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POESIA, CRÍTICA, ENDEREÇAMENTO

Celia Pedrosa

Na poesia brasileira produzida a partir dos anos de 1990,


tem sido bastante apontado o hibridismo de verso e prosa
e, nele, em especial, o papel importante dos procedimentos
de narrativização. Esses aspectos, vinculados a um reinvesti-
mento na relação entre linguagem e experiência, ganham em
interesse e complexidade quando passam a ser articulados a
outra característica discursiva – o endereçamento.

Este, na verdade, pode ser considerado, já desde a tradição sáfi-


ca, próprio do lirismo, obrigando-nos a repensar sua convencional
compreensão solipsista. Pois nele assim se reconfigura um aspecto
básico analisado por Émile Benveniste no uso oral dos pronomes:
o eu só é empregado quando numa situação comunicativa com
um tu ou você com os quais estabelece uma relação contraditória
de oposição e reversibilidade.

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Na poesia moderna, constitutivamente lírica – e antilí-
rica –, essa contradição vai ser radicalizada em poemas que
tanto tematizam o endereçamento quanto o performam
para destinatários muitas vezes nomeados, mas insistente-
mente indeterminados, que chegam a poder se confundir,
seja com o próprio sujeito da enunciação, seja com um
leitor desconhecido.
Daí decorre uma distensão identitária do eu e, analoga-
mente, da destinação de seu discurso, que pode ser asso-
ciada tanto às problematizações da subjetividade, quanto
às transformações na relação entre literatura e público,
ambas características da modernidade. O investimento na
primeira pessoa endereçada pode ser compreendido então
como modo paradoxal de a poesia solicitar e colocar em
crise a lógica da copresença e da identidade que preside a
comunicação linguística; e também a transitividade do eu ao
outro, do individual ao coletivo, do singular ao comum, bem
como o sentido de cada uma dessas instâncias e categorias.
É justamente esse paradoxo que nos interessa ressaltar
na poesia brasileira das últimas décadas e em certa recepção
crítica que esta vem provocando. Pois é pela via do ende-
reçamento que, desde os anos de 1980, detectamos nela
um potencial de produtividade que permite desentranhar
também importantes indicações para reavaliar a poesia
anterior, já canonicamente moderna.

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O endereçamento foi de fato considerado peça-chave da
poesia de Ana Cristina César, publicada a partir de 1979,
e transformada, sob perspectivas diversas, e mesmo anta-
gônicas, em principal via de acesso e compreensão de sua
geração. Podemos tomar aqui como exemplares a esse res-
peito os ensaios de Flora Süssekind e Florencia Garramuño,
que a focalizam a partir da noção de “arte da conversação”,
valorizando nela o efeito de prosaicização de poemas es-
critos e endereçados como cartas ou anotações em diário.
No entanto, as ensaístas não se detêm no vínculo entre
essa marca discursiva e a relação com o destinatário e leitor,
preferindo enfatizar de outros modos seus efeitos sobre a
performatização pluralizada da subjetividade lírica. Flora
aborda a inscrição profanadora da poesia de Ana Cristina
na tradição literária moderna, que sustentaria a teatraliza-
ção ficcionalizante da subjetividade e assim a distinguiria
do expressivismo espontaneísta praticado por seus com-
panheiros. E a partir de suas leituras/traduções de poetas
como, por exemplo, Marianne Moore, apenas sugere o
interesse das imagens que funcionariam como “mediadoras
possíveis de uma concepção de leitura”, oscilando entre a
de uma girafa solitária e a de minúsculos ratos castanhos,
associáveis respectivamente a textos alcançáveis apenas por
leitores poucos e especiais ou muitos e comuns.

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Já Florencia, sob um viés mais pós-moderno, valoriza,
nessa subjetividade fragmentada, não a encenação antiex-
pressiva, mascarada, mas, ao contrário, a força pulsional
que, ao contrário, a aproximaria da proposta marginal
de poesia como “ritual orgiástico de comunhão erótica e
ideológica com a plebe”, conforme definição do poeta e
crítico Italo Moriconi. Embora não discuta esse efeito de
endereçamento, o fato de associá-lo a um exercício sofisti-
cado de escrita indica a necessidade de problematizar tanto
a identificação de erotismo à oralidade espontaneísta quanto
a comunhão que ela propiciaria.
Ana Cristina, como se sabe, também aborda esses
equívocos. E, se por um lado se preocupa em questionar
a ideia de “pura literatura”, cifrada, enigmática, por outro
ironiza a “lei do grupo”, marginal, que associaria o prosaico
e o vital apenas a poemas curtos e despretensiosos, fáceis;
assim como desconfia também da “lei” política com que
Jorge Amado, por exemplo, legitimara sua escrita por uma
incontestável destinação dita nacional-popular.
Em sua poesia, o endereçamento carrega outra demanda,
ressaltada na leitura que, ainda em 1985, no ensaio “Singular
e anônimo”, o crítico Silviano Santiago propôs, antecipando
questões que hoje se impõem como incontornáveis, como
abordaremos adiante. Desde então ele já deixa de lado a
oposição entre lirismo e antilirismo que por muito tempo

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ainda vai engessar nossa crítica de poesia, assim como
aquelas entre experiência e experimentalismo, entre fácil e
difícil, a ela associada. Considerando que toda “linguagem
poética existe em estado de contínua travessia para o
Outro”,1 enxerga tal travessia nos poemas de Ana como
um gesto simultâneo de ternura e desafio, na contramão,
dirigido a um interlocutor ora nomeado/identificado, ora
indeterminado.
Ressaltando que a própria poeta associa essa diferença
respectivamente a formas fechadas ou abertas de recepção,
Silviano vai tomar então a relação entre poesia e endereça-
mento como um exercício de cidadania. Por essa via, rein-
veste no valor ético-político da tensão entre autoria e leitura,
tal como mobilizada pela teoria literária pós-estruturalista
– valor que acabou por se esvaziar em nome da tendência à
canonização de outras formas idealizadas de subjetividade
autoral, de autonomia ou de heteronomia formal.
Tal valor ético-político vai ser rediscutido, a propósito
ainda de Ana Cristina César, pelo poeta e crítico Marcos
Siscar, embora, curiosamente, ele não explicite sua
interlocução com esse precursor, em ensaio publicado três
décadas depois. Assim, a ternura difícil, na contramão,
enfatizada por Silviano, vai ser por ele também focalizada
e considerada uma estratégia simultânea de sedução e
irritação de interlocutores/ leitores.

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A partir daí, circunscrevendo histórica e teoricamente
indicações que o texto de Silviano apresenta ainda de modo
genérico, Siscar aponta nessa estratégia uma contrariedade
que, ultrapassando os limites da poesia de Ana, marcaria
em grande parte o uso da primeira pessoa e do que ele no-
meia discurso do coração, desde o romantismo. Ao invés
de recusar esse dado, como grande parte de nossa crítica
moderna – dogmaticamente antirromântica, antilírica –, ele
o acolhe como herança, enfatiza seu potencial de profana-
ção, e pergunta-se sobre seu valor na contemporaneidade.
A esse respeito, considera que hoje, dado o interesse
desmesurado pela vida íntima nos mais diferentes campos,
continua sendo importante evitar os perigos do biografismo.
Mas também que, por outro lado, talvez não haja muito
sentido em insistir na definição do poeta apenas como
produtor, não mimético, fingidor – definição que não deixa
de prendê-lo de outro modo a “fluxos já programados de
circulação e leitura”. Por isso, vai reinvestir na relação entre
poesia e experiência da intimidade:

Trata-se, no fundo, de outro tipo de experiência da ética, em


que a técnica não é um mero abridor de lata da subjetividade esco-
lhida a dedo, mas, em sua produtividade característica, um modo
de apontar para os vazios da interioridade em que nos situamos:
um modo tão contundente que transforma esses vazios em espaço
de convivência, de destinação, de herança.2

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Ressalte-se que a ideia de drama não está ligada aí à de
encenação ou mascaramento do subjetivo, mas, ao contrá-
rio, ao modo como pode se performar poeticamente uma
interioridade que, justo em sua instável fragilidade, isto é,
em sua crise, revela força e se torna motivo de convivên-
cia. Algo semelhante pode ser observado em sua própria
poesia, publicada a partir de 1991, na qual são igualmente
fundamentais os temas e estratégias de interiorização e
endereçamento, vinculados ao reinvestimento, então ainda
raro e/ou desprestigiado, no eu, por ele sempre articulado ao
uso recorrente da segunda e da terceira pessoas do discurso.
Interior via satélite,3 título de sua última coletânea de
poemas, concentra uma série de indicações a esse propósito.
Aí, de fato, já aparece um interior substantivado, presente
em todos os seus três livros, neles remetendo sempre a um
espaço tanto psíquico quanto físico – o que, desde logo, já
desconstrói limites entre o dentro e o fora, encenando o
que se poderia chamar de uma geografia e uma geologia
do íntimo. Nelas se manifesta uma transitividade dupla,
de mão e contra-mão, horizontal e vertical: o interior se
desloca e endereça para um espaço e um tempo de recepção
indeterminados, mas, reciprocamente, é também algo que
só se alcança a partir desse exterior.
No poema “Ficção de início”, que abre o livro, esse
movimento é apresentado de modo reflexivo: “começar de

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dentro. do interior de onde as coisas começam. onde ter-
minam sua elipse vertiginosa. o interior é o fim da partida.
é o começo da volta. sair como quem volta. voltar como
quem sai.”4 Em “Interior sem mapa”, o mesmo movimen-
to se mostra desdobrado por diferentes trilhas e camadas,
espaços, discursos, tempos:

descartes colonizou o interior. marx abriu o fosso. freud


achou os ossos. cabral rodeou o poço do interior. pessoa queria
multiplicar. whitman desbravar. drummond perdoar. o interior/
do interior. as paixões da alma a gaveta dos armários a língua dos
anjos os pátios de sevilha a hegemonia as veredas do grande eu.
que sei./ que sei senão andar correr discorrer. vou e quero voltar.
desejo o interior. /do interior caminhos. no corguinho trilhas de
fazenda. em uru a lua. lagoa negra. ribeirão dos fugidos. de um
lado a outro a cor do rio relâmpagos no laranjal (...)5

No ir e vir constante em que o dentro e o fora têm sub-


vertidas suas fronteiras e antagonismos, imagens visuais
se mesclam a fragmentos de memória poética, filosófica,
geográfica, geológica, biográfica. Assim se produz um
jogo de aproximação e distanciamento que desestabiliza
a experiência perceptiva do olhar, a evidência plástica da
imagem, o valor referencial de antropônimos e topônimos.
Esse jogo tem seu alcance ampliado pela presença constante

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de imagens como a do satélite, que colocam a interioridade,
em todos os seus desdobramentos, também em relação com
o científico e seus efeitos na tecnologia do movimento e da
informação.
Do mesmo livro, o poema “Telescopia I” considera: “a
arte cativa pela proximidade ou pela distância. iminência ou
adiamento. ut pictura poesis.” E o poema “Azul por inteiro”
retoma provocantemente esse e outros temas clássicos:

enquanto Apollo 12 fotografa a terra azul por inteiro. o mel/


começa a empedrar na garrafa de aguardente) em 2000 teria/ 36
anos. saberia derreter o mel fabricar sintaxes medir as esferas/ do
globo terrestre. como um antitelêmaco nas espumas abraçado/
com o pai reencontrado e suas palavras aladas. moralidades/ de
ciência patafísica de peripécias pícaras para um novo milênio/
tardio. você é meu satélite pai que gira (vou dar-lhe túmulo/ e
para dar-lhe túmulo vou levá-lo pelo braço ao espaço./ como um
astronauta. vou deixá-lo distanciar-se vou vê-lo/ afastar-se. seus
olhos vermelhos pelo que poderia ter sido./ afastar-se no vazio
indefinidamente. e diante de mim o globo/ terrestre mensurável
e trágica a terra. azul por inteiro.6

Em outro poema, agora sem título, Siscar atribui esse


jogo à imagem visual do rio – biográfico, geográfico, lite-
rário – já antes associada à do interior cheio de veredas do
sertão e do eu, como vimos acima:

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do alto a terra é uma colcha de retalhos costurada pelos rios/
é um poema de joão cabral querendo ser pura superfície/ um
conjunto de linhas de formas de tons de consistências/ uma geo-
metria com finas margens dissimétricas/ uma trama singular de
anatomias inconfessadas de estuários arredios (…) 7

Já no livro Metade da arte, um poema sem título iden-


tifica esse jogo, por meio da mesma imagem do rio, ao
movimento de fluxo e contrafluxo do verso:

(…) naquele tempo em que açudes e poços/ e todo líquido


inerte confirmavam a regra do rio/ no tempo em que as enchentes
davam margens/ e regime ao rio (…)/ o que pode conter uma
barragem senão a força/ do hábito adverso as correntes represadas/
desafiam esta margem terceira nenhuma/ margem impede que o
rio se revolva sobre si/ como um verso.8

Nesses fluxo e contrafluxo do verso, como do poema,


entretecem-se também dicções diversas – o lírico e o anti-
lírico, o expressivo, o narrativo e o descritivo, o discursivo e
o antidiscursivo – num hibridismo valorizado na produção
poética a partir dos anos de 1980 como índice de libertação
de uma compreensão formalista, autonomizante do moder-
no. Nesse hibridismo, vem se ressaltando, como indicamos
de início, a importância de procedimentos de prosaicização

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do poético, associados à sua reaproximação do sujeito e da
experiência.
Na poesia de Siscar, no entanto, o valor desse retorno,
assim como da ideia mesma de retorno, mostra-se bem mais
complexo. Isso se evidencia no modo como com ele se reafir-
ma o poético, desde o uso de sua célula básica tradicional, o
verso, até a disposição predominantemente vertical que esse
uso dá aos poemas, em que o enjambement funciona como
dispositivo fundamental de corte/construção e simultânea
intensificação emotiva.
No poema “Rascunho para um retrato de criança”, por
exemplo, ele é associado claramente a uma corporeidade
visual e tátil construtiva e afetiva:

(…) o poema ainda não estava ali (ou melhor) faltava-lhe a


cesura/ a repetição esfregando a face áspera/ a telescopia de um
rosto encardido/ o enjambement inserindo o silêncio e (depois
de perdido para sempre o mot juste) o des/ ajuste (quem sabe).9

Já em “Poema só para poetas”, que brinca com essa con-


cepção “elitista” e discriminatória de poesia, lemos:

(…) poesia para quem conhece o peso da palavra./ a dor dos


dias sem palavras. das palavras sem silêncio. a alegria do silêncio
cheio de palavras. da superfície sem palavras de dor ou silêncio.

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para quem já se recusou já se armou como um carrapicho já cedeu.
a cara como/ um convexo poroso encharcado na chuva. para quem
já fez carícias/ com indiferença com susto com indignação. não
importa onde/ a fisgada nas vísceras lhe corte o verso. ou que o
curso da prosa o esconda sob água turva10

Na tensão entre curso, corte e retorno, ressalta a diferen-


ça em face do prosaico horizontalizante da poesia epistolar
de Ana Cristina César, tal como caracterizado por
Florencia Garramuño e por ela associado à expansividade
do poético. A partir da poesia de Siscar, somos convidados
a pensar num modo de expansividade que, à semelhança do
que ocorre com o interior psíquico, geográfico, geológico,
parece constituir-se por um movimento ao mesmo tempo
centrífugo e centrípeto, entre o horizontal e o vertical, entre
o impulso de escapar e o de retornar.
Podemos esclarecer melhor esse procedimento à luz
da própria prática crítica do poeta, na qual, justamente, a
compreensão vanguardista da crise do verso mallarmaica
como fim do verso é deslocada em nome de uma tradução e
uma reflexão que identificam na proposta do poeta francês
uma crise de verso, assim definida:

Ou seja, a crise do verso não designa uma interrupção ou co-


lapso histórico do verso; antes, uma irritação do verso, dentro do
verso, e a propósito dele. Uma crise de verso, como se pode notar

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nas referências dadas pelo ensaio, que generaliza a ideia de verso,
é a situação na qual ele se manifesta irritado, enervado, em estado
crítico (…) Não há retorno ao verso. O verso (do latim versus,
retorno) já significa o retorno, já mobiliza o retorno: repetição
da linha e deslocamento da linha. Do mesmo modo, não há nada
além do verso em poesia.

Pode-se então vincular, mais uma vez, subjetividade, ver-


so e poesia, na medida em que neles se manifesta igualmente
a experiência da crise como constitutiva de sua forma. Nessa
experiência, o corte, a lacuna, a suspensão e o adiamento, a
hesitação, a ambiguidade e a incompletude, são dispositivos
por meio dos quais se forja uma singularidade subjetiva,
poética, em busca de caminhos de ser e estar em comum que
fogem a definições culturais, sociais e políticas apriorísticas.
Podemos perceber essa relação entre singularidade e
comunidade em crise também no modo como a interlo-
cução e o endereçamento se infiltram insistentemente na
voz lírica, como no corpo do verso e do poema de Siscar,
contaminando sua discursividade e seu uso anômalo do
prosaico. Destaque-se antes de mais nada que, em seus
poemas, o interlocutor nunca é nomeado. Retomando a
análise feita por Silviano Santiago desse dado da poesia de
Ana Cristina, percebemos que a não nomeação pode estar,
sim, ligada, em ambos, a uma experiência produtivamente

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indeterminada de recepção. Mas percebemos também uma
significativa diferença quanto a isso: enquanto Ana Cristina
substitui o nome próprio por vocativos vagos e irônicos,
como o já famoso “My dear” – muito próximo ainda do
irmão hipócrita baudelairiano –, Siscar utiliza, sem ironia,
aqueles referidos a relações afetivas familiares, como pai,
filho, avós, amada.
No caso do filho, por exemplo, o poema “Ao filho” diz:

o acontecimento não é o que acontece/ mas o que vem acon-


tecendo e talvez/ um dia se possa dizer que terá acontecido/ (…)
talvez você nasça você vem nascendo/ você é meu pai meu filho
não há/ dia em que não se morra ou não se nasça11

Em “Pai pescador”, lembra:

você gastou tudo como a vida. Não acumulou./senão a arte a


alegria de tirar os peixes/do rio ou de deixá-los no rio (…) só não
gastou a última. a herança de sangue segredada em meu ouvido.
aquela que o ajudo a deixar-me (suono suo amico. /sou mais velho
que você mil anos mais velho/que você) pela qual subscrevo toda
noite/ em seu nome a vida entregue a terceiros (…)12

Nesses poemas, o uso da partícula se e a referência clara


a terceiros que compartilham do diálogo entre o eu poético

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e o pai produzem o deslizamento pronominal entre a pri-
meira, a segunda e também a terceira pessoa – deslizamento
que marca fortemente os poemas do autor e será também
bastante presente na poesia da geração posterior. Por meio
dele, as relações afetivas familiares podem se reafirmar,
sim, mas em uma condição de acontecimento – de forma
em crise – sempre por recomeçar, sempre por se reinvestir
de um novo valor e alcance.
Tome-se, como exemplo, o poema “Não o vejo”, em
Metade da arte:

fechando o portão de arrabalde/ afiando a faca de cortar a


carne/ saindo às pressas da confeitaria/ dizendo a missa da ritual
igualdade/ não é você nem eu mas como/ não trazê-lo para nossa
companhia/ deixá-lo falar fazê-lo ensinar-nos/ a fazer companhia/
a nossa alegria e a dele (são como/ dois velhos preceitos ensinando/
uma filosofia que não pretendiam)13

Aí a terceira pessoa, para além da narratividade pro-


saicizante, mobiliza o jogo entre distância e proximidade,
fundindo referências espaciais e temporais no interior
mesmo do presente da enunciação dialógica, invocando e
desestabilizando tanto o eu e o você quanto um nós do qual
a terceira pessoa indeterminada se torna parte fundamental.

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O mesmo ocorre no poema “Veraneio sentimental”,
do citado livro, em que a cena afetiva íntima se constitui
por meio de uma recuperação do dizer/não dizer prosaico,
coloquial, que, mesclado a citações poéticas como a do
“cão sem plumas” cabralino, ao mesmo tempo se inscreve
profundamente no processo poético de fragmentação do
endereçamento e do verso:

se falo da morte você rola na areia/ meu bem que lindo (quem
disse/ isso?) um cão cheio de plumas/ casarios azulejos amor de
puxar/ uma trégua em tempo de paz/ e se discordo você não diz
não/ me dá na boca o beijo sujo de batom14

Já em “Caro leitor”, esse procedimento confunde explici-


tamente no corpo do poema o interlocutor aí concretizado
e o leitor/destinatário suposto e indeterminado da escritura.
Esta indeterminação, de que seria índice convencional o
uso do masculino, vai ser mesclada, por sua vez, no jogo de
fluxo e corte criado pelo uso de parênteses, com a ambígua
definição de um interlocutor afetivo, em segunda pessoa e
de gênero feminino, remetendo a uma cena do cotidiano
amoroso doméstico:

a sinceridade é difícil entre nós/ eu de intenções tão carente


e você/ você com suas broas de palavras/cuidando do pão que o

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diabo amassou/ sobre tudo o que não foi dito tudo/ o que ficou
esperando um lugar/ entre valas de desejos e porfins/ (…) (sentei-
-me na sala clara escancarado/o sol entre nós ajuíza a parlamen-
tação/ nunca mais você me disse tão clara/ doem os olhos abrir
janelas de manhã)15

Como apontou Émile Benveniste, a interlocução entre


primeira e segunda pessoas supõe, sim, uma relação de
alteridade, que, no entanto, como se evidencia na comuni-
cação oral, acaba por sustentar uma lógica da copresença e
da identidade do sujeito consigo mesmo. Sua desestabiliza-
ção seria provocada, no discurso poético, justamente pela
introdução da terceira pessoa – ou não pessoa, segundo o
linguista – que remete a um interlocutor de posição equiva-
lente à do leitor. Pois, ao ouvir/ler o poema, ele o situa num
espaço e num tempo outros em relação a uma identidade
originária, fechada, desapropriando e usando o eu e o tu de
modo também imprevisto e não determinado a priori por
um contexto específico.
A propósito dessa desestabilização da relação de alterida-
de entre o eu e seu interlocutor, Joëlle de Sermet, no ensaio
de Benveniste referido anteriormente, explicita o valor da
terceira pessoa, que pode inclusive atingir a segunda, como
no poema de Siscar:

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O que, para mim, seria absolutamente autobiográfico no
lirismo é o colocar em evidência da ficção que representa o
sistema linguístico de uma enunciação fundada sobre a utopia
da copresença. O poema lírico endereçado nos fala do erro de
endereçamento fundamental sobre o qual ele repousa.
Nesse sentido, o leitor-alocutor é testemunha, não de um
endereçamento orientado, mas de uma flutuação estrutural do
endereçamento, a partir do qual se preenche os brancos com
elementos circunstanciais oriundos de sua própria experiência.
Aí onde o diálogo tem que se preocupar com o ou a destinatária
explícita, o leitor reata obliquamente com uma instância poliva-
lente anônima, um “terceiro incluído”.16

Como se depreende dessa passagem, o deslizamento


pronominal aponta para uma importante questão teórica,
relativa aos limites do valor ético-político de alteridade em
face do anonimato. Embora este último já apareça, como
ressaltamos, no ensaio precursor de Silviano Santiago, as-
sociado ao endereçamento, ainda está aí confundido com o
de alteridade, dominante até hoje na crítica contemporânea,
inclusive a de Marcos Siscar, cuja poesia mesma, no entanto,
nos encaminhou aqui a sua problematização.
É bem recente a emergência dessa questão, que vem
sendo discutida por filósofos como Giorgio Agamben e
Roberto Esposito, entre outros. No que diz respeito espe-
cificamente à poesia, ela redimensiona a compreensão da

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intimidade endereçada e de sua relação com a segunda e a
terceira pessoas, nelas valorizando a tensão entre singular e
universal, própria à poesia moderna, de modo que a ideia de
universalidade dá lugar à reprodutibilidade potencialmente
profanadora de sua leitura, de seu uso aberto ao anônimo.
Na poesia de Siscar, esse potencial indica diferentes
sentidos e efeitos da prática da poesia em sua circunstancia-
lidade. Desde logo, as referências constantes às tecnologias
de reprodução e transmissão da informação, como a do
satélite, comentado anteriormente, implicam o acolhimento
de características da atualidade. O mesmo valor pode ser
atribuído ao uso do coloquial e do prosaico, associados a
uma expansividade e a um hibridismo que fariam a poesia
sair de seu isolamento e se inscrever, des-hierarquizada, na
vida cultural. Por outro lado, a memória biográfica e lite-
rária implicam também sua inscrição em tempos e espaços
distintos, distantes. Articulados, esses diferentes contextos,
no entanto, se desestabilizam mutuamente, apontando para
o valor da poesia como circunstância:

Em outras palavras, se é verdade que a poesia se apresenta


frequentemente no contrafluxo ou na contramão, também é rele-
vante notar que o faz colocando-se em situação instável, incômoda:
nostálgica ou combatente, revoltosa; fragmentária ou inconclusiva;
irônica, mas também desejosa. (…)

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No fundo, o que há de mais fundamental na ideia de circuns-
tância, para a poesia, não é algo que se apresente como dado estável
do ponto de vista histórico, linguístico etc. Não é um ponto fixo
no tabuleiro de forças já dadas. Por isso (complicação necessária
para não reduzir muito o que entendemos como poesia), a tensão
desconfortável ou atrativa da poesia está relacionada com seu ter
lugar, com o modo pelo qual ela tem lugar. (…)
A poesia para mim tem (ou tem tido) lugar. É (ou tem sido)
meu modo de descobrir, de experimentar ou de suportar a tensão
do acontecimento, de defrontar o que escapa a qualquer política
e, ao mesmo tempo, de afrontar as políticas ou os discursos do
“fato”. Outra maneira de dizer que a poesia, para mim, é (ou tem
sido) o irresistível.17

Nessa colocação, feita em depoimento sobre o tema


“poesia e resistência”, o ter lugar da poesia se arma no duplo
movimento de mão e contramão, provocação e sedução,
pelo qual, independentemente de qualquer política pré-
-definida de sublimação ou dessublimação, de resistência ao
sublime ou ao prosaico, ela se lança em busca de seu outro,
anônimo, desconhecido:

Desse modo, falar é sempre arriscar-se na contramão, no


sentido de colocar-se diretamente na direção ou na destinação de
um outro. E o risco do poema é o risco imprevisível e concreto

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desse choque, da decepção, em que o fechamento do desastre, seu
violento acontecimento, tem, no entanto, a chance de aproximar-se
de uma possível alegria, da abertura de uma brecha.18

Repetição e profanação, sedução e provocação, encon-


tro e choque, a poesia como acontecimento, circunstância
da crise que – aquém de qualquer euforia, ou de qualquer
ceticismo – pode, assim, se tornar móvel de uma “inespe-
rada fraternidade”,19 de uma “curiosa alegria”,20 tramadas,
inclusive, no silêncio21 e na negação.22

Notas
1
Silviano Santiago, Singular e anônimo, em Nas malhas das letras, São Paulo,
Companhia das Letras, 1989.
2
Marcos Siscar, Ana Cristina César, Rio de Janeiro, Eduerj, 2011, p. 48, Coleção
Ciranda da Poesia.
3
Marcos Siscar, Interior via satélite, São Paulo, Ateliê Editorial, 2010.
4
Ibidem, p. 17.
5
Ibidem, p. 18.
6
Ibidem, p. 19.
7
Ibidem, p. 24.
8
Marcos Siscar, Metade da arte, Rio de Janeiro, 7Letras, 1991, p. 162.
9
Siscar, Interior via satélite, p. 71.
10
Ibidem, p. 58.
11
Siscar, Metade da arte, p. 17.

POESIA, CRÍTICA, ENDEREÇAMENTO 89

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Siscar, Interior via satélite, p. 53.
12

Siscar, Metade da arte, p. 43.


13

Ibidem, p. 52.
14

Ibidem, p. 67.
15

Joëlle de Sermet, L’adresse lyrique, em Dominique Rabaté (ed.), Figures du sujet


16

lyrique, Paris, Presses Universitaires de France, 1996, tradução Ana Kiffer.


Depoimento sobre “poesia e resistência”, concedido ao Grupo de pesquisa Lyra-
17

Compoetics e publicado em seu site www.lyracompoetics.org.


Siscar, Ana Cristina César, p. 46.
18

Siscar, Metade da arte, p. 88.


19

Siscar, Interior via satélite, p. 95.


20

Ibidem, p. 58.
21

Siscar, Metade da arte, p. 8.


22

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