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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES


DEPARTAMENTO DE ARTES VISUAIS
DISCIPLINA “HISTÓRIA DA ARTE NO BRASIL II”
PROF. DR. TADEU CHIARELLI

VICENTE DE PAULA BRASILEIRO FILHO


N° USP: 5989336

APROXIMAÇÕES ENTRE UMA GRAVURA DE OSWALDO GOELDI E


UMA PINTURA DE IBERÊ CAMARGO
Versão Final

Oswaldo Goeldi
Iberê Camargo
Auto retrato, 1950
Sem título, 1943
Xilogravura sobre papel
Óleo sobre tela
27cm x 39,5cm
45cm x 54,5cm
Vicente de Paula Brasileiro Filho

SÃO PAULO
2018
1. INTRODUÇÃO

Para esse texto, a escolha dos artistas se deu por uma aproximação óbvia: as obras de
Oswaldo Goeldi e Iberê Camargo são sombrias, seja pela paleta de cores de cada um deles,
seja pelos temas. Já foram feitas várias aproximações entre esses dois artistas, tanto pelo que
acabou de ser descrito, como pela classificação dos dois como artistas com “traços
expressionistas”. Sabe-se também que os dois foram próximos quando Iberê se mudou de
Porto Alegre para estudar no Rio de Janeiro. É tentador, portanto, escrever esse texto baseado
nessas classificações, aproximações e biografias. Será feito um esforço, porém, para que a
análise se atenha ao que as duas obras mostram em sua bidimensionalidade, recorrendo ao
“exterior” da pintura/gravura somente quando elas se referirem a ele.
A princípio, os dois trabalhos serão descritos. Posteriormente, e a partir dessa
descrição, serão traçadas as aproximações entre os dois trabalhos escolhidos, tendo como guia
uma discussão sobre o expressionismo, o (um) conceito de autorretrato e o (um) conceito de
modernidade na arte brasileira.

1.1. Auto-retrato, de Goeldi (1950)

A xilogravura de Oswaldo Goeldi em questão não foge às regras de produção de


retratos: dá importância à figura, em primeiro plano, em detrimento ao fundo. Isso é feito pelo
artista ao “recortar” sua figura com a ausência de tinta, com uma auréola branca ao redor do
rosto. Percebemos, entretanto, que há uma tentativa de descrição do espaço do plano de
fundo. Parece que a figura está atrás de uma janela ou porta iluminada, denotada pelas
horizontais e verticais acima e dos lados da imagem. Essas linhas se tornam mais finas ao se
aproximarem do retângulo esbranquiçado que o rosto cobre, o que parece perspectivar o
espaço construído atrás da figura. Algumas linhas diagonais próximas ao canto inferior direito
também contribuem para isso. Com relação às cores utilizadas, o artista trabalhou apenas um
preto, em tom constante ao longo de toda gravura, esmaecendo um pouco na parte central e
superior, o que talvez seja ilusão de ótica dada a proximidade com a parte clara da gravura.

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Vicente de Paula Brasileiro Filho

No rosto, Goeldi realiza uma operação inversa à que utiliza no fundo: o detalhamento
da expressão é dado pelo que sobra na madeira, pela presença de tinta. O fundo, ao contrário,
é marcado pelas linhas brancas, pelo ato de desbastar a madeira. Ao realizar esse
procedimento oposto ao utilizado no fundo, o artista alcança, no entanto, o mesmo objetivo
anterior: dá destaque para sua expressão, em especial para os olhos e nariz.

1.2. Sem título, de Iberê Camargo (1943)

Esta pintura de Iberê Camargo retrata um possível momento de sua intimidade em seu
fazer artístico: um ambiente que parece ser um ateliê, com objetos próprios desse ambiente
(podemos ver parte de um cavalete à esquerda, e um tubo de tinta e pincel à direita), bem
como o que parece ser uma escultura de figura humana fixada em um bloco que, pela forma e
cor, lembra um tijolo. A figura ganha destaque no quadro por sua posição central na pintura,
pelo uso de cores claras que contrastam com o fundo e pela forma como o artista contorna a
figura. Temos também duas linhas verticais que limitam o espaço da escultura, e a diagonal
formada pelo topo do cavalete aponta para ela, contribuindo para esse destaque.
A estrutura pictórica da obra é similar à da xilogravura de Goeldi descrita
anteriormente: o fundo é diluído em favor da figura, que se destaca pela construção do espaço
atrás dela e pelo contorno. É, portanto, uma estrutura do gênero retrato. No entanto, aqui não
há uma pessoa como tema. Para que essa afirmação tenha algum sentido, precisamos adotar
uma visão ampla de sujeito, como sendo, além de si próprio, do que é, também o que faz e
possuiu. Ao considerarmos que aqueles objetos provavelmente faziam parte do ateliê do
artista, e considerando que é uma cena do seu fazer artístico, podemos dizer então que a obra
é um retrato de si mesmo. Seria, portanto, um autorretrato, porém sem o “auto”: a referência
ao artista é feita através dos elementos materiais do pintor e não de suas feições. O artista está
ali, porém através de seus instrumentos de trabalho. Isso será discutido posteriormente.

2. EXPRESSIONISMOS

Na bibliografia a respeito dos dois artistas, eles são comumente enquadrados como
expressionistas. Alguns autores e críticos de arte brasileiros incorrem nesse rótulo, seja por
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Vicente de Paula Brasileiro Filho

confundirem o Expressionismo (com inicial maiúscula), movimento europeu do início do


século XX, com o conceito de arte como expressão de uma vontade artística, seja pela
semelhança de poética, seja por um raciocínio historicista que necessita conectar nossos
expoentes nas artes com os movimentos europeus. Esse raciocínio, apesar de parecer válido,
acaba por subjugar nossa produção à europeia ou americana.
Ronaldo Brito, ao escrever sobre Goeldi, afirma:

O lirismo premente de Goeldi tem o dom de ativar e intensificar as cenas mais


remotas e estáticas. Mas o expressionismo aqui não é tanto o de um Eu atravessando
o mundo com sua crescente expansão quanto o de uma certa empatia, sinuosa e sutil,
que vai tomando seres e coisas até convertê-los em matérias da alma; da sofrida,
quem sabe extinta alma. A rigor, o real acabaria uma projeção transcendental do
Ego. (BRITO, 1997)

Apesar de ressaltar o modo como sua poética opera, acaba por reduzir o artista ao rótulo de
“expressionista” sem explicitar sobre qual expressionismo se trata. Cecília Cotrim, quando
aproxima as duas poéticas dos artistas, incorre nessa mesma redução ao afirmar que “em
ambos os artistas identificamos o esforço expressionista de uma abertura para o mundo [...]”
e, especificamente sobre Goeldi, que ele detém um “expressionismo minimal” (COTRIM,
1991). Sylvia Ribeiro Coutinho afirma, ao comparar o trabalho de Goeldi com o de Alfred
Kubin (ilustrador austríaco com o qual teve contato na Suíça na década de 1910): “[...] ao
contrário de Kubin, cujo expressionismo beira a zona surreal do pesadelo, o compromisso
predominante de Goeldi é com o mundo da vida, e não com o dos sonos atormentados pelo
medo de um mundo ameaçador” (RIBEIRO, 2014), situando erroneamente o artista brasileiro
no movimento europeu da década de 1900.
Não podemos enquadrar esses artistas no Expressionismo pela simples razão de
incorrermos em anacronismo. Giulio Carlo Argan deixa claro onde e quando essa vertente
artística ocorreu:

Comumente chamada de expressionista é a arte alemã do início do século


XX. O Expressionismo, na verdade, é um fenômeno europeu com dois centros
distintos: o movimento francês dos fauves (“feras”) e o movimento alemão Die
Brücke (“a ponte”). [...] A origem comum é a tendência antiimpressionista que se
gera no cerne do próprio Impressionismo, como consciência e superação de seu
caráter essencialmente sensorial. (ARGAN, 1992)

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Vicente de Paula Brasileiro Filho

É evidente que o Expressionismo deixou sua marca na produção artística posterior. Argan
afirma haver o desejo de superação de uma arte nacionalista por parte dos expressionistas,
“[...] para dar origem a uma arte historicamente europeia” (ARGAN, 1992). Esse
internacionalismo, aliado à própria questão da arte como expressão humana universal, como
“[...] ação que se cumpre e que, obviamente, não se exerce sobre
a natureza, mas sobre os homens [...], ou seja, uma
comunicação” (ARGAN, 2010), torna tentadora a classificação
de Goeldi e Iberê como artistas expressionistas. Percebemos, ao
compararmos uma xilogravura de Max Pechstein, que integrou o
Figura 1: Autorretrato com
movimento Die Brücke, à de Goeldi, semelhanças na poética e cachimbo, de Max Pechstein
Xilogravura sobre papel, 1921
no modo como aquele parece enfrentar a madeira (figura 1). 41,3cm x 30,8 cm

Entretanto, não podemos estender o contexto cultural da época,


pautado pela “[...] contradição histórica entre clássico e romântico”, que o expressionismo
tenta resolver de forma dialética (ARGAN, 1992), aos artistas brasileiros, tampouco a
qualquer outro que não tenha participado deste momento histórico.
Além disso, é importante entender também o que seria o expressionismo (com inicial
minúscula). Wilhelm Worringer, em seu livro Abstraktion und Einfühlung (Abstração e
Empatia, 1908, sem tradução para o português), defende a tese de que “o gozo estético é um
gozo objetivado do eu” (WORRINGER, 2015, tradução nossa). Para ele, o homem se
projetaria no objeto estético como forma de se afastar de si mesmo, de se alienar. Essa
projeção teria dois polos: a projeção sentimental, uma forma de “[...] livrar-se do ser
individual”, que corresponderia à imitação da natureza, e a abstração, que seria “[...] um
impulso para se redimir [...] da contingência do humano em si [...]” (WORRINGER, 2015,
tradução nossa).
Separando a arte da estética como sendo duas áreas que, apesar de terem os mesmos
objetos de estudo, não são contíguas, e a partir dos escritos de Alois Riegl, historiador de arte
do final do século XIX, o autor afirma que a arte é, antes de mais nada, uma volição, uma
vontade de arte. Essa vontade seria imanente e tenderia tanto à imitação da natureza quanto à
abstração, o que dependeria do modo como o homem, nas diversas sociedades, se relaciona
com o mundo:

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Vicente de Paula Brasileiro Filho

Enquanto o desejo de projeção sentimental é condicionado por uma comunicação


panteísta empreendedora e confiante entre o homem e os fenômenos do mundo
circundante, o desejo de abstração é o resultado de uma intensa inquietação interna
do homem diante desses fenômenos [...]. (WORRINGER, 1908, tradução nossa)

O homem primitivo, no ambiente hostil que o cercava, teria então um desejo de abstração
como forma de se alienar desse mundo. À medida que evolui o domínio humano desse
ambiente, esse desejo mudaria de polo. Porém, isso não explicaria a arte abstrata do século
XX. Entretanto, o próprio autor resolve essa questão ao afirmar:

Somente quando o espírito humano atravessou toda a órbita do conhecimento


racionalista em uma evolução de mil anos, o sentimento pela “coisa em si" despertou
nele novamente como a última renúncia do saber. O que antes era instinto, agora é o
produto do mais recente conhecimento. (WORRINGER, 1908, tradução nossa)

Ou seja, o desejo de abstração se transforma, ao que parece, numa questão de transcendência


do ser humano já abatido pelo racionalismo.
Duas autoras conseguem abordar o trabalho dos dois a partir da definição de arte como
expressão, defendida por Worringer, descolando-os do Expressionismo. Sônia Salzstein
coloca a produção de Iberê e Goeldi como “[...] filhas remotas e extemporâneas [...]” da
tradição expressionista (SALZSTEIN, 2003). Ou seja, há em suas produções uma “adesão”
expressionista, mas afastada, pelo tempo e espaço, do expressionismo como vertente histórica.
Vera Beatriz Siqueira tenta expandir o termo para assim conseguir abarcar as produções deles,
bem como a de Lasar Segall:

Na história da arte brasileira, Oswaldo Goeldi, Lasar Segall e Iberê Camargo são
frequentemente associados ao expressionismo, ainda que sejam patentes as suas
particularidades poéticas. É claro que essa qualificação, como todas, comporta
muitos problemas. A rigor, só podemos reuni-los sob esse rótulo, se adotarmos uma
visão ampla de expressionismo, tomando-o como uma das vertentes da tendência
mais vasta de compreensão da arte como expressão. (SIQUEIRA, 2009)

Essa compreensão ampla da “arte como expressão” consegue o mesmo objetivo de situar as
duas obras fora do expressionismo, como movimento, e dentro dele como “[...] vontade de
expressão pessoal [...]” (SIQUEIRA, 2009).

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Vicente de Paula Brasileiro Filho

Foi aqui visto que a discussão sobre o termo expressionismo se encaixa nas obras de
Goeldi e Iberê. Porém, na pintura aqui considerada, talvez ela passe um pouco à margem da
obra, dado que a poética do artista ainda não estava consolidada. Apesar disso, vemos nela
algumas características do autoretrato, que será discutido na próxima seção.

3. O AUTORRETRATO SEM O SELF

Quando produziu Sem título, Iberê Camargo fazia parte do grupo Guignard, um
agrupamento de artistas que estudavam na escola de artes plásticas de Alberto da Veiga
Guignard, no Rio de Janeiro. Sua produção contemporânea a esses estudos denota influência
direta de Guignard em sua produção de retratos e autorretratos. Comparando os autorretratos
dos dois pintores (figuras 2 e 3), por exemplo, percebemos como semelhança o deslocamento
da figura em relação ao centro da tela, revelando a construção de um espaço no plano de
fundo ao mesmo tempo concreto (a coluna em Guignard, as árvores em Iberê) e onírico, bem
como a acentuação dos contornos, especialmente em suas vestes, e o que parece ser certa
diluição da tinta. Essa diluição contrasta com sua produção de pinturas de paisagem
contemporânea ao autorretrato, onde a tinta é utilizada com pouca ou nenhuma diluição, e
onde as pinceladas são bem marcadas.

Figura 2: Auto-Retrato, de Guignard Figura 3: Auto-Retrato, de Iberê Camargo


Óleo sobre tela, 1931 Óleo sobre tela, ca. 1943
62,2cm x 50,60cm 69cm x 59cm

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Vicente de Paula Brasileiro Filho

No caso da obra em questão, podemos dizer que o trato com relação à tinta é similar
ao de suas paisagens. A figura 4 é um exemplo. Além disso, como já foi dito, a figura
escultórica humana possui contornos marcados, o que ainda pode ser influência dos estudos
com Guignard.
Interessante notar que o artista produz dois trabalhos
distintos em seu modo de fazer no mesmo ano. É verdade que a
poética do artista não estava consolidada, e que esse uso da tinta
Figura 4: Dentro do Mato, de
não diluída pode apontar para seus trabalhos futuros, porém Iberê Camargo
Óleo sobre tela, 1942
podemos estar nos deparando com um artista em dúvida, 39cm x 30cm
questionando seu modus operandi como pintor.
Esse possível questionamento remete ao gênero do
autorretrato no século XVIII, onde o pintor tenta, ao mesmo em que retrata a aparência
externa de si mesmo, evocar uma interioridade que não pode ser externada. T.J. Clark, em seu
ensaio que analisa uma obra de Jacques-Louis David, afirma:

O olhar perplexo de muitos pintores em seus auto-retratos encara os observadores:


um olhar de perplexidade, de dúvida, de distância ou de fascinação ante o
desconhecimento de si mesmos; e o rosto readquire unidade – reapropria-se dela
como totalidade – exatamente pela aparência de ter se defrontado com a
possibilidade de que essa unidade nunca tenha existido de verdade. O ceticismo a
respeito de si mesmo, em outras palavras, é uma das convenções mais profundas e
mais comuns do gênero do auto-retrato. (CLARK, 2007)

Aqui o autor enuncia a questão do autoconhecimento (e da dúvida sobre ele) inerente ao


subgênero. Para ele, os autorretratos seriam momentos profundos de reflexão do artista, onde
paira mais incerteza do que convicção sobre si mesmo. Essa dubiedade seria revelada
especialmente pelo olhar da figura pintada do artista. Em outra passagem, Clark também trata
do modo como o corpo se relaciona aos objetos que também são retratados na pintura, e que
estes seriam uma metáfora do próprio corpo. No caso em particular, sobre as vestes de David,
ele afirma que “boa parte do entendimento dessa pintura vai depender de aceitarmos com
maior ou menor flexibilidade a existência de uma analogia entre o corpo e as roupas que o
vestem.” (CLARK, 2007) Ou seja, além de si mesmo, os objetos que estão presentes na

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Vicente de Paula Brasileiro Filho

pintura, o modo como são pintados e a relação deles com a figura humana, no caso o retrato
do próprio pintor, também podem denotar metaforicamente esse modo de ver a si mesmo.
É nesse sentido, considerando que podem existir analogias entre o corpo do artista e os
objetos que ele pinta, que podemos considerar Sem título como um autorretrato sem o self.
Iberê recorre à escultura para exemplificar seu trabalho como pintor, porém escolhe um
esboço, uma escultura inacabada, como modelo. Pode parecer um contrassenso, já que, na
época, ele vivia no Rio de Janeiro, havia estudado na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA)
e tinha à sua disposição, por exemplo, o Museu Nacional de Belas Artes e seu acervo. Ao
mesmo tempo, podemos inferir que Iberê não olhou nenhuma escultura em particular,
particularmente nesse contexto acadêmico, para pintar aquela, dada sua conhecida aversão ao
ensino formal (abandonou os estudos na ENBA por não concordar com a metodologia do
ensino). Essa “escolha” poderia refletir um artista que se assume ainda em formação, em
esboço, procurando consolidar sua poética e linguagem particulares.
Para que o argumento faça sentido, entretanto, recorreremos à comparação entre a obra
em questão e o autorretrato do artista (figura 3). Neste, chama a atenção o fato de Iberê deixar
sua figura incompleta, não pintando o braço e antebraço direito (que se localizariam no canto
inferior esquerdo do quadro), apesar de pintar-se em camisa de mangas curtas. Naquele, a
escultura pintada também não possui o braço direito completo. Talvez seja alguma influência
da estatuária clássica, mas a analogia é, apesar de superficial, direta. Em suma, é como se o
artista projetasse a si mesmo nesse item específico, estando “[...] inteiro naquilo que seria seu
objeto” (DUARTE, 2007).
Até então, nesse texto foi tratado da questão da expressão, com certo foco em Goeldi,
e do autorretrato, com foco em Iberê. Na próxima seção, será aprofundado o estudo das
semelhanças entre as duas obras.

4. APROXIMAÇÕES MODERNAS

Já foi discutido nesse texto que as duas obras em questão de Oswaldo Goeldi e Iberê
Camargo possuem semelhanças no tocante à estrutura de retrato que as duas possuem. Uma
outra semelhança seria com relação ao uso de linhas para demarcar áreas, sejam linhas
brancas da madeira desbastada sem tinta ao redor da silhueta em Goeldi, sejam contornos
escuros ao redor da estátua e de sua base em Iberê.

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Vicente de Paula Brasileiro Filho

Esse recurso estilístico, em particular em Iberê, remete a Guignard. Porém, antes de


tudo, há uma questão anterior, defendida por Tadeu Chiarelli em seu texto Dufy e um
modernismo que veio... depois: o modernismo brasileiro que se seguiu à semana de 1922, e
perdurou até o surgimento dos movimentos concretos/neoconcretos, situou-se no contexto
internacional do chamado retorno à ordem. Segundo o autor, não poderia aqui haver uma
adesão às vanguardas históricas europeias tanto devido ao esgotamento delas, quanto ao
caráter realista e de elogio ao homem brasileiro buscado pelo nosso modernismo
(CHIARELLI, 2012). Nesse sentido, a assimilação dessas vertentes, que tentaram retomar
uma visualidade do passado anterior a elas, se encaixaria perfeitamente aos objetivos
ideológicos da arte moderna brasileira da época. Porém, esse passado recente ainda se fazia,
mesmo de forma enfraquecida, presente:

O máximo permitido por aquele Modernismo, era o uso de estilemas oriundos de


procedimentos surgidos durante as vanguardas históricas (certa geometrização do
fundo, deformação expressiva de figuras, etc.), que não nublassem a estrutura
fundamentalmente realista das pinturas e esculturas. (CHIARELLI, 2012)

Um dos pintores que influenciaram decisivamente o nosso modernismo seria Raoul


Dufy, francês que fez parte da chamada Escola de Paris no período entre-guerras. Para o autor,
ele reunia as características que serviram de parâmetro para a produção dos nossos artistas:
não desafiava o estatuto conservador da arte por se manifestar pela
pintura, não era um pintor abstrato e sua pintura possuía dispositivo
formais e técnicos que tornavam sua poética não-convencional
(CHIARELLI, 2012). Ao compararmos, por exemplo, a obra de
Guignard (figura 2) com um retrato de Dufy (figura 5), percebemos
algumas semelhanças entre as duas no tocante, por exemplo, às
linhas demarcadoras de algumas superfícies, em especial nos braços
e rosto da mulher retratada, ao grafismo do vestido, que parece ter
Figura 5: Retrato de Mme.
Dufy, de Raoul Dufy sido feito a posteriori, não aderindo à sua superfície (assim como
Óleo sobre tela, 1930
99cm x 80cm os pontos da camisa de Guignard), e na presença da pincelada
visível do artista em algumas áreas (no braço direito da mulher, em Dufy; aparentemente na
nuvem acima à esquerda, em Guignard).
Notamos, nas obras de Goeldi e Iberê aqui estudadas, que essas questões também
estão presentes. Na gravura de Goeldi, há uma desconexão entre a figura, expressivamente
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Vicente de Paula Brasileiro Filho

marcada, com contornos bem definidos e certa representação realista, e o fundo, geometrizado
que, apesar de tentar demarcar algo como uma porta ou janela ao final de um corredor, não
indica ou representa um lugar em si. A sua figura, porém, ainda possui traços realistas. Na
pintura de Iberê, vemos o mesmo com relação à demarcação de superfícies por linhas escuras,
na escultura e em sua base. Na base em si, os detalhes parecem seguir um procedimento
similar aos grafismos de Dufy. Figura e fundo também são desconectadas uma do outro, e a
pincelada visível aparece em algumas áreas, em especial acima à direita e na perna da
escultura. Portanto, por essas características, e apesar das diferenças de poética e meio
expressivo que os dois artistas utilizavam, podemos dizer que Goeldi e Iberê (da década de
1940) são representativos do que o modernismo brasileiro via com bons olhos.

Referências Bibliográficas

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contemporâneos. São
Paulo: Companhia das letras, 1992. 709 p.

_____. A estética do expressionismo. In: _____. A arte moderna na Europa: de Hogarth a


Picasso. São Paulo: Companhia das letras, 2010. 776 p.

BRITO, Ronaldo. Goeldi: o brilho da sombra. In: Novos Estudos. n. 19. São Paulo: CEBRAP,
1987, p. 73-78.

CHIARELLI, Tadeu. Um modernismo que veio depois: Arte no Brasil – primeira metade do
século XX. São Paulo: Alameda, 2012. 296 p.

CLARK, Timothy James. Grotesco David com a bochecha inchada: Um ensaio sobre o auto-
retrato. In: _____. Modernismos. Organizado por Sonia Salzstein. São Paulo: Cosac & Naify,
2007. 365 p.

COTRIM, Cecília. Goeldi e Iberê: romantismo e atualidade. In: Gávea. Rio de Janeiro, PUC-
Rio, n. 9, 1991, p. 38-47.

COUTINHO, Sylvia Ribeiro. Nas margens da cidade: a expressão da subjetividade moderna


na obra de Oswaldo Goeldi. In: Escritos. Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, n. 8,
2014. Disponível em < http://www.casaruibarbosa.gov.br/escritos/numero08/sumario08.php>.
Acesso em 30/04/2018.

DUARTE, Paulo Sérgio. A solidão da grande arte. In: SALZSTEIN, Sonia (Org.). Diálogos
com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. 205 p.

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Vicente de Paula Brasileiro Filho

SALZSTEIN, SÔNIA. Anos 60: um marco na obra de Iberê Camargo. In: _____ (Org.).
Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. 205 p.

SIQUEIRA, Vera Beatriz. Cálculo da Expressão: Oswaldo Goeldi, Lasar Segall, Iberê
Camargo. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2009. 160 p.

WORRINGER, Wilhelm. Abstracción y naturaliza: una contribución a la psicología del


estilo. Tradução de Mariana Frenk. Cidade do México: Fondo de Cultura Economica, 2015.
Paginação irregular.

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