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MARIO PEDROSA (1900-1981) — ANOTACOES SOBRE SUA TRAJETORIA INTELECTUAL. RAFAEL ELIA* A recuperagao da produgdo e do significado da obra de Mario Pe- drosa é uma tarefa que necessita ainda de um estudo sistematico. A dificuldade maior no esta no fato de tal produc&o encontrar-se esparsa mas no estabelecimento de uma dentre as varias possibilidades de lei- tura do material. De inicio, é necessario limpar o campo a fim de des- mistificar sua imagem, nAo no sentido iconoclasta, mas que se pesquise e se estabeleca um perfil, verdadeiramente histérico desta figura que se constitui em parte de nossa histéria da cultura contemporanea. As contradicées aparecem na propria documentacao: a titulo de exemplo tomemos sua tese Da Natureza Afetiva Da Forma Na Obra De Arte, de 1949(1) . Os estudiosos so undnimes em afirmar o pioneirismo de Mario Pedrosa no sentido de abordar o problema da arte pelo ponto de vista da Gestalt e na tentativa, também pioneira, de elaborar uma Estética da Forma baseada na psicologia. Como explicar o fato deste trabalho, fundamental para o entendimento da produgdo do autor, ter permanecido inédito por mais de 30 anos? Varias destas questées surgem e nos colocam diante da realidade deste artigo que nao pretende ser exaustivo, sistematizador ou definitivo. ‘Trata-se de um esboco, um levantamento de hipéteses, a delimitacao de alguns tragos que podem auxiliar um futuro estudo sobre Mario Pe- drosa, Para enfrentar sua producéo devemos, mesmo que rapidamente, tragar suas linhas mestras, seus pontos de referéncia. Para tanto de- vemos retornar aos anos 20, periodo de sua formac&o e aquisicéo de seus principais pressupostos tedricos. Aluno da Faculdade de Direito de 1920 & 1923, perfodo em que tomou contato com as questées sociais e o marxismo, fazendo parte do grupo do Prof. Castro Rabello. Esteve em Sao Paulo em 1924 como fiscal in- terino do imposto de consumo e encarregado da critica de livros do jornal Diario da Noite. Ligou-se ao grupo modernista e seu representan- te maximo, Mario de Andrade. Ingressou no Partido Comunista em 1926. No ano seguinte com a declaracio da ilegalidade do partido, Mario foi enviado, pela direcdo do PC, para estudar na Escola Leninista de Moscou. Por motivos de satide permaneceu em Berlim como militante nas lutas contra o nazismo. Em 1928 definiu-se pelo partido de Trotsky. Retornou ao Brasil em 1929 e, nos anos seguintes, tentou organizar o movimento trotskista, trabalhou para O Jornal no Rio, fundou a editora Unitas que tinha a finalidade de publicar textos marxistas. Preso em R. bras, Hist, S80 Paulo, 2 (4): 259-264, set. 1982 260 1932, durante a Revolugdo Constitucionalista. Foi desta data, também, seu primeiro ensaio sobre artes plasticas: a conferéncia “As tendéncias sociais da arte e Koethe Kollwitz”, no Club dos Artistas Modernos. (2) ‘A enumerac&o desta série de’ dados nos sugere os dois principais eixos da vida e obra de Mario Pedrosa: o militante politico e 0 tedrico da arte. Estes dois rumos se entrelacarao ao longo de toda sua tra- jetoria, As quests politicas foram a ténica de suas atividades até 1937. Lutou contra o Integralismo tendo sido perseguido e obrigado a se exilar em Paris e nos B.U.A.. Trabalhou para a organizagao da IV Internacional. Desligou-se, porém, de Trotsky em 1940. Regressou ao Brasil em 1941, foi preso e obrigado a retornar aos E.U.A.. Este foi seu primeiro periodo de exilio que terminou em 1945 quando voltou ao Brasil e se integrou as atividades politicas e culturais do pais: ingresso no Partido Socialista em 1947 e a criagao da secdo de artes plasticas do Correio da Manha em 1949. Sua tese Da Natureza Afetiva da Forma na Obra de Arte, de 1949, deve ser mencionada com um pouco mais de atengdo na medida em que tal estudo marca a produco critica posterior do autor. Projeto pioneiro no sentido de aproximar a arte da psicologia e, como afirma Otilia Arantes: “Decidido entdo a participar do concurso para catedra de Historia da Arte e Estética da Faculdade Nacional de Arquitetura (...) redige em poucos meses uma tese que se constitui na ocasiio numa das raras tentativas, em plano mundial, de utilizagao sistematica dos ensinamentos gestalticos para resolver problemas estéticos-teoricos ‘ou metodologicos”. (3) © panorama da critica de arte brasileira esté ainda em estudo, 0 que dificulta a localizaco da obra de Mario Pedrosa no tempo. Mesmo a evolugio do pensamento estético no Brasil nao nos fornece referenciais seguros. (4) A grosso modo, percebemos que os intelectuais que lida- vam com questées artisticas nos finais dos anos 40 e inicios da década de 50, enfrentavam um momento de esvaziamento teorico, na medida em que se diluira a ligao e o projeto modernista no campo das artes. ‘A situacio hist6rica se transformava rapidamente a partir do surto industrial tornando anacrénicas as polémicas sobre a funcdo social da arte, o nacionalismo artistico e, ao nivel da obra de arte, a tradicional cisdo entre contetido nacional e técnica internacional nao resolvia mais a questo da relacdo entre sujeito e objeto na arte. Neste contexto, o pioneirismo de Mario apareceu pela solugdo de integracao da antitese subjetividade versus subjetividade, ao declarar a existéncia da “boa forma” e da “natureza afetiva da forma na obra de arte”. No fundo, o autor, deslocou a questo para outro angulo, j& que a estética tradicionalmente respondia de duas*formas: 1 — pela andlise direta das obras busca-se a suposta garantia da objetividade, como conseqiiéncia temos o formalismo; 2 — pelo estudo da concepcao da obra enfatizando a vida do artista caindo, geralmente, na biografia. Mario percebe que: “o problema da apreensao do objeto pelos sentidos 261 60 problema ntimero um do conhecimento humano. A primeira aqui- sicdo cientifica, a primeira aquisicao filoséfica e a primeira aquisi¢ao esiética esto reunidas de inicio no nosso poder de perceber as coisas pelos sentidos (...) Essa caracteristica sensorial pura da percepgao es- tética indica que 0 problema fundamental, quando se aborda o fend- meno artistico, néo 6 o de saber como os objetos sdo concebidos ja na consciéncia refletida, mas como nés os percebemos. (...)” (5) ‘Ao deslocar 0 problema para a relac&o entre fruidor e obra, o autor recai em questdes de gosto, de subjetividade e de repertorio visual. O fato de um individuo ligar-se a uma determinada forma pode ser ex- plicado por pelo menos dois motivos: por simpatia, isto é, a forma que esta sendo observada possui um registro positivo no repertorio visual do fruidor, ou antipatia quando a forma é repelida na medida em que se apresenta como uma experiéncia negativa & meméria visual do fruidor. Em ambos os casos temos critérios relativos, individuais e subjetivos, 0 que nao nos conduz a determinagao do valor artistico de uma obra qualquer. (6) No interior da tese encontramos uma saida para este impasse, quando Mario sugere a ligacdo da “boa forma” com o primitivo e 0 esponténeo. As formas sao recebidas de maneira afetiva pelo fruidor sempre que reativarem as ligagdes do homem com suas percepgdes pri- meiras e espontaneas, As vanguardas historicas europélas do inicio do séc, XX jd haviam buscado tais relacdes ao valorizarem os produtos das culturas’ arcaicas como as africanas, asiticas, etc. Nestes termos a funedo da arte para Pedrosa seria “corrigir”, deli- mitar, evidenciar as expressées primeiras. Assim como assistimos ao esgotamento das vanguardas, quer pela incorporacao das artes a0 capi- talismo monopolista, quer pela busca de um lugar de constante questio~ namento por parte dos artistas em crise de identidade, veremos que as idélas de Mario Pedrosa irao afasta-lo da funcao de critico de arte, ja que tal atividade perde seu sentido na sociedade contemporanea, res- tando, para ele, a defesa das sociedades indigenas.(7) “Das Vanguar- das voltadas para as formas puras & revalorizacéo da arte primitiva o caminho seré natural. A oposi¢éo € apenas aparente: aquelas bus- cando conscientemente a estrutura ideal, esta aproximando-se esponta- neamente da “boa forma”, Ora, com 0 esvaziamento progressivo das vanguardas (...) 0 critico estaria justamente fadado a buscar @ pureza artistica em expressées mais arcaicas. A trajetoria de Mario Pedrosa 6 clara e coerente”. (8) Afastado forgosamente do ambiente politico e cultural dos anos 30 e 40, suas idéias e sua acéo marcaram os anos 50 e 60: organizou a Bienal de 1953; criou a coluna de artes plasticas de Jornal do Bras esteve no Japao como delegado eleito no Congressa da Associagao Inter: nacional de Criticos de Arte de 1957; na Italia, com a finalidade de es- tudar as relacdes artisticas entre Japéo e Buropa-América, projeto financiado pela UNESCO; organizou o Congresso Internacional de

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