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Palavras-chave
Patologização, psicopatia, normalidade, sofrimento psíquico.
Resumo
Partindo do termo psico-pato-logia, que traduz um discurso sobre as paixões da alma, sobre o
padecer psíquico, o autor discute como o discurso sobre o patos na atualidade tem produzido
uma patologização da normalidade. Inicialmente, é feita uma pequena digressão histórica
para mostrar que cada momento sócio-histórico teve a sua maneira própria para lidar com
as expressões do patos: no passado, a religião ditou as normas; na modernidade, foi a ciência;
e na chamada pós-modernidade, o discurso científico tem sido questionado. Para o autor, as
buscas de referências são maneiras de tentar lidar com o desamparo (Hilflosigkeit) constitu-
tivo do indivíduo. Entretanto, no início da vida, o bebê humano não tem como lidar com as
demandas pulsionais filogeneticamente herdadas. Uma das astúcias do Eu em constituição
para lidar com o desamparo psíquico é lançar mão do imaginário social para dar representa-
ções às pulsões. Porém, as formas discursivas que criamos e que nos dão a ilusão de sermos
confortados e acolhidos, a sensação de pertencermos a um grupo, expressam as inúmeras
variantes da dependência psíquica. Muitas vezes, sustenta o autor, o discurso é transformado
em instrumento ideológico que, juntamente como as inúmeras expressões do “politicamen-
te correto”, traduzem uma busca de normatização e de padronização de comportamentos
gerando uma patologização da normalidade. Na saúde psíquica, os manuais de diagnóstico,
fomentados pela indústria farmacêutica, transformam as singularidades em anormalidades.
Qual é a posição dos psicanalistas nesta nova ordem?
Ao ser convidado para fazer uma con- sociais e normas de conduta que são utiliza-
ferência no XVIII Congresso do Círculo Bra- das para classificar, etiquetar e às vezes pu-
sileiro de Psicanálise, pensei que seria uma nir. Regras que determinam como os sujeitos
boa ocasião para discutir com os colegas al- devem proceder a partir de parâmetros que,
gumas questões que venho me colocando já na maioria das vezes, não levam em conta a
há algum tempo a respeito do que chamei, particularidade da dinâmica pulsional do su-
para situar minha intervenção, de patologiza- jeito em questão. Pergunto-me, ainda, qual a
ção da normalidade. nossa participação, como psicanalistas, nesse
Entendo por patologização da normali- processo que pode estar conduzindo a uma
dade toda forma discursiva geradora de regras patologização da existência.
1 Conferência de abertura pronunciada no XVIII Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise. Rio de Ja-
neiro, 20 de maio de 2010.
2 Psicólogo; Psicanalista; Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris
VII; Pós-doutor pela Universidade de Paris VII; Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psi-
copatologia Fundamental; Sócio de Círculo Psicanalítico de Minas Gerais; Membro da “Société de Psycha-
nalyse Freudienne”, Paris, França; Membro fundador da Rede Internacional de Psicopatologia Transcultural;
Professor Adjunto III no Departamento de Psicologia da PUC-MG.
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A patologização da normalidade
Nunca é demais lembrar que o termo com um projeto divino inescrutável. Nesse
psico-pato-logia traduz um discurso, um sa- mundo estanque, não havia possibilidades
ber (logos) sobre as paixões, a passividade de mudanças: tendo a terra no centro do
(pathos) da mente, da alma (psiquê). Trata- universo, a criação mais perfeita era o ho-
se, pois, de um discurso representativo a res- mem, seguido pela mulher. As referências
peito do sofrimento psíquico; sobre o pade- eticomorais a serem seguidas eram ditadas
cer psíquico. e controladas pela religião.
Sendo o tema deste congresso A Psi- Com a secularização da visão do
copatia da Vida Cotidiana, seria interessante mundo, a ciência substituiu a religião e
pensar quais os caminhos do pathos na atu- o ideal passou a ser a objetividade: tudo
alidade que têm feito com que as paixões es- tinha uma causa e um efeito previsível.
tejam se manifestando de forma que o pacto “Em conseqüência da divisão cartesiana,
social não seja levado em conta. O pathos, indivíduos, na sua maioria, têm consciência
nos lembra Freud, no Mal-estar da Civili- de si mesmos como egos isolados existindo
zação, só pode ser devidamente avaliado a dentro de seus corpos” (CAPRA, 1983, p.
partir dos elementos do imaginário social 25). Essa sociedade aberta a possibilidades
da cultura na qual o padecimento psíquico de mobilidade social é chamada de
emerge. “modernidade”. Com o saber laico no lugar
Ao longo da história, as paixões que do divino, a racionalidade dita as práticas,
nos conduzem, sobretudo quando se mani- as organizações e os valores. “A ciência dita,
festam de forma desmedida, têm recebido e os sábios deliberaram sobre o normal e o
tratamento diferente, dependendo de como patológico” (GAGNON, 1990, 79).
são percebidas e apreendidas. Cada contexto Sustentada pelas ideias iluministas, o
histórico-político teve o seu discurso sobre mote da modernidade era lutar contra o arbi-
as paixões: castigo dos deuses, disfunções trário, contra os preconceitos e as tradições:
humorais, possessão demoníaca, perda da o legítimo passou a ser o racional. Contudo,
razão, manifestação do inconsciente, fatores a realidade sociopolítica do século XX mos-
genéticos, desequilíbrio químico e outras trou a esterilidade do projeto de emancipação
tantas. Uma pequena digressão histórica, da modernidade. O conhecimento científico,
que de forma alguma se pretende exaustiva, afetado pelos avanços tecnológicos, passou a
será útil para melhor compreender essa ne- ser medido em termos de quantidade de in-
cessidade, senão fatalidade, inerente ao ser formação: quem sabe mais, tem maior poder,
humano, de tentar nomear o que nos inco- embora o saber possa ser manipulado, como
moda por dentro. bem nos mostra a mídia.
Os discursos sobre a “normalidade”, O descrédito nas ciências como fonte
que podem ou não patologizá-la, sempre de verdade caracteriza a pós-modernidade.
foram prerrogativa das elites dominantes, Trata-se do fim das metanarrativas (LYO-
da religião e do Estado (FLANDRIN, 1986). TARD, 1979): as narrativas totais e glo-
Regular sobre o prazer parece ser inerente ao balizantes que explicam o conhecimento,
trabalho de cultura (Kulturarbeit) para que a posto que tais esquemas explicativos nada
coesão dos grupos seja mantida. garantem. As verdades construídas na mo-
Nas sociedades em que a religião tem dernidade, assim como a crença na razão e
o controle, são os sacerdotes, inspirados na capacidade da ciência em dar respostas,
pelos deuses, que ditam as normas de con- caíram. A grande pergunta passou a ser:
duta aceitáveis e as patológicas. Foi assim “Quem decide o que é o conhecimento?” E,
no início da era cristã, quando o mundo se mais ainda: “quem sabe como decidi-lo?”
organizava em escalas de valores de acordo (As posições de Lyotard, e de outros pós-
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modernos, foram severamente criticadas por Acredito que uma das contribuições
autores, tais como Callinicos (1995) e Haber- mais importante dos avanços científicos
mas (1987). Para estes, as críticas à moderni- para o “fim das verdades” e que aumen-
dade referentes ao ceticismo universal nada tou ainda mais o sentimento de desampa-
mais eram que uma outra forma de metanar- ro na contemporaneidade ainda não teve a
rativa; um outro dispositivo de poder). atenção que merece: trata-se da mudança
Para alguns autores (LEBRUN, 1997; da percepção da dimensão espaço-tempo.
MELMAN, 2002), a pós-modernidade, com Com a passagem do universo newtonia-
a crise do conhecimento, o fim das certezas no para o einsteiniano, fomos obrigados
e as mudanças na estrutura familiar, estaria a operar uma reorganização psíquica em
promovendo uma desorganização social e, nossa maneira de nos situarmos no mundo.
consequentemente, uma violência sem pre- Ocorreu uma mudança de paradigma se-
cedentes. Estaríamos vivendo em uma socie- melhante à descoberta do inconsciente. As
dade fragmentada por inúmeros códigos de contribuições da física quântica e da relati-
conduta. Esses autores retomam o tema da vista - lembremos que os trabalhos de Eins-
ruptura do laço social e apregoam o fim das tein foram publicados em 1905, no mesmo
referências simbólicas, o fim da função pa- ano da publicação dos Três ensaios de Freud
terna e a degringolada do pai. Falam, enfim, - modificaram inexoravelmente nossa rela-
de uma desesperança generalizada e profeti- ção com o tempo de tal forma, que a noção
zam um futuro catastrófico. tempo-espaço que temos hoje não guarda
Concordar com tais previsões alarmis- nenhuma semelhança com a noção tempo-
tas é esquecer a história e, talvez o mais difícil, espaço de outras épocas.
aceitar o fato inelutável que cada época tem A internet é, sem dúvida, um dos
a sua própria “leitura de mundo”; e uma não maiores exemplos de como nossa relação
é melhor que a outra. A verdade, nos lembra com os acontecimentos mundiais se modi-
Foucault (2000), é uma invenção interpreta- ficou. Seu desenvolvimento só foi possível
tiva, cujos conceitos são datados e que dura com a conquista do átomo. Espaço, tempo e
até que uma outra verdade venha substituí- distância não existem mais, pois onde quer
la. As novas organizações pulsionais geradas que o fato ocorra no planeta, ontem, hoje ou
pelas mudanças sociais nos obrigam a fazer amanhã (dependendo de onde estamos no
o luto de representações que até então eram globo) não tem importância: todos temos
tidas como naturais e imutáveis; representa- acesso em tempo real. Entretanto, a sensa-
ções que nos serviam de referências para nos ção é de termos cada vez menos tempo!
locomovermos no simbólico. Admitir o cará- Sendo o tempo uma criação dos pro-
ter imaginário de toda leitura de mundo pro- cessos secundários, os quais são influen-
voca o retorno dos eternos questionamentos: ciados pelo mundo externo, não é possível
quem somos, de onde viemos, para onde va- separar nossa apreciação do tempo do mo-
mos, o que nos constitui como sujeitos, o que mento histórico no qual estamos inseri-
vai acontecer diante de tantas mudanças... O dos. Por outro lado, não se pode conciliar a
passado sempre exerceu uma estranha atra- temporalidade dos processos secundários,
ção. Sentimos um apelo pelo passado sempre com a dimensão atemporal do incons-
que o presente nos parece doloroso, na es- ciente. É por isso que as representações e
perança de reencontrarmos “o encantamen- dispositivos que criamos na tentativa de
to de nossa infância, que nos é apresentada suportar a angústia inerente ao desamparo
por nossa memória não imparcial como uma (Hilflosigkeit) psíquico, desde que fomos
época de ininterrupta felicidade” (FREUD, marcados pelo estado de cultura, são fada-
1939, p.89). dos ao fracasso.
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A patologização da normalidade
– são sempre fragmentárias e susceptíveis de como uma forma de controle que corre o
transformarem-se em um sistema de crença risco de patologizar a normalidade e até
de massa; e todo discurso, inclusive o psica- mesmo de criar situações que promovem
nalítico, tem as mesmas origens das crenças um maior surgimento de psicopatias.
infantis - ou seja, míticos - que se originam Os profissionais do psiquismo podem
nas teorias sexuais da infância (FREUD, 1908; contribuir, mesmo indiretamente, para a
1933; 1933b). Os discursos sobre os destinos patologização da normalidade ao transfor-
do patos, das paixões, que animam o apare- marem suas teorias em instrumentos de
lho da alma (seelischer Apparat) são artefatos controle. Cada vez mais, somos convocados
culturais criados para tentar entender, e con- no espaço público para opinarmos sobre te-
trolar, a alteridade interna: as manifestações mas de sociedade. Não raro, nossas teorias
do inconsciente, provas irrefutáveis de que são apresentadas como porta-vozes de ver-
não somos senhores em nossa própria casa. dades e guardiãs de uma ordem simbólica
Sendo o inconsciente sexual, suas produções intocável, que idealiza uma forma única de
são muitas vezes sentidas, tanto pelo sujeito subjetivação baseada nas normas vigentes.
quanto pela cultura, como algo da ordem do Como se elas tivessem o poder, sem dúvi-
estranho (Unheimlich), por vezes algo a ser da perverso, de deliberar sobre o normal
tratado, erradicado. Freud (1915b) não es- e o patológico. A psicanálise, que em um
conde o seu desalento no que diz respeito da primeiro momento foi libertadora ao de-
inexorabilidade do desamparo em seu texto nunciar a existência de uma outra cena que
Reflexões para os tempos de guerra e de mor- determina nossas escolhas objetais, tornou-
te. Este trabalho, um verdadeiro desabafo, se, mais tarde, contaminada pelos mesmos
anuncia mudanças em suas posições teóri- princípios dominantes que denunciara.
cas, cuja expressão máxima acontecerá com Encontramos psicanalistas que esquecem a
a introdução em 1920 da Pulsão de morte. importância de levar em conta o que acon-
Então: cada época utiliza dos meios que tece no social e insistem em permanecer
tem para enfrentar o mal-estar: os expedien- arraigados a teses não mais sustentáveis na
tes que encontramos para nomear o que nos contemporaneidade.
aflige variam segundo o discurso dominante Cada momento sócio-histórico pro-
do momento sócio-histórico no qual esta- duz a subjetividade que lhe é própria. Sub-
mos inseridos. Não raro, o saber científico, jetividade essa que é tributária dos modelos
altamente comprometido, quando não sub- identificatórios culturalmente valorizados e
vencionado, por aqueles que detêm o poder, das sublimações significantes do momento
é convocado e transformado em instrumento em questão. Isso significa que a sociedade
ideológico para ditar como a circulação pul- forma tanto a psique quanto seus inúme-
sional deve ocorrer e para justificar as medi- ros derivados, dentro os quais os sintomas.
das a serem tomadas caso a norma não seja Nessa perspectiva, da mesma forma que a
respeitada. constituição do Eu não pode ser separada
da sociedade na qual ele emerge, o padeci-
A PATOLOGIZAÇÃO DA mento psíquico traz as marcas da sociedade
NORMALIDADE e do momento sócio-histórico que o pro-
duz.
Como vimos, sempre precisamos de O arcabouço teórico da psicanálise
referências para nos localizarmos e nos des- é tributário da ordem simbólica do qual
locarmos no tempo e no espaço. Acredito, emergiu, e os psicanalistas são afetados em
então, que a cartografia discursiva atual que suas escutas por seus complexos inconscientes
cumpre essa finalidade tem sido utilizada e suas organizações identificatórias. E,
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A patologização da normalidade
mesmo sabendo teoricamente que o importante isso, os antidepressivos estão aí, para reequi-
é seguir os caminhos pulsionais e as escolhas de librar as energias (PIGNARRE, 2001).
objeto, não estamos vacinados contra posições Outro fato curioso é o de prescrever
normativas que tendem a enquadrar as medicamentos para as etapas normais da
vicissitudes da pulsão na hegemonia discursiva vida, para os seus estados de espírito e suas
dominante. Com isso, abandona-se a dinâmica emoções. Ou seja, as condições próprias à
do funcionamento psíquico a favor de uma natureza humana estão sendo cada vez mais
prescrição normativa de circulação pulsional. medicalizadas pelos fabricantes de remé-
Nossa clínica não é sem consequências. dios em busca de clientes. É assim que, aos
Implícita ou explicitamente, nossa atuação poucos, as pessoas estão sendo convencidas
reflete um projeto político, logo uma visão de que qualquer problema, qualquer con-
de sociedade, que pode ser transformada trariedade é insuportável, o que transfor-
em instrumento a serviço de uma ordem mou o sofrimento psíquico em uma doença
normativa com efeitos repressivos. mental, para a qual existe um medicamen-
Uma das maiores fontes geradoras de to apropriado para a emoção que o sujeito
controle na atualidade é a questão de como a não deveria sentir. Entretanto, foi necessá-
saúde psíquica tem sido tratada a partir dos rio mudar a definição de padecimento para
DSMs. As críticas mais recentes têm sido fei- que novas “doenças” pudessem surgir: entre
tas por historiadores e escritores. Nos últi- 1987 e 1994, o DSM-IV introduziu 77 novas
mos anos, mas sobretudo em 2010, o número doenças mentais. Foi assim que a timidez
de publicações denunciando o que está por passou a ser uma “fobia social”; o regurgi-
trás do excesso de medicação, assim como tar normal dos bebês tornou-se o “refluxo
da exportação do modelo americano de saú- esofágico patológico”; a senilidade, uma “in-
de mental não para de crescer (PIGNARRE; suficiência da circulação cerebral”; e a ex-
2001, ST-ONGE, 2004; LANE, 2007; BLE- pressão “traumatismo do bilhete que perde”
CH, 2008; WATTERS, 2010, WATTERS, utilizada para quem se preocupa por não ter
2010b; GREENBERG, 2010; KIRSCH, 2010; ganhado na loteria (ST-ONGE, 2004).
WHITAKER, 2010.). As revelações que o livro de Chris-
Apenas alguns exemplos. Nos países topher Lane, crítico literário, historiador
ocidentais o número de pessoas acometidas anglo-americano e professor na Northwes-
pela depressão foi multiplicado por sete nos tern University, publicado 2007, nos des-
últimos dez anos: é como uma epidemia. creve uma realidade assustadora nos labi-
Nos anos setenta, quando se começou a falar rintos dos “transtornos mentais”. Intitulado
mais da depressão, os psiquiatras abando- Shyness: How Normal Behavior Became a
naram a psicanálise para procurar respostas Sickness (Timidez: como o comportamento
em desordens neuronais. Somas astronô- normal tornou-se uma doença), Lane relata
micas foram mobilizadas pelos laboratórios o resultado de suas pesquisas graças ao aces-
para financiar as pesquisas. E embora ne- so aos arquivos da Associação Americana de
nhum teste biológico permita diagnosticar a Psiquiatria e aos relatórios de executivos de
depressão, as indústrias farmacêuticas con- empresas farmacêuticas. Com pouca justi-
tinuaram testando ao acaso diferentes subs- ficação científica, inúmeras emoções e sen-
tâncias que só aumentaram as descrições timentos passaram a fazer parte das desor-
fenomenológicas da depressão. Tornou-se dens psiquiátricas e, logo, passíveis de serem
totalmente secundário se a causa desencade- tratadas com psicotrópicos. Desmontando a
adora foi a perda de um ente querido, de um fachada da pesquisa objetiva, Lane mostra
ideal, ou um assédio moral, o problema está que “diagnosticar” tornou-se um negócio
nos genes ou na biologia do cérebro. Para altamente rentável, cuja subvenção é garan-
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A patologização da normalidade
em Hong Kong era a mesma desordem que denúncias de orgias pedófilas envolvendo
surgira nos Estados Unidos e na Europa. O dezessete adultos e crianças entre quatro e
conhecimento sobre a natureza da anorexia quatorze anos. Após longa e minuciosa in-
- incluindo suas manifestações e os grupos vestigação, tudo não passou de um sórdido
de risco - caminhou do Ocidente para o caso de incesto no qual um pai abusara de
Oriente (WATTERS, 2010b). Este exemplo, seu filho, tendo a cumplicidade da espo-
o primeiro em muitos outros que estão por sa. O resto revelou-se uma grande histeria
vir, nos alerta que a maneira como cada cul- coletiva - variante moderna das bruxas de
tura pensa e trata o sofrimento mental mo- Salém. Embora nos dois acontecimentos o
dela a experiência em si. O grande risco da demônio tenha sido a sexualidade, no caso
exportação, via globalização, dos modelos de Outreau, o retorno do recalcado, no lugar
de doença é a homogeneização da maneira do demônio, fez com que tanto as fantasias
como o mundo fica louco. sexuais dos adultos, quanto as das crianças,
Talvez seja na área da sexualidade que fossem tomadas por realidade e transfor-
essa nova ordem se expresse de forma mais madas em peças de convicção. A cegueira
contundente. Sem dúvida, vivemos uma generalizada produzida pela irrupção do
época bem menos hipócrita em relação às sexual foi tal, que passou despercebido que
práticas sexuais. Ao mesmo tempo, a mo- uma das crianças que teria sofrido de abusos
ral sexual civilizada travestiu-se nas múlti- sexuais não tinha sequer nascido quando
plas versões do “politicamente correto”, que os fatos ocorreram! No final, dos dezessete
transforma atos banais em assédio sexual. acusados, treze foram inocentados, e um
Se colocarmos trechos dos Três en- suicidou-se. Várias famílias foram destru-
saios sobre a teoria da sexualidade de Freud ídas, as crianças traumatizadas, e carreiras
ou da Psychopathia Sexualis de Krafft-Ebing arruinadas. As últimas acusações de abuso
na internet sem precisar o nome dos auto- sexual contra o padre Dominique Wiel ca-
res, seguramente lançaríamos uma caça ao íram após quatro anos, quando as crianças
perverso que teria escrito propósitos tão admitiram ter mentido.
infames a respeito da sexualidade infantil. O interessante neste acontecimento é
O brincar com uma criança, ou até mesmo que, embora as crianças que foram realmen-
fazer um comentário lisonjeiro sobre um(a) te abusadas já tinham sido encaminhadas ao
adolescente é facilmente visto como indício hospital local por violências físicas por parte
de uma pedofilia latente. Existe o outro as- dos pais, as queixas só foram ouvidas quan-
pecto, às vezes negligenciado, que pode levar do a palavra sexual foi mencionada. O juiz de
a uma normatização com efeitos patogêni- instrução - mais tarde julgado pelo Conselho
cos: o fato de se esquecer tanto o universo Superior de Magistratura por “falta evidente
fantasmático da criança quanto a sua sexua- de rigor e de imparcialidade” na condução
lidade. Muitas vezes, os verdadeiros assédios do inquérito - partiu do princípio de que, na
estão nas formas de alertar a criança contra ausência de provas materiais, a palavra das
os eventuais ataques de possíveis pedófilos. crianças é soberana, pois elas “não mentem
Uma ilustração dessa situação foi “o caso jamais”. Mais uma vez, a sexualidade infantil
de Outreau”, nome de uma pequena cidade mostra toda a sua complexidade. Partir do
na região de Boulogne-sur-Mer no norte da princípio de que as crianças jamais mentem
França. Ali ocorreu um dos maiores enganos é não levar em conta a dimensão fantasmá-
judiciários da história francesa (AUBENAS, tica da sexualidade: as fantasias de sedução
2005; WIEL, 2006; GUYOMARD, 2009). estão presentes em todos os protagonistas
Entre 2001 e 2006, Outreau tornou-se da cena. Se, sem dúvida alguma, o Estatuto
o centro das atenções naquele país devido a da Criança e do Adolescente trouxe vários
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A patologização da normalidade
Trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1947. PIGNARRE, P. Comment la dépression est devenue
v.XXII. une épidémie. Paris: La Découverte, 2001.