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Teresa de Ávila, como ficou conhecida por sua cidade de nascimento Teresa de Cepeda
y Ahumada (1515-1582), escreveu, dentre outras obras, três tratados místicos, de que o
mais importante é O Castelo Interior, no qual relata sua experiência iluminativa
alcançada depois de rigorosa disciplina espiritual que a fez viajar por seu mundo interior
até os mais profundos estados de consciência.
O Castelo Interior foi redigido em 1577, no curto espaço de dois meses, numa
espécie de escrita automática, como se fosse recebido do Alto. É obra da
maturidade espiritual de S. Teresa, que contava então 62 anos e já havia
entrado em consciência cósmica, após uma sucessão de despertares que
marcaram sua existência terrena repleta de enfermidades, atribulações,
trabalhos constantes e mesmo perseguições por parte daqueles que não
aceitavam idéias reformistas. Como todos os escritos de S. Teresa, O
Castelo não se destinava à leitura do grande público, e sim à instrução das
carmelitas descalças, como um guia de espiritualidade. Tornou-se, no entanto,
sua mais conhecida obra, quer pela perfeição da narrativa, “pela elegância
despreocupada que deleita ao extremo”, no dizer de Frei Luis de León, quer,
sobretudo pela acurada análise que faz da psique humana, interessando, por
isso, também à ciência psicológica, nesta nossa época em que a expansão da
consciência tem sido a proposta da mais sã psicologia.
Teresa parte da idéia de que a felicidade, que ela chama de Deus, está dentro
de cada um de nós e não pode ser encontrada em nenhum outro lugar, visto
ser um estado de consciência, cujo aflorar demanda o autoconhecimento, pois
o homem – afirma – não é a idéia que tem de si mesmo, mas uma alma ou
consciência com vários graus de perfeição que abriga no mais recôndito o
verdadeiro ser. A entrada nessa esfera de consciência, no entanto, não
depende de conhecimento intelectivo e sim de experiência direta que
caracteriza o saber místico, a verdadeira sabedoria. É pelo autoconhecimento,
lastreado na introspecção, que o ser humano consegue compreender-se e se
transformar, de ser psíquico em Eu superior, ensejando a renovação da mente
e o nascer para uma vida completamente nova, fruto de aliança definitiva da
personalidade com o homem interior, o grande desconhecido.
Para explicar essa experiência transformadora, pela qual ela própria passara,
Teresa vale-se da linguagem metafórica, que é a forma natural de expressão
mística, porquanto a linguagem usual é insuficiente para expressar as
realidades que transcendem. Duas são as principais imagens adotadas pela
autora: o castelo e o casamento que são símbolos relacionados
tradicionalmente com a necessidade que tem o homem em seu crescimento
pessoal de se libertar da imaturidade psíquica e das formas limitadas de vida,
com vistas na plena realização de suas potencialidades. Teresa não inventou
esses símbolos, nem foi a primeira escritora que fez uso deles, visto que
encontram suas raízes já no próprio texto bíblico. O castelo representa a alma
humana, ou a esfera intima do ser, o centro individual de segurança, porque os
castelos são construções sólidas, de difícil acesso, erigidas geralmente em
lugares altos e isolados, nos campos ou nos bosques, longe da turba da
cidade. São protegidos contra as inundações e os ataques externos. Têm
geralmente torres elevadas que conotam a evolução ou ascensão, e
representam o elo entre a terra e o céu, como nas igrejas e nas catedrais. Os
castelos expressam, assim como os templos, o desejo de aproximação com
Deus e de canalização do poder divino para a Terra. Nos contos de fada, os
castelos abrigam jovens à espera de um príncipe, qual a Bela Adormecida, ou
um príncipe à procura de uma jovem para desposar, como a Cinderela. Na
psicanálise, usa-se a figura da casa, similar ao castelo, para exemplificar o
aparelho psíquico: o porão, geralmente escuro, denota o inconsciente e seus
instintos, ao passo que os cômodos iluminados significam a consciência; entre
luzes e sombras, há meios tons. No que tange ao casamento, o simbolismo é
bastante claro. Já no Cântico dos Cânticos, ele traduz a experiência mais
secreta da alma – uma relação pessoal e intensa determinada pela
necessidade vital de alteridade, a que se deve a geração da vida. Sob o
aspecto social, o casamento, disciplinado na legislação dos povos, implica
relação duradoura, constância, mútuo interesse, comunhão de vida e de bens,
auxilio recíproco, deveres e, até há bem pouco tempo, indissolubilidade. Trata-
se, na linguagem mística, não de imagem sexual, como pode parecer aos
menos avisados, nem de sexualidade reprimida, como querem ver no texto
teresiano alguns críticos que desconhecem a base poética da psique, mas a
representação da união transformadora que produz a vida santificada.
O castelo da alma com sete andares e muitas moradas, imaginado por Teresa
de Ávila, não é como os castelos que estamos acostumados a ver. É
construído em forma de palmito, tendo em seu núcleo a parte saborosa
envolvida em muitas coberturas. Tampouco os cômodos ou moradas estão
dispostos linearmente, senão abaixo, acima e ao redor. As moradas são graus
de consciência e amor. Nesse castelo, os órgãos dos sentidos são os serviçais
que, no entanto, governam mal a casa e deixam entrar animais peçonhentos
(as paixões), descurando ademais da limpeza. Por isso, se a chave da porta
principal do castelo é a oração, as chaves das várias moradas são a humildade
e a devoção. Humildade para reconhecer os pontos obscuros do castelo com
vistas em eliminá-los; devoção ao grande ser que habita o centro do castelo.
Nas três primeiras moradas, há muita impureza, porque, estando mais próximas do solo,
são mais vulneráveis às paixões, ao orgulho pessoal, ao amor narcísico, à avidez e às
vaidades. Ao tomar ciência dessa poluição, quem entra nessas moradas, deve em
primeiro lugar proceder à faxina, penitenciando-se de suas falhas. Cuida-se de extirpar o
apego ao mundo, combater os maus pensamentos e sentimentos e de mudar o modo de
falar e de vestir. As quartas moradas oferecem um colírio para os olhos da alma. Por
estarem mais próximas da câmara real, são belas e iluminadas. Nelas não entram
animais repelentes e, mesmo que entrem, não lhes fazem dano, porque a alma está
purificada e fortalecida – já não tem apegos e sente prazer no recolhimento interior –
deixa de pensar e passa a amar. É o início da vida iluminada, e uma força que parte do
centro e do alto do castelo, puxa a alma para mais perto da morada central. Nas quintas
moradas, a oração começa a produzir o fruto da união. A alma torna-se compassiva,
recebendo a marca do amor incondicional, que é a característica divina do homem.
Livre da egoicidade, o homem se transforma (a lagarta se faz borboleta) e quer a todo
preço chegar ao centro. Foi neste estágio de sua ascensão que Santa Teresa recebeu as
visões e os êxtases, pelos quais ficou conhecida – ela é chamada de a “Santa dos
Êxtases”. Na definição que a própria autora nos oferece, esses êxtases são “vôos do
espírito”, ou saídas de si, pelas quais a alma experimenta uma união fugaz com o divino
e se sente estimulada a prosseguir em sua subida espiritual e abandonar de vez as
conversações e confortos terrenos. Enquanto os êxtases são arroubos da alma, as visões
de Deus e de multidão de anjos, são intuições da presença divina na alma, intuições que
ela chama de visões intelectuais, porque os olhos carnais, em verdade, nada vêem. A
consciência capta essa presença sem a intermediação dos órgãos dos sentidos. Com tais
experiências, Santa Teresa tomou conhecimento mais perfeito da grandeza do ser que
habita o castelo, aumentou o autoconhecimento e a humildade, e confirmou uma vez
mais a pequenez das coisas terrenas. Vê-se assim que tanto os êxtases como as visões
têm por fim aumentar a capacidade de compreensão, que, ao lado da compaixão, é a
característica básica da consciência cósmica. “Em Deus – diz – vêem-se todas as coisas,
e Ele as tem todas em si mesmo”. Mas, por causa desses êxtases e dessas visões, teve a
santa de enfrentar a incompreensão alheia, sendo vítima de acusações e reprovações até
de seus superiores hierárquicos. As sextas moradas são ainda mais belas, porque
freqüentadas pelo senhor do castelo. Nelas a alma realiza os esponsais com a divindade.
As tribulações, todavia, continuam, porque as outras pessoas com quem
necessariamente ela convive, não a entendem (Santa Teresa, como todo místico, destoa
do grupo social) e a criticam e desprezam. É a noite escura da alma que precede a plena
e definitiva transformação. Por fim, nas sétimas moradas, que são as mais ricas e
bonitas, a alma une-se, em casamento, com a divindade. Neste estágio, a pessoa percebe
a sutil divisão entre alma e espírito, o centrum securitatis. O matrimônio espiritual nada
mais é do que a divinização da alma que, purificada, fortalecida e iluminada, passa a
desfrutar da paz que excede todo o entendimento. Neste mais alto patamar, a vontade de
servir ao próximo toma vulto, porque a alma se reconhece como instrumento cósmico
para servir às criaturas. Então, quem se havia afastado do mundo para melhor
compreender sua real identidade, estando já definitivamente livre dos apegos e das
ilusões, volta ao convívio social para trabalhar com redobrado vigor em prol de todos
os seres. A experiência mística só se completa e se confirma pelo serviço
desinteressado. É a faceta Marta que se ativa na alma. Neste passo do livro, Santa
Teresa reabilita a figura evangélica de Marta, irmã de Maria. Em Lucas, 10:38-42,
lemos que Marta hospedou Jesus em sua casa, e sua irmã, Maria, quedou-se assentada
aos pés do Mestre a ouvir-lhe os ensinamentos, enquanto Marta agitava-se de um lado
para outro, fazendo os preparativos para bem servir ao convidado ilustre, até que pediu
ao Divino Mestre que ordenasse à irmã fosse ajudá-la a pôr a mesa. Ao que Jesus
respondeu: “Marta! Marta! Andas inquieta e te preocupas com muitas coisas.
Entretanto, pouco é necessário ou mesmo uma só coisa; Maria, pois, escolheu a boa
parte, e esta não lhe será tirada”. Pelo diálogo, tem-se a impressão de que o Mestre
reprovou Marta e elogiou Maria, vale dizer, exaltou a contemplação e deu pouca
importância ao trabalho. Teresa de Ávila, no entanto, dá interpretação mais adequada à
passagem bíblica: Maria, a contemplativa, não é mais importante do que Marta, a
laborativa, porque no grande castelo da alma, “Marta e Maria hão de andar juntas para
bem hospedar o Senhor, e tê-lo sempre consigo”. Enfaticamente, pergunta a autora:
Como Maria, assentada sempre aos pés do Mestre, lhe poderia dar boa hospedagem se a
irmã Marta não a ajudasse? De fato, sem Marta, não há regalos, não há festa, não há boa
hospedaria. Marta e Maria são facetas de uma mesma pessoa. O verdadeiro místico não
se limita a contemplar, mas age e age sempre para o melhoramento do mundo.
Contemplação e trabalho se unem na personalidade mística. Da mesma forma como a fé
sem obras é morta, a contemplação sem a ação perde muito de seu valor. Diz-se mesmo
que a missão do místico é trazer os céus à Terra para que esta se transforme em paraíso.
Para completar, portanto, ascensão da alma, é mister o serviço desinteressado porque de
nada vale represar o amor extraordinário que existe na alma de todo ser humano. Além
disso, a melhor parte, a que se refere Jesus, vem depois de muito trabalho e
mortificação. É notório naqueles que atingem a iluminação o desejo de trabalhar para
melhorar o mundo. Foi assim com Sidarta Gautama que tendo-se afastado do mundo
por seis anos em disciplina ascética, voltou iluminado para ensinar a humanidade a
livrar-se do sofrimento, exercendo seu magistério durante 45 anos. Foi assim com Jesus
que, iluminado nas águas do Jordão, não deixou nenhum dia sequer de pregar, ensinar,
curar os enfermos e ressuscitar os mortos. Foi assim com Paulo de Tarso: depois da
conversão, não deixou de trabalhar, enfrentando perigos e tormentas para pregar a boa
nova, além de prover o próprio sustento como tecelão. Assim também com o seráfico
Francisco de Assis, que trabalhava manualmente, consertando igrejas, além de ministrar
a palavra de conforto aos doentes e sofredores. E foi assim, também, com Santa Teresa:
após sua iluminação, em idade madura, não descansou um minuto sequer, fundando e
administrando conventos e atuando como reformadora e mestra espiritual, para o que
teve de realizar viagens em condições precárias para diversos pontos da Espanha.
Deste breve passeio que acabamos de fazer pelas moradas de Teresa de Ávila, conclui-
se que os ensinamentos dessa insuperável mestra de espiritualidade continuam válidos
hoje, decorridos mais de quatro séculos, como continuarão sempre para aqueles que, no
dizer de René Fulop-Miller, “querem transcender a enfermidade do ego e do mundo,
para enveredar pelo caminho da perfeição até Deus”.