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entrevista

UMA NOVA CIÊNCIA DA MENTE

ERIC KANDEL Psiquiatria, psicanálise e neurociência. O cientista austríaco


naturalizado norte-americano Eric Kandel transita por todas
essas áreas com desenvoltura. Laureado com o prêmio Nobel de
Medicina de 2000, por ter descoberto os mecanismos neurais
responsáveis pela formação das memórias, o pesquisador de
82 anos defende que essas três áreas do conhecimento devem
se unir para formar uma “nova ciência da mente”, capaz de
desvendar os mistérios do cérebro humano.
Kandel nasceu em Viena, cidade natal de Sigmund Freud, mas
só foi se interessar pela psicanálise nos Estados Unidos, país
em que sua família judaica se refugiou meses antes da eclosão
da Segunda Guerra, em 1939. Durante o ensino médio, no bair-
ro do Brooklyn, em Nova York, ele direcionou seus estudos para
a história e a arte e decidiu que queria se tornar um psicana-
lista. Para isso, se inscreveu no curso de psiquiatria na Univer-
sidade Harvard, onde se encantou com o estudo dos processos
biológicos. Mais tarde, no final da década de 1950, se aventu­-
rou na neurociência ao se matricular em um curso de neurobio-
logia na Universidade Colúmbia, onde hoje é professor. Desde
então, o cientista não abandonou mais a pesquisa empírica
e se firmou como referência no estudo do cérebro e dos proces-
sos mentais humanos.
Em novembro, Eric Kandel veio ao Brasil apresentar sua nova
pesquisa, sobre esquizofrenia, no Congresso Brasileiro de Psi-
quiatria, realizado no Rio de Janeiro. Em entrevista à CH, ele
falou sobre seus estudos atuais e seu fascínio pela memória,
além de discutir a atualidade de Freud e a crise da psicanálise
diante da emergência da neurociência.
FOTO SOFIA MOUTINHO

SOFIA MOUTINHO | CIÊNCIA HOJE | RJ

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NÃO É PRÁTICO TENTAR DESENVOLVER APENAS UM MEDICAMENTO
PARA A ESQUIZOFRENIA, POIS HÁ DIFERENTES TIPOS DE COMPLEXOS DE SINTOMAS
ASSOCIADOS À DOENÇA. TEMOS QUE TENTAR ATACAR CADA SINTOMA INDIVIDUALMENTE,
POIS HÁ DIFERENTES MECANISMOS POR TRÁS DA DOENÇA

Desde que o senhor ganhou o prêmio Nobel por sua pesquisa O senhor veio ao Brasil apresentar sua nova linha de pesqui-
sobre a memória, usando a lesma-do-mar Aplysia para expe- sa, sobre a esquizofrenia. Como o senhor entrou nesse novo
rimentos, que outras descobertas foram feitas nessa área campo de estudo e qual a relação dele com a memória? Sou
que considera importantes? Na minha pesquisa, tomei fascinado pela memória, pois ela é a cola que junta a
duas direções principais desde 2000. Primeiramente, nossa mente, é o que faz de você quem você é. Então,
nos concentramos no processo pelo qual a memória tenho me concentrado em dois tipos de distúrbios
é perpetuada – o que faz com que nos lembremos de de memória. Um é a perda de memória relacionada à
algo pelo resto da vida – e nos deparamos com um idade, que independe de uma doença específica e se
mecanismo muito interessante. Mostramos que as dá normalmente com o tempo. O outro é a perda de me­
memórias de longo prazo envolvem a expressão de ge­- mória associada às doenças psiquiátricas, como a es­
nes específicos a certas sinapses no nosso cérebro. quizofrenia, que tem como um dos sintomas um déficit
O modo como as sinapses das memórias de longo pra­- de memória de curto prazo.
zo se mantêm é pela síntese de algumas proteínas.
Já sabíamos que, quando produzimos uma memória O senhor disse uma vez que, nos últimos 40 anos, não houve
de curto prazo, as sinapses do cérebro são modifica­- avanços na farmacoterapia para doenças mentais, espe­
das, mas sem mudanças anatômicas. Recentemente, cialmente para a esquizofrenia. O senhor e sua equipe pre-
descobrimos que, quando produzimos uma memória tendem desenvolver novos medicamentos para essa doença?
de longo prazo, ocorrem mudanças anatômicas no nos­- Sim, eu disse isso mesmo, e estamos estudando no­vas
so cérebro: a expressão de alguns genes é alterada, no­ drogas. Acho que não é prático tentar desenvolver ape-
vas proteínas são sintetizadas transformando as sina­p­­- nas um medicamento para a esquizofrenia, pois há
ses e criando outras novas. Isso quer dizer que, quan­- diferentes tipos de complexos de sintomas associados
do algo impactante acontece na sua vida, gera efeitos à doença. Temos que tentar atacar cada sintoma indi­
na expressão dos genes do seu cérebro. vidualmente, pois há diferentes mecanismos por trás
Mais tarde observamos outros detalhes surpreen­ da doença.
dentes nesse processo. Um estudante de doutorado
do meu laboratório descobriu uma molécula, a CPEB, Qual seria a diferença entre as drogas que vocês estão de-
que regula o mecanismo de formação de memórias senvolvendo e as que são usadas hoje? Como elas atuariam
de longo prazo. Mas, essa molécula, que ajuda a man­- nesses outros sintomas? As drogas que temos hoje só
ter as sinapses em bom estado, surpreendentemente, tratam um dos complexos de sintomas da esquizofrenia,
tem proteínas semelhantes aos príons. Os príons foram os chamados sintomas positivos, como as alucinações,
caracterizados nos anos 1990 como as proteínas res­ e não miram nos sintomas negativos, como a falta de
ponsáveis pela doença de Creutzfeldt-Jakob, a doença motivação, nem nos cognitivos, como o déficit de me­
da vaca louca. Eram conhecidas diferentes proteínas mória de curto prazo. Acho que precisamos desenvol­-
que podiam se autoperpetuar na forma de príons, mas ver abordagens completamente novas para os pacien­-
sempre como causadoras de doenças, matando as cé- tes, focando esses últimos dois sintomas, e também te-
lulas do cérebro. Nós conseguimos obter o primeiro rapias para as pessoas que não respondem aos anti­
exemplo de um príon que é funcional. Quando ele se psicóticos, que tratam apenas os sintomas positivos.
perpetua nas células, trabalha normalmente, não as da-
nifica, permite que elas funcionem melhor. A princípio, O senhor já chegou a algum resultado concreto em termos de
observamos isso na Aplysia. Recentemente, vimos que medicamentos? Ainda estamos trabalhando nessa nova
isso ocorre também em camundongos. abordagem, usando camundongos geneticamente mo- >>>

288 | DEZEMBRO 2011 | CIÊNCIAHOJE | 9


entrevista

EXISTEM MUITOS CONCEITOS DE FREUD SENDO USADOS NA NEUROCIÊNCIA,


COMO OS DE INCONSCIENTE E CONSCIENTE. O QUE SABEMOS SOBRE
O INCONSCIENTE HOJE É MUITO SIMILAR À VISÃO DE FREUD

dificados como modelos para estudar a esquizofrenia. elas. Aí entra a neurociência, que poderia com­pro-
Temos conseguido bons resultados com algumas dro­- var cientificamente que tipo de terapia é melhor
gas, mas ainda é muito cedo para falar em testes com para cada um.
humanos, embora já estejamos em contato com algumas
indústrias farmacêuticas interessadas. O senhor estudou psicanálise por muito tempo antes de se
aventurar na psiquiatria e nas neurociências. O senhor acre-
O senhor sempre defendeu, em seus livros e artigos, que a dita que os conceitos da psicanálise se aplicam à neurociên-
psicanálise e a psiquiatria deveriam usar mais a biologia e as cia? Com certeza, existem muitos conceitos de Freud
neurociências. O senhor vê isso acontecendo hoje? Com sendo usados na neurociência, como os de inconscien-
certeza, hoje existe muito mais neurociência em todos te e consciente. O que sabemos sobre o inconsciente
os aspectos da psiquiatria; infelizmente, o mesmo não hoje é muito similar à visão de Freud.
acontece com a psicanálise. A psiquiatria está em uma
ótima posição e já está se aproveitando do grande cres- O senhor vê as ideias de Freud ainda vivas quando olha para
cimento dos conhecimentos da neurociência, como os o cérebro humano no laboratório? O tempo todo. Ele
métodos de imagem e a genética. Já a psicanálise pare- errou em algumas coisas, não entendia nada sobre
ce ter parado no tempo. mulheres, mas acertou em muitas outras coisas.

Mas o senhor não acha que, se a psicanálise usasse métodos A psicanálise tende a ver mente e cérebro como distintos,
biológicos, correria o risco de se descaracterizar e desa- enquanto o senhor prega que ambos são interligados e que
parecer como área do conhecimento frente ao crescimen- a mente nada mais é do que um conjunto de processos
to da neurociência? Acho que a psicanálise já está desa- biológicos do cérebro. Então, essa seria outra grande dife-
parecendo e vai desaparecer se não se valer da biologia, rença entre o senhor e Freud? Pode-se dizer que sim.
se as coisas continuarem como estão. Se um analista Tenho convicção de que não existe uma mente indepen-
quiser ler Freud, assim como lemos Shakespeare ou dente do cérebro. Mas Freud chegou a buscar por um
Nietzsche, não há problema algum. Freud foi um gran- modelo biológico da mente; como a ciência ainda
de pensador e deve ser lido sempre. Mas, se os psica- era muito incipiente nessa área, ele abandonou esse
nalistas quiserem constituir uma ciência dinâmica, que caminho e partiu para o modelo abstrato da mente.
continuamente evolui, precisam vir ao século 21, fazer
novos estudos, descobrir como as coisas funcionam no A premissa de que nossa mente se resume a processos
cérebro, sob quais circunstâncias, qual é a melhor te- biológicos favorece a ideia do uso de drogas e medica-
rapia para cada problema... Eles definitivamente não mentos como resposta para qualquer problema. O senhor
estão fazendo isso. acha que existe a possibilidade de que, no futuro, as pes-
soas passem a tomar medicamentos para, por exemplo,
Então a psicanálise vive uma crise? A psicanálise está em desenvolver uma supermemória ou apagar lembranças
crise, mas não porque suas ideias estejam necessaria- indesejadas? É claro, existe esse perigo, mas as pessoas
mente erradas ou ultrapassadas, mas porque ela não têm problemas com as drogas desde que as pessoas
se autoinvestiga. Não existem muitos estudos explo­ existem e as plantas existem, mesmo que sejam ilegais.
rando os mecanismos biológicos por trás das ações. Não acho que a ideia de tomar drogas para melhorar
a memória seja boa. Drogas para melhorar a memória
Como o senhor vê a psicoterapia hoje? Há terapias, como vão existir, mas não deverão ser tomadas por jovens
a cognitivo-comportamental, que vêm sendo bastante que querem passar nas provas do colégio; deverão ser
estudadas e parecem funcionar bem, mas, de modo prescritas por mé­dicos, pois a perda de memória é uma
geral, é um caos. Existem muitas terapias diferentes, doença que precisa ser tratada, assim como todas as
mas não sabemos quem realmente se beneficia com doenças psi­q uiátricas. Também acho uma péssima

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POR QUE
DIVULGAR CIÊNCIA
PARA A SOCIEDADE?

COMO
ideia remover memórias. É mais interessante fazer algo TRANSMITIR
para prevenir a for mação de memórias assustadoras. Se
você manda alguém, como um bombeiro, para um incêndio CONCEITOS DIFÍCEIS
e quer reduzir o impacto emocional da situação, pode lhe
dar drogas para isso. Mas tentar remover memórias com DE FORMA SIMPLES?
drogas é uma má ideia. Você é quem é por causa de suas
memórias, e se você retira as suas memórias, altera a sua
personalidade. Neste Pequeno Manual,

Quais são hoje os maiores mistérios da neurociência e quão


você encontra dicas
perto estamos de resolvê-los? Temos muitos problemas a se- de como escrever e falar
rem resolvidos. Precisamos descobrir ainda, por exemplo,
quais são as bases biológicas de doenças como a esquizofre- sobre ciência com rigor
nia e o transtorno bipolar e também qual é a natureza bio- e simplicidade.
lógica da consciência. Já fizemos muitos avanços concei-
tuais e acredito que estamos começando a avançar também
na pesquisa empírica. A biologia da mente é um dos maio- Peça já seu exemplar.
res desafios científicos do século 21 e só poderá ser enten-
dida completamente quando a neurociência, a psiquiatria, LIGUE 0800 727 8999 OU VISITE
a psicologia e a filosofia se interligarem formando o que
WWW.CIENCIAHOJE.ORG.BR
eu chamo de uma nova ciência da mente.

O senhor participou do documentário In search for memory,


sobre a memória e sua própria vida. Atualmente também participa
de uma série de vídeos na internet sobre o cérebro com o jornalis-
ta inglês Charlie Rose. A divulgação da ciência é uma de suas me-
tas? Com certeza. A ciência precisa se tornar parte do dia
a dia e da cultura de todas as pessoas.

O senhor vai lançar, em março próximo, o livro The age of insi-


ght (A era do insight), sobre arte. Também há espaço para a
ciência no livro? Claro, em The age of insight, tento fazer
uma ponte entre arte e ciência. Uma coisa maravilhosa da
neurociência é que ela não só aumenta o nosso entendi-
mento de doenças psiquiátricas como também nos conec-
ta com outras áreas da vida, como a música e a arte, ao nos
mostrar como o nosso cérebro responde a elas. No livro, eu
me concentro em determinados artistas de Viena do sé-
culo 18, como o pintor moderno Egon Schiele. Esses artis-
tas tiveram muitos insights sobre a mente; então, eu defen-
do que os processos mentais inconscientes foram desco-
bertos paralelamente por Freud e por eles. Embora Schie-
le e Freud sejam perso nalidades bem distintas, ambos
tiveram grandes ideias sobre a mente humana.

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