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Madrinha Aurora
Quando eu era bebê (criança?) tive um bebê que veio da Alemanha antes
da Segunda Guerra. Era um sobrevivente muito valorizado na família,
que deveria ser cuidado e guardado. Tinha olhos castanhos com cílios
espessos. Os olhos se mexiam muito, de forma abrupta e inquietante.
Eram de vidro, mas era como se fossem de verdade. Pareciam ter visto
coisas que precisavam ser ditas. Mas a pequena língua de cartão vinho
dentro da boquinha pintada no rosto de biscalóide não era capaz de
contar nada. Os cabelos em relevo, delicadamente coloridos em tons
castanhos claros e acobreados, não se moviam. As pernas, os braços e
as mãozinhas de formas rechonchudas eram duras e frias. Apenas o
tronco era macio, de pano recheado, e oferecia algum conforto.
Meu crime logo foi descoberto. Não fui gravemente repreendida, mas
houve comoção. Tentaram entender porque eu tinha feito aquilo. Eu não
sabia explicar, apenas disse alguma coisa sobre sentir medo. O bebê foi
levado ao Hospital de Bonecas. Voltou um pouco mudado. Continuou a
me fascinar e assombrar. Cometi o mesmo crime mais algumas vezes até
que, um dia, o bebê voltou com novos olhos. Os olhos não se mexiam
como antes. Os olhos não guardavam histórias que ele não queria me
dizer. Eram olhos realmente novos. Não tinham vindo da Alemanha antes
da Segunda Guerra. Não tinham acompanhado a conturbada e misteriosa
história da família da minha avó entre os anos vinte e trinta, no interior de
Minas Gerais. Aqueles olhos não tinham nada a me contar. Os olhos
antigos, os olhos testemunhas de vidro tinham sido quebrados por mim
mesma. Dos cacos eu esperava a resposta, um dia. Naquele momento, o
bebê deixou de me interessar. Era só uma antiguidade pitoresca da
família, com a qual eu podia brincar às vezes. Nunca mais cometi meu
crime. A falta de ar melhorou.
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Eu estava no carro dos meus avós. Era um Fusquinha e o rádio estava
ligado em uma estação AM. Meus avós aguardavam ansiosamente
alguma notícia. Havia um peso e uma tensão parecidos com os olhos
antigos do boneco alemão. Quando estamos passando em frente ao
Palácio Guanabara a notícia é veiculada, mas eu não entendo o que é
dito. Meu avô grita, minha avó chora. Pergunto se algo ruim aconteceu.
Minha avó ri e diz que não, diz que algo finalmente melhorou. Ela chora e
ri ao mesmo tempo e me diz que às vezes a gente chora de alegria e de
alívio. É 13 de outubro de 1978, tenho quatro anos e alguns meses, é
aniversário do meu avô e é anunciado o fim do Ato Institucional Número
Cinco.
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Eu tenho uma foto de colégio desse ano, poucos meses antes. Instituto
São Sebastião. Sou uma das poucas que sorri na foto. Tenho uma amiga.
Mas vê-se que não estou feliz.
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A partir dessa observação percebe-se que o território da morte ainda não havia sido
moralizado e submetido à soberania divina - e, consequentemente, às estruturas
políticas, sociais e jurídicas implicadas nesta crença de que um deus governa as
almas dos mortos e as julga eternamente de acordo com os atos em vida. Toda a
estrutura de poder e de adestramento moral baseados nas ameaças e promessas
do além-tumba é desnaturalizada. Uma outra desnaturalização é ainda mais radical:
a da crença de que o homem seja um (pós) animal tão especial que tenha um
espírito único e superior que o faz sobreviver à própria morte, invertendo e
superando as leis da natureza. O sheol igualava a todos os que foram um dia
viventes, depois de mortos, em um terreno de indiferenciação e aniquilação. Nesta
forma de judaísmo antigo a diferença do homem para o animal é insignificante:
todos morrem, nada é poupado, tudo do homem é, no fim, apenas vaidade.
Tal constatação talvez sirva para fabular sobre uma outra passagem do
Antigo Testamento: o assassinato de Abel pelo irmão Caim e o que levou Caim a
isso. A contenda entre os irmãos se inicia por ciúmes e inveja, porque o sacrifício de
Abel agrada a Iahweh, enquanto o de Caim desagrada. Abel oferece carnes, sangue
e gordura, aceitas com prazer como parte de uma comunhão. Caim faz uma
oferenda trabalhosa de vegetais que ele mesmo plantou e colheu. Tal passagem
gera estranheza: o sacrifício a princípio mais primitivo, violento e mortal é o
preferido por este deus. A engenhosidade e o trabalho dedicado de Caim, que
poupa outros animais da morte, são desprezados. Caim contesta, o que desagrada
ainda mais a Iahweh. Considerando a análise de Romandini acima e lembrando
que o Iahweh desta época é um deus que se ocupa da vida, dos vivos e de seu
louvor, a passagem pode fazer mais sentido: Abel é um espírito nômade pastor-
caçador, sua vida é próxima à dos animais, é parte da natureza, vida e morte fazem
parte de um mesmo ciclo de transformação que iguala tudo o que é orgânico; Caim
é o agricultor, o que se estabelece como sedentário, o que inicia a cisão, o que
doma a natureza, o precursor das cidades, o vaidoso de suas capacidades. Caim
simbolicamente inaugura, na cultura judaico-cristã, o homem que, em sua hybris, vai
se ocupar também de legislar sobre os espectros dos mortos e ambicionar o fim da
própria morte, a ponto de decretar e proclamar a sua própria eternidade. Pode-se
ver neste mito também um vestígio e uma parábola de como o homo sapiens
exterminou outros hominídeos inteligentes. Independente desta última interpretação,
os engenhosos Caim do mundo irão, de fato, exterminar - ou colonizar - tudo o que
“for Abel” em seu caminho. A civilização, segundo esta interpretação,
paradoxalmente e horrivelmente inaugura-se sobre um assassinato, sobre o
extermínio do homem em comunhão. Talvez esse seja o sentido do que agrada ou
não a este deus nesta antiga passagem da Bíblia: o homem unido ao todo, humilde
ao aceitar sua finitude e sua animalidade, comparável a um personagem dionisíaco
primitivo; ou o orgulhoso homem prometéico, que pretende superar, dominar e
legislar sobre seus semelhantes, os corpos, a natureza, a vida, a morte - governar
sobre e a partir de seu próprio deus, afinal.
Seguindo ainda essa mitologia, é segundo “os Caims” da cisão e da vaidade
que começarão a se sustentar as novas crenças de então. Romandini segue em sua
arqueologia do imaginário judaico-cristão:
…um novo tipo de judaísmo radical, inédito, estava surgindo para revolver as próprias
bases das tecnologias de poder do judaísmo mais arcaico. Com efeito, a apocalíptica
levará a cabo lentamente uma transformação sem precedentes na antropologia política
judaica, ainda que as mudanças não haveriam de se introduzir senão de
modo aparentemente marginal. O núcleo de tal transformação poderia muito bem ser
resumido na seguinte fórmula, inspirada por um dos mais célebres especialistas no
assunto: a apocalíptica consegue transformar a morte em uma realidade contra
naturam. Não é possível minimizar a importância desta mutação da qual ainda estamos
muito longe de termos extraído todas suas conseqüências para a história política do
Ocidente. Com um gesto inesperado, a apocalíptica proporá a subversão da ordem
natural da vida e da morte, uma alteração do ciclo cósmico como resultado da ação
primordialmente sobre-natural (entenda-se contra-natural) e política do Deus soberano.
Não se pode esquecer que o sobrenatural é a forma paradigmática do exercício do
poder divino. Em sentido estrito, aqui tem lugar uma certa forma de primeira ação
artificial sobre o reino da vida por parte da divindade. (loc 2498 aa 2514, grifos meus)
O que ocorre na pós-verdade que talvez seja novo é que, para muitos, a
revelação da mentira não causa mais nada. A mentira não importa, não tem
consequências. Ou melhor: pode ter consequências favoráveis e recompensar
quem mente, se a mentira agradar a quem interessa “comprá-la” como uma
realidade. Como analisa Renato Janine Ribeiro:
Essa tendência traz um elemento triste. Não é apenas falar uma mentira. Ao dizer
'pós', é como se a verdade tivesse acabado e não importa mais. Essa é a diferença
entre pós-verdade e todas as formas de manipulação das informações que tivemos
antes. É a ideia de que teríamos deixado um tempo em que nos preocupamos com isso
e passamos então a um tempo em que seria avançado relativizar ou mesmo desdenhar
a verdade. Se isso realmente for uma nova tendência, é extremamente perigoso para o
futuro da sociedade democrática, porque a democracia será apenas um show de
entretenimento.[…] nesses últimos anos, a política se transformou com o uso intenso do
marketing, das redes sociais e da produção de narrativas. […] Quando você passa a
construir uma campanha com imagens falsas que agradam ao eleitor, ou você tem
anticorpos poderosos dos eleitores contra essas imagens ou a imprensa deveria ser
esse principal anticorpo. Caso contrário, a pós-verdade, a manipulação das mentes e a
mentira deslavada acabam triunfando.
Terra de refugiados sem refúgio – Antropoceno e outros nomes para a era dos
fins
A atuação humana, desde o advento da agricultura e principalmente a partir
da revolução industrial, foi tão decisiva que afeta a estrutura do planeta, a ponto de
poder ser considerada uma nova era geológica. Cientistas, filósofos e
pesquisadores começaram a cunhar e adotar termos como antropoceno,
capitaloceno, plantationoceno e chthuluceno.
O primeiro termo faz referência direta à ação da espécie humana sobre o
planeta e seu impacto. Antropoceno começou a ser usado por cientistas, em
discussões sobre as mudanças climáticas no final do século passado: o biólogo
Eugene Stoermer cunhou originalmente o termo na década de 1980 e no ano 2000,
junto ao químico atmosférico Paul Crutzen, ganhador do Prêmio Nobel por sua
pesquisa sobre a camada de ozônio, formalizaram e popularizaram seu uso.
Crutzen explica como surgiu: ”Eu estava numa conferência onde alguém disse
alguma coisa sobre o Holoceno. De repente, eu pensei que isso estava errado. O
mundo mudou demais. Então eu disse: 'Não, nós estamos no Antropoceno'. Eu criei
a palavra no calor do momento. Todos se chocaram. Mas ela parece ter
ficado."[Wikipedia, apud Pearce, Fred (2007). With Speed and Violence: Why
Scientists fear tipping points in Climate Change. [Malaysia?]: Beacon Press. p. 21.].
O Holoceno inicia-se com o fim da Era do Gelo, há cerca de doze mil anos, e
abrange todo o período da civilização humana, da multiplicação do homo sapiens
pelo planeta. No entanto, o ritmo, a profundidade e a radicalidade do impacto
humano nas últimas décadas fez com que se pensasse nesta outra era, cujo início
não é um consenso: pode se situar em algum ponto entre o advento da Revolução
Industrial e da expansão tecnológica, informática e de consumo após a Segunda
Guerra Mundial, nas décadas de 50 e 60 do século XX.
A filósofa feminista multiespécies e professora de História da Consciência
Donna Haraway, em seu artigo “Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno,
Chthuluceno: fazendo parentes” procura definir essa diferença, a partir de outra
pesquisadora: “Anna Tsing argumenta que o Holoceno foi um longo período em que
os refúgios, os locais de refúgio, ainda existiam, e eram até mesmo abundantes,
sustentando a reformulação da rica diversidade cultural e biológica. Talvez a
indignação merecedora de um nome como Antropoceno seja a da destruição de
espaços-tempos de refúgio para as pessoas e outros seres.” É mais do que um fim
de era: é uma era de fins.
O Haloceno, apesar de algum impacto exercido pelo homo sapiens, com a
agricultura e formação de cidades e civilizações, permite vastos espaços e tempos
de refúgio, a escapada, a brecha, a terra incógnita; o Antropoceno é voraz, acelera
ritmos para além da escala vital, fecha saídas, interrompe fluxos, elimina vias e
vidas. O segundo e o terceiro termo, Capitaloceno e Plantationoceno, questionam
que “ser humano” é este do Antropoceno e o que faz no planeta. São termos que
desnaturalizam mais esse “antropos”, que o localizam mais especificamente de
forma econômica e política: é o homem que depende da indústria agrária e vive no
capitalismo que exerce este impacto extremo e, além de, e atravessando este
homem, são a própria agroindústria e o capitalismo como máquinas e sistemas que
atuam prioritariamente na deterioração do bioma planetário. O termo Capitaloceno
foi cunhado por ————— ; Plantationoceno surgiu em meio às discussões de um
grupo do qual Donna Haraway e Anna Tsing fazem parte, —————. Mais uma
vez, segundo Donna Haraway:
O Antropoceno marca descontinuidades graves; o que vem depois não será como o
que veio antes. Penso que o nosso trabalho é fazer com que o Antropoceno seja tão
curto e tênue quanto possível, e cultivar, uns com os outros, em todos os sentidos
imagináveis, épocas por vir que possam reconstituir os refúgios.
Neste momento, a terra está cheia de refugiados, humanos e não humanos, e sem
refúgios.
Por outro lado, talvez seja necessário também não se furtar às ousadias de
pensar maior, de imaginar muitos outros possíveis, de criar narrativas
multidimensionais cheias de vontade e paixão, que possam dar conta dos desejos
que se veem frustrados diante deste imenso e irredutível isso não é mais possível
que a intrusão de Gaia apresenta. Desejos são persistentes e exigentes, é preciso
lhes oferecer algo à altura do que se lhes tira, é preciso além de ter razão também
ter sentimento, sensação, corpo, um tanto como a ideia de um Chtulhuceno e toda a
profusão de nomes de Gaia e mitos tentaculares reinventados que Haraway propõe,
um pouco como as ficções científicas e fantásticas mais experimentais arriscam: se
as utopias modernas tornaram-se inviáveis e as distopias futuristas a cada dia mais
cotidianas e prováveis, talvez precisemos pensar cada vez mais em heterotopias
possíveis. Pensar diferentes espaços-tempos e neles atuar, concretizando
suberstições que possibilitem a subversão e a evasão dos esquemas hipersticiosos
do hipercapitalismo.
Há que se deixar claro que o combate à política do espetáculo, da pós-
verdade e do discurso triunfante de uma “vitória” histórica, que tornou “mais fácil
imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo”, na conhecida afirmação de
Jameson, não pode se basear nas mesmas estratégias apenas polarizadas em
outro espectro político: as próprias estratégias são parte fundamental do problema
catastrófico em que se vive. O estado de negação das realidades mais cruelmente
concretas deste tempo de agora está na raiz da inação diante das urgências
coletivas que se apresentam, está na base da aceitação de discursos
simplificadores e irreais. É necessário uma oposição de fato: elaborar narrativas que
consigam desmascarar de forma muito clara e direta as farsas paralisantes, que
possam criar o efeito de um choque de realidade em oposição ao espetáculo, em
que o impacto de verdades inconvenientes faça acordar do transe preguiçoso das
historinhas simples e cômodas. É urgente que se consiga gerar o reconhecimento
de que, segundo os parâmetros e discursos vigentes, na realidade estamos todos já
derrotados e que a única chance de sobrevivência humana – ainda que incerta –
será inventar novos meios de viver juntos neste planeta. Como observa Stengers:
Se estamos em suspenso, alguns já estão engajados em experimentações que
buscam criar, a partir de agora, a possibilidade de um futuro que não seja bárbaro –
aqueles e aquelas que optaram por desertar, por fugir dessa ‘guerra suja’ econômica,
mas que, ‘fugindo, procuram uma arma’, como dizia Gilles Deleuze. E, aqui, ‘procurar’
quer dizer, antes de tudo, criar, criar uma vida ‘depois do crescimento econômico’, uma
vida que explora conexões com novas potências de agir, sentir, imaginar e pensar. Estes
já escolheram modificar sua maneira de viver, efetiva mas também politicamente: eles
não agem em nome de uma preocupação culpada por sua ‘pegada ecológica’, mas
experimentam o que significa trair o papel de consumidores confiantes que nos é
atribuído. Ou seja, o que significa entrar em guerra contra o que atribui esse papel e
aprender, concretamente, a reinventar modos de produção e de cooperação que
escapem às evidências do crescimento e da competição. […] Trabalho com as palavras,
e as palavras têm poder. Elas podem enclausurar em polêmicas doutrinárias ou visar o
poder das palavras de ordem – por isso tenho medo da palavra ‘decrescimento’ – mas
elas podem também fazer pensar, produzir formas de comunicação um tanto novas,
chacoalhar alguns hábitos – por isso honro a invenção da expressão ‘objetores de
crescimento’. As palavras não têm o poder de responder à questão imposta pelas
ameaças globais, múltiplas e emaranhadas. […] Mas elas podem, e é o que este livro
tenta, contribuir para formular essa questão de um modo que nos force a pensar no que
deve ser feito para que exista a possibilidade de um futuro que não seja bárbaro.” (P. 14-
16)