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TEORIA DO

PROCESSO CIVIL

“sem juridiquês”


Responsável pelo conteúdo: Carlos Xavier. Confira o “Direito Sem Juridiquês” no YouTube, no
Facebook e em www.direitosemjuridiques.com.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................... 8

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................... 10

1 CONCEITOS BÁSICOS ........................................................................................................... 11

1.1 “Teoria Geral do Processo” ou “Teoria do Processo Civil”? ................................................. 11

1.2 Direito material e direito processual. Autonomia do processo civil .................................. 12

1.3 Pressupostos processuais e relação jurídica processual ................................................ 15

1.4 Processo, procedimento e técnicas processuais ............................................................. 16

1.5 Fases processuais ........................................................................................................... 17

1.6 Graus de jurisdição .......................................................................................................... 22

1.7 Decisão interlocutória e sentença. Agravo de instrumento e apelação ........................... 24

1.8 Noções gerais sobre “sentenças” .................................................................................... 25

1.8.1 Extinção do processo com solução do mérito (artigo 487 do novo CPC) .................... 25

1.8.2 Extinção do processo sem solução de mérito (artigo 485 do novo CPC) – sentenças
terminativas ............................................................................................................................. 26

1.8.3 Coisa julgada material e coisa julgada formal .............................................................. 28

1.8.4 Julgamento conforme o estado do processo e “sentença parcial” ............................... 29

1.9 Procedimento comum e procedimentos especiais .......................................................... 31

2 TEORIA ECLÉTICA DA AÇÃO E CONDIÇÕES DA AÇÃO .................................................... 34

2.1 As condições da ação no CPC de 1973 .......................................................................... 38

2.1.1 Possibilidade jurídica do pedido.................................................................................... 38

2.1.2 Legitimidade das partes ................................................................................................ 39

2.1.3 Interesse processual ..................................................................................................... 39

2.2 As condições da ação no novo CPC ............................................................................... 40

2.3 Regime processual de reconhecimento da ausência de condições da ação .................. 42

2.3.1 Matéria de ordem pública .............................................................................................. 42

2.3.2 Ausência de coisa julgada material............................................................................... 42

2.4 Análise crítica. Teoria da asserção .................................................................................. 43

3 O IMPACTO DO ESTADO CONSTITUCIONAL SOBRE O PROCESSO CIVIL ..................... 47

3.1 O fim do Estado Legislativo e o início do Estado Constitucional ..................................... 47

3.2 Neoconstitucionalismo ..................................................................................................... 48


3.3 Hermenêutica jurídica no Estado Constitucional ............................................................. 49

3.3.1 Ideologia dinâmica da interpretação ............................................................................. 49

3.3.2 Técnicas decisórias do controle de constitucionalidade ............................................... 50

3.3.2.1 Interpretação de acordo com a Constituição ............................................................. 50

3.3.2.2 Interpretação conforme à Constituição ...................................................................... 51

3.3.2.3 Declaração de nulidade parcial sem redução de texto .............................................. 51

3.3.2.4 Aplicação direta de um direito fundamental ao caso concreto .................................. 52

3.4 Funções do Estado. Dar tutela aos direitos, especialmente aos fundamentais .............. 52

3.5 Do princípio da inafastabilidade da jurisdição ao direito fundamental de acesso à justiça


e ao direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva ............................................................. 53

3.6 Dizendo as coisas de outro modo. Três ondas renovatórias de acesso à justiça
(Cappelletti e Garth) ................................................................................................................ 57

4 PRINCÍPIOS PROCESSUAIS (OU “NORMAS FUNDAMENTAIS” DO PROCESSO CIVIL) .. 59

4.1 Introdução ........................................................................................................................ 59

4.1.1 A importância dos princípios para o Direito contemporâneo ........................................ 59

4.1.2 O novo Código de Processo Civil e as “normas fundamentais do processo civil” ....... 62

4.2 Artigo 5º, LIV, da Constituição. Devido processo legal .................................................... 64

4.3 Artigo 5º, LV, da CRFB. Princípios do contraditório e da ampla defesa .......................... 65

4.3.1 Conteúdo do princípio do contraditório ......................................................................... 66

4.3.2 A ampla defesa e os “meios e recursos a ela inerentes” .............................................. 66

4.3.2.1 Possibilidade de restrição aos “meios” de defesa ..................................................... 67

4.3.2.2 Possibilidade de restrição a “recursos” (ou: é o duplo grau de jurisdição, em matéria


cível, um direito fundamental?) ............................................................................................... 67

4.4 Artigo 5º, XXXV, da CRFB. Inafastabilidade da jurisdição, acesso à justiça e direito
fundamental à tutela jurisdicional efetiva ................................................................................ 69

4.4.1 Meios alternativos de solução de controvérsias: arbitragem, mediação e conciliação 70

4.4.2 Direito fundamental à razoável duração do processo .................................................. 72

4.4.2.1 Princípios da economia e da celeridade .................................................................... 72

4.5 Princípios da publicidade do processo e da fundamentação das decisões .................... 73

4.6 Inércia da Jurisdição: princípios dispositivo, da demanda e do impulso oficial ............... 74

4.7 Princípios da boa-fé e da cooperação ............................................................................. 75

4.8 Quadro Esquemático ....................................................................................................... 77


5 JURISDIÇÃO ............................................................................................................................ 78

5.1 Os conceitos de jurisdição formulados no contexto do Estado Legislativo ..................... 78

5.2 Em busca de um conceito de jurisdição no Estado Constitucional ................................. 80

6 TUTELA DOS DIREITOS. TUTELA JURISDICIONAL DOS DIREITOS. PROCESSO E


PROCEDIMENTO. TÉCNICA PROCESSUAL ........................................................................... 82

6.1 Introdução. Função do Estado Constitucional. Dar tutela aos direitos ............................ 82

6.2 Compreensão do direito material no Estado contemporâneo. Estabelecimento de


“posições juridicamente protegidas.” Formas de tutela .......................................................... 82

6.3. Tutela declaratória........................................................................................................... 83

6.4 Tutela constitutiva ............................................................................................................ 83

6.5 Esclarecimento necessário. Diferença entre ilícito e dano .............................................. 84

6.6 Formas de tutela que objetivam evitar o acontecimento do dano: tutelas inibitória e tutela
de remoção do ilícito ............................................................................................................... 85

6.7 Forma de tutela diante do dano já realizado. Tutela ressarcitória ................................... 86

6.8 Um exemplo para ajudar a fixar os conceitos .................................................................. 87

6.9 Processo, procedimento e técnica processual ................................................................ 88

6.10 O estudo das classificações das ações (trinária e quinária) .......................................... 90

6.10.1 Tutela declaratória ...................................................................................................... 93

6.10.2 Tutela constitutiva ....................................................................................................... 93

6.10.3 Tutelas inibitória e de remoção do ilícito ..................................................................... 94

6.10.4 Tutela ressarcitória ...................................................................................................... 94

6.11 Retomando o exemplo ................................................................................................... 95

6.12 Um breve olhar sobre o Código de Processo Civil ........................................................ 96

6.13 Algumas noções adicionais sobre as “tutelas provisórias” ............................................ 97

6.13.1 Tutela antecipada ........................................................................................................ 98

6.13.2 Tutela cautelar........................................................................................................... 100

6.13.3 Tutela da evidência ................................................................................................... 103

6.13.4 Tutela de urgência antecedente................................................................................ 105

7 PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS....................................................................................... 108

7.1 Introdução ...................................................................................................................... 108

7.2 Definição tradicional de pressupostos processuais ....................................................... 108

7.3 Primeira aproximação legislativa e classificações ......................................................... 108


7.4 Menção aos pressupostos processuais em espécie ..................................................... 110

7.5 Pressupostos processuais de existência ....................................................................... 111

7.5.1 Pedido e investidura na jurisdição .............................................................................. 111

7.5.2 Citação ........................................................................................................................ 111

7.5.3 Capacidade postulatória ............................................................................................. 112

7.6 Pressupostos processuais de validade .......................................................................... 115

7.6.1 Aptidão da petição inicial ............................................................................................ 115

7.6.2 Imparcialidade do juiz ................................................................................................. 117

7.6.2.1 Impedimento (artigo 144 do novo CPC) .................................................................. 118

7.6.2.2 Suspeição (artigo 145 do novo CPC) ...................................................................... 118

7.6.2.3 Procedimento para verificação e consequências .................................................... 119

7.6.3 Capacidade processual ............................................................................................... 121

7.6.4 Validade da citação ..................................................................................................... 123

7.6.5 Litispendência e coisa julgada .................................................................................... 123

7.7 Vícios decorrentes da inobservância dos pressupostos processuais. Panorama geral 124

7.8 Apreciação crítica ........................................................................................................... 125

8 COMPETÊNCIA E ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA ................................................................. 127

8.1 Introdução ...................................................................................................................... 127

8.1.1 Competência. Fundamentos e definição .................................................................... 127

8.2 Classificações ................................................................................................................ 128

8.2.1 Competência absoluta ................................................................................................ 128

8.2.2 Competência relativa .................................................................................................. 130

8.2.3 A competência no âmbito do microssistema dos Juizados Especiais ........................ 130

8.3 Regime de reconhecimento de incompetência .............................................................. 131

8.4 Conflitos de competência ............................................................................................... 132

8.5 Organização Judiciária. Noções Gerais ......................................................................... 133

8.5.1 O “duplo grau de jurisdição” e as competências dos tribunais ................................... 133

8.5.2 Justiças Estadual e Federal, Comum e Especializada ............................................... 135

8.6 Organização Judiciária e Competência ......................................................................... 136

8.6.1 Justiça Comum Estadual ............................................................................................ 136

8.6.1.1 Justiça Militar Estadual ............................................................................................ 137


8.6.2 Justiça Comum Federal .............................................................................................. 137

8.6.3 Justiça Eleitoral ........................................................................................................... 138

8.6.4 Justiça Militar Federal ................................................................................................. 139

8.6.5 Justiça do Trabalho ..................................................................................................... 139

9 NOÇÕES SOBRE TEORIA DOS PRECEDENTES ............................................................... 142

9.1 Introdução ...................................................................................................................... 142

9.2 Aspectos preliminares de teoria do Direito. Ideologia estática X ideologia dinâmica da


interpretação.......................................................................................................................... 144

9.2.1 Ideologia estática da interpretação. Funções dos “Tribunais Superiores.”


Jurisprudência e súmulas ...................................................................................................... 144

9.2.2 Ideologia dinâmica da interpretação. Funções das “Cortes Supemas” ...................... 145

9.3 Aproximação entre as tradições de civil law e de common law ..................................... 147

9.4 Operacionalização de precedentes. Ratio decidendi e obiter dicta. Precedente X


jurisprudência e súmula. Distinguishing e overruling ............................................................ 149

9.5 Os precedentes no âmbito do controle de constitucionalidade brasileiro...................... 154

9.5.1 O modelo de controle difuso de constitucionalidade brasileiro e a necessidade – que


sempre existiu – de que os precedentes do Supremo Tribunal Federal fossem de
observância obrigatória ......................................................................................................... 155

9.5.2 A importação do modelo de controle concentrado e o papel que a “reclamação”


passou a desempenhar a fim de tentar agregar coerência ao sistema misto de controle de
constitucionalidade brasileiro ................................................................................................ 157

9.6 A perspectiva de “racionalização da jurisdição” introduzida pelas alterações


constitucionais e legislativas brasileiras mais recentes ........................................................ 160

9.7 A forma como o novo Código de Processo Civil disciplina o assunto da “estabilidade,
integridade e coerência da jurisprudência” (artigos 926 e 927) ............................................ 162

9.8 “Julgamentos de casos repetitivos” (artigo 928 do NCPC) e incidente de assunção de


competência .......................................................................................................................... 164

9.8.1 Recursos especial e extraordinário repetitivos. Aspectos gerais ............................... 165

9.8.2 Incidentes de resolução de demandas repetitivas e de assunção de competência.


Aspectos gerais ..................................................................................................................... 167

9.9 O papel conferido pelo novo Código de Processo Civil à reclamação .......................... 169

9.10 Apreciação crítica final à disciplina dada pelo novo CPC aos precedentes em conjunto
com a da reclamação ............................................................................................................ 171

APÊNDICE I .............................................................................................................................. 176


A) Introdução: apresentação da pergunta-chave ................................................................. 176

B) Antecedentes históricos .................................................................................................. 177

C) A controvérsia entre Windscheid e Muther ..................................................................... 177

C.1) Tese. Windscheid. Actio romana = pretensão moderna .............................................. 177

C.2) Antítese. Muther. Direito privado versus direito à fórmula ........................................... 179

C.3) Síntese – Windscheid. Pretensão de direito material versus ação processual ........... 180

APÊNDICE II ............................................................................................................................. 182

A) Direito de agir “abstrato”. Degenkolb/Plósz, Mortara, Couture e Wach .......................... 182

B) A teoria de Chiovenda ..................................................................................................... 184

APÊNDICE III ............................................................................................................................ 186

A) Mas o que a Revolução Francesa tem a ver com o processo civil mesmo? .................. 186

B) Antecedentes históricos .................................................................................................. 186

C) Teoria da separação de poderes estrita. Supremacia da lei. Juiz “boca da lei” ............. 187

D) Liberdade como valor máximo. Limitação dos poderes executórios do juiz ................... 188

E) O papel desempenhado pelo .......................................................................................... 189

F) Correlação das ideias desenvolvidas ao longo deste apêndice com a noção de “processo
civil autônomo” ...................................................................................................................... 190

G) Conclusão ....................................................................................................................... 192

APÊNDICE IV ............................................................................................................................ 194

A) A escola austríaca de economia ..................................................................................... 194

B) A “história libertária” norte-americana ............................................................................. 195

C) Coletivismo X individualismo ........................................................................................... 197

D) Fundamento do libertarianismo: o princípio da não agressão ........................................ 198

E) O déficit ético do Estado em razão do “monopólio da violência” .................................... 198

F) Uma questão mais profunda – o triunfo do iluminismo e a consequente idolatria do


Estado ................................................................................................................................... 199

G) A solução: uma sociedade libertária, ou “anarco-capitalista” ......................................... 200


TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

APRESENTAÇÃO

Esta apostila foi produzida originalmente para a disciplina de “Teoria


Geral do Processo” do curso de Direito da Faculdade Educacional Araucária –
FACEAR.
Com o surgimento do canal “Direito Sem Juridiquês” no YouTube, seu
conteúdo passou a ser divulgado por ali. Assim, a apostila já vem servindo para
ajudar várias pessoas que procuram estudar o processo civil “sem juridiquês.”
Esta versão da apostila mescla o conteúdo original com aquele
produzido para o YouTube, o que inclui o conteúdo dos vídeos e dos resumos
disponibilizados no google drive.
Assim, seu conteúdo vai além do mero “programa” da disciplina de
Teoria Geral do Processo para a qual originalmente foi concebida. Mas isso de
maneira nenhuma é um problema, porque o objetivo do documento é ajudar na
compreensão do processo civil e de seus conceitos gerais (aliás, é isso mesmo
o que procuramos fazer em sala de aula). E isso deixando o “juridiquês” de
lado, trabalhando de forma objetiva e direta com os termos técnicos,
imprescindíveis para o aprendizado do Direito.
Essa proposta está exposta nos dois primeiros vídeos do “Direito Sem
Juridiquês” no YouTube: o vídeo “piloto” do Canal e “ajuizar ou interpor?”.
Portanto, a apostila abordará tanto o conteúdo básico de Teoria Geral do
Processo ou de Teoria do Processo Civil (para a discussão específica desse
problema terminológico, ver o item 1.1, abaixo) quanto noções básicas. Aliás, é
mesmo um tanto difícil tentar estudar a teoria de uma determinada matéria sem
a compreensão de certos conceitos básicos.
Por isso, a Lição 1, abaixo, tratará destes conceitos básicos, que podem
ser relativos apenas à estrutura e desenvolvimento do processo (como o
estudo das fases processuais ou a diferença entre uma sentença e uma
decisão interlocutória), ou mesmo teóricos, como a diferença entre direito
material e direito processual, que é uma premissa básica para compreensão do
processo civil e da teoria do processo.

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

O assunto da autonomia do processo civil também será abordado na


Lição 1, da forma mais simples possível.
Mas é evidente que há um aprofundamento teórico por trás desses
conceitos básicos com os quais trabalhamos aqui. Eles são apenas a “ponta do
iceberg.” Por isso, um maior aprofundamento teórico pode ser encontrado nos
apêndices da apostila, que tratam da controvérsia entre Windscheid e Muther
(Apêndice I, abaixo), das teorias da ação (Apêndice II, abaixo), e do impacto
da ideologia pós-Revolução Francesa, sobre o processo civil (Apêndice III,
abaixo).
A própria apostila, portanto, conta com duas camadas: a primeira,
composta pelas lições, que permite uma aproximação mais direta e objetiva
aos conceitos básicos do processo e à teoria do processo civil, e a segunda,
composta pelos apêndices, que permite um maior aprofundamento teórico,
para quem necessitar ou tiver interesse em fazê-lo.
Como já foi possível notar, as referências a sites da internet e,
especialmente, aos vídeos do YouTube serão feitas diretamente no texto da
apostila, por meio de hiperlinks. Por sua vez, as expressões “abaixo” e “acima”,
quando fizerem menção ao conteúdo da apostila, trazem referências cruzadas
(basta clicar sobre a palavra para ser remetido diretamente ao conteúdo em
questão). Exatamente por isso recomenda-se que a apostila seja utilizada em
meio eletrônico, para maior aproveitamento de todos os seus recursos.1
Por outro lado, como se trata de uma apostila, não se tem qualquer
pretensão de ineditismo ou inovação, e a sua disponibilização não tem
qualquer finalidade comercial. Trata-se, apenas, de um resumo dos assuntos,
com uma abordagem que – imagina-se – permitirá a melhor compreensão do
conteúdo.

1
Nada impede, obviamente, que o material seja impresso por aqueles que têm preferência por
ler em papel. A observação apenas destaca que a apostila tem o seu uso potencializado em
meio eletrônico.

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INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

Qualquer livro contemporâneo que trate sobre Teoria do Processo


Civil, Processo de Conhecimento e Teoria dos Precedentes, qualquer obra
de Comentários ao Novo Código de Processo Civil ou qualquer Novo
Código de Processo Civil Comentado podem auxiliar no estudo, na
compreensão e no acompanhamento da matéria. Recomendam-se, no entanto,
os seguintes livros:
- Marinoni, Arenhart e Mitidiero. Novo Curso de Processo Civil,
volumes 1 (Teoria do Processo Civil) e volume 2 (Tutela dos
Direitos Mediante Procedimento Comum)
- Idem. O Novo Processo Civil
- Idem. Novo Código de Processo Civil Comentado
- Luiz Guilherme Marinoni. Precedentes Obrigatórios
- Carlos Eduardo Rangel Xavier. Reclamação Constitucional e
Precedentes Judiciais

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1 CONCEITOS BÁSICOS

Como já mencionado, esta primeira lição será dedicada a lidar com


conceitos básicos, necessários tanto para compreensão do processo civil e seu
funcionamento quanto para uma primeira aproximação à teoria do processo.

1.1 “Teoria Geral do Processo” ou “Teoria do Processo Civil”?

Já podemos começar com uma pergunta: vamos estudar “Teoria Geral


do Processo” ou “Teoria do Processo Civil”?
A pergunta pode parecer sem maior sentido, mas há muita coisa por trás
de uma simples terminologia. Como alguém já disse, “ideias têm
consequências.”
A ideia de desenvolver “teorias gerais” é típica do positivismo jurídico
tradicional. Tratando o Direito como uma ciência exata, o jurista, descrevendo a
ordem jurídica, poderia demonstrar a existência de categorias gerais nas quais
enquadraria os diversos conceitos por ele também demonstrados.
Essa peculiar forma de ver o Direito não se manteve após a segunda
metade do século passado, mas grande parte da influência da ideologia
positivista ainda se faz sentir nos dias de hoje. Esse assunto é melhor
aprofundado no Apêndice III, abaixo, e na Lição 3, abaixo.
Neste momento basta nós refletirmos que o abandono do positivismo
jurídico tradicional e de suas pretensões de universalização, de generalidade e
de abstração no campo científico deveria levar a abandonarmos, também, a
terminologia que é própria a esse tipo de mentalidade. E esse já seria um bom
motivo para deixarmos o adjetivo “geral” de lado.
Mais especificamente, hoje, no Brasil, a ideia uma Teoria “Geral” do
Processo está ligada à pretensão de demonstrar uma teoria que seja comum
ao processo civil, criminal, trabalhista e administrativo. Não se tem, aqui,
tamanha pretensão.
Por isso ficamos com a ideia de uma “Teoria do Processo Civil” –
somente isso. Mas não devemos esquecer que muitas disciplinas nas

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“sem juridiquês”

Faculdades de Direito, inclusive aquela que adota esta apostila como “livro-
texto,” ainda usam a terminologia “Teoria Geral do Processo.” Esse é também
o motivo pelo qual até mesmo em alguns vídeos do Canal no YouTube é
utilizada a expressão “Teoria Geral do Processo.”

1.2 Direito material e direito processual. Autonomia do processo civil

A compreensão da diferença entre direito material e direito processual


está diretamente ligada à ideia de autonomia do processo civil.
Na verdade, até a segunda metade do Século XIX, não fazia sentido
falar na diferença entre direito material e direito processual, porque o processo
era compreendido como um simples desdobramento do direito material. Em
outras palavras, as pessoas não viam, até aquele momento, diferença entre
direito material e direito processual.
Foi a controvérsia entre Windscheid e Muther, entre os anos 1856 e
1857, que marcou a separação entre o direito material e o direito processual. A
esse assunto é dedicado o Apêndice I, abaixo. Posteriormente,
desenvolveram-se as chamadas “teorias da ação,” que são tratadas no
Apêndice II, abaixo. O fato de as pessoas agora teorizarem em cima do que
acontece quando uma ação é proposta demonstra a autonomia do processo
civil.
Mas disso trataremos no momento próprio. Vamos avançar para
compreendermos a diferença entre direito material e direito processual.
Na verdade, já andamos metade do caminho, pois já compreendemos
que só faz sentido falar nessa diferença a partir do momento em que
compreendemos que o processo civil é autônomo em relação ao direito
material.
A primeira coisa que precisamos fazer para entender o que é o direito
material é não confundir direito material com direito real. Os direitos reais são
direitos que uma pessoa tem em relação a uma coisa, como o direito de
propriedade. O direito real é apenas uma espécie de direito material.

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Direito material, também chamado de direito substancial, é aquele direito


que diz respeito aos bens da vida, ou, simplesmente, bens jurídicos. Se nós
começarmos na Constituição, com os direitos fundamentais materiais, nós
vamos pensar em direito à vida, direito à saúde, direito ao trabalho, e assim por
diante. Se nós formos para o Código Civil, que é um exemplo de lei de direito
material, nós vamos pensar no direito de família, nos direitos reais (sobre
coisas), nos direitos de personalidade, nas obrigações, nos contratos, e assim
por diante.
Em resumo, o direito material trata do conteúdo dos direitos. Trata dos
bens da vida, e da titularidade destes bens da vida por uma pessoa.
Outra maneira de compreender, também, é que o direito material trata
dos fatos jurídicos, que são aquelas situações que o Direito separa, dentre
todos os fatos que ocorrem no dia-a-dia, para que sobre eles incidam normas
jurídicas.
O processo, por sua vez, é apenas um instrumento por meio do qual os
bens da vida, os bens jurídicos, são protegidos. Grave isso, por favor: o
processo é um instrumento do direito material. Na verdade, o processo é um
dentre vários meios pelos quais os bens jurídicos são protegidos. Para
entendermos melhor isso, devemos compreender o conceito de “jurisdição” (ver
a Lição 5, abaixo).
Já sabemos que o processo é esse instrumento de proteção do direito
material. O direito processual é o conjunto de regras que regulamenta o
processo.
Já tratamos do Código Civil como uma lei de direito material. Podemos
compará-lo, agora com o Código de Processo Civil para compreendermos que
este último, o Código de Processo Civil, é uma lei de direito processual.
Graficamente, então, podemos visualizar, de um lado, o direito material
e, de outro, o processo e o direito processual. Já se mencionou que a
controvérsia entre Windscheid e Muther foi o marco inicial da autonomia do
processo, e ela fez isso ao permitir que se visualizasse, de um lado, a
pretensão de direito material e, de outro, a ação processual. Novamente,
remete-se ao Apêndice I, abaixo.

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Direito material Direito processual


“conteúdo” do direito instrumento do direito material

Exemplo de lei de direito material: Exemplo de lei de direito processual


Código Civil Código de Processo Civil

Mas a melhor maneira de visualizarmos a autonomia relativa do


processo civil é pensarmos na sentença de improcedência do pedido (e calma,
se você já está se perguntando o que é isso, clique no hiperlink ou confira o
item 1.8.1, abaixo), que é um dos alicerces das teorias da ação tratadas no
Apêndice II, abaixo.
Se o juiz pode julgar o pedido do autor improcedente (e isso acontece
todos os diais), então é óbvio que o autor não precisa ter o direito material para
ajuizar a ação. Isso nos demonstra que a ação é abstrata. “Abstrata” porque a
sua existência não depende da existência do direito material.
Se a ação é abstrata, então o processo civil é autônomo em relação ao
direito material. Mas cuidado, essa autonomia é apenas relativa. Relativa, em
primeiro lugar, porque toda autonomia científica, no Direito, é sempre relativa.
E, em segundo lugar, porque o processo não pode ser um fim em si mesmo.
Essa observação é importante porque a ideologia pós-Revolução
Francesa (Apêndice III, abaixo) e o positivismo jurídico praticamente
transformaram o processo num "fim em si mesmo”.
Dizer que o processo é um “fim em si mesmo” é dizer que nós estamos
apenas preocupados em estudar o processo e aplicar as normas processuais
sem nos preocuparmos com o direito material, sem darmos importância para as
necessidades do direito material. Isso é tratar o processo como um fim em si
mesmo.

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O que permitiu que nós repensássemos o processo a partir das


necessidades do direito material foi a chegada do Estado Constitucional, o que
é considerado na Lição 3, abaixo.

1.3 Pressupostos processuais e relação jurídica processual

Em 1868, Oskar Büllow demonstrou, a partir da análise dos


pressupostos processuais, a existência de uma relação jurídica processual,
envolvendo autor, Estado e réu, e que é diferente do direito material.
Registra-se que os sujeitos dessa relação jurídica processual seriam as
partes (autor e réu) e o juiz.
Não é nosso objetivo aprofundarmos a ideia de pressupostos
processuais neste momento. Isso será feito na Lição 7, abaixo. Por ora, basta
sabermos que Büllow demonstrou que o processo tem requisitos próprios para
sua formação e desenvolvimento, e que estes requisitos, previstos na lei
processual, não se confundem com o direito material. Novamente vemos, de
forma gráfica, o direito material de um lado e o processo e o direito processual
de outro.

Direito material Direito processual

Pressupostos processuais
Relação jurídica material +
Relação jurídica processual

Note-se que a tese de Büllow é de 1868, dez anos após a controvérsia


entre Windscheid e Muther (Apêndice I, abaixo). Assim, os pressupostos

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processuais e a relação jurídica processual desempenharam um papel


importante no desenvolvimento histórico da autonomia do processo civil.
Ambas as ideias, tanto de pressupostos processuais quanto de relação
jurídica processual, são muito questionadas hoje em dia, por estarem ligadas a
uma visão excessivamente formalista do processo. Mas não é nosso objetivo
aprofundarmos essa abordagem crítica neste momento, exatamente porque o
assunto apenas foi mencionado para demonstrar o desenvolvimento histórico
da noção de autonomia do processo civil e auxiliar na visualização gráfica da
separação entre processo e direito material.

1.4 Processo, procedimento e técnicas processuais

É importante estudarmos ainda, neste início, os conceitos de processo,


procedimento e técnica processual.
Processo é uma sequência de atos ordenados visando a um fim. O fim
de todo o processo é entregar aquilo que o direito material promete. Em outras
palavras, o objetivo do processo é efetivar a tutela jurisdicional dos direitos (ou
seja, possibilitar que as formas de tutela prometidas pelo direito material se
concretizem processualmente).
Procedimento é a forma em que o processo se estrutura. Normalmente,
os diferentes procedimentos são previstos em lei, atendendo-se às
peculiaridades do direito material. A lei prevê, por exemplo, o procedimento
comum (ordinário e sumário) e diversos procedimentos especiais (como os
procedimentos para tutela da posse, para a desapropriação, etc.).
Técnicas processuais, por fim, são os mecanismos destinados à
produção de resultados úteis por meio do processo. Ou seja, a maneira como o
processo vai, efetivamente, alterar a realidade dos fatos.
Esses assuntos serão retomados no item 6.9, abaixo, para maior
aprofundamento.

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1.5 Fases processuais

Neste nosso estudo de conceitos básicos, chegamos agora ao momento


de termos uma visão panorâmica do processo. Vamos ver o processo do início
ao fim. Para isso, vamos estudar as chamadas fases processuais.
Em outras palavras, nós estudamos as fases processuais para
compreendermos o que é necessário, normalmente, para que um processo se
desenvolva até o fim.
Registra-se que quando um processo não se desenvolve até o seu fim,
chamamos isso de “julgamento conforme o estado do processo.” Esse
“julgamento conforme o estado do processo” pode resolver o mérito do
processo ou não (veja-se o item 1.8, abaixo). Por ora, basta sabermos que
a extinção sem solução de mérito ocorre quando acontece alguma coisa não
esteja de acordo com as exigências da lei processual (como a falta de um
pressuposto processual, assunto já mencionado). Quando um processo tem
uma falha desse tipo e é encerrado, chamamos isso de extinção sem solução
de mérito (artigo 485 do novo CPC).2
O contrário da extinção sem solução de mérito, a extinção com solução
de mérito, ocorre quando o juiz diz qual das partes tem razão (artigo 487, I, do
novo CPC).3 Resolver o mérito da ação, então, é dizer quem tem razão, se o
autor ou o réu. Aqui vamos considerar o que deve acontecer para que um
processo chegue ao final e o juiz resolva o mérito, aprecie o conteúdo do direito
material, embora seja possível, também, que haja o chamado “julgamento
antecipado do mérito” (então aqui nós estamos tratando da regra geral, do

2
“Art. 485. O juiz não resolverá o mérito quando: I - indeferir a petição inicial; II - o processo
ficar parado durante mais de 1 (um) ano por negligência das partes; III - por não promover os
atos e as diligências que lhe incumbir, o autor abandonar a causa por mais de 30 (trinta) dias;
IV - verificar a ausência de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular
do processo; V - reconhecer a existência de perempção, de litispendência ou de coisa julgada;
VI - verificar ausência de legitimidade ou de interesse processual; VII - acolher a alegação de
existência de convenção de arbitragem ou quando o juízo arbitral reconhecer sua competência;
VIII - homologar a desistência da ação; IX - em caso de morte da parte, a ação for considerada
intransmissível por disposição legal; e X - nos demais casos prescritos neste Código.”
3
“Art. 487. Haverá resolução de mérito quando o juiz: I - acolher ou rejeitar o pedido formulado
na ação ou na reconvenção;”

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desenvolvimento do processo por todas as suas fases; se você quiser saber


como é possível o julgamento antecipado do mérito, basta clicar no hiperlink).
Até aqui fizemos um parêntesis para mencionar o julgamento conforme o
estado do processo e as ideias de resolver ou não o mérito. Agora vamos
considerar, propriamente, as fases processuais.
Um processo tem as seguintes fases: postulatória, organizatória (ou
ordinatória),4 instrutória, decisória, recursal e executória (ou executiva), que
hoje o pessoal gosta de chamar de fase de “cumprimento de sentença.”
Na fase postulatória, o autor apresenta o seu pedido, o que ele faz na
petição inicial. Na petição inicial o autor apresenta os fatos e os fundamentos
jurídicos do pedido (ao que se dá o nome de “causa de pedir”), e formula o
pedido.
Após o protocolo da petição inicial pelo autor, o réu é citado. Citação é o
ato processual que dá conhecimento do processo ao réu e o chama para
apresentar defesa. A citação é um ato processual muito importante, porque
está diretamente ligada aos direitos fundamentais à ampla defesa e ao
contraditório. Para poder se defender adequadamente, o réu precisa tomar
conhecimento da ação.
Hoje, o novo CPC prevê, obrigatoriamente, a realização de uma
audiência de conciliação (artigo 334),5 então o réu é citado para comparecer a
esta audiência de conciliação. Assim, o prazo de 15 dias que o réu tem para
contestar o pedido será contado em função da audiência de conciliação.
Se ocorrer a audiência, mas não ocorrer a conciliação, o prazo de 15
dias para a contestação do réu conta da data da audiência. Se a audiência não
ocorrer porque ambas as partes expressaram manifestamente não terem

4
O primeiro vídeo do canal, sobre as fases processuais, não abordou a fase ordinatória, como
forma de simplificar a exposição. Assim, posteriormente a fase ordinatória foi objeto de um
vídeo específico.
5
“Art. 334. Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de
improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação
com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20
(vinte) dias de antecedência.”

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interesse na conciliação, então o prazo para contestação passa a contar da


data em que o réu protocolou sua petição dizendo que não tinha interesse.
A apresentação da contestação, pelo réu, encerra a fase postulatória.
Entre a fase postulatória e a fase instrutória, é o momento de o processo
ser organizado. Por isso, temos aquela que é chamada de fase organizatória –
ou fase ordinatória.
Após a organização do processo, temos, se for o caso (já que pode
ocorrer o julgamento conforme o estado do processo), a fase instrutória, na
qual os fatos delimitados pelo autor e pelo réu serão objeto de prova.
Se a prova for documental, os documentos deverão ser juntados já com
a petição inicial e com a contestação. Mas outros tipos de prova podem ser
produzidos: podem ser ouvidas as partes e testemunhas (o que acontece numa
outra audiência, chamada de audiência de instrução), pode ser necessária a
realização de uma perícia, e assim por diante.
Se os documentos juntados pelas partes já forem suficientes para provar
os fatos, ou se não houver discordância das partes a respeito dos fatos, então
não será necessário ingressar na fase instrutória e será proferida,
imediatamente, a sentença. O nome disso, segundo o Código de Processo
Civil, como já mencionamos é “julgamento antecipado do mérito,” uma das
modalidades de “julgamento conforme o estado do processo.”
Após a fase instrutória, vem a fase decisória. Na fase decisória, o juiz vai
proferir a sentença, resolvendo o mérito do processo, dizendo quem tem razão.
Como regra geral, o juiz apenas vai resolver o mérito após a observância da
ampla defesa e do contraditório (quer dizer, o réu tem que ter tido a
possibilidade de se defender e as partes devem debater a respeito dos fatos e
do direito) e após a realização de provas.
A isso se chama de cognição exauriente. Cognição exauriente porque
houve toda a possibilidade de que as partes discutissem e que os fatos fossem
provados.
Mas o processo não termina na fase decisória. Após essa, vem a fase
recursal. A parte prejudicada pode interpor recurso ao 2º grau de jurisdição. No
processo comum, o nome do recurso interposto contra a sentença é apelação.

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No 2º grau, os recursos são apreciados por Tribunais e, normalmente, sempre


por mais de um juiz (nos tribunais de 2º grau, os juízes são chamados de
“Desembargadores”).
Mas a fase recursal não para por aí, pois pode haver recurso para as
chamadas “cortes de sobreposição,” que no processo comum são o Superior
Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal.
Para um maior aprofundamento do assunto dos graus de jurisdição,
veja-se o item seguinte.
Apenas após esgotarem-se todas as possibilidades de recurso é que
ocorre o chamado “trânsito em julgado.” Trânsito em julgado é sinônimo da
impossibilidade de interposição de recursos.
Após o trânsito em julgado da sentença segue a fase de execução (ou,
se preferir, o “cumprimento de sentença”), na qual a realidade fática vai ser
alterada. É possível, no entanto, que seja feita a “execução provisória da
sentença” (antes do trânsito em julgado), ou mesmo que a realidade fática seja
alterada, pelo processo, antes da sentença, naquilo que chamamos
de antecipação de tutela.

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Fases Processuais

Petição inicial
+
Citação do réu
1) Fase Postulatória +
Audiência de conciliação
+
Contestação

2) Fase Ordinatória “Organização” do processo, antes da


produção de provas

3) Fase Instrutória Produção de provas


[audiência de instrução]

4) Fase Decisória Sentença


[cognição exauriente]

Recurso ao 2° grau
(apelação)
5) Fase Recursal e aos “tribunais de sobreposição”
(STJ – Recurso especial;
STF – Recurso extraordinário)

6) Fase Executória, ou Executiva Alteração da realidade dos fatos, após


(“cumprimento de sentença”) o “trânsito em julgado”
[exceções: “execução provisória” da
sentença e antecipação de tutela]

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Essa é a visão panorâmica do processo. Mas esse estudo nos introduz a


necessidade de considerarmos, ainda, algumas outras ideias básicas (você já
assistiu aos vídeos sobre estes assuntos se clicou nos hiperlinks...). A primeira
é a ideia de graus de jurisdição e é segunda é o conceito de sentença, com
todas as implicações para sua melhor compreensão (diferença entre sentença
e decisão interlocutória, solução ou não do mérito, julgamento conforme o
estado do processo e coisa julgada material e formal). Vamos considerar esses
assuntos logo na sequência do texto.
Já a antecipação de tutela não será considerada especificamente neste
momento, porque será estudada em conjunto com as demais “tutelas
provisórias” no item 6.13, abaixo – no entanto, caso você esteja curioso(a), o
hiperlink vai levá-lo(a) diretamente para a playlist do Canal sobre o tema.

1.6 Graus de jurisdição

O processo inicia no 1º grau de jurisdição, que é exercido por um único


juiz (“juiz singular”). Os recursos contra as decisões de 1º grau (sentenças ou
decisões interlocutória – ver o item seguinte) são apreciados pelos tribunais de
2º grau. Para um maior detalhamento sobre o funcionamento do 1º e do 2º
graus, ver o item 8.5, abaixo.
No Brasil, a grande característica do 2º grau de jurisdição é que nele é
possível não somente a revisão ampla do direito (tese jurídica) reconhecido
pelo juiz de 1º grau, mas também o reexame dos fatos e das provas. É claro
que isso depende de provocação da parte prejudicada em seu recurso, o que
se chama de “efeito devolutivo.” “Devolutivo” porque o recurso “devolve” ao
tribunal a matéria impugnada pela parte (“devolver” aqui funciona como
“submeter à apreciação”).
Isso significa que o juiz de 1º grau pode apreciar as provas de uma
maneira, entendendo que a situação fática foi uma, e o tribunal de 2º grau
pode, examinando as mesmas provas, entender que os fatos foram outros, ou
mesmo considerar provas que não tenham sido avaliadas pelo juiz de 1º grau.

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Por exemplo, numa ação que discute responsabilidade civil por acidente
de trânsito o juiz de 1º grau pode entender que o réu é culpado pelo acidente e
condená-lo a indenizar o autor e o tribunal de 2º grau, apreciando a apelação
do réu, pode entender que a responsabilidade pelo acidente foi do autor e
reformar a sentença para julgar improcedente o pedido.
Nos tribunais, as decisões normalmente são colegiadas (quer dizer,
tomadas por mais de um juiz, que nos tribunais de 2º grau são chamados de
“desembargadores”, e nos “tribunais superiores,” de “ministros”). As decisões
colegiadas dos tribunais são chamadas de “acórdãos”. Mas possível, em
situações expressamente previstas na lei (artigo 932, III, IV e V, do novo
CPC)6 que o recurso seja resolvido pelo próprio relator. Essa decisão do relator
que resolve o recurso é chamada de “decisão monocrática” (“monocrática”
porque é singular; não é colegiada).
Após o julgamento pelo 2º grau, pode caber recurso aos tribunais de
sobreposição. Esses tribunais, no processo comum, são o Superior Tribunal de
Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF). O recurso ao STJ é
chamado de recurso especial (REsp) e o recurso ao STF é chamado de
recurso extraordinário (RE).
É importante sabermos que o STJ e o STF não funcionam (ao menos
não na teoria) como 3º ou 4º graus de jurisdição. Por isso, é lamentável a
cultura que há entre os advogados brasileiros de tentar levar, a todo custo, a
sua causa a ser apreciada por estes tribunais.
Se o STJ e o STF não são 3º e 4º graus de jurisdição, isso significa que
eles não podem reexaminar, em recursos especial e extraordinário, os fatos e
as provas do processo. Na verdade, estes recursos têm hipóteses de

6
“Art. 932. Incumbe ao relator: [...] III - não conhecer de recurso inadmissível, prejudicado ou
que não tenha impugnado especificamente os fundamentos da decisão recorrida; IV - negar
provimento a recurso que for contrário a: a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior
Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal; b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal
ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; c) entendimento
firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência; V
- depois de facultada a apresentação de contrarrazões, dar provimento ao recurso se a decisão
recorrida for contrária a: a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de
Justiça ou do próprio tribunal; b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo
Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; c) entendimento firmado
em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;”

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cabimento bem específicas. Não é nosso objetivo estudarmos cada uma delas
aqui, mas, para termos uma noção geral, basta sabermos que a principal
função do STJ é interpretar a lei federal e a principal função do STF é
interpretar a Constituição.
Assim, a principal hipótese de cabimento do recurso especial (STJ) é a
contrariedade à legislação federal e a do recurso extraordinário (STF) é a
contrariedade à Constituição. Para um maior aprofundamento do perfil atual
destes tribunais, veja-se a Lição 9, mais especificamente, o item 9.2.2, abaixo.

1.7 Decisão interlocutória e sentença. Agravo de instrumento e apelação

Vamos retornar agora ao 1º grau de jurisdição para aprofundarmos a


diferença entre os dois tipos de decisões que podem ser proferidas nesta fase
do processo: decisões interlocutórias e sentenças.
A sentença é o tipo de decisão que põe fim ao processo com base nos
artigos 485 e 487 do novo CPC, hipóteses que serão estudadas no item
seguinte. Outra hipótese de prolatação de sentença é a extinção da execução.
A fase executória, portanto, também se encerra com uma sentença. O recurso
cabível contra a sentença, no processo comum, é o recurso de apelação.
As decisões interlocutórias são decisões que resolvem questões
incidentais, mas que não implicam a extinção do processo. Exemplos de
decisões interlocutórias são as decisões que concedem antecipação de tutela
ou que indeferem produção de determinada prova.
O recurso cabível contra decisões interlocutórias é chamado de agravo
de instrumento. O novo Código de Processo Civil implementou sensíveis
diferenças no assunto da recorribilidade das decisões interlocutórias
(possibilidade de interposição de recurso contra decisões interlocutórias): ele
acabou com um recurso chamado agravo retido, e limitou o agravo de
instrumento a hipóteses taxativas. Isso significa que somente pode ser
interposto agravo de instrumento contra as decisões previstas expressamente
no artigo 1.015 do novo CPC.

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Assim, nas situações que mencionamos antes como exemplo, a decisão


que concede antecipação de tutela pode ser objeto de agravo de instrumento
(artigo 1.015, I), mas a decisão que indefere a produção de determinada
prova, não (não está prevista no artigo 1.015). Nessa última hipótese, caso a
parte que teve a prova indeferida for sucumbente (quer dizer, derrotada), ela
deverá levantar a questão no seu recurso de apelação, contra a sentença.
A taxatividade das hipóteses de cabimento do agravo de instrumento é
algo que tem sido muito discutido pelos autores de processo civil. Registra-se
aqui, por parecer a mais ponderada, a corrente que defende admitir uma
ampliação das hipóteses de cabimento do agravo de instrumento ao menos por
analogia.

1.8 Noções gerais sobre “sentenças”

Para que esta abordagem inicial faça total sentido, falta ainda aprofundar
algumas outras ideias que estão ligadas ao conceito de “sentença” e que já
foram mencionadas de passagem ao longo do texto.

1.8.1 Extinção do processo com solução do mérito (artigo 487 do novo


CPC)

A ideia básica por trás da diferença entre resolver ou não o mérito é


simples: quando o juiz resolve o mérito, ele diz quem tem razão, ele aprecia a
relação de direito material. Se o autor tiver razão, o pedido será julgado
procedente; se o réu tiver razão, o pedido será julgado improcedente; se cada
uma das partes tiver um pouco de razão, o pedido será julgado parcialmente
procedente. Essas hipóteses estão no inciso I do artigo 487 do novo CPC.
Mas a solução do mérito não trata apenas de procedência do pedido. O
reconhecimento da prescrição ou da decadência, o acordo realizado pelas
partes, o reconhecimento da procedência do pedido pelo réu ou a renúncia do
autor à pretensão são outras hipóteses de resolução do mérito. Elas estão nos
incisos II e III do artigo 487 do novo CPC.

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1.8.2 Extinção do processo sem solução de mérito (artigo 485 do novo


CPC) – sentenças terminativas

Por outro lado, quando o processo tem algum tipo de vício, algum tipo de
defeito formal que não pode ser resolvido, temos então a extinção sem solução
de mérito. Por causa de alguma falha processual o juiz não pode apreciar o
mérito, não pode resolver a relação de direito material, e o processo precisa ser
extinto. A extinção do processo sem solução de mérito está prevista no artigo
485 do novo CPC. Os processualistas chamam a sentença que extingue o
processo sem solução de mérito de sentença terminativa.
Se for possível corrigir o defeito formal que levou à extinção do
processo, então a ação pode ser proposta novamente (ver o item seguinte).
Por exemplo, se o processo for extinto sem solução de mérito por falta de
representação por advogado, esse vício pode ser corrigido. Mas se o processo
for extinto por ofensa à coisa julgada (o que ocorre quando se repete uma ação
que já foi encerrada), então é óbvio que este vício não tem como ser corrigido
numa outra ação.
A primeira hipótese de extinção sem solução de mérito ocorre quando o
juiz indeferir a petição inicial (inciso I do artigo 485). As hipóteses de
indeferimento da petição inicial estão previstas no artigo 330 do Código.7
Neste momento destacamos a falta de legitimidade e de interesse (incisos II e
III). Essas mesmas hipóteses estão previstas aqui no inciso VI do artigo 485,
e tratam daquelas situações que tradicionalmente são chamadas de “condições
da ação.” A esse respeito, ver a Lição 2, abaixo.

7
Art. 330. A petição inicial será indeferida quando: I - for inepta; II - a parte for manifestamente
ilegítima; III - o autor carecer de interesse processual; IV - não atendidas as prescrições dos
arts. 106 e 321. § 1º Considera-se inepta a petição inicial quando: I - lhe faltar pedido ou causa
de pedir; II - o pedido for indeterminado, ressalvadas as hipóteses legais em que se permite o
pedido genérico; III - da narração dos fatos não decorrer logicamente a conclusão; IV - contiver
pedidos incompatíveis entre si. § 2º Nas ações que tenham por objeto a revisão de obrigação
decorrente de empréstimo, de financiamento ou de alienação de bens, o autor terá de, sob
pena de inépcia, discriminar na petição inicial, dentre as obrigações contratuais, aquelas que
pretende controverter, além de quantificar o valor incontroverso do débito. § 3º Na hipótese do
§ 2º, o valor incontroverso deverá continuar a ser pago no tempo e modo contratados.”

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Os incisos II e III do artigo 485 tratam, respectivamente, da paralisação


do processo por 1 ano por negligência das partes (e, preste atenção, é de
ambas as partes, porque mesmo que o autor não faça mais nada para o
processo andar o réu pode ter interesse na solução da causa, para obter uma
sentença de improcedência) e por abandono da causa pelo autor (agora sim,
só pelo autor). O abandono da causa acontece quando o autor, intimado para
fazer algo no processo, fica inerte por 30 dias. A perempção, mencionada no
inciso V e objeto de previsão expressa no artigo 486, § 3º, ocorre quando o
autor abandonar a causa três vezes. Nessa hipótese ele não poderá propor
novamente a ação, e é isso que é chamado de “perempção.”
O inciso IV trata da falta dos pressupostos processuais, assunto objeto
da Lição 7, abaixo. Por ora, é suficiente mencionar que os pressupostos
processuais, tradicionalmente, são vistos como requisitos formais do próprio
processo, mas já vimos que também essa compreensão tradicional é passível
de críticas.
Pense num exemplo simples. Para o autor promover a ação, como regra
geral, ele precisa contratar um advogado. Isso está ligado ao pressuposto
processual chamado de “capacidade postulatória.” Se o juiz verificar que o
autor não está representado por advogado, ele vai intimar o autor para
regularizar a situação. Mas, se o autor não regularizar essa situação, então o
processo será extinto sem solução de mérito.
O inciso V do artigo 485 também trata de pressupostos processuais,
mas dos pressupostos processuais chamados negativos (que tem que estar
ausentes para que o processo possa ser válido), a perempção, a litispendência
e a coisa julgada. Note a diferença: o inciso IV fala da extinção do processo
quando estiverem ausentes os pressupostos processuais e o inciso V fala da
extinção do processo quando estiverem presentes a perempção, a
litispendência e a coisa julgada.
A “legitimidade e o interesse,” previstos no inciso VI do artigo 485, são
as tradicionais condições da ação. Nós vamos estudar esse assunto na Lição
2, abaixo, mas podemos notar desde já a conjugação desse inciso do artigo
485 com os incisos II e III do artigo 330 nos aponta para a teoria da asserção

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(segundo a qual a presença das condições da ação tem que ser verificada pelo
juiz no começo do processo, a partir das afirmações do autor).
A escolha das partes pela arbitragem, se o direito material for do tipo
patrimonial e disponível, afasta a possibilidade de prestação jurisdicional a
respeito do mérito do direito. Por isso nós temos o inciso VII do artigo 485.
Sobre a arbitragem, ver o item 4.4, abaixo.
O inciso VIII do artigo 485 trata da desistência da ação pelo autor. A
respeito da diferença entre desistência da ação e renúncia a pretensão, veja,
adiante, o item sobre coisa julgada material e coisa julgada formal.
Se uma das partes morrer e a ação for intransmissível aos herdeiros,
então o processo também deve ser extinto sem solução de mérito. É isso que
diz o inciso VIII do artigo 485. A intransmissibilidade da ação é algo que tem
que ser verificado no plano do direito material. Diz-se nesse caso o direito é
personalíssimo.
Um exemplo é a ação de divórcio. Se os pais estiverem no meio de uma
ação de divórcio e um deles morrer, os filhos, que são os herdeiros, não vão
poder dar continuidade à ação no lugar do pai que morreu. A ação tem que ser
extinta.
Por fim, o rol do artigo 485 não é taxativo, como nos demonstra o seu
inciso X. Há, espalhados pelo Código, outras hipóteses de sentenças
terminativas. A não inclusão de litisconsortes necessários no polo passivo,
prevista no artigo 115, parágrafo único,8 por exemplo, é uma hipótese de
extinção sem solução de mérito que não está contemplada expressamente no
artigo 485.

1.8.3 Coisa julgada material e coisa julgada formal

As situações de extinção do processo com solução de mérito, previstas


no artigo 487 do novo CPC, produzem aquilo que os processualistas chamam

8
“Parágrafo único. Nos casos de litisconsórcio passivo necessário, o juiz determinará ao autor
que requeira a citação de todos que devam ser litisconsortes, dentro do prazo que assinar, sob
pena de extinção do processo.”

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de coisa julgada material. Quando temos coisa julgada material, significa que a
relação de direito material não pode mais ser discutida em outro processo.
Assim, quando o juiz resolve o mérito em favor de uma das partes
(inciso I do artigo 487), quando o juiz reconhece a prescrição ou a decadência
(inciso II), ou quando as partes fazem um acordo, o réu reconhece o pedido do
autor, ou o autor desiste da pretensão (inciso III), então a mesma relação de
direito material não poderá ser discutida em outro processo. Teremos coisa
julgada material.
A extinção do processo sem solução de mérito, prevista no artigo 485
do CPC não produz coisa julgada material. Diz-se que a extinção sem
resolução de mérito produz apenas coisa julgada formal. Isso quer dizer
apenas que, dependendo do tipo de problema processual, pode ser proposta
uma nova ação, desde que corrigido o defeito. É disso que trata o artigo 486
do CPC.
E aqui nós precisamos diferenciar a renúncia à pretensão da simples
desistência da ação. A pretensão é um instituto de direito material. Então,
quando o autor renuncia a ela, ele abre mão de discutir a relação de direito
material em outro processo. Por isso é que, neste caso, a sentença é de
extinção com solução do mérito e será produzida coisa julgada material.
Mas se o autor apenas desiste da ação, o processo é extinto sem
solução de mérito, e isso não faz coisa julgada material, apenas faz coisa
julgada formal. Quer dizer que a ação pode ser proposta novamente.

1.8.4 Julgamento conforme o estado do processo e “sentença parcial”

Como regra geral, o julgamento conforme o estado do processo ocorre


quando não é necessário entrar na fase instrutória (ver o item 1.5, acima),
quando não é necessário produzir provas. A primeira situação, então, é
quando, imediatamente após a fase postulatória, o processo é extinto.
Mas pode ser que, simplesmente, o processo não se desenvolva até o
final e, por um problema formal, pela vontade das partes, ou até mesmo porque
o juiz se deu conta de algo que ele tinha deixado passar despercebido, o

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processo não siga todas as suas fases. Aí nós também teremos julgamento
conforme o estado do processo.
O julgamento conforme o estado do processo está previsto nos artigos
354 a 356 do novo CPC.
A primeira hipótese de julgamento conforme o estado do processo está
no artigo 354 do CPC,9 que une situações de extinção com solução de mérito
com situações de extinção sem solução de mérito. As situações de extinção
com solução do mérito previstas no artigo 354 são aquelas do artigo 487, II e
III: prescrição ou decadência, acordo, reconhecimento do pedido pelo réu ou
renúncia da pretensão pelo autor. As outras hipóteses do artigo 354 são as de
extinção sem solução do mérito, previstas no artigo 485.
O artigo 35510 trata do “julgamento antecipado do mérito,” que é
exatamente a hipótese em que o juiz pode resolver a relação de direito material
sem necessidade de produção de provas. Isso pode acontecer em duas
situações: a primeira é quando a situação de direito material não comporta
prova diferente da documental. A segunda é quando não existe controvérsia
das partes a respeito dos fatos (diz-se que os fatos são incontroversos).
Nós já vimos que o recurso cabível contra a sentença é a apelação.
Acontece que o julgamento conforme o estado do processo pode ser apenas
parcial: uma parte do processo é extinta e outra parte prossegue (artigos 354,
parágrafo único11 e 356 do novo CPC).12 Por exemplo: o autor faz dois
pedidos, e o juiz reconhece que a pretensão de um deles está prescrita. Nesse
caso, teremos aquilo que é chamado de “sentença parcial:” uma decisão que
tem natureza de sentença, mas forma de decisão interlocutória, porque o

9
“Art. 354. Ocorrendo qualquer das hipóteses previstas nos arts. 485 e 487, incisos II e III, o
juiz proferirá sentença. Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput pode dizer respeito
a apenas parcela do processo, caso em que será impugnável por agravo de instrumento.”
10
“Art. 355. O juiz julgará antecipadamente o pedido, proferindo sentença com resolução de
mérito, quando: I - não houver necessidade de produção de outras provas; II - o réu for revel,
ocorrer o efeito previsto no art. 344 e não houver requerimento de prova, na forma do art. 349.”
11
“Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput pode dizer respeito a apenas parcela do
processo, caso em que será impugnável por agravo de instrumento.”
12
“Art. 356. O juiz decidirá parcialmente o mérito quando um ou mais dos pedidos formulados
ou parcela deles: I - mostrar-se incontroverso; II - estiver em condições de imediato julgamento,
nos termos do art. 355.”

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processo prossegue. Contra a “sentença parcial” o recurso cabível é o agravo


de instrumento, exatamente porque o processo prossegue.

1.9 Procedimento comum e procedimentos especiais

Podemos encerrar esta nossa lição introdutória estudando a diferença


entre o procedimento comum e os procedimentos especiais. A origem histórica
da diferença é melhor explicada na letra F do Apêndice III, abaixo. Assim, aqui
iremos nos ater aos aspectos práticos da distinção.
O procedimento comum é o "procedimento padrão," o procedimento
básico do processo civil. Ele é usado para a generalidade das situações de
direito material – e aqui é interessante lembrar a diferença entre direito material
e direito processual (item 1.2, acima).
Agora, existem determinadas situações de direito material que, pela sua
relevância, ou por alguma peculiaridade, foram escolhidas pelo legislador, ao
longo da história, para serem objeto de procedimentos especiais. Então, o
procedimento comum é a "regra geral" do processo civil, e os procedimentos
especiais, como o próprio adjetivo já indica, dizem respeito a situações
especiais
E assim fica fácil saber quando usamos um ou outro: usamos o
procedimento comum ou o especial de acordo com a situação de direito
material. Na verdade, quando para aquela situação de direito material estiver
previsto na legislação processual um procedimento especial, utilizamos o
procedimento especial. Se não estiver previsto nenhum procedimento especial,
usamos o comum. Podemos dizer que o procedimento comum é utilizado de
forma "subsidiária": quando não for cabível um procedimento especial
Com exemplos fica mais fácil de verificar isso. Se a questão de direito
material for a proteção da posse, será utilizada uma ação possessória
(procedimento especial), e não o procedimento comum. O mesmo vale se for o
caso, por exemplo, de interdição, ou de pedido de alimentos, de
desapropriação pelo Poder Público, de mandado de segurança contra ato de

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

autoridade quando o direito admitir apenas prova pré-constituída (direito líquido


e certo), e assim por diante.
Note que todas essas situações, no plano material, têm uma
peculiaridade que demanda uma resposta rápida ou uma simplificação no
procedimento, e é isso que está na origem do estabelecimento de um
procedimento especial pela legislação.
O desenho, a estrutura de um processo, é chamado, pelos
processualistas, de “módulo legal.” O módulo legal do procedimento comum é o
mais amplo possível. Tudo o que pode acontecer num processo pode
acontecer no procedimento comum.
Já o módulo legal dos procedimentos especiais será determinado, como
eu já mencionado, pelas peculiaridades da relação de direito material.
Isso significa, basicamente, duas coisas. A primeira são os chamados
“cortes cognitivos,” o que significa restrição à matéria que pode ser apreciada
pelo juiz. Quando isso acontece, o nome que é dado é cognição parcial.
Votemos aos exemplos: o mandado de segurança só admite prova documental;
nas ações possessórias, você não pode discutir propriedade, e na ação de
desapropriação, só pode discutir o preço do imóvel.
A segunda são as chamadas técnicas processuais diferenciadas. No
âmbito dos procedimentos especiais, normalmente são liminares. Mas temos
que ter bem presente que isso vem de um tempo em que não existia a
antecipação de tutela no procedimento comum, mas isso mudou com a reforma
processual de 1994.
Mas tudo isso, na verdade, é apenas um ponto de partida. Isso porque,
como decorrência do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva (veja-se o
item 3.5, abaixo), o juiz não está preso à letra da lei para prestar tutela
jurisdicional aos direitos.

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Procedimento Comum Procedimentos Especiais

para a generalidade dos casos para situações de direito material


específicas

Módulo legal: Módulo legal:


o mais amplo possível cognição parcial e/ou
técnicas processuais diferenciadas

Direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva:


aproximação entre o procedimento comum e os procedimentos especiais

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2 TEORIA ECLÉTICA DA AÇÃO E CONDIÇÕES DA AÇÃO

No Apêndice II, abaixo, é possível encontrar um maior aprofundamento


a respeito das “teorias da ação” desenvolvidas após o reconhecimento do
processo civil como uma disciplina autônoma.
Ali você poderá visualizar duas dicotomias: ação pública (enfatiza-se o
papel do juiz) X ação privada (enfatiza-se o direito do autor); e ação concreta
(ter ação = ter o direito material; somente há ação se há sentença de
procedência) X ação abstrata (o exercício do direito de ação não depende da
existência do direito material).
Ali poderá visualizar também que Giuseppe Chiovenda, um dos mais
célebres processualistas italianos do começo do século passado, embaralhou
os conceitos, entendendo que ação era abstrata, porém privada, e entendia,
ainda, que somente seria possível afirmar a existência do direito de ação se
houvesse sentença de procedência...
Então Enrico Tullio Liebman, um discípulo de Chiovenda, formulou
aquilo que chamou de “teoria eclética” da ação. Eclética porque tenta conciliar
os dois pontos de vista (caráter público com caráter privado, ou, ainda, o direito
abstrato de ação com exercício concreto da ação).
A teoria de Liebman, portanto, é uma teoria conciliatória, que tenta
tornar compatíveis pontos de vista que são contrários entre si. O resultado,
obviamente, só poderia ser uma construção artificial. E é exatamente por isso,
pelo caráter artificial da sua teoria, que esse assunto das condições da ação é
tão difícil de compreender e, de fato, é tão mal compreendido, mesmo ainda
nos dias de hoje.
Então, para formular sua proposta conciliatória, Liebman fez diferença
entre o direito de ação abstrato previsto de forma geral na Constituição
(posição parecida, neste ponto, mas só neste ponto, com a de Couture – ver,
item A do Apêndice II, abaixo) e um direito de ação de natureza processual,
relacionado a uma situação concreta.
Assim, pela Constituição, todos poderiam propor ação (exercício do
direito constitucional de agir; direito abstrato). Contudo, somente seria possível

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concluir pela existência da ação processual a partir da análise da situação


concreta. A ação processual, para Liebman, equivale ao direito ao julgamento
de mérito. E a análise da situação concreta equivale ao exame das condições
da ação.

Liebman:
ação constitucional (abstrata) X ação processual (concreta)

Não:
-Há ação constitucional;
- Não há, no entanto, ação processual
(carência de ação). Processo extinto
sem solução de mérito
Estão presentes as condições da
ação?
Sim: a ação processual foi exercida.
O autor tem direito a uma sentença de
mérito (que pode ser de procedência
ou de improcedência). O processo é
julgado com solução de mérito

Assim, diferentemente de Chiovenda, Liebman admitiu a possibilidade


de exercício de ação quando há sentença de improcedência. Mas a ação
(processual), para ele, apenas será exercida se superada a análise inicial da
situação concreta, o que o levou a criar a figura das “condições da ação.” Se
não for superada a fase de análise das condições da ação, estará presente
apenas a ação constitucional (direito fundamental de provocar o Poder
Judiciário) mas não a ação processual...
Assim, juntamente com os adeptos de teorias abstratas (ver item A do
Apêndice II, abaixo), Liebman entendeu que existe uma ação abstrata cujo

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fundamento é constitucional. Essa ação abstrata é incondicional, não tendo,


portanto, qualquer relação com a situação material concreta.
No entanto, Liebman concordou com os concretistas ou privatistas ao
identificar uma outra ação paralela à ação constitucional, que é relacionada
com a situação concreta. Essa ação, relacionada a uma situação de direito
material concreta, Liebman chamou de ação processual. O exercício da ação
processual, não é demais reforçar, está condicionado à observância de alguns
requisitos que dizem respeito à relação de direito material. Não se trata,
propriamente, de condicionar o direito de ação à sentença de procedência
(como faziam as teorias concretas e privadas da ação), mas, sim, de
condicionar a existência da ação processual à observância de determinados
requisitos ligados à relação de direito material.
Esses requisitos para o exercício da ação processual foram chamados,
por Liebman, de condições da ação.
Segundo Liebman, apenas se estiverem presentes as condições da
ação é que a parte autora vai ter direito ao julgamento do mérito do pedido. Por
isso, pode-se afirmar que a ação processual, da teoria eclética, coincide com o
direito ao julgamento do mérito. O julgamento de mérito pode redundar em
sentença de procedência, sentença de improcedência ou sentença de parcial
procedência do pedido.
Por outro lado, se não estiverem presentes as condições da ação, diz-se
que o autor é carente de ação. Assim, o reconhecimento da ausência das
condições da ação (ou, simplesmente, da carência de ação) é um julgamento
de extinção do processo sem solução de mérito. A sentença que extingue o
processo sem resolução do mérito, nós já vimos é também chamada de
sentença terminativa.

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Teoria Eclética da Ação

Ação Constitucional Ação Processual

Abstrata Relacionada a uma situação concreta

Condicionada
Incondicional (Condições da ação)
Direito à solução do mérito

Estão presentes as condições da ação?

Não Sim

Carência de ação Direito à solução do mérito

Extinção sem solução do mérito Extinção com solução do mérito

Sentença terminativa - sentença de procedência;


- sentença de improcedência; ou
- sentença de parcial procedência.

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É verdade que há outras situações (exclusivamente processuais) que


podem conduzir à extinção do processo sem resolução do mérito (ver o item
1.8.1, acima). Por isso, é importante não confundir essas outras hipóteses (de
extinção do processo sem solução do mérito por questões exclusivamente
processuais – como é o caso da ausência de determinados pressupostos
processuais) com a extinção do processo sem solução do mérito por ausência
de condição da ação (em que a extinção do processo sem resolução de mérito
não se dá por uma questão simplesmente processual, mas por um problema
que é, antes, relacionado a alguma análise, ainda que superficial, da relação
jurídica material).
Na época da II Grande Guerra, Liebman imigrou para o Brasil. Aqui,
exerceu forte influência sobre a escola paulista de processo, e suas ideias, com
sua teoria eclética e suas condições da ação, foram inseridas no CPC de 1973
(ver artigo 267, VI, do CPC de 1973). O novo CPC, por sua vez, como
veremos logo a seguir, não deixou de considerar a existência de condições da
ação – salvo para aqueles que entendem que agora as condições da ação
seriam pressupostos processuais...

2.1 As condições da ação no CPC de 1973

Segundo o artigo 267, VI, do CPC de 1973, as condições da ação eram


a possibilidade jurídica do pedido, a legitimidade das partes e o interesse
processual.

2.1.1 Possibilidade jurídica do pedido

Embora esta condição da ação não esteja mais mencionada de forma


expressa no novo CPC o seu estudo, em perspectiva histórica, e até mesmo
para uma melhor compreensão da condição da ação que lhe incorporou (o
interesse de agir), é ainda conveniente.
A possibilidade jurídica do pedido nada mais seria do que a previsão, na
ordem jurídica, do direito postulado pelo autor da ação.

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Exemplos de situações em que não haveria possibilidade jurídica do


pedido (ou seja, exemplos de impossibilidade jurídica do pedido) são o divórcio,
no Brasil, até 1977, e o usucapião de bens públicos.

2.1.2 Legitimidade das partes

A legitimidade das partes, também chamada de legitimidade para a


causa (ad causam em Latim), é identificada como a pertinência subjetiva
daquele que é parte, no processo, com a relação de direito material.
Ou seja, apenas aquele que é sujeito da relação de direito material pode
figurar como parte no processo em que se discute aquela mesma relação
jurídica.
Imagine-se que estamos diante de um contrato firmado entre A e B.
Apenas A e B são partes legítimas para a discussão judicial deste mesmo
contrato.
Assim, se A ajuizar ação contra C, o processo terá de ser extinto sem
resolução do mérito, por ilegitimidade passiva ad causam.
Se, por outro lado, D ajuizar ação contra B, para discutir o mesmo
contrato (celebrado entre A e B), então o processo será extinto sem resolução
do mérito, por ilegitimidade ativa ad causam.
A situação de exceção a essa regra geral de perfeita identidade das
partes do processo com os sujeitos da relação de direito material é chamada
de substituição processual. A substituição processual acontece quando o
sujeito da relação material é substituído por outra pessoa na qualidade de parte
do processo, mas isso depende de expressa autorização pelo “ordenamento
jurídico” (artigo 18 do novo CPC).

2.1.3 Interesse processual

O interesse processual, por sua vez, é identificado com a necessidade, a


utilidade e a adequação do provimento jurisdicional à parte.

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Se o processo for inútil, desnecessário ou inadequado, faltará à parte


autora interesse processual, sendo esta, portanto, carente de ação.
Exemplos de situação em que é manifesta a ausência de interesse
processual são o ajuizamento de ação de cobrança de dívida ainda não
vencida (ou com exigibilidade suspensa) e a impetração de mandado de
segurança em que a parte impetrante expressamente afirma, na petição inicial,
a necessidade de produção de prova diferente da documental (por exemplo,
prova testemunhal ou prova técnica).
Esta última situação (a impetração de mandado de segurança
afirmando-se a necessidade de produção de prova diferente da documental) é
exemplo de falta de interesse processual por inadequação. Chama-se a
hipótese de inadequação da via eleita.

2.2 As condições da ação no novo CPC

O novo CPC não eliminou as condições da ação. Elas estão


mencionadas em seus artigos 17 e 485, VI. O que fez, no entanto, atendendo
a lições tardias do próprio Liebman¸ foi reduzi-las a apenas duas: legitimidade
e interesse.
Com efeito, Liebman posteriormente ensinou que não deveria haver
distinção entre possibilidade jurídica do pedido e interesse de agir: se alguém
postula em juízo direito não previsto na ordem jurídica, logo o ajuizamento da
ação é inútil. Essa lição foi assimilada, portanto, pelo novo CPC.13

13
Se quiséssemos levar adiante o mesmo raciocínio, poderíamos facilmente constatar que o
ajuizamento de ação contra pessoa que não figura na relação jurídica material em discussão
também é inútil. Com isso, reduziríamos também legitimidade de parte ao interesse processual
– o que, no fim, apenas reforça o caráter artificial de toda a construção teórica das condições
da ação.

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Condições da ação

Possibilidade jurídica do pedido Previsão abstrata do direito na ordem


(prevista apenas no CPC de 1973) jurídica (no novo CPC, é espécie de
interesse processual)

Legitimidade das partes Identidade das partes do processo


(CPC de 1973 e novo CPC) com os sujeitos da relação de direito
material

- utilidade;
Interesse processual - necessidade;
(CPC de 1973 e novo CPC) - adequação (“da via eleita”)

Alguns, no entanto, pelo simples fato de o novo CPC não utilizar


literalmente a expressão “condições da ação,” afirmam que essa categoria
processual não existe mais – a legitimidade e o interesse, ainda previstos no
Código, teriam migrado para a categoria dos pressupostos processuais...
Isso, com todo o respeito, é uma confusão em cima de outra confusão, e
não iremos perder tempo com esae assunto aqui.14 E não iremos perder tempo
com esse detalhe terminológico porque a forma racional de lidar com as velhas
condições da ação não é dizer que elas migraram para a categoria dos
pressupostos processuais, mas é utilizando a “teoria da asserção” (sobre isso,
ver o item 2.4, abaixo).

14
Caso você tenha curiosidade, há um vídeo específico no canal sobre o assunto. O hiperlink
está no texto, mas você também pode acessá-lo clicando aqui.

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2.3 Regime processual de reconhecimento da ausência de condições da


ação

2.3.1 Matéria de ordem pública

Tradicionalmente, diz-se que as condições da ação constituem matéria


de ordem pública. Isso significa que a sua ausência pode ser reconhecida de
ofício pelo Poder Judiciário, em qualquer tempo e grau de jurisdição,
independentemente de alegação pelas partes.
O caráter de matéria de ordem pública das condições da ação é
reconhecido pelo artigo 267, § 3º, do CPC de 1973, regra que foi reproduzida,
em sua essência, no artigo 485, § 3º, do novo CPC.15
Essa previsão, embora seja bastante tradicional e ainda conste na lei, é,
de todo modo, incompatível com a teoria da asserção (item 2.4, abaixo).

2.3.2 Ausência de coisa julgada material

Afirma-se, ainda, que a sentença que extingue o processo sem


resolução de mérito não faz coisa julgada material, fazendo apenas coisa
julgada formal (ver o item 1.8.3, acima). Tal constatação foi, historicamente,
extraída do conteúdo do artigo 268 do CPC de 1973.16
Há que se entender exatamente o que se quer dizer por ausência de
coisa julgada material da sentença que extingue o processo por carência de
ação. Isso significa, apenas, que o reconhecimento de carência de ação, em
um determinado processo, não impede que seja ajuizada uma nova ação,

15
A divergência extensional entre ambos os dispositivos, no que nos interessa, é que a regra
do CPC de 1973 trata da possibilidade de reconhecimento da ausência de condição da ação
de ofício “enquanto não proferida sentença de mérito”, ao passo que o novo CPC afirma que
tal possibilidade subsiste “enquanto não ocorrer o trânsito em julgado”.
16
“Art. 268. Salvo o disposto no art. 267, V, a extinção do processo não obsta a que o autor
intente de novo a ação. A petição inicial, todavia, não será despachada sem a prova do
pagamento ou do depósito das custas e dos honorários de advogado.”

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desde que seja corrigido o defeito que levou ao reconhecimento da ausência


de condição da ação no primeiro processo.
Por exemplo: se A ajuizou a ação contra C, a extinção do processo sem
resolução de mérito não impede que ele ajuíze outra ação, desta vez contra B,
o real devedor no plano material e, portanto, a parte legitima (obviamente que
ele não poderá ficar repetindo a ação contra C, afirmando que não houve coisa
julgada material...); ou, se a ação foi ajuizada antes do vencimento da dívida (e,
por isso, foi extinta por ausência de interesse), isso não impede que ela seja
novamente ajuizada após o vencimento.
Essa situação é melhor esclarecida pelo novo Código, no § 1º do artigo
486:

§ 1º No caso de extinção em razão de litispendência e nos casos dos


incisos I, IV, VI [carência de ação] e VII do art. 485, a propositura da
nova ação depende da correção do vício que levou à sentença sem
resolução do mérito.

2.4 Análise crítica. Teoria da asserção

Apesar da adesão, pelo Código de Processo Civil brasileiro, à teoria


eclética da ação (exatamente por disciplinar as chamadas condições da ação),
ele mesmo (nosso Código de Processo Civil) não é inteiramente coerente com
aquela teoria.
Assim, o artigo 263 do CPC de 1973 afirma que a ação é considerada
proposta quando a petição inicial for despachada pelo juiz. O novo CPC foi
ainda mais além, ao afirmar, em seu artigo 312, que a ação é considerada
proposta quando protocolada a petição inicial.
Ora, se a ação é proposta com o simples protocolo da petição inicial
(segundo o novo CPC) ou, ao menos, com o despacho judicial da petição inicial
(como afirmava o CPC de 1973), isso não deixa muito espaço para que se
considere existente a ação apenas após a verificação de determinados
requisitos (as chamadas condições da ação).

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Trata-se, reforça-se, de contradição interna existente no CPC (tanto no


antigo quanto no novo), e que enfraquece a construção teórica erigida em torno
das condições da ação.
Com efeito, é mesmo algo estranho considerar que, após o ajuizamento
da ação, a citação, a contestação do réu e a produção de diversas provas, o
juiz prolate uma sentença dizendo que o autor era carente de ação. Ora, se era
carente de ação, o que foi que as partes e o juiz fizeram ao longo de todo o
processo?
Assim, se, ao final do processo, o juiz identificar o que poderia ser
considerado como “ausência de condição da ação,” entende-se que ele deve
julgar o pedido improcedente.
O reconhecimento da ausência de condição da ação, na forma como
proposta pelo CPC, apenas tem algum sentido se realizado logo ao início do
processo. Esse reconhecimento está ligado ao já princípio da economia (ver
item 4.4.2.1, abaixo), segundo o qual não devem ser praticados atos
processuais inúteis.
Assim, ao despachar a petição inicial, identificando o juiz, a partir das
simples afirmações do autor, que não estão presentes as condições da ação, o
processo deve ser extinto sem resolução do mérito por carência de ação.
O reconhecimento da ausência de condição da ação, assim, funcionaria
como uma forma de possibilitar uma espécie de julgamento liminar (logo ao
início do processo) de improcedência do pedido (chamado, no entanto, de
extinção sem resolução de mérito), a fim de evitar que o processo se
desenvolvesse de forma inútil.
Mas registra-se que a ausência de condição da ação teria que ser
verificada pelo juiz logo ao início do processo, na fase postulatória (lembre-se o
item 1.5, acima), e a partir das meras afirmações do autor.
A isso se dá o nome de “teoria da asserção” (“asserção” significa
afirmação). Assim, a teoria da asserção nos informa que o juiz deve verificar a
existência das condições da ação ao início do processo, apenas a partir das
afirmações da parte autora. E o objetivo disso, convém reiterar, é evitar o
desenvolvimento inútil do processo.

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Se, no entanto, o juiz não proceder a esse exame inicial, instruindo o


processo – ou se, por hipótese, apenas após a produção de prova é que foi
possível verificar que estaria ausente uma condição da ação –, deve, de
qualquer forma, o pedido ser julgado improcedente.
Trabalhemos com exemplos, para ajudar a compreensão.
Na nossa hipótese do contrato celebrado entre A e B, imaginemos que
se trate de um contrato escrito, e que A ajuíze a ação contra C. Nessa
hipótese, apenas a partir das afirmações do autor já é possível perceber que C
é parte ilegítima. Assim, ao despachar a petição inicial, deve o juiz extinguir o
processo sem resolução de mérito, por ilegitimidade passiva.
Imaginemos, no entanto, que o contrato seja não escrito, mas verbal, e
que A ajuíze uma ação contra C afirmando que este é o devedor. Apenas a
partir das afirmações do autor, portanto, C é parte legítima. No entanto, durante
a instrução processual, todas as testemunhas ouvidas pelo juízo afirmam de
forma categórica que o contrato foi celebrado por A com B, e não com C.
Nessa hipótese, a ilegitimidade de C apenas foi descoberta após a instrução
processual (mesmo que tenha sido objeto de sua defesa, perceba-se), porque
as peculiaridades do direito material (contrato não escrito) tornaram
imprescindível a produção de prova inclusive quanto à questão da pertinência
subjetiva. Mas, a partir das meras afirmações do autor (teoria da asserção) não
era possível afastar, em tese, a pertinência subjetiva de C à relação de direito
material (o que somente se tornou possível reforça-se, após a produção das
provas). Assim, porque se chegou ao fim do processo, encerrada a fase
instrutória, deve o juiz, simplesmente julgar o pedido improcedente em face de
C – e não reconhecer a “carência de ação.”
Em outro exemplo, imagine-se que a parte autora ajuíza uma ação
contra o Estado, objetivando adquirir, por usucapião, a propriedade de um
imóvel estadual. Nesse caso, ao despachar a petição inicial, deverá o juiz
reconhecer a impossibilidade jurídica do pedido (ou, segundo o novo CPC,
simplesmente a ausência de interesse de agir) e extinguir o processo sem
resolução do mérito.

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Se, por outro lado, a parte autora, afirmando não existir matrícula do
imóvel, ajuizar a ação contra o possuidor anterior, nada haverá, a partir da
simples afirmações contidas na petição inicial, que indique a carência de ação.
Mas se, durante a instrução, for obtida certidão da matrícula do imóvel e ficar
comprovado que se trata de bem de propriedade do Estado, então o juiz, ao
sentenciar, deve julgar o pedido improcedente (não devendo ter lugar a
extinção do processo sem resolução de mérito, uma vez que já superada a
fase instrutória).

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3 O IMPACTO DO ESTADO CONSTITUCIONAL SOBRE O PROCESSO


CIVIL17

3.1 O fim do Estado Legislativo e o início do Estado Constitucional

O Apêndice III (abaixo), trata do impacto da ideologia pós-Revolução


Francesa e do Estado Legislativo sobre o processo civil.
O quadro ali descrito somente foi superado com o surgimento do Estado
Constitucional. Nesta Lição vamos estudar como isso aconteceu.
É bem verdade que a Constituição tinha sua importância no Estado
Legislativo. Na própria Teoria Pura do Direito, Hans Kelsen afirma que a
Constituição funciona como base do ordenamento jurídico. Todas as leis
infraconstitucionais retiram sua validade das normas constitucionais – isso se
chama “construção escalonada da ordem jurídica.”
O controle de constitucionalidade proposto por Kelsen, no entanto, era
preponderantemente formal. Ou seja, bastava que as leis fossem editadas de
acordo com o procedimento previsto na Constituição (procedimento legislativo)
e que o legislador infraconstitucional atuasse dentro da esfera de competência
delegada pela Constituição. Esta (a Constituição) tinha um papel muito pouco
importante para o controle de conteúdo da lei (controle de constitucionalidade
material).
Quanto ao controle do conteúdo da lei, esse apenas era feito a partir de
regras encontradas na Constituição (ver o item 4.1.1, abaixo).
Podemos afirmar, assim, que o controle de constitucionalidade
desenvolvido no Estado Legislativo é um controle de constitucionalidade
essencialmente formal, e que o Poder Legislativo tinha muita margem de
liberdade.

17
É preciso esclarecer que esta lição apresenta as coisas de acordo com a ideologia
predominante no meio acadêmico brasileiro. Para uma abordagem crítica do positivismo em
geral (desde o positivismo tradicional até o pós-positivismo e mesmo o neoconstitucionalismo)
a partir da ética libertária, confira-se o APÊNDICE IV.

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A II Grande Guerra e, especialmente, as atrocidades cometidas pela


Alemanha nazista, no entanto, levaram a comunidade jurídica a repensar essas
ideias.
Isso porque não seria possível admitir que fossem indiferentes ao Direito
(como se conclui a partir do positivismo jurídico clássico) os atos praticados
pelos nazistas, já que estes estavam amparados em normas jurídicas
validamente editadas (quer dizer, válidas do ponto de vista meramente formal).
Passou-se a utilizar a Constituição, assim, para controlar o conteúdo da
lei (controle de constitucionalidade material). Inserindo-se princípios de justiça
material na Constituição (aos quais chamamos de direitos fundamentais)18
passa a ser possível realizar esse controle do conteúdo da lei. O Direito deixa
de ser, como queria a proposta positivista inicial, “livre de valor.” Os valores
com os quais o Direito vai dialogar, no entanto, são aqueles expressamente
previstos na Constituição. Daí falar-se em jusnaturalismo de base racional.

3.2 Neoconstitucionalismo

Mas isso não é só.


O grande desafio da atualidade não é apenas utilizar os direitos
fundamentais como normas que permitem o controle de conteúdo da lei. Os
objetivos do Estado, atualmente, dizem respeito a dar efetividade e concretude
aos direitos fundamentais (e isso mesmo independentemente da atividade
legislativa, se esta se demonstrar insuficiente).
A essa nova configuração do Estado, que tem por objetivo levar os
direitos fundamentais a sério, alguns autores denominam
Neoconstitucionalismo.

18
Os mesmos direitos, em essência, consagrados na ordem internacional, são chamados de
direitos humanos. A diferença entre uns (direitos fundamentais) e outros (direitos humanos) é
dada pelo que se chama de critério da concreção positiva: direitos fundamentais são
positivados na Constituição (ordem interna) e direitos humanos são positivados em tratados
internacionais (ordem internacional).

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“sem juridiquês”

3.3 Hermenêutica jurídica no Estado Constitucional

“Hermenêutica” significa teoria da interpretação. A forma como a


interpretação do Direito deve ser feita é chamada de “hermenêutica jurídica.”
Essa palavra, “hermenêutica,” deriva do nome do deus grego Hermes, que era
o “porta-voz” do Olimpo.

3.3.1 Ideologia dinâmica da interpretação

Como consequência do positivismo jurídico e da ideia, bastante forte na


Europa continental após a Revolução Francesa, de que a segurança jurídica
(previsibilidade do Direito) seria encontrada no texto da lei, desenvolveu-se
aquilo que é chamado de ideologia estática da interpretação. A ideologia
estática da interpretação sustenta que o interprete (no caso do processo, o juiz)
não cria o Direito – já que o Direito seria criado pela lei, e apenas por ela.
Assim, ao interpretar a lei, o juiz está apenas revelando o conteúdo do direito
que está subjacente ao texto da lei.
A ideologia estática da interpretação, contudo, está em desuso na
Europa continental há pelo menos meio século, tendo cedido lugar à ideologia
dinâmica da interpretação. Esta compreende que o intérprete (para o que nos
interessa, o juiz) cria, sim, o Direito. Na verdade, o mais correto é dizermos que
o juiz reconstrói o Direito. Ou seja, o Direito é o resultado do trabalho conjunto
do Poder Legislativo com o Poder Judiciário.
E a ideologia dinâmica da interpretação compreende que o intérprete
(juiz) reconstroi o Direito a partir da consideração da diferença entre texto
legislativo e norma jurídica.
O texto legislativo, assim, é aquilo que está escrito na lei. A norma
jurídica, por sua vez, é consequência da interpretação que é realizada sobre o
texto legislativo. Como quem realiza a interpretação é sempre o intérprete
(juiz), segue-se que o intérprete cria (reconstrói) o Direito.

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Ideologia dinâmica da interpretação

Texto legislativo
(produzido pelo Poder Legislativo)

Norma jurídica
(resultado da atividade do intérprete – Poder Judiciário)

Esse assunto será aprofundado na Lição 9, mais precisamente no item


9.2 (abaixo).

3.3.2 Técnicas decisórias do controle de constitucionalidade

No Estado Constitucional, a interpretação da lei a partir da Constituição


é fundamental para a construção e aplicação do Direito. Na verdade, uma
grande ferramenta de construção do Direito é a interpretação constitucional. A
todo o momento, o texto constante nas leis aprovadas pelo Poder Legislativo
está sendo considerado a partir da Constituição e as normas jurídicas vão
sendo reconstruídas pelo Poder Judiciário.
Exatamente por isso, considerarmos as técnicas decisórias do controle
de constitucionalidade contemporâneo é fundamental para compreendermos o
impacto do constitucionalismo sobre o processo civil e a forma como o Poder
Judiciário reconstrói o direito a partir do texto da lei e da Constituição.

3.3.2.1 Interpretação de acordo com a Constituição

A “interpretação de acordo” com a Constituição está dentro da


interpretação literal, ou gramatical, de um texto legislativo. Ela ocorre quando o

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texto, em sua literalidade, tem mais de um significado possível, e estes dois


significados são compatíveis com a Constituição. Nesse caso, escolhe-se o
significado que dê maior efetividade à Constituição.
Reforça-se que se está tratando de significados possíveis para o texto
legislativo, estabelecido a partir do significado literal de suas expressões,
devendo-se escolher aquele que dá maior efetividade à Constituição.
Perceba-se que a interpretação de acordo é também uma espécie de
interpretação teleológica, especialmente se considerarmos que uma das
finalidades da lei é implementar os valores constitucionais.

3.3.2.2 Interpretação conforme à Constituição

Embora tenha um nome parecido com a modalidade de interpretação


anterior, a “interpretação conforme à Constituição” ocorre quando apenas uma
das possibilidades de interpretação da lei é compatível com a Constituição.
Reforça-se que a lei tem mais de uma interpretação possível, mas
somente uma delas (e não necessariamente se trate de uma interpretação
literal) é compatível com a Constituição. Todas as demais possibilidades de
interpretação conduziriam a uma situação de inconstitucionalidade. Apenas
uma interpretação é constitucional.
Nesse caso, a interpretação conforme à Constituição indica qual a única
possibilidade de interpretação da lei que não contraria o texto constitucional.

3.3.2.3 Declaração de nulidade parcial sem redução de texto

A declaração de nulidade parcial sem redução de texto é similar à


interpretação conforme à Constituição, mas há um detalhe importante que as
separa. Enquanto na “interpretação conforme” há somente uma possibilidade
de interpretação que contrarie a Constituição e a técnica decisória impõe que
se explicite qual é esta única interpretação que é compatível com a
Constituição, na declaração de nulidade parcial o que se faz é dizer qual tipo
de interpretação não é compatível com a Constituição.

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Na primeira hipótese (interpretação conforme), diz-se qual a única


possibilidade de interpretação correta. Na segunda (declaração de nulidade
parcial), diz-se qual interpretação é inconstitucional, permitindo-se ao intérprete
posterior escolher dentre as interpretações ainda possíveis.
Exemplo de declaração de nulidade parcial sem redução de texto está
na consideração de uma lei que crie um tributo sem explicitar qual é a data de
início de sua cobrança. Nessa hipótese, deve-se afastar a interpretação que
permita a cobrança do imposto antes do período chamado de “anterioridade
nonagesimal” previsto na Constituição (artigo 150, III, c).

3.3.2.4 Aplicação direta de um direito fundamental ao caso concreto

Há, por fim, a possibilidade de que um direito fundamental seja aplicado


de forma direta a uma determinada situação concreta pelo juiz,
independentemente da existência de lei. Isso está diretamente ligado às ideias
de omissão inconstitucional e de ativismo judicial.
Nesse caso, no entanto, deve-se observar apenas o chamado “mínimo
imprescindível,” o núcleo essencial do direito fundamental que está sendo
protegido pelo juiz no caso concreto.
Diz-se, assim, que a discricionariedade do Poder Judiciário para a
implementação de um direito fundamental é menor do que a discricionariedade
do Poder Legislativo. O Poder Judiciário, ao aplicar diretamente um direito
fundamental, está limitado ao mínimo imprescindível. O Poder Legislativo, ao
regulamentar um direito fundamental por meio da edição de lei, tem uma ampla
margem de manobra entre as vedações de insuficiência e de excesso.

3.4 Funções do Estado. Dar tutela aos direitos, especialmente aos


fundamentais

Diante do que já vimos até aqui, essa nova configuração (Estado


Constitucional – ou, como preferem alguns, Neoconstitucionalismo) nos indica
que o Estado existe para dar tutela (dar proteção) aos direitos, especialmente

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aos fundamentais. Especialmente aos direitos fundamentais, mas não apenas


a estes; também a todos os direitos.
Assim, podemos dizer que, no Neoconstitucionalismo, a função do
Estado é dar tutela aos direitos.
E essa tutela é prestada, pelo Estado, no âmbito de suas três funções,
ou poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário.
Assim, é função do Estado dar tutela aos direitos no plano legislativo
(editando leis materiais e processuais), administrativo (garantindo segurança,
educação, etc.) e judicial.
A tutela judicial (ou jurisdicional) dos direitos, nesse contexto, é
delineada, inicialmente, pela lei. Mas, como veremos, não fica limitada à
previsão legal, uma vez que extrai seu fundamento, de forma direta, da
Constituição.

3.5 Do princípio da inafastabilidade da jurisdição ao direito fundamental


de acesso à justiça e ao direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva

Feita essa introdução, iniciamos o nosso estudo da disciplina


constitucional do processo civil com o tema “acesso à justiça”.
O inciso XXXV do artigo 5º da CRFB tem a seguinte redação:

XXXV – A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou


ameaça a direito.

Na forma em que redigido o dispositivo, ele consagra o princípio da


inafastabilidade da jurisdição. Mas a previsão constitucional não pode ser
tomada em sua mera literalidade.
Se fôssemos interpretar esse inciso do artigo 5º de forma puramente
literal, teríamos uma previsão negativa (“a lei não excluirá”) e dirigida
exclusivamente ao legislador (“a lei”). Nessa perspectiva, bastaria que não
fossem editadas leis do tipo: o direito A ou direito B não pode ser exercido em
juízo.

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Mas um Estado que objetiva dar tutela aos direitos não pode se
contentar com apenas isso.
Então, a primeira releitura que deve ser feita acerca do assunto é que o
artigo 5º, XXXV, da CRFB, além de consagrar um direito fundamental negativo
de inafastabilidade da jurisdição, consagra um direito fundamental positivo de
acesso à justiça. O Estado deve adotar todas as medidas possíveis para tornar
a jurisdição acessível a todos.
Nesse conteúdo (direito de acesso à justiça) incluem-se, por exemplo, a
assistência jurídica integral (gratuidade de custas e Defensoria Pública) aos
necessitados e a facilitação do acesso à justiça, do que a Justiça do Trabalho e
os juizados especiais cíveis são um bom exemplo (nos quais a capacidade
postulatória é conferida às próprias partes – quer dizer, é possível estar em
juízo sem a representação por advogado).
Poderíamos chamar esse direito de acesso à justiça de direito
fundamental à tutela jurisdicional
Mas isso não é tudo.
Ao analisarmos, em uma segunda releitura, direitos fundamentais que,
por sua importância, precisam de proteção integral (como é o caso do direito à
intimidade, ao meio ambiente, à proteção do consumidor, etc.), nos damos
conta que a tutela jurisdicional concedida pelo Estado deve ser efetiva.
Ou seja, não basta que todos tenham possibilidade de acesso ao Poder
Judiciário. É necessário que este acesso ao Judiciário seja eficiente a ponto de
evitar que os direitos fundamentais sejam violados (evitar que ocorra o dano).
Evitar, por exemplo, a poluição do meio ambiente, o fornecimento de produtos
nocivos ao consumidor, a exposição indevida da imagem dos indivíduos, e não
apenas fornecer um mecanismo para sua compensação pecuniária após a
ocorrência de danos.
E essa efetividade deve existir ainda que não haja previsão legal
expressa de meios adequados (procedimento e técnicas processuais).
Temos, portanto, o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva.

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Mas isso também não é só. A partir da consideração dos direitos


fundamentais, foi possível demonstrar a necessidade de que a tutela
jurisdicional seja efetiva.
Se, agora, considerarmos que o direito à tutela jurisdicional efetiva é um
direito fundamental processual, compreenderemos, então, que ele indica a
necessidade de uma proteção judicial adequada a qualquer direito, e não
apenas aos fundamentais.
Dizendo de outra maneira: relembremos a missão do Estado
contemporâneo, que é dar tutela aos direitos, especialmente aos fundamentais.
Um dos direitos fundamentais que este mesmo Estado assegura é o direito à
tutela jurisdicional (enquanto tal), independentemente do conteúdo do direito
material que vá ser assegurado em juízo.
Se o direito de ação – enquanto um direito fundamental que o Estado
assegura – indica que a tutela jurisdicional deve ser efetiva, então ela deve ser
efetiva para qualquer direito, e não apenas para os direitos fundamentais.
Especialmente para os direitos fundamentais materiais, mas também (tutela
jurisdicional efetiva) para qualquer direito, porque o próprio direito à tutela
jurisdicional efetiva é um direito fundamental (um direito fundamental
processual).

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Conteúdo do artigo 5º, XXXV, da CRFB

1) Princípio da inafastabilidade da jurisdição, mas, também,

2) Direito universal de acesso à justiça


(direito à tutela jurisdicional) e não só, mas também,

3) Direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva

OBS: em razão da fundamentalidade do próprio direito de ação, a tutela


jurisdicional tem de ser efetiva para todos os direitos, e não apenas para os
fundamentais

Assim, deixamos a ideia, típica do Estado Legislativo, de um


“procedimento abstrato” (do qual o procedimento ordinário era a maior
expressão – veja-se a letra F do Apêndice III, abaixo) para a possibilidade, no
Estado Constitucional, da construção da ação adequada ao caso concreto.
Ou seja, é bem possível que a lei, atualmente, dê conta, de forma
adequada, das necessidades do direito material. Contudo, se ela não der, a
Constituição permite que o juiz construa o procedimento adequado ao caso
concreto e empregue técnicas processuais para a tutela adequada do direito
material, ainda que estas técnicas não estejam previstas de forma direta na lei.
E mais, se hoje temos uma legislação processual que dá conta, de forma
adequada, das necessidades do direito material, é exatamente porque ela
passou a ser inspirada pela concepção de processo descrita nas linhas acima
(ou seja, pela compreensão das bases constitucionais do processo civil).

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Por isso, também, é que se abandona a ideia de que apenas é possível


a tutela do direito por certeza (quer dizer, após o trânsito em julgado da
sentença) e se passa a admitir a possibilidade de tutela do direito por
verossimilhança, em razão da urgência, para evitar o dano (demonstrando-se,
assim, o fundamento constitucional da técnica conhecida como antecipação de
tutela, tão difundida nos dias atuais).

3.6 Dizendo as coisas de outro modo. Três ondas renovatórias de acesso à


justiça (Cappelletti e Garth)

As ideias até aqui apresentadas foram muito bem desenvolvidas por


Cappelletti e Garth em uma perspectiva histórica e de Direito Comparado, na
qual eles apresentam três ondas renovatórias de acesso à justiça.
A 1ª onda é posicionada na década de 1960, e coincide com a ideia de
prestação de assistência judiciária aos pobres (a Lei 1.060, que disciplina o
assunto, no Brasil, é de 1950). Sua expressão é encontrada, hoje, por exemplo,
nos artigos 5º, LXXIV, e 134 da CRFB.
A 2ª onda é localizada na década de 1980, e sua preocupação diz
respeito à representação de interesses difusos e coletivos em juízo, de que são
exemplos o direito ao meio ambiente e a proteção do consumidor. Aqui, faz-se
necessária a representação processual por um substituto ideológico (Ministério
Público ou associações, por exemplo, no modelo adotado no Brasil) e é preciso
que o processo se estruture para permitir não somente essa representação
mas, ainda, a tutela jurisdicional adequada aos direitos difusos e coletivos (quer
dizer, com técnicas processuais diferentes das pensadas para direitos
meramente individuais). Exemplos dessa onda renovatória, no Brasil, são a Lei
da Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985) e a parte processual do Código de
Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990).
Já a 3ª onda diz respeito à reforma interna do processo, em que se
busca a adequação de procedimentos para que a tutela jurisdicional se torne
célere (rápida) e menos formal. Exemplos desta onda, no Brasil, são a previsão

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da antecipação de tutela no procedimento ordinário (o que aconteceu, no


Brasil, em 1994) e a criação dos juizados especiais (Lei 9.099/1995).

Ondas renovatórias de acesso à justiça (Cappelletti e Garth)

1ª) Assistência judiciária aos pobres

2ª) Representação de interesses difusos e coletivos

3ª) Reforma interna do processo (celeridade e efetividade)

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4 PRINCÍPIOS PROCESSUAIS (OU “NORMAS FUNDAMENTAIS” DO


PROCESSO CIVIL)

4.1 Introdução

4.1.1 A importância dos princípios para o Direito contemporâneo

O estudo do impacto do Estado Constitucional sobre o processo civil nos


remete, imediatamente, ao estudo dos princípios do processo. Na verdade, já
estudamos um deles, ao estudarmos o direito fundamental à tutela jurisdicional
efetiva, na Lição anterior. É conveniente que passemos a estudar, então, os
princípios do processo civil.
O estudo desta lição deve começar com a consideração da importância
dos princípios para a teoria do Direito contemporânea.
Na verdade, até o Estado Constitucional não havia diferença substancial,
para a teoria do Direito, entre as expressões norma e regra, uma podendo ser
tomada como sinônimo da outra. Entretanto, na experiência constitucional em
que a Europa continental entrou após a II Grande Guerra, a doutrina passou a
considerar de forma bastante diferente os princípios jurídicos, agregando-lhes
verdadeiro conteúdo normativo. Até então, os chamados “princípios gerais de
Direito” tinham uma função secundária no sistema positivista clássico, sendo
utilizados apenas de forma subsidiária (quer dizer, na falta de lei que
regulamentasse de forma direta o caso concreto).
Ocorre que grande parte dos direitos fundamentais, consagrados na
Constituição – cuja função inicial era servir para o controle de conteúdo da lei,
abrindo o sistema jurídico para o diálogo com valores morais e de justiça
substancial – assumem a roupagem de princípios.
A experiência do Constitucionalismo, portanto, faz com que não seja
mais possível que se considerem normas e regras jurídicas como simples
sinônimos. A expressão norma passa a ser utilizada como gênero, do qual os
princípios e as regras são espécies.

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Princípios
Normas jurídicas (gênero)
Regras

Importa-nos, assim, saber qual a diferença entre os princípios jurídicos e


as regras jurídicas.
Princípios são identificados com normas que se encontram na base do
sistema, que informam os valores a serem utilizados para toda a construção do
ordenamento jurídico. Sua principal característica é que são dotados de menor
densidade normativa: não disciplinam de forma direta hipóteses específicas;
indicam um caminho que deve ser seguido. Trata-se, segundo Robert Alexy,
de mandados de otimização. Como mandados de otimização, determinam que
se adotem todas as medidas possíveis para a sua aplicação. No entanto, caso
não se aplique a determinado caso concreto, isso não quer dizer que o
princípio tenha perdido sua validade jurídica.

Princípios jurídicos = mandados de otimização

Exemplos de princípios jurídicos são encontrados no direito fundamental


à vida, à saúde e, no que nos interessa, ao devido processo legal, à razoável
duração do processo, etc.
Regras jurídicas, por sua vez, são dotadas de maior densidade
normativa: especificam hipóteses que podem ser perfeitamente amoldadas aos
fatos concretos considerados. Exemplo de uma regra jurídica é encontrada no
estabelecimento de prazo para interposição de um recurso. Interposto o
recurso no prazo, ele é considerado tempestivo. Se, ao contrário, o recurso for
interposto fora do prazo, ele será intempestivo. Ou o prazo é observado, ou
não. Regras operam, como ensina Ronald Dworkin, na lógica do tudo ou
nada.

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Regras jurídicas = disciplina de hipóteses que são perfeitamente


amoldadas a fatos concretos. Aplicação pela lógica do tudo ou nada.

Esse é, em linhas gerais, o panorama desenvolvido em torno dos


princípios jurídicos no Estado Constitucional.
Antes de adentrarmos especificamente ao estudo dos princípios do
processo civil, no entanto, há que se dizer, ainda, duas coisas.
A primeira é que nem todos os direitos fundamentais são normatizados
como princípios. Muitos deles (e talvez os mais importantes deles) são; há, no
entanto, diversos direitos fundamentais que assumem a forma de regras.
Portanto, nem todos os direitos fundamentais são princípios. Ainda
assim, muitos direitos fundamentais ditos processuais são estruturados como
princípios. É o caso do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva (que já
estudamos – item 3.5, acima), do princípio do devido processo legal e do
princípio do contraditório e da ampla defesa.
A segunda observação, ao adentrarmos ao campo do estudo dos
princípios do processo civil propriamente, é que nem tudo aquilo que a doutrina
tradicional chama de “princípios” do processo civil se trata, na acepção
tecnicamente restrita apresentada acima, de verdadeiros princípios jurídicos.
Trata-se, antes, de regras; como são regras muito básicas do processo, das
quais outras tantas regras dependem, a doutrina clássica as denominou como
“princípios”.
Há, portanto, um sem-número de normas processuais que recebem o
nome de princípios além das que iremos estudar nesta lição (muitas das quais
podem nem mesmo ser consideradas, tecnicamente, como verdadeiros
princípios). Estas, contudo, devem ser aprofundadas a propósito da disciplina
específica que integram (por exemplo, ao estudar-se o tema “provas”, deve-se
estudar os princípios do livre convencimento motivado, da imetiadicidade, da
concentração, etc.; em matéria de nulidade, o princípio da instrumentalidade
das formas, o princípio do prejuízo, etc.).
Por isso, a fim de evitar a desnecessária repetição de certos assuntos
(estudando-os a título de “princípios” neste momento da disciplina de teoria

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geral e, depois, novamente, nesta mesma ou em outra disciplina, quando do


aprofundamento da matéria a que estão correlacionados), nesta lição são
apresentados apenas aqueles “princípios” de maior abrangência.

4.1.2 O novo Código de Processo Civil e as “normas fundamentais do


processo civil”

Até a aprovação do novo Código de Processo Civil, não havia uma


disciplina normativa única para os princípios do processo. Alguns são
encontrados na Constituição. Outros foram identificados, historicamente, pela
doutrina. E outros, ainda, eram extraídos de dispositivos esparsos do Código
de 1973.
Como o novo Código dedica um capítulo inteiro às “normas
fundamentais do processo civil” (artigos 1º a 12), podemos usá-lo como ponto
de partida do nosso estudo acerca dos princípios processuais (e podemos
notar, ainda, que o Código foi atento à confusão terminológica já demonstrada
no subitem anterior). Assim, transcrevem-se, a seguir, os artigos mencionados,
até mesmo para facilitar o acompanhamento da exposição da matéria:

Art. 1º O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado


conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na
Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as
disposições deste Código.

Art. 2º O processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por


impulso oficial, salvo as exceções previstas em lei.

Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a


direito.
§ 1º É permitida a arbitragem, na forma da lei.
§ 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução
consensual dos conflitos.
§ 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução
consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes,
advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público,
inclusive no curso do processo judicial.

Art. 4º As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução


integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.

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Art. 5º Aquele que de qualquer forma participa do processo deve


comportar-se de acordo com a boa-fé.

Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para


que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.

Art. 7º É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao


exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa,
aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais,
competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório.

Art. 8º Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins


sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo
a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a
razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.

Art. 9º Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela
seja previamente ouvida.
Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica:
I – à tutela provisória de urgência;
II – às hipóteses de tutela da evidência previstas no art. 311, incisos II
e III;
III – à decisão prevista no art. 701.

Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com
base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes
oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a
qual deva decidir de ofício.

Art. 11. Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão


públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade.
Parágrafo único. Nos casos de segredo de justiça, pode ser
autorizada a presença somente das partes, de seus advogados, de
defensores públicos ou do Ministério Público.

Art. 12. Os juízes e os tribunais atenderão, preferencialmente à


ordem cronológica de conclusão para proferir sentença ou acórdão.
(redação dada pela Lei 13.256/2016)
§ 1º A lista de processos aptos a julgamento deverá estar
permanentemente à disposição para consulta pública em cartório e
na rede mundial de computadores.
§ 2º Estão excluídos da regra do caput:
I – as sentenças proferidas em audiência, homologatórias de acordo
ou de improcedência liminar do pedido;
II – o julgamento de processos em bloco para aplicação de tese
jurídica firmada em julgamento de casos repetitivos;
III – o julgamento de recursos repetitivos ou de incidente de resolução
de demandas repetitivas;
IV – as decisões proferidas com base nos arts. 485 e 932;
V – o julgamento de embargos de declaração;
VI – o julgamento de agravo interno;
VII – as preferências legais e as metas estabelecidas pelo Conselho
Nacional de Justiça;
VIII – os processos criminais, nos órgãos jurisdicionais que tenham
competência penal;
IX – a causa que exija urgência no julgamento, assim reconhecida por
decisão fundamentada.

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§ 3º Após elaboração de lista própria, respeitar-se-á a ordem


cronológica das conclusões entre as preferências legais.
§ 4º Após a inclusão do processo na lista de que trata o § 1º, o
requerimento formulado pela parte não altera a ordem cronológica
para a decisão, exceto quando implicar a reabertura da instrução ou a
conversão do julgamento em diligência.
§ 5º Decidido o requerimento previsto no § 4º, o processo retornará à
mesma posição em que anteriormente se encontrava na lista.
§ 6º Ocupará o primeiro lugar na lista prevista no § 1º ou, conforme o
caso, no § 3º, o processo que:
I – tiver sua sentença ou acórdão anulado, salvo quando houver
necessidade de realização de diligência ou de complementação da
instrução;
II – se enquadrar na hipótese do art. 1.040, inciso II.

Nosso estudo, portanto, utilizará o novo CPC como base. Não podemos
esquecer, no entanto, que o fundamento do processo civil contemporâneo é
encontrado na Constituição. Assim, devemos também considerar atentamente
algumas normas constitucionais, até mesmo por estarem, estas, na base de
todo o sistema processual (ou seja, precederem o próprio Código de Processo
Civil).

4.2 Artigo 5º, LIV, da Constituição. Devido processo legal

Diz-se que o princípio do “devido processo legal” é a base de todo o


sistema e estrutura processuais. Sobretudo, trata-se de uma garantia
constitucional.
Entre nós o devido processo legal é encontrado no artigo 5º, LIV, da
Constituição, cujo teor é “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens
sem o devido processo legal”.
Exceto no que diz respeito à menção à vida (já que, no Brasil, não há,
em tempo de paz, pena de morte), o artigo 5º, LIV, de nossa Constituição
constitui tradução literal de parte da 5ª Emenda à Constituição dos Estados
Unidos, aprovada em 1791 (“No person shall be [...] deprived of life, liberty or
property, without due process of law”). Aliás, esse princípio, enquanto garantia,
é reconduzido à Magna Charta inglesa (de 1215).

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Os demais princípios constitucionais do processo civil (e, ademais, toda


a disciplina processual) são considerados desdobramentos do princípio do
devido processo legal.
Convém apenas mencionar que, embora o constituinte brasileiro tenha
realizado não mais do que uma tradução literal da 5ª Emenda americana, esta
tradução não foi feliz, nem do ponto de vista linguístico, nem do ponto de vista
jurídico. Se considerarmos tanto a questão linguística quanto a questão da
tradição jurídica, facilmente compreenderemos que a melhor tradução para law
é direito, e não lei. Assim, o princípio é mesmo melhor compreendido como
devido processo de direito (ou jurídico), e não como devido processo legal. Isso
reforça a afirmação, já realizada em outra lição e retomada no item 4.4
(abaixo), de que a tutela jurisdicional efetiva não depende, necessariamente,
de previsão legal expressa de procedimento ou de técnica processual.

4.3 Artigo 5º, LV, da CRFB. Princípios do contraditório e da ampla defesa

Talvez o primeiro desdobramento histórico do princípio do devido


processo legal (demonstrando, especialmente, como este, enquanto garantia,
foi muito pensado a partir de uma perspectiva restrita ao réu) tenha sido o
direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa. Em nossa Constituição,
o artigo 5º, LV, trata do assunto:

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos


acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa,
com os meios e recursos a ela inerentes;

Há que se fazer uma divisão do dispositivo, para sua melhor


compreensão. O contraditório é dirigido, como veremos a seguir, a ambas as
partes. A ampla defesa, obviamente, dirige-se apenas ao réu.

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4.3.1 Conteúdo do princípio do contraditório

O princípio do contraditório é também chamado de princípio da


bilateralidade de audiência (ambas as partes devem ser igualmente “ouvidas”).
A doutrina tradicional o considera em duas perspectivas correlacionadas: (1)
contraditório como possibilidade de influência sobre a decisão (o que é
chamado de contraditório “material” ou “substancial”); e (2) contraditório como
“paridade de armas”.
Assim, o contraditório indica (1) que ambas as partes devem ter
possibilidade de influenciar a decisão judicial, com argumentos (fáticos e
jurídicos) e com a produção de provas. A propósito, o artigo 9º do novo CPC
expressamente proíbe que seja proferida decisão contra uma das partes “sem
que ela seja previamente ouvida” (o que é confirmado, mesmo a propósito de
matérias de ordem pública, pelo artigo 10). As exceções à regra são
encontradas no parágrafo único do artigo 9º.
Ora, se ambas as partes devem ser ouvidas antes da decisão, isso
indica que o contraditório, antes de qualquer coisa, é expressão do princípio da
igualdade. No entanto, como, no atual estágio do Constitucionalismo, o
conceito de igualdade não é mais meramente formal, sendo, antes, material
(indicando que os desiguais devem ser tratados de forma desigual, na medida
de sua desigualdade), tem-se, ainda (2) o contraditório como paridade de
armas, indicando que o juiz pode atuar de forma proativa, em favor de uma das
partes, quando esta estiver manifestamente em condição de inferioridade no
plano material. O artigo 7º do novo Código trata do contraditório enquanto
paridade de armas.

4.3.2 A ampla defesa e os “meios e recursos a ela inerentes”

O direito de defesa é, sem dúvida, um direito fundamental. Mas, como


direito fundamental, não é um direito absoluto. Para entender como é possível
que sejam restringidas, constitucionalmente, as possibilidades de defesa do
réu, as palavras-chaves são os “meio e recursos a ela [ampla defesa]

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“sem juridiquês”

inerentes”, que encontramos no próprio texto do inciso LV do artigo 5º da


Constituição.
O adjetivo “inerente” é o que permite que se investigue, no campo do
direito material, quais são as reais necessidades ligadas ao exercício do direito
de defesa – e, mais do que isso, se há justificativa, ligada à peculiaridade da
situação de direito material, para restrição ao direito de defesa.

4.3.2.1 Possibilidade de restrição aos “meios” de defesa

Assim, ao considerarmos o subjetivo “meios” em sua correlação com o


adjetivo “inerentes” concluímos que pode haver, em razão da preponderância
de outro valor constitucional, limitação de meios de defesa. Os “meios”
garantidos são apenas aqueles “inerentes” à ampla defesa (inerentes porque
estão relacionados com as necessidades do direito material).
Nessa perspectiva, têm-se alguns exemplos em que as peculiaridades
da situação de direito material possibilitam a restrição à cognição judicial (quer
dizer, à matéria que pode ser conhecida pelo juiz em determinado processo):

- na ação de desapropriação apenas se discute o valor da indenização;


- nas ações possessórias somente se discute a posse;
- no mandado de segurança apenas se discute sobre o que pode ser
provado exclusivamente por documentos.

4.3.2.2 Possibilidade de restrição a “recursos” (ou: é o duplo grau de


jurisdição, em matéria cível, um direito fundamental?)

Ao considerarmos o substantivo “recursos,” por outro lado, introduz-se


uma pergunta: o duplo grau de jurisdição é um princípio constitucional (ou, em
outras palavras, o duplo grau, em matéria cível, é um direito fundamental)?
Mas, para entendermos o que significa essa pergunta, devemos
considerar brevemente como funcionam os graus de jurisdição do Brasil (e as
linhas que seguem, além de complementarem o conteúdo do item 1.6, acima,

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serão, também, bastante útil para uma melhor compreensão do tema dos
precedentes, objeto da Lição 9, abaixo).
Como já vimos, a característica dos dois graus de jurisdição é que eles
exercem cognição completa sobre os fatos e sobre o direito a eles aplicado.
Em outras palavras, os tribunais de 2º grau de jurisdição podem (na medida em
que provocados pelas partes por meio de recursos, obviamente) revisar toda a
matéria fática considerada pelos juízos de 1º grau, inclusive reapreciando a
prova.
A competência dos tribunais no exercício do 2º grau de jurisdição é
chamada de competência recursal ordinária.
No âmbito dos recursos ditos excepcionais (os mais conhecidos dos
quais são o recurso extraordinário ao STF, o recurso especial ao STJ, e o
recurso de revista ao TST), no entanto, os “Tribunais Superiores” (hoje mais
corretamente devendo ser adjetivados como Cortes “Supremas”), não podem
reexaminar fatos e provas. Esta é a competência recursal extraordinária ou
excepcional. Como também já vimos, não é correto falar-se em 3º grau de
jurisdição, exatamente porque os Tribunais de Sobreposição não podem
reexaminar fatos e provas.
Mas os tribunais também podem funcionar como 1º grau de jurisdição,
nas chamadas ações de competência originária. Esta é a competência
originária dos tribunais. Quando um tribunal funciona como 1º grau de
jurisdição (competência originária), é possível que outro tribunal,
hierarquicamente superior, funcione como 2º grau de jurisdição (exercendo,
assim, portanto, competência recursal ordinária). Hipótese de competência
recursal ordinária dos “Tribunais Superiores” é encontrada na possibilidade de
interposição de recurso ordinário contra decisão denegatória de ações
constitucionais (mandados de segurança, habeas corpus e habeas data),
quando estas ações forem de competência de outro tribunal. Por estar a
hipótese prevista expressamente na Constituição, este tipo de recurso é
também chamado de recurso ordinário constitucional.

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Agora que já compreendemos como funcionam, em linhas gerais, os


graus de jurisdição no Brasil, podemos retornar à pergunta: o duplo grau é um
direito fundamental em matéria cível?
A resposta à pergunta é negativa. O duplo grau de jurisdição (ao menos
em matéria cível) não é um direito fundamental. Isso quer dizer que é possível
que haja, na lei, restrições à interposição de recurso contra uma decisão de 1º
grau. Isso somente pode acontecer, no entanto, se essa restrição encontrar
fundamento nas peculiaridades do direito material.
Em matéria penal, no entanto, em razão da aplicação do Pacto de São
José da Costa Rica como norma supralegal (entendimento do STF), deve-se
considerar a existência de duplo grau obrigatório.

4.4 Artigo 5º, XXXV, da CRFB. Inafastabilidade da jurisdição, acesso à


justiça e direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva

Já estudamos de forma específica, ao tratamos do impacto do


constitucionalismo sobre o processo civil atual, o artigo 5º, XXXV, da
Constituição (item 3.5, acima). Não é necessário abordar de forma exaustiva
o assunto, senão apenas para relembrar que são possíveis três leituras
sucessivas a partir desse dispositivo: (1) inafastabilidade da jurisdição, (2)
acesso universal à justiça e (3) direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva.
Lembremos, ainda, que o direito à tutela jurisdicional efetiva permite a
criação judicial do procedimento e das técnicas processuais adequadas às
necessidades do direito material. O objetivo do processo é a satisfação do
direito material. Nesse sentido, o artigo 4º do novo CPC afirma que as partes
têm direito à obtenção, em tempo razoável, não apenas da solução do mérito
da demanda, mas da própria “medida satisfativa” (ou seja, aquela medida
processual que vai satisfazer o direito).
A propósito, o direito fundamental à tutela jurisdicional induz a
necessidade de que o processo civil se preocupe com as necessidades do
autor, a fim de que este possa obter a satisfação de seu direito de forma
integral e em tempo razoável (ver o item 4.4.2, abaixo). Isso é particularmente

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relevante se considerarmos que, historicamente (inclusive a partir da


perspectiva do direito à ampla defesa, considerado no item anterior), o
processo civil foi pensado quase que exclusivamente a partir das necessidades
do réu.

4.4.1 Meios alternativos de solução de controvérsias: arbitragem,


mediação e conciliação

A expressão literal da inafastabilidade da jurisdição é ainda encontrada


no artigo 3º do novo CPC. Este, em seu § 1º, menciona a arbitragem como
sendo uma prática lícita e que não contraria o princípio da inafastabilidade da
jurisdição. Detenhamo-nos um pouco sobre este assunto (arbitragem).
A arbitragem, disciplinada pela Lei 9.307/1996, é um dos métodos de
solução extrajudicial dos conflitos (outros, de natureza consensual, são
mencionados no § 3º do mesmo artigo 3º do novo CPC) que pressupõe a
submissão do litígio a um árbitro, escolhido pelas partes. O árbitro é um
particular – e, assim, a solução da lide não será dada pelo Estado.
A sentença arbitral vale como título executivo judicial, o que significa
dizer que não pode ser revista pelo Poder Judiciário. A única coisa que é
possível pedir ao Judiciário é que examine a nulidade do procedimento arbitral
(conforme artigos 32 e 33 da Lei 9.307/1996).
Muito se discutiu, historicamente, a respeito dessa impossibilidade de
revisão da sentença arbitral pelo Poder Judiciário. Alguns afirmaram que a
previsão seria inconstitucional, por ofensa ao princípio da inafastabilidade da
jurisdição.
Outros, por sua vez, diante da menção à sentença arbitral como título
executivo judicial, compreenderam que a arbitragem seria espécie de atividade
jurisdicional delegada...
Nenhuma das duas posições, no entanto, está correta. Como a
jurisdição é atividade exclusiva do Estado, a arbitragem não pode ser
considerada atividade jurisdicional (princípio da indelegabilidade da jurisdição,
que é um desdobramento do princípio da inafastabilidade). No entanto, a

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exclusão de possibilidade de revisão do mérito da decisão arbitral pelo Poder


Judiciário é compatível com a Constituição na perspectiva da natureza dos
direitos que podem ser submetidos à arbitragem: apenas direitos patrimoniais
disponíveis (artigo 1º da Lei 9.307/1996). Aliás, o contexto de atuação
corriqueiro da arbitragem é composto por complexos contratos comerciais
(muitas vezes internacionais), dotados de especificidades técnicas que
demandam conhecimentos próprios para sua solução – e este é o próprio
âmbito de formação e de atuação do árbitro.
Assim, a não submissão do litígio à jurisdição é decorrente do exercício
de autonomia da vontade das partes, o que é plenamente constitucional na
medida em que se está tratando apenas de direitos patrimoniais disponíveis.
A arbitragem, ao lado da jurisdição, é uma forma de heterotutela, porque
a solução da controvérsia será dada por um terceiro, diferente das partes. A
diferença entre a arbitragem e a jurisdição é que, nesta (jurisdição), o terceiro
(juiz), integra a estrutura estatal e, naquela (arbitragem), o terceiro, árbitro, é
um sujeito privado, não integrante da estrutura estatal.
Mas o § 3º do artigo 3º do novo CPC trata, ainda, de formas de
autocomposição (ou seja, situações nas quais o conflito é composto pelas
partes, sem a necessidade da decisão de um terceiro): a mediação e a
conciliação. A diferença entre uma e outra é que, na mediação, há um terceiro
que atua apenas como facilitador da negociação entre as partes (mas este
terceiro não tem a incumbência de decidir a controvérsia), e na conciliação as
próprias partes chegam à composição do litígio.
De acordo com o § 2º do mesmo dispositivo, é incumbência do Estado
promover, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos. Isso revela
uma opção principiológica do novo CPC por esses meios alternativos de
solução de controvérsias – mas não quer dizer que alguma coisa tenha
efetivamente mudado na prática; cultura não se muda na base do canetaço...

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Heterotutela Autocomposição
(solução do conflito por um terceiro) (solução do conflito pelas partes)

Jurisdição Mediação

Arbitragem Conciliação

4.4.2 Direito fundamental à razoável duração do processo

Já se afirmou que o direito à tutela jurisdicional efetiva compreende,


também, que esta tutela seja tempestiva. Assim, o direito fundamental à
razoável duração do processo, inserido no inciso LXXVIII do artigo 5º da
CRFB pela EC 45/2004, pode ser considerado como uma decorrência daquele
(direito à tutela efetiva). Em outras palavras, se não existisse o mencionado
inciso LXXVIII, ainda assim a tutela jurisdicional teria de ser célere.
Aliás, é interessante perceber que o novo CPC, em seu artigo 4º, traz
previsão que inclui, no direito à obtenção de solução integral do mérito em
tempo razoável, a atividade jurisdicional satisfativa (quer dizer, a efetivação de
técnica processual que satisfaça o direito do autor).

4.4.2.1 Princípios da economia e da celeridade

Dois princípios clássicos do processo civil que sempre andaram juntos e


que foram deduzidos pela doutrina muito antes da positivação constitucional do

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direito fundamental à razoável duração são os princípios da economia e da


celeridade processuais. Hoje, estes podem ser considerados como
desdobramentos daquele, uma vez que ambos estão ligados à ideia de
prestação jurisdicional tempestiva.
O princípio da economia nos informa que não devem ser praticados atos
processuais inúteis e que, por isso mesmo, todos os atos possíveis devem ser
praticados na mesma oportunidade, assim como resolvidas todas as questões
passíveis de resolução. É o princípio da economia que está por trás de outros
princípios processuais, como o princípio da concentração da defesa (que diz
que o réu deve alegar, na contestação, todas as questões jurídicas
relacionadas à sua defesa, exceto aquelas que devem ser objeto de exceção)
e, ainda, da teoria da asserção (que estudaremos mais adiante, ao tratarmos
das condições da ação).
Ligado ao princípio da economia temos ainda o princípio da celeridade
processual, que nos diz que o andamento do processo deve ser ágil e rápido.

4.5 Princípios da publicidade do processo e da fundamentação das


decisões

Reproduzindo a parte inicial do artigo 93, IX, da CRFB, o artigo 11 do


novo CPC afirma que “Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário
serão públicos, e fundamentadas todas as decisões.”
Na verdade, não apenas os julgamentos devem ser públicos. Todo o
processo é público. Por isso, o artigo 7º, XIII, da Lei 8.906/1994 (Estatuto da
Advocacia e da OAB) confere aos advogados, independentemente de
procuração, a possibilidade de exame dos autos de qualquer processo,
ressalvado o sigilo.
Nessa perspectiva, o artigo 5º, LX, da CRFB afirma que “a lei só poderá
restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou
o interesse social o exigirem.” Quando um processo tramita de forma sigilosa,
diz-se que ele tramita em “segredo de justiça.” Exemplos de situações de
segredo de justiça são a presença de menores no processo, as questões de

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direito de família de forma geral, e a quebra de sigilo fiscal e bancário (vindo


estes dados ao processo, este passa a tramitar de forma sigilosa).
Já a fundamentação das decisões é um requisito ligado à própria
legitimação social destas. A possibilidade de controle de uma decisão judicial
está em sua fundamentação. A fundamentação deve ser clara, até mesmo para
possibilitar à parte prejudicada a interposição de recurso.
Se a decisão não for fundamentada, ou contiver fundamentação
deficiente, ela será nula (o mesmo valendo para o julgamento sem publicidade,
ressalvada, obviamente, a hipótese de sigilo).

4.6 Inércia da Jurisdição: princípios dispositivo, da demanda e do impulso


oficial

De acordo com o artigo 2º do novo CPC, “O processo começa por


iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial.”
Nele, encontra-se a expressão legislativa de três importantes princípios
do processo civil reconhecidos historicamente pela doutrina, desdobramentos
do princípio da inércia da jurisdição.
O primeiro é o princípio dispositivo (relacionado à ideia de “iniciativa da
parte”), segundo o qual o juiz deve julgar a causa com base nos fatos alegados
e provados pelas partes. O juiz jamais poderá suprir a falta de alegação de
algum fato pela parte. No entanto, entende-se que o juiz, especialmente na
hipótese de hipossuficiência de uma das partes, é dotado de poderes
instrutórios, podendo determinar a produção de determinada prova, ainda que
o fato respectivo não tenha sido provado pela parte a quem incumbia.
Já o princípio da demanda, desdobramento do primeiro, nos informa que
o juiz está limitado, na resolução do processo, aos pedidos das partes. Trata-se
do chamado princípio da adstrição da sentença ao pedido. No entanto, em
razão do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, isso só vale, hoje,
para obrigações de pagar (sobre isso, veja-se a Lição 6, abaixo).
Por fim, a parte final do artigo 2º do novo CPC revela o chamado
princípio do impulso oficial, segundo o qual, embora o processo dependa de

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iniciativa da parte para começar, ele deve seguir o seu curso


independentemente de provocação pelas partes.

4.7 Princípios da boa-fé e da cooperação

Uma compreensão equivocada da postura das partes no processo tende


a compreender que estas devem agir exclusivamente no seu próprio interesse,
de forma, portanto, completamente desavisada e egoística. Isso implicaria a
possibilidade de omissão de determinados fatos relevantes para a solução da
causa que lhes fossem prejudiciais e mesmo a dedução de teses jurídicas
completamente infundadas.
Mas isso não é aceito pelo processo civil contemporâneo, que nos
informa que a atuação das partes deve ser proba, e que estas, em verdade,
devem cooperar com o juiz para a reconstrução judicial dos fatos e o encontro
da solução jurídica.
As ideias mencionadas no parágrafo anterior podem ser resumidas nos
princípios da boa-fé (ou probidade) e da cooperação.
O primeiro é expressamente mencionado no artigo 5º do novo CPC. O
segundo é encontrado no artigo 6º. Na verdade, é deste último (quer dizer, do
princípio da cooperação) que se extai a base para a compreensão do
contraditório em perspectiva material (direito de exercer efetiva influência sobre
a decisão judicial), estabelecendo-se o dever de diálogo do juiz com as partes
– a esse respeito, veja-se o item 4.3.1, acima. Fala-se, hoje em dia, em
“processo colaborativo.”
A chamada litigância de má-fé, desdobramento do princípio da boa-fé, é
punida pela legislação processual. No novo CPC, o assunto é disciplinado nos
artigos 79 a 81:

Art. 79. Responde por perdas e danos aquele que litigar de má-fé
como autor, réu ou interveniente.

Art. 80. Considera-se litigante de má-fé aquele que:


I – deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato
incontroverso;

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II – alterar a verdade dos fatos;


III – usar do processo para conseguir objetivo ilegal;
IV – opuser resistência injustificada ao andamento do processo;
V – proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do
processo;
VI – provocar incidente manifestamente infundado;
VII – interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.

Art. 81. De ofício ou a requerimento, o juiz condenará o litigante de


má-fé a pagar multa, que deverá ser superior a um por cento e
inferior a dez por cento do valor corrigido da causa, a indenizar a
parte contrária pelos prejuízos que esta sofreu e a arcar com os
honorários advocatícios e com todas as despesas que efetuou.
§ 1º Quando forem 2 (dois) ou mais os litigantes de má-fé, o juiz
condenará cada um na proporção de seu respectivo interesse na
causa ou solidariamente aqueles que se coligaram para lesar a parte
contrária.
§ 2º Quando o valor da causa for irrisório ou inestimável, a multa
poderá ser fixada em até 10 (dez) vezes o valor do salário-mínimo.
§ 3º O valor da indenização será fixado pelo juiz ou, caso não seja
possível mensurá-lo, liquidado por arbitramento ou pelo procedimento
comum, nos próprios autos.

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4.8 Quadro Esquemático

Princípio Previsão constitucional Previsão no


novo CPC

Devido Processo Legal Artigo 5º, LIV -

Artigo 7º (paridade de
Contraditório e ampla Artigo 5º, LV armas)
defesa Artigos 9º e 10
(bilateralidade de
audiência)

Inafastabilidade da Artigo 5º, XXXV Artigos 3º e 4º


jurisdição, acesso à
justiça e direito
fundamental à tutela
jurisdicional efetiva

Direito fundamental à Artigo 5º, LXXVIII Artigo 4º


razoável duração do
processo
- Economia
- Celeridade

Publicidade e Artigo 93, X Artigo 11


fundamentação

Princípios dispositivo, da
demanda e do impulso - Artigo 2º
oficial

Princípios da boa-fé e - Artigos 5º e 6º


da cooperação

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5 JURISDIÇÃO

Já temos elementos suficientes, a partir das lições anteriores, para


estudarmos o que é a jurisdição, ponto fundamental para o estudo da teoria do
processo civil.
Historicamente, a ideia de jurisdição está ligada à soberania do Estado.
A jurisdição, função exercida pelo Poder Judiciário, é uma função de soberania
do Estado. Daí vem o princípio, já considerado por nós na lição anterior (item
4.4.1, acima), da indelegabilidade da jurisdição.
Mas a jurisdição, historicamente, não foi considerada apenas uma
parcela da soberania do Estado. Ela foi demonstrada, também, a partir da ideia
de vedação à autotutela. Autotutela significa “autoproteção.” A partir do
momento em que o Estado retira dos particulares a possibilidade de se
defenderem contra outros particulares (“fazer justiça com as próprias mãos”),
ele (Estado) tem o dever de solucionar os conflitos. A essa solução dos
conflitos por um terceiro, pelo Estado, chama-se heterotutela. Note-se a
influência do contratualismo19 sobre a ideia de jurisdição. A heterotutela pode
ser resumida na ideia de substituição (quer dizer, o Estado substitui as partes
na solução do conflito).
Ao estudarmos os conceitos de jurisdição, então, é importante que
tenhamos essas duas ideias presentes: a ideia de soberania e a ideia de
substituição (heterotutela).

5.1 Os conceitos de jurisdição formulados no contexto do Estado


Legislativo

Nosso primeiro passo no estudo de um conceito de jurisdição é


aprendermos os conceitos que foram desenvolvidos durante o período do

19
Em resumo, a teoria do contrato social, nas diferentes formas em que foi apresentada por
Hobbes, Locke e Rousseau, diz que os homens, ao saírem do estado de natureza para o
estado social, entregaram parcela de sua soberania individual ao Estado, em troca de
proteção.

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Estado Legislativo. Assim, é importante que tenhamos em mente o conteúdo


do Apêndice III, abaixo. Após, podemos fazer a apreciação crítica destes
conceitos, tendo em mente o conteúdo da Lição 3, acima.
Para Chiovenda, a jurisdição é a atividade do Estado que, em
substituição às partes, realiza a atuação da vontade concreta da lei. Ou seja,
aplica a lei, revelando a sua vontade, ao caso concreto.
Para Carnelutti, por sua vez, a jurisdição é a atividade do Estado que,
em substituição às partes, realiza a justa composição da lide. Aqui, entra em
cena outro conceito importante: lide, segundo Carnelutti, é o conflito de
interesses qualificado por uma pretensão resistida.
De acordo com essa definição de Carnelutti, aqueles procedimentos
especiais chamados de procedimentos de “jurisdição voluntária,” por não
pressuporem uma lide, não seriam propriamente considerados jurisdicionais.
Tratar-se-ia de “administração pública de interesses privados”; atividade
administrativa, e não jurisdicional (segundo essa visão inicial de Carnelutti,
reforça-se).

Conceitos de Jurisdição no Estado Legislativo

Chiovenda Atuação da vontade concreta da lei

Carnelutti Justa composição da lide (conflito de


interesses qualificado por uma
pretensão resistida)

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5.2 Em busca de um conceito de jurisdição no Estado Constitucional

Não é necessário muito esforço para perceber que o Estado


Constitucional (ou Neoconstitucional, se preferirem) coloca em xeque os
conceitos clássicos de jurisdição desenvolvidos durante o Estado Legislativo
(como as ideias de Chiovenda e de Carnelluti). Aqui, reforça-se, é necessário
termos em mente o conteúdo estudado na Lição 3 (acima).
Se é possível controlar o conteúdo da lei em face da Constituição – e,
portanto, o juiz pode deixar de aplicar a lei se esta for inconstitucional ou,
ainda, dar tutela, de forma direta, a um direito fundamental na falta de lei –
parece que a ideia de “atuação da vontade concreta da lei” (definição de
jurisdição de Chiovenda) fica bastante prejudicada.
Por outro lado, como também vimos, o juiz pode ajustar o conteúdo da
lei à Constituição, e ainda, controlar a falta de lei, aplicando um direito
fundamental diretamente a um caso concreto.
Assim, a partir da compreensão de que a função do Estado
contemporâneo é dar tutela aos direitos, é mais adequado definir jurisdição
como a atividade pela qual o Estado dá tutela jurisdicional aos direitos,
reconstruindo o direito a partir da Constituição e do texto da lei. O conceito,
embora singelo, permite uma compreensão abrangente e suficiente da
atividade jurisdicional.
A atividade jurisdicional, portanto, é informada pela supremacia da
Constituição e pela necessidade de compreender toda a ordem jurídica a partir
daquela (Constituição) e dos direitos fundamentais nela consagrados. Como
ensina Owen Fiss, a função da jurisdição é concretizar os valores
constitucionais.
O juiz aplica – ou não aplica, no caso de inconstitucionalidade – a lei a
partir da Constituição e dos direitos fundamentais. E, mais do que isso, altera a
compreensão da lei, interpretando-a, para aplicá-la a partir dos direitos
fundamentais. E ainda mais do que isso: pode dar tutela jurisdicional direta a
algum direito fundamental, mesmo na falta de lei (omissão inconstitucional).

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Essa compreensão de que o direito é reconstruído pelo Poder Judiciário


determinada pelo impacto do Neoconstitucionalismo e da ideologia dinâmica da
interpretação faz com que, mesmo na tradição civil law em geral, e no Brasil
em especial, a função dos assim chamados “Tribunais Superiores”
(especialmente o STJ e o STF) seja revista, passando-se a compreendê-los
como verdadeiras “Cortes Supremas”, responsáveis por desenvolver o Direito e
agregar segurança jurídica ao sistema. Esse assunto será aprofundado na
Lição 9 (abaixo).
Não fosse isso bastante, esse novo conceito de jurisdição também
demonstra que a atividade chamada de “jurisdição voluntária,” mesmo sem
pressupor uma lide, é atividade jurisdicional. Se foi conferida ao Poder
Judiciário a função de dar tutela a algum direito (em razão de sua relevância), é
a necessidade de tutela jurisdicional, e não a lide, que caracteriza a jurisdição.
Com isso se demonstra que a compreensão inicial de Carnellutti, de
que a jurisdição pressuporia uma lide, também está superada. Pode haver ou
não a lide; não é isso que caracteriza a jurisdição. O que caracteriza a
jurisdição, não é demais reforçar, é a necessidade de que se dê tutela
jurisdicional aos direitos, enquanto função específica da missão mais ampla do
Estado contemporâneo (que é, exatamente, dar tutela aos direitos).
A forma como o Estado se estrutura, seja no plano material (formas de
tutela), seja no plano processual (procedimento e técnicas processuais), para
dar tutela aos direitos é assunto da nossa próxima Lição.
Por fim, para uma abordagem crítica a respeito da nossa atual
organização social, dependente de um Estado centralizador de poder, veja-se o
Apêndice IV, abaixo. A partir da ética libertária, é possível defender um
sistema de justiça completamente privado (ou seja, uma “jurisdição privada”), o
que, obviamente, confronta tudo o que foi estudado até aqui, e especialmente
nesta lição.

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6 TUTELA DOS DIREITOS. TUTELA JURISDICIONAL DOS DIREITOS.


PROCESSO E PROCEDIMENTO. TÉCNICA PROCESSUAL

6.1 Introdução. Função do Estado Constitucional. Dar tutela aos direitos

Neste momento, devemos lembrar que já vimos, no item 3.4 (acima),


que, no (neo)Constitucionalismo, a missão do Estado é dar tutela aos direitos.
Em outras palavras, o Estado (neo)constitucional existe para proteger os
direitos, especialmente os direitos fundamentais.
E essa proteção (tutela) aos direitos deve ser garantida pelo Estado por
meio das suas três diferentes funções (ou Poderes): o Estado deve conferir
tutela aos direitos legislando (Poder Legislativo), administrando (Poder
Executivo) ou julgando (Poder Judiciário).

6.2 Compreensão do direito material no Estado contemporâneo.


Estabelecimento de “posições juridicamente protegidas.” Formas de
tutela

A partir dessa nova compreensão das funções do Estado, o próprio


direito material passa a ser repensado.
De uma lógica que considerava o direito subjetivo de forma isolada
passamos à compreensão de que o direito material estabelece “posições
juridicamente protegidas”.
Considerar o direito subjetivo de forma isolada (compreensão construída
ao longo do Estado Legislativo) é trabalhar apenas com a lógica “direito-dever:”
a cada direito corresponde um dever correlato.
Considerar o direito material como estabelecendo posições
juridicamente protegidas, no entanto, é compreender que, ao tempo em que o
Estado estabelece um direito, ele estabelece diversas formas diferentes de
proteger este direito, especialmente a fim de evitar a realização de danos.
A essas diversas maneiras diferentes de proteger o direito, previstas no
plano material, chamamos de formas de tutela.

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Compreensão contemporânea do direito material

Estabelecimento de “posições Diversas formas de proteção ao


juridicamente protegidas” direito
(formas de tutela)
Objetivo principal: evitar a realização
de danos

Para melhor compreender essa maneira como o direito material funciona


atualmente, precisamos estudar as formas de tutela propriamente ditas.
Iniciemos com as duas formas que oferecem menos dificuldade para
compreensão.

6.3. Tutela declaratória

Diante de situações de incerteza, geradas pela controvérsia entre duas


ou mais pessoas, faz-se necessária a tutela declaratória, a fim de que se
restabeleça a certeza a respeito da relação de direito material.
Dificilmente, no entanto, a incerteza é a única situação jurídica que
precisa ser tutelada em uma determinada relação. Por isso é que se afirma que
a tutela declaratória sempre será pressuposto das demais formas de tutela.

6.4 Tutela constitutiva

Por outro lado, para a constituição ou a desconstituição de determinadas


situações jurídicas existe a tutela constitutiva (chamada, respectivamente, de

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positiva ou negativa; a tutela constitutiva negativa pode, ainda, ser chamada de


desconstitutiva).
Exemplos de tutela constitutiva são a anulação de um contrato ou o
divórcio (ambas são hipótese de desconstituição, perceba-se).

6.5 Esclarecimento necessário. Diferença entre ilícito e dano

Superadas, sem maiores dificuldades, as duas primeiras, para que


consigamos compreender o funcionamento das demais formas de tutela
existentes no plano do direito material e a sua diferença é necessário,
previamente, que entendamos a diferença entre ilícito e dano.
Se não fizermos essa distinção, não seremos capazes de perceber que
é possível evitar a ocorrência do próprio dano. E se não formos capazes de
evitar o dano, trabalharemos apenas com a velha lógica de conversão dos
direitos em seu equivalente pecuniário.
Diz-se que o dano é consequência eventual do ilícito. O que isso
significa?
Significa que há uma divisão lógica entre ilícito e dano. O ilícito acontece
primeiro, para depois, eventualmente, acontecer o dano. Eventualmente porque
é possível que o ilícito aconteça, mas o dano, não.
O ilícito nada mais é do que a contrariedade à ordem jurídica, ao Direito.
O dano, por sua vez, é o efetivo prejuízo.
Basta que pensemos na condução de um veículo automotor para que
consigamos intuir, de forma muito clara, a diferença. Diariamente diversos
ilícitos são cometidos no trânsito (como a condução do automóvel acima da
velocidade permitida, o cruzamento de um sinal vermelho, etc.) sem que,
necessariamente, haja algum dano (prejuízo efetivo). Se, contudo, ocorrer um
prejuízo efetivo (um acidente de trânsito), é possível identificar o responsável
investigando-se quem, na situação concreta, violou uma norma de trânsito (em
outras palavras, cometeu o ilícito).

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Dano: consequência eventual do ilícito

6.6 Formas de tutela que objetivam evitar o acontecimento do dano:


tutelas inibitória e tutela de remoção do ilícito

As formas de tutela que têm por objetivo evitar o acontecimento do dano


são chamadas de tutela inibitória e tutela de remoção do ilícito.
A tutela inibitória é aquela que objetiva, como o próprio nome já permite
intuir, prevenir (inibir) a realização do dano. Tem-se o ilícito (ou a ameaça de
ilícito), mas quer-se evitar que o dano aconteça. A forma de tutela responsável
pela prevenção do dano, no plano do direito material, é a tutela inibitória.
A tutela inibitória pode ser negativa ou positiva. Negativa, quando o dano
pode ser evitado por uma abstenção (por exemplo, evitando-se lançar resíduos
tóxicos no leito de um rio); positiva, quando o dano é evitado mediante a efetiva
realização de alguma conduta, uma ação, um fazer (no mesmo exemplo,
instalando-se um sistema de tratamento de esgoto que evite a poluição do rio).
Já a tutela de remoção do ilícito é necessária quando o ilícito permanece
produzindo efeitos ao longo do tempo. Volta-se, portanto, para a remoção dos
efeitos do ilícito, a fim de evitar a realização do dano (ou a continuação do
dano).

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Formas de tutela previstas pelo direito material para


evitar a realização do dano

Tutela inibitória Tutela de remoção do ilícito


- negativa ou (utilizada quando o ilícito permanece
- positiva produzindo efeitos no tempo)

6.7 Forma de tutela diante do dano já realizado. Tutela ressarcitória

Se, por outro lado, o dano acontecer, outra forma de tutela será
necessária. Esclareça-se, no entanto, que, mesmo diante do dano já realizado,
as tutelas inibitória e de remoção do ilícito podem ainda ser úteis, se a situação
de direito material indicar a possibilidade de realização de dano no futuro.
Assim, mesmo que já tenha havido dano, a tutela inibitória e a tutela de
remoção de ilícito podem servir para evitar o futuro acontecimento do mesmo
tipo de dano.
Mas as tutelas inibitória e de remoção do ilícito nada podem fazer a
respeito do dano que já se consumou (já se realizou). Diante do dano já
consumado, a forma de tutela prevista pelo direito material é a ressarcitória.
A tutela ressarcitória pode ser de dois tipos: na forma específica ou pelo
equivalente pecuniário.
A tutela ressarcitória na forma específica objetiva devolver as coisas ao
estado em que se encontravam antes da realização do dano. Sempre terá
preferência sobre a tutela ressarcitória pelo equivalente pecuniário
A tutela ressarcitória pelo equivalente pecuniário, por sua vez,
pressupõe a conversão da obrigação em pecúnia (dinheiro), em razão da
impossibilidade de seu cumprimento na forma específica, ou por opção do
credor.

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Forma de tutela prevista pelo direito material diante do dano efetivado:


Tutela ressarcitória

Pelo equivalente pecuniário


- converte a obrigação em pecúnia
Na forma específica (dinheiro)
- devolve as coisas ao estado anterior - apenas é utilizada na
- é a preferencial impossibilidade do adimplemento na
forma específica, ou por opção do
credor

Um esclarecimento, contudo, é necessário. Se a própria obrigação for de


prestar dinheiro (como, por exemplo, a obrigação do comprador em um
contrato de compra e venda), então não é correto falar em tutela ressarcitória
pelo equivalente pecuniário. O que se terá, na verdade, será que o próprio
adimplemento específico da obrigação consiste em pagar dinheiro. Assim, a
tutela ressarcitória na forma específica imporá o pagamento em dinheiro.

6.8 Um exemplo para ajudar a fixar os conceitos

Vamos utilizar um exemplo para ajudar na fixação dos conceitos.


Consideremos o direito fundamental à intimidade e à vida privada e as diversas
formas de tutela contempladas no direito material para sua proteção.
Imaginemos, ainda, que o ilícito consista na indevida exposição da
intimidade de alguém (A) por determinado jornal (B). Sabemos que o jornal já
realizou a reportagem, e que esta será publicada na edição do dia seguinte. Já
temos o ilícito. Contudo, apenas teremos o dano quando as pessoas
efetivamente comprarem o jornal.

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Assim, a tutela inibitória pode atuar de três maneiras: para determinar


que a notícia não seja incluída na edição do jornal; caso ela já tenha sido
incluída, para determinar que o jornal não seja distribuído ou que a editora tarje
de preto todo o conteúdo da notícia, tornando-a ilegível. As duas primeiras
situações são exemplos de tutela inibitória negativa; a terceira, de tutela
inibitória positiva.
Imaginemos, no entanto, que o jornal já tenha sido distribuído, e se
encontre nas bancas. O ilícito ocorreu e permanece produzindo efeitos no
tempo (quer dizer, enquanto ainda houver ao menos um jornal nas bancas). A
tutela de remoção do ilícito atuará a fim de que os jornais sejam retirados das
bancas.
Se, no entanto, o jornal for distribuído às bancas e, efetivamente,
comprado pelos leitores, então teremos a realização do dano: a tutela
ressarcitória deverá ser utilizada. Pelo equivalente pecuniário, para indenizar o
dano moral sofrido por A (conversão do direito à intimidade em pecúnia) e,
ainda, na forma específica, publicando o jornal, em outra edição, uma nota de
retratação.
Até aqui, tratamos apenas de considerar a situação do ponto de vista do
direito material. No plano processual, as diferentes formas de tutela vão
necessitar, para sua efetiva implementação, de técnicas processuais. A
implementação dessas técnicas processuais é o que se chama de tutela
jurisdicional dos direitos.

6.9 Processo, procedimento e técnica processual

No item 1.4, acima, já tratamos das ideias de processo, procedimento e


técnica processual. Agora, para podermos estudar a tutela jurisdicional dos
direitos, precisamos revisar esses conceitos.
Processo é uma sequência de atos ordenados visando a um fim. O fim
de todo o processo é entregar aquilo que o direito material promete. Em outras
palavras, o objetivo do processo é efetivar a tutela jurisdicional dos direitos (ou

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seja, possibilitar que as formas de tutela prometidas pelo direito material se


concretizem processualmente).
Procedimento é a forma em que o processo se estrutura. Normalmente,
os diferentes procedimentos são previstos em lei, atendendo-se às
peculiaridades do direito material. A lei prevê, por exemplo, o procedimento
comum (ordinário e sumário) e diversos procedimentos especiais (como os
procedimentos para tutela da posse, para a desapropriação, etc.).
Técnicas processuais, por fim, são os mecanismos destinados à
produção de resultados úteis por meio do processo. Ou seja, a maneira como o
processo vai, efetivamente, alterar a realidade dos fatos.
Podemos resumir as técnicas processuais em três tipos de atos:
sentença, meios executórios e técnica antecipatória (ver o item 6.13.1, abaixo).

Processo sequência de atos ordenados visando


a um fim (entregar aquilo que o direito
material promete)

Procedimento forma em que o processo se estrutura

Técnicas processuais mecanismos destinados à produção


de resultados úteis por meio do
processo (alteração da realidade):
- sentenças;
-meios executórios;
- técnica antecipatória.

Já vimos (item 3.5, acima) que a ausência de previsão legal de


procedimento ou técnica processual adequados à tutela do direito material
permite ao juiz até mesmo a criação do procedimento ou da técnica processual

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necessários. A isso se chama de eficácia vertical com repercussão lateral do


direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva.
Em complementação, devemos mencionar, ainda, o princípio da
atipicidade dos meios executórios. Ou seja, o juiz pode utilizar qualquer meio
executório para a realização do direito material, ainda que não haja previsão
legal expressa.

6.10 O estudo das classificações das ações (trinária e quinária)

Para encerramos a presente lição, é necessário estudarmos a


classificação das ações. A partir da consideração da classificação das ações,
podemos compreender melhor as diferentes técnicas processuais para ao,
final, relacioná-las com o exemplo já dado e permitir uma melhor compreensão
da matéria.
A classificação trinária das ações (defendida pela escola paulista de
processo) afirma que as ações são de apenas três espécies: declaratórias,
constitutivas e condenatórias.
Esse tipo de classificação das ações, contudo, parece confundir as
formas de tutela com os tipos de sentença (porque as tutelas declaratória e
constitutiva são prestadas por sentenças também declaratória e constitutiva) e,
assim, não apresenta solução científica adequada para a acomodação das
tutelas inibitória e de remoção do ilícito.
Mais adequada à compreensão dessas duas formas de tutela (inibitória
e de remoção do ilícito) parece ser a classificação quinária das ações, cunhada
por Pontes de Miranda. As ações, assim, são de cinco espécies: declaratórias,
constitutivas, condenatórias, mandamentais e executivas lato sensu. Cada tipo
de ação vai ser encerrada por uma sentença que leva o mesmo nome (por
exemplo: ação declaratória – sentença declaratória; ação mandamental –
sentença mandamental). Mas a sentença não é a única técnica processual
possível. Já vimos que a antecipação de tutela também é uma técnica
processual. Assim, é possível que a tutela jurisdicional dos direitos possa ser

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prestada, por exemplo, em sentença mandamental ou em técnica antecipatória


mandamental.
A sentença declaratória vai estabelecer certeza a respeito da situação
controvertida.
A sentença constitutiva vai constituir ou desconstituir (conforme seja
positiva ou negativa) determinada relação jurídica.
A sentença condenatória vai estabelecer uma obrigação de pagar
quantia certa. Para sua implementação, é necessário que se inicie uma nova
fase processual, chamada de execução, cujo objetivo é retirar bens do
patrimônio do réu e convertê-los em dinheiro (mediante venda judicial) para
satisfação do crédito do autor.
A sentença (ou a técnica antecipatória) mandamental vai estabelecer ao
réu uma ordem de fazer (ou não fazer) sob pena de multa. A multa é um meio
de coação psicológica.
A sentença (ou a técnica antecipatória) executiva lato sensu é aquela
pela qual o próprio Poder Judiciário (às vezes com o auxílio de força policial)
realiza a alteração na realidade fática. Exemplos de técnicas processuais que a
implementam são a apreensão de bens ou pessoas, a imissão na posse e o
despejo.

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Classificação quinaria das ações

Tipo de ação Técnica processual

1) Ação declaratória Sentença declaratória

2) Ação constitutiva Sentença constitutiva

3) Ação condenatória Sentença condenatória

4) Ação mandamental Técnica antecipatória mandamental


ou sentença mandamental

5) Ação executiva lato sensu Técnica antecipatória executiva lato


sensu ou sentença executiva lato
sensu

Convém apenas esclarecer que, na prática, são cumulados diversos


tipos de ação. Assim, é possível que, por exemplo, num mesmo processo, o
autor exerça pretensão declaratória, constitutiva e mandamental.
Feitas essas observações, vejamos como as diferentes formas de tutela
encontradas no plano do direito material se relacionam com as técnicas
processuais.

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6.10.1 Tutela declaratória

A tutela declaratória será sempre prestada pela sentença declaratória.


Reforça-se que, para esta forma de tutela (assim como acontece com a
constitutiva, que veremos logo a seguir) o nome da tutela prevista no direito
material coincide com o nome da sentença (técnica processual).
Pela sua própria natureza, não faz sentido falar em antecipação de tutela
declaratória. Não se pode antecipar, por verossimilhança, uma forma de tutela
que depende de certeza.
Exemplo de sentença declaratória é a que estabelece o início e o fim da
união estável (se apenas esta for a pretensão exercida judicialmente; se,
contudo, a mesma ação objetivar efeitos patrimoniais, a declaração será,
apenas, pressuposto das demais tutelas eventualmente prestadas
jurisdicionalmente, como já vimos).
Esclareça-se, por fim, que a sentença puramente declaratória (quer
dizer, se a declaração for a única pretensão exercida no processo, não é
demais reiterar) não necessita de qualquer outra técnica processual para sua
implementação, sendo chamada, por isso, de sentença satisfativa.

6.10.2 Tutela constitutiva

A tutela constitutiva, por sua vez, será sempre prestada pela sentença
constitutiva. Essa sentença também é satisfativa (quer dizer, não necessita de
nenhuma outra técnica processual para alterar a realidade dos fatos).
Exemplos de sentença constitutiva são a sentença que anula um
contrato e a sentença de divórcio, que extingue o vínculo do casamento
(ambas são, em verdade, sentenças desconstitutivas, ou constitutivas
negativas).
Para essa forma de tutela, igualmente, não faz sentido falar-se em
técnica antecipatória. Não se constitui ou se desconstitui nada por antecipação.

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6.10.3 Tutelas inibitória e de remoção do ilícito

Já as tutelas inibitória e de remoção do ilícito serão objeto das técnicas


processuais mandamental ou executiva lato sensu.
O dano pode ser evitado mediante a emissão de uma ordem, (de fazer
ou não fazer ao réu) sob pena de multa, ou mediante a alteração da situação
material pelo próprio Poder Judiciário.
O mesmo vale para a remoção dos efeitos do ilícito: ou o juiz determina
ao próprio réu que desfaça as consequências do ilícito sob pena de multa, ou
determina a intervenção na realidade fática pelo próprio Poder Judiciário (por
exemplo, com a apreensão de mercadorias nocivas ao consumidor).

6.10.4 Tutela ressarcitória

Se o objeto da tutela ressarcitória for uma prestação pecuniária, seja


pela obrigação de pagar como objeto próprio do adimplemento (como no
exemplo já tratado do contrato de compra e venda, em que a própria obrigação
do comprador é de prestar dinheiro), seja pela conversão da obrigação
principal no seu equivalente pecuniário, então a técnica processual utilizada
será a sentença condenatória.20
Se, no entanto, a tutela ressarcitória na forma específica for diferente da
prestação de dinheiro, então as técnicas processuais necessárias à sua
implementação serão a mandamental e a executiva lato sensu.
Por exemplo, determinando-se ao poluidor que reconstitua o meio
ambiente ao estado anterior ao da poluição, sob pena de multa (técnica
mandamental), ou apreendendo-se o bem objeto do adimplemento que está em
posse do devedor (técnica executiva lato sensu).

20
A situação não deve ser confundida com relações de trato sucessivo, em que o ilícito e o
dano se repetem em determinado período de tempo (como, por exemplo, em uma relação
previdenciária). Aqui, é possível tutela inibitória positiva, para evitar danos futuros
(implementando-se, por exemplo, uma prestação em folha de pagamento), e a tutela
ressarcitória para os danos já ocorridos.

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6.11 Retomando o exemplo

Relembremos o exemplo dado no item 6.8 (acima), em que o ilícito


consistia na indevida exposição da intimidade de alguém (A) por determinado
jornal (B). Sabemos que o jornal já realizou a reportagem, e que esta será
publicada na edição do dia seguinte. Já temos o ilícito. Contudo, apenas
teremos o dano quando as pessoas efetivamente comprarem o jornal.
Assim, a tutela inibitória pode atuar de três maneiras: para determinar
que a notícia não seja incluída na edição do jornal (mediante técnica
antecipatória mandamental – ordem de não fazer sob pena de multa); caso ela
já tenha sido incluída, para determinar que o jornal não seja distribuído
(mediante técnica antecipatória mandamental – ordem de não fazer sob pena
de multa) ou que a editora tarje de preto todo o conteúdo da notícia, tornando-a
ilegível (mediante técnica antecipatória mandamental – ordem de fazer sob
pena de multa). As duas primeiras situações são exemplos de tutela inibitória
negativa; a terceira, de tutela inibitória positiva.
Imaginemos, no entanto, que o jornal já tenha sido distribuído, e se
encontre nas bancas. O ilícito ocorreu e permanece produzindo efeitos no
tempo (quer dizer, enquanto ainda houver ao menos um jornal nas bancas). A
tutela de remoção do ilícito atuará a fim de que os jornais sejam retirados das
bancas (mediante técnica antecipatória executiva lato sensu – apreensão das
mercadorias pelo próprio Poder Judiciário).
Se, no entanto, o jornal for distribuído às bancas e, efetivamente,
comprado pelos leitores, então teremos a realização do dano. A tutela
ressarcitória, então, deverá ser utilizada. Pelo equivalente pecuniário (mediante
sentença condenatória), para indenizar o dano moral sofrido por A (conversão
do direito à intimidade em pecúnia) e, ainda, na forma específica, impondo-se
ao jornal a publicação, em outra edição, uma nota de retratação (mediante
sentença mandamental – ordem de fazer sob pena de multa).

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6.12 Um breve olhar sobre o Código de Processo Civil

A reforma processual de 1994 objetivou imprimir efetividade ao processo


civil brasileiro (insere-se naquilo que Cappelletti e Garth chamaram de terceira
onda renovatória de acesso à justiça – ver item 3.6, acima). A antecipação de
tutela passou a ser prevista no artigo 273 do CPC de 1973.
As técnicas processuais para implementação das tutelas inibitória, de
remoção do ilícito e ressarcitória na forma específica passaram a ser
encontradas nos artigos 461 e 461-A do CPC (este último inserido em 2002).
Por fim, o princípio da atipicidade dos meios executórios, como já
afirmado, encontrou respaldo na expressão “tais como” constante no § 5º do
artigo 461.
A temática não foi objeto de alteração substancial no novo CPC, tendo
havido, basicamente, uma readequação de aspectos formais. Os dispositivos
do Código de 1973, antes mencionados, encontram correspondência nos
artigos 300 (neste caso com correspondência parcial, pois o dispositivo
também disciplina a tutela cautelar, da qual não iremos tratar aqui) e 536 a 538
do novo CPC.
Há, no entanto, duas significativas alterações. A primeira consiste na
possibilidade de ajuizamento de procedimento preparatório em que postulada
apenas a antecipação de tutela (artigo 303 do novo Código), antes de ser
deduzido o pedido de tutela jurisdicional definitiva (o que deve ser feito,
mediante aditamento da petição inicial, após a apreciação do pedido de tutela
antecipada pelo juiz).
A segunda diz respeito à extinção do processo, com a estabilização da
tutela, caso não tenha sido interposto recurso da decisão que concede tutela
antecipada requerida em caráter antecedente (artigo 304, caput e § 1º, do
novo Código). A esse respeito, contudo, a doutrina tem compreendido que
basta qualquer manifestação de contrariedade do réu (e não, necessariamente,
a interposição de recurso) para que não haja a estabilização da tutela
antecipada concedida em caráter antecedente.

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6.13 Algumas noções adicionais sobre as “tutelas provisórias”

Para encerrarmos esta Lição, em complemento às ideias já


apresentadas no item anterior, talvez seja interessante aprofundarmos um
pouco a forma como o novo CPC trata aquilo que ele mesmo chama de “tutelas
provisórias.”
As “tutelas provisórias” estão previstas no artigo 294 do novo CPC.
Deste dispositivo nós extraímos que “tutela provisória” é o gênero do qual as
tutelas de urgência e a tutela da evidência são as espécies.

Tutelas de urgência
Tutelas provisórias
(artigo 294 do novo CPC)
Tutela da evidência

Já “tutela de urgência” (artigo 300 do novo CPC) é gênero do qual são


espécies a tutela antecipada (ou antecipação de tutela) e a tutela cautelar.

Tutela antecipada
Tutelas de urgência
(artigo 300 do novo CPC)
Tutela cautelar

Iniciemos estudando de forma comparativa as tutelas de urgência e,


depois, comparemos a tutela da evidência com aquelas.

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Como ponto de partida, é importante ressaltarmos uma inovação do


CPC de 2015, que, em seu artigo 300, unificou a disciplina da tutela
antecipada e da tutela cautelar.

6.13.1 Tutela antecipada

A tutela antecipada, ou antecipação de tutela existe para entregar o bem


da vida, o objeto da relação de direito material ao autor, antes da sentença. Ou
seja, antes que haja certeza de que o autor tem direito à prestação de direito
material.
Então, por favor, registre isso. A antecipação de tutela trata do direito
material, da própria prestação de direito material que é objeto do pedido
formulado pelo autor no processo. Por isso é que se diz que ela é “satisfativa”.
Ela é satisfativa porque satisfaz, ainda que provisoriamente, o direito material.
A antecipação de tutela não é baseada em certeza. No processo civil,
para termos certeza precisamos do trânsito em julgado da sentença. Você
precisa de uma decisão definitiva, de uma sentença, e que não caibam mais
recursos, aí você tem trânsito em julgado, e aí você tem certeza.
Então, se a antecipação de tutela não é baseada em certeza, ela é
baseada em quê? Segundo o artigo 300 do novo CPC, na “probabilidade do
direito.” Esse é o primeiro requisito da antecipação de tutela. É preciso que
haja probabilidade de que o autor tenha o direito que ele está pedindo, para
que o juiz possa conceder a antecipação de tutela.
Isso implica que as provas que o autor junta com a petição inicial
indiquem a existência dos fatos que ele alega (ainda que não sejam provas
definitivas) e que a tese jurídica que ele afirma tenha respaldo na ordem
jurídica.
E aqui é muito importante nós percebermos que esse respaldo na ordem
jurídica está ligado não somente ao respaldo no texto das leis, mas na
jurisprudência e nos precedentes, especialmente do STF e do STJ. Mas
cuidado, porque não estamos, neste momento, tratando da “tutela da

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evidência,” do artigo 311, II, do novo CPC (veja-se, a esse respeito, o item
6.13.3, abaixo).
O segundo requisito para a antecipação de tutela, previsto no artigo 300
do CPC, é a “urgência.” Então nós temos a probabilidade do direito e a
urgência. Assim, se o conteúdo do direito material não for concedido à parte
autora antes da sentença, ela irá sofrer um sério prejuízo. Por isso a urgência.

Probabilidade do direito
Requisitos da
Tutela antecipada
Perigo de dano

E aqui, nós precisamos olhar de forma crítica o § 3º do artigo 300 do


novo CPC, que afirma que a antecipação de tutela não pode ser concedida se
houver “perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão.” Isso porque a
urgência do direito e a irreversibilidade são pontos logicamente inconciliáveis.
Na verdade, ninguém sabe exatamente o que essa irreversibilidade significa, e
os juízes passam por cima dela o tempo todo.
Fiquemos com um exemplo, para que possamos compreender melhor o
que é a antecipação de tutela, e inclusive esse falso-problema da
irreversibilidade. Imagine que uma pessoa tenha uma doença, que ela não
tenha dinheiro para custear o tratamento, que o plano de saúde não cubra esse
tratamento, e que o tratamento não esteja previsto no SUS.
E imagine também que a técnica de ponderação, exigida pela teoria dos
direitos fundamentais, nos indique que, realmente, o Estado deve fornecer o
tratamento, ainda que ele não esteja previsto nas regras que disciplinam o
SUS.

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Agora, se as provas que a pessoa junta ao processo e a técnica da


ponderação, que em princípio pode ser realizada pelo juiz no começo do
processo a partir dos documentos que ela juntou, indicam que ela precisa do
tratamento e que, realmente, o Estado deve fornecer, faz sentido esperar que o
processo termine? Não, pois além da probabilidade do direito está presente o
perigo de dano. Estão presentes os dois requisitos do artigo 300 do novo
CPC.
Então, qual o sentido em falar de “reversibilidade” da decisão? Se a
decisão tivesse que ser reversível, teria que ser possível, em tese, a pessoa
poder devolver os remédios no final do processo, caso ela não tivesse o direito.
Portanto, esse exemplo, assim como tantos outros, mostra que essa
previsão da reversibilidade da decisão é carente de sentido. A reversibilidade
da decisão faz todo o sentido quando o assunto é a tutela cautelar, o que nos
introduz ao ponto seguinte. Mas a reversibilidade, reforça-se, não faz nenhum
sentido quando o assunto é antecipação de tutela.

6.13.2 Tutela cautelar

Nosso estudo da tutela cautelar, aqui, será realizado especialmente para


compreendermos a afirmação contida no final do item anterior. Será, portanto,
um estudo histórico e comparativo com a tutela antecipada.
Vamos relembrar, então, que tanto a tutela antecipada quanto a tutela
cautelar são duas espécies do gênero “tutela de urgência,” disciplinado no
artigo 300 do novo CPC, e também que uma das grandes novidades do
Código foi que ele unificou a disciplina da tutela antecipada e da tutela cautelar,
e isso acabou com discussões intermináveis que havia antes.
Historicamente, o processo civil era dividido em três processos
diferentes. O processo de conhecimento, o processo de execução, e o
processo cautelar. Quando um dava origem a uma ação diferente, inclusive
com citação do réu, número de processo, autuação e tudo o mais.

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Você percebe o excessivo formalismo que havia por trás disso? Mas
havia ainda um outro problema. Não existia antecipação de tutela no processo
de conhecimento. A única tutela de urgência conhecida era a cautelar.
Acontece que a tutela cautelar nunca foi pensada como uma tutela
satisfativa. Isso porque, segundo a ideologia por trás dessa distinção,
especialmente entre processo de conhecimento e processo de execução, você
não poderia ter a satisfação do direito antes do trânsito em julgado da
sentença.
Então se não podia haver a satisfação do direito antes do trânsito em
julgado, o que podia haver? Apenas a “garantia do resultado útil do processo”.
Note que essa expressão está na parte final do artigo 300 do CPC,
exatamente para fazer alusão à tutela cautelar.

Probabilidade do direito
Requisitos da
Tutela cautelar
Garantia do
resultado útil do processo

Mas o que significa isso? Significa apenas uma medida que garanta, no
futuro, o resultado do processo. Uma medida acautelatória, de cuidado, de
resguardo. Daí o nome, cautelar.
Então, por exemplo, para evitar que o réu venda o bem cuja propriedade
esteja sendo discutida no processo, o juiz pode determinar uma restrição
judicial sobre este bem. Esta restrição, que impede o réu de vender o bem, é
chamada de sequestro.
Note que, com o sequestro, o bem apenas não pode ser vendido, mas
ele não passa ao autor. É isso que significa o caráter não satisfativo da tutela

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cautelar. Lembre que ela existe apenas para garantir o resultado útil do
processo.
Acontece que essa distinção do que é satisfativo e do que não é às
vezes é muito sutil. Disso decorrem três situações.
A primeira é que, como o processo cautelar não podia ser satisfativo, um
dos critérios para identificar se a medida era realmente uma cautelar era a
reversibilidade da decisão. Se fosse possível retornar ao estado anterior, isso
era um indício de se tratar de um provimento cautelar.
Então, parece ser essa é a razão de ser histórica da previsão contida no
§ 3º do artigo 300 do novo CPC, embora esse dispositivo fale expressamente
em tutela antecipada. Mas, historicamente, a reversibilidade era uma
característica das tutelas cautelares. Foi aí que a gente confundiu
enormemente as coisas, aqui no Brasil.
A segunda situação é que, quando não existia a antecipação de tutela
no procedimento comum, o pessoal começou a usar a cautelar para obter
medias satisfativas, que hoje são tipicamente de antecipação de tutela. E aí
você entende a razão de ser histórica dessa discussão que ainda está por aí
hoje, sobre a diferença entre a tutela cautelar e a antecipada. Só que uma
coisa é a discussão ter fundo histórico, outra coisa é ela ter sentido ainda... ela
não tem!!!
Mas veja que, quando o CPC revogado passou a admitir a antecipação
de tutela no procedimento comum, o que aconteceu em 1994, não havia mais
razão de ser para esse uso anômalo da cautelar para obter medida satisfativa.
E, por fim, a terceira situação é que a previsão do artigo 300 do novo
Código na verdade nem e tão novidade assim. Veja, por favor, o § 7º do
artigo 273 do Código revogado, que foi inserido em 2002, e que já
consagrava aquilo que os processualistas chamam de fungibilidade entre a
tutela cautelar e a tutela antecipada.
Bem. Esse até pode ter sido um bom estudo histórico. Mas, para o que
interessa, para o dia a dia, o artigo 300 do novo CPC traz uma disciplina
única para as tutelas de urgência, a tutela antecipada e a tutela cautelar. Então,

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toda a discussão que se preocupa com a distinção entre elas tem uma razão
de ser histórica, mas não faz muito sentido hoje em dia.

6.13.3 Tutela da evidência

A “tutela da evidência,” prevista no artigo 311 do CPC de 2015,21 é mais


uma de suas novidades.
Inicialmente, vamos relembrar que tanto a tutela da evidência quanto as
tutelas de urgência são espécies de tutelas provisórias. O artigo 294 do novo
CPC afirma que “a tutela provisória pode fundamentar-se em urgência ou
evidência.”
As tutelas de urgência nós já estudamos. O que as diferencia da tutela
da evidência é que esta última, a “da evidência,” não exige a urgência. Para a
tutela de evidência, do artigo 311, nós não falamos, então, em perigo de dano.
Então esse é o primeiro passo para compreendermos a tutela da
evidência. Ela não exige urgência, como as outras duas tutelas provisórias, as
tutelas de urgência. Mas nós poderíamos dizer que a probabilidade do direito, o
outro requisito das tutelas de urgência, também é um requisito da tutela da
evidência. Então, nos incisos I a IV do artigo 311 do novo CPC temos
situações nas quais o direito é muito provável. Tão provável que o Código
determina a concessão da tutela jurisdicional ao autor.
A primeira hipótese, do inciso I, é o “abuso do direito de defesa ou o
manifesto caráter protelatório da parte.” Nessa hipótese a defesa do réu é, por
assim dizer, “sem pé nem cabeça,” e fica claro que o único objetivo dele é
retardar o processo. Isso é o que justifica que se conceda a tutela jurisdicional

21
“Art. 311. A tutela da evidência será concedida, independentemente da demonstração de
perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo, quando: I - ficar caracterizado o
abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório da parte; II - as alegações de
fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento
de casos repetitivos ou em súmula vinculante; III - se tratar de pedido reipersecutório fundado
em prova documental adequada do contrato de depósito, caso em que será decretada a ordem
de entrega do objeto custodiado, sob cominação de multa; IV - a petição inicial for instruída
com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não
oponha prova capaz de gerar dúvida razoável. Parágrafo único. Nas hipóteses dos incisos II e
III, o juiz poderá decidir liminarmente.”

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provisória ao autor. Mas note que, nessa hipótese, a tutela da evidência


somente será concedida após a defesa do réu, após a contestação.
Aliás, vamos para o inciso IV, porque é uma hipótese em que a tutela
da evidência também será concedida apenas após a defesa. Aqui nós temos
que a petição inicial junta documentos que comprovam suficientemente o
direito do autor, e o réu, na sua defesa, não apresenta nenhuma prova capaz
de gerar dúvida razoável.
Então, nessa hipótese do inciso IV, tudo se passa no plano da prova
documental. Os documentos juntados pelo autor na petição inicial comprovam
suficientemente o seu direito, e os documentos juntados pelo réu na
contestação não geram qualquer dúvida sobre os fatos.
A hipótese do inciso II também trata de documentos, mas é ainda mais
forte. A prova dos fatos tem que ser exclusivamente documental. Na hipótese
do inciso IV a prova documental do autor é forte, mas não é necessariamente
incontestável, apenas não foi apresentada prova documental satisfatória pelo
réu. Mas aqui no inciso II o direito é provado exclusivamente por documentos.
Essa prova exclusivamente documental é uma questão ligada às
peculiaridades da relação de direito material. Não são necessárias outras
provas, como testemunhas ou perícia, para provar os fatos. Essa é a situação
do inciso II. É uma situação semelhante à do mandado de segurança, cujo
“direito líquido e certo” é aquele que é provado exclusivamente por
documentos.
Mas além da prova exclusivamente documental, o pedido do autor tem
que estar de acordo com tese firmada em julgamento de caso repetitivo ou em
súmula vinculante. Preste atenção, por favor. O Código fala somente de
súmula vinculante. Ou seja, as súmulas comuns não autorizam a tutela da
evidência.
A outra situação além da súmula vinculante é a tese firmada em
julgamento de casos repetitivos. Segundo o artigo 928 do CPC, “julgamento
de caso repetitivo” é o gênero do qual o incidente de resolução de demandas
repetitivas (IRDR) e o recurso extraordinário e especial repetitivos são
espécies.

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Isso nos demonstra a valorização dos precedentes pelo Novo Código,


assunto a ser aprofundado na Lição 9, abaixo.
Por fim, o inciso III trata do pedido reperseicutório (que é o pedido de
recuperação de um bem) objeto de contrato de depósito. Aqui também se exige
prova documental adequada do contrato de depósito. Essa hipótese veio para
substituir o procedimento especial de depósito previsto no Código revogado.
E é importante reforçar, para encerrar, que a tutela da evidência prevista
nos incisos II e III pode ser concedida liminarmente. A dos incisos I e IV, pela
sua própria natureza, somente após a defesa do réu.

6.13.4 Tutela de urgência antecedente

A chamada “tutela de urgência” antecedente é – relativamente – uma


novidade do CPC de 2015 (isso porque sempre se trabalhou com a ideia de
tutela cautelar antecedente; a novidade mesmo, portanto, está no caráter
antecedente da tutela antecipada...).
Como já antecipado no fim do parágrafo anterior, a tutela de urgência
antecedente pode ser antecipada ou cautelar. A tutela antecipada antecedente
está prevista nos artigos 303 e 304 do novo CPC, e a tutela cautelar
antecedente, nos artigos 305 a 310.
Para começar, então, podemos notar que não é possível pedir tutela da
evidência de forma antecedente. Esta modalidade é apenas para a tutela
antecipada e para a tutela cautelar, que são as tutelas de urgência.
Para pedir a tutela de urgência antecedente, o autor precisa descrever a
causa de pedir da ação principal e indicar qual o pedido. Ele não formula o
pedido, só indica qual vai ser o pedido quando ele formular a ação. E,
obviamente, ele precisa demonstrar a urgência, que autoriza a concessão da
tutela antecipada ou da tutela cautelar de forma antecedente.
Diz-se que a tutela de urgência é antecedente porque pode ser
requerida ao juiz antes mesmo do ajuizamento da ação. Isso já existia no
regime do CPC anterior para a tutela cautelar, e agora foi estendido também
para a tutela antecipada.

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Vamos nos concentrar, primeiramente, na tutela antecipada


antecedente, lembrando que esta é aquela forma de tutela satisfativa; ou seja,
ela concede o próprio direito material, apenas que de forma provisória, ao
autor.
Qual o objetivo do autor ao requerer a tutela antecipada de forma
antecedente? O objetivo é obter o que se chama de estabilização da tutela
antecipada. E aqui nós temos outra diferença: somente a tutela antecipada
antecedente pode ser estabilizada; a tutela cautelar antecedente não será
estabilizada.
A estabilização da tutela de urgência antecedente funciona da seguinte
forma: de acordo com o artigo 304 do CPC, se o réu não interpuser recurso –
que é o agravo de instrumento – contra a decisão que concede a tutela
antecipada antecedente, ela se torna estável.
Note que o CPC fala em recurso, mas a doutrina entende que uma
simples petição do réu, dirigida ao juiz de 1º grau, dizendo que não concorda
com a estabilização da tutela antecipada, já é suficiente para que isso não
aconteça.
A estabilização significa que o processo se encerra e aquela tutela
provisória concedida ao autor se torna estável, conserva seus efeitos. Ela não
se torna, exatamente, definitiva, ou seja, não faz coisa julgada, porque o CPC
prevê a possibilidade de que as partes ajuízem, no prazo de dois anos, outra
ação para rediscutir a questão.
E se o autor obtiver a tutela antecipada em caráter antecedente, então
ele terá quinze dias para aditar a petição inicial. Nesse aditamento à petição
inicial é que ele irá apresentar o seu pedido principal.
Vamos considerar agora a tutela cautelar antecedente. Diferentemente
da tutela antecipada, que é satisfativa, a tutela cautelar objetiva assegurar o
resultado útil do processo.
Para entendermos bem a diferença, vamos pensar num exemplo:
imagine que num processo se discuta a titularidade de um carro; com a tutela
antecipada, a posse deste carro passaria, ainda que provisoriamente, ao autor

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(ela é satisfativa); com a tutela cautelar, teríamos apenas o sequestro do carro;


ou seja, o carro ficaria indisponível, mas não passaria imediatamente ao autor.
Foi mencionado que a tutela cautelar antecedente já existia no regime
do CPC anterior. Na verdade, no CPC anterior existia um processo cautelar, e
é por isso que a tutela cautelar antecedente tem um formato de ação.
Ou seja, o juiz pode conceder liminar e o réu é citado para contestar, no
prazo de cinco dias. Agora, aqui é preciso prestar atenção num detalhe
importante: o autor tem o prazo de 30 dias para propor a ação principal a
contar da efetivação da tutela cautelar.
É importante reforçar essa diferença: a tutela cautelar antecedente
assume o procedimento de uma ação; a tutela antecipada antecedente, não.
Por isso, na hipótese da cautelar antecedente, o autor tem o prazo de 30 dias
para propor a ação principal, contados da efetivação da medida cautelar. Já se
estivermos falando de tutela antecipada antecedente, o prazo é de 15 dias para
aditamento da petição inicial, contados a partir da concessão da tutela
antecipada.

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7 PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

7.1 Introdução

Iniciemos o assunto “pressupostos processuais” recordando a Lição 1


(na qual tratamos sobre o desenvolvimento do processo civil como disciplina
jurídica autônoma), item 1.4, acima, em que estudamos, rapidamente, a
descoberta de Oskar Büllow, em 1868. Ao identificar que, independentemente
do conteúdo do direito material (quer dizer, independentemente do possível
resultado de mérito), o processo poderia seguir um rumo próprio, determinado
pela presença ou pela ausência de certos requisitos formais, Büllow identificou
aquilo que chamou de “pressupostos processuais” e, ainda, deduziu a
existência de uma “relação jurídica processual”, entre autor, juiz e réu.

7.2 Definição tradicional de pressupostos processuais

A doutrina tradicional de Processo Civil define os pressupostos


processuais como sendo “requisitos para o julgamento de mérito.” A definição
será apreciada de forma crítica ao final desta lição. Por ora, no entanto,
trabalhemos com ela.
Nesta primeira aproximação, vemos que a definição de pressupostos
processuais é bastante similar à de “condições da ação” (o tema que
estudamos anteriormente). Podemos, no entanto, identificar um critério de
distinção básico: as condições da ação dizem respeito a questões ligadas à
relação de direito material; os pressupostos processuais, por sua vez, dizem
respeito, principalmente, a questões puramente processuais.

7.3 Primeira aproximação legislativa e classificações

Diz o artigo 485, IV, do novo CPC (em redação que é muito similar à do
artigo 267, IV, do CPC de 1973):

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Art. 485. O juiz não resolverá o mérito quando:


[...]
IV – verificar a ausência de pressupostos de constituição e de
desenvolvimento válido e regular do processo;

A partir das expressões grifadas, é possível encontrar uma primeira


classificação dos pressupostos processuais: de existência (“constituição”) e de
validade (“desenvolvimento válido e regular”).
Há, ainda, uma segunda classificação, que estabelece como critério de
distinção o fato de os pressupostos processuais dizerem respeito ao processo
em si ou aos sujeitos da relação processual (partes e juiz). Os pressupostos
que dizem respeito ao processo em si são chamados de objetivos, ao passo
que aqueles que dizem respeito às partes e ao juiz são chamados de
subjetivos.
Por fim, temos ainda uma classificação que separa os pressupostos
processuais entre positivos e negativos. Positivos são os pressupostos
processuais que têm de estar presentes para que o processo possa existir e
ser válido. Negativos são os pressupostos processuais que tem de estar
ausentes para que o processo possa ser válido. Com efeito, esta última
classificação serve, apenas, para separar, para fins do nosso estudo, dois
específicos pressupostos processuais dos demais: a litispendência e a coisa
julgada (que serão estudadas especificamente mais adiante) são os únicos
dois pressupostos processuais negativos de validade que iremos estudar.
Em suma, verificamos que os pressupostos processuais podem ser
classificados como (e as classificações podem ser combinadas...):

– de existência ou de validade;

– objetivos ou subjetivos;

– positivos ou negativos.

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7.4 Menção aos pressupostos processuais em espécie

Na sequência, estudaremos cada um dos pressupostos processuais (à


exceção da competência, à qual destacaremos a próxima Lição, para estudo
conjunto com a “organização judiciária”). A tabela seguinte apresenta sua
classificação de acordo com o primeiro dos critérios (se de existência ou se de
validade):

Pressupostos Processuais

de Existência de Validade

Pedido Aptidão da petição inicial

Investidura na jurisdição Competência

Citação Imparcialidade do juiz

Capacidade postulatória Capacidade processual

Validade da citação

Litispendência

Coisa julgada

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7.5 Pressupostos processuais de existência

7.5.1 Pedido e investidura na jurisdição

Os dois primeiros dos pressupostos processuais de existência (pedido e


investidura na jurisdição) são por demais singelos.
Se da petição inicial não constar pedido, o processo, ainda que possa ter
se desenvolvido, será considerado inexistente. No entanto, como regra geral,
caso a petição inicial seja protocolada sem pedido (o que é, perceba-se, uma
tremenda “mancada” do advogado da parte autora), o juiz intimará o autor para
que emende a petição inicial e corrija o erro, o que permitirá que o processo se
constitua e se desenvolva normalmente.
A observação contida no parágrafo anterior demonstra um critério que é
utilizado a respeito de muitos dos assim chamados pressupostos processuais:
o CPC estabelece, para muitos deles, a possibilidade de que o vício seja
resolvido, aproveitando-se o processo.
Vício que não poderia, no entanto, ser convalidado, é a ausência de
investidura da jurisdição. O pressuposto processual comumente conhecido
como investidura indica que o processo deve ser conduzido e julgado por um
juiz. Tudo bem com a doutrina em si. Mas, pergunta-se: na realidade do dia-a-
dia, qual processo não é julgado por um juiz? (Refere-se, ao menos, ao fato de
o juiz emprestar sua assinatura, ainda que digital, para firmar os atos
processuais judiciais e as decisões, independentemente dele confeccionar – ou
até mesmo ler! – as decisões).
Isso demonstra que, embora cientificamente coerente, o pressuposto
processual da investidura na jurisdição não tem muita relevância prática.

7.5.2 Citação

Citação é o ato por meio do qual o réu é chamado a participar do


processo.

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Enquanto ainda não realizada a citação, a relação jurídica processual é


estabelecida apenas entre autor e juiz. Tradicionalmente, afirma-se que é a
citação que angulariza a (completa a formação do ângulo da) relação jurídica
processual.

Juiz

Autor Réu
Angularização da relação processual

A citação tem, portanto, íntima conexão com os direitos fundamentais ao


devido processo legal (item 4.2, acima) e à ampla defesa (item 4.3, acima). É
cercada de uma série de formalidades (por exemplo, tem que ser, via de regra,
pessoal), que devem ser observadas para que seja válida.
A observância das formalidades que circundam o ato de citação, no
entanto, dizem respeito à validade da citação (e a validade da citação é
pressuposto processual de validade). Considerar a citação enquanto
pressuposto processual de existência nos ensina que, se não houver citação, o
processo é inexistente.
O meio de impugnação de um processo que não teve citação (quer
dizer, sem o pressuposto processual de existência consistente na citação), no
entanto, é o mesmo meio de impugnação do processo cuja citação é nula: a
ação conhecida como querela nullitatis insanabillis. Quando considerarmos os
meios de impugnação aos processos com vícios relativos aos pressupostos
processuais iremos analisá-la, especialmente em comparação com a ação
rescisória.

7.5.3 Capacidade postulatória

Capacidade postulatória diz respeito à possibilidade de dirigir-se ao


Poder Judiciário: assinar petições que possam ser apreciadas por um juiz.

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No Brasil, como regra geral, apenas advogados possuem capacidade


postulatória.
Para que alguém possa postular em juízo, portanto, é necessário que
esta pessoa celebre um contrato chamado de mandato com um advogado. A
procuração é o instrumento do mandato.
Se não houver representação por advogado pela parte autora, o
processo será considerado inexistente (na verdade, o juiz deverá extingui-lo
sem resolução de mérito). A ausência de advogado, pela parte ré, implica
apenas a revelia ou a preclusão da prática de determinados atos processuais.
Mas a verificação de inexistência ou de nulidade de representação
sempre pode ser sanada pelo juiz. A parte deve ser intimada para corrigir o
problema, e somente se ela não o fizer é que devem ser aplicadas as
consequências mencionadas no parágrafo anterior. Essa regra, que é aplicada
também ao pressuposto de validade conhecido como capacidade processual, é
encontrada no artigo 76 do novo Código de Processo Civil (reprodução do
artigo 13 do CPC de 1973).
A capacidade postulatória conferida de forma direta às partes é,
portanto, a exceção (a regra é que a parte tenha que se fazer representar por
advogado). O quadro constante na próxima página apresenta as exceções à
regra geral (quer dizer, as hipóteses em que a capacidade postulatória é
conferida diretamente às partes):

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Situação de exceção Pessoas a quem a capacidade


postulatória é conferida

Habeas corpus, inclusive a “Qualquer do povo” na defesa do


interposição de recursos no direito de liberdade seu ou de terceiro
procedimento

Revisão criminal Réu; se este tiver falecido: cônjuge,


descendente, ascendente ou irmão

Processo trabalhista (excetuada a Empregado e empregador


interposição de recurso extraordinário
ao STF)

Juizado Especial Cível e Juizado Partes; para a interposição de recurso


Especial da Fazenda Pública, em é necessária a representação por
causas até 20 salários mínimos advogado; a negativa de provimento
ao recurso gera, ainda, sucumbência

Juizado Especial Federal, apenas nas Idem


causas cíveis

I - Presidente da República;
Pessoas legitimadas para ação de II – Presidente da Mesa do Senado
controle principal de Federal;
constitucionalidade (ADI, ADC, ADO e III –Presidente da Mesa da Câmara
ADPF): artigo 103, I a V, da CRFB dos Deputados;
IV – Presidente da Mesa de
Assembleia Legislativa ou da Câmara
Legislativa do Distrito Federal;
V – Governador de Estado ou do
Distrito Federal;

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7.6 Pressupostos processuais de validade

Passemos, agora, ao estudo dos pressupostos processuais de validade,


apenas reforçando que destacaremos a competência para estudo específico na
lição seguinte.

7.6.1 Aptidão da petição inicial

Já vimos que o pedido é considerado um pressuposto processual de


existência. O pedido, obviamente, será objeto da petição inicial, o primeiro ato
por meio do qual a parte autora se dirige ao juiz.
Se o pedido é um pressuposto processual de existência, a aptidão da
petição inicial é considerada um pressuposto processual de validade. Petição
inicial apta é aquela que está em condições de ser analisada e despachada
pelo juiz, dando-se início ao processo.
O contrário de uma petição inicial apta é uma petição inicial inapta (ou
inepta). Daí falar-se em inépcia da petição inicial. Inépcia da petição inicial,
portanto, ocorre quando ela não estiver em condições de ser despachada pelo
juiz e dar início ao processo.
O artigo 330 do novo CPC22 disciplina as hipóteses de indeferimento da
petição inicial, uma das quais é sua inépcia (inciso I).
O § 1º do mesmo dispositivo esclarece que a petição inicial será inepta
quando:

I – lhe faltar pedido ou causa de pedir;


II – o pedido for indeterminado, ressalvadas as hipóteses legais em
que se permite o pedido genérico;
III – da narração dos fatos não decorrer logicamente a conclusão;
IV – contiver pedidos incompatíveis entre si.

22
“Art. 330. A petição inicial será indeferida quando: I – for inepta; II – a parte for
manifestamente ilegítima; III – o autor carecer de interesse processual; IV – não atendidas as
prescrições dos arts. 106 e 321.”

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O inciso I do parágrafo § 1º do artigo 330 afirma que a petição inicial


será inepta se lhe faltar “pedido.” Mas o pedido não é pressuposto processual
de existência? E a inépcia da petição inicial não é pressuposto processual de
validade? Há uma certa falta de sistematicidade do Código aqui...
Mas não apenas a falta de pedido (!) leva à inépcia da petição inicial. A
ausência de causa de pedir também. Causa de pedir é a descrição dos fatos e
dos fundamentos jurídicos do pedido. Os fatos são chamados de causa de
pedir remota e os fundamentos jurídicos são chamados de causa de pedir
próxima.
Se não houver congruência lógica entre os fatos narrados e o pedido
(inciso III do § 1º) ou se os pedidos forem incompatíveis entre si (inciso IV) a
petição inicial também será inepta.
O § 2º do artigo 330 traz outra hipótese de inépcia da petição inicial,
consistente na obrigação de que o autor de ação revisional discrimine
exatamente quais as obrigações contratuais a respeito das quais pretende
controverter, devendo, ainda, quantificar o “valor incontroverso do débito.” O §
3º esclarece que o valor incontroverso deve continuar a ser pago durante a
ação (“no tempo e no modo contratados”).
Retornando ao caput do artigo 330, convém perceber que ele traz
outras hipóteses de indeferimento da petição inicial ao lado da sua inépcia.
Duas delas são, exatamente, a falta das condições da ação (incisos II e III), o
que corrobora a aplicação da teoria da asserção. A terceira hipótese diz
respeito ao não atendimento dos requisitos formais da petição inicial.
Os requisitos formais da petição inicial são encontrados nos artigos 319
e 320 do novo CPC:

Art. 319. A petição inicial indicará:


I – o juízo a que é dirigida;
II – os nomes, os prenomes, o estado civil, a existência de união
estável, a profissão, o número de inscrição no Cadastro de Pessoas
Físicas ou no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica, o endereço
eletrônico, o domicílio e a residência do autor e do réu;
III – o fato e os fundamentos jurídicos do pedido;
IV – o pedido com as suas especificações;
V – o valor da causa;

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VI – as provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos


fatos alegados;
VII – a opção do autor pela realização ou não de audiência de
conciliação ou de mediação.
§ 1º Caso não disponha das informações previstas no inciso II,
poderá o autor, na petição inicial, requerer ao juiz diligências
necessárias a sua obtenção.
§ 2º A petição inicial não será indeferida se, a despeito da falta de
informações a que se refere o inciso II, for possível a citação do réu.
§ 3º A petição inicial não será indeferida pelo não atendimento ao
disposto no inciso II deste artigo se a obtenção de tais informações
tornar impossível ou excessivamente oneroso o acesso à justiça.

Art. 320. A petição inicial será instruída com os documentos


indispensáveis à propositura da ação.

Segundo o artigo 321 do novo CPC, ao verificar que a petição inicial


não preenche os requisitos formais, o juiz deve determinar que a parte autora a
emende ou complete, em 15 (dias) – regra que deve ser, igualmente, aplicada
às situações de verificação de inépcia da inicial. Apenas se não for atendida a
determinação judicial de correção é que deve ser indeferida a petição
(parágrafo único).
Por fim, segundo o artigo 331, do indeferimento da petição inicial cabe
recurso de apelação, podendo o juiz, nesta hipótese, retratar-se no prazo de 5
(cinco) dias.

7.6.2 Imparcialidade do juiz

É da essência da atividade jurisdicional que o juiz deve ser imparcial,


posicionando-se de forma equidistante entre as partes.
Por isso, há duas situações de nulidade do processo que se ligam
diretamente ao pressuposto processual da imparcialidade do juiz. Trata-se do
impedimento e da suspeição. Juiz impedido ou juiz suspeito é sinônimo de juiz
parcial e, por isso, de sujeito que não pode compor validamente a relação
processual.
Como a sua disciplina legislativa (os artigos do novo Código a respeito
do assunto serão transcritos a seguir) facilmente permite constatar, o
impedimento está ligado a questões objetivas (quer dizer, que se comprovam

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objetivamente), ao passo que a suspeição está ligada a questões de prova um


pouco mais complicada, porque demandam apreciação mais subjetiva.

7.6.2.1 Impedimento (artigo 144 do novo CPC)

Art. 144. Há impedimento do juiz, sendo-lhe vedado exercer suas


funções no processo:
I – em que interveio como mandatário da parte, oficiou como perito,
funcionou como membro do Ministério Público ou prestou depoimento
como testemunha;
II – de que conheceu em outro grau de jurisdição, tendo proferido
decisão;
III – quando nele estiver postulando, como defensor público,
advogado ou membro do Ministério Público, seu cônjuge ou
companheiro, ou qualquer parente, consanguíneo ou afim, em linha
reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive;
IV – quando for parte no processo ele próprio, seu cônjuge ou
companheiro, ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou
colateral, até o terceiro grau, inclusive;
V – quando for sócio ou membro de direção ou de administração de
pessoa jurídica parte no processo;
VI – quando for herdeiro presuntivo, donatário ou empregador de
qualquer das partes;
VII – em que figure como parte instituição de ensino com a qual tenha
relação de emprego ou decorrente de contrato de prestação de
serviços;
VIII – em que figure como parte cliente do escritório de advocacia de
seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em
linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, mesmo que
patrocinado por advogado de outro escritório;
IX – quando promover ação contra a parte ou seu advogado.
§ 1º Na hipótese do inciso III, o impedimento só se verifica quando o
defensor público, o advogado ou o membro do Ministério Público já
integrava o processo antes do início da atividade judicante do juiz.
§ 2º É vedada a criação de fato superveniente a fim de caracterizar
impedimento do juiz.
§ 3º O impedimento previsto no inciso III também se verifica no caso
de mandato conferido a membro de escritório de advocacia que tenha
em seus quadros advogado que individualmente ostente a condição
nele prevista, mesmo que não intervenha diretamente no processo.

7.6.2.2 Suspeição (artigo 145 do novo CPC)

Art. 145. Há suspeição do juiz:


I – amigo íntimo ou inimigo de qualquer das partes ou de seus
advogados;
II – que receber presentes de pessoas que tiverem interesse na
causa antes ou depois de iniciado o processo, que aconselhar
alguma das partes acerca do objeto da causa ou que subministrar
meios para atender às despesas do litígio;

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

III – quando qualquer das partes for sua credora ou devedora, de seu
cônjuge ou companheiro ou de parentes destes, em linha reta até o
terceiro grau, inclusive;
IV – interessado no julgamento do processo em favor de qualquer das
partes.
§ 1º Poderá o juiz declarar-se suspeito por motivo de foro íntimo, sem
necessidade de declarar suas razões.
§ 2º Será ilegítima a alegação de suspeição quando:
I – houver sido provocada por quem a alega;
II – a parte que a alega houver praticado ato que signifique manifesta
aceitação do arguido.

7.6.2.3 Procedimento para verificação e consequências

O impedimento e a suspeição (caso não sejam reconhecidos de ofício


pelo juiz, sendo que esta atuação espontânea do juiz é muito comum de
acontecer), quando alegados pelas partes, são objeto de exceção. A disciplina
legislativa da exceção de impedimento ou de suspeição é encontrada no artigo
146 do novo CPC. Segundo o novo Código, a apresentação de exceção de
suspeição ou impedimento (que dá origem a um incidente no Tribunal
competente), suspende a tramitação do processo apenas até decisão inicial do
relator que declare em que efeitos o incidente é recebido (§ 2º): se recebido no
efeito suspensivo, o processo permanece suspenso; do contrário, retomará seu
curso. Acolhida a exceção, os autos serão remetidos ao substituto legal do juiz,
devendo o tribunal fixar o momento a partir do qual foi verificada a causa de
impedimento ou de suspeição e anular os atos processuais praticados após
esta. Rejeitada a exceção, o processo seguirá o seu curso com o juiz excepto.

Art. 146. No prazo de 15 (quinze) dias, a contar do conhecimento do


fato, a parte alegará o impedimento ou a suspeição, em petição
específica dirigida ao juiz do processo, na qual indicará o fundamento
da recusa, podendo instruí-la com documentos em que se fundar a
alegação e com rol de testemunhas.
§ 1º Se reconhecer o impedimento ou a suspeição ao receber a
petição, o juiz ordenará imediatamente a remessa dos autos a seu
substituto legal, caso contrário, determinará a autuação em apartado
da petição e, no prazo de 15 (quinze) dias, apresentará suas razões,
acompanhadas de documentos e de rol de testemunhas, se houver,
ordenando a remessa do incidente ao tribunal.
§ 2º Distribuído o incidente, o relator deverá declarar os seus efeitos,
sendo que, se o incidente for recebido:
I – sem efeito suspensivo, o processo voltará a correr;

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

II – com efeito suspensivo, o processo permanecerá suspenso até o


julgamento do incidente.
§ 3º Enquanto não for declarado o efeito em que é recebido o
incidente ou quando este for recebido com efeito suspensivo, a tutela
de urgência será requerida ao substituto legal.
§ 4º Verificando que a alegação de impedimento ou de suspeição é
improcedente, o tribunal rejeitá-la-á.
§ 5º Acolhida a alegação, tratando-se de impedimento ou de
manifesta suspeição, o tribunal condenará o juiz nas custas e
remeterá os autos ao seu substituto legal, podendo o juiz recorrer da
decisão.
§ 6º Reconhecido o impedimento ou a suspeição, o tribunal fixará o
momento a partir do qual o juiz não poderia ter atuado.
§ 7º O tribunal decretará a nulidade dos atos do juiz, se praticados
quando já presente o motivo de impedimento ou de suspeição.

Pode-se afirmar que o impedimento é um defeito mais grave que a


suspeição. Se a suspeição não for apurada no curso do processo, por meio do
procedimento antes descrito, nada poderá ser feito após o trânsito em julgado.
Já a sentença proferida por juiz impedido pode ser objeto de ação rescisória,
de acordo com o artigo 966, II, do novo CPC.

Impedimento Suspeição

Fundado em fatores de apuração Fundada em fatores de apuração


objetiva (prova mais fácil) subjetiva (prova mais difícil)

Pode ser apurado no curso do Deve ser apurada no curso do


processo, por meio de exceção. Se processo, por meio de exceção – uma
não for, contudo, a sentença proferida vez que não há meio de impugnação
por juiz impedido pode ser impugnada contra sentença proferida por juiz
por ação rescisória suspeito (quer dizer, não cabe ação
rescisória)

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

7.6.3 Capacidade processual

Não se deve confundir a capacidade processual com a capacidade


postulatória, já estudada. A capacidade processual é também conhecida como
capacidade para ser parte (não confundir, também, com a legitimidade de
parte). Seu equivalente, no plano do direito material, é a capacidade jurídica.
Lembre-se a distinção, encontrada no plano material, entre
personalidade e capacidade jurídica. A personalidade confere à pessoa a
condição de sujeito de direito e, no que diz respeito às pessoas físicas, inicia
com o nascimento. Mas ser titular de direitos é uma coisa. Poder exercer esses
direitos, outra. A possibilidade de exercer efetivamente os direitos é chamada,
pelo direito material, de capacidade de exercício ou, simplesmente, de
capacidade jurídica (ainda no exemplo das pessoas físicas, a capacidade
jurídica apenas se torna plena com a maioridade).
Assim, como regra geral, apenas têm capacidade processual
(capacidade para ser parte) as pessoas (físicas ou jurídicas) dotadas de
capacidade jurídica. A equivalência, no entanto, não é total.
Isso porque o Código de Processo Civil confere a determinados entes
despersonalizados (e, portanto, sem personalidade jurídica), capacidade
processual, desde que observada, obviamente, a regra de representação
judicial respectiva.
Tem-se, assim, o artigo 75 do novo CPC:

Art. 75. Serão representados em juízo, ativa e passivamente:


[...]
V – a massa falida, pelo administrador judicial;
VI – a herança jacente ou vacante, por seu curador;
VII – o espólio, pelo inventariante;
[...]
IX – a sociedade e a associação irregulares e outros entes
organizados sem personalidade jurídica, pela pessoa a quem couber
a administração de seus bens;
[...]
XI – o condomínio, pelo administrador ou síndico.

Questão afeta à capacidade processual diz respeito à presença, em


juízo, de entes despersonalizados integrantes de pessoas jurídicas de direito

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público, como Secretarias Municipais e Estaduais e Ministérios (do Poder


Executivo Federal). O mesmo se passa com a representação dos Poderes
(Legislativo e Judiciário) e com o próprio Ministério Público.
Assim, ações que envolvam a discussão de atos de Secretarias ou
Ministérios, ou mesmo dos demais Poderes do Estado ou do Ministério Público,
devem ter o seu polo (passivo ou ativo, conforme a situação), composto pela
pessoa jurídica de direito público respectiva (União, Estado ou Município),
sendo atendida pelo órgão de representação judicial (Procuradoria) do Poder
Executivo.
Há, no entanto, ao menos três ressalvas a serem feitas.
Se a ação em questão for um mandado de segurança, o polo passivo
tem de ser composto pela autoridade responsável pela prática do ato. Trata-se,
no entanto, do agente público ou político, e, jamais, do órgão a que ele está
vinculado. Assim, por exemplo, o mandado de segurança pode ser impetrado
contra ato do Ministro do Meio Ambiente ou contra ato do Secretario de Estado
de Educação, mas nunca contra o Ministério do Meio Ambiente ou a Secretaria
de Estado da Educação. A pessoa jurídica de direito público (União, Estado ou
Município), no mandado de segurança, é notificada para tomar conhecimento
da ação e, especialmente, intervir após a parte impetrada prestar suas
informações (espécie de “contestação” deste procedimento), sendo da pessoa
jurídica, e não da autoridade, a legitimidade recursal principal.
O Ministério Público detém legitimidade para, além da promoção da
ação penal pública, promover uma série de outras ações, de natureza civil
(ações civis públicas e ações do controle concentrado de constitucionalidade,
por exemplo). Obviamente que, nestas situações, em que a legitimidade do MP
é conferida pela lei, o órgão detém capacidade processual.
Por fim, embora os Poderes (Legislativo e Judiciário, abrangidos na
hipótese também os Tribunais de Contas e o Ministério Público) não detenham,
ordinariamente, capacidade processual, a jurisprudência entende que se lhes
pode reconhecer, excepcionalmente, capacidade processual, para a defesa de
suas prerrogativas institucionais (especialmente em face do próprio Poder
Executivo).

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

Assim como acontece no que diz respeito à capacidade postulatória, o


vício relativo à capacidade processual pode ser suprido, a teor do artigo 76 do
novo CPC.

7.6.4 Validade da citação

A citação é pressuposto processual de existência. A validade da citação,


por sua vez, é pressuposto processual de validade. A validade da citação
depende da observância de uma série de formalidades previstas na lei. Não
observadas as formalidades inerentes à citação, esta será considerada nula, e
nulo também o processo.
A nulidade da citação (ou mesmo a sua inexistência), pode ser suprida,
na hipótese de o réu aparecer espontaneamente aos autos para alega-la. Se o
fizer e já apresentar sua contestação, o processo seguirá o seu curso normal.
Se comparecer apenas para alegar a nulidade (ou a inexistência), o prazo para
contestação inicia a partir da intimação da decisão judicial que reconhece o
vício.
Caso o processo transite em julgado contendo citação nula, ele pode ser
impugnado a qualquer tempo, mediante a ação já mencionada, chamada de
querela nullitatis insanabilis. Como este é o mesmo meio de impugnação para
a inexistência de citação, alguns autores (com certa dose de razão, reconhece-
se) afirmam não haver diferença entre a ausência e a nulidade de citação (já
que a consequência de uma hipótese ou de outra é a mesma).

7.6.5 Litispendência e coisa julgada

A litispendência e a coisa julgada, como já mencionado, são os únicos


pressupostos processuais negativos que iremos estudar aqui. Isso quer dizer
que a validade do processo depende de estarem ausentes: depende de não
existir litispendência ou coisa julgada.

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

O objetivo do reconhecimento da litispendência e da coisa julgada como


pressupostos processuais negativos de validade é simples: evitar o
ajuizamento de duas (ou mais) ações idênticas.
Segundo o artigo 337, § 2º, do novo CPC, duas ações serão idênticas
quando houver identidade entre as partes, o pedido, e a causa de pedir.
A diferença entre a litispendência e a coisa julgada é temporal: diz
respeito à existência, ou não, de trânsito em julgado da sentença na ação
anteriormente ajuizada (e que impede, de forma válida, o desenvolvimento da
segunda ação, que lhe é idêntica).
Assim, há litispendência “quando se repete ação que está em curso”
(artigo 337, § 3º, do novo CPC) e coisa julgada, “quando se repete ação que
já foi decidida por decisão transitada em julgado” (artigo 337, § 4º, do novo
CPC).
A exemplo do que já vimos a respeito da sentença proferida por juiz
impedido, a sentença proferida em ofensa à coisa julgada permite o
ajuizamento de ação rescisória (artigo 966, IV, do novo CPC).

7.7 Vícios decorrentes da inobservância dos pressupostos processuais.


Panorama geral

Sempre que possível, deverá ser tentada a correção da falta de


pressuposto processual ao longo do processo. Sempre que possível porque
pode já ter passado o momento adequado para tanto (o momento para
emendar-se a petição inicial, por exemplo, é imediatamente após o seu
ajuizamento, devendo ser assinalado prazo para tanto pelo juiz ao despachá-
la) ou porque o vício não admite convalidação.
Exemplo de vício que não admite convalidação, ao longo do processo,
são a litispendência e a coisa julgada.
Disso se percebe que a ausência de alguns pressupostos processuais é
mais grave do que a ausência de outros (que admitem correção no curso do
processo). Embora a sistematização do assunto seja um pouco difícil (porque o
próprio Processo Civil, no ponto, é casuístico), pode-se tentar estabelecer uma

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
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espécie de gradação dos vícios decorrentes da falta de pressupostos


processuais.
A falta ou a nulidade da citação são os vícios considerados mais graves.
Embora ainda possam ser supridos ao longo do processo (citando-se o réu não
citado ou reconhecendo-se a nulidade da citação e, consequentemente, a
nulidade de atos processuais que tenham sido afetados pelo problema), caso
haja o trânsito em julgado de uma sentença em processo no qual não houve,
ou foi nula, a citação, o meio de impugnação é a ação conhecida como querela
nullitatis insanabilis. Trata-se de ação meramente declaratória (de inexistência
ou de nulidade absoluta do processo, conforme a hipótese), proposta perante o
juiz de 1º grau, que não se submete a prazo decadencial (quer dizer, não tem
prazo para ser proposta).
Vícios que permitem o ajuizamento de ação rescisória, por sua vez, são
o impedimento do juiz, a incompetência absoluta (lembrando que a
competência será estudada na Lição seguinte) e a inobservância de coisa
julgada. A ação rescisória é uma ação desconstitutiva (anulatória) especial, que
é proposta perante o tribunal competente, no prazo decadencial de dois anos.
Relembra-se que mesmo o impedimento pode ser sanado durante o
processo, por meio da exceção respectiva. O mesmo vale, como veremos
ainda, para a incompetência absoluta (lembrando-se, ainda, que não há como
corrigir o vício de inobservância à coisa julgada ao longo do segundo
processo). No entanto, caso esses vícios não sejam corrigidos durante o
processo (e, de qualquer forma, no caso de ofensa à coisa julgada), a sentença
proferida poderá ser desconstituída, após o seu trânsito em julgado, mediante
ação rescisória. No entanto, transcorrido o prazo para ajuizamento da ação
rescisória, mesmo estas nulidades serão convalidadas.

7.8 Apreciação crítica

Imagina-se que o estudo até aqui realizado já tenha possibilitado que se


aprecie de forma crítica a definição tradicional de pressupostos processuais

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
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(“requisitos para sentença de mérito”), de maneira que, agora, o assunto seja


colocado em perspectiva.
A partir de uma perspectiva menos formalista do processo civil os
pressupostos processuais devem ser vistos não como requisitos do processo,
mas como requisitos da concessão da tutela jurisdicional do direito. Meros
“requisitos de um processo justo”.
Assim, a melhor forma de lidar, atualmente, com os pressupostos
processuais, é identificando qual o interesse que o pressuposto processual
objetiva resguardar: se o interesse público, ou se o interesse de uma das
partes (autor ou réu).
Pressupostos processuais estruturados para a defesa do interesse
público (para a obtenção de um processo justo, portanto) são indispensáveis
para a concessão da tutela jurisdicional do direito. Nesta categoria têm-se, por
exemplo, a litispendência e a coisa julgada, a competência absoluta e a
imparcialidade do juiz.
Se, no entanto, o pressuposto processual for estabelecido em benefício
da parte, o que é o caso da capacidade processual e da capacidade
postulatória, então a concessão da tutela jurisdicional do direito será possível,
desde que esta tutela seja favorável à parte em benefício da qual o
pressuposto processual faltante tenha sido instituído. Assim, ao verificar, por
exemplo, algum problema quanto à capacidade processual ou à capacidade
postulatória da parte autora, o juiz pode proferir sentença de mérito, desde que
ela seja favorável à mesma parte (o que equivaleria, no exemplo, à sentença
de procedência do pedido). Não poderá, contudo, resolver o mérito de forma
desfavorável à parte (o que, ainda no exemplo, equivaleria à sentença de
improcedência ou mesmo de parcial procedência do pedido).
Invertendo-se o exemplo, se o juiz perceber que há problema na
representação (capacidade postulatória) ou mesmo na capacidade processual
da parte ré, ele poderá, ainda assim, julgar o pedido improcedente (não poderá,
obviamente, julgá-lo procedente).

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“sem juridiquês”

8 COMPETÊNCIA E ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA

8.1 Introdução

Avisadamente, o único pressuposto processual que deixamos de fora de


nosso estudo na lição anterior foi a competência. Isso foi tanto por causa da
complexidade do tema (o que justificaria por si só o seu estudo em separado)
quanto em razão de sua conexão com outro assunto (que também
estudaremos agora), a organização judiciária.

8.1.1 Competência. Fundamentos e definição

Pode-se dizer que a distribuição de competências processuais tem dois


fundamentos, um de ordem mais filosófica, e outro de ordem bastante prática.
O primeiro fundamento, de ordem mais filosófica, tem a ver com um
direito fundamental: trata-se do princípio do juiz natural.
O princípio do juiz natural indica que o juízo responsável pelo julgamento
de uma causa deve ser definido de forma abstrata, mediante regras
preexistentes aos fatos. Nossa Constituição o prevê de forma indireta, ao
afirmar que “não haverá juízo ou tribunal de exceção” (artigo 5º, XXXVII).
O segundo fundamento da repartição processual de competências é de
ordem prática, e diz respeito à necessidade de distribuição racional de tarefas.
Como seria humanamente impossível que um só juízo desse conta de todas as
causas que são levadas à apreciação do Poder Judiciário, a repartição das
tarefas é algo necessário, e a especialização por matéria agrega-se como
elemento racionalizador desta distribuição.
A partir dessas inferências iniciais, podemos então definir a competência
como a divisão de trabalho racional entre os órgãos jurisdicionais. A parcela de
trabalho atribuída a um juízo ou tribunal, pela Constituição e pelas leis
processuais, é, exatamente, a competência deste.

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
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8.2 Classificações

Há duas classificações da competência que importam para o nosso


estudo. A primeira diz respeito ao critério para atribuição de competência. A
segunda, à consequência da inobservância da regra de competência.
Quanto ao critério para atribuição (a regra instituidora de competência),
a competência pode ser: em razão da matéria (ou material), em razão da
pessoa (ou pessoal), funcional, em razão do lugar (ou territorial) e em razão do
valor.
Quanto à consequência da inobservância da regra (o que também se
chama de grau), a competência pode ser absoluta ou relativa.
A regra de competência absoluta é de observância obrigatória (também
chamada de ordem pública), e a sua inobservância não admite convalidação
(exceto após o transcurso do prazo para ajuizamento de ação rescisória).
A regra de competência relativa é chamada dispositiva, pois admite
disposição das partes em sentido contrário (em termos de competência
territorial, a conhecida cláusula de eleição de foro), e sua inobservância, se não
alegada pela parte em momento oportuno, admite convalidação (o que se
chama de prorrogação de competência).
Na verdade, as duas classificações se comunicam, de maneira que, para
facilitar a sequência do estudo, vamos agrupar a classificação segundo o
critério sob a classificação segundo o grau.

8.2.1 Competência absoluta

São hipóteses de competência absoluta a competência material, a


pessoal e a funcional.
A competência material é aquela que é estabelecida em razão da
relação de direito material. Está prevista na Constituição e em normas de
organização judiciária. Exemplos de regras de competência material são a
competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar as lides oriundas
da relação de trabalho, a competência residual da Justiça Comum Estadual e a

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distribuição de competência por assunto (direito de família, direito penal, direito


comercial, etc.) entre diversas varas pertencentes a uma mesma Justiça.
A competência pessoal é estabelecida em razão de pelo menos uma das
pessoas presentes na lide. O exemplo mais conhecido é a competência da
Justiça Comum Federal para processar e julgar as causas em que haja
interesse da União, de autarquia, fundação ou empresa pública federais. Mas
também é exemplo de competência pessoal o chamado foro por prerrogativa
de função, uma das hipóteses de competência originária dos tribunais.
Já a competência funcional diz respeito às funções exercidas pelos
diferentes órgãos jurisdicionais ao longo de um processo, ou mesmo em
diferentes processos. Exemplo de competência funcional é a competência dos
tribunais para processar e julgar ações rescisórias (ainda que o objeto da ação
rescisória seja uma sentença de 1º grau de jurisdição).

Competência absoluta

Classificação Critério Exemplos

- Competência da Justiça do
Trabalho e da Justiça
Comum Estadual;
Material Relação jurídica material - Divisão de trabalho entre
Varas, presente nas normas
de organização judiciária

- Competência da Justiça
Pessoal Pessoa presente na relação Comum Federal;
jurídica material - Foro por prerrogativa de
função

Funcional Função exercida pelo órgão - Competência dos tribunais


jurisdicional para ações rescisórias

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8.2.2 Competência relativa

A competência relativa por excelência é a competência territorial. A regra


geral é de que é competente para a causa o foro do domicílio do réu (mas
existem diversas hipóteses específicas que excepcionam esta regra geral).
Como a competência territorial é uma competência relativa, podem as
partes celebrar a chamada cláusula de eleição de foro, escolhendo como
competente para apreciação de eventual litígio decorrente do negócio jurídico
foro diverso daquele territorialmente competente segundo a legislação
processual.
Alerta-se, apenas, que nas relações de consumo o Superior Tribunal de
Justiça entende que a cláusula de eleição do foro é nula, fixando-se a
competência, como regra geral, pelo foro do domicílio do consumidor.
A competência em razão do valor é, segundo a doutrina tradicional,
exemplo de competência relativa. Aqui, no entanto, devemos tomar alguns
cuidados.
Isso porque a extinção dos Tribunais de Alçada com a Emenda
Constitucional 45/2004 e o advento do microssistema dos Juizados Especiais
tornaram praticamente – senão completamente – inexistentes os exemplos
tradicionais de situações de competência relativa em razão do valor.

8.2.3 A competência no âmbito do microssistema dos Juizados Especiais

Com efeito, embora a regra preponderante de definição de competência


dos Juizados Especiais seja o valor da causa, este microssistema opera de
forma totalmente diversa da consideração da doutrina tradicional acerca da
competência em razão do valor. A competência em razão do valor, nos
Juizados, longe de ser relativa, ou é facultativa, ou é absoluta.
Nos Juizados Especiais Cíveis (Lei 9.099/1995), a competência é
facultativa. O que significa que a parte autora pode escolher se ajuíza sua ação
perante o Juizado ou perante o Juízo comum. Como perceberemos no item
seguinte, isso é bem diferente de uma competência que se diz relativa.

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

Já no âmbito dos Juizados Especiais Federais (Lei 10.259/2001) e dos


Juizados Especiais da Fazenda Pública (Lei 12.153/2009) a competência é
absoluta.
Assim, na tabela desenhada anteriormente, concernente à competência
absoluta, podemos incluir a competência dos Juizados Especiais Federais e
dos Juizados Especiais da Fazenda Pública.

8.3 Regime de reconhecimento de incompetência

A inobservância de uma regra de competência leva à incompetência do


juízo. A incompetência será absoluta ou relativa se a regra inobservada for,
respectivamente, de competência absoluta ou relativa.
No novo CPC, a incompetência, tanto a absoluta quanto a relativa,
constitui matéria de preliminar de contestação. Isso representa uma diferença
em relação ao regime do CPC de 1973, segundo o qual a incompetência
relativa seria alegada em exceção.
Não alegada a incompetência relativa no momento certo, ocorre o que
se chama de prorrogação de competência. O processo tramitará normalmente
perante o juízo que era relativamente incompetente para a causa. Houve a
preclusão da questão.
Assim, o juízo não pode reconhecer, de ofício, a incompetência relativa.
Isso depende de alegação pela parte prejudicada, repita-se.
Quanto à incompetência absoluta, embora o momento processualmente
adequado para a sua alegação seja a contestação (em preliminar), isso não
impede que a matéria seja arguida a qualquer momento, por qualquer das
partes (respondendo a parte que não a alegou no momento certo, apenas,
pelas “custas do retardamento” do processo). Trata-se de consequência do
caráter de matéria de ordem pública da competência absoluta. Na verdade, o
próprio juízo (e mesmo o Tribunal, em grau de recurso) pode reconhecer de
ofício a incompetência absoluta, até mesmo independentemente de alegação
pelas partes.

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

Reconhecida a incompetência (tanto a absoluta quanto a relativa) os


autos devem ser remetidos para o juízo competente para a causa. A
incompetência não é causa de nulidade de todo o processo. Os atos
processuais (inclusive a citação) praticados perante o juízo incompetente serão
considerados válidos. Apenas serão considerados nulos os atos decisórios (as
decisões) proferidos pelo juízo incompetente.
A esse respeito, o novo CPC, em seu artigo 65, § 4º, esclarece que,
como regra geral (quer dizer, a não ser que haja decisão expressa e
fundamentada do juízo incompetente em sentido contrário), os efeitos, da
decisão proferida pelo juízo incompetente são preservados até que seja
proferida uma nova decisão pelo juízo competente.
Como a incompetência não leva à nulidade de todo o processo (mas
apenas das decisões), há autores que afirmam (com razão!) que a
competência não é propriamente um pressuposto de validade do processo,
mas um pressuposto de validade das decisões judiciais.
A sentença proferida por juízo absolutamente incompetente é passível
de anulação (rescisão) mediante o ajuizamento de ação rescisória.

8.4 Conflitos de competência

A controvérsia sobre dois órgãos jurisdicionais acerca da competência


para uma determinada causa é chamada de conflito de competência.
O conflito de competência pode ser negativo, hipótese em que os dois
órgãos jurisdicionais se afirmam incompetentes para a causa, ou positivo,
hipótese em que os dois órgãos jurisdicionais se afirmam competentes.
Como regra geral, o conflito de competência será solucionado pelo
Tribunal com ascendência hierárquica sobre os órgãos jurisdicionais em
questão. Por isso, não existe conflito de competência entre um tribunal e um
juízo a ele vinculado.
Outra questão que deve ser destacada é que não existe conflito de
competência entre a Justiça Comum Federal e a Justiça Comum Estadual.
Incumbe à primeira (Justiça Federal) definir se existe interesse da União ou de

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

ente federal na causa. Como a existência desse interesse é o próprio critério de


direito material que define a competência da Justiça Federal, o reconhecimento
de sua inexistência afasta a competência federal, fixando-se a competência da
Justiça Estadual, não podendo esta (Justiça Estadual) querer rediscutir a
questão, suscitando conflito de competência. Reforça-se que a Justiça
Estadual não tem competência para reconhecer a existência de interesse da
União na causa, não podendo, por isso mesmo, suscitar conflito negativo de
competência com a Justiça Federal.
Caso o processo inicie na Justiça Estadual e seja levantada a questão
acerca de interesse federal na causa, incumbe àquela (Justiça Estadual)
remeter o feito à Justiça Federal, que resolverá a questão (Súmula 150 do
STJ). A partir do momento em que a questão for resolvida, o processo
prossegue na Justiça Federal (se for reconhecido o interesse federal) ou será
devolvido à Justiça Estadual (se for reconhecida a inexistência de interesse
federal), hipótese em que esta (a Justiça Estadual) deve prosseguir no feito,
não cabendo, como já afirmado, a instauração de conflito negativo de
competência (o máximo que pode acontecer é a interposição de recurso pela
parte que se sentir prejudicada – mas não, reforça-se, a instauração de conflito
de competência).

8.5 Organização Judiciária. Noções Gerais

8.5.1 O “duplo grau de jurisdição” e as competências dos tribunais

Como já vimos, embora o duplo grau de jurisdição não seja uma garantia
fundamental em matéria cível, a regra geral é que a Justiça brasileira se
organiza em dois graus de jurisdição, com a possibilidade posterior de recursos
excepcionais a Cortes de Sobreposição.
Também vimos que a característica dos dois graus de jurisdição é que
eles exercem cognição completa sobre os fatos e sobre o direito a eles
aplicado. Em outras palavras, os tribunais de 2º grau de jurisdição podem (na
medida em que provocados pelas partes por meio de recursos, obviamente)

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

revisar toda a matéria fática considerada pelos juízos de 1º grau, inclusive


reapreciando a prova.
A competência dos tribunais no exercício do 2º grau de jurisdição é
chamada de competência recursal ordinária.
No âmbito dos recursos ditos excepcionais (os mais conhecidos dos
quais são o recurso extraordinário ao STF, o recurso especial ao STJ, e o
recurso de revista ao TST), no entanto, os “Tribunais Superiores” (hoje mais
corretamente devendo ser adjetivados como Cortes “Supremas”), não podem
reexaminar fatos e provas. Esta é a competência recursal extraordinária ou
excepcional. Não é correto falar-se em 3º grau de jurisdição, exatamente
porque os Tribunais de Sobreposição não podem reexaminar fatos e provas.
As Cortes de Sobreposição da Justiça Comum (Estadual e Federal) são
o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal. Ao STJ incumbe
a interpretação da legislação federal e ao STF, a interpretação da Constituição.
De um acórdão do 2º grau de jurisdição em que haja ofensa tanto à legislação
federal quanto à Constituição caberá, simultaneamente, recurso especial ao
STJ e recurso extraordinário ao STF.
A Corte de Sobreposição da Justiça do Trabalho é o Tribunal Superior
do Trabalho. De acórdão de Tribunal Regional do Trabalho cabe recurso de
revista para o TST, alegando-se ofensa tanto à legislação federal trabalhista
quanto à Constituição. No entanto, como a guarda da Constituição é conferida
ao Supremo Tribunal Federal, ainda pode caber recurso extraordinário ao STF
contra acórdão do TST.
O Tribunal Superior Eleitoral é a Corte de Sobreposição na Justiça
Eleitoral, podendo conhecer de ofensa à legislação eleitoral e à Constituição. E
de acórdãos do TSE, para preservação da Constituição, também cabe recurso
extraordinário ao STF.
Mas os tribunais também podem funcionar como 1º grau de jurisdição,
nas chamadas ações de competência originária. Esta é a competência
originária dos tribunais. Quando um tribunal funciona como 1º grau de
jurisdição (competência originária), é possível que outro tribunal,
hierarquicamente superior, funcione como 2º grau de jurisdição (exercendo,

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“sem juridiquês”

assim, portanto, competência recursal ordinária). Hipótese de competência


recursal ordinária dos “Tribunais Superiores” é encontrada na possibilidade de
interposição de recurso ordinário contra decisão denegatória de ações
constitucionais (mandados de segurança, habeas corpus e habeas data),
quando estas ações forem de competência de outro tribunal. Por estar a
hipótese prevista expressamente na Constituição, este tipo de recurso é
também chamado de recurso ordinário constitucional.

8.5.2 Justiças Estadual e Federal, Comum e Especializada

Já consideramos a organização judiciária no que diz respeito aos graus


de jurisdição. Agora cabe considerar o assunto à luz do financiamento
(manutenção) e da especialização das justiças.
Se o critério for a manutenção financeira das Justiças, estas serão
chamadas de Estadual ou Federal. A Justiça Estadual é mantida pelos
Estados, e a Justiça Federal é mantida pela União.
Do ponto de vista da especialização das matérias, no entanto, temos
que a Justiça pode ser comum ou especializada. A Justiça Estadual será
sempre comum (daí por que chamar-se também de Justiça Comum Estadual).
A Justiça Federal pode ser comum (Justiça Comum Federal) ou especializada
(Justiças do Trabalho, Militar Federal e Eleitoral).
O seguinte organograma agrega, em linhas gerais, todas as noções até
aqui trabalhadas em termos de organização judiciária (graus de jurisdição,
cortes de sobreposição, manutenção e especialização):

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

8.6 Organização Judiciária e Competência

8.6.1 Justiça Comum Estadual

A competência da Justiça Comum Estadual é definida de forma


subsidiária: tudo aquilo que não for de competência da Justiça Comum Federal
ou das Justiças Especializadas Federais é da competência da Justiça Comum
Estadual.
Grosso modo, pode-se dizer que a Justiça Comum Estadual vai ser
competente para o julgamento de causas envolvendo os particulares e
daquelas envolvendo os Estados e os Municípios.
O 1º grau de jurisdição é exercido pelos Juízes de Direito. O 2º, pelos
Tribunais de Justiça (competência recursal ordinária). Os julgamentos nos
Tribunais de Justiça são colegiados, e os seus menores órgãos fracionários
são chamados de Câmaras.

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O STJ e o STF funcionam como Cortes de Sobreposição (competência


recursal excepcional ou extraordinária).
A organização territorial da Justiça Comum Estadual é dada por meio de
Comarcas, que podem abranger um ou mais Municípios.

8.6.1.1 Justiça Militar Estadual

A “Justiça Militar Estadual” é, em verdade, um braço especializado da


Justiça Comum Estadual. Os militares estaduais são julgados, por crimes
militares, em 1º grau de jurisdição pelos chamados Conselhos de Justiça. E
pelos Juízes de Direito, também em 1º grau, pelos crimes militares cometidos
contra civis, ou em ações de impugnação de atos disciplinares.
O 2º grau de jurisdição será exercido pelos Tribunais de Justiça. Existe a
possibilidade de que Estados com efetivo superior a 20.000 homens criem um
Tribunal Militar (que ainda será integrante da estrutura da Justiça Comum
Estadual, perceba-se).

8.6.2 Justiça Comum Federal

A regra geral de definição da competência da Justiça Comum Federal,


como já mencionado, é a presença de interesse da União, de autarquia,
fundação ou empresa pública federais. Há, no entanto, outras hipóteses de
definição da competência da Justiça Federal, todas elas contempladas no
artigo 109 da CRFB:

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:


I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa
pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés,
assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de
trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;
II - as causas entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e
Município ou pessoa domiciliada ou residente no País;
III - as causas fundadas em tratado ou contrato da União com Estado
estrangeiro ou organismo internacional;
IV - os crimes políticos e as infrações penais praticadas em
detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas
entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da


Justiça Eleitoral;
V - os crimes previstos em tratado ou convenção internacional,
quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse
ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente;
V-A as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º
deste artigo; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
VI - os crimes contra a organização do trabalho e, nos casos
determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem
econômico-financeira;
VII - os habeas corpus, em matéria criminal de sua competência ou
quando o constrangimento provier de autoridade cujos atos não
estejam diretamente sujeitos a outra jurisdição;
VIII - os mandados de segurança e os habeas data contra ato de
autoridade federal, excetuados os casos de competência dos
tribunais federais;
IX - os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada
a competência da Justiça Militar;
X - os crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiro, a
execução de carta rogatória, após o "exequatur", e de sentença
estrangeira, após a homologação, as causas referentes à
nacionalidade, inclusive a respectiva opção, e à naturalização;
XI - a disputa sobre direitos indígenas.

Importante hipótese de delegação de competência da Justiça Comum


Federal para a Justiça Comum Estadual é encontrada no artigo 109, § 3º, da
CRFB, segundo o qual as ações previdenciárias podem ser ajuizadas na
Justiça Estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários (caso a
Comarca não seja também sede de Vara Federal), hipótese, no entanto, em
que o recurso será sempre interposto ao Tribunal Regional Federal (§ 4º).
O 1º grau de jurisdição da Justiça Comum Federal é exercido pelos
Juízes Federais. O 2º grau (competência recursal ordinária), pelos Tribunais
Regionais Federais, cujos menores órgãos fracionários são chamados de
Turmas.
O STJ e o STF funcionam como Cortes de Sobreposição.

8.6.3 Justiça Eleitoral

A Justiça Eleitoral, no Brasil, tem atribuições administrativas e


competência jurisdicional. Administrativamente, incumbe-lhe organizar as
eleições.

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
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Judicialmente, processar e julgar as causas em que se discuta a


aplicação da legislação eleitoral.
A jurisdição eleitoral é exercida, em 1º grau de jurisdição, por juízes
eleitorais – que são, na verdade, juízes estaduais investidos em jurisdição
federal de forma delegada.
Aos Tribunais Regionais Eleitorais incumbe o exercício do 2º grau de
jurisdição. Ao Tribunal Superior Eleitoral, a função de Corte de Sobreposição
(com recurso extraordinário, em matéria constitucional, ao STF).
Os TREs e o TSE têm uma composição mista (dentre advogados,
membros do Ministério Público e magistrados das Justiças Comum Estadual e
Federal), que se renova de tempos em tempos, daí por que é possível concluir
que não existem magistrados eleitorais de carreira (lembrando que os “juízes
eleitorais” de 1º grau pertencem à carreira da Justiça Comum Estadual).

8.6.4 Justiça Militar Federal

À Justiça Militar Federal incumbe processar e julgar os membros das


Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica). Sua competência é
exclusivamente criminal. Subdivide-se em Juntas Militares (1º grau) e Superior
Tribunal Militar (2º grau).

8.6.5 Justiça do Trabalho

O 1º grau de jurisdição, na Justiça do Trabalho, é exercido pelos Juízes


do Trabalho. O 2º grau, pelos Tribunais Regionais do Trabalho (competência
recursal ordinária). Estes dividem-se em Turmas.
A primeira Corte de Sobreposição no âmbito da Justiça do Trabalho é o
Tribunal Superior do Trabalho, que, em recurso de revista, conhece de
alegação de contrariedade à legislação federal trabalhista e à Constituição.
Acima do TST, no entanto, no que diz respeito à interpretação da Constituição,
está ainda o STF, ao qual é possível ascender por meio de recurso
extraordinário.

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

A competência material (competência em razão da matéria) da Justiça


do Trabalho está prevista no artigo 114 da CRFB:

Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:


I as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de
direito público externo e da administração pública direta e indireta da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
II as ações que envolvam exercício do direito de greve;
III as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre
sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores;
IV os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data ,
quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição;
V os conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista,
ressalvado o disposto no art. 102, I, o;
VI as ações de indenização por dano moral ou patrimonial,
decorrentes da relação de trabalho;
VII as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos
empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho;
VIII a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art.
195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças
que proferir;
IX outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma
da lei.

A redação atual do artigo 114 foi dada pela Emenda Constitucional


45/2004. Esta definiu a regra geral da competência da Justiça do Trabalho
(inciso I) em termos de apreciação das “ações oriundas da relação de
trabalho.” Isso é uma substancial alteração em relação ao regime
historicamente verificado até então.
Com efeito, antes da EC 45/2004, a competência da Justiça do Trabalho
era definida pela apreciação de lide decorrente da “relação de emprego,” e não
da relação de trabalho. Relação de emprego é apenas uma espécie do gênero
relação de trabalho, sendo aquela em que são verificados os elementos da
pessoalidade e da subordinação. Ou, de forma mais simplista, o caráter de
“emprego” de uma relação é ditado pela incidência da CLT sobre ela.
Então, após a EC 45/2004 a competência material da Justiça do
Trabalho foi ampliada para a apreciação de lides decorrentes da relação de
trabalho (e não mais de forma exclusivamente limitada à relação de emprego).
A partir daí (e inclusive em razão da própria literalidade do inciso I do
artigo 114 da CRFB), alguns começaram a defender que a competência da

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
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Justiça do Trabalho abrangeria inclusive a apreciação de lides entre servidores


públicos estatutários e a Administração Pública.
Essa possibilidade foi logo rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal, na
apreciação de medida cautelar na ADI 3395 (ajuizada contra a EC 45/2004),
em que a Corte conferiu “interpretação conforme” ao texto do artigo 114, I, da
CRFB, para dele excluir a possibilidade de que a Justiça do Trabalho aprecie
lides relativas a servidores públicos estatutários, e ainda de qualquer pessoa
ligada à Administração Pública por relação de cunho “jurídico-administrativo”.
Esta (“relação de cunho jurídico-administrativo”) é, inclusive, a situação
dos chamados servidores temporários, quando contratados mediante a
aplicação de legislação própria do ente federado. Nesse caso, a competência
da Justiça do Trabalho estará afastada, sendo competente a Justiça Comum
(Federal ou Estadual, conforme o caso).
Apenas se a contratação de servidores temporários for realizada
mediante a aplicação da CLT (hipótese em que a pessoa jurídica de direito
público não tem, perceba-se, legislação própria que discipline a contratação
temporária) é que se estará diante da competência da Justiça do Trabalho.
Outra questão importante é que a apreciação de relação de consumo
não é da competência da Justiça do Trabalho. Por isso, a jurisprudência do
Superior Tribunal de Justiça se consolidou no sentido de que a ação de
cobrança de honorários de profissional liberal é da competência da Justiça
Comum, e não da Justiça do Trabalho (Súmula 363 do STJ).
Por fim, convém registrar que a Justiça do Trabalho não tem
competência em matéria criminal.

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9 NOÇÕES SOBRE TEORIA DOS PRECEDENTES

9.1 Introdução

A “teoria dos precedentes,” possivelmente, tornou-se o assunto que mais


chamou a atenção dos estudos do processo civil brasileiro durante a última
década. É, sem dúvida, atualmente um dos temas mais relevantes do estudo
do processo civil no Brasil.
Ocorre que o assunto dos precedentes é estranho à nossa tradição de
civil law e, por isso, percebe-se grande dificuldade de acomodá-lo tanto à
nossa cultura jurídica quanto às nossas estruturas procedimentais.
No entanto, a consideração e a operação dos precedentes, no âmbito da
própria tradição de civil law em que estamos inseridos, é uma necessidade que
decorre, primeiramente, da teoria do Direito contemporânea.
No contexto específico do Brasil, o reconhecimento de precedentes – ao
menos os do Supremo Tribunal Federal – é uma necessidade que sempre
esteve ligada à existência do modelo de controle difuso de constitucionalidade.
Assim já alertava Rui Barbosa no começo do século passado (embora sua voz,
naquele momento histórico, não tenha sido ouvida e a força vinculante dos
precedentes do Supremo em controle difuso de constitucionalidade tenha sido
rejeitada, no Brasil, até bem pouco tempo atrás).
Outro aspecto que é bem particular à nossa nação é a litigiosidade de
massa que assola o Poder Judiciário, do que decorre a necessidade de
racionalização da atividade jurisdicional (o que é muito mais uma perspectiva
de política judiciária antes do que a consequência da adoção de determinada
visão acerca do Direito).
Na verdade, a temática dos precedentes foi introduzida, no Brasil, e ao
menos no que diz respeito às alterações promovidas na Constituição e na
legislação infraconstitucional, sob este estrito enfoque de política judiciária
(racionalização da atividade jurisdicional).
Assim, alterações constitucionais e legislativas feitas no afogadilho, na
última década, tiveram a boa intenção de tentar racionalizar a prestação da

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atividade jurisdicional por meio da observância de precedentes ou de figuras


similares (o que teve o efeito colateral de gerar boa dose confusão
conceitual...).
No entanto, as boas intenções por trás destas reformas não mudaram –
e nem podem mudar – os dois fatos já descritos logo ao início desta introdução:
nossos operadores do Direito não têm preparação cultural para lidar com
precedentes, e nossa estrutura procedimental é ainda menos adequada para
acomodá-los.
E nesse contexto foi que o novo Código de Processo Civil, que entrou
em vigor em março de 2016, colocou a temática dos precedentes ainda mais
em evidência. No entanto, como já se tentou demonstrar, alterações
legislativas bem intencionadas jamais foram aptas a alterar a cultura
circundante. Assim, pode-se dizer que o novo Código coloca-se sob duplo
impasse: o primeiro, ao tentar criar, mediante alteração legislativa, um
ambiente cultural inexistente; o segundo, ao tentar disciplinar a operação e a
aplicação dos precedentes por meio de lei (o que parece ser até mesmo uma
contradição em termos...).
Portanto, para podermos compreender melhor a teoria dos precedentes
– isto é, conhecer as razões por trás da necessidade do reconhecimento e da
operação de precedentes no Brasil, assim como aprender conceitos básicos
relativos à sua operacionalização – e, até mesmo, realizar uma apreciação
crítica do novo CPC acerca do assunto, teremos que aprofundar um pouco
cada uma das ideias tratadas nesta introdução.

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9.2 Aspectos preliminares de teoria do Direito. Ideologia estática X


ideologia dinâmica da interpretação

9.2.1 Ideologia estática da interpretação. Funções dos “Tribunais


Superiores.” Jurisprudência e súmulas

Já vimos que, como consequência do positivismo jurídico e da ideia,


bastante forte na Europa continental após a Revolução Francesa, de que a
segurança jurídica (previsibilidade do Direito) seria encontrada no texto da lei,
desenvolveu-se aquilo que é chamado de ideologia estática da interpretação. A
ideologia estática da interpretação sustenta que o interprete (no caso do
processo, o juiz) não cria o Direito – já que o Direito seria criado pela lei, e
apenas por ela. Assim, ao interpretar a lei, o juiz está apenas revelando o
conteúdo do direito que está subjacente ao texto da lei.
Tem-se, no entanto, um claro problema de ordem prática. Se mais de
um juiz interpreta a lei de forma diferente, qual destas interpretações é aquela
que está de acordo com o sentido exato da lei? Para uniformizar a
interpretação da lei foram criadas as chamadas “Cortes de Cassação” ou
“Tribunais Superiores,” cujo objetivo era meramente corrigir aplicação
equivocada da lei (obviamente que esta aplicação equivocada pode pressupor
interpretação equivocada).
No entanto, como uma “Corte de Cassação” ou “Tribunal Superior” não
cria o Direito, sua função é apenas corrigir, pontualmente, as aplicações
equivocadas da lei. Toda vez que uma lei for “incorretamente” aplicada, o
Tribunal será provocado, mediante recurso, pela parte prejudicada, e
reafirmará a interpretação correta da lei.
Daí a ideia de jurisprudência. Jurisprudência é, apenas, o entendimento
reiterado dos tribunais. Ou seja, quando se tem diversas decisões de um
tribunal, no mesmo sentido, tem-se jurisprudência.
Com o passar do tempo, para facilitar a pesquisa à sua jurisprudência,
os tribunais criaram súmulas. Súmulas, como o próprio nome já diz, é um
resumo da jurisprudência dos tribunais. Assim, ao invés de ter que pesquisar

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
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diversas decisões de um mesmo tribunal para saber como ele vem aplicando a
lei, basta que se consultem as suas súmulas. Dessa maneira, as súmulas,
originalmente, eram apenas um expediente utilizado para facilitar a pesquisa de
jurisprudência: a súmula é um resumo da jurisprudência.
Aproveita-se para esclarecer que não apenas as “Cortes de Cassação”
produzem jurisprudência e súmulas, mas também o fazem os Tribunais
ordinários (2º grau de jurisdição).
É importante perceber, portanto, que em razão do próprio contexto
cultural em que surgiram (positivismo jurídico + civil law + ideologia estática da
interpretação = Poder Judiciário não cria o Direito), a jurisprudência e as
súmulas jamais foram compreendidas, historicamente, como fontes primárias
do Direito, servindo, apenas, para auxiliar na interpretação da lei diante dos
casos concretos.

9.2.2 Ideologia dinâmica da interpretação. Funções das “Cortes Supemas”

No entanto, como também já mencionado, a ideologia estática da


interpretação está em desuso na Europa continental há pelo menos meio
século, tendo cedido lugar à ideologia dinâmica da interpretação. Esta
compreende que o intérprete (para o que nos interessa, o juiz) cria, sim, o
Direito. Na verdade, o mais correto é dizermos que o juiz reconstrói o Direito.
Ou seja, o Direito é o resultado do trabalho conjunto do Poder Legislativo com
o Poder Judiciário.
E a ideologia dinâmica da interpretação compreende que o intérprete
(juiz) reconstrói o Direito a partir da consideração da diferença entre texto
legislativo e norma jurídica.
O texto legislativo, assim, é aquilo que está escrito na lei. A norma
jurídica, por sua vez, é consequência da interpretação que é realizada sobre o
texto legislativo. Como quem realiza a interpretação é sempre o intérprete
(juiz), segue-se que o intérprete cria (reconstrói) o Direito.

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Ideologia dinâmica da interpretação

Texto legislativo
(produzido pelo Poder Legislativo)

Norma jurídica
(resultado da atividade do intérprete – Poder Judiciário)

A partir da ideologia dinâmica da interpretação, as funções das “Cortes


de Cassação” (“Tribunais Superiores”) são revistas. Estas passam a ser
compreendidas não mais como Tribunais que devem apenas corrigir
equívocos, mas sim como Cortes que devem fornecer orientação. Isso significa
que passam a ser consideradas como “Cortes Supremas.”
A função das “Cortes Supremas” é a de desenvolver o Direito,
fornecendo orientação a partir de suas decisões. Assim, embora a noção de
jurisprudência e de súmulas não tenha sido abandonada pela tradição de civil
law, verifica-se, nesta mesma tradição, a necessidade de que sejam
observados os “precedentes” das suas “Cortes Supremas” (antigamente
apenas consideradas como “Cortes de Cassação”).

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Funções desempenhadas por


Tribunais Superiores/Cortes Supremas

Cortes de Cassação Cortes Supremas


(ou Tribunais Superiores) Desenvolvem o Direito/
Corrigem equívocos Fornecem orientação
- produzem jurisprudência/súmulas - produzem precedentes
(auxiliam na interpretação da lei) (criam direito)

Inevitavelmente, portanto, a cultura de civil law passou a estudar a forma


como sua tradição vizinha, o common law, lida, já há séculos, com a ideia de
precedentes.

9.3 Aproximação entre as tradições de civil law e de common law

Na verdade, diz-se que, hoje, as tradições de civil law e de common law


estão muito mais próximas do que jamais estiveram, em seu distanciamento
histórico.
Após a Revolução Francesa, aquilo que conhecemos como tradição de
civil law se desenvolveu com base na ideia de “supremacia da lei” (a lei em
sentido formal como fonte primária do Direito). Perceba-se que, enquanto
modelo teórico, esta forma de ver o Direito é muito recente na história.
A tradição de common law, desenvolvida na Inglaterra e em suas
colônias (notadamente, para o que nos interessa, nos Estados Unidos), por sua
vez, sempre teve no costume a fonte primária do Direito. Nesse ponto,
efetivamente, as duas tradições se distanciaram, especialmente a partir do
momento em que a lei foi erigida, na Europa continental, a fonte primária do
Direito (após a Revolução Francesa, reforça-se).

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
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Contudo, embora o common law sempre reconhecesse no costume a


fonte primária do seu Direito, não há como um sistema deste tipo fornecer
segurança jurídica sem a observância obrigatória de precedentes judiciais.
Assim, a primeira decisão que diz qual é o costume aplicável a um caso
concreto passa a ser de observância obrigatória para os casos similares, que
sejam objeto de apreciação judicial no futuro. Trata-se, meramente, de uma
questão de igualdade (isonomia). Daí a expressão inglesa treat like cases alike
(“tratar de forma igual casos semelhantes”). Quando esta decisão é de um
tribunal com ascendência sobre determinados juízes, tem-se um precedente de
observância obrigatória para estes juízes. “Está decidido e não mexa no que
está quieto” (stare decisis et non quieta movere, é a expressão latina que indica
a obediência a precedentes).
Neste momento é bom perceber que uma coisa são as fontes do direito
material, por assim dizer. Na tradição jurídica de civil law tem-se,
historicamente, a primazia da lei. Na de common law, a primazia do costume.
Outra coisa, no entanto, é o stare decisis enquanto mecanismo processual,
como forma de operar de maneira racional o sistema, agregando-lhe segurança
jurídica.
Assim, nada impede que, mesmo num sistema jurídico cuja tradição está
na primazia da lei escrita (civil law) seja reconhecido o valor processual da
observância de precedentes. As diretrizes da humildade e da eficiência –
válidas tanto no common law quanto no civil law – assim indicam.
Segundo a diretriz da humildade, nada assegura ao juiz de hierarquia
inferior que a sua decisão será melhor do que aquela já adotada por um
tribunal que lhe é hierarquicamente superior acerca de caso semelhante. Já a
diretriz da eficiência, por sua vez, demonstra que não há sentido algum numa
decisão proferida por um juiz apenas para ser reformada pelo tribunal
(exatamente porque este entende em sentido contrário).
Na verdade, o que se viu, ao longo dos últimos anos, foi uma grande
aproximação das duas tradições jurídicas. Por um lado, cresceu muito a
produção de direito legislado nos países do common law; por outro, cresceu o
reconhecimento da produção judicial do Direito nos países de civil law.

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Este crescimento do reconhecimento da produção judicial do Direito é


tanto uma decorrência lógica da adoção da ideologia dinâmica da
interpretação, já mencionada, quanto uma necessidade prática decorrente
daquilo que se chama de “estabilidade decisória.” Quando o ônus político da
tomada de determinadas decisões é muito grande sobre o Poder Legislativo,
este deixa de promover alterações reclamadas pela sociedade, tarefa que
passa a ser assumida, então, pelo Poder Judiciário23 (perceba-se que esta é
uma perspectiva muito mais sociológica do que, propriamente, jurídica, mas
que igualmente explica o fenômeno de forma satisfatória).

9.4 Operacionalização de precedentes. Ratio decidendi e obiter dicta.


Precedente X jurisprudência e súmula. Distinguishing e overruling

Compreendida, então, esta aproximação mais recente entre as duas


tradições jurídicas (common law e civil law), é possível estudar os mecanismos
básicos de operação de precedentes, cujo conhecimento é mesmo
fundamental para qualquer operador do Direito, no Brasil, em dias atuais.
Como os precedentes, na tradição de common law, eram produzidos a
partir do julgamento de casos concretos (treat like cases alike), a identificação
de um precedente, naquele sistema, depende da análise dos fundamentos da
decisão. Devem-se investigar cuidadosamente os fundamentos fáticos (para
que se possa aplicar o precedente sobre casos semelhantes no futuro) e os
fundamentos jurídicos (para saber como resolver estes casos futuros).
Os fundamentos de uma decisão, que se identificam com o precedente,
são chamados de ratio decidendi (“razões de decidir” ou, ainda, “fundamentos
determinantes”).
A parcela da fundamentação de uma decisão que não compõe o
precedente é chamada de obiter dicta (no plural; obiter dictum, no singular).
Assim, diz-se que apenas os passos necessários (de fato e de direito;
fáticos e jurídicos) à decisão são considerados ratio decidendi. Toda a parcela

23
Basta que se pense no protagonismo acerca de determinadas questões que o Supremo
Tribunal Federal vem assumindo, no Brasil, para que se compreenda esta ideia.

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da fundamentação que não constitui passo necessário à decisão constitui


obiter dicta.
Um precedente é identificado, portanto, muito mais pela qualidade de
seus fundamentos do que pela posição hierárquica do Tribunal que proferiu a
decisão (embora, obviamente, a posição hierárquica do Tribunal que
estabelece o precedente, que é o de “Corte Suprema,” também é importante).
Por isso se fala no aspecto qualitativo-material (qualidade e conteúdo) do
precedente.
Mencionadas essas coisas, deve-se compreender que, embora possa
ser extraído um precedente de uma única decisão judicial, os conceitos de
decisão judicial e de precedente não se confundem: o precedente é a parcela
vinculante (ratio decidendi) de uma decisão judicial, a ser observado em casos
similares.
Exatamente por isso que pode ser necessária a consideração de mais
de uma decisão para a exata compreensão de uma ratio decidendi apta a
vincular e, portanto, para a individualização do precedente.
É até mesmo possível que o precedente vá sendo construído ao longo
do tempo, sendo a sua ratio decidendi complementada por decisões
posteriores, que abranjam aspectos que não tenham sido contemplados pela
decisão inicial (o que é chamado de “formação paulatina da ratio decidendi”).
Mas ainda que possa ser necessário levar em conta mais de uma
decisão para a individualização ou a consolidação de um precedente (situações
mencionadas nos dois parágrafos anteriores) isso, de maneira nenhuma,
permite que confundamos precedente com jurisprudência (e, muito menos, com
súmula).
É muito importante reforçar isso porque o nosso relacionamento
histórico, em nossa tradição de civil law, com as noções de jurisprudência e de
súmula redunda em muita confusão, não apenas no dia-a-dia, mas até mesmo
na disciplina constitucional e legislativa do assunto. Ou seja, no cotidiano, e
mesmo na legislação, as noções de precedente, jurisprudência, e mesmo de
súmula estão embaralhadas (embora se trate, como já se mencionou, de
coisas distintas).

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

Para compreendermos a diferença, basta que coloquemos lado-a-lado


os conceitos já estudados.
A noção de precedente é compatível com a compreensão de que o
Poder Judiciário pode criar o Direito (ideologia dinâmica da interpretação) e o
precedente é identificado com os “fundamentos determinantes” (ratio
decidendi), normalmente, de uma única decisão judicial (ainda que possa ser
necessária a consideração de mais de uma decisão para a individualização
extada do precedente). O precedente, por sua própria definição, é de
observância obrigatória para a solução de casos similares.
A noção de jurisprudência é compatível com a compreensão de que o
Poder Judiciário não pode criar o direito (ideologia estática da interpretação) e
a formação da jurisprudência pressupõe decisões reiteradas de um tribunal (ou
seja, diversas decisões, e não apenas uma só). A súmula, por sua vez, é
apenas um resumo da jurisprudência. Em razão do ambiente cultural no qual
estes conceitos foram historicamente desenvolvidos e aplicados (civil law),
jurisprudência e súmulas não teriam força vinculante, servindo apenas como
parâmetros para auxiliar a interpretação das leis em casos futuros (o que
também é chamado de “eficácia persuasiva”).
No entanto, como também já mencionado, o ordenamento jurídico
brasileiro misturou, nos últimos anos, a noção de precedentes, jurisprudência e
súmulas, ao ponto de ser criada, com a Emenda Constitucional 45/2004, a
figura da “súmula vinculante” (artigo 103-A da CRFB). Este tipo de súmula
(vinculante) difere das outras súmulas (“não-vinculantes;” produzidas pelo
próprio STF e pelos demais tribunais) porque a sua desobediência permite o
ajuizamento de reclamação (a desobediência à súmula “não-vinculante” não
permite o ajuizamento de reclamação).
O quadro seguinte resume esses pontos, com a vantagem adicional de
possibilitar a visualização de cada uma das ideias, lado-a-lado.

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Precedente Jurisprudência Súmulas

Fruto de uma concepção Fruto de uma concepção


que admite a função do que não admitia a ideia Idem
Poder Judiciário de de que o Poder
desenvolver o Direito Judiciário possa
desenvolver o Direito
Produzido por Tribunais Produzida por Tribunais
que têm função de que têm função de Idem
“Cortes Supremas” “Cortes de Cassação”
(fornecem orientação) (corrigir equívocos) e,
também, por Tribunais
ordinários (2º grau)
Normalmente, Identificada com o
decorrente de uma única entendimento Originalmente, apenas o
decisão encontrado numa série resumo da
(sendo identificado com de decisões no mesmo jurisprudência
sua ratio decidendi) sentido
Por definição, De acordo com a
vinculantes (de ideologia estática da Idem
observância obrigatória interpretação, apenas
para o Poder Judiciário) persuasiva (auxilia a
interpretação da
legislação para casos
futuros)

Observação: ainda que “embaralhando” estes conceitos com o de precedente,


o novo CPC objetivou dar novo “significado” à ideia de jurisprudência e de
súmulas (artigos 926 e 927), determinando sua observância obrigatória como
decorrência da compatibilização vertical do stare decisis (ver o item 9.7,
abaixo). Há, ainda, no Brasil, as súmulas vinculantes, modalidade de súmula
editada exclusivamente pelo STF (uma espécie de “regra abstrata” criada por
este) e que, diferentemente das demais súmulas, comporta o ajuizamento de
reclamação para fazer valer sua autoridade

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“sem juridiquês”

Agora, antes de avançarmos, precisamos tratar ainda de duas técnicas


fundamentais para a compreensão e a operacionalização de precedentes, que
sem dúvida devem ser conhecidas e manejadas pelos operadores do Direito no
Brasil, atualmente: o distinguishing e o overruling.
A noção de obrigatoriedade dos precedentes impõe a sua observância
sobre casos similares. Se um caso não for similar àquele que deu origem ao
precedente, obviamente deverá receber solução diferente. Essa ideia, que
assim formulada pode parecer muito óbvia, pode se tornar de aplicação um
pouco complicada quando a diferença residir em alguns detalhes que
necessitem de maior aprofundamento e demonstração.
De todo modo, quando se faz a distinção de um caso, para mostrar que
ele é diferente daquele que deu origem ao precedente, tem-se o que se chama
de distinguishing (“distinção,” em Inglês).
Mas o distinguishing consiste em demonstrar, racionalmente, as
diferenças do caso concreto em relação ao precedente, e não, simplesmente,
deixar de aplicar o precedente por um ato de vontade. Assim, a distinção
confirma (e não enfraquece) a autoridade do precedente, que apenas não é
aplicado ao caso posterior em razão da demonstração racional da distinção.
Por outro lado, um precedente concretiza determinada concepção social
acerca do Direito em certo momento histórico. Sua observância obrigatória,
inclusive para o próprio Tribunal que o editou, não pode fazer com que o
mesmo Tribunal fique impossibilitado de revogar o precedente em momento
histórico posterior.
A revogação do precedente (overruling, em Inglês), no entanto, também
não é meramente um ato de vontade do Tribunal (do tipo: “não concordo mais,
por isso revogo...”), mas depende da demonstração racional de que tenha
havido a alteração de certos fatores como a própria concepção moral da
sociedade (como no caso das uniões homoafetivas, por exemplo), a evolução
tecnológica, ou mesmo uma mudança acerca da concepção geral do Direito.
Convém reforçar, para encerrar este tópico, que, como o novo Código de
Processo Civil coloca os precedentes em evidência, é necessário estarmos
familiarizados com as noções de ratio decidendi, obiter dicta, distinguishing e

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overruling, incorporando-as à nossa prática forense. Na verdade, como há esta


confusão metodológica entre precedente, jurisprudência e súmula, no Brasil,
devemos aprender a identificar ratio decidendi e obiter dicta e a utilizar
racionalmente os argumentos de distinguishing e de overruling também quando
estivermos lidando com aplicação de jurisprudência ou de súmulas
(necessidade induzida pelo próprio Código, como veremos em momento
próprio)...

9.5 Os precedentes no âmbito do controle de constitucionalidade


brasileiro

No item 9.2.2, acima, já tratamos preliminarmente de aspectos que


impõem, na tradição de civil law em geral, a necessidade de observância de
precedentes (mudança da ideologia estática para a ideologia dinâmica da
interpretação).
Mas no Brasil, a questão ainda é mais complexa, em razão da
convivência, em nosso país, dos dois grandes modelos de controle de
constitucionalidade concebidos pela tradição jurídica ocidental (o difuso e o
concentrado).
Em razão do controle difuso, a observância dos precedentes do
Supremo sempre foi uma necessidade de ordem racional (embora tenha sido
rejeitada historicamente pelos operadores do Direito).
O desenvolvimento do controle concentrado no Brasil, por sua vez, em
razão das cargas de eficácia de suas decisões (eficácia erga omnes e, depois,
o “efeito vinculante”), se, por um lado, fez com que o debate acerca dos
precedentes ganhasse novos ares, introduziu um elemento estranho a esta
temática, a reclamação.
Consideremos individualmente as questões levantadas nos dois
parágrafos anteriores.

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9.5.1 O modelo de controle difuso de constitucionalidade brasileiro e a


necessidade – que sempre existiu – de que os precedentes do Supremo
Tribunal Federal fossem de observância obrigatória

Desde que o Brasil é uma república (quer dizer, desde 1890), temos
controle difuso de constitucionalidade. Esse modelo de controle de
constitucionalidade foi desenvolvido nos Estados Unidos sob o nome de judicial
review (“revisão judicial” das decisões do Poder Legislativo), e trazido ao Brasil
por Rui Barbosa (grande nome do constitucionalismo no início da república, e o
próprio idealizador da Constituição de 1891).
No modelo do controle difuso de constitucionalidade (ou judicial review,
como o chamam os norte-americanos), todo juiz e tribunal pode deixar de
aplicar uma lei, por considerá-la incompatível com a Constituição. Segundo
demonstraram os próprios “federalistas” (Hamilton, Jay e Madison), o controle
difuso de constitucionalidade é um simples desdobramento do sistema de
separação de poderes adotado nos Estados Unidos (e em grande medida
copiado pelo Brasil), conhecido como “sistema de freios e contrapesos” (checks
and balances).
Ocorre que, como é mesmo meramente intuitivo, se todos os juízes e
tribunais de um país podem deixar de aplicar uma lei, os riscos à segurança
jurídica (previsibilidade do Direito) são muito grandes: uma parcela do Poder
Judiciário aplica a lei; outra, não a aplica; e uma terceira, aplica apenas
parcialmente (e assim por diante).
Mas este risco colateral à segurança jurídica, nos Estados Unidos, foi
eliminado em razão da força obrigatória dos precedentes (stare decisis) da
Suprema Corte. Perceba-se que os precedentes da Suprema Corte já eram
obrigatórios, nos Estados Unidos, em razão de este país estar inserido na
tradição de common law. Quando o controle difuso de constitucionalidade foi
acolhido lá (mais precisamente, em 1803, no caso Marbury v. Madison), seu
desenvolvimento posterior não trouxe maiores riscos à segurança jurídica em
razão da aceitação, naquele mesmo país, do stare decisis.

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Mas e o Brasil? O Brasil importou o modelo de controle difuso de


constitucionalidade, como mencionado, ainda em 1890. Mas, apesar do que
Rui Barbosa sempre ensinou (ele sempre defendeu que os precedentes do
Supremo Tribunal Federal deveriam ser de observância obrigatória), nossa
cultura jurídica, impregnada pelas ideias de supremacia da lei e de separação
de poderes estrita decorrentes da tradição de civil law, nunca aceitou (até bem
pouco tempo atrás)24 a possibilidade de que os precedentes do Supremo em
controle difuso de constitucionalidade (notadamente, no julgamento de
recursos extraordinários) pudessem ser de observância obrigatória. “Isso
equivaleria,” sempre disseram os opositores da ideia, “à invasão da
competência do Poder Legislativo pelo Poder Judiciário...”25
Como consequência desta oposição, o processo constituinte de 1933-
4, concebendo uma “jabuticaba,” inventou a regra (presente apenas no Brasil,
entre os países que adotam o modelo de controle difuso de
constitucionalidade) de que incumbiria ao Senado Federal suspender os efeitos
da lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal no exercício do
controle difuso de constitucionalidade. Esta regra está ainda presente, no atual
artigo 52, X, da CRFB.
Foge ao objeto do presente material analisar com detalhes a
problemática que gira em torno do artigo 52, X, da atual Constituição.26
Mencione-se, apenas, que se trata de previsão obsoleta e que retrata uma
concepção totalmente equivocada da ideia de separação de poderes. De todo
modo, pode-se muito bem compreender que seu âmbito de aplicação é
exclusivamente o da eficácia erga omnes (e eficácia erga omnes e stare decisis
são coisas diferentes), o que não impede que os precedentes do Supremo

24
E, mesmo atualmente, ainda com muitas resistências (talvez as resistências fossem menores
se as pessoas estudassem um pouco a história...).
25
Com o perdão da insistência, ninguém levantaria esta oposição se estudasse, ao menos um
pouco, a história.
26
Quem quiser aprofundar a questão pode fazer isso lendo o artigo intitulado “Controle de
Constitucionalidade, Eficácia Vinculante e Separação de Poderes.” Embora este tenha sido
escrito sob o Código revogado, a análise que faz acerca do processo constituinte de 1933-4 e
suas impressões acerca do artigo 52, X, à luz da teoria dos precedentes, parecem permanecer
atuais.

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originados do controle difuso de constitucionalidade sejam obrigatoriamente


observados pelos demais órgãos do Poder Judiciário sem que isso signifique
ofensa à separação de poderes (até mesmo porque, como já mencionado, a
separação de poderes, no Brasil, adota o “sistema de freios e contrapesos,” do
qual o judicial review é mero desdobramento).
De todo modo, o que é importante fixar é que é impossível operar-se
racionalmente o modelo de controle difuso de constitucionalidade sem a força
obrigatória dos precedentes do Supremo Tribunal Federal.

9.5.2 A importação do modelo de controle concentrado e o papel que a


“reclamação” passou a desempenhar a fim de tentar agregar coerência ao
sistema misto de controle de constitucionalidade brasileiro

Se o controle difuso de constitucionalidade, no Brasil, existe desde o


princípio da república, nossa experiência com o controle concentrado é mais
recente.
O modelo de controle concentrado (ou abstrato) de constitucionalidade
foi idealizado por Kelsen, e difundiu-se largamente pela Europa continental. A
compatibilidade das leis com a Constituição é verificada de forma concentrada
(daí a expressão “controle concentrado”) e abstrata (idem), mediante o
ajuizamento de ação direta (no Brasil, “ação direta de inconstitucionalidade” –
ADI), por determinadas pessoas ou órgãos com legitimidade específica para
propor este tipo de ação (os legitimados para propositura das ações do controle
concentrado, no Brasil, estão previstos no artigo 103 da Constituição).
O controle concentrado de constitucionalidade é realizado pelo “Tribunal
Constitucional” – que, na Europa, é um órgão que está fora do Poder Judiciário
– exatamente porque, na tradição de civil law, a obrigação do juiz é aplicar a
lei. Assim, o órgão responsável por dizer que a lei não deve ser aplicada tem
de estar, logicamente, fora do Poder Judiciário.
As decisões do “Tribunal Constitucional” em controle concentrado têm
“força de lei” (o que, no Brasil, equivale à eficácia erga omnes das decisões do
STF nesta mesma modalidade de controle de constitucionalidade).

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Assim, nenhum juiz, neste modelo, pode deixar de aplicar a lei até que
haja decisão do “Tribunal Constitucional” reconhecendo sua
inconstitucionalidade (relembre-se que, na Europa continental, a concepção de
separação de poderes que se tem é estrita, herança do ideário da Revolução
Francesa).
Embora esteja presente em nosso país desde a década de 60 do século
passado, o controle concentrado de constitucionalidade apenas passou a ter
relevância, no Brasil, após a Constituição de 1988 (mais precisamente, após a
Emenda Constitucional 3/1993).
A Emenda Constitucional 3/1993 criou mais uma figura tipicamente
brasileira (outra “jabuticaba”), a ação declaratória de constitucionalidade (ADC).
A ADC existe, em nosso sistema, exatamente em razão da convivência dos
dois modelos de controle de constitucionalidade (o difuso e o concentrado).
Proliferando, em todo país, decisões diferentes, de diversos juízes e
tribunais, a respeito da inconstitucionalidade de uma determinada lei, está
preenchido o requisito para ajuizamento de ADC perante o Supremo. Esta, a
ADC, objetiva que o STF afirme que a lei é constitucional (exatamente em
razão da insegurança jurídica gerada por diversas decisões conflitantes a
respeito da mesma lei).
Ocorre que, exatamente em razão da convivência dos dois modelos de
controle de constitucionalidade, nada garante que, após decisão confirmatória
da constitucionalidade da lei pelo Supremo em ADC, os diversos juízos do país
obedecerão (que podem realizar controle difuso de constitucionalidade) aquilo
que foi decidido pelo STF na ADC (isso jamais foi um problema na Europa,
onde nenhum órgão do Poder Judiciário pode deixar de aplicar qualquer lei
sem que haja decisão do “Tribunal Constitucional” por sua
inconstitucionalidade...).
Assim, para “fechar a via” do controle difuso de constitucionalidade, a
Emenda Constitucional 3/1993 criou uma carga de eficácia específica para a
ADC, o “efeito vinculante.” Desde o princípio, o STF considerou que o efeito
vinculante teria a reclamação como instrumento a ele atrelado.

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“sem juridiquês”

Assim, caso um juízo deixasse de aplicar lei reconhecida pelo STF como
constitucional em ADC, teria a parte prejudicada a possibilidade de impugnar a
decisão diretamente junto ao Supremo, por meio de reclamação.
Registra-se, no entanto, que a reclamação, criada pela jurisprudência do
Supremo na metade do século passado com o objetivo explícito de “garantir a
autoridade de suas decisões” e “preservar a competência do Tribunal,” jamais
foi imaginada como tendo qualquer função de garantir a observância de
precedentes.
Contudo, como a reclamação foi, após o surgimento da ADC atrelada ao
efeito vinculante, já mencionado, e como o próprio efeito vinculante foi
estendido à ADI, à arguição de descumprimento de preceito fundamental
(ADPF) e, depois, até mesmo às “súmulas vinculantes”, isso induziu a
comunidade jurídica brasileira a imaginar que a observância obrigatória de
precedentes dependeria da possiblidade de ajuizamento de reclamação caso
fossem desobedecidos.
E esta “ilusão” foi criada em razão de um jogo de palavras verificado a
partir da previsão constitucional do “efeito vinculante.” Se o “efeito vinculante”
previsto na Constituição está ligado ao ajuizamento de reclamação, então
precedentes só serão “vinculantes” se for possível ajuizar reclamação caso
sejam desobedecidos.
No entanto, não se verifica qualquer instrumento similar à reclamação
constitucional brasileira em nenhum outro ordenamento jurídico no qual haja o
respeito aos precedentes.
Reforça-se que o “efeito vinculante” foi positivado na Constituição como
uma característica própria ao controle concentrado de constitucionalidade e foi
originalmente previsto, reitera-se, em razão da necessidade de fechar-se a via
do controle difuso de constitucionalidade após a decisão confirmatória de
constitucionalidade pelo Supremo em ADC.
Mas não parece haver qualquer sentido racional em considerar-se,
apenas a partir dessa situação, que a reclamação é um instrumento

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imprescindível para o reconhecimento da força obrigatória de precedentes no


Brasil.27

9.6 A perspectiva de “racionalização da jurisdição” introduzida pelas


alterações constitucionais e legislativas brasileiras mais recentes

Apesar da possibilidade de profunda abordagem teórica da temática dos


precedentes mesmo no contexto da tradição de civil law, o assunto apenas veio
realmente à tona, em nosso país, especialmente na última década, em razão
da “crise numérica” na qual o Poder Judiciário brasileiro mergulhou.
O acesso universal à justiça fez com que o volume de ações crescesse
assustadoramente. Isso foi potencializado, ainda, em razão do caráter de
massa da sociedade na qual vivemos (na qual as pessoas são apenas mais um
número), o que faz com que a litigiosidade seja, igualmente, de massa. Assim,
deixando-se de lado a questão da tutela jurisdicional coletiva dos direitos, o fato
é que uma sociedade de massa, gerando litigiosidade de massa, apenas faz
com que o número de ações, perante o Poder Judiciário, aumente
exponencialmente.
Uma das tentativas de resolver este sério problema de administração da
justiça foi a assim chamada “reforma do Poder Judiciário,” objeto da Emenda
Constitucional 45/2004.
Algumas medidas implementadas pela Emenda 45/2004, por exemplo,
foram a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a fim de fiscalizar o
Poder Judiciário no que diz respeito a aspectos disciplinares e de efetividade
da prestação jurisdicional e a previsão do “direito fundamental à razoável
duração do processo” (artigo 5º, LXXVIII, da CRFB).
Para o que nos interessa, foram criadas, no âmbito do Supremo Tribunal
Federal, as chamadas “súmulas vinculantes” (artigo 103-A da CRFB).

27
A esse respeito, além do artigo citado na nota de rodapé anterior, ver o seguinte ensaio: “É a
reclamação um instrumento imprescindível para o reconhecimento de precedentes vinculantes
no Brasil?”

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“sem juridiquês”

Assim, e aparentemente com efeitos definitivos, as noções de súmula e


de precedentes foram embaralhadas no Brasil. E, na prática, ao invés de
apenas representarem o entendimento reiterado do Tribunal acerca de
determinada matéria (noção tradicional de súmula), as súmulas vinculantes
passaram a constituir verdadeiras regras abstratas editadas pelo Supremo de
observância obrigatória. E sua desobediência por qualquer órgão do Poder
Judiciário ou mesmo pela Administração Pública acarreta, como já se
antecipou, o ajuizamento de reclamação diretamente ao STF.
A Emenda Constitucional 45/2004 previu, também, a “repercussão
geral” da questão constitucional (artigo 102, § 3º, da CRFB) como mecanismo
de filtro do recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal (e, onde se tem
filtro recursal, deve-se ter, logicamente, eficácia vinculante).
Em 2006, a repercussão geral do recurso extraordinário foi disciplinada
nos artigos 543-A e 543-B do CPC revogado. Este último (artigo 543-B) já
tratava dos chamados recursos extraordinários repetitivos.
Logo em seguida, em 2008, foi a vez de o CPC revogado passar a
disciplinar, então no artigo 543-C, os recursos especiais repetitivos (de
competência do Superior Tribunal de Justiça).
A atenção que o Código revogado passou a dar aos recursos
extraordinário e especial repetitivos e a prática do STF e do STJ que seguiu a
esta disciplina legal deixaram bem claro que a preocupação principal do Poder
Judiciário nacional passou a ser lidar com o volume assustador de processos.
Deve-se destacar, ainda, que, durante a vigência do Código de Processo
Civil de 1973, embora a reclamação já estivesse sendo usada no âmbito do
controle concentrado de constitucionalidade e das súmulas vinculantes, o
Supremo Tribunal Federal jamais admitiu reclamação para afirmar autoridade
de precedente formado em recurso extraordinário, nem mesmo após a previsão
da repercussão geral e do regime do julgamento de recursos repetitivos.
De forma muito interessante, os julgados desta época afirmam
expressamente, por exemplo, que as decisões do Supremo Tribunal Federal
em recurso extraordinário com repercussão geral vinculam os demais órgãos
do Poder Judiciário, mas seu descumprimento não permite o ajuizamento de

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reclamação. Isso apenas confirma a afirmação, já realizada, de que a


reclamação não é um instrumento imprescindível ao reconhecimento da força
obrigatória de precedentes.
Esse cenário foi parcialmente alterado pelo novo Código de Processo
Civil, como ainda se verá.

9.7 A forma como o novo Código de Processo Civil disciplina o assunto


da “estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência” (artigos 926 e
927)

No influxo tanto dos anseios de parte da comunidade jurídica nacional


(especialmente a cúpula do Poder Judiciário) pela efetividade e racionalização
da atividade jurisdicional quanto do despertamento da doutrina acerca da
temática dos precedentes (ambos os assuntos já considerados aqui), o novo
Código de Processo Civil dedica importante atenção ao assunto.
Pode-se dizer, para simplificar que, a respeito do assunto dos
“precedentes,” o novo Código tem uma “parte geral” constante em seus
artigos 926 e 927 e, depois, a disciplina específica dos tipos de julgamento
que ele mesmo considera como aptos à formação de precedentes.
Transcrevem-se a seguir, para facilitar a análise, os artigos 926 e 927:

Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-


la estável, íntegra e coerente.
o
§ 1 Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no
regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula
correspondentes a sua jurisprudência dominante.
o
§ 2 Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às
circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.

Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:


I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado
de constitucionalidade;
II - os enunciados de súmula vinculante;
III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de
resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos
extraordinário e especial repetitivos;
IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em
matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria
infraconstitucional;

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“sem juridiquês”

V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem


vinculados.
o
§ 1 Os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art.
o
489, § 1 , quando decidirem com fundamento neste artigo.
o
§ 2 A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou
em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de
audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou
entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.
o
§ 3 Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do
Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela
oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação
dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança
jurídica.
o
§ 4 A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência
pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos
observará a necessidade de fundamentação adequada e específica,
considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da
confiança e da isonomia.
o
§ 5 Os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-
os por questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente,
na rede mundial de computadores.

Claramente se percebe, já no artigo 926, que o novo Código confunde


as ideias de jurisprudência, súmula e precedente (§ 2º), o que é igualmente
confirmado com a análise do inciso IV do caput do artigo 927. No entanto,
como já se tentou demonstrar, seria mesmo muito difícil que assim não fosse,
em razão das noções de jurisprudência e de súmula já estarem impregnadas
em nossa cultura jurídica – e, tanto mais, em razão da figura hoje conhecida
como “súmula vinculante.”
Abstraindo-se, então, esta pequena confusão metodológica, o
importante é perceber que o objetivo desta disciplina geral que o novo Código
dá ao assunto dos precedentes é demonstrar ao Poder Judiciário que há uma
ordem vertical de hierarquia a ser observada (compatibilização vertical do stare
decisis: incisos do caput do artigo 927) e que, exatamente por isso, os
tribunais devem se preocupar em produzir boas decisões, e em ser coerentes
com suas próprias decisões (assim parece que devemos compreender as
ideias por trás das expressões “estável, íntegra e coerente” constantes no
caput do artigo 926).
Deixando um pouco de lado as hipóteses do caput do artigo 927 (a elas
retornaremos em momento oportuno), devemos notar que o seu § 1º faz
remissão ao artigo 489, § 1º. Este, em seus incisos V e VI trata,

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respectivamente, da necessidade de identificar-se a ratio decidendi dos


precedentes e de que o distinguishing seja objeto de demonstração racional
(situações que já consideramos no item 9.4, acima):

Art. 489. [...]


o
§ 1 Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja
ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
[...]
V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem
identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o
caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou
precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de
distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

Os §§ 2º a 4º do artigo 927, a seu próprio modo, disciplinam o relevante


assunto do overruling (revogação).

9.8 “Julgamentos de casos repetitivos” (artigo 928 do NCPC) e incidente


de assunção de competência

Uma das grandes críticas que se faz ao novo Código de Processo Civil é
que este objetivou enunciar legislativamente os tipos de provimento
jurisdicional de observância obrigatória para o Poder Judiciário (exatamente
nos incisos do caput do artigo 927), o que seria um papel conferido à doutrina
e aos próprios tribunais.
De todo modo, deve-se prestar atenção à compatibilização vertical do
stare decisis para a qual o dispositivo alerta.
Do ponto de vista dogmático, no entanto, é importante alertar desde já
que nem todas as figuras mencionadas nos incisos do artigo 927 dispõem de
reclamação para forçar sua observância. Isso será expressamente considerado
no item seguinte.
Por ora, devemos deter nossas atenções nas figuras mencionadas no
inciso III, especialmente porque o novo Código dedicou especial atenção à
formação de precedentes em situações que envolvem “casos repetitivos”
(artigo 928).

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“sem juridiquês”

O artigo 928 do Código trata o “julgamento de casos repetitivos” como


gênero do qual são espécies as decisões proferidas em (inciso I) “incidente de
resolução de demandas repetitivas” e (inciso II) “recursos especial e
extraordinário repetitivos”. Quer dizer, além de agregar sob uma única
disciplina os recursos especial e extraordinário repetitivos (que, no Código
revogado, eram objeto de dispositivos diferentes – artigos 543-B e 543-C), cria
uma nova figura, a do “incidente de resolução de demandas repetitivas” (na
verdade, criam-se duas novas figuras, se percebermos que no inciso III do
artigo 927 o “incidente de resolução de demandas repetitivas” aparece ao lado
do “incidente de assunção de competência,” o mesmo se verificando no inciso
IV do artigo 988).
Assim, precisamos considerar as figuras dos recursos extraordinário e
especial repetitivo, do incidente de resolução de demandas repetitivas e do
incidente de assunção de competência.

9.8.1 Recursos especial e extraordinário repetitivos. Aspectos gerais

Não é nosso objetivo, aqui, estudarmos profundamente os recursos


extraordinário e especial. Tampouco considerarmos os diversos problemas
operacionais que estão ligados à disciplina legislativa que, com uma boa dose
de incoerências, tem sido dada a estas duas figuras recursais no que diz
respeito à sua relação com os precedentes.
No entanto, apenas para contextualizarmos os aspectos gerais que
serão tratados sob este tópico, uma breve apresentação destes recursos é
necessária.
O recurso extraordinário é dirigido ao Supremo Tribunal Federal, após
decisão – normalmente, mas há exceções –28 do 2º grau de jurisdição, e seu

28
No processo do trabalho, por exemplo, o recurso extraordinário apenas pode ser interposto
após o julgamento de recurso de revista pelo Tribunal Superior do Trabalho (que também tem
competência recursal para analisar ofensa à Constituição). É possível, também, recurso
extraordinário contra decisão do Superior Tribunal de Justiça, caso a ofensa à Constituição
tenha surgido no julgamento deste último Tribunal. E há a possibilidade de recurso

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

objetivo primordial é a garantia da Constituição. Assim, a principal hipótese de


cabimento do recurso extraordinário é a de ofensa à Constituição. Obviamente
que, no ambiente da ideologia dinâmica da interpretação, a ofensa à
Constituição pode consistir em interpretação equivocada de um dispositivo
constitucional.
Já o recurso especial é dirigido ao Superior Tribunal de Justiça, após
decisão do 2º grau de jurisdição, e seu objetivo primordial é a garantia da
uniformidade de interpretação da legislação federal. Assim, a principal hipótese
de cabimento do recurso especial é a de ofensa à lei federal. Obviamente que,
no ambiente da ideologia dinâmica da interpretação, a ofensa à lei federal pode
consistir em interpretação equivocada da legislação.
É relativo consenso, hoje, no Brasil, que tanto o STF quanto o STJ
funcionam como “Cortes Supremas.” Seu objetivo, portanto, é o de desenvolver
o Direito.
O recurso extraordinário tem, ainda, um pressuposto específico de
cabimento, que é a necessidade de que a questão constitucional tenha
“repercussão geral” (há, hoje, proposta legislativa de reconhecimento de
“repercussão geral” também para o recurso especial o que ainda não foi
apreciado pelo Congresso Nacional).
A repercussão geral do recurso extraordinário está disciplinada no artigo
1.035 do novo CPC.
Após este, os artigos 1.036 a 1.041 do novo Código disciplinam de
forma conjunta os recursos extraordinário e especial repetitivos.29
Para não aprofundar demais a análise, consideremos apenas o seguinte.
Uma vez reconhecido o caráter repetitivo de um recurso extraordinário
ou especial, todos os processos que versem sobre a mesma questão de direito
serão sobrestados (quer dizer, suspensos). No regime do Código anterior,

extraordinário contra decisão do 1º grau de jurisdição, ao menos na hipótese tratada pelo artigo
34 da Lei 6.830/1980 (Lei da Execução Fiscal).
29
Reforça-se que todo o recurso extraordinário (repetitivo ou não) tem de ter repercussão geral
para ser conhecido. Assim, todo recurso extraordinário repetitivo é um recurso extraordinário
com repercussão geral, mas nem todo o recurso extraordinário com repercussão geral é,
necessariamente, repetitivo... Na prática, no entanto, as coisas estão misturadas já há muito
tempo.

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

eram objeto de sobrestamento apenas os recursos extraordinários ou especiais


porventura interpostos. Hoje, o sobrestamento afeta os processos em qualquer
fase em que estiverem.
Esta suspensão dos processos tem prazo máximo de um ano,
imaginando-se que este é um tempo razoável para solução do recurso
repetitivo. Todavia, este prazo de pode ser prorrogado mediante decisão
fundamentada do ministro relator do recurso.
Uma vez julgado o recurso extraordinário ou especial repetitivo, a tese
nele adotada deve ser aplicada a todos os processos que digam respeito à
mesma questão de direito. Isso, obviamente, afetará tanto os processos que
tiverem sido suspensos após a admissão do recurso repetitivo quanto aqueles
que vierem a ser ajuizados posteriormente.
Da decisão que desobedecer o entendimento do STF ou do STJ em
recurso repetitivo caberá reclamação aos mesmos Tribunais (e isso também é
uma novidade do CPC de 2015, uma vez que na disciplina dos recursos
repetitivos contida no Código revogado a reclamação não era admissível em tal
hipótese). O cabimento da reclamação, no entanto, segundo alteração
promovida ao Código antes mesmo de sua entrada em vigor pela Lei
13.256/2016, será apenas subsidiário (ou seja, apenas pode ser ajuizada
reclamação após terem sido interpostos todos os recursos cabíveis).

9.8.2 Incidentes de resolução de demandas repetitivas e de assunção de


competência. Aspectos gerais

O “incidente de resolução de demandas repetitivas” (IRDR) terceira


espécie do gênero “julgamento de casos repetitivos” (artigo 928 do NCPC) tem
uma lógica muito parecida com a dos recursos extraordinário e especial
repetitivo, com a diferença de que sua aplicação se dá, primordialmente, em
Tribunais de 2º grau.30

30
Admite-se a ideia de que este incidente, assim como o de “assunção de competência,” seja
também instaurado nos “Tribunais Superiores,” em ações de sua competência ordinária ou no
exercício de sua competência recursal ordinária.

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

O IRDR, figura criada pelo novo Código, está disciplinado nos seus
artigos 976 a 987.
Seus pressupostos de instauração são, cumulativamente, a “efetiva
repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão
unicamente de direito” e o “risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.”
A instauração do IRDR depende de que ainda não tenha sido admitido
recurso extraordinário ou especial repetitivo sobre a mesma questão. O motivo
disso é muito simples: um Tribunal de 2º grau não pode decidir de forma
diferente do STJ e do STF em questões nas quais está vinculado aos
precedentes daquelas Cortes (compatibilização vertical do stare decisis).
Também em razão da compatibilização vertical do stare decisis, os
recursos especial ou extraordinário eventualmente interpostos contra a decisão
definitiva do IRDR têm efeito suspensivo (isso quer dizer que a decisão do
Tribunal de 2º grau não deverá ser observada de forma obrigatória enquanto o
STF e o STJ não resolverem os recursos que lhes sejam dirigidos).
Assim como no contexto dos recursos repetitivos, a instauração de IRDR
suspende todos os processos relativos à mesma questão de direito, apenas
que no âmbito de competência territorial do Tribunal. Quer dizer, apenas os
processos que tramitem no próprio Tribunal ou perante juízos a ele vinculados
serão sobrestados em razão da instauração do IRDR. Esta suspensão também
tem prazo de um ano, igualmente prorrogável mediante decisão fundamentada
do relator.
No entanto, mediante provocação, o STF ou o STJ podem estender o
sobrestamento a todos os processos do território nacional que versem sobre a
mesma questão. Esta suspensão durará até apreciação, por aqueles Tribunais
(STF ou STJ), de recurso extraordinário ou especial interposto contra a decisão
definitiva do IRDR (se não for interposto recurso, obviamente cessará a
suspensão dos processos).
A competência para julgar o IRDR é do órgão responsável pela
uniformização de jurisprudência do Tribunal. A tese jurídica decorrente da
solução do IRDR deve ser observada de forma obrigatória por todos os órgãos
do tribunal e juízos a ele vinculados, nas causas presentes e futuras. A

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

desobediência à autoridade da decisão do IRDR permite o ajuizamento de


reclamação ao Tribunal.
Outra figura criada pelo novo Código é o “incidente de assunção de
competência” (IAC), cuja disciplina é encontrada em um único artigo (947, com
quatro parágrafos).
Como se trata de incidente voltado, em regra, aos Tribunais de 2º grau 31
que igualmente produz decisão cuja autoridade deve ser observada pelos
órgãos do próprio Tribunal e pelos juízos a ele vinculados, valendo-se a parte
prejudicada de reclamação na hipótese de desobediência, parece que é mais
proveitoso, para nossas finalidades presentes, estudar o IAC apenas em
comparação com o IRDR.
Na verdade, o que vai determinar a instauração de IAC ou de IRDR é se
há ou não “repetição em múltiplos processos.” Se houver, será o caso de
instaurar-se IRDR; se não houver esta repetição, IAC.
Fora isso, as semelhanças entre o IAC e o IRDR são o órgão
competente para julgamento de ambos (aquele responsável por uniformizar a
jurisprudência do tribunal) e a eficácia vinculante da decisão, cuja autoridade é
afirmada, como visto em ambas as hipóteses, mediante a possibilidade de
ajuizamento de reclamação.
No mais, nenhum dos outros aspectos da disciplina legislativa do IRDR
foi repetido pelo novo Código a propósito do IAC.

9.9 O papel conferido pelo novo Código de Processo Civil à reclamação

Partindo de uma ideia altamente equívoca, como já se mencionou, o


novo Código parece ter pressuposto que a força obrigatória de precedentes
depende da possibilidade de ajuizamento de reclamação caso estes sejam
desobedecidos.
Assim, além de ter enunciado legislativamente quais tipos de decisão
seriam aptas à formação de precedentes (primeiro equívoco), o Código ainda

31
Valendo, no entanto, a mesma ressalva feita na nota de rodapé anterior.

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

assegurou a autoridade dessas decisões mediante o cabimento de reclamação


caso sejam descumpridas (segundo equívoco).
Em linhas gerais, as decisões (1) em recursos extraordinários com
repercussão geral (repetitivos ou não), (2) em recursos especiais repetitivos,
(3) em “incidentes de resolução de demandas repetitivas” e em (4) “incidentes
de assunção de competência” geram “precedentes vinculantes,”32 cuja
autoridade é afirmada mediante reclamação.
As hipóteses de cabimento de reclamação estão previstas no artigo 988
do NCPC:

Art. 988. Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério


Público para:
I - preservar a competência do tribunal;
II - garantir a autoridade das decisões do tribunal;
III – garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de
decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de
constitucionalidade; (Redação dada pela Lei 13.256/2016)
IV – garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de
incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de
assunção de competência; (Redação dada pela Lei 13.256/2016)
[...]
§ 5º É inadmissível a reclamação:
[...]
II – proposta para garantir a observância de acórdão de recurso
extraordinário com repercussão geral reconhecida ou de acórdão
proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial
repetitivos, quando não esgotadas as instâncias ordinárias. (Incluído
pela Lei 13.256/2016)

Os incisos I e II apenas reproduzem as hipóteses de cabimento


tradicionalmente conhecidas para a reclamação há mais de meio século
(“preservar a competência do tribunal” e “garantir a autoridade das decisões do
tribunal”). Nada de novo aqui, portanto.
O inciso III, da mesma forma, reproduz hipóteses que já haviam sido
introduzidas, no Brasil, com o incremento do controle concentrado de
constitucionalidade (especificamente após a Emenda Constitucional 3/1993)
e com a criação das súmulas vinculantes (Emenda Constitucional 45/2004).

32
A rigor, os Tribunais de 2º grau não produzem precedentes; apenas as Cortes Supremas o
fazem. Mas deixemos esta discussão de lado, aqui.

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

A novidade, propriamente, como já mencionado, está na possibilidade


de ajuizamento de reclamação contra decisão que contraria entendimento de
IRDR e IAC (inciso IV) e de “recurso extraordinário com repercussão geral
reconhecida ou [...] recursos extraordinário ou especial repetitivos” (§ 5º, II).
Desde já se percebe que a desobediência a entendimento proveniente de
recurso especial não-repetitivo não permite o ajuizamento de reclamação ao
STJ.
Na última hipótese (“recurso extraordinário com repercussão geral
reconhecida ou [...] recursos extraordinário ou especial repetitivos”), no entanto,
o cabimento da reclamação será apenas subsidiário. Isso quer dizer que, como
afirma expressamente o § 5º, II, apenas será cabível a reclamação depois de
“esgotadas as instâncias ordinárias.” A própria redação do dispositivo é a
contrario sensu, perceba-se.
Ou seja, se for desobedecido precedente do STF ou do STJ em recurso
extraordinário com repercussão geral (repetitivo ou não) ou em recurso
especial repetitivo, a parte prejudicada deve interpor todos os recursos cabíveis
(inclusive o extraordinário ou o especial) para, apenas após isso, poder ajuizar
reclamação.
De todo modo, essas são as hipóteses de cabimento de reclamação no
contexto da afirmação de “precedentes.”

9.10 Apreciação crítica final à disciplina dada pelo novo CPC aos
precedentes em conjunto com a da reclamação

Para fins didáticos, para nos encaminharmos ao final deste estudo,


talvez seja interessante compararmos os artigos 927 e 988 do novo CPC.

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“sem juridiquês”

Art. 927. Os juízes e os tribunais Art. 988. Caberá reclamação da parte


observarão: interessada ou do Ministério Público para:
[...]

I - as decisões do Supremo Tribunal III – garantir a observância de enunciado


Federal em controle concentrado de de súmula vinculante e de decisão do
constitucionalidade; Supremo Tribunal Federal em controle
II - os enunciados de súmula vinculante; concentrado de constitucionalidade;

III - os acórdãos em incidente de IV – garantir a observância de acórdão


assunção de competência ou de proferido em julgamento de incidente de
resolução de demandas repetitivas e em resolução de demandas repetitivas ou de
julgamento de recursos extraordinário e incidente de assunção de competência;
especial repetitivos; § 5º É inadmissível a reclamação:
[...]
II – proposta para garantir a observância
de acórdão de recurso extraordinário com
repercussão geral reconhecida ou de
acórdão proferido em julgamento de
recursos extraordinário ou especial
repetitivos, quando não esgotadas as
instâncias ordinárias.

IV - os enunciados das súmulas do __


Supremo Tribunal Federal em matéria
constitucional e do Superior Tribunal de
Justiça em matéria infraconstitucional;

V - a orientação do plenário ou do órgão __


especial aos quais estiverem vinculados.

De início é possível verificar que, embora o artigo 927 do novo Código


tenha procurado demonstrar ao Poder Judiciário os tipos de pronunciamentos
judiciais de observância obrigatória pelos juízos e tribunais (compatibilização

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

vertical do stare decisis), nem todas as figuras nele previstas comportam o


ajuizamento de reclamação.
Assim, os tribunais e juízos devem observar as súmulas (ditas “não-
vinculantes”) do STF e do STJ (artigo 927, IV), mas eventual desobediência
não permite o ajuizamento de reclamação pela parte prejudicada.
O mesmo vale para a “orientação do plenário ou do órgão especial” (que
são os órgãos de máxima hierarquia em um tribunal) a que os juízes ou órgãos
fracionários de um tribunal estejam submetidos (artigo 927, V).
Isso constatado, facilmente se percebe que há uma correspondência
entre os incisos I, II e III do artigo 927 com os incisos III e IV, do caput do
artigo 988, e com o inciso II do § 5º do mesmo dispositivo. Ou seja, diante da
desobediência do entendimento encontrado em cada um destes tipos de
pronunciamentos judiciais será possível o ajuizamento de reclamação,
diretamente ao Tribunal cuja autoridade seja desrespeitada (com a ressalva, já
feita, de que as hipóteses do § 5º, II, são de cabimento apenas subsidiário da
reclamação).
Nessa correspondência, no entanto, o inciso III do artigo 927 não
menciona nada acerca de decisão em recurso extraordinário com repercussão
geral, porém não-repetitivo. É óbvio que este tipo de decisão é igualmente
vinculante (tanto que é tratada expressamente no artigo 988, § 5º, II).
Isso, por um lado, além de constituir apenas mais um exemplo de falta
de melhor técnica legislativa (o que não é nenhuma novidade no Brasil...),
serve ainda para evidenciar que o novo Código parece pretender concentrar a
ideia de formação de precedentes em situação de litigiosidade de massa (ou,
como ele mesmo mencionou, “casos repetitivos”).
Contudo, o que indica a formação de um precedente é a qualidade de
seus fundamentos, e não o potencial de litigiosidade repetitiva de uma
situação.
Assim, o Código acabou dando mais valor aos aspectos quantitativo
(repetição) e formal (tipos de pronunciamentos que podem formar precedentes)
do que, propriamente, ao aspecto qualitativo-material (qualidade e conteúdo da
decisão).

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

Diante disso, pode-se até mesmo dizer que não basta que se esteja
diante de uma das figuras previstas no artigo 927 (ou mesmo no artigo 988)
para que se tenha um precedente. Pelo contrário, para além da simples análise
do aspecto quantitativo (caráter repetitivo) e formal (tipo de julgamento), a
exata individualização de um precedente deve passar pela consideração da
presença, na decisão, de bons fundamentos racionais que, por sua qualidade,
sejam aptos a vincularem casos futuros.
Da mesma forma, é possível que não se esteja diante alguma figura
mencionada expressamente no Código (como no caso de um recurso especial
não repetitivo ou de julgamentos do STF e do STJ no exercício de suas
competências originária ou recursal ordinária) mas, ainda assim, em razão da
qualidade material dos fundamentos da decisão, tenha-se um verdadeiro
precedente.
Por outro lado, a suposição de que apenas devem ser observados os
precedentes que possam ter sua autoridade firmada por meio de reclamação –
pressuposto por trás das novas hipóteses de cabimento da medida previstas no
artigo 988 – é cientificamente equívoca (para dizer o mínimo), e apenas
decorre de uma aparente má-compreensão do desenho que, nas últimas duas
décadas, foi dado à reclamação no contexto do controle concentrado de
constitucionalidade e, ainda mais recentemente, das súmulas vinculantes.
Assim, melhor seria se o novo Código tivesse, efetivamente, desatrelado
totalmente a ideia da observância de precedentes da reclamação. Como não o
fez, certamente devemos dominar as hipóteses de cabimento desta medida – o
que não nos impede, contudo, de exercer juízo crítico sobre o assunto.
Nessa perspectiva, convém perceber que a justificativa por trás do
cabimento meramente subsidiário da reclamação nas hipóteses do artigo 988,
§ 5º, II é exclusivamente de política judiciária: restringir o acesso direto ao STF
e ao STJ e, assim, tentar desafogar um pouco estas Cortes, já tão
assoberbadas de trabalho.
Ocorre que a política judiciária – uma preocupação, aliás, que esteve
intimamente atrelado ao tratamento jurisprudencial mais recente da reclamação
– pode ser uma boa e até mesmo legítima justificativa para a adoção de

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determinadas escolhas políticas, como estas que ditaram as hipóteses de


cabimento da reclamação no novo Código, mas jamais será uma fonte
confiável de coerência científica...

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

APÊNDICE I
AUTONOMIA DO PROCESSO CIVIL E CONTROVÉRSIA ENTRE
WINDSCHEID E MUTHER

A) Introdução: apresentação da pergunta-chave

A existência da própria disciplina que estamos estudando, “Teoria Geral


do Processo” (ou, sem tanta pretensão, “Teoria do Processo Civil”) depende da
pergunta sobre a autonomia do processo civil em relação ao direito material.
Hoje se sabe que qualquer autonomia científica, no campo da ciência
jurídica (Direito), é relativa. Assim, se quiséssemos responder, de imediato, à
pergunta proposta, diríamos: sim, ele (o direito processual civil) é autônomo em
relação ao direito material, mas esta autonomia é relativa.

A autonomia do direito processual civil em relação ao direito material é uma


autonomia relativa, como qualquer autonomia científica no estudo do Direito

Mas essa é uma “resposta pronta” que temos nos dias de hoje. Se
quisermos compreender o processo histórico por meio do qual o processo civil
se desenvolveu como ciência autônoma, precisamos compreender três
fenômenos: o primeiro, a controvérsia entre Windscheid e Muther; o segundo,
a demonstração dos pressupostos processuais por Oskar Büllow; e o terceiro,
o desenvolvimento das “teorias da ação”.
A controvérsia entre Windscheid e Muther é tratada neste apêndice. Os
pressupostos processuais, no item 1.3, acima, e Lição 7, acima. As teorias da
ação são consideradas no Apêndice II, abaixo.

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

B) Antecedentes históricos

Até o começo do Século XIX, não era possível cogitar de separação


entre os planos do direito material e do direito processual. Antes, a ação era
vista como um simples desdobramento do direito material, ou, apenas, como o
direito material violado em estado de reação. Assim sempre se entendeu a
actio (ação) do Direito Romano.

C) A controvérsia entre Windscheid e Muther

Foi a controvérsia estabelecida entre Windscheid e Muther, na metade


do Século XIX, na Alemanha, que demonstrou, primeiramente, a separação
entre os planos do direito material e do direito processual.

Controvérsia Windscheid X Muther (metade do Século XIX) = demonstração


da separação entre os planos do direito material e do direito processual

Essa controvérsia pode ser colocada em termos dialéticos: tese, antítese


e conclusão.

C.1) Tese. Windscheid. Actio romana = pretensão moderna

Primeiramente (1856), Windscheid, visualizando o Direito Romano a


partir do Direito de sua própria época, apresentou a tese, a seguir
demonstrada:

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

A) a actio (ação), no Direito Romano, não era um meio de defesa do


direito, mas o próprio direito (o Direito Romano, segundo Windscheid,
não era um sistema de direitos, mas um sistema de ações);
B) essa afirmação é válida para todos os direitos, exceto para os direitos
reais. Não seria possível identificar um direito real (direito sobre uma
coisa) com uma ação. Apenas da violação do direito de propriedade é
que nasce uma obrigação (como, por exemplo, a obrigação de indenizar
os prejuízos), esta sim dando origem a uma ação (e com ela se
confundindo, na perspectiva romana);
C) Assim, a partir da consideração dos direitos reais, Windscheid
concluiu que a ação (actio) romana teria o seu equivalente moderno na
pretensão. Ou, em outras palavras, que a pretensão seria o equivalente
moderno da ação (actio) romana. Apenas para ilustrar, veja-se o artigo
189 do Código Civil Brasileiro (“Art. 189. Violado o direito, nasce para
o titular a pretensão [...]”). Windscheid pretendeu mostrar que era
exatamente isso o que acontecia, no Direito Romano, na hipótese dos
direitos reais: apenas após violado o direito de propriedade é que
surgiria uma obrigação e, com esta obrigação (ou, confundindo-se com
esta obrigação) uma ação (actio), equivalente, portanto, à pretensão
moderna.

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

Tese de Windscheid

Direito de propriedade na Roma antiga


Violação Obrigação = actio

Noção contemporânea
Violação a qualquer direito Pretensão
Conclusão
Actio romana = pretensão moderna

C.2) Antítese. Muther. Direito privado versus direito à fórmula

Em seguida (1857) Muther apresenta a antítese:

A) Mesmo no direito romano, era possível distinguir o direito privado


originário (de um particular contra o outro) de um direito à fórmula. Este
último, o direito à fórmula, era dirigido por um dos particulares contra o
Estado;
B) O direito privado (de um particular contra o outro) é pressuposto do
direito à fórmula (de um dos particulares contra o Estado);
C) Quer dizer, uma vez apresentada a actio, o Estado tinha uma
obrigação, para com o particular, de dizer qual fórmula jurídica seria
aplicada para resolver a disputa. Logo, o Direito Romano,
diferentemente do que havia argumentado Windscheid inicialmente,
segundo Muther, era um sistema de direitos, e não de ações.

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

Antítese de Muther

Direito privado Contra o particular


(originário)

Direito à fórmula Contra o Estado


(o direito privado é pressuposto deste)

C.3) Síntese – Windscheid. Pretensão de direito material versus ação


processual

Após a demonstração, por Muther, da diferença que já existia, no Direito


Romano, entre o direito originário e o direito à fórmula, Windscheid transpõe
estas ideias para a realidade contemporânea, concluindo haver pretensão de
direito material e ação processual. A pretensão de direito material seria o
equivalente ao direito originário romano, e a ação processual ao direito à
fórmula romano.
Esta é a síntese da controvérsia:

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

Síntese de Windscheid

Direito romano Direito moderno

Direito privado Pretensão de direito material


+ +
Direito à fórmula Ação processual

Portanto, foi esta controvérsia que “descolou” a ação processual do


direito material (você pode visualizar, graficamente, no quadro, a pretensão de
direito material e a ação processual como coisas distintas). Isso permitiu que o
processo civil começasse a se desenvolver como ciência autônoma, o que
levou ao surgimento das teorias sobre a ação.

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

APÊNDICE II
TEORIAS DA AÇÃO

A) Direito de agir “abstrato”. Degenkolb/Plósz, Mortara, Couture e Wach

Afirmada a separação entre o plano processual e o plano material, o


próximo passo foi a consideração da ação como um direito abstrato (“direito de
agir abstrato”). Os primeiros a formularem essa tese foram Degenkolb e Plósz.
Degenkolb e Plósz centraram sua atenção na sentença de
improcedência. Concluíram, assim, que, se é possível o ajuizamento de uma
ação que termina com uma sentença que não reconhece o direito (e a
movimentação de todo o aparato do Estado para o desenvolvimento de um
processo, obrigando a participação do réu), então o exercício da ação não
depende da existência do direito material afirmado em juízo. Por isso, o direito
de ação seria abstrato (independente da existência do direito material).
No entanto, os autores em questão tiveram certa cautela, afirmando que
a ação, embora abstrata, somente poderia ser validamente exercida se o autor,
ainda que derrotado ao final, agisse de boa-fé. Percebe-se, aqui, um receio de
que a consideração do direito de ação como abstrato pudesse levar à
multiplicação do ajuizamento de ações, muitas das quais de forma
completamente temerária (quer dizer, sem fundamento). Qualquer semelhança
do receio de Degenkolb e Plósz com a realidade vivida hoje no Brasil não é
mera coincidência...
Mortara, por sua vez, também considerou a ação um direito abstrato em
relação ao direito material. Para ele, contudo, a ação se fundaria na mera
afirmação do autor (e assim, portanto, ele eliminou a necessidade de boa-fé
para o exercício da ação; até mesmo porque essa boa-fé é muito difícil de ser
apurada na prática).

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

Ação enquanto direito abstrato

Degenkob e Plósz Mortara


Análise da sentença de improcedência Ação fundada na mera afirmação do
(Necessidade de boa-fé) autor
(Boa-fé desnecessária)

Mais recentemente (anos 1940), o uruguaio Couture apareceu como


grande defensor do direito de agir abstrato, afirmando que a ação nada mais é
do que uma forma específica de exercício do direito de petição, garantido
constitucionalmente. Se a Constituição garante a todos o direito de dirigirem
suas petições ao Poder Público (veja-se o artigo 5º, XXIV, a, da atual
Constituição do Brasil),33 o ajuizamento de uma ação perante o Poder
Judiciário é apenas uma expressão desse direito de petição, que tem
abrangência maior.
Por isso, segundo Couture, a ação é abstrata, independente do direito
material (é uma expressão do direito geral de petição assegurado
constitucionalmente) e, portanto, independente de sentença de procedência.
Essa posição de Couture revela, ainda, o caráter publicístico da ação.
Quer dizer que, embora haja interesses particulares discutidos no processo
(entre autor e réu), a solução desse problema interessa ao Estado. Por isso é
que se afirma, hoje, que Direito Processual Civil é um ramo do Direito Público.

33
“XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito
de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de
poder”

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TEORIA DO PROCESSO CIVIL
“sem juridiquês”

Couture: ação enquanto expressão do direito geral de petição.


Caráter público do processo.

É bem verdade que, antes de Couture, Wach já havia afirmado o


caráter público da ação. Analisando a ação declaratória, Wach fez diferença
entre o direito material e direito à tutela jurídica (que não se confundiria com o
direito material), e entre a pretensão à sentença e a pretensão à tutela jurídica
(sentença favorável). Autor e réu tem pretensão à sentença. A tutela jurídica,
no entanto, somente seria prestada pela sentença favorável. Esclareça-se que
por sentença favorável não se deve entender sentença de procedência. O réu,
se for vencedor, receberá tutela jurídica (sentença favorável). O autor, nessa
hipótese, teria apenas exercido sua pretensão à sentença, mas não à tutela
jurídica. Se, pelo contrário, a sentença for de procedência, o réu teria exercido
sua pretensão à sentença, e o autor, à tutela jurídica.

B) A teoria de Chiovenda

Chiovenda, em 1903, embora concordando com Wach quanto à


abstração da ação, entendeu que não havia sido suficientemente provado o
caráter público do processo. Por isso, ainda visualizava a ação como o
exercício de um poder em face do adversário (e não em face do Estado);
verdadeiro exercício de um direito potestativo (direito que sujeita outro
indivíduo).
Em outras palavras, Chiovenda compreendia que a ação, embora
abstrata, tinha caráter privado. E, assim, o efetivo exercício do direito de ação
dependia de sentença de procedência. Embora essa afirmação pareça
contraditória com a consideração do direito de ação como sendo abstrato (e, de
fato, é!), Chiovenda apoiou-se, como Wach, na ação declaratória (na qual, em

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princípio, não se exerce qualquer direito material em face do adversário) para


compreender a abstração do direito de ação. Para Chiovenda, o direito
afirmado na ação declaratória não seria outro senão o próprio direito de ação. 34
É importante tentar compreender as ideias de Chiovenda, apesar da
aparente contradição já afirmada: para Chiovenda, o direito de agir tinha
natureza privada e, portanto, dependia de sentença de procedência (sentença
que afirmasse o direito material). Isso deveria indicar, por uma questão de
coerência, o reconhecimento de que o direito de ação não era abstrato. Para
Chiovenda indicou, ao menos, que o direito de ação é um direito privado, e não
público. Contudo, diante da ação declaratória, em que o autor não exerce
nenhum direito subjetivo contra o réu, Chiovenda viu-se forçado a concluir, com
Wach, que a ação era abstrata (nessa hipótese, da ação declaratória, o único
direito que seria possível de se afirmar em juízo seria o próprio direito de ação).

34
“Quando alguém pede que se declare a existência de uma relação jurídica, sem aspirar a
outros efeitos jurídicos, que não aqueles imediatamente derivados da declaração, não afirma
nenhum direito subjetivo contra o adversário que não o próprio direito de ação,
coordenando um interesse de declaração; qualquer tentativa de dar um outro conteúdo a este
direito é inútil, porque precisamente a declaração judicial a que se tende não é prestação que
se possa pretender do réu.” Citado em MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do
Processo. 3ª ed. São Paulo: 2008, p. 168, nota de rodapé 41.

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APÊNDICE III
A INFLUÊNCIA DA REVOLUÇÃO FRANCESA E DO POSITIVISMO
JURÍDICO SOBRE O PROCESSO CIVIL CONTINENTAL

A) Mas o que a Revolução Francesa tem a ver com o processo civil


mesmo?

À primeira vista, pode parecer um pouco estranho que, para entender o


processo civil brasileiro atual, seja necessário pensar na Revolução Francesa.
Mas é assim mesmo. Na verdade, a Revolução Francesa consagrou
uma série de ideais que ficaram impregnados na cultura jurídica europeia (mais
precisamente, da parte continental da Europa) e que ditaram a forma de ser do
processo civil europeu (e, acrescente-se, brasileiro) até pouquíssimo tempo
atrás.
Uma vez que a alteração de paradigma (quer dizer de toda a forma de
pensar) é consideravelmente recente, é necessário que compreendamos, ao
menos superficialmente, a forma de pensar que influenciou toda a construção
do processo civil enquanto ciência, para que, no passo seguinte, possamos
examinar o estágio atual em que se encontra a disciplina objeto do nosso
estudo.

B) Antecedentes históricos

A Revolução Francesa surgiu como uma reação organizada da


burguesia contra o “Antigo Regime.” Esse antigo regime, como sabemos,
consistia no absolutismo monárquico.
É importante diferenciar a monarquia absolutista, experimentada na
França e em grande parte da Europa de então, das monarquias que
sobreviveram até hoje. As monarquias que conhecemos hoje são, em regra,
monarquias constitucionais que, normalmente, adotam um regime
parlamentarista. Ou seja, o monarca não concentra todos os Poderes do

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Estado, sendo, normalmente, apenas o Chefe de Estado (exercendo, em


verdade, um cargo de representação) e não Chefe de Governo.
Mas não era assim no regime absolutista. O monarca (ou rei) não
somente acumulava as funções de Chefe de Estado e de Chefe de Governo
como também concentrava aquilo que hoje nós conhecemos como os poderes
(ou funções) do Estado. Legislava, administrava e julgava (ainda que pudesse
delegar as atividades de administração e de jurisdição a pessoas de sua
confiança, funcionando sempre, no entanto, como instância revisora – recursal
– máxima). Em termos contemporâneos, os Poderes Legislativo, Executivo e
Judiciário estavam concentrados na mão de uma única pessoa. Não se tinha
“separação de Poderes”.

C) Teoria da separação de poderes estrita. Supremacia da lei. Juiz “boca


da lei”

O grande mecanismo desenvolvido, então, para rompimento com o


Antigo Regime foi a teoria da “separação de Poderes,” formulada anos antes
por Montesquieu. A fim de evitar a concentração de poderes nas mãos de uma
única pessoa, as funções do Estado passaram a ser repartidas entre órgãos.
Surgem, assim, os nossos conhecidos Poderes Legislativo, Executivo e
Judiciário. Deve-se apenas ressaltar que, de acordo com a linha de
pensamento desenvolvida na Europa continental após a Revolução Francesa,
cada um desses poderes deveria ficar restrito às suas próprias funções, não
podendo praticar qualquer tipo de ingerência (interferência) sobre os demais.35
Mas não foi só. Entendeu-se que o Poder Legislativo desempenhava
papel preponderante sobre os demais. Isso porque a lei é fruto da vontade do

35
Essa compreensão da separação de Poderes desenvolvida na Europa continental
(separação de Poderes estrita) é um tanto diferente da ideia praticada na Inglaterra (que serviu
como base para os estudos de Montesquieu) e, especialmente, da teoria da separação de
Poderes formulada pelos Federalistas norte-americanos. Nos Estados Unidos (modelo
copiado pelo constitucionalismo brasileiro, é bom destacar) não somente se admitiu como
também se achou necessária alguma ingerência dos Poderes um sobre os outros, dando
origem ao que ficou conhecido como sistema de “freios e contrapesos” – e do qual, inclusive, é
deduzido o controle de constitucionalidade conferido de forma difusa ao Poder Judiciário – lá
chamado de judicial review.

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Parlamento, composto pelos representantes do povo, e serviria, assim, como


forma de defesa do povo contra os arbítrios verificados no Antigo Regime.
Surgiu, assim, a doutrina (ou princípio) da supremacia da lei (ou, ainda,
da supremacia do Parlamento).
Os juízes, portanto, na concepção inicialmente desenvolvida na França,
não poderiam nem sequer interpretar a lei (o que se demonstrou, ao final,
impossível!). De todo modo, esse modelo de separação de Poderes impediu os
juízes de realizarem qualquer inovação na ordem jurídica. Toda a atividade
criativa de direitos ficou concentrada no Poder Legislativo.
O juiz, assim, foi chamado por Montesquieu de “boca da lei” e o poder
de julgar, segundo o mesmo autor, foi descrito como um “poder nulo.”
É necessário, ainda, compreender as origens históricas e sociais dessa
forma peculiar de doutrina. Ocorre que os juízes na França do Século XVIII
eram comprometidos com o Antigo Regime, e o Poder Judiciário era um corpo
normalmente manchado pela corrupção. Montesquieu sabia bem disso (ele
mesmo foi um juiz). Assim, a forma drástica como tratou os juízes tem motivos
outros (ideológicos) que não apenas a simples coerência científica.

D) Liberdade como valor máximo. Limitação dos poderes executórios do


juiz

Lembremos, ainda, do grande ideal da Revolução Francesa: “Liberdade,


Igualdade e Fraternidade.”
Sendo a liberdade um valor extremo, limitou-se ao máximo a
possibilidade de que o juiz interferisse na esfera de vontade dos “cidadãos”
(estamos considerando o processo civil, mas os reflexos disso no processo
penal parecem ser também bastante evidentes). Como regra geral, o processo
cível apenas poderia servir para tocar no patrimônio do réu, mas jamais em sua
esfera de vontade.
Dessa forma, todos os direitos, uma vez violados, convertiam-se em
indenização pelo equivalente pecuniário (dinheiro).

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E não apenas isso. Mesmo para tocar no patrimônio do réu, primeiro,


tornou-se necessário ter certeza da dívida. Logo, a execução por expropriação
(momento processual em que se alcança o patrimônio do réu e o converte em
dinheiro para satisfação do crédito do autor), em regra, apenas poderia ser
iniciada após o trânsito em julgado da sentença (quer dizer, após não serem
cabíveis mais quaisquer recursos).
E, uma vez iniciada a execução, deveria o juiz ficar adstrito às técnicas
processuais previstas estritamente na lei. Ou seja, apenas pelas formas
previstas na lei processual é que ele poderia interferir no direito de propriedade
do réu para satisfazer o crédito do autor. A isso se chama de princípio da
tipicidade dos meios executórios (tipicidade, aqui, tem uma acepção bem
parecida com a do Direito Penal; apenas os meios executórios previstos
expressamente na lei poderiam ser utilizados pelo juiz).

E) O papel desempenhado pelo positivismo jurídico

Cerca de um século após a Revolução Francesa, desenvolveu-se a


doutrina que conhecemos como positivismo jurídico, cujo objetivo era
compreender a ciência do Direito apenas em uma perspectiva descritiva.
Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito, proclama a ideologia do “Direito livre de
valor”.
Isso apenas reforça o princípio da “supremacia da lei,” entendendo-se
ser vedado aos juízes, no contexto do positivismo, inovar na ordem jurídica.
Essa ideologia, é bom reforçar, influenciou fortemente o processo civil
desenvolvido na Europa (e, consequentemente, no Brasil), e continua ecoando,
de certa forma, até os dias de hoje.

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F) Correlação das ideias desenvolvidas ao longo deste apêndice com a


noção de “processo civil autônomo”

Devemos, agora, lembrar que cerca de meio século após a Revolução


Francesa começou a ser delineada, na Europa, a ideia de autonomia do
processo civil em relação ao direito material.
Conceitos como a supremacia do Parlamento e da liberdade como valor
máximo, além de impedirem o juiz de afetar a esfera jurídica do réu senão
apenas segundo os meios previstos expressamente na lei, contribuíram para
livrar o processo das interferências do direito material, transformando aquele (o
processo) em um fim em si mesmo.
Pode-se dizer que, da mesma forma que o positivismo jurídico objetivou,
enquanto ideologia, um “Direito livre de valor” (quer dizer, sem sofrer qualquer
influência de valores externos, informados pela justiça, pela moral, pela
religião, pela política, pela economia, etc.), o ideário da Revolução Francesa e
do positivismo jurídico contribuiu para o desenvolvimento de um processo
também “livre de valor” (quer dizer, livre de qualquer interferência do direito
material).
Assim, a “grande construção científica” da época, no plano do Processo
Civil, foi o procedimento ordinário. Um procedimento único que deveria servir
para atender todas as espécies de direitos. Ou seja, o processo abstrato por
excelência.

Procedimento ordinário = fruto da concepção de um processo civil abstrato,


influenciada pelo ideário da Revolução Francesa (liberalismo) e do positivismo
jurídico (Direito livre de valor). Procedimento único que desse conta de todas
as (ou da maior parte das) situações de direito material

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Embora o Código de Processo Civil de 2015 não utilize a expressão


“procedimento ordinário”, nele encontramos o “procedimento comum”, que é,
ainda, um resquício desta ideia.
Se o “procedimento comum” for apenas uma regra geral de organização
que não nos impede de considerar as necessidades do direito material, tudo
bem, não há nenhum problema. Devemos apenas ficar atentos para que a
existência do “procedimento comum” não nos leve a pensarmos no processo
como um fim em si mesmo.
Pode-se entender, ainda, que o procedimento ordinário (hoje
procedimento comum) é influenciado por mais um dos valores da Revolução
Francesa: a igualdade. Sabe-se que essa era uma igualdade meramente
formal: todos são iguais perante a lei, pouco importando que houvesse alguma
diferença concreta que pudesse ser relevante e que gerasse desigualdade.36
Assim, abstratamente, bastava um único procedimento para atender
virtualmente todos os direitos, o que os colocava em pé de igualdade formal,
não se preocupando a ciência processual civil, em princípio, com diferenças
que, de fato, pudessem ser relevantes.
Ressalva-se que alguma necessidade específica do direito material
(reconhecida sempre em abstrato, é bom perceber) fez com que se
estruturassem, legislativamente, procedimentos especiais. Para compreender
bem a natureza desses procedimentos ditos especiais, no contexto histórico e
teórico que agora estamos estudando, é importante reforçar que a escolha da
situação material que determinava a utilização de um procedimento diferente
do ordinário era prevista abstratamente na lei. Jamais seria construído um
procedimento especial, de forma inovadora pelo juiz, diante de casos
concretos.
Ou seja, não era dado ao juiz, analisando determinado caso concreto,
entender que seria necessária a criação de um procedimento especial. Ele
devia, apenas, identificar os casos concretos que se submetiam à previsão

36
Compreende-se, hoje, a igualdade em seu aspecto material: devem-se tratar igualmente os
iguais, e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade. No entanto, embora
tenhamos copiado a ideia de Aristóteles e invertemos completamente a sua lógica original.

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legislativa de procedimento especial e, nessa circunstância, aplicar o rito


diferenciado.
E, de todo modo, apenas poderiam ser utilizadas no procedimento
especial as técnicas processuais para ele expressamente previstas na lei
(expressão do princípio da atipicidade dos meios executórios).

G) Conclusão

O processo como um fim em si mesmo, descrito nesta lição, tornou-se


ineficaz para anteder às necessidades do direito material. A legislação
processual passou a definir procedimentos abstratos (sendo o procedimento
ordinário o procedimento abstrato por excelência), não se importando com as
desigualdades materiais e com necessidades específicas que pudessem ser
verificadas no plano material (exceto na tipificação, também abstrata, de alguns
procedimentos especiais).
Assim, o ideal da liberdade alcançou sua expressão máxima: todos os
direitos acabavam sendo convertidos, no processo, no seu equivalente
pecuniário.

Consequência da abstração total do processo: o processo tornou-se ineficaz


para atender as necessidades do direito material. Conversão de todos os
direitos em pecúnia

Com a evolução da sociedade e, notadamente, com a criação dos


chamados “novos direitos,” no entanto, essa concepção tornou-se
especialmente obsoleta (antiquada, superada). E, assim, nós temos o impacto

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do Estado Constitucional sobre o processo civil, o que é objeto da Lição 3,


acima.

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APÊNDICE IV
QUE TAL PENSAR FORA DA CAIXA?
UMA INTRODUÇÃO À ÉTICA LIBERTÁRIA

O nosso atual arranjo social, dependente da centralização de poder


numa autoridade estatal central pode, muito bem, ser questionado
O libertarianismo surge com a união do pensamento da escola austríaca
de economia (que defende o livre mercado) com a tradição de defesa da
liberdade nos Estados Unidos.

A) A escola austríaca de economia

A escola austríaca de economia, como o próprio nome já diz, surgiu na


Áustria. Ela teve grandes expoentes daquela nacionalidade no passado, mas
hoje o gentílico “austríaco” serve para identificar qualquer um que siga essa
linha de pensamento que defende o livre mercado e a livre iniciativa de forma
radical.
O grande sistematizador do pensamento austríaco no século passado foi
Ludwig von Mises. Mises concentrou os seus estudos na ação humana, e
esse é, exatamente, o nome do seu maior tratado sobre filosofia e economia.
Ele ensinava que a economia não é sobre números e fórmulas matemáticas
complexas, mas sobre as escolhas feitas pelos indivíduos.
Outro grande expoente da escola austríaca é Friederich von Hayek,
que ganhou um prêmio nobel de economia, em 1974, por causa da sua tese
que demonstrou que as crises econômicas decorrem da intervenção do Estado
na economia.
Em razão das limitações inerentes a este material, não iremos
aprofundar na teoria econômica austríaca por aqui. Mas há ideias muito
básicas do pensamento austríaco que desmontam a maior parte das premissas
da nossa assim chamada “macroeconomia” de hoje – que na verdade é puro
keynesianismo aplicado. A partir da consideração da ação humana, nós temos,
por exemplo, a ideia do tempo como um fator econômico, e o conceito

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associado de preferência temporal, que são importantes componentes da


análise econômica austríaca.
Mises e o Hayek, como tantos outros grandes pensadores europeus da
primeira metade do século passado, na época da II Grande Guerra migraram
para os Estados Unidos. Lá, Mises teve um aluno que se destacou: Murray
Newton Rothbard, o “senhor libertário”, o grande expoente do libertarianismo
nos Estados Unidos. Rothbard teve uma formação econômica muito forte
(tanto que desenvolveu alguns pontos importantes da teoria econômica
austríaca), mas uma bagagem de filosofia e de história ainda maior. Ele foi o
responsável por ligar o pensamento econômico austríaco à tradição de defesa
pela liberdade dos Estados Unidos. E o resultado disso foi o libertarianismo –
ou, como preferem alguns, em razão da influência da escola austríaca de
economia na base desse pensamento, o austro-libertarianismo.
Mais recentemente, Hans-Hermann Hoppe, natural da então Alemanha
Ocidental, ex-aluno de Habermas em Frankfurt, também migrou para os
Estados Unidos. Lá, foi aluno de Rothbard, e agregou ao pensamento ético e
econômico austro-libertário a chamada “teoria do discurso,” ou “teoria da ação
comunicativa,” de Habermas – não do ponto de vista da “democracia
deliberativa”, que vamos considerar mais adiante (veja-se o item F, abaixo),
mas no aspecto dos pressupostos comunicacionais do discurso.

B) A “história libertária” norte-americana

Agora é necessário considerarmos a tradição de defesa da liberdade na


América do Norte. A história dos Estados Unidos, segundo o próprio Rothbard,
é uma “história libertária”. A Revolução Americana (1776) foi uma revolução
libertária – o que fez eclodir a guerra da independência foi um aumento de
impostos pela Inglaterra. Uma vez tornada uma nação independente, a luta
pela liberdade sempre foi uma grande característica dos Estados Unidos.
É certo, contudo, que essa luta foi um tanto ambígua: temos, de um
lado, os jeffersonianos, ou os anti-federalistas, que sempre defenderam um
governo menos inchado, e uma descentralização maior do poder. Aliás, foram

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os anti-federalistas os responsáveis pela aprovação do Bill of Rights (que


incorporou, inclusive, o due process of law – veja-se o item 4.2, acima). Isso é
muito interessante: no texto original da Constituição americana não constava
uma carta de direitos. Essa carta de direitos foi aprovada exatamente para
promover a defesa do indivíduo em face do governo central.
Mas havia uma mancha no currículo dos antifederalistas: eles eram
escravagistas. Essa, segundo o mesmo Rothbard, é a grande contradição na
luta pela liberdade na história americana.
Assim, por outro lado, temos os federalistas, no Norte, que eram
abolicionistas. E, de fato, existem também traços libertários muito fortes no
abolicionismo americano – daí a ambiguidade antes apontada. O próprio
Rothbard reconhece nomes como Adin Ballou e William Loyd Garrison,
grandes abolicionistas cristãos do Século XIX, como fazendo parte da tradição
libertária americana. Ainda nessa linha, podemos lembrar o movimento de
defesa dos direitos civis do Século XX, que tem no reverendo batista Martin
Luther King Jr. o seu maior expoente e mártir.
Voltando agora ao ideal que inspirou a luta de independência dos
Estados Unidos, um grande filósofo do Século XIX, Lysander Spooner,
professor de Harvard, diante do crescimento do movimento federalista, do
movimento que cada vez dava mais poderes à União, escreveu um livro muito
interessante, cujo título é “No Treason” (o que, traduzido, significa “Sem
Traição”). Neste livro, Spooner argumenta que o constante crescimento do
governo central, que já se demonstrava naquela época do Século XIX, era uma
traição à luta por liberdade dos pais-fundadores, e era um desrespeito à própria
Constituição dos Estados Unidos da América. Uma coisa parecida acontece na
França, onde Frédéric Bastiat escreve um livro chamado “A Lei.”
Esse é o ambiente de luta pela liberdade no qual o movimento libertário
floresceu nos Estados Unidos. Mas o libertarianismo se consolida, mesmo, nos
Estados Unidos, com uma forcinha de um sujeito chamado Richard Nixon. No
Governo Nixon, temos duas situações que deram muita força ao movimento
libertário. Temos a abolição do padrão-ouro (um desastre econômico do ponto
de vista da escola austríaca), em 1971, o que introduziu a maior inflação da

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história naquele país, e o fim do alistamento militar compulsório, por causa da


guerra do Vietnã. Na verdade, cedendo a pressões sociais, foi no governo
Nixon que acabou o alistamento obrigatório (o que é uma grande pauta
libertária), em 1973. Já a abolição do padrão-ouro e a inflação galopante
subsequente permitiu aos austro-libertários provarem, na prática, a verdade
dos seus argumentos.

C) Coletivismo X individualismo

Apesar de nossa limitação de tempo e espaço, vamos nos concentrar,


um pouco, nessa questão do serviço miliar obrigatório. Sob que argumento isso
não é uma escravidão? Ah, mas está na Constituição… E daí???
Na verdade, a única justificativa para o serviço militar obrigatório está no
coletivismo, na surrada “supremacia do interesse público.” No entanto,
qualquer jurista de respeito vai dizer que isso é apenas uma fórmula mágica –
tecnicamente isso se chama de “conceito jurídico indeterminado” – para
legitimar todo tipo de abuso.
Filosoficamente, o coletivismo vai encontrar suas bases no utilitarismo,
de Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Para maximizar a felicidade, você
sacrifica alguns, para aumentar o bem-estar da maioria. Tudo muito bonito,
desde que não seja você a ovelha sacrificada em prol do rebanho...
A única opção verdadeiramente disponível para contrapor isso é o
individualismo. Mas individualismo não significa egoísmo. Significa começar o
seu pensamento a partir dos indivíduos, e não do coletivo – ou seja, trata-se de
individualismo metodológico. Com isso, nós vamos notar que os seres
humanos, mesmo sendo egoístas, precisam uns dos outros para sobreviverem.
Assim, eles se engajam em trocas voluntárias, e essas trocas voluntárias,
associadas à evolução tecnológica, com o passar do tempo, melhoram a vida
de todo mundo. Isso é o que a história nos ensina. Mas sempre que o Estado
interferiu nisso não foi para melhorar as condições – na verdade, sempre é
para beneficiar aqueles poucos que tem proximidade ao poder.

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Assim, a partir do individualismo metodológico nós chegamos à ética


libertária.

D) Fundamento do libertarianismo: o princípio da não agressão

O libertarianismo, portanto, se fundamenta num axioma racional, que é a


não agressão. Podemos falar em princípio da não agressão.
Usando a lógica, iremos perceber que a única forma racional de vida em
sociedade, a única forma que garantirá a sobrevivência pacífica dos seres
humanos, é não prejudicando os outros. Se você for cristão, pode derivar o
cristianismo libertário da regra de ouro, encontrada em Mateus 7.12, mais
precisamente, no aspecto negativo da regra de ouro: não faça aos outros o que
você não quer que os outros façam a você.
Logo, seja usando a razão, seja seguindo as palavras do Cristo, a
melhor forma de viver em sociedade é não prejudicando os outros. Você não
prejudica os outros com o objetivo que os outros não prejudiquem você.

E) O déficit ético do Estado em razão do “monopólio da violência”

Agora nós podemos contrapor a ética libertária à compreensão que


temos do Estado. Por definição, o Estado é o detentor do monopólio da
violência. Isso é Max Weber; isso é Hans Kelsen, e é isso que está por trás do
conceito contemporâneo de jurisdição (veja-se a Lição 5, acima).
No entanto, se o Estado detém o monopólio da violência, então ele só
existe e se mantém por violar constantemente a regra de ouro. É como dizia o
já mencionado Adin Ballou, um grande abolicionista cristão do passado:
“quantos homens são necessários para transformar um crime num ato justo?”
Ou, citando o aspecto habermasiano do libertarianismo de Hoppe, a
contradição performativa na base do Estado é que ele não pode pretender
proteger a liberdade e a propriedade privada das pessoas violando
constantemente essa liberdade e essa propriedade privada...

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F) Uma questão mais profunda – o triunfo do iluminismo e a consequente


idolatria do Estado

Na verdade, nosso problema é ainda mais profundo. A Revolução


Francesa, cuja ideologia já considerada no Apêndice III, acima, foi o início da
idolatria do Estado. Após a Revolução, o Estado se transformou num deus
obviamente, com “d” minúsculo. Sobre isso, veja-se a ideia de “religião civil”,
daquele que é considerado um dos pais do pensamento democrático
contemporâneo, Jean Jaques Rousseau.
Mas a Revolução, além de ter rompido com o antigo regime, com o
absolutismo monárquico, representou o triunfo político do iluminismo e do
racionalismo – e, para falar bem a verdade, do ateísmo.
Foi a partir desse momento que a razão deixou de ter cunho finalístico e
passou a ter caráter puramente instrumental. A razão não diz mais para onde
ir, ela apenas diz o como. Para onde ir será estabelecido pela democracia.
Como que a democracia irá nos dizer isso? Por representação, com voto a
cada quatro ou dois anos? Por deliberação, pressupondo um debate
habermasiano? Ou por participação, pressupondo que todo mundo tem tempo
e interesse para ficar tratando dos assuntos da “vida pública”?
Democracia por representação é a tirania do primeiro número inteiro
acima de 50% dos votos válidos. Os outros modelos sempre serão falhos. A
verdade é que a sociedade ocidental, após a Revolução Francesa, tirou a sua
confiança do Deus do cristianismo (o único Deus, criador de todas as coisas,
que entregou Seu Filho Jesus Cristo para morrer pelos nossos pecados) e o
entregou a um deus, com “d” minúsculo, chamado Estado.
Alguém poderia argumentar que nós temos o controle de
constitucionalidade, para garantir o direito das minorias, e para coibir abusos
do poder legislativo.
Mas que segurança o controle de constitucionalidade pode nos dar? Nos
Estados Unidos mesmo, há mais de trinta anos já se aponta o problema de
legitimidade do judicial review (ou do controle de constitucionalidade), em razão
do seu caráter contra-majoritário (quer dizer, os membros de um tribunal estão

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derrotando a decisão dos representantes do povo). Por outro lado, ainda antes,
um autor chamado Charles Black Jr. já argumentou que o controle de
constitucionalidade é, apenas, uma forma de legitimar a cada vez mais
crescente concentração de poderes num governo central, passando a falsa
segurança de que tudo é constitucional.
Em suma, é necessária uma verdadeira profissão de fé neste sistema
para acreditar que as coisas podem funcionar e, ainda assim, melhorar a vida
das pessoas.
Então, se estamos falando de uma profissão de fé, para a sociedade
ocidental pós-moderna, o deus é o Estado. Mas claro que esse Estado é
politeísta, então ele admite a criação de outros falsos deuses, verdadeiros
ídolos (o que explica o “lulismo” recentemente verificado aqui no Brasil). E se o
deus é o Estado, qual é a religião desse deus? É obvio, a religião é a
democracia. E qual é a Bíblia dessa religião? Ah, você sabe bem, porque é
obrigado a carregar essa Bíblia pelos cinco longos anos que passa na
faculdade de Direito. A Bíblia é o Vade Mecum...

G) A solução: uma sociedade libertária, ou “anarco-capitalista”

Para resumir e encerrar, qual seria a solução, diante de todo esse


quadro? A solução, para a teoria libertária, é abolir o Estado, mas respeitando
a propriedade privada. O nome disso é anarco-capitalismo, ou anarquismo da
propriedade privada.
Mas como ficam os serviços públicos? E as políticas públicas? A
resposta a essas perguntas é simples (embora aqui, a limitação de tempo e
espaço leve a uma simplificação quase irresponsável): não há nenhum
“serviço” prestado pelo Estado – a noção de serviço público e arbitrária e muda
conforme o local e o tempo – que não possa ser prestado de forma mais
eficiente pela iniciativa privada, seguindo uma lógica de livre mercado, livre
iniciativa, partindo-se do individualismo metodológico. Assim, até mesmo a
administração da justiça poderia ser privada, o que confronta com a nossa
concepção atual de jurisdição...

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