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O BURGURS FIDALGO COMEDIA-BAILADO COMPOSTA EM CHAMBORD, PARA 0 DIVERTIMENTO DO REI, No MfS DE OUTUBRO DE 1670, B REPRESENTADA EM PUBLICO, EM PARIS, PELA PRIMEIRA VEZ, NO TEATRO DO PALAIS-ROYAL, NO DIA 23 DE NOVEMBRO DO MESMO ANO DE 1670 PELA COMPANHIA Do RET NOTA Os mortos cram depressa esquecidos na chrte do Grande Rei ‘Madame, que {éra 0 ornamento de t6das as estas, e cuja ousada beleza 0 principe amou, segundo se diz, faleceu desgragadamente ino dia 30 de junbo de'1670, No dia 21 de agésto, sob as abo- hadas de Saint-Denis, a grande voz de Bossuet evocara a noite fatal ¢ arrancara novas lagrimas de todos os olbos. Mas em Outubro, com a sua cérle jovem e inconstante, partia Luis XIV para 0 castelo de Chambord, a procura dos prazeres que, entre as cavalgadas de armas, os conguistadores gostam de desfrutar 4 caga ea dancs, os torncios ou os bailados. No.cenério faus- toso sonbado por Francisco I, chamou éle os seus jograis e enco- ‘mendowlbes uma farsa a turca © turco estava na moda. Romances, comédias, tragédias ti- bam, as vézes, por pano de fundo, um Oriente de fantasia, Tbra- him ou I'llustre Bassa de Georges de Scudéry em 1641, ¢ Le RE cit Turquesque, bailado apresentado por Lulli ems 1660, provam ‘que os franceses, segundo uma tradigao que les & cara, aprecia- dam 0 exotismo, Introduzirase na cérte curioso personagem, (0 Cavaleiro d’Arvicux; de origem italiana, chamava-se simples ‘mente Arviou; regressava das Escalas do Levante onde perma- necera doxe anos, ¢ com as suas narrativas pitorescas féz rit 100 Mourine 40 rei — moderadamente — é verdade, confessa em suas Mé- moites, mas a favorite, Mme de Montespan, soltava “gargalba- das que se ouviriam a dazentos passos”, pois o Cavaleiro a in- teirava do modo pelo qual se casavam as damas turcas. A pedido de Sua Majestade, falava turco também, e nio é absurdo imaginar que Luis XIV pensasse como o Sr. Jourdain: “B ad- mirdvell” Para divertir 0 Delfim, envergava D’Arvieus, com Placente, os seus‘trajes turcos arabes. Estavam as coisas nesse pé quando, no dia 4 de agosto de 1669, desembarcou em Toulon, com um séquito de vinte pes 04s, um enviado da Sublime’ Porta, Suleiman Aga. Era a época em que o Sultao buscava reatar as relagbes amistosas com © “imperador” de Franca. Apesar do seu titulo de Muta Fer- taca, alids obscuro para os franceses, era Suleiman Aga embai- xador de pouca monta, antigo jardineiro do serralbo, outrora encarregado de afastar, a pedradas, os indiscretos & passagem das sultanas; além disso, 0 mais orgulboso dos filbos de Ala, cheio de idesdém pelos cies inftis, e 0 bomem menos adequado ‘a diplomacia. Ouvira, sem descavalgar, 0 cumprimento, dos al- motacts de Marselha. A ésse embaracoso mensageiro decidiuse aplicar rigorosamente a etiquéta-da sua terra, a mesma que Id 4¢ impunha aos nossos ombaixadores, © concertow-se wma espe ie de mascarada oficial turca, Durante vito horas, mofou St eiman na antecdmara, bebendo xicaras de café; em seguida, foi levado a presenca do nosso falso vizir, o Sr. de Lionnes, escar- rapachado sébre um estrado recoberto de um sen-nimero de tapétes, @ guisa de sofé. Ofereceram-se sorvetes, de joelbo a Lionnes, em pé a Suleiman. A conversagio, em que D'Arvieus serviu de intérprete, foi penosa; Suleiman 36. queria entregar em mios a mensagem de seu ano a Luis XIV.- Acabaram, fi nnalmente, por aceder ao seu pedido e receberamno em Sainte Germain. Tudo se fizera pars deixé-lo embasbacado ante tanto esplendor e o rei ostentava os brilbantes da coroa “que pareciam cercélo de luz”. Suleiman, todavia, nao se mostrow impression nado; portou-se com arrogincia e descaro, quis que 0 rei se levantasse para receber a carta do Sultio, e como isso Uhe fésse recusado, retirou-se com sobrecenbo. Teria dito, aos que Ibe ‘chamaram a atencao para os brithantes do rei, que 0 cavalo de seu amo trazia maior nimero de pedras preciosas no arnés, nos dias de festa, Detiveran-no por algum tempo, a fim de ensinds Jo a portar-se, e, logo, 0 devolveram discretamente ao Oriente, E a vaidade ferida dos franceses consolow-se com um bailado € algunas cancées. © Buncets Fivarco 101 Sempre indispensivel, imaginou D'Arvieux uma ceriménia em que se mesclassem alguns tracos de costumes orientais, ati- tudes grotescas de dervixes, turbantes colossais, e 0 jargio sabir falado em Tunes; e, além disso, transpos @ moda turca 0 ceri- monial da recepgio de um cavaleiro de Nossa Senhora do Car- melo, ordem militar da qual D’Arvieux fazia parte, e titulo de obreza conferido por um ministro do culto. O que explica 0 interrogatério que sofre 0 Sr. Jourdain sbbre a sua religito, 05 seus costumes, a sua nobreza. Os trajes, os gorros e os turban- tes foram feitos sob a superintendéncia de D'Arviews. Beauchamp ordenou as dancas. Lulli compés as drias, e Molitre enxerton uma comédia no bailado, Foi na aldeia de Auteuil, na “linda casa” de Molitre, que nascen O Burgués Fidalgo, Represen- tow-se a peca no dia 14 de outubro, na grande galeria de Chan bord, perante a Cérte. Féra de dez dias 0 prazo concedido para 4 sua apresentagio. E a peca custou 49 000 libras, soma con- siderivel que dé idéia do fausto da representagao. A maior parte do triunfo coube a Lulli, que, “tao excelente careteiro ‘quanto excelente musicista”, representou a parte do Mufti. Gri ‘marest aponta algumas reticéncias que, na estréia da peca, the leriam oposto os cortesiox e 0 rei, mas hi nisso, sem dibvida, ‘muita lenda, No dia 23 de novembro, coni todos os seus inter. médios de cantos e dancas, foi levado no Palais Royal 0 Burgués Fidalgo. Brithante carreira se abria para o Sr. Jourdain, eujo nome, desde entio, tornow-se ilustre em uma vintena de idiomas, © Burgués Fidalgo nto & uma comédia alegre, é uma co- média feliz. A partir de Les Ficheux, os intermédios de bai- lados baviam dado muitas vézes as pecas de Molidre especial ligeireza. Hoje, porém, o Sr. Jourdain, enorme balao de bata indiana, cabeca envélta num turbante que lembra uma abébora, 80a majestosamente para o sétimo céu, Largaramse tédas as amarras, e os vivas da multidao 0 acompanham. Ele ndo tor tard a descer do sonbo magnifico. Com arias de minueto énos apresentado em todos os seus sucessivor ridiculos, cercado de quantos 0 exploram, o mestre de danca, o mestre de musica, 0 mestre de esgrina, o mestre de filosofia, 0 mestre alfeite e seus sequazes; gordalbudo e gentil, quase timido apesar de seu desembaraco, éle se expande e se aparelha de plumas sob os nnossos olbos; bate com ar maravithado as portas espléndidas da Aistingtio, do bom gésto, da citncia. Um rir profundo se ibe derrama pelos grossos Beicos gluties. Hé um momento em que fememos que a alegre cacoada de Nicole ou a chacote mais dcida da Sra. Jourdain possam abalar essa massa de contema 102 Mourine mento, cujo egotsmo nos velam a fantasia ¢ a extravagancia, Far-seia em pedacos, sob os rudes golpes da Sra. Jourdain, 0 Primeiro sonbo do Burgués, candidato as marquesas, se a mas- ‘carada turea no 0 atirasse de névo, num salto definitivo, @ sua Toucura. Gracas ao bailado, no tem a comédia precisio alguna, em seu desfecho de volver'a terra, e termina em plena conver sao teatral, em direcio ao empireu, muito longe do verosstmil. Nesse instante da sua vida, jé em seu declinio, Molitre parece ver os homens com espantosa bondade e com uma ironia sem veneno. Tendo renunciado a corrigi-los, limita-se a pinté- los ¢ amé:los. Nao ba gente mé em O Burgués Fidalgo, Téda 4 sociedade conspira para satislazer a vaidade do Burgués; éle gosta de titulos; daothe 0 mais belo que se potsa imaginar, ¢ @ Sociedade tem muita razio de tratar com essa bonomia quem Ibe bate @ porta com tanta candura bonesta. E esquecem-se entio os dramas que a mania do Burgués, bilioso como o diabo, pode- ria suscitar na familia, Dorante, refinado intrujdo, legitimo as- cendente dos cavalbeiros de indistria do século XVIII, 56 ros escandaliza quando nos detemos a andlisélo; nto 0 desenbou Moliére com tintas negras. Sem dissimular os erros dessa no- Ireza arruinada, revela-nos a sna elegdncia e seu requinte. No ‘que toca a Doriméne, jovem vitiva atilada, a sua pureza delibe- fade insinuase por entre as sitmagbes mats delcadey e ela sera capaz de persuadir-nos, com um cindido sorriso, de que todo aquéle jogo & inocente. A Sra. Jourdain poderia parecer lim tada na sua caréncia de ambicio ¢ um tanto egoista em seu de- sejo de ter um genro que pudesse dominar, mas que simpitica linguaruda e que espléndido cio de guarda do seu lar! Cléonte, pela ingénua ¢ altiva confissio de plebelsmo, destaca-se vantajo- samente do grupo de jovens galas convencionais, Quanto a Lucile, soube Moliére mostrar que 0 enamorado “ama até 08 defeitos das pessoas que ama”, nisso se vin uma sobrevivéncia do tenaz amor que ligava 0 poeta a Armande. Nesse otimismo bumano nio bd sensaboria, néo bi ceguel- 1a, O milagre consiste em que, seguindo ésse caminbo que 0 afasta de todo e qualquer realismo, Moliére atinge 0 verdadeiro, Nascido de uma mascarada, O Burgués Fidalgo ¢ também co- ‘média de costumes e comélia de cariter, Fazia muito tempo que sonbava Molidre com a pintura dessa extravagdncia social que & 0 mal da particula. O Arnolphe de L’Ecole des Femmes fézse chamar poraposamente Sp. de la Souche; George Dandin virou Sr. de la Dandinitre; Pourceaugnac fax soar 0 mais alto que pode 0 seu direito de ndo ser enforcado, Igualmente, em © Buncuas Fiparco 103 t6mo de Molizre, os ricos financistas, os mercadores abarrotados de ouro compravam cargos que enobreciam ou propriedades cujos titulos assumiam, e Thomas Dreux se convertia em Marqués de Dreus-Brézé; babeis genedlogistas encontravam, para quem Wes pagasse bem, uma prosipia de quatro costados, e juizes complacentes ratificavam as novas cartas désses nobres "reabili- tados”. Fugiam, assivt, ao impésto da talba, gozavam de fran- quias, imunidades, isensoes, privilégios. Nao se incomodava 0 Poder real, e 56 interferia nas imposturas quando precisava de dinbeiro. "De uma feita, enforcouse a um désses impostores. © que nao bastou a descorocoar os outros, que eram movidos nao pelo interésse, mas por intensas satisfagaes de vaidade. Mo- libre pode bater de rijo, como o faria ura bufio do rei. Autoriza tais liberdades 0 tom burlesco da peca. Nao somente apupa 0 burgués, mas também zomba das pretensoes dos dancarinos, dos misicos, dos esgrimistas, dos pedantes, e, indo ainda mais longe, Pinta 0 vicio profundo de uma nobreva que se arroga o direito de ter uma moral de caste, moral em que o calote eo abuso de confianca parecem naturais em relacao aos outros, desde que ésses outros sejam plebeus. Donde foi possivel deduzir um Molidre animado do expt tito de classe; para uns, seré “‘o primeiro poeta dos, burgueses” (Goncourt) ¢ anuncia as reivindicagies de Figaro contra os Al- mavivas; 20 passo que a outros afigura-se duro em relacto 40s burgueses e toma o partido da nobreza (Sarcey). Indigna-se Rousseau de sermos obrigados a rir de um parvo homem de bem, @ bouve quem chegasse a ver na ceriménia do mamamuchi uma parddia da liturgia catSice, Bastenos,porém, ouvir Molire, que disse muito exatamente 0 que queria dizer, sem qualquer esph- tito de sistema. Vin em téda parte homens semelbantes ao omem, isto &, nem de todo prétos nem de todo brancos, enter- necedores e ridiculos a um tempo. Descreveu-os movides por ésse amor admirével a vida que a éle préprio sustentou ao lon- go do seu extenuante oficio. Em O Burgués Fidalgo, acaricia com madura paixio tédas essas alegrias que s30 as. belas fazen- das, a riqueza dos trajes, a boa mesa, 0 encanto da misica, 0 ritmo da danca, a graca de wma amante e a arte de dizer at Tetras do alfabeto, Flutua na peca uma sensualidede universal. Entretanto, essa comédiwbailado esté dividida entre dois gostos diferentes, Os espectadores levados pelo espirito devol- veriam de bom grado a loja de acessbrios tbda a encenacao ima- ginada em Chambord para o rei. A escada mirabolante que @ Comédie-Francaise em 1951 erguen no meio do saléo creme €

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