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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Disciplina: Teoria Antropológica I_ 2018.2
Professora: Antonella Maria Imperatriz Tassinari
Aluno: Guilherme de Almeida Abu-Jamra

Fichas de leitura 26/09/2018

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

→ Afastamento das singularidades de “classe” ou “gênero” resulta em novas consciências em


relação a “posições do sujeito”. Passa-se assim de “subjetividades originárias” para se pensar a
partir de “processos produzidos na articulação de diferenças culturais” → novas compreensões
sobre a tradição.
Bhabha afirma, citando Renée Green, que o multiculturalismo não reflete a complexidade da
situação da discussão teórica e prática sobre cultura.
→ Pós-colonialidade: lembrete das relações “neocoloniais” remanescentes no interior da “nova”
ordem mundial e da divisão do trabalho multinacional.
Bhabha traz a literatura para discutir a dicotomia público-privado à luz de sua discussão maior
sobre cultura e política. “Privado e público, passado e presente, o psíquico e o social desenvolvem
uma intimidade intersticial”, que questiona “divisões binárias através das quais essas esferas da
experiência social são frequentemente opostas espacialmente” (p. 35).
A questão da subjetividade: símbolos, momentos históricos, entreconexões, se inscrevem em e se
expressam através de subjetividades → “existência insurgente e intersticial da cultura” (p. 41).
Walter Benjamin: “A ambiguidade é a aparência figurativa do dialético, a lei do dialético
paralisada” → “Para Benjamin, essa paralisia é a Utopia; para os que vivem, como eu descrevi, 'de
outra forma' que não a modernidade, mas não fora dela, o momento utópico não é o horizonte de
esperança obrigatório” (p. 42).

O compromisso com a teoria → como superar a dicotomia teoria X política?


Bhabha questiona se mesmo as “novas” linguagens teóricas (como por exemplo o pós-
estruturalismo) não são elas mesmas apenas “estratagemas da elite ocidental culturalmente
privilegiada para produzir um discurso do Outro que reforça sua própria equação conhecimento-
poder” (p. 45).
A diferença entre teoria e prática é uma questão de “qualidades operacionais”: “elas existem lado a
lado – um tornando o outro possível – como a frente e o verso de uma folha de papel” (p. 47).

→ Passagem da história no discurso teórico: “um lugar de hibridismo, para se falar de forma
figurada, onde a construção de um objeto político que é novo, nem um e nem outro, aliena de modo
adequado nossas expectativas políticas, necessariamente mudando as próprias formas de nosso
reconhecimento do momento da política” (p. 51) → “não há comunidade, ou massa de pessoas cuja
historicidade inerente, radical, emita os sinais corretos”; é preciso, portanto, da teoria.
Bhabha dá exemplo da greve dos mineiros na Inglaterra nos anos 80: a perspectiva das mulheres em
relação ao ocorrido e aos processos envolvidos era muito mais complexa. “Algumas desafiavam
símbolos e autoridades da cultura que lutavam para defender. Outras desestruturavam os lares que
haviam lutado para manter” (p. 54). Acontecia uma “rearticulação, ou tradução, de elementos que
não são nem o um (a classe trabalhadora como unidade) nem o Outro (as políticas de gênero) mas
algo a mais, que contesta os termos e territórios de ambos”.
Bhabha trata do que quer dizer quando chama a teoria crítica de “ocidental”: “O Outro é citado,
mencionado, emoldurado, iluminado, encaixado na estratégia de imagem/contra-imagem de um
esclarecimento serial” (p. 59), em um “círculo fechado da interpretação”.
“A diversidade cultural é o reconhecimento de conteúdos e costumes culturais pré-dados; mantida
em um enquadramento temporal relativista, ela dá origem a noções liberais de multiculturalismo, de
intercâmbio cultural ou da cultura da humanidade […] Por meio do conceito de diferença cultural
quero chamar a atenção para o solo comum e o território perdido dos debates críticos
contemporâneos” (p. 63).
Assim, o que devemos, segundo Bhabha, é explorar a interculturalidade, esta terceira margem, da
constante tradução, negociação, o que ele chama de “entre-lugar”.

BAUMAN, Zygmunt. A cultura no mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2013.

1 – Apontamentos sobre as peregrinações históricas do conceito de “cultura”.

Não existe mais uma diferenciação entre “alta cultura” e “baixa cultura”. Não se separa mais a
“elite cultural” a partir do que ela “consome”. Bauman traz um panorama da compreensão da
cultura na passagem da modernidade para a pós-modernidade.
“Segundo Bourdieu, as obras de arte destinadas ao consumo estético apontavam, assinalavam e
protegiam as divisões entre as classes”. Cultura aqui aparece como elemento “conservador”, de
manutenção de um status quo, definição que contrasta com a proposta no contexto Iluminista →
“Segundo o conceito original […] um instrumento de navegação para orientar a evolução social
rumo a uma condição humana universal”. A cultura assim seria instrumento de uma sociedade
desenvolvida para com as sociedades e pessoas ainda “não desenvolvidas”, instrumento
civilizatório.
Com a “formação desse produto almejado” (a “colônia civilizada”), a cultura passa a um papel
“homeostático”: manter as coisas no curso desejado. Este é o panorama retratado por Bourdieu em
A Distinção.
Na modernidade líquida, a cultura é “liberada” de suas “funções” anteriores, para agora “atender às
necessidades dos indivíduos, resolver problemas e conflitos individuais com os desafios e
problemas das vidas das pessoas” → questões relativas à liberdade individual de escolha. “Hoje, a
cultura consiste em ofertas, e não em proibições; em proposições, não em normas”.
A cultura no sentido líquido-moderno está afinado com a concepção econômica deste tempo,
orientada no “excedente das ofertas, no rápido envelhecimento e no definhamento prematuro do
poder de sedução” → “Sua principal preocupação é evitar o sentimento de satisfação em seus
antigos objetos e encargos, agora transformados em clientes”.

4 – A cultura num mundo de diásporas

A cultura tinha como missão a “modernização”, como dito no primeiro capítulo. A construção do
Estado-nação demandava o que Bauman chama de engajamento mútuo, cotidiano e direto entre
administradores e administrados. Hoje, o que ocorre é uma era do não engajamento.
Bauman fala sobre o multiculturalismo: “Já que a 'sociedade' não tem outra preferência senão deixar
as pessoas – individualmente ou em parceria – criarem suas próprias preferências, não há mais
oportunidade de recorrer a um tribunal para confirmar a autoridade ou o poder impositivo da
escolha feita por uma pessoa” → “as pessoas têm o direito de ser diferente e o direito de ser
indiferente à diferença”.
Bauman cita C. Taylor, discorrendo sobre a disputa política envolvida nessa concepção sobre
cultura. “De um lado, cabe respeitar o direito de uma comunidade proteger seu modo de vida das
pressões governamentais no sentido da assimilação ou atomização; de outro, o direito de autodefesa
do indivíduo em relação a autoridades comunitárias que neguem seu direito de escolha ou o coajam
a aceitar opções indesejadas ou repulsivas”.
Em relação a essa disputa política, Habermas apresenta uma outra proposição, que chama de
“regime democrático constitucional”; se baseia em uma “universalidade e respeito aos direitos reais
dos cidadãos” como condições para “qualquer política de reconhecimento sensata”. Adota aqui uma
concepção inerente de humanidade universal.
Bauman afirma que a consciência da imprevisibilidade humana, dentro dessa concepção, pode
fortalecer o que chama de não engajamento (“ideologia do fim de todas as ideologias”) ou fornecer
a consciência da necessidade de um esforço e engajamento ainda maior.
“O sentimento de ameaça e incerteza (tanto entre os imigrantes quanto na população nativa) tende a
transformar o conceito de multiculturalismo no postulado de um 'multicomunitarismo', como Alain
Touraine assinalou” → “Um sentimento de segurança de ambos os lados da barricada é condição
essencial para o diálogo entre culturas”.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify,
2009.

Cap. 19: “Cultura” e cultura: conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais

O pós-colonialismo é um traço presente na relação entre ex-colônias e ex-metrópoles, e não apenas


em um dos lados. “As categorias analíticas fabricadas no centro e exportadas para o resto do mundo
também retornam hoje para assombrar aqueles que as produziram”. Uma dessas categorias é a
“cultura”.
Manuela Carneiro busca delimitar uma diferença entre cultura e “cultura”, com aspas. Segundo ela,
não pertencem ao mesmo universo discursivo. Surge a questão que tenta ser elucidada ao longo do
texto: quais são os processos implicados nesses ajustes e traduções da categoria importada de
“cultura” por “povos periféricos”?
A autora traz um relato como exemplo da questão teórica proposta: a discussão em junho de 2005 (e
tudo que a envolve), reunindo diversos representantes e lideranças indígenas de alguns povos
amazônicos, acerca da propriedade e direitos intelectuais e conhecimentos tradicionais, mais
especificamente a medicina tradicional do kampo e do ayahuasca.

→ “A coexistência de cultura [e “cultura”] produz efeitos e consequências?”

A Convenção sobre diversidade biológica da ONU de 1992 procura redefinir a relação entre
“pessoa” e “conhecimento”. Não escapa, porém, de produzir uma relação de propriedade. Essa ideia
de propriedade sobre o conhecimento é o que estava em pauta na discussão em 2005 em Rio
Branco.
Citando uma série de convenções, grupos de trabalho, e etc. a autora demonstra como a
compreensão da questão passou “da cultura dos povos indígenas como patrimônio da humanidade à
cultura como patrimônio tout court, e mais especificamente ainda à 'cultura' como propriedade
particular de cada povo indígena” (p. 327). Nota-se a imposição conceitual da “metrópole” tanto na
prática discursiva vigente (uma linguagem do direito adotada pelos movimentos indígenas), como
também a univocidade da ideia de “conhecimento tradicional” para tratar de uma ampla miríade de
populações e relações culturais. Assim, os indígenas seguem “obrigados a carregar o fardo da
imaginação do Ocidente se quiserem ser ouvidos” (p. 328). No caso, é imaginado e imputado um
contraste com nossos “valores deturpados”: se estamos baseados numa construção de propriedade
individual, então certamente a “deles” será algo “coletivo”. E “para atingir seus objetivos […] os
povos indígenas precisam se conformar às expectativas dominantes em vez de contestá-las.
Precisam operar com os conhecimentos e com a cultura tais como são entendidos por outros povos,
e enfrentar as contradições que isso possa gerar” (p. 330).
Como se constrói uma representação legal e legítima nesse diálogo de indígenas com a linguagem
do Estado? “O que acontece se todo nosso construto de coisas como sociedade, representação e
autoridade não tiver (ou não tiver tido) nenhum equivalente entre esses povos?” (p. 337).
O exemplo da medicina: os pajés Krahô, ao longo do tempo se organizam em torno de um
“conselho”, e passam a reivindicar que o Estado financiasse e apoiasse a prática da medicina
tradicional, uma vez que “as faculdades de medicina a levavam a sério”. “Esse episódio aponta para
os efeitos de espelhamento que fazem parte de qualquer negociação, mas particularmente de
transações de ordem jurídica ou política que envolvem povos indígenas e a sociedade mais ampla”
(p. 343).
A “cultura” (com aspas) tem um caráter metalinguístico: “uma noção reflexiva que de certo modo
fala de si mesma”. Manuela C. Da Cunha reflete sobre essa reflexividade e seus efeitos. No caso da
discussão acerca da propriedade intelectual, a autora afirma:
“i) existem direitos intelectuais em muitas sociedades tradicionais: isso diz respeito à cultura; ii)
existe um projeto político que considera a possibilidade de colocar o conhecimento tradicional em
domínio público: isso diz respeito à 'cultura'”.
Manuela chama atenção para o fato de que a palavra cultura não um termo krahô que a traduza. Isto
denota que trata-se aqui de um “registro específico, um registro interétnico que deve ser distinguido
do registro da vida cotidiana da aldeia” (p. 370).
“Falar sobre 'invenção da cultura' não é falar sobre cultura, e sim sobre 'cultura', o metadiscurso
reflexivo sobre a cultura” (p. 373).

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