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O LUGAR DA AVALIAÇÃO NO TRABALHO PEDAGÓGICO

EM ESPAÇO HOSPITALAR

Ana Lúcia Tarouquella Schilke1 - UFF/FME

Grupo de Trabalho - Educação, Saúde e Pedagogia Hospitalar


Agência Financiadora: não contou com financiamento

Resumo

O presente texto tem por objetivo pensar as questões que subjazem ao tema da avaliação, a
partir da revisão de literatura sobre o tema e da experiência pedagógica desenvolvida em um
hospital público municipal. Tendo como referência a pesquisa realizada, é possível afirmar que
a maioria dos estudos sobre avaliação focalizam os aspectos macros da avaliação. Já os estudos
sobre avaliação em espaço hospitalar, além de um número bastante reduzido, centram-se na
produção acadêmica e na avaliação de opinião sobre o trabalho pedagógico em contextos
hospitalares, negligenciando assim, a avaliação da aprendizagem neste contexto. Observamos
que as estratégias pedagógicas e, em especial, as avaliações externas estão cada dia mais
presentes na escola, refletindo práticas autoritárias a serviço da domesticação. No entanto, é
possível buscar novos caminhos, principalmente quando pensamos na escola no hospital em
que a certificação, o controle e a punição são assumidos por outros atores sociais, possibilitando
ao professor a reconfiguração da sua função social neste contexto. Ao trabalhar com a avaliação
comprometida com a aprendizagem, e não com o desempenho, podemos estabelecer relações
dialógicas que propiciem processos pedagógicos mais democráticos, que horizontalizem
sujeitos, contextos sociais e conhecimento. Neste sentido, o ato de avaliar passa a estar a
serviço da redefinição de práticas, da compreensão de caminhos cognitivos e não da classificar
e hierarquizar saberes, que, consequentemente, segregam e excluem sumariamente, os alunos-
pacientes, em especial, aqueles das classes populares, de seu direito subjetivo à educação e ao
conhecimento socialmente construído. Assim, o debate sobre avaliação proposto neste estudo
pretende contribuir para o aprofundamento do debate sobre a avaliação em espaços educativos
em que a certificação, a classificação e a hierarquização não sejam a referência

Palavras-chave: Avaliação. Atendimento escolar hospitalar. Práticas pedagógicas.

1
Doutoranda pela Universidade Federal Fluminense, professora do Programa de Pedagogia Hospitalar
FME/NIterói- anaschilke@gmail.com

ISSN 2176-1396
28919

Introdução

O presente texto tem por objetivo pensar as questões que subjazem ao tema da avaliação,
a partir da revisão de literatura sobre o tema e da experiência pedagógica desenvolvida em um
hospital público municipal.
Analisando a literatura sobre avaliação podemos afirmar ser um tema relevante e atual.
Isso se justifica pelo fato da avaliação fazer parte do nosso cotidiano além de ser uma exigência
intrínseca ao trabalho docente. Sua importância também pode ser evidenciada pelo significativo
número de pesquisas e publicações que tomam a avaliação como objeto de estudo.
Encontramos inúmeros livros, teses, dissertações, artigos que revelam o acúmulo
teórico-prático em relação à avaliação. O que falta dizer/investigar em relação à avaliação, em
especial, a avaliação da aprendizagem em espaço hospitalar?
Primeiro, é oportuno lembrar que avaliação tem vários níveis ou modalidades. Saul
(2007) apresenta a imagem da avaliação fazendo uma associação com um casaco de várias
cores, reconhecendo diferentes modalidades de avaliação: de curso, de programas, de projetos,
de sistema, de política, de rendimento escolar e da aprendizagem. Podemos identificar também,
a partir de suas pesquisas, três níveis de estudo do tema avaliação, a saber:
a) micro: avaliação da aprendizagem
b) mezo: avaliação institucional
c) macro: avaliação de sistema (avaliação de larga escala)
Em segundo lugar, se é verdade que já temos significativo arcabouço teórico sobre o
tema, na revisão de literatura2realizada não foi encontrado, nas últimas duas décadas, os três
níveis ocupando o mesmo lugar no debate acadêmico. É possível afirmar que os estudos sobre
avaliação estão especialmente interessados nas avaliações de nível macro, ou seja, nas
avaliações em larga escala. Na busca realizada não foi identificado número significativo de
trabalhos que tomam a avaliação da aprendizagem e a avaliação institucional na mesma
proporção dos trabalhos sobre a avaliação em larga escala. Este número é ainda mais reduzido
quando pesquisamos trabalhos que tomam o cotidiano escolar hospitalar como perspectiva.

2 A referida pesquisa foi realizada no banco de dados da Scielo e da RBE a partir das seguintes palavras chave:
estado da arte e avaliação (4 trabalhos encontrados e 4 selecionados); avaliação educacional (288 encontrados e
38 selecionados); avaliação e cotidiano escolar (18 encontrados e 18 selecionados); avaliação da aprendizagem
(85 encontrados e 20 selecionados). A seleção ocorreu tendo como referencia o título e o resumo.
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Encontramos três trabalhos3que focam a avaliação da produção acadêmica sobre o tema em


espaço hospitalar e a satisfação dos usuários com o trabalho de pedagogia hospitalar. Não foram
identificados, nesta base de dados, artigos que tomam a avaliação da aprendizagem em hospital
como objeto de estudo. Para Nakagome, Oliveira e Watanabe (2011, 139), "são escassas as
publicações sobre avaliação, ainda que o debate sobre a escolaridade de crianças e adolescentes
hospitalizados e/ou portadores de doença crônica venha pouco a pouco ganhando mais espaços
nas produções acadêmicas nacionais". Assim, a questão central deste texto é problematizar o
lugar da avaliação da aprendizagem em educação hospitalar, buscando evidenciar os sentidos
atribuição aos seus usos e desusos.

Debate sobre avaliação: o que já foi produzido?

A partir do estudo levantado, é possível afirmar que a maioria dos estudos sobre
avaliação focalizam os aspectos macros da avaliação. Já os estudos sobre avaliação em espaço
hospitalar, além de um número bastante reduzido, centram-se na produção acadêmica e na
avaliação de opinião sobre o trabalho pedagógico em contextos hospitalares, negligenciando
assim, a avaliação da aprendizagem neste contexto. Foram encontradas em artigos publicados
em livro quatro produções que tomam a avaliação da aprendizagem como foco de estudo,
propondo a abordagem processual e dialógica desta prática pedagógica (AROSA, 2007;
SCHILKE; NUNES, 2008; NAKAGOME; OLIVEIRA; WATANABE, 2001; SILVA;
PONTES, 2011).
É fato que as avaliações externas estão cada dia mais presentes na escola, refletindo o
que vem amplamente sendo preconizado em diversos estados/países em relação à avaliação. É
possível ainda observar que tais avaliações ganham destaque na agenda mundial, sendo
inclusive assumidas em determinadas etapas educacionais como exame que permite a
certificação e a classificação dos alunos.
Observa-se relativo acúmulo em relação ao estudo da avaliação em seus aspectos
macros indicando certo apagamento, nos últimos anos, de estudos voltados para os aspectos
micro e mezo da avaliação. Outro dado relevante é que após 20 anos de aplicação e de estudo,
as avaliações de larga escala pouco têm ajudado na melhoria da educação, principalmente

3
A referida pesquisa foi realizada no banco de dados da Scielo utilizado como palavras-chave: avaliação e
Pedagogia Hospitalar, avaliação e Classe Hospitalar e avaliação e escola hospitalar. A referida pesquisa foi
realizada no banco de dados da Scielo utilizado como palavras-chave: avaliação e Pedagogia Hospitalar,
avaliação e Classe Hospitalar e avaliação e escola hospitalar
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quando pensamos em um processo educacional dialógico, participativo e democrático. Nesta


perspectiva, as avaliações estandardizadas, em larga escala, em nada têm colaborado. Tal
afirmativa se sustenta nos altos índices de analfabetismo em nosso país. Segundo dados do
IBGE4, divulgados em 2012, 13,2 milhões de pessoas entre 15 anos ou mais são classificadas
como analfabetas5. Este dado é ainda mais alarmante se for considerado o debate travado entre
o conceito de alfabetização e o que significa, em termos reais, demonstrar os conhecimentos
adquiridos pelos estudantes. Os dados revelam defasagem entre o que a escola tem como função
e o que realiza de fato. Este número denuncia o fracasso escolar vivenciado pela sociedade
brasileira.
Apesar dos dados absurdos a respeito de analfabetismo, também é evidente o expressivo
número de alunos das classes populares que estão regularmente matriculados na escola. Para
Esteban

A indiscutível democratização do acesso à escola, com a ampliação de vagas em todos


os níveis de ensino, não encontra equivalência no acesso ao conhecimento,
especialmente para as classes populares. Para estas, a escola continua uma promessa
por ser efetivamente cumprida (ESTEBAN, 2012, p.129)

A partir da Constituição de 1988, diversas legislações dentre estas o direito à educação


a crianças hospitalizadas, significaram um marco nas políticas de universalização da educação
em nosso país. Evidenciamos, assim, a igualdade de oportunidade, traduzida como acesso à
educação, porém não observamos, na mesma medida, a igualdade no que tange à
democratização do conhecimento. Isso ocorre porque na lógica neoliberal diferenças culturais
e sociais são transformadas em desigualdades a serem superadas. Nesta lógica, ter acesso à
educação é um direito, mas o sucesso escolar seria uma conquista individual relacionada ao
investimento pessoal e familiar, associada exclusivamente ao esforço pedagógico do aluno e ao
mérito de cada um. Para Freitas, (2012, p 383) “ela está na base da proposta política liberal:
igualdade de oportunidade e não de resultados [...] nada é dito sobre a igualdade de condições
no ponto de partida. No caso da escola, diferenças sociais são transmutadas em diferenças de
desempenho”.
Comungando com tais princípios, democratização do acesso e não do sucesso escolar,
em que a aprendizagem é secundarizada e o desempenho ganha a centralidade, as avaliações

4Informações coletadas em 23/11/2013 no site http://g1.globo.com/educacao/noticia/2013/09/indice-de-


analfabetismo-para-de-cair-e-fica-em-87-diz-pnad.html
5 Pessoa que não sabe escrever um bilhete simples no idioma que conhece. Informações coletadas em
23/11/2013 no
sitehttp://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/conceitos.shtm
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preconizadas pelos organismos públicos de educação ganham centralidade. O dito bom aluno é
aquele que apresenta um boa performance e a qualidade da educação é compreendida como a
qualidade de desempenho.
Assim, as políticas educacionais focam seus investimentos, prioritariamente, em
políticas de avaliação de resultados, materializadas em exames externos de larga escala,
padronizadas, aplicadas em determinados momentos com o objetivo de monitorar o
desempenho dos alunos, para assim corrigir possíveis insuficiências. Acompanhando tal
cenário, as pesquisas sobre avaliação voltam-se para o monitoramento das referidas avaliações
de larga escala, ou seja, avaliação de nível macro.
De acordo com Esteban, observa-se que não há relação entre o exame e o que ocorre
cotidianamente na sala de aula. Os processos pedagógicos vividos pelos alunos nas relações
com seus pares (professores, alunos e demais funcionários) são invisibilizados, e esses alunos
são avaliados apenas por questões objetivas padronizadas com percursos e pontos de chegada
rigidamente estabelecidos (ESTEBAN, 2009). As práticas pedagógicas desenvolvidas no
interior das escolas, com maior ou menor intensidade, são fundadas nesse princípio em que se
naturaliza o fracasso escolar, e a avaliação é um elemento-chave que solidifica e sustenta a
lógica perversa neoliberal. A avaliação, portanto, não é um conceito estéril, pelo contrário,
marca intenções políticas que concorrem para construção de determinado modelo de sociedade.
Mais do que concepção teórica da educação, a avaliação, como prática social, permeia
nossas vidas apresentando diversas funções. Avaliamos desde a roupa que vamos usar, até a
comida que comemos, identificando se está saborosa ou não. Avaliamos se uma pessoa está
bem vestida a partir das nossas referências, sinalizando o convívio diário com tal conceito.
Observamos vários aspectos, realizando diversos julgamentos de valor sobre as coisas que nos
rodeiam. Assim, avaliamos o tempo todo.
No caso da escola, a avaliação assume caráter sistemático e intencional, diretamente
relacionada com as práticas escolares. Sua função está dirigida para realizar os ajustes dos
processos de ensino-aprendizagem, no sentido de garantir o aprendizado de todos os alunos.
O que se coloca como central é reconhecer com quais concepções de avaliação e,
consequentemente, de aprendizagens estamos trabalhando. Segundo Fernandes (2009), a
avaliação, desde a sua origem até os dias atuais, foi se tornando mais complexa e mais
sofisticada. Evoluiu da concepção de sinônimo de medida, passando por descrições de padrões
previamente estabelecidos, juízos de valor, até ser concebida baseada em processos negociados
e interativos com aqueles que estão diretamente relacionados com a avaliação. Sua evolução de
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significado está diretamente relacionada aos contextos históricos e sociais em que surgia, além
de materializar propósitos aos quais está ligada.
Apesar da separação esquemática apresentada acima, as diversas concepções sobre a
avaliação aparecem no cotidiano escolar materializada por vezes, simultaneamente, podendo
conviver com todas as perspectivas citadas, no interior da escola, o que sinaliza parte da
complexidade a ser enfrentada quando se pensa em investigar/estudar a avaliação para além dos
livros teóricos, buscando a sua materialização na prática cotidiana.
Dada a sua amplitude, faz-se necessário pensar em que referencial teórico-
epistemológico será alicerçado o trabalho quando trabalhamos a partir do cotidiano. Conhecer
o processo histórico da avaliação, localizando suas implicações sócio-históricas, é de suma
importância para identificar a qual modelo avaliativo nossas ações cotidianas estão interligadas.
Precisamos, na mesma medida, conhecedores deste cenário, fazer uma escolha política para
direcionar nossas ações pedagógicas o mais conscientemente possível no sentido de trabalhar
(ou não) "para conseguir que todos os alunos tenham acesso a uma educação que lhes permita
sua plena integração na sociedade em que vivem" (FERNANDES, 2009 p.19).
Se o sucesso escolar, em termos teóricos, é algo recorrentemente desenhado em diversos
documentos e discursos pedagógicos, sua efetivação na escola não ocorre de forma linear e
automática. Este fato pode ser facilmente percebido quando identificamos um número de
crianças, mesmo escolarizadas, que ainda não dominam sequer o código escrito. Não basta
apenas conhecer os diferentes trajetos percorridos pela concepção de avaliação. É imperativo
colocá-la a favor do aprendizado do aluno, contribuindo para a sua emancipação, rompendo
com a lógica neoliberal em que se sustenta o fracasso escolar. Temos, como nos propõem
Esteban e Sampaio (2012, 2953), que

clama por uma ação pedagógica emancipadora, praticada cotidianamente, que


reconheça crianças e jovens, de classes populares como sujeitos de conhecimento,
com seus modos singularidades e próprios de aprendizagem, legitimando-os como
sujeitos capazes que são de dizer, pensar, decidir, fazer escolhas, (re)elaborar as
informações ás quais têm acesso, dentro e/ou fora da escola, criar produzir
conhecimentos.

Observamos que o debate sobre avaliação indica um caminho profícuo para o estudo
sobre o papel da escola como instituição formadora por produzir e distribuir determinadas
categorias de saberes; que produz e reproduz valores, que questiona e perpetua práticas
socialmente aceitas.
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No caso da escola no hospital, ela também cumpre determinada função, o que coloca
em xeque o lugar da avaliação neste contexto. Observamos que avaliação, o exame que ocorre
em espaço hospitalar é uma prerrogativa médica (AROSA, 2007). Ou seja, nesse espaço é o
doutor que avalia a condição clínica dos alunos, prescrevendo caminhos terapêuticos e
determinando, a partir desse estudo, a condição de saúde de seus alunos/pacientes indicando a
possibilidade de alta médica, gerando assim, uma certificação de saúde. A partir de laudos que
podem ser comparados à certificação das experiências escolares, podem ser separados os aptos
dos não aptos. Ou seja, os que passam de ano, ou não, os que recebem a alta ou permanecem
internados.
Independentemente dos critérios utilizados, é possível observar que encontramos, tanto
no hospital quanto na escola, alunos e pacientes que em função do seu mérito, do seu
desempenho merecem receber alta, ou passar de ano. Exemplo deste fato é o paciente que com
um quadro de pneumonia e determinada situação econômica pode ser tratado em casa e outro,
com quadro semelhante, deverá ficar hospitalizado.
Assim, evidenciamos que a avaliação guarda relação estreita com merecimento e
desempenho, seja econômico ou pedagógico. A clássica função de avaliar, intimamente
relacionada ao controle, na escola é de responsabilidade do professor, no hospital é de
responsabilidade do médico. Na relação médico-paciente como na relação professor-aluno, a
avaliação ocupa o lugar de domesticar, rotular e controlar comportamentos, não contribuindo
necessariamente, no caso da educação, com o sucesso escolar dos alunos. Observamos assim,
que a escola vem cumprindo a função de segregar, ou seja, de separar os capazes dos menos
capazes. Já o hospital, conforme sinaliza Foucault (1979), também adota formas sutis de
garantir a classificação, a qualificação e como consequência, a punição. O que podemos inferir
é que tanto o hospital quanto a escola são instituições que colaboram para a domesticação de
corpos e mentes. Seja o exame pedagógico ou o exame médico, tais procedimentos cumprem
estas funções, pois

o exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza.É


um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir.
Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados
e sancionado. (FOUCAULT, 1986, p. 86).

Se a escola e o hospital cumprem funções de segregar, normatizar e controlar, é possível


também identificar experiências que subvertem tais funções apesar de serem ainda muito
tímidas e com pouca visibilidade. Tal afirmação sinaliza a compreensão de que a escola e o
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hospital são espaços sociais que concorrem tanto para a manutenção quanto para a
transformação social. No caso da escola, Freire (2006) afirma que ela não muda uma sociedade
como um todo, como também sem ela não há mudança. Nas palavras do autor: "Se a educação
sozinha não pode transformar a sociedade, tampouco sem ela a sociedade muda". (1996, p. 36)
A avaliação, conforme apresentado anteriormente, cumpre várias funções, podendo ser
apresentada, segundo Garcia (2001), ligada a duas correntes paradigmáticas surgidas no século
XVII, que representam diferentes maneiras de compreender a avaliação. A primeira, defendida
por La Salle, que inaugura a lógica da verificação, hegemônica até os dias atuais; e outra
defendida por Comenius que concebe a avaliação como um processo que "convida o repensar
a prática pedagógica" (GARCIA, 2001, 32).
Identificados os dois paradigmas, podemos compreender a escola, seja no hospital, em
presídio, em assentamento ou qualquer lugar em que ela ocorra, como espaços de experiências
pedagógicas ligadas aos processos hegemônicos e contra-hegemônicos em que se disputa um
projeto de sociedade. Conscientes desse cenário, é importante pensar o lugar do
educador/professor, pois, para Freire (idem, p. 76), "o mundo não é, está sendo", abrindo assim,
caminhos para a mudança social, a partir de estratégias contra-hegemônicas, entendendo que
"mudar é difícil mas é possível" (FREIRE, p 79).
Mesmo considerando que as estratégias pedagógicas e, em especial, as avaliações
externas estão cada dia mais presentes na escola, refletindo práticas autoritárias a serviço da
domesticação, podemos, mesmo assim buscar novos caminhos, principalmente quando
pensamos na escola no hospital em que a certificação, o controle e a punição são assumidos por
outros atores sociais, possibilitando ao professor a reconfiguração da sua função social neste
contexto.

O lugar da avaliação na escola no hospital

Conforme sinalizado anteriormente, no hospital, o professor não tem o poder instituído


para promover ou reter alunos, ou para classificá-los a partir de critérios estabelecidos a priori.
A função clássica da avaliação, ou seja, de exercer o controle, materializado na
disciplinarização dos corpos e mentes, no espaço educativo hospitalar não tem sentido. O que
ganha legitimidade é a avaliação comprometida como a redefinição de práticas a partir da
tomada de decisões. Desse modo, como aponta Hoffmann:
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A avaliação deixa de ser o momento terminal do processo educativo [...] para se


transformar na busca incessante de compreensão das dificuldades do educando e na
dinamização de novas oportunidades de conhecimento. Para isso, ela deve ser
contínua, realizada em diferentes momentos, oportunizando um acompanhamento
sistematizado da aprendizagem do aluno pelo professor (HOFFMANN, 1995, p.21).

De modo complementar, Luckesi compreende que

a avaliação da aprendizagem escolar auxilia o educador e o educando na sua viagem


comum de crescimento, e a escola na sua responsabilidade social. Educador e
educando, aliados, constroem a aprendizagem, testemunhando-a à escola, e esta a
sociedade. A avaliação da aprendizagem nesse contexto é um ato amoroso, na medida
em que inclui o educando no seu curso de aprendizagem, cada vez com qualidade
mais satisfatória, assim como na medida em que o inclui entre os bem-sucedidos,
devido ao fato de que esse sucesso foi construído ao longo do processo de ensino -
aprendizagem. A construção, para efetivamente ser construção, necessita incluir, seja
do ponto de vista individual, integrando a aprendizagem e o desenvolvimento do
educando, seja do ponto de vista coletivo, integrando o educando num grupo de iguais,
o todo da sociedade (LUCKESI, 2009, p. 175).

Identificamos, pois, a relação vital entre prática educativa e avaliação, momento


em que o ato de avaliar exige a tomada de decisão sobre determinados instrumentos e
procedimento, no campo da prática educativa, que podem favorecer a aprendizagem de todos
os alunos. Para Freire (1989, p.47), o trabalho de avaliar a prática jamais deixa de acompanhá-
la. “A prática precisa da avaliação como os peixes precisam de água e a lavoura da chuva”.
Acrescenta ainda que, não é possível praticar sem avaliar a prática. Avaliar a prática é analisar
o que se faz, comparando os resultados obtidos com as finalidades que procuramos alcançar
com a prática. A avaliação da prática revela acertos, erros e imprecisões. A avaliação corrige a
prática, melhora a prática, aumenta a eficiência (FREIRE, 1989, p 47)
Mesmo com pouca possibilidade, no cotidiano das atividades escolares em ambiente
hospitalar, para articular o conhecimento trazido por estudantes das classes populares e as
práticas avaliativas oficiais, é possível desenhar caminhos que favoreçam a construção de
saberes por todos os alunos. As contradições das práticas escolares – que ao mesmo tempo
apresentam traços normatizantes e emancipadores – aparecem na disputa ideológica no espaço
do fazer pedagógico do ambiente hospitalar. Manifestam-se nos discursos e nas ações
pedagógicas dos docentes, mas também abrem brechas e desvios que têm potencial para
transformar as relações desenvolvidas no âmbito da instituição escolar, podendo favorecer a
construção de uma sociedade mais justa e menos excludente. Há a possibilidade concreta de
enfrentamento das condições adversas ao desenvolvimento de práticas educativas que
potencialmente apresentem traços emancipadores. Desse modo, a utopia passa a ser um
instrumento impulsionador. Como aponta Freire,
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Sempre recusei o fatalismo. Prefiro a rebeldia que me confirma como gente e que
jamais deixou de provar que ser humano é maior do que os mecanismos que o
minimizam. A proclamada morte da história que significa, em última análise, a morte
da utopia e do sonho reforça, indiscutivelmente, os mecanismos de asfixia da
liberdade. Dai que a briga pelo resgate do sentido da utopia de que a prática educativa
humanizante não pode deixar de estar impregnada tenha de ser uma constante
(FREIRE, 1996, p.115).

No senso comum, é entendida como algo impossível de ser realizado, mas em Freitas
(2010), encontramos que a palavra utopia se inscreve na obra e na vida de Paulo Freire como
"fortalecimento da práxis transformadora diante do cenário de globalização econômica e da
mercantilização da educação" (FREITAS, 2010, p. 412). Assim, rompe-se com a concepção
ligada a algo irrealizável e imaginário, longe do real. Ao contrário, utopia é entendida como a
dialetização dos atos de denunciar e anunciar. É esperança crítica, uma utopia concreta,
opondo-se a uma utopia abstrata.
Alicerçados na ideia de utopia freiriana, assumindo seu caráter positivo de força criadora
em que a subversão do status-quo é um desejo, iremos relatar estratégias contra-hegemônicas
que favorecem a construção de outros topos, comprometido com a democratização da educação.
Apesar do cenário das políticas educacionais tecidas em um contexto em que as concepções
neoliberais se apresentam como hegemônicas, o território escolar hospitalar ainda é, sem
dúvida, um importante espaço-tempo de disputas.
Os trabalhos6abaixo apresentados foram desenvolvidos na Classe Hospitalar em um
hospital público municipal e trazem elementos que possibilitam o debate sobre avaliação como
estratégia pedagógica que favorece a aprendizagem a partir da tomada de decisão e definição
de novas práticas.

6
Os referidos trabalhos foram realizados pela equipe pedagógica do Hospital Getúlio Vargas Filho, tendo como
tema o Tempo Hospitalar. Trabalho realizados pelas professoras Fátima Júlia Martins, Rosely Sardinha, Janete
Uchoa e Vera Franco .
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Ilustração 1: Material produzido por aluno durante atividade pedagógica em um hospital


público municipal

Fonte: A autora

Ilustração 2 : Material produzido por aluno durante atividade pedagógica em um hospital


público municipal

Fonte: A autora
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Observando os trabalhos e o relato dos professores que atuam no hospital investigado é


possível identificar que a estratégia contra-hegemônica adotada foi o trabalho sobre o tempo de
internação. Percebe-se que o diálogo é uma ferramenta fundamental para promover a reflexão
e o protagonismo dos alunos, principalmente em um espaço coletivo em que os fatos do
cotidiano são adversos. Tal caminho foi escolhido porque o grupo de professores, reconhecendo
o número de alunos que não aprendem, começou a refletir sobre este dado. Reconhecem, uns
mais que outros, que há descompasso e um distanciamento entre o que os alunos desejam,
sonham, reivindicam e o que, de fato, acontece no espaço escolar hospitalar. Buscam ouvir as
vozes silenciadas dos alunos, pois, conforme Freire, (1997; 1996) tal escuta possibilita uma
ação pedagógica comprometida com a pedagogia pautada na autonomia e na liberdade. Nesse
percurso, o que se busca é produzir intervenções pedagógicas que tomem a democracia como
princípio e como algo a ser alcançado permanentemente.
Para trilhar o caminho democrático da educação Freira ainda assinala que,

Se em verdade o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é falando aos
outros, de cima para baixo, sobretudo como se fôssemos os portadores da verdade a
ser transmitida aos demais, que aprendemos a escutar, mas é escutando que
aprendemos a falar com eles (FREIRE, 1996 p.113)

Nesta lógica, o diálogo é uma estratégia que impulsiona o pensar crítico-


problematizador, em que ao ouvir e falar "com" e não falar "sobre" as crianças é possível abrir
espaços para o (re)conhecimento dos sujeito - educando/ educadores- como produtores da
própria história. Pelo diálogo, podemos dizer o mundo, tendo como referência nosso modo de
estar neste mundo, ou seja, olhar o mundo a partir da nossa existência. Implica, pois, uma
responsabilidade entre a palavra dita e o seu testemunho, sendo assim, uma práxis social. Assim
avaliação e o diálogo abrem um caminho para outros topos, o topos democrático: o lugar em
que a “utopia” é realizável
Nos trabalhos apresentados, o tempo surge como estratégia que possibilita ao professor
identificar a compreensão da criança sobre o período da internação, sua doença e a sua produção
escrita. O olhar atento sobre os saberes e fazeres dos alunos possibilita a adoção de novas
práticas que partem da escuta dos desejos dos alunos, dos seus saberes e ainda não saberes.
Trabalhadas intencionalmente, tais intervenções propiciam a construção do texto reflexivo e de
uma linha do tempo daquele momento que vivem.
No âmbito curricular stricto sensu, como resultado do trabalho, encontramos explicitada
a compreensão sobre o tempo relacionado com a ideia de presente, passado e futuro, fazendo a
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devida relação com os tempos verbais, por exemplo. Na produção textual, além das questões
de coesão e coerência, foi possível trabalhar a autoria e a autonomia como expressão de desejos,
conhecimento de mundo e estratégia de comunicação, de forma a socializar a mensagem
desejada pelo aluno-autor de forma clara.
Ao trabalhar com a avaliação comprometida com a aprendizagem, e não com o
desempenho, podemos estabelecer relações dialógicas que propiciem processos pedagógicos
mais democráticos, que horizontalizem sujeitos, contextos sociais e conhecimento. Neste
sentido, o ato de avaliar passa a estar a serviço da redefinição de práticas, da compreensão de
caminhos cognitivos e não para classificar e hierarquizar saberes, que, consequentemente,
segregam e excluem sumariamente, os alunos-pacientes, em especial, aqueles das classes
populares, de seu direito subjetivo à educação e ao conhecimento socialmente construído.

Considerações finais

No campo da educação promovida em ambiente hospitalar ainda não contamos com um


acúmulo teórico significativo sobre o tema avaliação. Apesar do reconhecimento legal do
direito da criança hospitalizada à educação, aspectos como currículo, formas de mediação,
gestão e avaliação, muitas vezes, são tratados de forma dissociada. Encontramos textos que
tratam de uma das vertentes acima sem fazer as necessárias relações entre conhecimento,
aprendizagem e avaliação. Observamos que as políticas educacionais centradas em exames
externos em larga escala ocupam o cenário político e acadêmico não proporcionando o debate
sobre avaliação alicerçado em outras bases que não estejam alinhados com a lógica
meritocrática e do desempenho.
Assim, o debate sobre avaliação aqui proposto pretende contribuir para o
aprofundamento dos estudos sobre a avaliação em espaços educativos em que a certificação, a
classificação e a hierarquização não sejam a referência. Mesmo com tal cenário mencionado
acima, aquelas práticas - normatizantes e as emancipadoras, que convivem em disputam no
território pedagógico na Classe Hospitalar do hospital municipal -abrem portas às experiências
vividas no cotidiano escolar que têm potencial de transformar relações, indicando caminhos,
brechas, desvios que contribuem para a construção de uma escola, que se torne potencialmente
para todos.
28931

REFERÊNCIAS

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