, Ferreira Gullar, Eliane Cantanhede e tantos outros,
que, ajudando a instaurar o mito do monopólio esquerdista do bem e da verdade,
criaram as condições indispensáveis para transformar a política brasileira numa disputa
de família entre organizações de esquerda, ignorando ou fingindo ignorar que a
hegemonia ideológica traz inevitavelmente, mais cedo ou mais tarde, o império do
partido único, contra o qual hoje esperneiam com ares de inocência surpreendida.
Todos esses, sem exceção, apostaram suas vidas na mentira mais estúpida e letal que
alguém já inventou contra a democracia: a mentira de que é possível um regime
democrático normal e saudável sem partidos de direita, ou só com uma direita
amoldada servilmente aos propósitos da esquerda. Ao assinar o Manifesto, não têm
sequer a honestidade de reconhecer que o assinam contra si mesmos. Num país onde
o fingimento é a mais excelsa das qualidades morais, isso é razão suficiente para
considerar seu apoio àquele documento uma honra digna de menção especial.

O Emir Sader americano


Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 3 de maio de 2010
Fortemente recomendado à minha leitura por um dos homens mais inteligentes que
conheço, e aliás também mencionado em How The World Really Works de Alan B.
Jones como um dos dez livros fundamentais para a compreensão da nova ordem
global (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/061211dc.html), A Century of War:
Anglo American Oil Politics and the New World Order, de William Engdahl (Pluto Press,
2004), foi uma decepção desde as primeiras páginas.
Sua tese fundamental é que praticamente tudo o que acontece de mau no mundo é
obra da elite financeira americana – os Rockefeller e tutti quanti–, empenhada em
expandir ilimitadamente o poderio dos EUA por meio do controle geopolítico de uma
fonte essencial de energia: o petróleo.
Um lance decisivo dessa guerra de conquista universal, diz o autor, foi a invasão do
Iraque, “parte da agenda americana pós-guerra-fria, em busca da ‘dominação de pleno
espectro’”.
Um ano após a invasão de Bagdá, prossegue Engdahl, “tornou-se claro que a guerra
pouco tinha a ver com a ameaça das armas de destruição em massa… ou com o
proclamado esforço de ‘levar a democracia’ ao até então despótico Iraque”.
“Tornou-se claro” para quem? Para quem tem o New York Times e a CNN como suas
principais ou únicas fontes de informação, talvez. Para quem lê livros e sabe o que são
documentos de fonte primária, não.
(1) A lista oficial das armas de destruição em massa encontradas no Iraque –
suficientes, por si, para destruir muitas cidades americanas –, pode ser lida, junto com
provas convincentes da existência das armas não encontradas, nas páginas 97-106 do
livro Disinformation: 22 Media Myths that Undermine the War on Terror, de Richard
Miniter (Regnery, 2005). “Praticamente – diz Miniter – nenhum dos críticos da guerra
que estiveram envolvidos nos esforços para encontrar essas armas disse jamais não
haver provas de que o Iraque as possuía.” Foi evidentemente a mídia popular que, para
fins de propaganda anti-guerra, colocou essa afirmação em bocas onde ela nunca
esteve. A diferença entre dizer que nem todas as armas foram encontradas e que
nenhuma foi encontrada é pelo menos tão decisiva quanto a diferença entre dizer
“alguém opinou” e “tornou-se claro”. Não é admissível que um estudioso profissional de
assuntos militares ignore uma dessas diferenças ou, pior ainda, as duas.
(2) Mesmo os críticos mais ferozes do governo Bush admitem que a democracia
prometida ao Iraque foi instalada e está funcionando perfeitamente há cinco anos. Se
alguém diz que vai fazer alguma coisa e acaba por fazê-la de fato, só uma má-vontade
psicótica pode insistir em proclamar que ele jamais teve a intenção de fazê-la. Pensem
o que quiserem de George W. Bush, mas que ele levou a democracia ao Iraque, levou.
Só por esses parágrafos, já se vê que Engdahl, para dizer o mínimo, não é sério. Mas
ele complica formidavelmente sua situação quando atribui à elite dominante dos EUA a
autoria de catástrofes inumeráveis, como “a ocupação dos campos petrolíferos do
Iraque, a guerra em Kosovo e nos Bálcãs, infindáveis guerras civis na África, crises
financeiras ao longo da Ásia, o dramático colapso da União Soviética e a subseqüente
emergência de uma oligarquia russa”, e, linhas adiante, com a maior inocência,
reconhece que “um ano após a ocupação americana de Bagdá, os objetivos da única
superpotência mundial estavam sendo questionados como nunca tinham sido desde a
guerra do Vietnã. Cenas degradantes de iraquianos torturados lotavam as páginas da
mídia mundial. Alegações de corrupção e conspiração, subindo até os mais altos níveis
da administração em Washington, tornavam-se lugares-comuns”.
Do confronto dessas duas séries de afirmações temos de concluir que uma oligarquia
poderosa o bastante para determinar o curso dos acontecimentos em todo o orbe
terrestre não teve, coitadinha, os meios de obter para as suas políticas o apoio dos
jornais e canais de TV dos quais ela própria, aliás, possui o controle acionário. Ou
acreditamos nessa hipótese imbecil, ou admitimos que Engdahl não é muito honesto na
sua tentativa de impingir ao leitor a crenca de que a oligarquia globalista trabalha para
a expansão do poderio internacional dos EUA e não de um governo global
visceralmente anti-americano. Oligarquia financeira e oligarquia midiática são
obviamente a mesma coisa: se os jornais em peso se voltam contra a política militar do
governo, é claro que ela perdeu, ou jamais teve, o apoio daquela oligarquia. Mas a ira
da grande mídia não se voltou só contra as iniciativas guerreiras do governo Bush:
invariavelmente, ela ataca tudo o que seja ou pareça favorável ao crescimento do
poder americano ou ao fortalecimento da identidade nacional dos EUA (veja-se o horror
ilimitado com que reagiu à nova lei do Arizona contra a imigração ilegal). Que Engdahl
inverte as intenções da oligarquia é algo que nem preciso argumentar – David
Rockefeller já o fez por mim na página 405 das suas Memórias: “Alguns acreditam que
somos parte de uma cabala secreta que trabalha contra os melhores interesses
americanos, caracterizando a mim e à minha família como ‘internacionalistas’ e
acusando-nos de conspirar para construir uma política global mais integrada… Se essa
é a acusação, declaro-me culpado – e orgulhoso de sê-lo.”
A dúvida, se alguma existe, fica totalmente esclarecida quando Engdahl diz a que veio:
o que ele propõe é deter ou pelo menos desacelerar o crescimento de “um poder que já
não é sustentável nem saudável para os EUA nem para o resto do mundo”. É o mesmo
programa da Rússia, da China e dos potentados árabes, bem como… dos Rockefellers
e similares. Foi para realizá-lo, como aliás está sendo realizado, que a oligarquia
americana apoiou e continua apoiando Barack Obama quando ele propõe o
desarmamento unilateral dos EUA, a dissolução da identidade americana numa pasta
“multicultural” ou a completa inação ante a corrida armamentista iraniana, a
espionagem chinesa onipresente e a ocupação da América Latina pelas forças do
comunochavismo. Se isso é “expansão do poderio dos EUA”, também deve sê-lo a
sistemática demolição do parque industrial americano, em que aquela elite se empenha
há décadas com uma volúpia destruidora de fazer inveja ao vírus da Aids.
Não espanta que, com perspectiva que tem ou finge ter das coisas, Engdahl faça tanto
sucesso na televisão russa, onde volta e meia reaparece com ares de
grande expert em geopolítica mundial. Para mim, ele é uma espécie de Emir Sader
americano: o homem que descreve “o mundo às avessas”.
Publicado no Diário do Comércio com o título de “O mundo às avessas”

Armas da liberdade
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 17 de dezembro de 2009
A coisa mais óbvia, na análise da História e da sociedade, é que, quando a situação
muda muito, você já não pode descrevê-la com os mesmos conceitos de antes: tem de
criar novos ou aperfeiçoar criticamente os velhos, para dar conta de fatos inéditos, não
enquadráveis nos gêneros conhecidos.
É patético observar como, já em plena fase de implantação do governo mundial, os
analistas políticos, na universidade ou na mídia, continuam oferecendo ao público
análises baseadas nos velhos conceitos de ´”Estado nacional”, “poder nacional”,
“relações internacionais”, “livre comércio”, “democracia”, “imperialismo”, “luta de
classes”, “conflitos étnicos” etc., quando é claro que nada disso tem grande relação
com os fatos do mundo atual.
Os acontecimentos mais básicos dos últimos cinqüenta anos são: primeiro, a ascensão
de elites globalistas, desligadas de qualquer interesse nacional identificável e
empenhadas na construção não somente de um Estado mundial mas de uma
pseudocivilização planetária unificada, inteiramente artificial, concebida não como
expressão da sociedade mas como instrumento de controle da sociedade pelo Estado;
segundo, os progressos fabulosos das ciências humanas, que depositam nas mãos
dessas elites meios de dominação social jamais sonhados pelos tiranos de outras
épocas.
Várias décadas atrás, Ludwig von Bertalanffy (1901-1972), o criador da Teoria Geral
dos Sistemas, ciente de que sua contribuição à ciência estava sendo usada para fins
indevidos, já advertia: “O maior perigo dos sistemas totalitários modernos é talvez o
fato de que estão terrivelmente avançados não somente no plano da técnica física ou
biológica, mas também no da técnica psicológica. Os métodos de sugestionamento em
massa, de liberação dos instintos da besta humana, de condicionamento ou controle do
pensamento desenvolveram-se até alcançar uma eficicácia formidável: o totalitarismo
moderno é tão terrivelmente científico que, perto dele, o absolutismo dos períodos
anteriores aparece como um mal menor, diletante e comparativamente inofensivo.”
Em L’Empire Écologique: La Subversion de l’Écologie par le Mondialisme (1998),
Pascal Bernardin explicou em maiores detalhes como a Teoria Geral dos Sistemas vem
servindo de base para a construção de um sistema totalitário mundial, que nos últimos
dez anos, definitivamente, saiu do estado de projeto para o de uma realidade patente,
que só não vê quem não quer. Mas von Bertalanffy não se referia somente à sua
própria teoria. Ele fala de “métodos”, no plural, e o cidadão comum das democracias
nem pode fazer uma idéia da pletora de recursos hoje postos à disposição dos novos
senhores do mundo pela psicologia, pela sociologia etc. Se von Bertalanffy tivesse de
citar nomes, não omitiria o de Kurt Levin, talvez o maior psicólogo social de todos os
tempos, cujo Instituto Tavistock, em Londres, foi constituído pela própria elite global em
1947 com a finalidade única de criar meios de controle social capazes de conciliar a
permanência da democracia jurídica formal com a dominação completa do Estado
sobre a sociedade.
Só para vocês fazerem uma idéia de até onde a coisa chega, os programas
educacionais de quase todas as nações do mundo, em vigor desde há pelo menos
vinte anos, são determinados por normas homogêneas diretamente impostas pela ONU
e calculadas não para desenvolver a inteligência ou a consciência moral das crianças,
mas para fazer delas criaturas dóceis, facilmente amoldáveis, sem caráter, prontas a
aderir entusiasticamente, sem discussão, a qualquer nova palavra-de-ordem que a elite
global julgue útil aos seus objetivos. Os meios usados para isso são técnicas de
controle “não aversivas”, concebidas para fazer com que a vítima, cedendo às
imposições da autoridade, sinta fazê-lo por livre vontade e desenvolva uma reação
imediata de defesa irracional à simples sugestão de examinar criticamente o assunto.
Seria um eufemismo dizer que a aplicação em massa dessas técnicas “influencia” os
programas de educação pública: elas são todo o conteúdo da educação escolar atual.
Todas as disciplinas, incluindo matemática e ciências, foram remoldadas para servir a
propósitos de manipulação psicológica. O próprio Pascal Bernardin descreveu
meticulosamente o fenômeno em Machiavel Pédagogue (1995). Leia e descobrirá por
que seu filho não consegue resolver uma equação de segundo grau ou completar uma
frase sem três solecismos, mas volta da escola falando grosso como um comissário do
povo, cobrando dos pais uma conduta “politicamente correta”.
A rapidez com que mutações repentinas de mentalidade, muitas delas arbitrárias,
grotescas e até absurdas, se impõem universalmente sem encontrar a menor
resistência, como se emanassem de uma lógica irrefutável e não de um maquiavelismo
desprezível, poderia ser explicada pelo simples adestramento escolar que prepara as
crianças para aceitar as novas modas como mandamentos divinos.
Mas evidentemente a escola não é a única agência empenhada em produzir esse
resultado. A grande mídia, hoje maciçamente concentrada nas mãos de mega-
empresas globalistas, tem um papel fundamental na estupidificação das massas. Para
isso, uma das técnicas de emprego mais generalizado hoje em dia é a dissonância
cognitiva, descoberta do psicólogo Leon Festinger (1919-1989). Vejam como a coisa
funciona. Se vocês lerem os jornais americanos de hoje, saberão que Tiger Woods, o
campeão de golfe, um dos cidadãos americanos mais queridos dos últimos tempos,
está agora sob bombardeio cerrado dos jornais e noticiários de TV porque descobriram
que o coitado tinha umas amantes. Escândalo! Horror! A indignação geral ameaça
cortar metade dos patrocínios do adúltero e excluí-lo do rol das “pessoas maravilhosas”
que aparecem em anúncios de tênis, chicletes e dietas miraculosas. Mas há um
detalhe: ao lado dos protestos contra a imoralidade do esportista aparecem ataques
ferozes aos “extremistas de direita” que não aceitam o abortismo, o casamento gay ou
a indução de crianças à deleitação sexual prematura. Os dois códigos morais,
mutuamente contraditórios, são oferecidos em simultaneidade, como igualmente
obrigantes e sacrossantos. Excitado e impelido a todos os desmandos sexuais, mas ao
mesmo tempo ameaçado de character assassination caso venha a praticá-los mesmo
em dose modesta, o cidadão angustiado reage por uma espécie de colapso intelectual,
tornando-se um boboca servil que já não sabe orientar-se a si mesmo e implora por
uma voz de comando. O comando pode ser oco e sem sentido, como por exemplo
“Change!”, mas, quando vem, soa sempre como um alívio.
Acusar os cientistas por esse estado de coisas é tão idiota quanto jogar nas armas a
culpa dos homicídios. Homens como von Bertalanffy, Levin e Festinger criaram
instrumentos que podem servir tanto para a construção da tirania quanto para a
reconquista da liberdade. Nós é que temos a obrigação de tirar essas armas das mãos
de seus detentores monopolísticos, e aprender a usá-las com signo invertido,
libertando o nosso espírito em vez de permitir que o escravizem.

Uma opinião presidencial


Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 28 de outubro de 2009
Há opiniões que não podem ser debatidas, apenas analisadas como sintomas do
estado de alienação que as produziu. Quando, por exemplo, o nosso presidente
celebra como um progresso da democracia o fato de que na eleição do seu sucessor
só haja candidatos de esquerda, é absolutamente impossível que ele próprio ou os
ouvintes que o aplaudem consigam discernir nessa sentença algum sentido lógico, apto
a ser discutido. Tudo o que ela expressa é a confusão de maus sentimentos, mentiras
interiores e subterfúgios psicóticos que há décadas constituem o estado de espírito
dominante do esquerdismo nacional. Não é uma opinião: é um sintoma.
Perguntem apenas “O que ele quis dizer com isso?”, e verão que ele mesmo não o
sabe, nem pode saber.
Estaria ele insinuando que a esquerda, de modo geral e por essência, é mais
democrática que a direita? Ainda que o fosse, nem um semi-analfabeto pode acreditar
que a maneira mais pura de um partido provar seu amor à democracia é excluir os
concorrentes do pleito eleitoral. Mas é igualmente impossível que um cidadão
medianamente informado ignore os feitos ditatoriais da esquerda no século XX,
enormemente mais vastos e sangrentos que os de todas as direitas somadas (mesmo
que se apele ao velho e capciosíssimo expediente de incluir entre as direitas o
nazismo). À luz da História, qualquer associação entre esquerdismo e democracia é
absolutamente inverossímil.
Alegaria ele então que a esquerda, ditatorial em atos, é democrática pelo menos em
teoria e em intenções? Nada o permite. No pensamento de seus clássicos — Marx,
Engels, Lênin e sucessores –, o esquerdismo é ditatorial por princípio, proclamando
mesmo o terrorismo de Estado e o genocídio como necessidades inerentes à
construção do socialismo. Nas suas versões mais brandas — fabianismo e
gramscismo, por exemplo –, os métodos truculentos são apenas substituídos pelo
dirigismo camuflado, pelo controle estatal das consciências, por toda uma engenharia
da exclusão que vai calando lenta e sistematicamente as vozes antagônicas, até que a
sociedade inteira, meio às tontas, se curve, como dizia Gramsci, à “autoridade
onipresente e invisível” do Partido.
Não, não há nenhum pretexto razoável para supor que a esquerda personifique a
democracia, a liberdade ou o Estado de direito. No máximo, ela suporta pacientemente
a ordem democrática, à espera de poder substituí-la um dia por algo que lhe pareça
melhor, seja a ditadura do proletariado, seja a “democracia plebiscitária” de Rousseau,
que não é outra coisa senão a ditadura da maioria enfurecida.
Façamos, por último, a hipótese de que a esquerda, em geral refratária à ordem
democrática por princípio e por hábito, tenha tido seu nome casualmente associado à
idéia democrática no Brasil, pela circunstância excepcional e local da “luta contra a
ditadura” (tal como, na Itália, o antifascismo deu ao PCI, por algum tempo, a fama de
democrata, logo desmentida). Mesmo essa alegação desesperadoramente casuística
não convence. S. Excia., embora não o diga, sabe perfeitamente que nossos terroristas
de esquerda, armados e orientados pelo governo cubano, jamais lutaram por
democracia nenhuma, mas pela extensão do regime de Fidel Castro ao Brasil (tanto
que suas guerrilhas começaram antes do advento do regime militar, só podendo ser
explicadas como reação a ele mediante uma inversão psicótica da cronologia).
Resta, por fim, a hipótese do fingimento proposital: o sr. presidente sabe que o controle
hegemônico da sociedade por uma só corrente ideológica é totalitário, mas, como ele
gosta precisamente disso, decide chamá-lo de “democracia” por ser uma palavra
atraente, boa para servir de camuflagem a tudo o que é mais antidemocrático.
Duvido que S. Excia. seja capaz de tal premeditação maquiavélica. Ele deveu toda a
sua carreira às liberdades democráticas, e não é verossímil que as odeie sinceramente.
Seu mandato está no fim, e ele até agora não mostrou nenhuma vocação pessoal de
ditador (não digo de capomafioso, que é outra coisa).
Que quer então ele dizer? Ele mesmo não o sabe, mas eu o sei: o que ele deseja é o
milagre da coincidentia oppositorum, o advento de um mundo impossível onde o
absoluto controle governamental da sociedade coexista pacificamente com todas as
liberdades e garantias individuais. Aí todos serão felizes.
Mas isso é loucura, dirá o leitor. Precisamente. S. Excia., como em geral os
esquerdistas brasileiros, vive naquele estado mental nebuloso e crepuscular onde
todos os gatos são pardos, todos os quadrados são redondos, dois mais dois são
sempre cinco ou seis e nenhuma palavra dita ou ato praticado tem jamais de responder
pelas conseqüências que desencadeia no mundo real. É o estado de perfeita alienação
da realidade, em que um indivíduo ou grupo, imunizado contra a percepção de seus
crimes e desvarios, pode se entregar gostosamente à auto-adoração narcisística e
sentir-se o portador de todas as virtudes, a encarnação das mais belas esperanças da
humanidade

Ilusões democráticas (I)


Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 14 de agosto de 2015

Um “princípio”, em filosofia, é uma afirmativa auto fundante e universalmente válida,


que portanto não depende de nenhuma outra nem é limitada por quaisquer
considerações externas.
Um mecanismo bem conhecido da mente humana, no entanto, faz com que as
afirmativas mais débeis e incertas sejam tomadas como princípios absolutos
justamente porque os seus propugnadores não sabem fundamentá-las nem são
capazes de atinar com as consequências da sua aplicação. Despida de toda conexão
lógica e de toda ligação com a realidade da experiência, a ideia solta paira no ar como
uma divindade indestrutível, tanto mais hipnoticamente persuasiva quanto mais idiota.
Todos nós gostamos de viver numa democracia. No mínimo, acreditamos, como
Churchill, que ela é o pior dos regimes, excetuados todos os outros. Quando vemos a
facilidade com que ela se autodestrói, cedendo lugar a toda sorte de tiranias, ficamos
consternados e imaginamos que isso se deve à concorrência desleal de concepções
antagônicas. Mas essas concepções não teriam o poder mágico de obscurecer as
vantagens óbvias de viver numa democracia se esta mesma não sofresse de alguma
debilidade intrínseca que a torna vulnerável, mesmo aos ataques mais grosseiros e
imbecis.
A debilidade principal da democracia reside, segundo entendo, no fato de que, sendo
uma excelente ideia prática e nada mais, ela buscou desde o início escorar-se em
fundamentos teóricos falsamente absolutos que a colocam num estado permanente de
autocontradição e têm de ser diariamente negados, relativizados ou atenuados para
que ela possa continuar funcionando. A democracia vive de expedientes
antidemocráticos e sorrisos amarelos.
O primeiro e o mais capenga desses fundamentos é a noção de que o ser humano
nasce investido de “direitos inalienáveis”. Um direito, como demonstrou Simone Weil no
seu majestoso livro L’Enracinement, não é nada senão uma obrigação de alguém mais.
Se digo que as crianças têm o direito à alimentação, significa que alguém tem a
obrigação de alimentá-las. Um direito não é algo que exista em si, é apenas o efeito da
obrigação.
Proclamar um direito sem definir o titular da obrigação correspondente é cuspir bolhas
de sabão, é fingimento histérico. Foi por isso que Deus ditou a Moisés Dez
Mandamentos, dez obrigações, não dez direitos. Mas, quando o Rei Luís XVI disse que
A Declaração dos Direitos do Homem nada seria sem uma Declaração dos Deveres,
cortaram-lhe a cabeça. A democracia começou tomando uma consequência como
princípio e matando quem percebesse a inversão.
Isso não quer dizer que os direitos fossem errados, na prática. O problema é que
nenhuma sociedade pode sobreviver sem impor obrigações. Como as obrigações
foram banidas da esfera dos princípios, a incumbência de defini-las acabou cabendo à
legislação comum, donde resultou a criação desse monstrengo que é o Poder
Legislativo permanente, uma corporação de centenas de pessoas que passam o tempo
todo criando obrigações e proibições para todas as outras. Milhares, centenas de
milhares de obrigações e proibições. Leis em quantidade inabarcável por qualquer
cérebro humano.
Era preciso ser muito sonso para não perceber que por essa via o Estado logo se
tornaria o mediador onipresente de todas as relações humanas, estrangulando a
liberdade em nome da qual os direitos foram proclamados.

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