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Desde que o senhor ganhou o prêmio Nobel por sua pesquisa O senhor veio ao Brasil apresentar sua nova linha de pesqui-
sobre a memória, usando a lesma-do-mar Aplysia para expe- sa, sobre a esquizofrenia. Como o senhor entrou nesse novo
rimentos, que outras descobertas foram feitas nessa área campo de estudo e qual a relação dele com a memória? Sou
que considera importantes? Na minha pesquisa, tomei fascinado pela memória, pois ela é a cola que junta a
duas direções principais desde 2000. Primeiramente, nossa mente, é o que faz de você quem você é. Então,
nos concentramos no processo pelo qual a memória tenho me concentrado em dois tipos de distúrbios
é perpetuada – o que faz com que nos lembremos de de memória. Um é a perda de memória relacionada à
algo pelo resto da vida – e nos deparamos com um idade, que independe de uma doença específica e se
mecanismo muito interessante. Mostramos que as dá normalmente com o tempo. O outro é a perda de me
memórias de longo prazo envolvem a expressão de ge- mória associada às doenças psiquiátricas, como a es
nes específicos a certas sinapses no nosso cérebro. quizofrenia, que tem como um dos sintomas um déficit
O modo como as sinapses das memórias de longo pra- de memória de curto prazo.
zo se mantêm é pela síntese de algumas proteínas.
Já sabíamos que, quando produzimos uma memória O senhor disse uma vez que, nos últimos 40 anos, não houve
de curto prazo, as sinapses do cérebro são modifica- avanços na farmacoterapia para doenças mentais, espe
das, mas sem mudanças anatômicas. Recentemente, cialmente para a esquizofrenia. O senhor e sua equipe pre-
descobrimos que, quando produzimos uma memória tendem desenvolver novos medicamentos para essa doença?
de longo prazo, ocorrem mudanças anatômicas no nos- Sim, eu disse isso mesmo, e estamos estudando novas
so cérebro: a expressão de alguns genes é alterada, no drogas. Acho que não é prático tentar desenvolver ape-
vas proteínas são sintetizadas transformando as sinap- nas um medicamento para a esquizofrenia, pois há
ses e criando outras novas. Isso quer dizer que, quan- diferentes tipos de complexos de sintomas associados
do algo impactante acontece na sua vida, gera efeitos à doença. Temos que tentar atacar cada sintoma indi
na expressão dos genes do seu cérebro. vidualmente, pois há diferentes mecanismos por trás
Mais tarde observamos outros detalhes surpreen da doença.
dentes nesse processo. Um estudante de doutorado
do meu laboratório descobriu uma molécula, a CPEB, Qual seria a diferença entre as drogas que vocês estão de-
que regula o mecanismo de formação de memórias senvolvendo e as que são usadas hoje? Como elas atuariam
de longo prazo. Mas, essa molécula, que ajuda a man- nesses outros sintomas? As drogas que temos hoje só
ter as sinapses em bom estado, surpreendentemente, tratam um dos complexos de sintomas da esquizofrenia,
tem proteínas semelhantes aos príons. Os príons foram os chamados sintomas positivos, como as alucinações,
caracterizados nos anos 1990 como as proteínas res e não miram nos sintomas negativos, como a falta de
ponsáveis pela doença de Creutzfeldt-Jakob, a doença motivação, nem nos cognitivos, como o déficit de me
da vaca louca. Eram conhecidas diferentes proteínas mória de curto prazo. Acho que precisamos desenvol-
que podiam se autoperpetuar na forma de príons, mas ver abordagens completamente novas para os pacien-
sempre como causadoras de doenças, matando as cé- tes, focando esses últimos dois sintomas, e também te-
lulas do cérebro. Nós conseguimos obter o primeiro rapias para as pessoas que não respondem aos anti
exemplo de um príon que é funcional. Quando ele se psicóticos, que tratam apenas os sintomas positivos.
perpetua nas células, trabalha normalmente, não as da-
nifica, permite que elas funcionem melhor. A princípio, O senhor já chegou a algum resultado concreto em termos de
observamos isso na Aplysia. Recentemente, vimos que medicamentos? Ainda estamos trabalhando nessa nova
isso ocorre também em camundongos. abordagem, usando camundongos geneticamente mo- >>>
dificados como modelos para estudar a esquizofrenia. elas. Aí entra a neurociência, que poderia compro-
Temos conseguido bons resultados com algumas dro- var cientificamente que tipo de terapia é melhor
gas, mas ainda é muito cedo para falar em testes com para cada um.
humanos, embora já estejamos em contato com algumas
indústrias farmacêuticas interessadas. O senhor estudou psicanálise por muito tempo antes de se
aventurar na psiquiatria e nas neurociências. O senhor acre-
O senhor sempre defendeu, em seus livros e artigos, que a dita que os conceitos da psicanálise se aplicam à neurociên-
psicanálise e a psiquiatria deveriam usar mais a biologia e as cia? Com certeza, existem muitos conceitos de Freud
neurociências. O senhor vê isso acontecendo hoje? Com sendo usados na neurociência, como os de inconscien-
certeza, hoje existe muito mais neurociência em todos te e consciente. O que sabemos sobre o inconsciente
os aspectos da psiquiatria; infelizmente, o mesmo não hoje é muito similar à visão de Freud.
acontece com a psicanálise. A psiquiatria está em uma
ótima posição e já está se aproveitando do grande cres- O senhor vê as ideias de Freud ainda vivas quando olha para
cimento dos conhecimentos da neurociência, como os o cérebro humano no laboratório? O tempo todo. Ele
métodos de imagem e a genética. Já a psicanálise pare- errou em algumas coisas, não entendia nada sobre
ce ter parado no tempo. mulheres, mas acertou em muitas outras coisas.
Mas o senhor não acha que, se a psicanálise usasse métodos A psicanálise tende a ver mente e cérebro como distintos,
biológicos, correria o risco de se descaracterizar e desa- enquanto o senhor prega que ambos são interligados e que
parecer como área do conhecimento frente ao crescimen- a mente nada mais é do que um conjunto de processos
to da neurociência? Acho que a psicanálise já está desa- biológicos do cérebro. Então, essa seria outra grande dife-
parecendo e vai desaparecer se não se valer da biologia, rença entre o senhor e Freud? Pode-se dizer que sim.
se as coisas continuarem como estão. Se um analista Tenho convicção de que não existe uma mente indepen-
quiser ler Freud, assim como lemos Shakespeare ou dente do cérebro. Mas Freud chegou a buscar por um
Nietzsche, não há problema algum. Freud foi um gran- modelo biológico da mente; como a ciência ainda
de pensador e deve ser lido sempre. Mas, se os psica- era muito incipiente nessa área, ele abandonou esse
nalistas quiserem constituir uma ciência dinâmica, que caminho e partiu para o modelo abstrato da mente.
continuamente evolui, precisam vir ao século 21, fazer
novos estudos, descobrir como as coisas funcionam no A premissa de que nossa mente se resume a processos
cérebro, sob quais circunstâncias, qual é a melhor te- biológicos favorece a ideia do uso de drogas e medica-
rapia para cada problema... Eles definitivamente não mentos como resposta para qualquer problema. O senhor
estão fazendo isso. acha que existe a possibilidade de que, no futuro, as pes-
soas passem a tomar medicamentos para, por exemplo,
Então a psicanálise vive uma crise? A psicanálise está em desenvolver uma supermemória ou apagar lembranças
crise, mas não porque suas ideias estejam necessaria- indesejadas? É claro, existe esse perigo, mas as pessoas
mente erradas ou ultrapassadas, mas porque ela não têm problemas com as drogas desde que as pessoas
se autoinvestiga. Não existem muitos estudos explo existem e as plantas existem, mesmo que sejam ilegais.
rando os mecanismos biológicos por trás das ações. Não acho que a ideia de tomar drogas para melhorar
a memória seja boa. Drogas para melhorar a memória
Como o senhor vê a psicoterapia hoje? Há terapias, como vão existir, mas não deverão ser tomadas por jovens
a cognitivo-comportamental, que vêm sendo bastante que querem passar nas provas do colégio; deverão ser
estudadas e parecem funcionar bem, mas, de modo prescritas por médicos, pois a perda de memória é uma
geral, é um caos. Existem muitas terapias diferentes, doença que precisa ser tratada, assim como todas as
mas não sabemos quem realmente se beneficia com doenças psiq uiátricas. Também acho uma péssima
COMO
ideia remover memórias. É mais interessante fazer algo TRANSMITIR
para prevenir a for mação de memórias assustadoras. Se
você manda alguém, como um bombeiro, para um incêndio CONCEITOS DIFÍCEIS
e quer reduzir o impacto emocional da situação, pode lhe
dar drogas para isso. Mas tentar remover memórias com DE FORMA SIMPLES?
drogas é uma má ideia. Você é quem é por causa de suas
memórias, e se você retira as suas memórias, altera a sua
personalidade. Neste Pequeno Manual,