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AGRADECIMENTOS
Joana Mello
Teresa Gama
Nuno Saldanha
João Herdade
VC.
À neta do Rosa-Cruz
ÍNDICE
Prefácio
Prólogo
1 O Logro
2 O Chão Salgado
3 O Cheiro da Rosa
4 O Aterrador
5 As Centúrias
6 O Epitáfio
7 Terra Motus
8 O Trianon
9 Os 13 Graus
10 Sigilum Lutheri
11 A Bula Imperial
12 O Emplumado
13 O Neófito
14 O Quadro Mágico
15 As Igrejinhas
16 A Cruz do Coração
17 As Sombras da Luz
18 Salace
19 A Câmara
20 O Emboscado
21 A Cidade de Deus
22 David e Salomão
23 O Lago de Bronze
24 Judenplatz
25 O Príncipe Rosa-Cruz
Prefácio
Contadas por Braga Gonçalves, as vidas de D José I, Pombal, Eugênio dos Santos e de
todos os outros envolvidos nesta História com romance, transformam-se num enredo muito
estimulante onde podíamos estar nós, cidadãs vivos no século XXI.
As personagens de Braga Gonçalves tornam-se nossas conhecidas, porque são todas
muito humanas, com virtudes e defeitos, ambiguidades e certezas de qualquer ser humano da
nossa época. Os costumes são descritos de forma tão visual que podiam saltar para uma série
da BBC.
Braga Gonçalves faz-nos sorrir e gargalhar inúmeras vezes, não só porque tem um
sentido de humor muito elegante mas também porque alguma da linguagem que utiliza já não
se usa, o que dá ao texto graça e originalidade e que apetece, ao leitor, voltar a pôr na moda.
Braga Gonçalves consegue dar-lhes mais do que a dimensão de figuras da História por várias
razões. Em primeiro lugar o autor não é historiador, é um estudioso e um intérprete livre e
humano, tão livre e tão humano como só podem ser as pessoas que sabem o que é perder a
liberdade, e que não têm medo de refletir sobre si próprias e sobre os outros. Depois porque é
um homem alegre que tem sabido agraciar a desventura e que, como Pombal, quis reconstruir
depois do terramoto. O prazer que Braga Gonçalves teve no estudo destas personagens e da
época em que viveram sente-se quando se lê. Ao contrário do que muitos podem pensar, a
escrita deste livro não foi penosa para o autor; foi antes uma maneira muito divertida de fazer
amigos e conviver com eles, com a confortável certeza de que jamais se tornarão seus
inimigos.
Por fim, o autor sabe melhor do que a maioria das pessoas que as rugas de expressão
provocadas pelo choro são muito mais difíceis de conseguir do que as provocadas pelo riso, por
isso não teve medo do humor mesmo ao contar uma história muito séria.
Para quem o lê, este livro pode ser um misto de viagem ao século XVIII, de encontros
com personagens que vemos todos os dias na televisão, de uma conversa numa noite de
tertúlia ou de uma aula muito bem dada. No fundo, este é um livro sobre um magote de
homens para ser lido também por mulheres. E tem os seus alicerces numa grande mulher, a
Sofia, sem a qual o mesmo jamais seria possível.
Permitam-me um agradecimento pessoal ao Zé, pelo tamanho da letra neste livro; é
que, depois dos quarenta, a leitura dá tanto mais prazer quanto menos tempo perdermos à
procura dos óculos de ver ao perto.
Teresa Paixão
Prólogo
Agosto de 2005
1 - O Logro
“Um raio que os parta!”, clamava o Venerável Marquês, tateando com o pé a banqueta
que Blancheville tentava colocar à porta da calèche, para ajudar à descida do seu possante
amo. “Um raio que os parta!”, repetia, resfolegando de fúria enquanto assentava firme o
sapatinho afivelado no improvisado degrau.
Ao terceiro raio que os partisse, sulcou a lama da rua direto à porta de casa. Com a
segurança de quem tinha a situação sob controlo, o paladino da maçonaria austríaca em
Portugal e demitido recém-ministro, entrava em casa num rubor de fúria mas sem ar pesaroso.
Acolhido por Leonora com um “Hallô” tirolês, esboçou um circunstancial “Alies gut” e fechou-se
no escritório, nu de cabeleira. Ia fazer queixinhas.
Começou com uma carta ao Irmão Embaixador da Áustria em Lisboa e, por via deste, ao
Imperador Franz de Lorena, ao ministro von Kaunitz e ao Duque Sylva-Tarouca, o trio todo-
poderoso de maçons austríacos. A sua extemporânea demissão era apenas um pequeno
contratempo e serviria até para desentocar alguns fuinhas da corte. Logo trataria de os entocar
de vez, ali para os lados da Junqueira.
Pela urgência, o seu relambório seria curto, apenas umas dúzias de páginas a cada um
dos notáveis Irmãos. Por vezes também sabia ser sucinto, pensava ao terceiro dia, quando
terminou. Podia agora dormir um pouco.
Ao adormecer, descobria um estranho sabor da vida: para quem tinha subido a pulso, o
prazer de perder era tão compensador, afinal, como o de ganhar. Pobres eram os que não o
saboreavam, concluía num remoque, bem sabendo que o seu pulso forte renovaria a subida,
talvez a caminho de outra queda, outro prazer.
Umas semanas depois estava de novo empossado, informalmente, tal como fora
afastado. A Áustria impunha o seu imperium in imperio e a maçonaria o seu sangue real. O
embaixador, de novo ministro, tornava-se um intocável e os seus detratores, como o tempo
demonstraria, fortes candidatos a fogueiras e repelentes calabouços. De um país dominado por
uma Monarquia absoluta, uma onipresente Igreja e uma Inquisição difusora do terror e do
obscurantismo, em breve restaria apenas a Monarquia construtora da sua própria Igreja e com
a Inquisição jacente à ordem real.
Na intimidade familiar da corte, havia mais de meio século que a língua e os costumes
germânicos predominavam. D. Pedro II casara no ano de 1687 em segundas núpcias com a
Princesa alemã e nova-católica, Sopia von Neuburg, mãe de D. João V. Este, assim germano de
sangue, juntou o seu ao da austríaca Princesa Maria Anna, gerando o rei-menino, José,
educado pela mãe na árdua língua de Goethe, com firme desprezo pela local.
Em consequência, havia muito que no palácio reinava a cerveja e que, do porco, só se
comiam os joelhos, com couve azeda. No Paço, o “Bom-dia” era “Gut Morgen” e o “Cnute
Nacht” sinal de recolher.
Mesmo a Guarda Real era formada pela Companhia de Arqueiros Alemães, os Tedescos
e, para construir Mafra, fora-se buscar Johann Friedrich Ludwig, um arquiteto alemão,
erroneamente conhecido por Ludovice.
Mais tarde, até para fazer a guerra à Espanha se iria buscar um alemão, o Conde de
Schaunburg-Lippe.
Com trinta e seis anos, o impreparado filho travesso do Rei-Salomão é sentado no trono
à força de um destino revel. Agarrado à sua austríaca mãe, à língua, costumes e imperiais
donzelas, D. José aparentava uma indulgência real colmatada apenas pelos mais nobres vícios
da caça e dos folhos. Sem margem para cintilar, reinaria encastrado entre o brilho oposto de
dois astros: seu pai, Rei-Sol desbaratador do Ouro, e Pombal, o adorador da Lua e
aprovisionador da Prata.
Aclamado no Paço, em 7 de Setembro de 1750, já um mês antes dera cumprimento às
determinações da rainha-mãe, nomeando para seu ministro o plenipotenciário do Império
austríaco, Sebastião José de Carvalho e Melo, vindo expressamente de Viena para o efeito.
Ali, este aprendera o alemão e tentara aperfeiçoá-lo nos anos longos de vivência com a sua
austríaca mulher, Leonora, jocosamente dita “a Bela”.
Leonora, como todos os germânicos desterrados neste fim de mundo, sempre se recusara a
aprender o linguajar bárbaro dos locais. Com a excepção do Arquiteto e súbdito austríaco Karl
Mardell, esta atitude ascendia até D.Anna de Áustria, sofrida viúva de D. João V, que se
recusara a dizer mais do que o polido “obrrrigadô” a que o flácido protocolo lisboeta obrigava.
Seu filho, o Rei D. José, sempre desprezado pelo pai por ser filho terceiro, crescera nas
germânicas faldas dos saiotes maternos, mal aprendendo o português de tanto rodear as
cortesãs austríacas, que a sua mãe constantemente importava da corte Imperial.
Nestas artes, tornara-se próximo do Capitão dos Arqueiros Tedescos da sua Guarda, o
maçom alemão Gottlieb Fuchs que, passados anos, ainda gritava “Feuer!” em vez de “Fogo!”.
Dos restantes germanos, nem valia a pena falar, que mudos pareciam. Falavam entre si e
sorriam entreolhados quando alguém se lhes dirigia na língua de “Camuiís”, como chamavam
ao poeta.
Eram assim os germânicos na corte portuguesa que o Império austríaco controlava com
o firme pulso de Pombal, a complacência da Rainha-mãe e o beneplácito de D. José, todos
austríacos de sangue ou por casamento, como Pombal.
Este, meia década antes, em Viena, tornara-se austríaco à luz das leis e estilos das
cortes portuguesa e austríaca da época. Assim ditava o seu casamento com uma dama da corte
Imperial. E o Marquês nunca o escondera, ameaçando até retirar-se para a sua segunda pátria
quando algum fato lhe tolhia a dura vontade.
Portugal, à época da chegada de Pombal ao poder, era um país retardado e diferente: o
pessimismo grassava, qual peste social e econômica; o conceito de trabalho era um contragosto
só entendível como uma esmola que alguém recebia sob a forma de indigente emprego; a
desenvoltura intelectual era ferozmente oprimida pela intriga; as famílias, endividadas, só
tinham para a broa num mês de três semanas; a boca, lavava-se com vinho e o corpo
confundia a água com o fogo, dela fugindo como da morte.
É neste preparo de país que, em 2 de Agosto de 1750, o futuro Marquês de Pombal
toma posse como Ministro dos Negócios Estrangeiros e também da Guerra. Estrangeirado em
Londres e Viena, regressa imbuído de espírito crítico e germânica eficiência, infinitamente mais
preparado no pensar e no agir, que qualquer outro no reino.
Ambicioso e sem cautelas, logo deixou que a ambição se revelasse madrasta da imprudência e,
poucos meses passados, já caía no mau gosto da indigência nacional ao mexer com o que
estava.
Parasitária, a alta aristocracia equivalia-se ao alto clero gerado no seu próprio seio,
pelos filhos segundos, sem bens próprios. Em contraste com esta nobreza clerical, 250 mil
eclesiásticos pululavam em cada metro quadrado do território, em percentagem não inferior a
um décimo da população total do país. Dizia-se que só no Tibete existiam mais monges que no
reino de Portugal, e talvez nunca os tivessem contado bem por lá...
Ao primeiro embate, não lhe davam mais de um mês de vida política e logo, uns e os
outros, se lançaram à intriga, desporto nacional a par da caça e das cantatas às donzelas.
Por detrás, chamavam-lhe ainda o traste de Viena, ignorando que o Império austríaco
era a gênese da sua força.
2 - O Chão Salgado
Fazia precisamente um ano que a polícia política assassinara a frio o jornalista e maçom
Hernâni Cid, durante a tentativa de fuga das masmorras do Limoeiro Convocados por Álvaro
Tição, sobrevivente da fuga todos os amigos que o visitaram na prisão ou que o ajudaram nas
investigações sobre o Marquês de Pombal, se reuniam naquele dia para jantar em sua
homenagem. Simbolicamente, escolheram um restaurante típico situado no Chão Salgado, em
Belém, no preciso local da execução dos Távoras e onde nada mais deveria ter crescido.
Adiantados, pontuais ou atrasados, ninguém faltou Desde o homem da idéia, que
cursara Direito com Cid passando pelos jornalistas, José Roriz, Costa Ruivo, Ayres Branco e a
queridíssima Jackie, até ao Paulo, pioneiro aviador do grupo, ao Fernando, o advogado de Viseu
e ao Juan Santial, o médico de Granada, terminando no Zuzarte alfarrabista, no próprio irmão
de Cid e no Pepe, o dono do restaurante galego em São Bento, onde meia Lisboa se reunia à
míngua de boa comida, todos estavam presentes.
Ausente, apenas o secretário do agora ex-ministro que, entretanto, caíra da Ditadura
abaixo. Deste, nem cadáver; daquele, sabia-se ter sido socorrido pelos Irmãos do Brasil, que o
acolheram em São Paulo e lhe providenciaram imediato emprego e dignidade social,
compatíveis com as de um Irmão maçom de alto grau em Portugal. A sua ausência revelar-se-ia
da maior utilidade.
A grande surpresa da noite era Otto, o jornalista e maçom austríaco que Tição
conseguira contatar em Viena e que Jackie tinha ido buscar à Estação do Rossio, em segredo.
Desfeita a surpresa, logo se reconheceram como maçons, perante Otto, os que o eram sem que
os restantes disso se apercebessem. Com um simples aperto de mão se traçavam afinidades.
Otto vinha imerso numa ansiosa curiosidade sobre o país do Marquês, figura que tanto o
deslumbrara pelo seu secreto envolvimento com a maçonaria austríaca. No entanto, a outra
razão da sua inesperada presença em Lisboa estava bem longe dali. A coberto de uma
reportagem para o seu jornal, o Neues Wiener Tagblatt, sobre a rota de fuga européia aos
perigos do anti-semitismo cujo terminus inicial era Lisboa, vinha acautelar a sua
própria e a de seus pais. Mas jantar sobre o terreno do martírio dos Távoras era um inebriante
prazer histórico com o qual se deliciava, saboreando cada instante que passava. A conversa ia
tendo lugar em francês, arranhado por uns, polido por outros e falado pelos restantes.
Depois das apresentações e da anárquica distribuição de lugares, Otto avançou para um
dos motivos da visita. Sacando de um molho de cartas do alfobre da sua velha pasta, passou à
explicação: eram cartas pessoais do seu amigo e ali homenageado Hernâni Cid, que versavam
sobre o Marquês de Pombal. Na verdade, disse, aquelas cartas refletiam alguns pensamentos
desconexos, próprios de quem estava por tempos imemoriais sujeito às masmorras da
Ditadura, “já meio morto e conservado por milagre”, como o próprio nelas referia. Ante o pouco
lusitano silêncio, explicou que ali estava também com o intuito de desvendar alguns fatos que,
por estúpida morte, Cid tinha deixado em pistas, teorias ou suspeições.
Recordou ainda, com emoção, o primeiro encontro com o homenageado em Saint-
Germain-en-Laye, durante as negociações de paz após a Primeira Grande Guerra, a que ambos
assistiam como enviados dos seus jornais. Por dentro sorria, ao rever a confusão que se
instalara entre os dois, com os apertos de mão maçônicos de diferentes ritos e em que, bem
tentando, nenhum reconhecia o outro.
O discurso gerou um primeiro brinde à memória do ausente. Por mera distração, Otto
disparou o maçônico “Feuer!” e dois dos outros, a saudação ritual de “Fogo!”, ao que os
profanos presentes, depois de uns mirrados “Saúde!”, quase chamavam os bombeiros.
Prosseguindo o discurso, Otto transmitia aos presentes as saudações de seu pai, Oskar
Lenndorf, o grande admirador do Marquês. Olhando então em volta, num reflexo pavloviano de
quem estaria em Viena, avançou para um breve relato sobre a situação política na Áustria, que
fazia a portuguesa parecer o Éden das Ditaduras.
Às óbvias interrogações, esclareceu que tinha usufruído, até então, de uma ténue
imunidade por ser jornalista e repórter de guerra, condição essa em que visitava Lisboa,
concluiu com a flacidez de rosto e o baixo olhar de quem estava a omitir algo.
Sacudindo as preocupações, tentou satisfazer o orgulho vinícola dos seus anfitriões, recordando
que o seu pai era um apreciador apaixonado do vinho da Madeira, o qual tinha conhecido
durante umas férias exóticas, a convite de um amigo inglês residente na já então chamada
Pérola do Atlântico. Dizendo isto, perguntou se não lhe podiam servir um calicezinho de
Genebra.
Com o avançar da noite, Otto ia pressentindo que Sid mal partilhara as suas descobertas
com os presentes. Até o simples fato do Marquês ter sido o paladino da maçonaria austríaca em
Portugal, parecia totalmente ignorado. Mesmo a protecção dada aos maçons no consulado
pombalino era ali atribuída a uma hipotética ligação do Marquês a Inglaterra, o que, para Oto,
não fazia o menor sentido face ao desfavor com que Pombal sempre tratara os ingleses. No
mais, cada um parecia saber apenas o que Cid lhe pedira para investigar.
Para aligeirar a conversa, perguntou como ia a construção da célebre estátua do
Marquês. Já antes Sid lhe referira que havia quase vinte anos fora aprovada a construção de
um monumento em sua homenagem no lugar da Rotunda. Estaria pronta?
Os portugueses nem sabiam o que responder. De 1914 a 1931, além de intermináveis
discussões, projetos, e polêmicos concursos, pouco mais for a feito, dizia-se que estava a ser
fundida em bronze e nom só jacto, qual Minerva da cabeça de Júpiter, seguindo o desenho do
arquiteto Adães Bermudes. Mas nada se sabia, já que a Ditadura fizera sua aquela causa.
No entanto, os que tinham visto a maquete, diziam que tudo no monumento era belo,
de uma impressionante unidade e simbolismo, expressando a energia, a grandeza e até a
ferocidade do estatuado Marquês.
Compreendendo o embaraço, Otto mudou de assunto e o jantar prosseguiu por entre
curiosidades muitas e banalidades várias, até que o dono da tasquinha lhes meteu a conta à
frente, sem para tal se fazer rogado.
Feitas as despedidas e encomendada a alma do já periclitante Otto aos inconfessáveis
cuidados noctívagos do Ayres Branco, lá foram todos à vida, sonhando alto, com o seu papel na
coletiva investigação sobre rotundas do Marquês. Antes, ficara apalavrado um novo jantar no
restaurante do Pepe, lá em São Bento, e uma visita a Sintra com o Paulo aviador, a quem os
outros chamavam antes, o aterrador.
No dia seguinte, mal o seu corpo começou a acatar ordens do cérebro, ainda dormente
por via dos excessos da noite anterior com os fados, as guitarradas e as vadias de Lisboa, que
pareciam todas conhecer o Ayres, dedicou alguns minutos a escrever a Oskar, que ficara com a
mãe Ruth em Viena.
Era importante manter Oskar informado do que ia sabendo em Lisboa, por duas ordens
de razões: a primeira, de sobrevivência, a ver com uma possível necessidade de fuga por
Lisboa, no caso de Suíça ser também envolvida pelo jugo nazi; a segunda, para o manter
entretido com as suas investigações sobre a influência da maçonaria austríaca em Portugal no
século XVIII.
Oskar Lenndorf, apesar dos seus setenta e quatro anos, era um jovem de espírito com a
vivência de quem tinha nascido a meio de um século e já quase atravessara um terço do outro.
Judeu originário da Prússia Imperial, começara a sua carreira como agente em Paris da casa
bancária M.G. & Cie.
Por essa altura já era casado com Ruth, judia de sangue e ao contrário do marido,
também de confissão. No final do século, com Otto já nascido, mudavam-se para Zurique, onde
os seus contactos e experiência, aliados ao sucesso obtido em França, lhe possibilitaram
estabelecer-se como banqueiro no paraíso destarte.
Sem alguma vez ter pertencido à maçonaria, ao contrário do filho, um dos mais
proeminentes maçons da Áustria, Oskar era membro da mais secreta, controversa e eficaz
organização iniciática que se conhece, os Iluminados da Baviera ou, simplesmente, os
Illuminati. Daí os extraordinários conhecimentos de simbolismo que ia partilhando com Otto nas
investigações sobre o maçom Pombal, cujas sombras perseguia num hobby de banqueiro
reformado.
Na sua carta, Otto relatava o jantar no Chão Salgado, referindo que daquele grupo de
Lisboa, para além da simpatia que lhe devotaram, se parecia poder contar apenas com boas
vontades, já que os conhecimentos de simbolismo, aparentemente, teriam morrido com Cid,
apesar de alguns dos comensais serem maçons. De entre os que o eram, um pareceu-lhe
interessado e voluntarioso. Prometera apresentar-lhe o Grão-mestre da sua Obediência e até
organizar-lhe uma visita ao Palácio da Pena, expoente da arquitetura maçônica portuguesa do
século XIX, construído pelo rei-consorte austríaco de nome Ferdinand, grande patrono das artes
nacionais.
Por fim referia-se à reprodução de um quadro do Marquês, posando a sós, que lhe
tinham oferecido ao jantar em Belém e cuja existência desconhecia completamente. Para se
divertir com o pai quando chegasse a Viena, omitia qualquer descrição do mesmo, fazendo-se
assim passar por tolo. À primeira vista, e de todos os quadros do Marquês que já tinham
analisado, parecia-lhe ser este o mais enigmático, simbólico e místico. Era um quadro mágico,
mas ia deixar a sua análise para quando chegasse a casa.
Passados uns minutos, já um groom lhe batia à porta do quarto, anunciando um
cavalheiro que o aguardava no lobby do Hotel.
3 - O Cheiro da Rosa
4 - O Aterrador
Só ao ver que o cavalheiro do lobby era o Paulo, Otto se lembrou do que combinara na
véspera. Este apresentava-se fresquinho e com um vasto programa para o dia, que passava por
uma visita a Sintra e depois a Seteais, para ver as vistas que chegavam até ao convento de
Mafra. Ao almoço estava reservada uma mesa no Lawrence, o Inn em que Lord Byron se
afeiçoara a Sintra e, por fim, iriam até ao palácio da Pena para uma visita iniciática.
Partindo no Austin coupé, pelas curvas da misteriosa estrada de Sintra, lá chegaram à
vila, mais amassados que carga puxada por junta de bois. Apesar de mareado, Otto começava
a entender os fascínios daquela Serra em que o tempo retrocedia ao paraíso, sem serpentes
nem maçãs. Ali sentia, como todos, um chamamento telúrico que parecia cravá-lo à Terra.
Tudo visto e almoçado, lá foram até à Pena onde um cicerone muito especial os aguardava, o
Grão-mestre de Portugal, na companhia do Fernando de Viseu, eminente advogado e
proeminente maçom.
O Fernando, que já Otto conhecia da véspera, fazia as apresentações com a solenidade
devida ao simbolismo da ocasião. De “Muito Respeitável Grão-mestre” a “Respeitável Irmão”
não se descia, criando uma inquebrantável barreira, tão ao gosto dos rituais maçônicos.
A Pena, chamada por Richard Strauss de Castelo do Graal, tinha como origem um
Convento de frades Jerônimos, destruído em 1755. Em 1838, as suas ruínas seriam adquiridas
por D. Fernando II, outro rei austríaco de Portugal.
Nascido em Viena de Áustria, Ferdinand August Franz de Sachsen-Coburg-Gotha, viera
para Portugal consorciado com D. Maria II, trineta de D. José I e filha de D. Pedro, Imperador
do Brasil e da Arquiduquesa da Áustria, Maria Leopoldina. Esta, por sua vez, era tri-neta do
Imperador Franz de Lorena. À posterior reconstrução do palácio presidiu o próprio rei, maçom
do grau 33, coadjuvado por outro grande iniciado e simbolista, o barão Eschwege.
Sem que Otto entendesse o porquê, o Grão-mestre começava por revelar que o Palácio
da Pena era dedicado à Lua, representando a emotividade e a sensibilidade desta. E o percurso
iniciático começava logo com uma frase simples: “No castelo, só entrava quem sentia; os
outros, não passavam de visitantes.” E como nada sentisse ainda, Otto prosseguia a sua visita.
Às tantas, uma das arcanas explicações do Grão-mestre fazia-lhe finalmente sentido: “A
passagem é feita pela Sabedoria, pela Força e pela Beleza, reunidas e crucificadas pela Rosa”.
Mas antes que a pudesse discutir com ele, soou-lhe uma outra: “Ver, ouvir e calar, pâra bem
aprender”. Sem saída, calou-se, ouviu e ficou rigorosamente na mesma. Apenas entendeu que
a Sabedoria, a Força e a Beleza eram ali referidas em clara correspondência com as três
colunetas que ornamentam o interior das Lojas maçônicas e que correspondiam também, às
três Luzes do ritual. Num instante, a memória levou-o até à Loja Fénix em que as Luzes eram o
Venerável Marquês, o 1.o Vigilante Carlos Mardel e Eugênio dos Santos, o 2.o Vigilante.
E assim prosseguiu a visita com uma avalanche de informação por parte do Grão-
mestre, a soterrar o “Respeitável Irmão”, deixando-o pouco menos que afogueado. As frases
herméticas soavam com inexcedível aura mística: “O caminho para o mistério não se faz pelo
conhecimento ou pela pureza da vida, mas sim pela iniciação”. De fato, aquilo era pior que uma
iniciação, pensava o austríaco com ar de neófito, olhando sorrateiramente as horas que não
passavam. Parecia que até o tempo era maçônico; aliás, ali era tudo maçônico, pensava Otto, o
visitante assoberbado, revendo o simbolismo da Pena desde a entrada, onde a Terra surgia
como o suporte da Água a fluir sob a ponte de acesso até à incisiva corrente de Ar que
acompanhava o visitante à porta das serpentes do Fogo, nada é casual. E, passados os quatro
Elementos, surgia então a Morte. Esta representava o direito do maçom regressar à Terra,
assim se fechando o ciclo que sempre recomeça com o retorno à vida matizado na simbologia
de Hiram, o Mestre Tessurrecto.
Terminada a proveitosa visita, lançaram-se às despedidas e desandaram até Cascais.
Pelo caminho e por entre relatos de aventuras com os seus amigos, pioneiros dos ares e
também maçons, Lindberzh eLe Brix, o aviador ia convencendo Otto a cumprir a parte final do
programa: sobrevoar a Costa do Estoril até à entrada de Lisboa, onde poderia ver e fotografar o
Pentágono militar português, inspirado no pentagrama maçônico e mandado construir pelo
Irmão Conde de Lippe, enquanto comandante dos exércitos ao tempo de Pombal.
Habituado a batismo forçados, o judeu Otto acedia para logo se arrepender. Aquilo
voava?, inquiria incrédulo, olhando para o monte de sucata com asas duplas, o velho Breguet
XIV da Grande Guerra, ainda orgulho do Paulo. Sem retorno, subiu a bordo.
Depois de peripécias várias, conseguiram descolar a caminho do passeio turístico aéreo,
que logo começava com a suprema diversão do aterrador. espantar a saloiada com rasantes e
subidas que fariam Otto desejar não ter nascido. Com os assentos em tandem, a comunicação
era inexistente, sendo tudo indicado por meio de gestos ou, no caso de Otto, com aflitivos
murros no toutiço do piloto.
Às tantas, o acrobata resolveu acalmar. Suavemente, a geringonça com asas lá chegou
ao reguengo de Belém, onde o austríaco reconheceu os contornos do Chão Salgado. Daí
subiram até à Ajuda, para sobrevoar o Pentágono militar. Avisado pelo piloto, Otto preparou a
sua Leica, que até então andara aos trambolhões pela cabina. Adornando o aeroplano por meio
de largas curvas, o Paulo abria o ângulo fotográfico de Otto que, por várias vezes, quase
deixava a câmara estatelar-se lá em baixo. Ele próprio só não caía porque o Paulo o tinha bem
amarrado.
A Ajuda era o mais perto da cidade que se podia ir, pois arriscava-se a provocar um
tumulto lá em baixo, se avançasse mais para o centro. Tomava já o caminho de regresso
quando uma sucessão de pancadas na moleirinha o deixaram com a touca de aviador à banda.
Era Otto que apontava insistentemente para trás, para uma zona um pouco abaixo do Palácio
Real. Sem saber bem ao que ia, deu meia volta larga, rondando a zona do alvo.
Por mais que olhasse, só via barracaria e uma igrejeca que nem ele ali conhecia. Feita a
vontade ao austríaco, regressaram até Cascais, perturbando mais umas quantas almas com
zumbidos e picadas. No que a revolta estomacal deixava, Otto ia fotografando as praias e as
belas fortalezas que se estendiam por toda a costa. Por fim, o martírio cessou.
Ao pôr o pé em terra, Otto lá se desculpou de tanta palmada que dera. Era repórter de
guerra, dizia, mas de guerra de infantaria. Perguntado sobre o motivo da exultação, respondeu
num tom enigmático que, por vezes, “uma rosa podia dizer mais do que todo um roseiral”.
No dia seguinte, saiu eufórico à procura de um local para lhe revelarem as fotografias
aéreas. Se a construção maçônica-militar setecentista era algo de extraordinário e
original, já a igreja era um desafiante mistério. Perguntou então no hotel por uma loja
de fotografias e remeteram-no para a antiga rua do Almada. Havia por lá um famoso fotógrafo,
único local em toda a Baixa onde se obtinham revelações.
Recebido como mais um judeu em plena rota de fuga e a caminho de ser esmifrado,
pediram-lhe pela revelação o que na Áustria dava para comprar a sua Leica e levar troco para
casa. Sem alternativa, aceitou. Eram três dias, disseram-lhe. Com essa convicção e os bolsos
aliviados, lá se foi para mais um dia na senda do Marquês.
Ia coscuvilhar o Pentágono, subindo depois até à tão desejada igreja. E ia fazê-lo
sozinho, pois já tinha entendido que, àquela hora da manhã, não podia contar com os seus
novos amigos. Se fossem todos maçons, pensava, seriam com certeza de uma Loja em que o
lugar do Sol e da Lua andariam sempre trocados.
Partiu então à aventura, que começou logo na apanha de um táxi. Pelo caminho, Otto
pensava no simbolismo daquele edifício com cinco ângulos, encerrando a estrela maçônica de
cinco pontas, desde sempre diabolizada pela Inquisição. A propósito, vinham-lhe à memória as
enigmáticas figuras humanas inspiradoras da arquitetura maçônica e desenhadas por Leonardo
da Vinci segundo a proporção dourada, a relação da cabeça para os quatro membros do corpo
humano.
Perdido no pensar, quase passava a construção militar. Descendo do táxi, começou a
rondá-la, não tardando a despertar a curiosidade dos militares de guarda e a ser corrido dali
para fora, não sem antes o identificarem e, aparentemente, se convencerem de que não
passaria de mais um turista louco. Com o susto, chegou à igreja a sete pés.
5 - As Centúrias
Por aqueles dias, algo trazia o Irmão Eugênio dos Santos sob desesperada tensão. Num
inusitado assomo religioso, denunciava-se a torto e a direito em constantes rezas e ladainhas
pouco próprias de um maçom das Luzes e que tanto incomodavam o nada católico Irmão
Carlos Mardel.
Íntimos amigos, para além de maçons da Loja Fénix, tinham tido percursos bem
diferentes. Carlos Mardel, de seu verdadeiro nome Karl Mardell, também Arquiteto, nascera no
Império Austro-húngaro e viera para Portugal, no tempo da Rainha-mãe Maria Anna de Áustria.
Eugênio dos Santos de Carvalho, ainda primo do ministro Sebastião José de Carvalho e Mello,
passara num ápice de monge a maçom, mantendo ambas as qualidades por ocultação da
primeira. Antes amigos, depois Irmãos, constituíam um duo inseparável.
Mas nem a Mardel aquele se atrevia a dizer o que lhe ia na alma. Eram aquelas malditas
leituras secretas de convento, de tendência milenarista e com origem num profeta da desgraça
que, a partir de 1555, havia então duzentos anos, tinha começado a encriptar nos poemas a
que chamou “Centúrias”, as suas visões de mortes e catástrofes futuras.
O que Eugênio lera, estudara e nas últimas semanas desencriptara, graças aos seus
monásticos conhecimentos de latim e grego, tinha-o deixado transtornado. Por si, por todos os
que o rodeavam e por todos os que na Cidade, já maldita, depois vivessem por duas
“Centúrias” e meia.
No seu religioso recato, Eugênio, que sempre rezara por um Livro de Horas, refugiava-
se agora na rigidez de um Breviário, radicalizando a intensidade e freqüência das suas preces.
Tal era o seu cuidado que, para o aplacar, se fizera por duas vezes mordomo dos presos do
Limoeiro, que padeciam de fomes perenes e, para mortificar os seus receios, passara a usar um
silício à cinta, supliciando-se assim por duas horas em cada dia.
O responsável por tamanha preocupação era Michel de Notredame, o judeu eternizado
como Nostradamus, até então esquecido ao ponto de nem no Index constar. Nascido em 14 de
dezembro de 1503, em Saint Remy de Provence, tinha sido médico e estudioso de astrologia e
astronomia, para além de visionário no estrito sentido da palavra.
Algo profetizara o desgraçado que exacerbara o lado misticista de Eugênio. E como
explicá-lo ele a alguém que o entendesse, que aceitasse os seus receios sem os transformar
numa zombaria maçônica?
Eugênio estava emparedado: de um lado, os Irmãos da maçonaria, arraigados ao
simbolismo e adeptos em crescendo do positivismo; do outro, os eclesiásticos, capazes de o
queimar em efígie só de lhes falar na causa dos seus receios. De ex-monge a bruxo era um
salto para a fogueira. E o suave tratamento efígico sempre o ficaria a dever ao Grande Maçom,
que tinha transformado a Inquisição num cordeiro pascal que ainda iria servir à mesa, num
qualquer domingo. Mardel, Irmão e amigo preocupado, instava-o tentando não o perturbar
muito com as inquirições. Mas dali não saía nada a não ser murmúrios quase virulentos.
Para cúmulo dos seus receios, Eugênio tinha ido a Queluz, ao antro da viradeira, assistir
a um sarau. Sob a égide da princesa da Beira, o letrado Joachim de Mendonça apresentava
“huma dissertação sobre terremotos, seus efeitos e prognósticos”.
Por entre o temeroso aplauso que a narração provocara, a insana princesa dava a
palavra final a um visionário jesuíta e confessor da família dos Távoras. Fazendo-se de louco,
do que aliás tinha pouco, o destemperado Malagrida vaticinava a descida aos infernos de um
certo reino de hereges. Sem se atrever a dizer qual era o reino e a tamanha heresia, o padre
deixava todos a pensar o que cada um já sabia.
30 de Outubro de 1755, quinta-feira, dia de reunião da Loja Fênix. Sustentáculo em
Portugal da maçonaria austríaca, nela se congregavam os germânicos residentes em Lisboa,
bem como a entourage política e econômica do Marquês, Venerável Mestre da mesma.
Antes mesmo da abertura dos trabalhos, o Irmão Eugênio pedia para se dirigir à
assembléia. Sem espanto, o Venerável Mestre dava o seu acordo, pensando tratar-se de
qualquer questão prévia ao ritual.
Na verdade, sempre houvera um pequeno atrito entre ambos devido à moderação
anticlerical de Eugênio, que ainda passara por monge na sua indecisa juventude. Por isso, o
Mestre o chamava de maçom de três costados, já que o quarto, dizia, se perdera no hábito que
fizera o monge.
Aproveitando o ensejo, Eugênio tomou em mãos as Centúrias, fazendo Mardel pensar
que seria o Breviário. Este já se lhe dirigia para o travar, quando reparou que o livro era
diferente. Desconfiado recuou, mantendo-se atento. Eugênio, sem delongas, passou à récita:
queria comunicar à Loja um fato que o apoquentava há algum tempo e que, por se predizer
grave, a mais ninguém o podia confiar.
Para tentar prender a difícil atenção iniciática dos Irmãos, começou por referir que o
causador de tão espiritual maleita fora membro de uma Fraternidade predecessora da
maçonaria, tendo em 1556 freqüentado um templo Rosa-Cruz em Turim, no Campo Morazzo
onde, aliás, existiria uma lápide da época com referência ao fato.
Se atraiu a dócil atenção dos presentes, também atraiu o seu contrário: a ira do Mestre,
que o interrompeu agudizando a conversa. Acaso não estaria ele a falar daquele falso médico
charlatão da Provença, inquiriu com o positivo desprezo de quem não estava para vidências da
desgraça. Bem que o Mestre conhecia as profecias milenaristas de Michel de Notredame, desde
os tempos da sua enviatura a Londres. Por lá, ainda o liam; com curiosidade e pouca crença.
Indiferente à crítica da luminária, Eugênio prosseguiu num contra-ataque verbal, que ia
captar a atenção do Mestre e vencê-lo pela fraqueza do seu ódio aos ingleses. Folheando à
pressa, encontrou a sua marca numa dobradinha do canto da folha. E leu, como apelo ao
agravo, a última quadra do livro de Nostradamus':
“Le grand Empire sera par Angleterre Le Penporam des ans plus de trois cents Grands
copies passer par mer e terre Les Lusitains n'en seront pas contents.”.
Mardel sorria vendo que o amigo tinha desfeiteado o Mestre e acordado a assembleia.
Após uma pausa com sabor a vitória, Eugênio retomou a palavra passando por cima de tudo o
que era ritual.
Afinal, as profecias, as tão temidas profecias de Nostradamus, terminavam com uma
bem precisa referência aos portugueses. Que não fosse por essa deferência aos Lusitanos, que
lhe dispensassem algum tempo e atenção, pedia Eugênio, bem sabendo que já a tinha toda.
Levantou-se então Mardel, com ar de gozo travesso, pedindo ao Venerável que perdoasse o
Irmão Eugênio e prosseguisse o ritual. Entre a maçônica espada e a intrigante parede,
ponderava este o que fazer quando Eugênio se lhe chegou apontando o dedo à nova quadra.
Displicente, o Mestre leu-a com enfado primeiro, curioso depois e com os olhos esbugalhados
no fim.
Cumprida a missão de alerta, Eugênio tentava retirar o livrinho debaixo da mão pesada
do Mestre que, sem alternativa, o largou prosseguindo-se o discurso com a leitura apontada.
Traduzindo e atualizando a 41ª quadra da 8ª Centúria e tentando não escurecer os espíritos
iluminados, Eugênio falava baixinho para não ser ouvido lá dentro pelos espíritos emaranhados:
“Eleita será a Raposa não soando palavra Fazendo o santo público viver de pão de
cevada Tiranizará o próximo tanto como a um galo Pondo o pé aos maiores sobre a garganta.”.
Os Irmãos não sabiam se sorrir da voz do Mestre com a história da Raposa que não
soava palavra, ou se chorar do prenúncio de se verem a pão de cevada, tiranizados e com o pé
da velha Raposa sobre a garganta. Sorridentes ou chorosos, pelo menos estavam interessados,
remarcava Eugênio, prosseguindo na explicação. Quanto a ele, a Raposa era o Mestre, como
por todos ali era reconhecido pela sua astúcia e sabedoria e era “o eleito”, o escolhido para
levar a cabo um trabalho árduo como o de governar um país que desde os Romanos e citando
Júlio César, “não se governava nem se deixava governar”.
O pão de cevada era também claro e, para o povo, era até um luxo. Já referência ao
santo público, ou devoto povo, já só os havia dois na Europa: o espanhol e o português.
Eugênio tinha, cuidadosamente, evitado a referência à voz do Mestre, voz essa que se faria
soar, intrépida, como que em zigue-zague pela Loja interrompendo a explicação das duas
últimas frases como se, de repente, tudo lhe fizesse sentido e o sentido lhe fosse incomodo.
Metido num folho de sete varas, a velha raposa logo gizou uma saída: uma bela e bem
fundamentada explicação que deixaria todos mudos e os afastaria daquela absurda idéia de
que, para Nostradamus, el-Rey era o Galo e a Raposa era ele.
Num silvar matreiro, derivou das centúrias para a catedral de Amiens, construída no
século xiii e que, dizia, visitara a quando da sua passagem a caminho de Chantilly. Em boa
verdade, o Mestre conhecia a catedral mas por a ter estudado como exemplo de codificação da
simbologia por parte dos construtores de catedrais, os primitivos maçons.
Vendo os Irmãos estranhamente atentos, confundindo atenção com desespero,
continuou invocando que no grande pórtico da catedral se encontrava esculpida uma alegoria
denominada “do galo e da raposa”. E só podia ser aquela a fonte de inspiração poética da
adivinhação, disse, com a subtileza de quem acabava de transformar uma visão de profeta num
lirismo de poeta.
Eugênio, trocando olhares com Mardel, rejubilava ao ver como a Loja agarrara o tema,
como o tema agarrara o Mestre e como este se tentava desvencilhar daquilo tudo. A peça de
Amiens representava, tal como o final da quadra, uma raposa e um galo, completou o Mestre
ressalvando, no entanto, que o galo estava no alto de uma árvore que impedia a raposa de o
alcançar, assim o protegendo.
Agora era Mardel quem olhava para Eugênio, já vendo onde aquilo ia dar. E o Mestre lá
ia andando, agora referindo que, pelo recorte das folhas, a representação era a de um
carvalho. Dito isto, sorriu de escárnio para Eugênio, fazendo notar a coincidência com o seu
próprio apelido.
Com conhecimentos vastos e artimanhas muitas, o Mestre era quase imbatível, pensava
Mardel, já com pena do pobre Eugênio que, de tanta razão ter, a não conseguia demonstrar
talvez por tão óbvia ser.
Voltando à carga, o Mestre explicava que, em termos de hermetismo, o galo
representava a volatilidade, pelo que a alegoria esculpida na catedral podia ser uma forma de
representação da Fênix, a ave mítica que dava o nome à Loja e renascia das cinzas, como esta
em cada vez que reunia.
Atestando o tortuoso raciocínio, invocava então o Mestre a relevância daquela escultura,
explicando que a mesma se encontrava encimando um quadrifólio, no qual surgia o firmamento
com o Sol e a Lua tão explícitos como os representados nas paredes das Lojas recentes.
Por conveniência do Mestre, passava a Catedral de Amiens a ser fonte de inspiração de
Nostradamus e justificação de símbolos da própria maçonaria moderna.
Findo isto e cortando de vez a palavra a Eugênio, o Mestre proferiu um cínico
agradecimento ao monge assustadiço, apelidando-o de Irmão Nick, sem que alguém
entendesse bem porquê. Na verdade, usava o diminutivo com a mesma propriedade com que
os ingleses brindavam o demônio, o que teria origem no diminutivo de Nicolau, o nome próprio
de Maquiavel. Aprendera-o em Londres, aproveitando o espírito de liberdade e o conselho do
seu Mestre D. Luís da Cunha, ao devorar O Príncipe, opus magnus do florentino e que este
escrevera na prisão dos Medicis, em 1513, para onde fora atirado por apoiar a República pós-
Savonarola.
6 - O Epitáfio
Fascinado com os contornos do que vira do ar, Otto começou por rodear a igreja da
Ajuda. Era uma construção inusual, disso não tinha dúvida. Não fosse aquela cruz no
frontispício e poderia ser qualquer outra coisa que não uma igreja. Tratou de a fotografar por
todos os ângulos possíveis, pensando já no prazer que iria ter ao partilhar as fotos, qual troféu
de viagem, com o velho Oskar. Reparou então numa segunda cruz que encimava o zimbório,
formada por oito pontas e cravada sobre um globo de bronze. Era, sem dúvida, uma cruz de
enigmático simbolismo. A sua primeira interrogação não ia para o globo simbólico e o material
que o compunha, o bronze, mesmo sendo a única peça de metal que se avistava numa
imensidão de pedra alva. E porquê o bronze?, interrogava-se ante a esverdeada patine, ganha
por força do tempo. Como sentia saudades dos conhecimentos do velho Oskar, para quem
aquele mistério de oito pontas sobre um enigmático globo verde, poderia ter a mais simples
explicação do mundo.
Talvez fosse ainda cedo para entrar, pensou ao ver a porta fechada e como que a tentar
habituar-se aos horários de um país que parecia todo ele acordar às dez. À espera, sentou-se a
observar cada pedra, cada esquina daquela maravilhosa peça de arquitetura, deitando-se a
adivinhar quem seria o seu autor, já que a época de construção não lhe levantava a menor
dúvida.
Às tantas, percebeu que não tardariam a abrir as portas, já que se começavam a sentar
por ali umas velhinhas com ar de beatas para o serviço da manhã. Mas algo o fazia sentir que
aquele Templo, em lugar de transmitir paz de espírito, inculcava um respeito de morte. Estaria
a ficar místico, interrogava-se o renitente maçom, sacudindo os seus temores. E mal as
velhotas entraram, seguiu-as até à porta, aí estancando para os seus olhos se habituarem à
penumbra do interior. Era uma gradual revelação. Aos poucos, aquilo que no dia anterior
pressentira ia-se tornando realidade, qual tesouro Rosa-Cruz. Ao olhar em volta, mal podia
acreditar na beleza daquele Templo devotado aos percursores da maçonaria. Depois,
estranhando a ausência de informação, interrogava-se sobre se alguém já a teria descoberto ou
se todos pensariam ainda estar perante uma simples igreja. Sem resposta, por certo não ia
perguntar ao cura e muito menos às beatas.
Pensativo, continuava à ombreira da porta como se uma estranha força anímica o
impelisse a não entrar. Mal se apercebendo, recuou a pretexto íntimo de não perturbar o
serviço religioso e aproveitou para rever o exterior do templo, agora já com outros olhos. Por
fora, era ainda mais enigmático, já que não respeitava a forma retangular do caixão de Hiram,
nem exibia a tríplice fachada do Templo de Salomão. Este aparente contra-senso criava uma
harmoniosa originalidade que se impunha à traça uniforme dos restantes templos de Lisboa,
constatava Otto numa compulsão interior que o levava a perscrutar a mente dos construtores
de outrora. Se fosse ele o pedreiro daquela catedral de estilos, porque a construiria assim?
E, num momento, tudo se conjugava. Como que iluminado pelo espírito dos maçons
ancestrais, apercebia-se que a fachada de Salomão, afinal, sempre ali estivera e que o caixão
de Hiram cedera a forma exterior à Rosa, para assumir o conteúdo do templo.
De fato, toda aquela arquitetura, que Otto apenas sabia ser de um tal Bibiena, se
baseava num compromisso entre a vida e a morte, entre a Rosa e a Cruz, numa envolvente
tumular maçônica. O que tinha diante dos seus olhos era uma fachada de Salomão, amputada
das portas para aprendizes e companheiros. Das três, restava uma, a do meio que, no Templo
de Salomão, dava entrada apenas aos Mestres e acesso à Câmara onde estes se reuniam.
Assim se designava por Câmara do Meio, recordava Otto numa reflexão que o levava até à
gênese das Lojas modernas.
Por fim, a sua inspiração levava-o a reparar que as formas arredondadas da Rosa eram
adquiridas, precisamente, pelo recorte que eliminava as entradas dos aprendizes e
companheiros, bem como as suas reminiscências no lado nascente do monumento.
Algum tempo depois, como as devotas saíssem, dirigiu-se de novo à porta, não fosse
esta voltar a fechar-se. Ainda hesitante, invadiu o espaço sacral, não deixando de sentir um
estranho temor latente. Ao fundo, o sacristão compunha as flores deixadas pelas beatas e o
cura passava apressado com uma vênia gentil e um ar alheado. Qual Hemingway em viagem
por Lisboa, num relato de pormenores dinâmicos que as fotos poderiam não revelar, tratava de
anotar tudo no seu Moleskine. Percorreu então o Templo, vendo e registrando as maravilhas do
simbolismo Rosa-Cruz e maçônico que o mesmo encerrava.
Esmagado pela emulação do lugar, coroou as insuspeitáveis certezas com um relance de
olhar. Ao fundo, abarcando a essência do templo, uma cruz romana com uma simples inscrição,
I.N.RI.
Recordando que o raio de Luz só é visível graças ás poeiras que ilumina, Otto deixava-se
iluminar pela mais dissimulatória de todas as cifras de raiz alquímica e rosacruciana. Aquela
simples inscrição era o corolário oculto da forma exterior do templo, da sua entrada e demais
arquitectura simbólica. Era o fecho da abóbada celeste.
Tentando não trocar os termos, Otto revia os dois significados da expressão I.N.R.I. O
primeiro, dissimulatório, tinha origem na inscrição que Pôncio Pilatos mandara cravar na cruz do
mártir do Gólgota, sobre a sua cabeça. I.N.R.I. era a chistosa abreviatura do título latino “Jesus
Nazarenus Rex Ivdaeorum”, ou Jesus Nazareno Rei dos Judeus. O segundo, dissimulado, era a
sigla de identificação dos Cavaleiros RosaCruz e tinha origem na antiga máxima hermética
“Igne Natura Renovatur Integra”, “o fogo renova toda a natureza”.
Sendo Otto grau 33 da maçonaria, recordava a sua passagem pelo grau 18,
precisamente o de Cavaleiro Rosa-Cruz. Só então se dava conta de estar um Rosa-Cruz num
Templo dedicado aos mesmos. Mas ele não era o único ali presente.
Subitamente, toda aquela envolvente mística parecia emanar de um só local no ermo do
Templo, um estranho túmulo em madeira, de singela beleza, mas que pelo seu aspecto
abandonado parecia de algum desconhecido ilustre. Apenas, irradiava; e Otto não sabia o quê.
Naquele momento, estava sozinho; no entanto, não se sentia só, e a sensação não era boa. De
semblante carregado, tratou de sair dali e só ao passar pelo túmulo lhe deitou um olhar de
relance. Depois, estarreceu. Incrédulo no que via e crente no que sentia, Otto regozijava com
aquele momento que, só por si, valia todas as canseiras por que passara até chegar a Lisboa.
Como se o morto estivesse vivo e o estivesse ali a olhar, Otto permaneceu imóvel,
respirando a compasso. Ao sentir de novo o sacristão, ganhou coragem e acercou-se. O nome
era claro e as datas certificavam-no. Por cima, estava adornado com uma estranha peça
escultórica em bronze, e com uma referência apenas: “Lei de 3IX-1759”. Tomou nota e tirou
algumas fotos, depois de clarear o local abrindo as portadas de uma janela mesmo ao lado do
féretro. Pela data da inscrição, não se poderia tratar de um mero Cavaleiro do grau 18, pois
esta designação honorífica surgia apenas no século XIX. Era sim, e por aquela mesma data, o
de um verdadeiro Príncipe Rosa-Cruz, o grau máximo da maçonaria de orientação germânica do
século XVIII.
Findo o ritual de latria, saiu enervado e pensativo. Como seria possível que nem Cid
alguma vez lhe tivesse referido aquele túmulo?, interrogava-se, pensando o que seria se, na
sua Áustria, alguém daquela estirpe fosse votado a semelhante abandono. De fato, não
compreendia aqueles portugueses. E se alguém se lembrasse de profanar o túmulo? A sua
inquietude só passou quando admitiu que, abandonado ou esquecido, aquele era o lugar certo
para depositar um Príncipe Rosa-Cruz.
Depois da luminescente visita, Otto regressava ao centro da cidade na esperança de
encontrar mais algum templo Rosa-Cruz. Correndo o lés da Baixa e confrontando um roteiro
banal, verificou que todas as edificações religiosas eram posteriores à morte do Marquês. A
única excepção encontrava-se na Praça do Município, sob a forma de uma peculiar construção
cripto-maçônica dotada de uma opulenta fachada de Salomão e que o roteiro ainda chamava
de Igreja de São Julião.
Deliciando-se a observar, assistia à mais original utilização que vira dar a um templo, já
que não cessava a passagem de carros pelo seu portal adentro. Era o templo-garagem de um
banco nacional.
E a Igreja sabia disto? E os Irmãos, o que diriam?, pensava o austríaco atónito.
Encolhendo os ombros, lá se foi ao desalento, deixando o Santo Julião para trás.
A propósito das descobertas sobre as igrejas de Lisboa, que ia relatando ao pai através
da novíssima invenção, o telefone, recebia em Lisboa uma curta missiva daquele. Com um
paternal abraço e sem mais comentários, Oskar enviava-lhe um extrato de um livrinho que
andava perdido nas estantes empoeiradas e que a mãe Ruth, em boa hora, recordara. Era o
diário de William Beckford, datado de 1787 e escrito a quando da passagem por Lisboa daquele
membro de uma das mais ilustres famílias de Inglaterra, de cujos falsos pudores tivera que
fugir sob a tênue insinuação de sexualidade indefinida.
Otto leu e entendeu por que não trazia comentários, apenas alguns itálicos.
“Já era escuro quando chegamos à Igreja dos Mártires. Como tínhamos vindo muito
depressa, afigurou-se-nos encontrarmo-nos de repente, não numa igreja, mas num esplêndido
teatro (...); todas as tribunas estavam engalanadas com reposteiros do mais vistoso damasco
das Índias (...). Muito bater de leques, muitos risos abafados e muitos namoricos pela espaçosa
nave (...). A concavidade, onde fica o altar-mor, de tal modo me parecia um palco, que eu
estava sempre à espera de ver a entrada triunfal (...) ou descida de qualquer divindade pagã
(...). Devo confessar que tudo isto me alegrou e encheu de idéias pagãs”.
Sutilmente, Oskar indiciava ao filho conhecer uma parte dos mistérios das igrejas de
Lisboa.
7 - Terra Motus
Em 1755, Portugal tornara-se num país em que só o Rei era verdadeiramente rico. Tão
rico que desde o Fidelíssimo, pai de D. José, ombreava, por alto, com as casas reais e imperiais
européias. Esta riqueza advinha-lhe do Brasil e do apanágio de cobrar impostos em nome do
Estado sob a máxima absolutista e iluminada “l'état c'est moi”.
A capital do reino, bela quando vista do rio, assustava o navegante mal pisava terra
firme. Na verdade, Lisboa era já antes do terremoto uma urbe polvilhada de ruínas causadas
pela decadência da aristocracia imobiliária que se habituara a viver à míngua da coroa num fare
niente digno do declínio da Roma antiga. A cidade, essa era governada por um Senado que
nem dos próprios edifícios cuidava, antes se depauperando em festas e festejos religiosos de
dúbia devoção, que patrocinava em ufano detrimento do bem comum.
Por entre a desgraça urbana, vivia quase um quarto da população do reino,
sobrevivendo da coletiva indigência alimentada à custa da pedinchice endêmica e da beatice de
pouca fé. Parte desta mole humana vivia debaixo de uma qualquer janela de piedoso burguês
ou de aristocrata falido de onde, a horas certas, caía uma moedinha numa demonstração de
falso vigor econômico. A restante acolhia-se às portas dos conventos, únicas construções sadias
da cidade, de onde saía uma sopa chamada dos pobres e que os frades distribuíam sem
distinção da boa ou má-fé.
Mas algo mais trazia as almas em alvoroço: a voz comum de que os tremores de terra,
vulgares em Lisboa e de cíclica devastação, se faziam sentir mais nos meses de Novembro a
quando das primeiras chuvas que se seguissem a secas prolongadas.
Nesse dia de todos os mortos, Eugênio saía cedo de casa. Incógnito, ia até à ermida do Alto de
Santo Amaro assistir ao serviço em memória dos defuntos, sugestivamente, a invocação
religiosa mais parecida com os rituais da maçonaria.
Apesar de a sua casa, na rua da Junqueira, ser paredes meias com a capela de João
Baptista, o santo devoto dos maçons, optava naquela manhã por mais um aplacamento da sua
sedição moral, mitigando-a com a tormentosa subida das escadinhas de Santo Amaro.
Sem que o pudesse imaginar, aquela dolorosa expiação ia provavelmente salvar-lhe a vida,
naquele sábado de Novembro, vigésimo oitavo da Lua.
Pouco faltaria para as dez quando chegou ao topo, arfando pela provação matinal. Num
indulgente pecadilho sentou-se lá atrás e trocou as laudes do Breviário pelas Centúrias do
Adivinho, retomando então a primeira daquelas, na quadra 88.
O divino mal surpreenderá o grande príncipe que pouco antes terá mulher desposada. O
seu apoio e crédito ao golpe virá escasso, Desígnio que morrerá para a cabeça rapada.
Enquanto o serviço não começava, ia lendo, e do que lia, quase tudo entendia. Só o
“divino mal” lhe deixava dúvidas. Seria o mal de França, ou mal francês, como chamavam à
sífilis? Quanto ao cabeça rapada, era claro... mas era a quadra anterior que o atormentava
naquele dia de céu azul:
Em nocivo fogo do centro da Terra, Fará tremer em torno da cidade nova Dois grandes
rochedos por muito tempo farão guerra Depois Aretusa avermelhará novo rio.
Falava sem dúvida de um tremor de terra motivado pelo choque de dois “grandes
rochedos”, que outros não seriam senão os dois montes de rocha firme, ditos da Madalena e de
São Francisco, encimando o centro da cidade a nascente e a poente. Comprimidos entre
ambos, a zona baixa e o centro econômico e político de Lisboa, tinham sido conquistados às
águas do rio por meio de aterros instáveis e permeáveis a enchentes e marés do “novo rio”.
Quanto a este, ele recordava o que Osberno escrevera sobre Ulyxibonae, a Lisboa do século III,
quando por esta passara. Bem se recordava daquela referência como feita ao antigo delta do
Tejo. E não ia ser um terremoto qualquer; ia durar o tremor pois “por muito tempo os dois
rochedos fariam guerra”.
Por fim, a referência a Aretusa. Segundo o relato de Ovídio, Aretusa era uma ninfa
marinha que, ao nadar num rio aprazível, se viu perseguida por uma estranha força que se
agitava no fundo do mesmo. Fugiu então para Terra, até que esta se fendeu, criando um
enorme túnel que a levou de volta ao mar. A referência a Aretusa naquela quadra tinha, sem
dúvida, algo a ver com a entrada de água pela terra adentro, interpretava Eugênio nas suas
aflições.
E era isto que o trazia em devastadores cuidados, ainda somado a alguma crendice
popular sobre terremotos em Novembro. Mas eis que o serviço começava e os cânticos e
louvores em latim invadiam a delicada acústica daquela capelinha de memórias perdidas.
Naquela vistosa manhã, uma azáfama religiosa instalara-se na cidade. Os seus mais de
trezentos campanários ressoavam num interminável repique às almas desgarradas. Pouco
depois, já as igrejas abarrotavam, expulsando até os mendigos das suas próprias escadarias.
De todas a mais bela, a de São Domingos no Rossio, enchia-se de gente alta que sacudia os
podengos, tal como o fazia aos pedintes, e com igual humanidade.
Ao longe, nas aforas de Santo Amaro, Eugênio sentia o troar dos sinos por entre a
leitura mística que passava por missal. Rondavam os cânticos os miserere, quando um estrondo
medonho ecoou na igrejinha. Construída sobre as rochas de uma azóia, onde um santo ermitão
vivera, a ermida resistia aos incontáveis abalos.
Com o livro a queimar-lhe as mãos, Eugênio olhava o céu, sem saber a quem culpar. Lá
em baixo, nas igrejas apinhadas, os claustros e arcadas sem sustento desabavam sobre as
almas, fazendo delas corpos mortos. Durante seis para sete minutos com dois breves intervalos,
a voracidade da Terra engolia a capital. Na aparente segurança do Alto, Eugênio assistia ao
súbito recuo do mar e ao seu inexorável regresso, em três erupções fatais. Depois viu o fogo
purificar o que sobrava.
Morreriam cinco mil, ao todo, esmagados pela Terra, arrastados pela Água e
consumidos pelo Fogo. Outros tantos se finariam sem que alguém lhes acorresse, abandonados
por entre os escombros e com as moléstias que apanharam. Pelas ruínas da cidade, devotos
sem amparo sofriam as penitências forçadas dos eclesiásticos a salvo. Absolvendo os
moribundos e abençoando os já finados, os religiosos vagueavam por entre as almas, pregando
a contrição do Rei e do Ministro, o seu culpado.
Perante a lastimosa vista, Eugênio chorava as almas, condoído pela cidade. Mas era a
perdição dos livros o que mais o derreava. Perdia-se a memória de um povo, que já não se
recuperava.
Cidade de ruas estreitas, Lisboa ficou com um terço dos edifícios por terra, e outro tanto
de arruinados. Dos que se mantinham em pé, mais de metade viria a ser aterrada aos intentos
da Reconstrução consagrada.
Por toda a Europa o terremoto de Lisboa se fez sentir, causando apreensão e tristeza,
mas alegria em dois lugares: na prisão do Limoeiro, de onde todos os vivos fugiram, e em
Veneza, de cuja prisão no Palácio do Doge o aventureiro e maçom Giacomo Casanova se
evadiu, aproveitando a queda do telhado da sua cela. Antes de saltar para a Praça de São
Marcos, proferiu a célebre frase: “Na minha situação, a liberdade vale muito e a vida, quase
nada”.
Depois, saltou.
8 - O Trianon
O ano de 1931 trazia a República a Espanha e levava Afonso XIII para o exílio,
cristalizando-se o anticlericalismo que levaria, mais uma vez, à dissolução dos jesuítas e a uma
nova expulsão do clero regular do ensino. Enquanto isso, a Áustria assistia à falência do
Creditanstalt, o seu maior banco, e via a Sociedade das Nações reprovar a união aduaneira com
a Alemanha. Na China, Mao Tsé-Tung era eleito presidente do Comité Central da República dos
Soviéticos Chineses e, já a medo do emergente nacionalismo alemão, a França e a Rússia
assinavam um virtuoso Pacto de não-agressão.
Nas artes, Saint Exupéry subia ao Olimpo com o Vôo Noturno e o mentor capilar de
Hitler, Charlie Chaplin, estreava o filme “Luzes da Ribalta”, aproveitando Picasso uma pausa
amorosa para ilustrar as Metamorfoses de Ovídio.
Nas alturas, o céu era finalmente arranhado pelo Empire State Building de Nova Iorque
e, cá em baixo, nesta lusitana ilha de mar à vante e espanhóis à retaguarda, Raul Lino
projetava a Loja das Meias do Rossio, num dos prédios em tandem da Rua do Ouro à Rua
Augusta.
Neste mesmo ano, em 15 de Fevereiro, surgia o primeiro número do jornal Avante!,
logo seguido, a 4 de Abril, pelo órgão oficioso da Ditadura, o Diário da Manhã, e em 19 de
Maio, por ordem desta, era encerrado o edifício do Grémio Lusitano, sede da Maçonaria
Portuguesa.
No preciso dia 28 de Maio em que a Ditadura passava o marco dos cinco anos de
existência, o Pepe fazia anos. Em tão infeliz data, a vontade dos convivas para festejar era
arrancada às entranhas da coragem para não desfeitear o anfitrião de sempre que, por galego
ser, lhe era indiferente quem no país mandava.
O jantar serviria também para a despedida de Otto que partia de regresso a Viena,
depois de cumprir um apertado programa, dividido entre o turismo maçônico, as noitadas com
o Ayres e a reportagem sobre a rota de fuga européia que tentava levar a cabo com o mesmo
sucesso de um russo em frente a uma garrafa de vodca.
Para os homenageados, a Rosinha tinha encontrado uma solução culinária que ambos
satisfazia: lacón con grelos que mais não era que um apropriado Eisbein à moda da Galiza.
Para entrada, beneficiava todos por igual com os seus mejillones a la marinera, uma iguaria dos
deuses, sendo o mais agradável para os comensais a anunciada gratuitidade do festejo que se
iniciava com um Xerez branco seco, tão áspero que colava a língua ao céu da boca.
O menos agradável, para além da desastrosa data de nascimento do Pepe, era a
presença escusada do seu amigo de infância, Manolo Fuentes, um galego tradicionalista nascido
em El Ferrol e declarado admirador de Benito Mussolini, fato que alardeava com orgulho. Para
este, estar em Portugal era obviar à bagunça republicana que se instalara em Espanha. E o
Pepe convidara-o para passar o aniversário em Lisboa e conhecer os seus amigos.
A custo, o jantar prosseguia por entre a respeitosa hospitalidade devida ao Fuentes d'el
Ferrol e os socos no estômago que a insensibilidade deste carlista insistia em dar sob a forma
de elogios à Ditadura.
O mais incomodado era o seu compatriota Santial, a quem o nome Juan assentava
como uma luva, considerando que desde a tomada de Granada, em 1492, todos os espanhóis
passaram a ter direito ao uso do título de Don como recompensa dos Reis Católicos pelo
coletivo empenho na reconquista. Sensato, este chamou-o cuidadosamente à pedra: ali não se
falava de política, nem de religião. Compreendida a mensagem, tornou-se o jantar um evento
quase agradável. Não tardaria e as filiações políticas do espanhol seriam da maior utilidade ao
grupo, já que se demoraria ainda uns dias por Lisboa, a admirar a Ditadura.
O Regime, como todos os regimes, odiava os jornalistas. Na sua repulsa aos
intelectuais, em breve a Ditadura se deitaria a persegui-los. E os do Pepe estavam na calha.
Ao longo daquela noite, ia crescendo uma atração que pairava como um romance. Ela,
que via em tudo uma aventura, deixava-se inebriar pelo exotismo daquele judeu com sotaque
de alemão; ele, sem pinga de sangue latino, não resistia a comparar aquela franqueza dócil à
frigidez das austríacas, para quem o enleio era como uma caneca de cerveja, só com mais
espuma e que se bebia quando nada mais havia a fazer.
Quase no fim do jantar, Otto fez um pequeno avanço, qual passo de sete léguas e
falou-lhe de Paris. Contava lá passar três dias, gozando um banho de cultura. Se ela o quisesse
partilhar... Jackie, traquina, fez-se mouca e difícil, sorrindo por dentro à emoção.
Com recomendações e despedidas de todos, Otto era mais uma vez entregue à sua
sorte e aos duvidosos cuidados do Ayres. Dois dias depois apanharia o Sud-Express, com saída
do Rossio e chegada à Gare de L'Este. Três dias depois seguiria para Viena a bordo do Expresso
do Oriente. Até lá, ia dedicar-se às suas investigações em Lisboa.
Três dias depois, Otto voltou ao fotógrafo, mas as fotos não estavam prontas. Só à
tarde, disseram-lhe com ar cansado pela incomodidade daquele cliente que não entendia o
tempo dos portugueses. Já preocupado com a data da partida, resolveu esperar, findo o que
estava decidido a levantar as chapas e dar o dinheiro como perdido.
Por mais simpáticos que achasse os portugueses, para qualificar o país, só lhe ocorria
uma máxima italiana: se non é vero, é bene trovato.
Das cartas que Cid lhe deixara, a que mais intrigava Otto era a que continha uma
misteriosa teoria acerca da relação maçônica entre o Convento de Mafra e a Baixa de Lisboa.
Por estar a ferros da Ditadura, o malogrado Irmão não tinha podido decifrar mais aquele
mistério, nem sobre o mesmo refletir com seriedade. Cabia-lhe a ele, e em memória do mesmo,
deslindar o sucedido.
Mas como chegar até lá?, interrogava-se, já bem avisado das dificuldades de um país
onde nada funcionava. E pensar em ir a Mafra de carro, depois do que passara até Sintra, era
pior do que tornar a subir à geringonça volante do Paulo. E se o que precisava era de uns
simples elementos sobre o Convento e a Baixa, talvez naquele bene trovato paese houvesse
algum organismo que o pudesse ajudar. Sem mais, ligou para a Jackie que, não podendo sair
do jornal, lhe sugeriu o Instituto Cartográfico do Exército, para o que lhe deu a morada.
Conselho naif ingenuamente seguido com a primeira conseqüência de não ter passado,
sequer, da porta. Cartografia militar, interrogava o oficial, num francês desdentado, logo o
inquirindo ferozmente sobre quem era, o que fazia e onde estava hospedado.
Sentindo-se como em casa, Otto recuou a pretexto de um mero engano e foi curar o
suor frio na primeira tasca da esquina, com uma zurrapa bem forte e servida à portuguesa.
Mal composto, ligou à Jackie a contar o sucedido. Ainda incrédula, desembaraçou-se dos
afazeres e foi ter com ele ao Palace. Tinha outra idéia peregrina, o Instituto Cartográfico e
Cadastral, ali à Estrela, e que sabia ser depositário de uma imensa cartoteca recuando ao
século XVIII. Tinham lá tudo e haviam de lhe dar!, exclamava numa lógica de razão que não se
compadecia com a realidade em Ditadura.
Mas a sorte estava a mudar. Ao dizer que era para um artigo sobre Pombal, num ápice
tinham cópias de tudo, e até do que não necessitavam. Acresceu ainda uma gentilíssima
recepção que deixou Otto meio assarapantado com as variações humorais dos portugueses.
Resolvido o assunto, ela zarpou para o jornal e ele acolheu ao hotel, onde um paquete do
fotógrafo o aguardava com as relapsas fotos na mão.
Num arrepio maçônico, pôde comprovar a profundidade do que fora construído e a
audácia com que o fora e, ante o tempo de que não dispunha e o saber que lhe faltava, pensou
no pai Oskar, em casa, com excesso daqueles dois elementos essenciais. Remeteu então as
fotos pelo serviço postal aéreo que, via Londres, chegava a Viena num ápice.
No dia da partida e mal a estação abrira, Jackie apresentou-se na bilheteira fazendo a
sua reserva no Sud. Depois, dando três passos apenas, franqueou a porta do Palace em busca
do pequeno-almoço e ao encontro da aventura. À mesma hora, Otto entrava no Hotel, quase
passando por ela. Confuso e receoso, ao vê-la de malas na mão, conversou de circunstância.
Tinha ido buscar umas fotos que tinha deixado a revelar e que já quase desistira de obter.
Chegada a hora do trem e com um sorriso arisco, Jackie chamou um maleiro. Era uma
das vantagens do Palace, estar portas meias com o Rossio. Indicada a gare, lá foram escada
acima, trocando trivialidades como viajantes acidentais que se cruzam numa qualquer estação
do mundo.
O Wagons-lits, inaugurado em 1906, era o luxo nacional. Instalados em cabinas
singulares, reencontraram-se no restaurante, aguardando a partida. Jackie, pela primeira vez
naquelas andanças, estava em plena emoção. Otto, não fora a presença dela, preparava-se
para mais uma enfadonha sucessão de apitos abanões e fumarada, até chegar a Paris.
A viagem passou-se em intelectual deleite com uma qualidade comum a ambos e rara
no ser humano: a de saber, também, ouvir. E por entre rasgos e travessuras, chegaram
finalmente a Paris, onde Otto a ia iniciar nos meandros da Cidade Luz.
Depois de se instalarem no novíssimo George V, prepararam-se para três dias de êxtase
cultural. Ao segundo, optaram pelo Museu de Versalhes que, explicava Otto, se ligava ao tema
“Pombal” já que a decapitada Maria Antonieta, mulher de Luís XVI, era também austríaca e filha
do Imperador germânico Franz de Lorena, Grão-mestre da Maçonaria, que em 1745 iniciara o
então embaixador em Viena.
Como a Jackie, de aventais, só conhecia os de cozinha, ficou Otto a meio da história e lá
foram andando pela ala esquerda do Grand Trianon, na insistente procura dos aposentos de
Maria Antonieta, já que Otto tanto falara dela. Mas algo lhes cativou a curiosidade logo na
primeira sala: estava repleta de quadros de Luís XV, o neto do Rei Sol e construtor de
Versalhes, dito o Bem Amado. Era Luís por toda a sala, da nascença até à morte, passando pela
já lúcida idade em que rejeitara a Infanta de Espanha, depois Rainha de Portugal. Pelas contas
de Otto, fora também o Rei de França que perpassara todo o consulado de Pombal e de quem
o Duque de Choiseul, amigo e Irmão maçom do Marquês, fora primeiro-ministro.
Jackie, que conseguia falar, fumar e olhar em três direções ao mesmo tempo, percorria
os quadros sempre mais interessada no seguinte, numa atitude perante o saber que deixava o
paciente Otto atônito e circunspecto. Por vezes, a circunspecção perde para a irrequietude e,
num encontrão que quase o precipitava contra" o visitante da frente, Jackie dava conta de um
quadro que lhe parecia familiar. De fato, aquele quadro parecia ter alguma reposição de
motivos de um outro, o mais famoso do Marquês, intitulado “A Expulsão dos Jesuítas”, cuja
gravura Cid lhe enviara, em tempos. Antes que ele o entendesse, já ela lhe cobrava a
descoberta com uma opípara entrada de foi e Bras regado com Sauternes, ao jantar.
Intrigado com as semelhanças, Otto identificava o pintor como o judeu holandês, van
Loo, o mesmo autor do quadro de Lisboa. No entanto, e num pormenor de minúcia, notou uma
disparidade que lhe confundiu o espírito. O quadro de Louis XV tinha inscritas as iniciais J. B. e,
segundo se recordava, o quadro do Marquês estava atribuído a um tal Louis-Michel van Loo,
cujas iniciais eram, precisamente, L. M., e não J. B.
Entreolhado com a discrepância, procurou no catálogo da exposição alguma referência
que o ajudasse. Pelas obras expostas, verificava que afinal não havia dois, mas sim três, senão
quatro van Loo! Um, Louis-Michel, outro, Charles André, que assinava Carle van Loo e o pai do
primeiro e irmão do segundo, Jean-Baptiste, todos descendentes de um outro conhecido mestre
de pintura judeu-holandês, Jacob van Loo.
Pelo curriculum de Jean-Baptiste, Otto podia verificar que vivera na corte de Jaime II de
Inglaterra, na mesma época em que o futuro Marquês assumia a sua enviatura a Londres.
Talvez até aquele fosse mesmo um pintor judeu “com nome de João Baptista”, ao qual o
enviado se referia em algumas cartas particulares, pensava Otto, recordando-se de algo que
tinha lido provavelmente nas pesquisas de Cid. Sem surpresa, constatou pelo resumo da
exposição que o pintor fora assumidamente membro da maçonaria, o que fazia todo o sentido,
pois apenas um pintor iniciado poderia produzir uma obra com a envolvente simbólica daquele
quadro de Louis XV.
Sendo este rei considerado como o Grande Maçom de França, título que disputava a
outro tão grande como ele, o seu Primeiro-ministro e Duque de Choiseul, tudo se conjugava
para que o simbolismo do quadro tivesse a sua complacência, tal como o de Lisboa tivera a do
seu retratado.
Contente por ter descoberto dois quadros tão distantes com tamanho decalque de
motivos, Otto não deixava de sentir algum desconforto por algo que lhe parecia escapar. Numa
pausa, olhava o teto refletindo sobre aquela sensação, quando os frondosos frescos ali pintados
lhe aplacaram os anseios. Era o fresco!, quase gritava para Jackie, era o fresco “Concórdia
Fratrum” do Templo do Marquês! Mandado pintar por este num teto do seu palácio de Oeiras, o
fresco permanecia sem autor atribuído, sendo certo que não poderia ser J. B. van Loo, pois este
teria falecido em 1745 e o palácio, como todas as construções do Marquês, seria posterior ao
terremoto de Lisboa, pensava Otto, algo baralhado com as datas, que Jackie logo esclareceu.
Estava assim encontrado o autor do fresco maçônico retratando os três irmãos Pombal. Era o
judeu Louis-Michel van Loo, o mesmo que pintara “A Expulsão dos Jesuítas”, e que acolhera em
ambos o chão simbólico original do pintor maçom, seu pai, patente no quadro de Louis XV, em
Versalhes.
Depois de passar por todos os quadros e com o humor que lhe dava vida, Jackie
escolhia três, de Carle van Loo, distribuindo-os pelas preferências do displicente D. José I e do
místico e infiel D. João V. A este atribuía o enigmático “Ennea”, bem como o convenientíssimo
“Sultão a dar um Concerto à Amante” e, àquele, a “Pausa durante uma caçada”. E Otto pairava
enleado.
9 - Os 13 Graus
Após o terremoto, as barracas de lona ou de madeira, seguras por não ruírem e na sua
maior parte importadas da Holanda, transformavam-se em sinal de grandeza, oferecendo até
mais qualidade que as antigas e desconfortáveis habitações de pedra da Lisboa destruída. Esta
assemelhava-se agora mais aos escombros de um paiol onde alguém ateara um rastilho e ficara
a olhar para ver no que aquilo dava.
Pelo menos, com o desastre da água e do fogo pareciam também ter ido as pulgas,
piolhos e baratas que infernizavam a vida dos habitantes da capital, sendo ora mais fácil
fumigá-los nas arejadas lonas do que na encafuada pedra antiga.
Só a segurança piorara. Com a exceção da populaça que não tinha onde cair morta sem
incomodar outro que já lá estivesse, ninguém saía à rua só e desarmado.
As guardas pessoais e a criadagem aperrada faziam parte do coletivo urbano até ao
anoitecer; depois, só mesmo os cães e os vadios.
Era quinta-feira o dia de despacho ministerial no abarracamento da Ajuda. Após os
irrisórios procedimentos e a entrega da correspondência amorosa, o ministro, frente à rainha,
trazia à atenção do Rei a habitual reunião de domingo em casa do Supremo Arquiteto, Carlos
Mardel.
Fazendo uma inventiva descrição das novidades arquitetônica esperadas para essa
noite, todas da suposta autoria do mui crente Manuel da Maia, Pombal deixava a devota Rainha
apenas com meia dúvida sobre a utilidade da escapada noturna. Da outra meia, fazia esperança
de um dia a tirarem daquela maldita barracaria para uma casinha de pedra e cal, pois já tinha
assez de vida ao ar livre.
Mal sabia a espanhola que, nos fundos da casa de Mardel, fora aparelhado um
conivente ninho de amor para os josefinos dispêndios com a marquesinha de Távora. El-Rey
tornara-se assim, “desinteressadamente”, o Grande Patrono da maçonaria e seu segundo
protetor.
A Maçonaria, essa misteriosa Ordem, encontra a sua mais recente origem no século XIV,
fruto de uma maior concentração de construtores de catedrais em Inglaterra. Estes artistas da
pedra ou maçons operativos, que competiam entre si para erguer as mais belas e mais altas
igrejas, reuniam-se em locais a que chamavam Lojas, sem que se reconheça com rigor a
origem desta denominação.
A partir de 1425 e na seqüência de um decreto de Henrique VI, limitativo dos seus
direitos de reunião e associação, estes detentores de magníficos segredos viram-se coagidos a
abrir as suas Lojas aos poderosos a que chamavam maçons aceites, por da arte nada saberem.
E com eles partilharam segredos, rituais e fórmulas que tinham recolhido e organizado ao longo
da séculos.
Por volta de 1599 já os maçons aceites ou especulativos ultrapassavam os genuínos e, setenta
anos depois avassalavam-nos, deixando-os reduzidos a um terço do total de membros das
Lojas, ainda que o seu número absoluto não decrescesse. Mais cinqüenta anos volvidos e as
Lojas tornavam-se meramente especulativas, tendo em 1723 recebido um conjunto de regras e
orientações escritas, denominadas Constituições de Anderson em honra de um dos seus
redatores.
Estas Constituições inspiraram-se em documentos tão antigos quanto um pergaminho
de três folhas em latim, vulgarmente conhecido como Estatutos de Bolonha, datados de 1246 e
os Estatutos de Estrasburgo, de 1563. Por outro lado, em 1614 surgia um manifesto de uma
Ordem germânica denominada “Rosa-Cruz”, o qual encerrava uma linguagem apocalíptica ou
de revelação e que, ao contrário das regiões católicas, encontrava terreno fértil e facilidades de
expansão na Europa protestante.
Sob a máxima “Qui arcana revelat mortem querit”, “Aquele que revela os segredos
procura a morte.”, a ordem Rosa-Cruz professou um tal secretismo que chegou a gerar dúvidas
acerca da sua existência como Fraternidade organizada. De aí o epíteto de seita, mais comum
de encontrar na sua designação.
Os Rosa-Cruz sempre viveram entre os homens, mas nunca se dando a conhecer ou à
sua forma de organização. E quem não respeitasse o segredo, procurava a morte.
Em Portugal, a maçonaria viria a implantar-se nos meados do século XVIII, pela mão
dos estrangeiros residentes, em negócios ou funções diplomáticas. A sua consolidação ficar-se-
ia a dever aos estrangeirados, epíteto dos portugueses com formação européia e iluminada,
adquirida pelo especial contacto com países como a Inglaterra, França, Holanda, Alemanha e
Áustria. Em Viena, capital desta última, viveu e casou Sebastião José de Carvalho e Mello,
futuro Marquês de Pombal, que aí desempenhou as funções de embaixador até 1749. Em 1745
fora admitido na maçonaria austríaca pela mão do próprio Imperador e Grão-mestre, Franz de
Lorena, de quem se tornara amigo e parente por casamento.
Já formado no Império das Luzes, Sebastião José regressara imbuído de um duplo
desígnio: primeiro, o de assumir a cadeira do poder no reino, contando com a protecção da
Áustria Imperial; segundo, o de instalar em Lisboa a Obediência maçônica austríaca, sob a
forma de uma secretíssima Loja Fênix, ocupando ele próprio o Trono de Salomão.
Reunidos na Rua do Cabra, ao Bairro Alto, num prédio que sobrevivera semi-incólume
ao terremoto e que o ministro fizera seu, os membros da Loja austríaca de Lisboa iam começar
a planear a Reconstrução que se queria obra única, no âmbito da Maçonaria Universal.
Presentes, para além do Venerável Marquês e do arquiteto Eugênio dos Santos,
encontravam-se Paulo de Carvalho, irmão daquele e Inquisidor-geral, os ministros Martinho
Mello e Castro e Luís da Cunha Manuel e ainda Jacôme Ratton, o rico industrial judeu.
Marcavam também presença os embaixadores da Áustria, das Potências Alemãs e seus
respectivos secretários de Legação e ainda Gottlieb Fuchs, o capitão dos Arqueiros Reais. Para
além destes, apenas um restrito número de eleitos era admitido aos mistérios daquela
secretíssima Loja, entre os quais um alemão beneficiado com o impronunciável nome de
Kevenhüller e dotado de uma mal disfarçada mouquez.
De rompante, Carlos Mardel entrava no Templo, depois de uma arriscada volta pelas
ruínas da cidade. Havia um probleminha com as igrejas, ditou com ar de incredulidade: São
Domingos não caíra! O transepto estava intacto e o altar-mor nem abanara...
Mas como?, estarrecia o Mestre, pensando que já não se faziam terremotos como
dantes e recordando-se da extraordinária devastação de 1531, provocada por igual confluência
de um tremor com um macaréu. Aí sim, não tinha sobrado uma única igrejinha. E este ia logo
deixar de pé a mais emblemática e devotada de Lisboa?, interrogava-se, já antevendo a gritaria
de “milagre, milagre!”, pela garganta da populaça. Era um escolho na Reconstrução. E deitá-la
abaixo nem pensar, que o povo se rebelava, esclarecia o Irmão Eugênio, plácido com aquela
salvação.
O Mestre pedia explicações e o arquiteto da má notícia, para desanuviar o ambiente, lá
ia dizendo que, ao menos, a fachada não resistira. Sempre podia levar uma maçônica, mas o
problema estava nos claustros, cuja forma de cruz latina sobrevivera sólida que nem o rochedo
do Gólgota. E logo a que mais merecia, reclamava indignado um dos Irmãos cuja devota
mulher lhe estafava os cabedais no esmoler de São Domingos, o prior Francisco de Aguiar.
Este, conhecido por dilapidar as esmolas ao jogo, em casa da Condessa do Redondo, era
acusado de ter aberto uma botica num dos prédios do Rossio.
Ao menos ardera?, perguntava o Mestre em desespero. Nem por isso, respondia Mardel
em suave tom de mística que contagiou a Loja toda. Ao melhor, era deixá-la assim, rematava
Eugênio, a ver se salvava algum dos seus diletos lugares de culto.
De rápido pensar e melhor agir, o Mestre chamou Mardel e deu-lhe duas instruções em surdina.
A segunda era para não deixar Eugênio conhecer a primeira: iam modificar o Rossio.
Abertos os trabalhos, foi então dada a palavra ao Irmão Eugênio, adiantando este que,
pela confluência das ribeiras de Vale de Pereiro e de Arroios com esteiro do Tejo, havia que
encontrar uma solução de engenharia para os suster e desviar da baixa da capital ou, em
alternativa, para os manter e obviar. Propunha ele a construção da cidade em cima de
plataformas lacustres assentes no firme.
Após um reflexivo silêncio em que iam olhando o Mestre, logo a idéia de fazer de Lisboa
a maior estrutura de palafita da Europa deu brado na Loja. Que grande realização, aclamavam
os mestres eivados do complexo de Salomão.
Por entre os veneráveis silvados e as fraternais gritarias, o famoso sistema de votação
por bola branca e bola preta resolvia, mais uma vez, a questão: fez-se como o Mestre queria e
ninguém se atreveu a contar.
Lisboa ficou assim lacustre e assente em estacas de pinho verde, mergulhadas na água
doce do caudal dos rios subterrâneos, numa estrutura capaz de durar por mais de quinhentos
anos sem necessidade de reparação.
Assim se faria, na imprevisão de futuras secas climáticas que drenassem os veios de
água, fazendo apodrecer o pinho verde ou que o fizessem carcomer pela subida do teor do sal
no próprio Tejo. Tudo impensável para aqueles pensadores, cujos estudos da época
registravam uma média de 111 dias de chuva por ano.
Finda a obediente votação e resolvida que estava a engenharia com o recurso às
plataformas de pinho para assentar os prédios da Baixa, logo o Irmão Eugênio voltava à
arquitetura que transformaria Lisboa numa ode à maçonaria. Propunha aquele a estruturação
da cidade sob a forma de um Templo. Para tal, em sua opinião, haveria que realinhar a cidade
abandonando o arcaico traçado em “Y” criado por força das linhas de água e optar pelas mais
perfeitas linhas do esquadro maçônico.
Mais um aplauso geral, seguido de votações sem conta.
No fim, a localização precisa: 38 graus e 42 minutos de latitude Norte e 9 graus e 8
minutos de longitude Oeste, segundo as regras do observatório de Greenwich, fundado no
reinado da portuguesa Catarina, Rainha de Inglaterra, tia-avó de el-Rey D. José. Tudo muito
bonito, pensava o Mestre já com a pele de raposa eriçada. Bonito de mais para o seu gosto,
repensava à procura do maldito encriptamento que andava ali, por certo.
Quanto aos segredos maçônicos, havia dois métodos da sua inclusão arquitetônicas e
artística, ambos com origem na construção de catedrais. O primeiro, que deliciava o Mestre, era
o da subtil exposição da simbologia adornada com uma óbvia explicação profana, para labrego
ouvir.
O segundo método, denominado de cripto-maçônico, era o preferido dos Irmãos
Arquitetos. Constava de uma dissimulação que não dava margem para descobertas, onde os
segredos morriam com eles e durariam uma eternidade.
O entretém dos Arquitetos, tanto era vez como se superavam um ao outro, encriptando a
simbologia maçônica quanto, juntos, a conseguiam ocultar do Venerável Marquês o qual, bem o
sabendo, se sentou incômodo no trono de Salomão, deitando-se a fazer trancinhas com os
canudos da cabeleira. Uma rotação de 13 graus criando uma cidade que iria ficar marreca a
partir do Rossio?, instava-se o Mestre, coçando a peruca com a pulga atrás da orelha. Já
pensava em tudo: curva, recurva, marreca... seria obra do compasso, a corcunda descabida?
Guindou-se então à palavra e esmifrou uma pesada interrogação. Com autorização de quem
iam proceder a trabalhos reservados ao Grão-mestre?
Os outros, percebendo menos que nada, interrogavam-se sobre o que teria o Grão-
mestre da Áustria, Imperador Franz de Lorena, a ver com a arquitectura de Lisboa. O Mestre
recostou-se com mais uma pasmada vitória sobre a ignorância. Confiante, não contava com o
austríaco e seu habitual contendor Carlos Mardel, o Irmão Arquiteto que acorria, mais uma vez,
em defesa do correligionário Eugênio.
“Eram os graus”, murmurou sem que alguém o entendesse direito. Era a rotação de
graus, atreveu-se com o seu sotaque austríaco a ver se a penumbra clareava na mente dos
Irmãos. Nada, nadinha. Só o Mestre se remexia na cadeira, percebendo que tinha sido
alcançado no saber. E antes que Mardel brilhasse, qual cutelo, falou num agudo tom de
apokalypsis, a forma grega de revelação. Ditavam então os ritos que os aprendizes e
companheiros trabalhassem apenas linhas retas, com o esquadro, símbolo da matéria, e os
mestres as linhas curvas com o compasso, símbolo do espírito. Mas havia algo com que nem
uns nem outros podiam trabalhar, o transferidor, símbolo do Grão-mestre, juntamente com o
compasso. Ora, adiantava o Mestre, se Eugênio queria rodar o eixo da cidade, tal implicava o
uso do transferidor para medir os graus de rotação. E isso só o Grão-mestre ritualmente o
podia fazer. Assim, se queriam manter a sacralização da nova obra, havia que mandar uma
exposição sumária da articulação do espaço para a Áustria e obter o anuimento do Imperador.
Era assim que se fazia, explicou arrumando a questão antes que alguém se atrevesse a
propor mais uma espúria votação.
A terminar, perguntou a Eugênio afinal qual era a rotação projetada, obtendo uma
cabalística resposta: 13 graus.
Andava a discussão a desenho de compasso quando tudo desatou a tremer. Qual trovão
de Zeus mal-humorado, o chão fazia-lhes chegar mais um aviso da Terra. À volta, os adereços
de Loja caíam e o pavor estampava-se no rosto dos Irmãos. Tombados uns, fugidos os outros,
mais pareciam coelhos na toca com a Raposa à espreita.
Dois minutos depois, uma acalmia de morte. Era mais uma réplica e os irmãos,
timoratos, recobravam a postura ajeitando as perucas esvoaçadas. Até o ímpio Mardel se via
atacado de uma súbita fraqueza mística, que o fazia recordar Santo Alexius, o patrono contra
terra motus, venerado na Boêmia e na Áustria Imperial.
Do quarto dos fundos surgia el-Rey descomposto, tentando encobrir os pudores da
pueril marquesinha. Pela vida, todos se tinham esquecido dos amantes de boudoir em socorro
dos quais o Venerável logo saltou, procurando descansá-los com um dúplice “Já passou e não
volta mais...”, empurrando em seguida a assustada realeza corredor adentro, de volta ao
Olimpo do amor perdido.
Resolvido o problema, criando talvez outro, o Mestre regressava para, a todos os
pretextos menos um, dar por finda a sessão estraçalhando o ritual.
Informalmente, ficava o Irmão Eugênio encarregado de elaborar a carta “soli”4 com o pedido
de autorização Para os exclusivos olhos do maçom destinatário.
10 - Sigilum Lutheri
Naquele dia, com receios e cautelas, a mãe Ruth tinha ido ao correio levantar a
correspondência, no que se tornara um hábito criado por força dos carteiros austríacos, que se
recusavam a entregar o correio nos bairros judeus, em especial no Judenplatz onde os Lenndorf
residiam. Entre várias cartas contendo ameaças sem remetente, vinha uma do seu dileto Otto,
com carimbo de Paris.
Oskar, que já questionara a delonga, regozijou com a chegada. Talvez lhe trouxesse
algo de novo. E trazia. Mal pegou no envelope, logo entendeu que ali não vinha só carta. Com
redobrado interesse, abriu-o, logo se desiludindo ao deparar com umas fotos que lhe
pareceram de mero interesse turístico e que prontamente entregou a Ruth, a fim de poder
devassar a carta. Mal tinha passado o primeiro parágrafo, já ouvia um queixume judaico,
seguido de uma recriminatória interrogação: igrejas e mausoléus, para ela? Como se duas
palavras mágicas ouvira, Oskar trocou as ditas pela carta, redobrando a atenção. Ali havia
coisa, e não era turismo, afinal.
Ao olhar para a primeira foto aérea, Oskar resplandecia. Ali estava a Rosa e a Cruz, tão
nítidas como se desenhadas em papel. Aquela forma do símbolo Rosa-Cruz acabava de o deixar
entre a intrépida sabedoria maçônica e o plácido saber dos Illuminati, já que os Rosa-Cruz
ficavam numa zona cinzenta de conhecimento entre ambas as Ordens iniciáticas.
Com raízes num eclectismo doutrinário de Paracelso a Campanella, e uma inspiração
alquímica e cabalística, a seita Rosa-Cruz deve proximidade quer à maçonaria, quer aos
Illuminati, por via dos seus elementos mais dedicados ao ocultismo. A sua doutrina secreta
assentava no um original. Tudo se resumia à unidade, ao um, no princípio, no meio e no fim,
ao contrário da maçonaria, em que o três predominava.
Oskar sabia que em meados do século XVII, quase cem anos antes de a maçonaria
especulativa se desenvolver na Europa continental e muito antes do surgimento dos próprios
Iluminados de Avignon, percursores dos Iluminados da Baviera ou, simplesmente, Illuminati, já
os Rosa-Cruz invadiam as Lojas operativas como maçons aceites. Sabia também que, segundo
a tradição, os Altos Graus da maçonaria teriam surgido nas Lojas escocesas para servir o
esoterismo rosacruciano. Recordava, a título de exemplo, que até o sinistro Dr. Guillotin, triste
inventor da célebre guilhotina, era um devotado Rosa-Cruz. Mas no caso daquela igreja, tanto
saber parecia servir de nada. Por que razão teria o Marquês construído um memorial Rosa-
Cruz? Nada parecia indicar que fosse membro da seita. Bem pelo contrário.
A fraternidade da Ordem Honorável da Rosa-Cruz tinha a sua remota origem num
escrito anónimo publicado em 1614, em Cassel, na Alemanha, sob o título Fama Fraternitatis
Rosae Crucis. De anónimo rapidamente passou a apócrifo com a atribuição da sua autoria a
Johann-Valentin Andrae, um conhecido teólogo luterano que terá ido buscar inspiração ao
Sigillum Lutheri, o selo pessoal do próprio Martinho Lutero.
Floresciam assim os Rosa-Cruz, como uma forma de Protestantismo em que um dos
objetivos era combater a “tirania papal”.
Andrae dera assim vida a um personagem de seu nome Christian, ou Cristão,
Rosenkreuz, termo germânico para “Rosa-Cruz”. Este cristão Rosa-Cruz teria vivido nos finais
do século xv e trazido a verdadeira Sabedoria do Oriente para o Sacro Império Romano-
Gemânico onde, 250 anos após a sua morte, chegaria a Imperador o Duque Franz de Lorena,
Irmão e protetor do Marquês.
Concentrado na força da História, Oskar prosseguia o seu raciocínio com recurso a algo
mais do que a sua prodigiosa memória. Na biblioteca da casa, a quantidade das obras era
apenas assoberbada pela qualidade da arrumação. Que estava lá tudo, bem o sabia, mas
encontrá-lo obrigava-o a pedir ajuda à mãe Ruth, a única que ia tendo alguma idéia onde esta
ou aquela obra pudesse estar acantonada. Não tardou esta a encontrar o livro sobre os Rosa-
Cruz, que Otto procurava e que fora escrito por um dos primeiros Rosa-Cruz alemães, de nome
Komensky, vulgarizado como Comenius. Fazendo o que todo o bom leitor faz, deitou a sua
curiosidade à contracapa para logo emudecer. Acabava de descobrir onde o arquiteto do
Templo Rosa-cruz de Lisboa se fora inspirar para o construir.
Ao folhear o livro, os seus olhos acutilavam-se perante um nome ali inscrito: Conde de
Falkenstein. Os seus pensamentos retrocediam à Ata da maçonaria austríaca, datada de 1745
em Viena, e que dera origem a toda a investigação sobre os antecedentes iniciáticos do
Marquês. Sem mais, Oskar procurou o palimpsesto com os apontamentos do seu filho sobre
aquela Ata perdida no incêndio de 1927 do Palácio da Justiça em Viena.
A emoção voltava a encher aquela fumarenta sala, relembrando os tempos de parceria com os
demais elementos dos Quatuor Coronatí, os sábios eruditos em história da maçonaria. De todos
restavam apenas dois, já que os outros, avisadamente, tinham abandonado a Áustria em busca
de paragens mais livres e com passagem pela cidade do Marquês.
Já com a Acta à frente, confirmou que, além do então embaixador português em Viena,
sob o pseudônimo de Philon, surgia o Conde de Falkenstein que os Coronati tinham concluído
ser um criptônimo do próprio Imperador. Falkenstein era uma pequena possessão herdada de
seu pai, o Duque Leopoldo de Morena. Rendia-lhe aquela um título nobiliárquico secundário,
usado por si em Loja como alternativa ao pseudônimo, que era de menos para um
Grão-mestre, e em subterfúgio ao próprio nome, que era de mais para um Imperador. Assim o
impunha a necessidade de equilíbrio entre a discrição externa e a exposição interna do
Imperador.
Mas a referência que acabava de encontrar no livro atribuíra-lhe o título rosacruciano de
“Muito Ilustre e Sereno Príncipe e Pai dos Filósofos”, um título que vinha do Bispo-príncipe de
Treves, precisamente um ancestral Conde de Falkenstein. Queria isto dizer que, não só o
Imperador trazia ligações aos Rosa-Cruz, como estas eram de tradição familiar.
Estes fatos apenas tinham relevância por dizerem respeito ao Imperador, já que sempre
houvera Rosa-Cruz entre os maçons, como os havia Illuminati. Parecia juntarem-se todos ali.
Tinha agora mais uma pedra rosacruciana na catedral maçônica austríaca e, como tal, em mais
uma possível influência sobre o Marquês de Pombal.
11 - A Bula Imperial
12 - O Emplumado
Estava uma noite quente de Junho que fazia sonhar com Sintra. No Pepe, cada vela era
um tição e uma aragem era um luxo simples a que ninguém se podia dar. Fresquinho, o branco
da Arealva escorria a cântaros pelas goelas ressequidas dos convivas. Para matar o bicho, o
Pepe propunha um gazpacho andaluz com “mãozinha” galega que, pela descrição, mais parecia
do Alentejo. Depois uma ropa vieja precedida de uma tortilla de batatas à mais completa
descrição, pois batatas e ovos era o que ainda fartava na praça da Ditadura.
A conversa começava, na espera, com um fait divers: o caso do Alves dos Reis, que
nesse dia vira confirmada a pena de prisão de oito anos pela maior burla da História de
Portugal e, dizia-se, de toda a Europa civilizada. Como alternativa, relatava o Ayres que estivera
em reportagem no local, ter-lhe-iam oferecido o degredo por vinte e cinco anos, algo que
aquele terá recusado, afirmando “antes preso na terra que solto e desterrado”, citou.
Para uns, à mesa, era como um herói, pois que abanara a Ditadura quase até à queda.
Para o Ayres, merecia uma medalha, já que fora o inventor desse grande instrumento
financeiro chamado desvalorização da moeda, o que todos os governos passaram a fazer.
De fato, como fait divers, o caso Alves dos Reis não era um acontecimento, em si. Antes
era uma narrativa, uma forma de contar um acontecimento feito quase romance, e mais este
do que aquele. Mas, para conversa de almanaque, era ideal. E estando esta já composta,
entrou o Zuzarte alfarrabista amparando uma apocalíptica pilha de livros, antigos segundo ele,
simplesmente velhos, segundo os outros que reclamavam daquela intrusão de traças e cheiro a
mofo.
Foi preciso verem a triunfal quantidade de primeiras edições, nacionais e estrangeiras,
para lhes passar o bafio intelectual. O adeleiro, como lhe chamavam para o irritar, excedera-se.
Resgatados às entranhas do seu adelo, ali estavam segredos e mistérios das catedrais, dos
Rosa-Cruz, da Maçonaria, dos Illuminati, em suma, tudo o que a Ditadura andava entretida a
arrebanhar ou a proibir.
Como era traço da Ditadura prender intelectuais, a que pretexto fosse, mal o viram
chegar trataram de disfarçar os livros com tudo o que os cobrisse ou que em cima se lhes
sentasse.
Com a pontualidade de um relógio Roskoff, chegava o estoira-vergas do Regime ao
volante do seu Hispano-Suiza, adquirido por uma bagatela ao próprio Alves dos Reis. Era o
Álvaro Tição, que vinha do Teatro da Trindade, onde tinha ido ver a comédia “Sua Alteza”, de
Ramada Curto e trazia uma piadinha Desculpando-se pelo atraso, comparava as suas
constantes desoras à pontualidade de pagamento dos portugueses que também era orientada
por um relógio de bolso Roskopf, mas com atraso constante ou mesmo parados e ao qual se
davam palmadinhas suaves para andar. E dito isto, olhou em volta pensando se não teria
algumas palmadinhas em atraso ali no Pepe.
Foi então interrompido pela entrada extemporânea do Costa Ruivo, que entrara pela
porta de trás, fugindo aos esbirros da P.I.M.I., a polícia política a quem ele chamava de Pim's,
em homenagem ao seu cup inglês preferido. Era aquela recorrente mania de ser oposição que
o fazia andar com a polícia à perna, algo que para os confrades do Pepe, raiava o
incomodativo.
Alegravam-se, por isso, de o ver chegar pela porta das traseiras. Era sinal que fugira aos
esbirros e que se podia jantar sem uns quantos pares de olhos a fitá-los noite fora.
Mas havia quem se divertisse na inconsciência do perigo. Para o Tição, qualquer sicário político,
pançudo e de bigode, a espiá-los num restaurante, era um tremendo divertimento que só
acabava quando alguém ia dormir ao xilindró pelo simples fato de ser do contra; e ali eram
todos do contra... Só o Pepe é que não sabia contra o que era; mas, se todos eram...
Nem pausa fizera quando o Pepe surgiu alheio e sorridente com a tortilla de batatas
que, pelo tempo que demorara, já devia ser de ovos moles.
Os encontros no Pepe davam para tudo e tinham-se tornado uma espécie de jantares-
almanaque, em que se falava do que interessava com tanto prazer quanto o que não tinha
interesse nenhum. Neste espírito e como que reunidos em Symposium, os íntimos encontros de
bebedores da alta sociedade na Grécia antiga, o Ayres traçava, a despropósito, o rumo do vinho
desde a antiguidade. Passando pela Península Ibérica, já então território de grandes bebedores,
até à pena de morte pelo delito de beber, equiparável ao adultério e aplicável às mulheres de
Roma, o Ayres falava e bebia. Para terminar e a propósito do estado ébrio, ou quase, em que
todos sempre dali saíam, chamou a atenção para as teorias aristotélicas sobre a queda.
Ante a interrogação sobre o que teria Aristóteles a ver com as bebedeiras, explicou que
aquele filósofo defendia que o bêbado de vinho tendia a cair para a frente; o de cerveja, para
trás. Do espanto geral, saiu a necessidade de demonstração. Mandaram vir mais uma rodada e
foram para a porta ver para onde davam as quedas.
Confirmadas as previsões, regressavam à mesa quando de rompante surgia o Rodrigo
Valverde, amigo da Jackie e que todos conheciam de sua casa. Ufano, produzia não mais do
que umas guturais exclamações sobre a polícia que ninguém entendia e muito menos
espantava já que, presente o Costa Ruivo, tinha de haver polícia. Qual seria a novidade?,
interrogavam-se todos, ante o desespero do Rodrigo que tentava, a custo, recuperar da
tremenda corrida que dera até ali.
E como para males portugueses, remédios espanhóis, surgia a Rosinha com uma
aguardente que acabava de queimar para “o esconjuro das bruxas”, o ritual galego de fim de
jantar no Pepe. Surpreso com a beberagem fervente, Rodrigo reagiu à primeira: era a Jackie!
Tinha sido presa na fronteira, ao regressar de Paris. Acusavam-na de viajar com um espião!
Pobre Otto, pensaram todos de imediato. Agora, era espião! Só aquela Ditadura, para ver
espiões em cada esquina. E alguém via um espião assim?, perguntavam-se ainda em choque,
por entre a má notícia e o seu absurdo fundamento.
Apenas o Álvaro Tição metia ares de céptico. Mas o momento era de agir e, com o
Fernando sem chegar, não seria fácil encontrar quem fosse à procura dela e a tirasse de lá para
fora. O desespero instalava-se paredes meias com a sensação de impotência, até que el Ferrol
segredou algo ao ouvido do Santial. Pedia-lhe, sem explicar, que lhe dessem duas horas. Ante
tão desabrida proposta, todos tentaram demovê-lo, avisando-o que aquela Ditadura não era
como ele pensava e ainda lá ficava, também. Indiferente, o Manolo insistia. Estava determinado
e parecia saber o que fazia. A um gesto de Santial, todos se sentaram e o espanhol lá foi porta
fora, deixando uma sorumbática mesa para trás. O Regime, como todos os regimes, odiava os
jornalistas e aquilo era só mais um sinal.
A bem da preciosa liberdade, o Juan Santial citava um trecho literário do seu promissor
amigo poeta e Dâmaso Alonso: “Qué hermosa eres, Libertad. No hay nada que te contraste”. E
a comoção instalou-se naquele pungente jantar.
Poucos minutos depois, chegava finalmente o Fernando, que tinha vindo a Lisboa
defender o seu próprio irmão, outro reviralhista preso durante os tumultos de Abril. Inteirado
do sucedido, já ia de novo porta fora, quando foi aconselhado a esperar. Eram só duas horas
que el Ferrol pedira. Se até lá não houvesse sinal, iriam todos, então.
Desterrado em Angola durante quase dois anos, por conta das suas atividades
maçônicas e republicanas, o Fernando regressara de cabeça erguida e com a mesma
frontalidade de sempre. Assim se tornara num dos poucos advogados que, sem medo,
enfrentavam a Ditadura na barra dos tribunais. No seu relato do dia e para animar os presentes
ante o caso de Jackie, deixava claro que os torcionários políticos não teriam outra solução, ante
os levantamentos civis e militares, senão a de pôr fim à inusitada repressão e dissolver a
tenebrosa polícia política. Só o preocupava que as atribuições desta passassem sub-
repticiamente para a então designada Polícia Internacional. Atento, o grupo ouvia-o,
partilhando os seus mais que certos receios.
Às tantas e supostamente para aliviar a tensão, o Zuzarte resolveu cortar o tema com
outro mais tétrico ainda: a profanação do túmulo do Marquês, cujo relato tinha descoberto num
dos seus mofentos livros.
Era só o que faltava. Conversa tumular em cima de repressão policial, pensavam todos
ainda sem sonhar que a história era bem capaz de azedar as mais doces natillas da Rosinha.
Apesar das reticências, o Zuzarte avançava com uma estranha inscrição lapidária, referindo que
o túmulo do Marquês, inicialmente na Igreja de Santo António, em Pombal, fora profanado pelo
marechal Ney, aquando das invasões francesas.
A esta altura, só faltava alguma corrente de ar que apagasse as velas do Pepe. E o
adeleiro insistia nos sórdidos pormenores da lenda, indispondo a mesa em seu redor.
O Fernando, esse torcia-se na cadeira, embatucado com a história e estranhando que ninguém
conhecesse a verdade. Mas não a podia esclarecer sem se denunciar, e tal não estava nos seus
planos, pois ainda era daqueles maçons de estirpe rosacruciana, defensores do segredo como
forma de manter a integridade da Ordem.
Sem alternativa, deixou a profanidade da lenda correr, alheando-se numa emulsão
interior, em que recordava os verdadeiros fatos maçonicos ocorridos então. Recordou Ney,
marechal de Napoleão e elevado maçom, tal como o eram Bonaparte, Soult, Massena e Junot, a
ser salvo do fuzilamento pelo general inimigo, Wellington, também maçom que reconheceu
naquele a qualidade de Irmão. Pensou em Ney a entrar em Portugal e a reunir a sua Loja de
campanha, com o seu Estado-maior, junto à vila de Pombal, não apenas por coincidência. Viu
Ney a mandar buscar o caixão do Marquês e honrá-lo com o seu lugar no centro da Loja para a
reunião de mestres nessa noite. Imaginou até um pouco mais, com relutância. Depois viu o
caixão ser levado de volta ao seu túmulo, cumprida a histórica função ritual.
Era preciso pensar como um maçom para entender outro e perceber um ritual em lugar de
sacrilégio. Subitamente acordou. A conversa à mesa ainda rondava o Marechal Ney, esse
sacrílego violador de túmulos.
Tentando corrigir o relato, havia algo que podia contar a vol d’oiseau e em tom de
profanidade. Pedindo a palavra, Fernando esclareceu que o Marechal Ney, le brave des braves,
como consta do seu epitáfio junto ao habitual requiescat in pace. “Descansa em paz”., estaria
supostamente enterrado na Rua das Acácias do cemitério Père Lachaise, em Paris, desde 7 de
Setembro de 1815. Anos antes, em Setembro de 1810, enfrentara em Portugal o comandante
inglês do exército luso-britânico, Sir Arthur Wellesley, futuro duque de Wellington, e aí terá
nascido uma recíproca admiração militar.
Como a audiência estivesse atenta, continuou: após a queda de Napoleão, Ney seria
condenado à morte e mandado executar pelos ingleses. No entanto, Wellington salvá-lo-ia em
segredo, inumando um caixão vazio em seu lugar. Em 1819, Ney apareceria na Carolina do Sul,
em Brownsville, como um modesto mestre-escola e aí terá morrido discretamente.
Em França, o seu túmulo vazio, ao lado de La Fon- taine, Molière, Massena e outros
notáveis franceses, jaz na Rua das Acácias, a mais visitada em termos de romaria histórica a
um cemitério francês.
Para acabar com o ambiente sinistro, só mesmo o regresso de Jackie. Peito inchado, el
Ferrol apresentava-a sã e salva, qual glória dos seus conhecimentos políticos. Sem hesitação,
desfez o mistério. Um telefonema para um conterrâneo, o seu amigo e correligionário Paco
Bahamonde, que desfrutava de um importante posto militar em Espanha. Este terá recorrido
aos bons ofícios de um seu camarada de armas da Ditadura portuguesa, que se responsabilizou
pela Jackie, salvando-a já a meio de um tenaz interrogatório policial.
Espantados, elevaram o espanhol dez pontos na consideração coletiva e atiraram-se à
visada em busca de suculentos relatos. Estranhamente e ao contrário da sua habitual
jovialidade, Jackie permanecia calada e absorta nos seus pensamentos, ao que o Santial impôs
que a deixassem em paz.
Quando a conversa recomeçava a tugir, aquela interrompeu. Trazia uma decisão tomada
e queria comunicá-la ao grupo. Depois da sua viagem a Paris e do que vira lá fora, não
vaticinava nada de bom para o país. Assim, depois da provação que acabara de passar, decidia
aproveitar uma oportunidade que entretanto lhe surgira e mudar-se para Londres. E a decisão
era irreversível, atalhou antes de algum patriótico apelo à luta contra a Ditadura a tentasse
demover.
Cortando o gélido silêncio, entrava esbaforido o José Roriz, já conhecedor do percalço
com a Jackie. Mas, ao vê-la ali fresquinha, pensou que lhe tinham pregado uma peça à saída do
jornal. Mas não, era tudo verdade tanto quanto era já do passado. E, para obstar à
incomodidade, tentou animar os presentes com uma novidade que recebera de São Paulo, em
terras de Vera Cruz.
Desde que emigrara sob o estatuto de refugiado político, o amigo de Cid e ex-secretário
do ex-ministro, da Ditadura dava-se finalmente à vida com um relato bastante sui generis.
Graças aos Irmãos brasileiros, descobrira por lá uma original história do meio-irmão de Pombal,
Francisco Xavier Mendonça Furtado, enquanto Governador do Brasil, o qual cedo dera início à
guerra com os jesuítas em território português.
Relatava o ex-secretário o que encontrara numa visita investigatória que fizera a Belém
do Pará, na senda do mistério do verdadeiro nome de Pombal, de seu, Bernardo Mello e Castro.
Assim, o emigrado tinha descoberto os planos de uma estátua pedestre do monarca, que
descrevia como estando “emplumado de elmo aos pés e adornado à romana de cetro na mão”,
algo que, bem se veria, era de manifesta falta de gosto, fosse para o Rei, fosse para quem o
decidia.
Mas o curioso do relato incidia sobre o todo-poderoso mano Francisco Xavier e a
encomenda da dita e pomposa estátua que este aceitara patrocinar politicamente em 1759, ano
do seu regresso a Lisboa. Para tal, ficara depositário de avultada soma, na incumbência de a
guardar na sua Companhia do Grão-Pará e Maranhão e, já em Lisboa, encontrar e enviar para
Belém um escultor de renome para a executar.
Dez anos terão passado e, talvez por tantos trabalhos no reino, o
ex-governador esquecera-se do depósito e não mais se lembrava da estátua.
Para lhe avivar a memória, as gentes de Belém, sem estátua nem real, correram riscos
de lhe reclamar, das duas uma, à escolha de Sua Excelência.
Segundo o ex-secretário, a resposta terá sido violenta e amesquinhante. De pronto se
terá instaurado um inquérito para entender os destinos dos dinheiros estatuários. Sem
resultado, ter-se-á “deduzido” que o dinheiro estaria há dez anos na Companhia sem que
alguém o soubesse. Inquiridos os do Brasil, também não sabiam. Afinal, ninguém sabia.
Em sucessiva correspondência, o ex-governador do clã Pombal, ter-se-á disponibilizado
para adiantar a enorme soma do seu próprio pecúlio, tão logo a estátua fosse aprovada pelo
Conselho Ultramarino em Lisboa.
Aqui, perdia-se a história. Nada mais o emigrado secretário descobria, sequer se
Francisco Xavier teria reencontrado o dinheiro no fundo da sua bolsa. Terminava a carta
referindo que o seu ex-governador morreria no preciso ano do peculiar desacato.
Na sua visita, pudera ainda constatar que estátua, não havia lá. Corriam vozes que se
fizera um segundo peditório em 1774, para um teatrinho de província, na Praça feita para a
estátua do emplumado e que aquele sim, teria acabado por existir.
13 - O Neófito
Era noite iniciática. Outro Arquiteto, outra maldição, pensava o Mestre do alto da sua
embirração com aquela raça de encriptadores. No entanto, bem sabia que a saúde de Eugênio,
qual milleflori de cristal, se tornara demasiado frágil para a envergadura da obra e que, sem
este, Mardel nem um mês suportaria. Necessário era aliviar-lhes o esforço com alguém que
entendesse os segredos dos planos. Para isso, só outro maçom, algo que não abundava por ali.
Abria-se assim uma exceção às restritíssima regras de admissão naquela Loja e fazia-se um
maçom por necessidade de Arquiteto e linhagem de sangue já que o candidato era sobrinho de
Eugênio dos Santos e, assim, co-primo afastado do Marquês. Demais, era familiar do Irmão e
ministro D. Luís da Cunha Manuel, sobrinho do seu benfeitor D. Luís da Cunha, o maçom maior
de Portugal, apesar de ter vivido sempre fora.
O escolhido, Reinaldo Manuel dos Santos de sua completa Graça, apresentara-se à porta
de Mardel à hora do chá e sem saber o que o esperava. Mal entrou, viu-se vendado, metido nas
catacumbas da casa e sumariamente interrogado. Sem mácula, acatou.
Naquela Loja, por manifesta falta de prática, qualquer iniciação era um drama. Quase
exclusivamente dedicada aos estudos e planos da Reconstrução, a Fênix era uma Loja de cariz
medieval, semelhante à dos verdadeiros construtores de catedrais. Só a magnitude os
distinguia: estes erguiam igrejas; aqueles, uma cidade inteira.
Com exceção do ritual de abertura e encerramento da Loja, todo o mais estava em
maçônica letargia, qual urso hibernado em Inverno glaciar; era preciso um degelo para o
recordar. Com pânico do ritual, deixou-se à sabedoria do Mestre e à expertise de Mardel a boa
sorte dos trabalhos.
Lá em baixo, o ainda candidato a neófito via-se desvendado e fechado num cubículo
que tresandava a cebolas e que o próprio pressentia ter sido esvaziado à pressa para o receber
e atemorizar. Por companhia tinham-lhe deixado uma caveira a olhar para um tinteiro, uma
pena e um papel. Fosse lá ele entender aquilo.
Ao fim de três horas a agonizar, sentia-se todo ele um cebolo. O seu receptor tinha-lhe
enigmaticamente ordenado que escrevesse naquele pedaço de papel o seu “Testamento
Profano”. Mas não lhe parecia que fosse morrer a não ser do cheiro. Só aqueles rumores de
sodomia, bestialidades e outros piores, que juncavam os saraus dos rejeitados, o preocupavam
um pouco, mas saber que o seu austríaco mestre de riscos lá estava em cima era suficiente
para o descansar. Com franqueza, não o via nesses preparos.
Mais descansaria se pudesse sonhar que lá ia também encontrar o Terrível em pessoa, o
Marquês feito Venerável de uma Loja maçônica em Lisboa. Essa, nem nos mais selvagens
pesadelos se poderia parecer com a realidade. Mas era-o.
No desespero da espera, até a caveira ganhava contornos gentis e as cavidades oculares
pareciam ganhar vida: uma olhava para ele e a outra, para o tal testamento que continuava em
branco. Seria mesmo para preencher ou seria um teste? A melhor opção era “agarrar-se à vida”
e, simbolicamente, ignorá-lo.
Sem o entender, o neófito Arquiteto estava a entrar no espírito reflexivo da Ordem iniciática
que o estava prestes a abraçar para o resto da vida. De tanto olhar para a caveira e de se
interrogar sobre o papel em branco, não reparara que a penumbra encobria uma estranha
fórmula hermética e alquímica dependurada do alto da parede, mesmo à sua frente. Esta, ia
ocupá-lo na espera de que ainda teria que padecer naquela pestilência e já no desespero de
pensar que se tinham, pura e simplesmente, esquecido de si. Rezava a dita, numa placa:
Fórmula alquímica: “Visita Interiora Terrae, Retificando que Invenies Occultunz Lapidem”, ou
“Desce ao interior da Terra e, retificando, a pedra oculta encontrarás.”
Quando começava a pensar seriamente em sair dali escada acima, surgiu finalmente o
seu Receptor, que lhe causou uma primeira sensação de algo estar, afinal, apenas atrasado ou
confuso. E eis que ele lhe vinha perguntar se acaso lhe tinha já entregue umas perguntas às
quais deveria responder naquele pedaço de papel, o “Testamento”.
Ao “não, senhor”, alou porta fora para voltar meia hora depois. Que se despachasse a
escrever, ordenou-lhe, retificando o tempo em vez da pedra. Dera-lhes agora a pressa, pensou
o neófito, e foi-se à tarefa. Pouco depois voltava o outro à procura das respostas e, como nem
uma havia, plantou-se à porta a bater o pezinho, apressando o pobre intestado e deixando a
sensação de que alguém estava impaciente à espera e por culpa de ambos.
Aligeirado o texto e dobrada a folha em quatro, logo o outro zarpou escada acima, não
sem antes o deixar estarrecido com as novas ordens: que se despisse parcialmente, desta e
daquela maneira, e que se desfizesse de todos os metais que tivesse consigo, o que o deixava
sem saber o que fazer das fivelas dos sapatos e do próprio cinto das calças.
De pronto o seu Receptor o deixaria sem cinto, de calças a cair e, estranhamente, com
um pé calçado e outro descalço, fazendo-o subir manco, qual belzebu, pelas escadas das
catacumbas acima.
De novo o vendara, numa privação que lhe aguçaria os sentidos com os quais se
descreveria as sensações que ia enfrentar e que começavam logo mal, com uma corda grossa e
pesada, que mais lhe parecia de enforcado, com que lhe adornaram o pescoço.
A sensação de ridículo avassalava-o, só de pensar que alguém poderia estar ali a olhar
para ele. Não podia o pobre ver uma sala de gente ilustre, num silêncio tal que só se ouvia o
tacão do seu único salto, de dois em dois passos.
Parado à porta de algures, o estrugido; sentia uma emulsão de incenso expulsar-lhe o
cebolame do nariz. Com um pé em cima e outro em baixo, no frio do chão, ali estava imóvel,
indefeso e aparentemente sozinho. Ao longo daquela tarde, já noite, aprendera num súbito
impacto que aquilo ao que vinha exigia muita paciência, talvez a célebre paciência de maçom,
geradora da capacidade de refletir para depois agir.
Do silêncio ecoaram quatro pancadas súbitas que lhe pareceram ser numa porta. Pela
primeira vez, ouviu vozes: três diferentes, seguidas de uma quarta, estridente e arrepiante
como nunca ouvira, a reclamar contra um “intruso” qualquer. Seria ele o intruso? Que ritual
estranho, pensava ainda com os tímpanos a vibrar daquele diapasão agudo.
Passada esta, logo outra provação: um fio de espada apontada ao coração e alguém a
fazer-lhe perguntas e outro a responder por si. Parecia que não podia falar. À cautela, trincou a
língua. E porque o tratavam agora como “o recipiendário”? De fato, aquilo atemorizava. E, em
cima do cansaço da espera de horas, era difícil de penar.
Seguiram-se mais uma dezena de perguntas e respostas em que a sua profanidade era
interrogada sem direito a resposta própria. A voz continuava a responder por si à outra Voz. Em
toda a cerimônia de iniciação, aquela sua voz acompanhá-lo-ia sem nunca o abandonar. Ia
ampará-lo em quedas, ensiná-lo em dúvidas, encorajá-lo em hesitações. Era a sua voz.
Nos estranhos dizeres falava-se de um “Templo”, pelo que entendeu estar algures à
entrada do mesmo. Com a venda nos olhos, só podia imaginá-lo. Talvez grandioso, talvez
discreto, talvez em pedra, senão em madeira, quiçá redondo e porque não quadrado? A
cegueira da sua imaginação levava-o a todo o lado. E ali estava, parado, a assistir sem poder
ver.
Estranhos perguntaram-lhe, então, se era livre e de bons costumes e a voz respondeu
que “sim”, numa abonação inesperada e que resultava, sem que o soubesse, de muitos meses
de vigia sobre a sua pessoa e as suas qualidades. Nada do que ali se passava era fruto do
acaso, antes sendo ritualizado ao mais ínfimo pormenor e assim acontecendo, por igual, em
todas as Lojas do Mundo, sem a mais ínfima exceção, possibilitando as visitas dos Irmãos de
uns países, às Lojas dos outros.
Por mais que a voz o acompanhasse e amparasse, a curiosidade rapidamente cedia
lugar ao receio e este ao temor num crescendo ritual que não deixava margem para o
contrário.
A Voz aguda e fina fez então uma série de perguntas em que se sentiu abandonado pela
sua voz. Ante o impasse, esta voltava a sussurrar-lhe as respostas, que repetia sem hesitar. Se
o ambiente para gelem se sentia naquela figura, era, por si só, atemorizante, a outra Voz, a tal
de mezzo soprano estridente, deixava-o ainda mais confuso. Seria mesmo de um homem? Mais
parecia a gosma de uma criança.
Naqueles elaborados dizeres, a ameaça da Voz era constante e a pretexto de quase
nada. De tanto castigo, pena e sanção com que a voz o ameaçava se falasse, se contasse, se
revelasse, o pobre neófito já não sentia que lhe restassem muitas partes do corpo para
estraçalhar se alguma vez, sem querer, espirrasse um simples atchim maçônico.
De permeio começava a sentir que estava num local cheio de gente e que, pelo eco, não
seria tão grande assim. Lá ao fundo, ouvia marteladas de madeira, no que lhe parecia ser um
malhete, pela força dos dizeres.
Apesar da tensão, tudo suportava. Só aquela exótica Voz lá do fundo da sala o
incomodava de sobremaneira, não se calando nem por um decreto maçônico! E longos eram os
seus discursos, num ritualismo esotérico do qual o neófito pouco ou nada entendia e, do pouco,
só a confusão lhe restava, chegando ao ponto de duvidar se tudo aquilo era real ou se o tinham
posto num palco de opereta, coxo, cego e seminu, para ouvir uma eclosão de palmas junto da
performance inusitada.
Mais uns quantos avisos se seguiram sobre a violação do segredo, deixando o neófito
com a sensação de que ali se entrava para emudecer de vez. E nisto se passou uma infinidade
de tempo, apercebendo-se então o ator que não podia estar num palco pois ninguém pagaria
um real para assistir a tal tormento. Aquilo só por vocação, pensava com lucidez o iniciando.
Mais um longo silêncio entrecortado aqui e ali com uns estranhos bufares que soavam a
fastio, seguindo-se um copo de água cristalina que a voz lhe dava a provar a pretexto da
pureza da alma, seguido de um juramento em que, se a ele faltasse... zumba!, mais um
castigo: agora juravam envenená-lo. Pelo ritmo da matança, bem ia precisar das sete vidas
rituais. Preocupado, percorreu então o corpo com a mente, a ver se tinha ainda algo para
oferecer, seguro que em breve lhe seria pedido. Talvez o espinhaço, aventou o neófito
interrogado.
Num desespero de horas, prosseguiram as ordálias, até que lhe tiraram a maldita venda
e, depois de mais uma ameaça de perjúrio, lhe anunciaram que estava admitido maçom, no
grau de aprendiz.
Por fim, queimaram-lhe o testamento dobrado e brindaram-no com uma rosa vermelha.
Terminada a reunião, o Irmão Francisco Xavier abordava discretamente o novo Irmão Reinaldo,
com uma lenga-lenga sobre um projeto de estátua para o Brasil que tanto teria incomodado
Sua Alteza Real pelo ridículo da forma. Que já lhe chamavam “El-Rey emplumado”, adiantou, e
que este não teria gastado do desaforo.
Parecia, no entanto, que a decisão estava em cima da sua mesa, lá na Casa dos Riscos,
e que desse o parecer que entendesse. Depois se veria se os Irmãos o poderiam ajudar na
embrulhada real em que se ia meter se o aprovasse. Dito isto, virou costas com displicência e
desfavor. Acabava de impor um “não” ao desprevenido Irmão Reinaldo que, logo pela manhã
tratou de encrencar o projeto com um lustroso e contrário Parecer, moldando a decisão do
Conselho.
Assim ficou Belém do Pará com um teatrinho, a expensas novas, que as velhas andavam
há muito perdidas.
14 - O Quadro Mágico
16 - A Cruz do Coração
17 - As Sombras da Luz
18 - Salace
Logo ao início da noite, o Pepe surgia com um vistoso envelope que nesse dia chegara
remetido do Hotel George V, em Paris e que fora nitidamente aberto, sem que se tivessem
sequer preocupado em disfarçar. Era sinal claro de que a morada do restaurante já estava sob
um tipo de vigilância que não a ocasional e decorrente das perseguições ao Costa Ruivo.
Militante da inconsciência, o Pepe achava até engraçado, e ninguém tinha a coragem de o
avisar que era “até” perigoso.
Num sufoco de curiosidade, esperaram que a mesa se compusesse e logo reabriram a
carta. Era de Otto e encerrava palavras de agradecimento a todos os amigos de Cid. A cada um
citava as gentilezas que recebera, com todos brincando um pouco, numa manifestação de
humor e ironia pouco condizente com a fleuma germânica.
No fim, um beijo só para a Rosinha, cujo nome Otto jamais aprendera a pronunciar,
substituindo-o por um germânico Liebe Rose.
Distraidamente, Otto terminava a carta pedindo aos Irmãos que transmitissem ao Muito
Respeitável Grão-mestre de Portugal os seus agradecimentos pela forma cordial e fraterna
como o tinha recebido e acompanhado na sua visita ao Palácio da Pena.
Ante o desconforto geral e ninguém se querendo anunciar como maçom, resolveu o
Paulo aterrador prontamente a questão, pedindo àqueles ali presentes que, acaso
pertencessem a tão Augusta Ordem, se dignassem transmitir ao respectivo Grão-mestre os
agradecimentos de Otto Lenndorf. E mais não disse, tratando ele próprio de levar a carta a
Garcia.
Assim se ultrapassou com subtileza uma indiscreta incomodidade maçônica,
prosseguindo o jantar como de costume: comer, beber e sussurrar mal da Ditadura.
No âmago das conversas parecia sempre surgir o atormentador Salazar, que muitos já
temiam e todos criticavam. Por curiosidade, e já que o nome lhe parecia hispânico, Santial
dera-se ao peregrino trabalho de o investigar na sua vertente etimológica.
Comunicava então as derivas possíveis e decompunha Salazar, começando pela
terminação “ar”, sufixo de origem latina, de sentido diminutivo. À primeira parte, “Salaz” com
origem no latim salace, atribuía-se o significado de “libertino”. Assim, concluiu em tom de piada
que, pelo nome, Salazar era um “pequeno libertino” ou “homem de pecadilhos ocultos”.
Declarando a máxima de que em História uma coincidência nunca vem só, tinha decidido
procurar algum ponto em comum entre os ditadores que tanto atormentavam os seus amigos
portugueses e austríacos.
Ocorreu-lhe então, e sem razão aparente, confrontar a data de nascimento de Salazar
com a de Adolf Hitler, o atormentador preferido de Otto. Segundo ele, os caudilhos tinham
nascido no mesmo ano, no mesmo mês e no mesmo dia da semana, com apenas oito de
diferença. O nazi austríaco, a 20 de Abril e o outro a 28, no ano de 1889.
Era mais uma curiosidade de almanaque, rematava o interventor, não sem antes fazer
os presentes atentar numa última coincidência histórica que marcava ambas as ascensões
políticas do ditador Salazar e do déspota iluminado, Pombal. Mal chegados pela primeira vez ao
poder, pouco tempo lá duraram até sair, para logo regressarem com força e vigor redobrado.
Num exercício de estilo, Santial puxando de um papelinho leu então um discurso de
posse: “Não é preciso ter vindo de baixo para sentir vivamente a inferioridade das condições de
vida, material e moral, que usufruiu, em contraste com toda a Europa do Ocidente, este povo
português.”
Se ninguém conhecia o discurso de posse do Marquês de Pombal, que por certo
eloqüente seria, soava-lhes aquele mais a Salazar. Em copas, Santial mantinha o irredutível
segredo do autor.
19 - A Câmara
21 - A Cidade de Deus
Nessa noite, a janta incluía um cocido gallego, a sopa do dito e, a terminar, umas
natillas da Rosinha, verdadeiro manjar dos deuses celtas.
A propósito de uma anterior discussão em torno da matriarca da família dos Távoras, o
José Roriz trazia umas intricadas curiosidades sobre duas das principais figuras da mesma, logo
declarando que os cruzamentos de sangue entre estes era algo que ninguém entendia, se é
que alguém os sabia descrever.
Sem esmorecer, adiantava que a marquesinha casara com o filho do seu próprio irmão,
Francisco de Assis, Conde de Alvor. Curiosamente, tia e sobrinho eram da mesma idade. Por
outro lado, era tia e cunhada de uma das matriarcas do clã, D. Mariana Bernarda de Távora
que, por sua vez, era irmã de seu marido e sobrinho, Luís Bernardo de Távora e, como tal,
também sua sobrinha.
Aqui, o orador interrompeu a explicação, porquanto os presentes sustinham a respiração
sufocados pela história. Às tantas, olhavam-no inquirindo-se se não estaria a aproveitar a
colegial distração para se meter ao gozo com eles. Mas não, era mesmo verdade, naquela
família só não casavam pais com filhos e netos com avós.
Os outros, suspirando bem fundo, muniram-se de dose dupla de aguardente da Arealva
e, pestanejando ensonados, prepararam-se para o resto da chumbada.
Para os espevitar, saltou então o lado negro da história. Assim, quanto àquela Mariana
Bernarda, Condessa de Atouguia pelo lado do marido, executaram-lhe ritualmente em Belém,
no ano de 1759, o marido, D. Jerônimo de Ataíde, os dois irmãos, Luís Bernardo e José Maria
de Távora, a mãe, D. Leonor, Marquesa de Távora, o pai, D. Francisco de Assis, Conde de Alvor
e, ainda, o cunhado deste e seu tio, D. José de Mascarenhas, Duque de Aveiro.
De uma assentada, toda a família para ela se perdeu, com exceção da tia marquesinha
e de uma irmã sob o protetorado do Marquês de Alorna, seu marido.
Cautelosamente, o orador poupava aos presentes o pesadelo das cenas da prisão, da
separação forçada dos filhos pequenos, do seqüestro dos bens, e tudo o mais a que aquela
Távora sobrevivente fora sujeita, fatos capazes de arruinar o humor e a digestão dos ausentes
de espírito, ali presentes. Tal seria assaz sinistro, em noite de alegre convívio no Pepe.
Cortando os receios daquele, entrava o Ayres às horas de quem tinha tido um jornal
para fechar. Vinha furibundo, quase a falar sozinho: que disto e mais daquilo, lá entenderam
que tinha a ver com um livrinho que publicara uns meses antes e que tivera, estranhamente,
algum sucesso. Mas o motivo da sua fúria eram os detratores, e a forma como o criticavam
injustamente.
O mal era a inveja, reconhecia tristonho o jornalista. A mordácia só surgira com a
presunção dos trocos ganhos com a oportunidade do livro. Era flagelo da idéia que não tiveram,
dos conhecimentos que nunca adquiriram e do lucro que não lhes confortara os bolsos sempre
lisos. Inveja mesquinha de quem não suportava ver alguém de camisa lavada mas não se dava
ao esforço de lavar a sua. Inveja à portuguesa, terminava a conversa com os seus botões, sem
reparar que todos lhe davam ouvidos.
A essa mesma hora, na sua cidade de Viena, Oskar debruçava-se sobre as fotos aéreas
obtidas por Otto no tal Institut de Lisboa. Segundo Cid deixara escrito, era bem possível que
entre o Convento de Mafra e a Baixa de Lisboa existisse uma sobreposição reveladora da guerra
surda movida por D. José à memória do seu infidelíssimo pai.
Perscrutou então as fotos, atento à orientação cardeal daquelas soberbas obras. Pelo
que via, o Convento estava virado a Poente enquanto a Baixa, construída entre duas praças,
podia ser lida de Norte para Sul e também no seu inverso. Constatado o fato, admitia que as
diferentes orientações refletissem apenas uma opção de cada época, já que entre os seus
respectivos projetos distavam quase cinqüenta anos.
Num cartesiano reparo, Oskar notava que a Baixa possuía dois contornos distintos. Sem
prejuízo da sua orientação global a Norte, ou a Sul, consoante a praça de referência, Oskar
podia observar que os quarteirões formados pelas três ruas transversais a desembocar na Praça
do Município, estavam orientadas a Poente, tal como o Convento de Mafra.
Qual barreira da Lua ante a invasão solar, estes quarteirões transversais faziam Oskar
rever o simbolismo que o Marquês de Lisboa imprimia a todas as suas obras e interrogar-se
como isso se reflectiria naquela. Meio perdido e sem resposta, o velho Illuminati fixava-se de
novo nos pontos possíveis de sobreposição entre aqueles dois colossos.
Com as fotos lado a lado e por mais que assim olhasse, só antevia os torreões que em
cada um existiam e ali se encaixassem. No mais, tudo era díspar e parecia desencontrado.
Ante a falta de meios que lhe permitissem ir mais longe, Oskar remetia-se ao seu
charuto, à espera da chegada do filho. Tinha esperança que este conseguisse, lá no jornal,
passar as fotos para chapas de vidro, o que lhe permitiria sobrepô-las e não apenas imaginar.
Nem meio charuto ardera e já Otto chegava a casa. Confrontado com o desalento do pai, logo
o animou, referindo-lhe que tinha um bom amigo no oratório do jornal que, por certo, lhes iria
valer. Apenas lhe pedia que escolhesse uma das fotos, já que duas, além de desnecessário,
seria abusar da boa vontade do amigo e dos meios do jornal. Sem saber por qual optar, Oskar
decidia pelo científico método de cara ou coroa, e a moeda decidiu Mafra.
No dia seguinte, Otto surgia finalmente com uma chapa de vidro para onde fora
transposta a foto aérea de Mafra. Curiosos, precipitaram-se para o escritório. Depois de
infrutíferos esforços em que nada batia certo, tomaram como referência a estátua de D. José e
o jardim da Basílica de Mafra, sobrepondo-os em seguida. Logo ao primeiro relance, tudo
encaixava. Fazendo então Oskar rejubilar com a genialidade daqueles maçons de outrora.
Pegando no original das fotos aéreas, verificou a altitude a que as mesmas tinham sido
tiradas. Num apontamento, em baixo, encontrava uma referência a dois mil pés. Pediu então a
Oskar que verificasse no seu onisciente Larousse a altitude a que o Convento fora construído, já
que Lisboa estava, seguramente, ao nível do mar. Sem entender o que o filho queria, Oskar lá
foi à demanda. Segundo a enciclopédia, o majestoso Convento de Mafra situava-se 234 metros
acima do nível do mar e, como tal, da própria cidade de Lisboa. Esta diferença causava um erro
de paralaxe já que a sua dimensão era menor do que a representada nas fotos aéreas tiradas à
mesma altitude. Começava então a entender onde Otto queria chegar e, olhando um para o
outro, desiludiam-se daquele achado. Sem entender o que passara, afinal, pela cabeça dos tais
maçons de outrora. Eram assim levados a concluir que aquela sobreposição só fazia sentido
vista dos Céus e a dois mil pés de altitude, o que corrigia a diferença de escalas entre Mafra e
Lisboa.
Era uma cidade que só podia ser vista por Deus.
22 - David e Salomão
Era domingo de novo. Fazia oito dias que el-Rey dali saíra para contra ele atentarem.
Nesta noite, faltava o maçou do boudoir. Estava nas lonas, na Ajuda, com uma bem oficial
influenza que o mantinha agarrado à cama, só com a visita do médico real. À porta,
discretamente, o imperdoável Gottlieb Fuchs montara uma intransponível cerca de Dragões que
nem a rainha passava. Podia pegar-se, diziam-lhe, e apressavam-na a pretexto da maleita.
Ali na Loja, abertos os trabalhos no timbre habitual mas com cara de dois casos, o Venerável
Marquês decidiu deixar claros os seus temores e lançar um aviso sério a um jovem basbaque
que se acoitava à porta do Templo, qual Cérbero sentimental. Num vociferar agreste, fez entrar
o neófito Reinaldo na Loja e atingiu-o como um estalo. Hirsutos os Irmãos ouviam picaretas
voar sob o anúncio da Tentação de David. Com ar de relato histórico, o Venerável contava
como o sábio rei David, símbolo da fidelidade de Israel a Iavé, cedera em tempos a uma paixão
ilícita e, dizendo-o, o Mestre fulminava o Irmão Reinaldo. Fazendo que não, todos entendiam o
recado, e o martírio verbal prosseguiu: que David, sucumbindo àquela paixão, fez matar Urias
para poder ter Betsabé, a mulher deste, para si. Do crime por amor veio a nascer Salomão, o
rei construtor do Templo e senhor do Trono ali representado, disse.
Sem pausa, continuou a sua inusitada lição sobre o Velho Testamento, referindo que o
deus Iavé acabara por punir David, de forma divinal, retirando-lhe o trono e entregando-o ao
seu filho Salomão, fazendo deste um sábio maior do que ele.
Naquele instante e interrompendo a sessão, Mardel chegava encharcado e fedorento. Ao
fim de tantos anos em Portugal, ainda não tinha aprendido a não olhar para cima quando ouvia
o tradicional grito “Água vai!”. Daí a sua debaldada obsessão pelos novos esgotos de Lisboa.
Seguindo a ordem da noite, ali estavam todos, naquele fedor, para enfiar o Rossio na Rua da
Betesga. Sua real vontade Josefina queria vingar anos de humilhações daquele que lhe
impuseram por pai e enfiar a imensidão do Convento no simples espaço de um Terreiro. Era a
reunião de Loja mais surrealista do último mês.
D. João V, de salomónicas inclinações e quedas conventuais, dera um enorme
trambolhão ali para os lados de Mafra. Inicialmente pensado para treze monges, depressa se
viu transformado num monumento maior que o reino, nem convento, nem palácio, que Byron
diria ser obra da magnificência sem orgulho na elegia. Curiosamente, a primeira pedra era
oficialmente lançada, cinco meses após a fundação da Grande Loja de Londres, no dia de João
Baptista, em 1717. Neste mesmo dia, o ritual da pedra bruta era cumprido pelos pedreiros-
livres da obra de Mafra.
No projeto, e qual sultão da Turquia, D. João ordenara algum anteparo e a providencial
distância de 232 metros entre os seus aposentos e os da Rainha, cedendo-lhe a zona central da
construção e reservando para si a mais próxima do Serralho conventual. Com germânico
orgulho e preterindo os portugueses, entregara a execução do majestático refúgio a um outro
alemão, o Arquiteto Johann Friedrich Ludwig, cautelosamente rebatizado de João Frederico
Ludovice. Acusado de querer transformar o Reino na Germânia Ocidental, D. João V colhia a
sua inspiração na obra de profecias “Ennea” cujo autor, Anselmo Munoz, o convencera de uma
predestinação imperial.
Toda a magnificência e dispendiária joanina não visava mais do que abrir caminho para
este profético imperalato. E não fora a quebra precoce de saúde e quem sabe onde teria
chegado o alemão rei de Portugal, neto de imperadores germânicos e marido de Maria Anna de
Áustria. Na verdade, esta era filha e herdeira de Leopoldo I, o Imperador da Alemanha e ainda
irmã de Carlos VI, o Imperador da Áustria, sendo assim herdeira e sucessível de ambos.
Tal como Salomão sucedera a David, também José sucedeu a João, invertendo este sonho
imperial e acabando o Império do Oriente a dominar o do Ocidente, por via da maçonaria
austríaca.
Com o terremoto, o Convento de Mafra elevara-se e abatera-se em bloco, inclinando-se
como uma embarcação às ondas sem ter contudo ruína considerável. Apenas uns mármores
estalados, uma pirâmide da Torre Sul por terra e uma fenda na praça em frente com a largura
de um pé de homem. Parecia maldição paternal. E era aquela fidelíssima Loja a cumprir o
capricho de um rei que bem se lastimava da mãe natureza não o ter querido ouvir antes de lhe
dar aquele pai.
Eugênio, que perdera uma semana em Mafra a catar projetos velhos, apresentava-se
agora em Loja com uma solução criativa: já que el-Rey queria o Convento humilhado, cobria-se
todo aquele com a própria Cidade-templo.
Para que alguém entendesse o gênio, o Venerável arreou o malhete e cedeu a sua
mesa. Puxando das lunetas em forma de pincenez que a vaidade impedia de usar, o Mestre
debruçava-se, de candelabro maçônico na mão, sobre as plantas sobrepostas que Eugênio
apresentava. Fez-se então um lusco-fusco na Loja, pois os limites do convento coincidiam
exatamente com os do Templo-baixo do projeto da Lisboa maçônica, surgindo a estátua
eqüestre de D. José no preciso centro do jardim do Convento, desenhado já então sob a forma
simbólica da roda da serpente, com oito braços. Como que despertando da habitual letargia, os
Irmãos rejubilavam com a intensidade da obra e o choque visual que a mesma causava.
Deleitado com o amigo, Mardel metia ares de aprendiz ante a lição de mestria. Mas bem
conhecendo o seu autor, procurava já onde teria aquele encriptado o seu lado místico, pois
achava simples de mais a humilhação do Convento sem que isso tivesse um anverso, qual
Janus de duas caras. Mas, por mais que olhasse, via menos que um neófito em noite de
iniciação.
Matreiro, o Mestre só pensava nos dividendos a retirar dali. Talvez mais uma comenda
ou, quiçá, por fim, Marquês.
Acabavam, assim, de enfiar o Convento joanino no Terreiro josefino. Esclarecidos uns e
com Mardel por esclarecer, restava aguardar que El-Rey melhorasse para lhe darem as boas
novas.
Fazendo-se atrasar, Mardel ficava sozinho na Loja. Aquilo não lhe parecia claro e havia
que separar o trigo do joio.
Tinha reparado que Eugênio não fizera a correção inerente à diferença de altitude entre
Lisboa, situada ao nível do mar e Mafra, 234 metros acima, o que deformava as respectivas
escalas. Só não compreendia a razão. Não seria, por certo, apenas para encaixar o Convento no
Terreiro, que isso sempre teria outra solução.
Rebuscou então o espírito de Eugênio ao traçar aquelas plantas e logo compreendeu
que este desenhara, afinal, uma sobreposição só entendível a partir de um determinado ponto
celeste e, se bem o conhecia, apenas pelo próprio Criador.
23 - O Lago de Bronze
Estava uma noite de uma invernia outonal, em que todos os Irmãos se arrependiam de
ser maçons. Àquela hora, todos invejavam el-Rey, na câmara dos fundos, com a bela lareira
acesa e o banho de cheiro a pétalas gozando o sensual afago da generosa marquesinha.
Ao menos que valesse a pena aquela reunião, que se fizesse uma iniciação, uma
elevação ao grau de mestre, uma qualquer coisa interessante que não passasse pela estridência
da voz do Mestre.
Abertos os trabalhos, o Venerável anunciou que iria ser apresentado o projeto
simbológico do Terreiro do Paço, pelo que, de imediato deu a palavra ao Irmão Eugênio, o
mitógrafo de serviço. Naquele tom de prédicas e homilias que lhe remanescia dos tempos
monásticos e que tanto exasperava o Mestre, Eugênio propôs então que se construíssem doze
postos para estátuas dos doze deuses do Olimpo, adiantando que o mais importante seria
preenchido com o deus grego Hades, também denominado Plutão ou Pluto pelos romanos, o
qual encimaria todos os demais.
Sentindo a curiosa ignorância a pairar, Eugênio esclareceu que Lisboa estava, desde o
tempo dos romanos, dedicada a Pluto, o deus dos subterrâneos e governador do Mundo dos
Mortos. Ouvindo isto, o Mestre exultava, bem sabendo que Hades era também o símbolo da
dissimulação maçônica, já que possuía o elmo mítico e emplumado que tornava invisível quem
o usasse.
Já por entre alguns fraternais bocejos, Eugênio concluía que toda a Praça seria, assim,
devotada ao deus Hades ou Pluto. Ante a concordância da Loja, manifestada pelo positivo
aceno das perucas, Mardel tomou por sua vez a palavra para fechar com chave de Salomão: a
Praça seria desenhada sob a forma de uma arcaria seguindo os bons ensinamentos
dissimulatórios da Maçonaria-mãe austríaca, lembrando os presentes que uma arcaria, ou
conjunto de arcadas, tanto em alemão como em português, era designada por Loggia, numa
adoção da expressão italiana que abarcava os espaços abertos e amplos desenhados nas
cidades de Itália. Se toda a Baixa era uma Cidade-templo, concluía Mardel, a figuração da Loja
Fénix de Lisboa estava dissimulada na arcaria ou Loggía do Terreiro do Paço.
Mas havia ainda uma surpresa, a Jóia do Terreiro do Templo: uma estátua eqüestre
d'El-Rey, o maçom de conveniência, munido do elmo mítico de Hades. Dito isto, logo destapou
a maquete do que dizia ser a mais bela estátua eqüestre de Portugal, adiantando que a mesma
teria sete metros de altura e mais sete de pedestal, e estaria localizada bem no centro da
praça. Seria esculpida no mais fino mármore de Vila Viçosa, quer na sua base, sob forma
arredondada, quer no cavalo e protagonista.
Quanto mais explicações ouvia, mais o Venerável se contorcia no trono de Salomão.
Redonda?,Arredondada? Mas onde estava a forma do esquadro, onde estavam os ângulos, os
triângulos, o Sol, a Lua? Bem sabia que o esboço inicial era da autoria de Machado de Castro,
um conhecido beato adverso às ideias da Luz, mas, no centro da entrada para a Cidade-templo
de Salomão, uma estátua completamente profana e desinserida? Então andara a pregar para os
peixes, durante todos aqueles anos?
Fervendo em água nenhuma, e por mais que ouvisse, o Mestre não encontrava o menor
resquício de simbologia na estátua. Às tantas, uns queriam-na virada para Norte, de costas
voltadas ao Sol! Outros queriam-na virada a nascente, dando-se ares de maçons entendidos e
até havia um que trazia uma sugestão do Engenheiro da Maia, para um pedestal giratório
movido pela força das marés.
Arrepiado com os dislates e num gesto de súbita fúria, arreou o malhete na mesa e
soltou um “Irra!”, esquecendo-se da voz de falsete que soou como um silvo por todo o espaço
da Loja. Embalados na sonolenta ignorância, os Irmãos saltaram picados por aquele vespão
sonoro. E um novo “Irra!” silvava como castigo a preceito.
Lá dentro, até o gemer parou e el-Rey teve uma descaída.
Assustada a platéia como lhe aprazia, num magistral gesto de teatro maçônico, o
Venerável ergueu-se do trono de Salomão e, acercando-se da maquete da estátua, desferiu
sobre ela um poderoso golpe de malhete, desfazendo-a em trezentos pedaços. Com ar de
profundo desprezo, virou costas ao destroço e subiu ao seu lugar.
Ao pé daquele silêncio, o do próprio Sepulcro parecia noite de São João. Ninguém se
mexia, ninguém respirava; em boa verdade, sequer pensava. Só lá dentro se gemia de novo.
Avançou então o Mestre para uma aula de instrução, começando por inquirir a Loja se a pedra
d'alva era, ou não, o mais belo material para estátuas. De fato, todos reconheciam a pedra
como a mais bela matéria prima, recordando até as obras de Miguel Angelo e Bernini.
Continuando a instrução, o Venerável citou-lhes de cor um texto bíblico do Livro dos Reis,
deixando os Irmãos ainda mais confusos: “O Rei Salomão mandou procurar Hiram de Tiro. Ele
possuía imensa habilidade e perícia para trabalhar o bronze”.
Como o silêncio grassasse, perguntou-lhes quais as estátuas de pedra que conheciam
no Templo de Salomão, ou quantas viam ali na Loja, sua singela representação? Olhando em
volta, os Irmãos só viam pedra no chão, nas colunas e no próprio coração do Mestre, que
estava capaz de os transformar em habitantes de Gomorra, só pela força do olhar.
Num ápice, eis que o monge-maçom Eugênio, acordando da sua meditação profunda,
pediu a palavra. Olhando o Venerável como quem o ia desmascarar, lançou-se a descrever o
Templo de Salomão, onde estátuas não havia por serem formas de representação proibidas.
Referiu aduzindo que no seu terreiro de entrada existia apenas uma elevação escultórica
designada por “Lago de Bronze”. Depois de sorrir com ar de vitória para o Venerável, voltou-se
para os Irmãos na desesperança de alguma desenvoltura intelectual. Mas nada. Se pedras
havia, estavam dentro daquelas cabeças. Intrigara-o sempre, como gente tão ilustre e
intelectualmente superior, quando chegava ao ritual e ao simbolismo maçônico pareciam
vítimas de um bloqueio vínico.
Dizimado com o atrevimento, o Venerável interrompia a prédica de Eugênio, lançando
um desafio à Loja. Então, andara ele a espetar cruzes de oito pontas em cima de globos de
bronze por essas igrejas fora, e ninguém entendera nada? Introspectivos, os Irmãos pareciam
ter o cérebro vendado e, pelas caras, o mistério ia continuar sem desvenda à vista.
Foi então que Mardel, com o assentimento do Mestre, se adiantou à explicação beática
de Eugênio: a estátua nunca poderia ser de pedra, por mais alva que fosse, mas sim de bronze,
já que este resultava da fusão do cobre e do estanho, as cores representativas do Sol e da Lua.
Demais, cada um daqueles metais tinha a sua correspondência na simbologia atribuída aos
metais nobres do Ouro e da Prata os quais iriam, precisamente, dar o nome às ruas laterais da
Cidade-templo. Por outro lado, explicou, com base nas embocaduras destas formava-se um
triângulo maçônico, cujo vértice incidiria no preciso local da estátua, ali se fundindo aqueles
metais.
Colhendo a aprovação do Mestre para terminar, Mardel referiu que a estátua ficaria
localizada a sete oitavos da Praça, um pouco mais a Sul e não no seu centro geométrico, pois
só assim se respeitariam as dimensões do triângulo maçônico projetado.
O silêncio virou aplauso maçônico, batendo os Irmãos afincadamente com as mãos em
cima dos joelhos. Findas as silenciosas palmas, Eugênio metia um prego da sua estopa e
propunha à Loja que a estátua fosse executada pelo escultor Machado de Castro.
O Mestre enervava-se só de ouvir o nome do homem. Primeiro, porque estudara nos
Jesuítas desde tenra idade e, com exceção de si próprio, isso não era coisa que abonasse.
Depois, porque começara a ganhar fama com uma estátua errada, a de um pórtico de Igreja
em São Pedro de Alcântara. Para cúmulo, tornara-se escultor em Mafra trabalhando para o
perdulário Rei João que lhe deixara a ele, Pombal, um país exangue e com o brilho de ouro
falso. Que mais seria preciso para enervar o Mestre? Só mesmo se o homem se pusesse a fazer
presépios por aí...
A seu favor, o fato de realmente ser um escultor de eleição, ainda que ao Mestre
custasse elegê-lo, é de ter sido o autor do túmulo da Sua Senhora e Rainha-mãe, D. Maria
Anna de Áustria, em São João Nepomuceno, o que já era credencial que se apresentasse.
Aliás, sempre que se falava em Nepomuceno, o Mestre sorria por dentro olhando Mardel
nos olhos. Conhecedor da verdade e credor do segredo, este retribuía o oculto gesto com um ar
de santimónia. Na verdade, Nepomuceno era o mais enigmático santo introduzido em Portugal
pela influência austríaca, a caminho do afastamento de Roma e da criação de uma Igreja do
Rei. Santificado apenas em 1729 por Bento XIII, era um novíssimo santo e não fora por acaso
que a Rainha-mãe dera o seu nome ao hospício onde se fizera enterrar. O próprio mausoléu,
esculpido pelo beatífico Machado de Castro, fora mais uma tropelia simbolista da Loja Fénix,
responsável pela expansão do culto, atento o seu significado.
Só com gente assim indouta uma tal sátira se mantinha, pensava o Mestre pouco seguro
do segredo de Pulcinello, o aportuguesado “Poli-chinelo”. O Mestre sorria recordando que João
Nepomuceno não passava de Joann nePomuk, à letra, João de Pomuk, nascido em 1350 nesta
mesma localidade, perto de Praga, então sob o domínio alemão e onde dois anos antes fora
fundada a primeira universidade germânica.
Se um dos motivos de aceitação do santo era o nome João, o mesmo do evangelista
venerado pela maçonaria, já a causa da sua morte constituía uma extraordinária arma de
arremesso contra os jesuítas, apelidados agora de sigilistas ou violadores do segredo da
confissão.
Notável invenção de van Swieten, Irmão da Loja de Viena, médico imperial e abnegado
perseguidor de jesuítas, o Santo ad hoc, Joann ne Pomuk tornara-se mártir em 1393, às mãos
do Imperador alemão Wenzel IV, qual Nepomuceno, também transmutado em português para
Venceslau. O fatal diferendo teve origem na recusa do santo em revelar àquele o que a
Imperatriz lhe teria confiado em segredo de confissão. Irado com a intransigência, o Imperador
fê-lo torturar cruelmente e, não obtendo daí resultados, ele próprio o atirou às águas revoltas e
geladas do rio Molda, onde soçobrou.
A mando do Marquês e na hábil cruzada austríaca contra os jesuítas em Portugal,
instigava-se o povo a atentar naquele santo que se fizera mártir para preservar o segredo da
confissão e que se comparasse a força deste com a mísera devassa pública por parte dos
sigilistas. Corria ainda a história como verídica de que, ao abrir-se o túmulo de Joann, em
1719, se encontrara a língua do santo ainda intacta, num simbolismo claro da preservação do
segredo. E segredo era o da confissão, mas era também o maçônico, pensava o Mestre
acordando da letargia com o barulho do convívio na Loja.
Por um túmulo a favor e tudo o mais em contra, o Mestre ia engolir o escultor Machado
de Castro, um beato de reconhecida destreza. Ia ser uma luta, já se sabia, para o ater ao
projeto maçônico, mas esta guerra ia perdê-la para a Loja e para a sua imposição simbolística,
em especial, quanto à figura da Fénix renascida, a esculpir do lado Norte da estátua sob a
forma dúplice de um pelicano, também símbolo do grau de Príncipe Rosa-Cruz. No mais, e
também por ali, uns quantos esquadros e compassos discretos e uma série de serpes sob as
patas do eqüídeo.
Aprovada a estátua, não havia agora para o Marquês negócio tão grande que não fosse
menor que aquele.
24 - Judenplatz
Otto acabava de receber mais uma carta do grupo de Lisboa contendo uma denúncia à
Inquisição, datada de 2 de Março de 1775 e da autoria do bispo do Funchal. Nesta, o Marquês
de Pombal era acusado de ser pedreiro-livre, o termo então empregue para designar franco-
maçom.
Talvez Oskar achasse graça ao retardo da descoberta, pensou a caminho do reduto
hedonístico do pai, relendo a missiva delatória que lhe chegava na sua versão francesa e que
reclamava ainda de o Marquês ter ordenado a libertação imediata duma série de membros da
seita, enviados para Lisboa sob prisão.
A pestilência do charuto que se esvaía por baixo das portas revelava à distância a
localização de Oskar. Não sem antes reclamar contra aquele impestante hábito, Otto entregou a
carta de Lisboa ao pai, tentando interessá-lo pela mesma, mas obtendo como reação apenas
mais uma fumaça e um olhar por cima das lunetas ainda apontadas ao Quadro Mágico.
Cortando a nuvem de fumos, saiu com a sensação de ter falhado o desiderato e que
Oskar jamais daria atenção àquilo, obrigando-o assim a preparar uma resposta espúria que não
ferisse a dignidade dos gentis portugueses.
Lá dentro, o Illuminati e anti-religioso Oskar olhava para o relógio tentando adivinhar
quanto tempo faltaria para começar a devassa nazi que, nos fins de tarde, sempre vinha
aterrorizar o Judenplatz. Pelos seus cálculos, não tardariam os gritos de “Ein Reich, ein Volk, ein
Führer!”, pelo que havia que fechar portadas e janelas e darem-se como ausentes ou mesmo
como mortos. De cada vez que o fazia, Oskar relembrava a sua rota de fuga por Lisboa.
Como se isso não bastasse, tinha agora uma preocupação adicional e mais inquietante
que todas as que já o assoberbavam. A mãe Ruth, que era a vida daquela casa, não parecia
mais a mesma. Primeiro, ficara muito impressionada com o assassinato político de Cid. Depois,
a crescente tensão pró-nazi estava a destruir-lhe os nervos, ao ponto de se esconder nas
traseiras para não ouvir os desaforos provocatórios dos finais de tarde. Por último, nos seus
estudos genealógicos e a pedido de Otto, descobrira que o avô materno de D. José de Portugal,
o Imperador Leopoldo, fora o verdugo dos judeus austríacos no século XVIII. Este expulsara-os
por éditos de 14 de Fevereiro de 1670 e mandara arrasar todas as sinagogas, numa
perseguição ancestral. Desde então, Ruth resumira-se a lamúrias de Kiddush HaSchem
seguidos, como se tal afastasse o dilúculo do bairro.
Como a qualquer outro judeu em Viena, a constante ansiedade de Oskar traçava-lhe um
rumo de reflexões obsessivas, na procura de uma qualquer explicação para o inexplicável
fenômeno nazi.
Como a história é cíclica e sempre se repete, Oskar lembrou-se de uma carta do ilustre
e tardio maçom, Voltaire, que tanto se inspirara no terremoto de Lisboa para escrever o seu
Candide e que, a propósito daquele, falara de fogos e fogueiras e da sua ateadora, a
Inquisição.
O seu atormentado raciocínio levava-o a comparar os três cataclismos: Inquisição,
terremoto e nazismo. Remexendo o recôndito das estantes, não tardou a encontrar a carta.
Assinada por François Marie Arouet, verdadeiro nome de Voltaire, fora escrita logo em 24 de
Novembro de 1755 ao Senhor Tronchin, em Lyon, testemunhando com mestria o sentimento
europeu face ao recente terremoto e à Inquisição portuguesa, sempre objeto das angústias do
Iluminismo. Como se a tivesse lido ontem e o hoje distasse trinta anos, Oskar releu o que lhe
importava:
“É difícil entender como as leis do movimento operam em tais desastres naquele que é o
melhor possível dos mundos onde cem mil dos nossos vizinhos são esmagados num segundo...”
e, saltando umas linhas: “Regozijo-me que os reverendos padres da Inquisição tenham sido
esmagados pelo terremoto, tal como as outras pessoas. Isso devia ensinar os homens a não
perseguir outros homens pois, enquanto alguns queimam uns poucos, a Terra abre-se e
engole-os todos por igual”.
Como lhe parecia, a atualidade daquela carta era avassaladora. Um dia, talvez inspirado
pelas fogueiras da Inquisição, o seu atormentador faria as chamas engolir os sucessores de
Salomão, quer os do sangue, quer os do Templo.
Vítimas do Judenhass, o ódio racial aos judeus, estes tinham criado na Europa central
uma série de organizações preparadas para intervir em sua defesa, ante a catástrofe
anunciada. A Einsatz, ou Intervenção Judaica, era de todas a mais secreta e ativa, recrutando
os seus membros entre os jovens aguerridos e financiando-se junto dos velhos abastados, do
que havia, naquela casa, um de cada.
Ao longo de toda uma semana, Otto entretivera-se a organizar um minucioso álbum da
sua viagem a Lisboa. Eram fotos e descrições, bem como plantas e recortes de jornais.
Estranhando a dedicação, Oskar atribuía-a a um certo mal de coeur de que o filho
parecia vir afetado, talvez por culpa da misteriosa companhia que lhe fazia brilhar os olhos,
sempre que falava da viagem.
Naquele instante, o ambiente especulativo do escritório era interrompido pelo ar pouco
agradado de Ruth, anunciando dois cavalheiros que aguardavam à entrada. Um gelo de sangue
correu nas veias de Oskar, imaginando já nazis dentro da própria casa. Num reflexo de calma,
Otto foi atendê-los como se aquela presença não o surpreendesse. Pouco depois de uma
conversa que não era de todo em alemão, voltava ao escritório para levar o precioso álbum. E,
conforme chegaram, as duas figuras partiram.
Otto devia agora uma explicação aos pais. Havia algum tempo que se juntara a um
grupo de resistência que operava nas rotas de fuga da Europa. Como tal, aproveitara a ida a
Lisboa para providenciar o mais completo relatório sobre a cidade e os seus arredores, o qual
acabava de entregar a dois membros da Einsatz, concluía Otto, ante o ar apavorado da mãe e o
orgulho cerrado do pai.
Mas havia algo mais que queria comunicar, a sua decisão de ir viver para Londres, a fim
de trabalhar na BBC, aproveitando um convite que recebera para dirigir as emissões em yidish,
a língua hebraica que dominava. Perante o silêncio dos pais, Otto explicava que os ingleses
preparavam já o apoio à resistência na Alemanha, ante o avanço do nazismo que ameaçava a
Europa toda.
Comunicada a irreversível decisão, ficou assente o regresso dos pais a Zurique, onde
estariam em maior segurança, e o encerramento provisório da casa em Viena. Por nada Otto a
queria vender.
25 - O Príncipe Rosa-Cruz
Estava o Marquês de Pombal com oitenta portentosos anos, a ver desabar sobre si os
processos da bendita viradeira, quando recebeu da rainha a Louca o benefício de um súbito e
inesperado perdão.
Qual frade ante soberba esmola, desconfiou, embora soubesse das influências movidas
pelo seu valido, o carmelita descalço Frei Inácio de São Caetano, arcebispo in partibus infidelum
por título eclesiástico e pela posição que desfrutava na corte infiel. De uma lealdade à prova de
trabalhos, este inimigo figadal dos jesuítas tinha sido imposto em 1759, como confessor da
então Princesa da Beira e futura Maria enlouquecida. Coberto de poder e honrarias por Pombal,
seria mesmo o único que todos afrontava em sua defesa nos anos de desgraça do ministro. À
sua força não era estranho o cargo de Inquisidor-geral que o aguardava.
Algum tempo depois, chegava a Pombal um médico italiano da corte, o famoso Dr.
Guáglia, enviado para o tratar dos pruridos das pernas, braços e costas que o afligiam e
deixavam em chaga viva com a reação da coceira. Até então, pensou, ninguém morria de
comichão. Talvez enlouquecesse, e ele estava lá perto, mas “louco e vivante, quem dera a
Dante”, retorquia o Marquês a si próprio, lembrando-se da viagem do Rosa-Cruz Dante pelo
“Inferno” onde, no décimo fosso, se viu entre os condenados a penar de eterna comichão e que
se coçavam até à loucura.
O médico chegava no início de Maio e trazia-lhe a receita para a psoríase: água de flor
de sabugueiro, nitro depurado, raízes de labaça branca em jejum, almeirão e borragens; sal
cathartico inglês o que, não por ser cathartico, que já era mau, mas por ser inglês, o
atormentado se opôs ferozmente; banha de flor e flor de enxofre, linhaça galega e macela
quanto baste; cicuta em rama e caldos de víbora mas sem cabeça nem cauda alternadas com
os de rãs e cágados. Era esta a receita garantida do italiano cortesão e jurado Hipócrates.
Se mal estava, à morte ficou, de tal modo que expirou nem oito dias depois de tão
eminente chegada. Eram seis e meia da tarde de quarta-feira, 8 de Maio de 1782.
Anos depois, os seus restos mortais seriam depositados no ataúde do templo Rosa-Cruz
da Memória, na Ajuda em Lisboa. A referência à Lei de expulsão dos Jesuítas surgia, por
vontade própria, como seu único epitáfio tumular.
Vinte anos antes, à hora da mesma morte, Eugênio dos Santos lutava por um estertor
de vida. A seu lado, no pior dos maus momentos, o seu Irmão Mardel antevia a passagem do
amigo ao Oriente Eterno, desconhecendo que aquele se reconciliara com o Criador e ansiava
por se unir a Ele.
Segurando-lhe a mão como a um sopro de vida, o velho dos Santos apontava uma
estante do quarto. Olhando, Mardel reparou numa inusitada folha de papel, dobrada em quatro
e descaidamente entalada entre dois livros. Apenas um dos cantos a segurava, como se
Eugênio quisesse ter a certeza de que, algo lhe acontecendo, logo reparariam nela.
Cumprindo aquela, como se a última vontade fosse, Mardel pegou na folha e, ao
desdobrá-la, logo entendeu. Era o segredo dos segredos sobre a reconstrução de Lisboa, a
imagem sagrada encriptada na planta maçônica da Baixa de Lisboa.
Quando fora iniciado, Eugênio escrevera o seu testamento profano, morrendo desta vida
e nascendo para a maçonaria. O que Mardel agora ali encontrava era, sem dúvida, o seu
testamento maçônico morrendo dessa vida e renascendo para o sagrado.
Se em tudo fizera a vontade aos Irmãos, em tudo fizera a vontade ao Criador. A sua
genialidade permitiu-lhe sempre combinar os seus deveres maçônicos com a íntima consciência
moral. Fora sempre o monge-maçom, mas morreria de novo monge.
Momentos depois, Eugênio mudou-se. Colocando-lhe as mãos sobre o peito, Mardel
pegou no Testamento preparando-se para o queimar. Foi então que reparou num estranho
esquecimento de Eugênio: a imagem cristã de Lisboa mantinha os pés em esquadro...
A proporção divina.