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Rev Bras

Saúde de Crescimento Desenvolv


Crianças Kaiowá Hum. 2008;18(1):35-45
e Guarani. PESQUISA
Rev Bras Crescimento Desenvolv ORIGINAL
Hum. 2008;18(1):35-45
RESEARCH ORIGINAL

CUIDADO À SAÚDE DE CRIANÇAS KAIOWÁ E GUARANI: NOTAS DE


OBSERVAÇÃO DE CAMPO

HEALTH CARE OF KAIOWÁ AND GUARANI CHILDREN: FIELD


OBSERVATION NOTES

Renata Palópoli Pícoli++


Rubens de Camargo Ferreira Adorno+

Pícoli RP, Adorno RdeCF. Cuidado à Saúde de Crianças Kaiowá e Guarani: notas de observação
de campo. Rev Bras Crescimento Desenvol Hum. 2008; 18(1): 35-45.

Resumo: Inicia-se uma discussão sobre as práticas de saúde e cuidado utilizadas pelos Kaiowá
e Guarani da Terra Indígena de Caarapó no enfrentamento das doenças diarréicas na infância.
Utilizou-se de uma contribuição etnográfica, através do uso da técnica da observação participante
e de entrevistas aberta com moradores da comunidade. Em se tratando de uma sociedade que
vivencia permanentes transformações de ordem social advindas das relações interétnicas e da
sucessiva presença dos serviços de saúde, observa-se que o significado de diarréia infantil,
assim como as decisões relativas à prevenção e ao seu tratamento, refletem comportamentos
diferenciados e complexos. A diarréia, também conhecida como chiri, é definida através de sinais
que, de certa forma, são semelhantes aos biomédicos. No entanto, nem sempre as explicações de
causalidade e as formas de tratamento seguem, unicamente, a abordagem biomédica. A variedade
de causas da doença diarréica entre as crianças indígenas implica na escolha do processo
terapêutico, que pode ser desde a procura por um especialista tradicional, realização de chás e
infusões e, ainda, procura pelos serviços de saúde. Tais explicações e formas de tratamento
pressupõem a existência de um processo de negociação entre pessoas de uma mesma cultura e de
culturas distintas. Neste sentido, os serviços de saúde ao tratar a criança com diarréia, devem
considerar não apenas a perspectiva biomédica, mas também dialogar com a percepção e as
práticas indígenas na identificação da causalidade, na definição do diagnóstico e do tratamento,
sobretudo, pela coexistência destas práticas no contexto local.

Palavras-chave: Saúde infantil; diarréia infantil; etnografia; indios Kaiowá e Guarani.

INTRODUÇÃO réicas estão descritas neste trabalho buscando


compreender as complexas relações que se es-
As práticas de saúde utilizadas pelos Kai- tabelecem entre sistemas culturais distintos, me-
owá e Guarani* no enfrentamento dos agravos dicina indígena e biomedicina.
infantis, sobretudo, em relação às doenças diar- A nosso ver , há dificuldades em compre-

+
Departamento de Saúde Materno Infantil/Faculdade de Saúde Pública/Universidade de São Paulo.
Av: Dr. Arnaldo, 715, Bairro: Cerqueira César
++
R: Senador Ponce, 1435 bloco 1 apto 23, Bairro: Jardim Paulista, Cep: 79050-220
Campo Grande/MS – E-mail: rpicoli@usp.br
*
Os índios Guarani do Estado de Mato Grosso do Sul, estão representados pelas populações Kaiowá e Ñandeva, sendo
que esta última se reconhece e é reconhecida por Guarani; será, portanto, tratada por esta denominação. Embora em
menor número e historicamente localizados ao sul da bacia do Rio Iguatemi, os Guarani estão presentes em várias terras
indígenas Kaiowá. Desta forma, utilizamos, neste texto, a designação Kaiowá e Guarani, quando fizermos menção à
população da Terra Indígena de Caarapó.

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ender essa distinção, pois amplamente se toma e aproximadamente 14 quilômetros do município


se pensa que a questão da saúde se resolve a de Caarapó. Foi à terceira área demarcada pelo
partir do acesso aos serviços médicos. Não é extinto Serviço de Proteção aos Índios – SPI,
objetivo desse artigo aprofundar essa discussão durante o período de 1915 a 1928. Neste período
mas tomá-la como referência. foram demarcadas oito reservas - pequenas ex-
Ao considerá-las como sistemas culturais, tensões de terra, para usufruto dos Kaiowá e
utilizamos à teoria de cultura definida por Tur- Guarani - perfazendo um total de 18.124 hecta-
ner1 como sendo um sistema de símbolos que res, com o objetivo de confinar os núcleos indí-
define e produz a si mesmo enquanto entidade genas, liberando o restante do território para a
social em relação a sua situação histórica em colonização.
transformação. Percorrendo a estrada que dá acesso a
Neste sentido, apresenta-se uma perspec- TI de Caarapó, o que se observa é uma vegeta-
tiva de leitura das práticas de saúde e cuidado ção gramínea - chamada braquearia, típica de
infantil não como práticas fixas e fechadas, mas fazendas de criação de gado. Ao entrarmos em
sim como um conjunto de ações que são redefi- território indígena é possível perceber uma mu-
nidas e negociadas, continuamente, na interação dança na vegetação, com árvores esparsas que
social. algumas vezes acompanham a distribuição das
Esta discussão passa pelo conceito de casas. No entanto, observa-se um comprometi-
negociação, que segundo Bhabha2 deve ser utili- mento crescente dos recursos ambientais pela
zado para buscar superar as visões dualistas, que expansão da braquearia em terras indígenas.
opõem, simplesmente, centro-periferia, rico-po- O comprometimento dos recursos natu-
bre, chamando a atenção para as estruturas de rais e, consequentemente, de suas alternativas
interação presentes entre ambos, ao articular ele- econômicas próprias é descrito por Grünberg3,
mentos antagônicos e opostos, porém, sem a pre- Brand4 e Pereira5 ao destacarem que o avanço
tensão da sua superação dialética. das gramíneas sobre a roça de cultivo dos Gua-
Desta forma, foi na Terra Indígena de rani não se reflete apenas no impacto sobre a
Caarapó, Estado de Mato Grosso do Sul, onde economia indígena mas, sobretudo, na organiza-
vivem aproximadamente 4.224 pessoas do gru- ção social e religiosa, já que os rituais de plantio
po étnico Kaiowá e Guarani, que a problemática representam momentos importantes, que garan-
do estudo buscou elucidar a complexidade das tem o equilíbrio da terra e da produção pelas for-
práticas de saúde utilizadas nos casos de diar- ças cósmicas.
réia infantil. A população infantil na faixa etária Percorrendo aproximadamente quatro
de zero a cinco anos, no período estudado, era quilômetros pela TI de Caarapó, chegamos à
de aproximadamente 800 crianças. região central, onde está localizada a Escola
Antes, porém, de discutir as práticas de Municipal Indígena Ñandejara, o Posto da Fun-
saúde infantil, apresenta-se, brevemente, o con- dação Nacional do Índio (FUNAI) e o Posto de
texto histórico e social da Terra Indígena de Ca- Saúde Zacarias Marques. Próximo a estes esta-
arapó, por entender que as relações interpesso- belecimentos moram as parentelas de maior pres-
ais e interétnicas que se estabelece(ra)m, ao lon- tígio interno dentro da reserva indígena..
go de décadas de contato, com a sociedade não- Como destacado pela literatura produzida
indígena têm sua importância na redefinição da sobre este povo, a parentela5, também conheci-
organização social, assim como na ampliação de da como família extensa6, representa a base da
seu sistema cultural de saúde. sua organização social. Seus integrantes devem
seguir a orientação de um cabeça da parentela –
Breve descrição da Terra Indígena Caarapó hi’u - e estabelecer entre si, laços de solidarie-
dade política, econômica e religiosa, que garan-
A Terra Indígena (TI) de Caarapó com tam o equilíbrio de sua vida social.
território de 3.594 hectares, está localizada à Em linhas gerais, a parentela é represen-

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tada, portanto, por um círculo de pessoas relaci- comportamentos que passam a desproteger e
onadas por vínculos parentais, tendo a predile- precarizar determinados grupos de parentesco.
ção por determinados parentes identificados por Tal complexidade de relações é representada e
grupo de residência, de atuação econômica e reproduzida nos problemas sociais e de saúde
política5. infantil emergentes.
De maneira geral, as redes de alianças,
atualmente, seguem a lógica da atuação política, Breve descrição da saúde indígena: macro
na qual se observa a diminuição relativa dos as- e micro-contexto
pectos de parentesco de consangüinidade e uma
crescente importância à questão política, pelo A gestão da saúde do povo Kaiowá e
prestígio do líder da parentela. Guarani está sob a responsabilidade do Distrito
Observa-se, contudo, que estas alianças Sanitário Especial Indígena (DSEI) de Mato
são cercadas de tensões e negociações cons- Grosso do Sul. Sua implantação ocorreu em 1999,
tantes. Por exemplo, ao oferecer ajuda a um in- com a Lei 9.836 que instituiu a implantação do
tegrante de sua parentela, o líder exige, implici- subsistema de atenção indígena, baseado em dis-
tamente, apoio político e, ao mesmo tempo, for- tritos sanitários, no âmbito do Sistema Único de
talece seu prestígio. Saúde (SUS)7.
A observação de campo levantou aspec- O DSEI é responsável por desenvolver
tos importantes sobre esta questão. As pessoas programas específicos de atenção básica em
que não conseguem alianças com parentelas de áreas indígenas, que visem à prevenção e o con-
prestígio, passam a vivenciar um processo de trole de agravos à saúde.
marginalização interna que implica, na maioria A organização dos serviços de saúde se-
das vezes, em problemas sociais, econômicos e gue uma hierarquização, os Postos de Saúde, lo-
de saúde, por terem dificuldades de resolvê-los calizados nas terras indígenas, devem ser a pri-
individualmente. meira referência, realizando ações de atenção
Em outras palavras, a tentativa de se adap- básica. O Pólo-Base, como instância local, deve
tarem às mudanças sociais, que envolvem ques- monitorar as ações de atenção básica, oferecen-
tões históricas e econômicas, ao longo de déca- do o suporte necessário nos atendimentos nas
das de contato, criou problemas de diferentes terras indígenas.
naturezas, como, a adoção de um processo de No que se refere à assistência à saúde na
atuação política interna que não consegue mais TI de Caarapó, os atendimentos são realizados
responder aos interesses coletivos. por duas equipes multidisciplinares de saúde in-
Essas são, certamente, questões relevan- dígena (dois médicos, duas enfermeiras, três au-
tes para entender a situação de saúde de crian- xiliares de enfermagem, dois odontólogos, uma
ças indígenas, pois num contexto de tensões e nutricionista, nove agentes indígenas de saúde e
negociações constantes entre as parentelas e motoristas) nos Postos de Saúde Zacarias Mar-
destas com a sociedade não-indígena aqui, es- ques e Ñanderu João Paulo, este último inaugu-
pecialmente, a atuação dos órgãos governamen- rado em setembro de 2006.
tais, que ao difundirem um modelo de poder co- No período matutino, o profissional médi-
ercitivo e individualizado, contrariando as normas co atende em média 20 consultas, priorizando o
de reciprocidade, amplia os conflitos e a oposi- atendimento às crianças. No período vespertino,
ção de parentelas em assuntos de ordem política realiza atendimentos domiciliares e só recente-
da comunidade. Estamos, pois, diante de uma mente um médico pediatra passou a realizar aten-
sociedade que tem apresentado contrastes na sua dimentos no Posto de Saúde Zacarias Marques,
constituição social, mais ou menos profundos. uma vez por semana.
Vê-se, portanto, que seu constante movi- Os serviços de média e alta complexida-
mento e redefinições trazem implicações no cam- de devem ser referenciados para a rede de ser-
po das relações sociais e situações de crise e viços do SUS. O Pronto Atendimento Municipal

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de Caarapó é referência para o atendimento como aproveitar melhor a água. a TI conta com
ambulatorial (ginecologia, clínica médica e pedi- dois agentes indígenas de saneamento – AISAN.
atria) e o Hospital São Matheus é referência No entanto, suas ações estavam restritas à ma-
hospitalar, enquanto os casos que demandam nutenção da rede, visto que até o período de re-
atendimentos de alta complexidade são referen- alização do trabalho de campo (novembro de
ciados para o Hospital Universitário e o Hospital 2006), não haviam recebido capacitação para
Porta da Esperança, ambos localizados no muni- atuarem junto às famílias.
cípio de Dourados. Este último está sob a gestão
da Organização Não-Governamental Missão MÉTODO
Evangélica Caiua, que realiza atendimento às
crianças indígenas desnutridas. Para o registro da coleta de dados, busca-
No âmbito legal, em nosso entender, os mos realizar uma aproximação a partir da con-
principais avanços na definição de um modelo tribuição etnográfica, através do uso da técnica
de atenção diferenciada foram propostos pela da observação participante e de entrevistas aber-
Política Nacional de Saúde Indígena8, porém, ao tas com moradores da TI de Caarapó. Em fun-
mesmo tempo, a implementação deste modelo ção de nossa formação essa experiência resul-
esbarra na fragilidade dos serviços de saúde que, tou em um aprendizado, pois a todo momento
ainda hoje, transferem e reproduzem na TI de voltávamos a procurar ou a tomar como refe-
Caarapó, em larga medida, ações de saúde in- rência condutas na observação nas quais ficava
fantil desenvolvidas no entorno regional. Esta evidente a interferência de nossos valores ou de
verticalização se contrapõe à proposta da Políti- nossos critérios técnicos avaliativos.
ca Nacional de Saúde Indígena. Foi a partir da contribuição do olhar etno-
No que tange ao abastecimento de água, gráfico que pudemos relativizar a idéia de reali-
a TI de Caarapó conta com uma rede a partir de zar entrevistas individuais ou aplicar roteiros de
dois poços artesianos, de onde a água é bombe- entrevistas. A experiência de campo foi, aos pou-
ada para duas caixas d’água e, então, segue atra- cos, nos mostrando os limites dessas técnicas,
vés de encanamentos para várias áreas da Ter- que vem sendo consideradas “qualitativas”. O
ra Indígena de Caarapó. Embora, a rede de abas- exercício do campo foi nos levando a refletir so-
tecimento esteja em funcionamento, é comum a bre a realização de perguntas e nos impondo a
restrição de água em alguns períodos do dia em observação e a vivência do diálogo mediado pelo
algumas das áreas desta TI. grupo de parentesco.
Para contornar esse problema, algumas A escolha da TI de Caarapó como local
famílias armazenam água em baldes e panelas de pesquisa foi resultado de desdobramentos de
com ou sem tampa, enquanto outras utilizam água trabalhos anteriores11,12,13.
de poço artesanal. Estes fatores, certamente, A pesquisa de campo foi realizada em vi-
estão relacionados à ocorrência de diarréia en- agens de 3 a 5 dias de duração, em intervalos de
tre as crianças. Além deste fator, deve-se consi- aproximadamente 15 dias, nos meses de julho a
derar também as precárias condições de sanea- novembro de 2006, após obtenção da autoriza-
mento, tornam-se agravantes à saúde infantil ção prévia das lideranças da Terra Indígena de
contribuindo para a recorrência de doenças di- Caarapó e aprovação pelo Comitê de Ética em
arréias entre as crianças. Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da
A situação sanitária observada nesta co- Universidade de São Paulo e pela Comissão
munidade assemelha-se a outras descritas em di- Nacional de Ética em Pesquisa.
versos estudos9,10, com populações indígenas de O primeiro momento da pesquisa carac-
diferentes regiões, onde também foram observa- terizou-se por contatos com pessoas já conheci-
das as precárias condições de saneamento. das, que no decorrer do trabalho se tornaram
Para realizar o trabalho de manutenção nossos colaboradores, prioritariamente professo-
da rede de abastecimento e orientações sobre res que, atualmente, são reconhecidos pela co-

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munidade como lideranças locais. Esta legitima- mente elaborado um roteiro, para aplicação, no
ção decorre da importante atuação como medi- entanto, esta estratégia mostrou-se inadequada.
adores do diálogo intercultural, nos últimos anos. Os relatos, em grande parte, se iniciavam con-
Para selecionar as parentelas participan- tando suas histórias de vida ou experiências vivi-
tes do estudo, procedeu-se, primeiramente, con- das por seus familiares, o que pode ser conside-
forme as recomendações sugeridas pelos cola- rado ou tomado como uma narrativa a ser inter-
boradores, ainda na forma de identificação de pretada e não apenas uma resposta a uma ques-
possíveis participantes do estudo. A identifica- tão. Quando necessário foram realizadas pergun-
ção, pelos colaboradores, seguiu alguns critérios tas, objetivando esclarecer detalhes elucidativos
por eles elencados: grupos que residem há mui- sobre essas narrativas mencionadas pelos infor-
tos anos na TI Caarapó e que, de certa maneira, mantes.
detêm os conhecimentos que se pretendia ob- As entrevistas realizadas no espaço fami-
servar. Neste sentido, a identificação contou com liar, na maioria das vezes, aconteceram em gru-
mecanismos próprios por eles definidos como po, observando-se uma relação mais descontra-
escolhas confiáveis, isto é, conhecidas e, de cer- ída e de informalidade. Isto decorre, em parte,
to modo, também, sob controle deles próprios. pela convivência diária de mulheres e de crian-
Mesmo tendo, a priori, definido as pa- ças num mesmo espaço, geralmente na residên-
rentelas, optamos por validar os critérios acima cia do líder de seu grupo e, ainda, pela redefini-
estabelecidos e elencar outros, realizando visitas ção da posição da mulher.
a algumas parentelas, procurando selecionar gru- Se no passado a mulher indígena adminis-
pos que pudessem refletir as múltiplas situações trava a economia doméstica, que incluía a casa,
de saúde infantil. a roça e o cuidado com o bem-estar de suas cri-
O estudo procurou identificar práticas de anças, no presente, a diminuição dos espaços
saúde infantil em diferentes idades do ciclo de para cultivar suas roças aliado à intensificação
vida da pessoa Kaiowá e Guarani, no entanto, as das políticas governamentais de distribuição men-
observações foram registradas entre as crian- sal de cestas de alimentos tem rompido os pa-
ças com idade até seis anos, pela sua convivên- drões tradicionais de ocupação da mulher, en-
cia contínua com as pessoas de seu grupo fami- fraquecendo a subsistência e aumentando a de-
liar, enquanto para as crianças com idade acima pendência de programas sociais.
de seis anos as observações foram mais esporá- Nos primeiros contatos, as pessoas repro-
dicas, já que neste período de suas vidas come- duziam para nós o repertório indicado pelo trata-
çam a freqüentar a escola. mento de orientação biomédica. Este comporta-
Neste sentido, procuramos delimitar a ob- mento talvez tenha uma explicação, porque as
servação das práticas de saúde e cuidado infan- práticas de saúde e de cuidado utilizadas acon-
til, realizando visitas periódicas a quatro paren- tecem no espaço particular de sua residência e
telas (te‘yi). As primeiras visitas aconteceram de sua parentela, e, portanto, falar sobre isso com
em companhia dos agentes indígenas de saúde, a pesquisadora demanda tempo, até que se esta-
buscando uma maior aproximação, a fim de es- beleça um relacionamento e se conheçam quais
tabelecer um relacionamento caracterizado pela as suas intenções. E, ainda, por que a princípio
confiança mútua, como explicado por Thomp- viam a pesquisadora como representante do dis-
son14, ao afirmar que um relacionamento de con- curso biomédico.
fiança e visitas sucessivas pode favorecer o re- As informações principais e as frases es-
gistro de dados mais fidedignos. É importante senciais, assim como, as observações sobre o
enfatizar que no primeiro contato havia sempre contexto e as impressões da pesquisadora sobre
a menção da pessoa que nos indicava, o que per- o conteúdo da narrativa foram anotados no diá-
mitiu, de certa forma, uma boa recepção e dis- rio de campo, durante ou imediatamente após cada
ponibilidade das famílias selecionadas. entrevista ou conversa informal.
Para a realização da entrevista foi previa- Durante o trabalho de campo, utilizou-se

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o pátio da Escola Municipal Indígena Ñandeja- gue ou muco misturado com fezes, podendo con-
ra para realizar os registros . No decorrer da duzir a um quadro de desidratação, que se ca-
pesquisa, esse espaço tornou-se um lugar estra- racteriza por perda excessiva de água corporal
tégico, por facilitar a observação dos aconteci- através das fezes, vômito, urina, transpiração e
mentos da Escola, do Posto de Saúde Zacarias outras perdas menos sensíveis”.
Marques e do Posto Indígena da FUNAI, todos Certamente, a definição de diarréia pela
localizados na área central da Terra Indígena, WHO15 facilita o diagnóstico e o tratamento na
onde o fluxo de pessoas é constante. A pesqui- área biomédica, no entanto, mostra-se insufici-
sadora também era motivo de observação das ente para descrever os casos de diarréia, visto
pessoas, tanto que algumas se aproximavam para que esta doença tem distintas abordagens no
contar algum fato ou ainda para perguntar o que contexto sociocultural de cada sociedade.
se anotava no caderno de campo. Para ilustrar isso, tomemos como exem-
As maiores limitações encontradas em re- plo a diarréia infantil, também conhecida como
lação à observação se deram em relação à parti- chiri, entre os Kaiowá e Guarani. Apesar da
cipação da parentela na utilização das formas de identificação dos sinais da diarréia ser, de certa
cuidado à criança com problemas de saúde, visto forma, semelhante aos biomédicos, descreven-
que a presença da pesquisadora alterava o cotidi- do-os como fezes moles ou líquidas evacuadas
ano. As pessoas se preocupavam em preparar várias vezes ao dia, nem sempre a explicação da
tereré - bebida à base de erva mate - para servir causalidade e as formas de tratamento seguem,
à pesquisadora, sentavam-se à sombra de uma unicamente, a abordagem biomédica.
árvore e conversavam durante horas. Tais explicações e práticas de tratamento
pressupõem a existência de um processo de ne-
O sentido de diarréia e as práticas de saúde gociação entre pessoas de uma mesma cultura e
utilizadas no tratamento para os Kaiowá e de culturas distintas.
Guarani Todavia, o pressuposto sobre a viabilida-
de deste processo de negociação entre culturas
A identificação das práticas de saúde e distintas na práxis, esbarra nos entraves do diá-
cuidado à criança indígena com diarréia não foi logo interétnico, pelo discurso hegemônico da bi-
tarefa fácil. Em se tratando de uma sociedade omedicina. Como destaca Roberto Cardoso de
que vivencia permanentes transformações de Oliveira16 o comprometimento do diálogo está na
ordem social, advindas das relações interétnicas, relação de poder, a saber, em se tratando das
assim como a sucessiva presença dos serviços relações entre índio e não-índio, a hegemonia das
de saúde, observa-se que a doença é percebida regras institucionalizadas do discurso do pólo
diferentemente pelas pessoas. Isto pode ser jus- dominante sobre o pólo dominado.
tificado, em parte, pela constante negociação Este autor destaca, sobretudo, a necessi-
entre pessoas de sua rede de parentesco e des- dade de o diálogo ser num plano simétrico entre
tas com os serviços oficiais de saúde. interlocutores – indivíduos ou grupos – e manter
Levando-se em conta estes aspectos, pa- um diálogo livre, sem a dominação de um inter-
rece evidente que o significado de diarréia in- locutor sobre o outro. Devendo, portanto ocor-
fantil, assim como as decisões relativas à pre- rer num espaço substancialmente democrático
venção e ao seu tratamento, refletem comporta- ou pelo menos democratizável.
mentos diferenciados e complexos. Nessa direção, ainda em relação à cons-
Inicialmente, porém, é importante salien- trução do diálogo interétnico, é cada vez mais
tar que a Organização Mundial de Saúde15, em premente a necessidade de considerar os servi-
1984, elaborou uma definição para diarréia como ços de saúde como espaços possíveis para a efe-
forma de identificar os seus sinais: “três ou mais tivação desse diálogo.
evacuações num dia, com fezes de consistência Embora reconheçamos esta necessidade,
mole ou líquida ou alguma evacuação com san- sabemos que é no mínimo altamente complexo o

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seu estabelecimento, pelas recorrentes dificul- salidade da doença diarréia não implica necessa-
dades em legitimar as diferenças culturais. riamente num tempo próximo. Aqui a questão
Estabelecido o enfoque do processo de ‘tempo’ relacionada à causalidade da doença as-
negociação e suas fragilidades, ainda, existentes sume outras dimensões e, portanto, não pode ser
pelas relações de poder radicalmente assimétri- explicada por um tempo próximo ou imediato à
cas. Recorremos às observações de campo para identificação dos sinais da doença. Implica, igual-
apontar que as explicações para a ocorrência de mente, reconhecer, como descrito por Laplanti-
diarréia, sua gravidade e causalidade implicam ne17, que a identificação dos sinais da doença nem
em formas de ressignificação de suas práticas sempre evoca uma causalidade próxima.
de saúde, assim como na articulação da biome- Outra causa relacionada à diarréia por co-
dicina com o sistema de saúde indígena. alho virado é o desrespeito as “regras de evita-
As longas conversas permitiram-nos com- ção” pelos pais, principalmente no primeiro ano
preender que a explicação etiológica da diarréia, de vida da criança. Por exemplo, a quebra da die-
frequentemente, comanda a sua representação ta alimentar da mãe ou mesmo a prática de traba-
terapêutica. Assim sendo, para intervir de forma lhos pesados pelo homem. Embora esta explica-
eficaz acredita-se que é preciso conhecer de iní- ção de causalidade tenha sido mencionada, per-
cio a causa da doença17. cebe-se que sua prática, atualmente, segue uma
A diarréia infantil entre os Kaiowá e Gua- outra lógica, pela complexa realidade social.
rani, pode ser causada por coalho virado, seu Na medida em que a realidade social é
termo na língua guarani é kamby ryru jer. Nestes alterada, criam-se também novas práticas de
casos, a identificação dos fatores que definem o saúde infantil, sem, no entanto, perder o sentido
coalho virado é variada. A explicação mais co- do cuidado à saúde segundo a perspectiva indí-
mum refere-se a um movimento brusco que a cri- gena. Como explica o antropólogo Marshall
ança faz logo após a refeição, por exemplo, pular Sahlins18 “a tradição consiste aqui nos modos
de uma árvore. Ou ainda, quando a criança “co- distintos como se dá a transformação: a trans-
meu alguma coisa que fez mal”, seu termo na formação é necessariamente adaptada ao esque-
língua guarani é “tupichua”. No entanto, não foi ma cultural existente” (p. 62). O autor propõe
identificado nenhum alimento específico que ex- que se reflita sobre a complexidade dos arranjos
plicasse a ocorrência da doença, não permitindo, que os povos utilizam para sobreviver.
portanto, uma análise mais aprofundada. Outra questão citada inúmeras vezes como
Além dessa causa, a quebra dos laços sendo causalidade de doença diarréica foram as
maternos representada pelo desmame precoce precárias condições de abastecimento de água e
foi mencionada como responsável por acarretar de destino dos dejetos humanos.
diarréia entre as crianças. Nestes casos, perce- Neste sentido, parece verdadeiro afirmar
be-se a importância do leite materno como um que os Kaiowá e Guarani reconhecem as impli-
importante fator no cuidado que contribui para a cações das precárias condições sanitárias sobre
formação da criança indígena. Neste sentido, a o estado de saúde da criança, desencadeando
interrupção do aleitamento materno, antes do doenças diarréicas.
período de desmame, que para a mulher Kaiowá Outros fatores, embora mais amplos e
e Guarani é apenas quando engravida novamen- subjacentes que contribuem para manter o perfil
te, é a causa de agravos à saúde da criança: epidemiológico desta população, com destaque
para a diarréia infantil como uma dos principais
“minha filha parou de tomar leite [ma- morbidades estão os aspectos históricos, econô-
terno] tem dois meses, pode ter ficado um res- micos e sociais que, certamente, afetaram as
to de leite no seu corpo [estômago] que qua- condições gerais de vida deste grupo.
lha” (mulher). As explicações sobre a causalidade da
doença diarréica, descritas anteriormente, mos-
Vê-se, claramente, neste caso, que a cau- tram a sua complexidade que, neste caso, é ine-

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rente ao processo social e ambiental vivenciado constatação de uma desordem, passando por to-
por este povo. E que, portanto, reduzi-las a uma das as etapas institucionais (ou não) onde po-
única causalidade, como fazem os serviços ofi- dem se atualizar diferentes interpretações (paci-
ciais de saúde, estaríamos negando o processo ente, família, comunidade, categorias de curado-
de negociação e ressignificação das causalida- res etc.) e curas” (p. 28).
des para responder à sua realidade atual. Nesta acepção, entendemos que a esco-
É importante ressaltar que este processo lha pela forma de tratamento, como observado
de negociação entre sujeitos de uma mesma cul- na pesquisa de campo, envolve aspectos subjeti-
tura ou de culturas distintas é algumas vezes vos e culturais em torno da percepção da causa-
acompanhado de tensões e conflitos. lidade da doença e da eficácia de determinado
Sobre esta situação de conflito entre su- recurso terapêutico na busca pela cura.
jeitos de uma mesma cultura é mais comum en- Neste sentido, para um mesmo evento de
tre diferentes gerações: diarréia podem ser utilizados diferentes recur-
sos: a procura por especialista tradicional, a utili-
“[a mãe jovem] perde tempo no Posto zação de chás ou infusões feitos à base de plan-
[de Saúde] tem que procurá remédio do mato tas medicinais, a procura pelo pastor para orar
[para tratar a diarréia da criança]” (mulher). pela criança, a realização de massagem no cor-
po (barriga e pernas) da criança, neste caso pode
Sobre este aspecto a antropóloga Jean ser feita por uma mulher de idade, que participa
Langdon19 explica que “diferentes diagnósticos dos cuidados e dos ensinamentos à criança e,
de uma mesma doença aumentam consideravel- ainda, a procura pelo serviço oficial de saúde.
mente quando os participantes do processo pos- É importante enfatizar que alguns chás,
suem diferentes conhecimentos, experiências e feitos à base de plantas medicinais, devem ser
interesses em relação ao caso em pauta. Entre acompanhados de reza, para que todo o potenci-
os membros de um grupo, nem todos possuem o al terapêutico da planta seja utilizado. Como
mesmo conhecimento, devido a vários fatores: mencionado por Laplantine17 a utilização de plan-
idade, sexo, papel social (i.e. pessoas leigas, es- tas medicinais como recurso está longe de poder
pecialista em cura, pajé) e também redes sociais ser explicada pelas propriedades estritamente
e de alianças com outros” (p. 122). médicas que lhes são atribuídas.
Estas considerações reiteram as obser- É, pois, possível dizer que os chás são ele-
vações de campo sobre a determinação do di- mentos importantes de seu sistema cultural pela
agnóstico e do tratamento da diarréia infantil. inter-relação com os elementos religiosos. Não
Quanto maior for o número de pessoas envol- devendo, portanto, ser tomados como fragmen-
vidas (mulheres de uma mesma rede de paren- tos de uma tradição.
tesco, agentes indígenas de saúde, caciques e Embora a procura pelo especialista em
profissionais de saúde) maiores são as possibi- cura, cacique ñanderu*, tenha sido referida pe-
lidades de escolhas de recursos terapêuticos di- los indígenas, percebe-se, no entanto, que as prá-
ferenciados, podendo (ou não) serem acompa- ticas de cura realizadas por este tipo de especia-
nhados de conflitos. lista, atualmente, são inexistentes, pelo fato dos
Antes de passarmos à discussão do itine- indígenas não reconhecerem a figura deste es-
rário terapêutico nos casos de diarréia infantil, pecialista em seu meio
faz-se necessário defini-lo. Para Buchillet20, iti-
nerário terapêutico é “um conjunto de processos “ñanderu era a pessoa que tinha po-
implicados na busca de um tratamento desde a deres sobrenaturais [...] tinha o poder da re-

*
A expressão ñanderu inclui todas as pessoas iniciadas nas práticas rituais, também reconhecido como xamã. É uma pessoa
poderosa, que vive distanciada do convívio cotidiano. Caracteriza-se por manter contato freqüente e sistemático com o
mundo dos deuses, espíritos e antepassados, por isso é reconhecido como aquele que conhece tudo porque tudo vê5.

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velação, de saber os males das pessoas, mas reidratação caseira a despeito da orientação dos
hoje em dia, não existe mais essa pessoa” agentes e do serviço de saúde. Esta diferencia-
(professor indígena). ção está no oferecimento diário de SRO para as
crianças, mesmo na ausência de algum sinal de
Dada a inexistência do cacique ñande- diarréia.
ru, algumas famílias recorrem ao rezador, outra Este comportamento, muito provavelmente
categoria de especialista, no tratamento da diar- esteja associado aos significados atribuídos ao
réia infantil: soro de reidratação oral no restabelecimento da
saúde da criança. Compreendido, sobretudo, por
“quando meu filho tinha quatro meses uma representação terapêutica similar a deter-
de idade precisou ficar oito dias internado minados tipos de chás de ação preventiva de
por diarréia. Ele só melhorou quando levei agravos à saúde das crianças. Para ilustrar isso,
no rezador, que rezou por três sextas-feiras utilizamos as explicações de Laplantine17: uma
consecutivas e fez um remédio caseiro” (agente representação terapêutica pode ser utilizada em
indígena de saúde). alguns momentos para razões essencialmente
preventivas e em outros momentos como uma
Percebe-se, no entanto, que esta prática ação curativa.
comum há alguns anos tende a esmaecer-se di- A argumentação desenvolvida no parágra-
ante da realidade atual, pela perda de prestígio e fo anterior esclarece a importância de reconhe-
seriedade dos caciques. Atualmente, muitos ca- cer que a procura pelos serviços de saúde, nos
ciques são classificados, pelas atuais gerações, casos de diarréia infantil investigados, represen-
como cacique ngua’ (caciques falsos). Esta ta uma prática complementar e não substitutiva
representação decorre, em parte, pela atuação ao sistema de saúde indígena. Neste sentido, a
das igrejas presbiterianas e neopentecostais, na interação de diferentes percepções sobre o sig-
TI de Caarapó, no sentido de desencorajar a pro- nificado de diarréia infantil e as escolhas sobre o
cura pelo cacique. processo terapêutico dá origem a uma outra re-
Outra questão importante que, certamen- alidade, caracterizada pela existência simultânea
te, fragiliza a atuação do cacique é a crescente de formas de terapias ou ‘medicinas’ que co-
presença dos serviços de saúde que, ao se co- existem no contexto local22.
locarem como representantes do campo da saú- Neste sentido, as discussões apresenta-
de restringem os tratamentos ao horizonte bio- das acima destacam a necessidade de compre-
médico. ender que esta prática complementar não é a de
Nesse aspecto também determinadas téc- simples adição de dois conhecimentos, biomedi-
nicas introduzidas na atenção primária pelos agen- cina e medicina indígena. É, sobretudo, uma apro-
tes de saúde acabam ganhando uma legitimida- priação e ressignificação de tais práticas segun-
de própria como é o caso da terapia de reidrata- do realidade simbólica deste povo.
ção oral segundo recomendações do Ministério
da Saúde21 – utilizada por esse serviço como CONSIDERAÇÕES FINAIS
medida de prevenção da desidratação evitando
as mortes e os agravos à saúde das crianças in- A partir da discussão realizada, algumas
dígenas por doenças diarréicas. considerações podem ser feitas, sobretudo, em
A aceitação do soro de reidratação oral relação ao entendimento de que as práticas de
(SRO) mostrou-se positiva entre as famílias vi- saúde utilizadas no tratamento dos casos de di-
sitadas, talvez porque ganhassem uma semelhan- arréia infantil permanecem ativas, constatando-
ça à utilização de chás, ou por uma atribuição de se, também, a redefinição e a atualização de al-
elemento de substância a mistura de sal, açúcar gumas práticas, mediante negociação com ou-
e água. Essa aceitação pode ser evidenciada pelo tros sistemas culturais (biomedicina, entre outros).
modo diferenciado que algumas famílias usam a Não obstante, os arranjos realizados demonstram,

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sobretudo, que os Kaiowá e Guarani continuam to, sobretudo, pela coexistência destas práticas
distinguindo-se da sociedade não-indígena pelos no contexto local.
significados que as técnicas e os procedimentos A situação de saúde infantil, com desta-
biomédicos assumem. que para a ocorrência de diarréia, representa as
Neste sentido, os serviços de saúde, ao adversidades de condições de vida desta popu-
tratar a criança com diarréia, devem considerar lação, sobretudo, relacionadas aos aspectos de
não apenas a perspectiva biomédica, mas, tam- saneamento, de acesso aos serviços de saúde,
bém, dialogar e interagir com as percepções in- assim como as questões históricas, econômicas
dígenas na identificação da causalidade, dos si- e sociais vivenciadas durante décadas de conta-
nais, da definição do diagnóstico e do tratamen- to com a sociedade não-indígena.

Abstract: In this article, we start a discussion on health and care practices used by the Kaiowá
and Guarani from Caarapó Indian Reserve in coping with diarrhea diseases in childhood. This
ethnographical study was carried out through the use of the participant observation technique
and open interviews with the community’s inhabitants. As it is a society that experiences permanent
social transformations deriving from interethnic relations and from the successive presence of
the health services, it is observed that the meaning of infantile diarrhea, as well as the decisions
related to prevention and treatment, reflect different and complex behaviors. Diarrhea, also known
as chiri, is defined through signals that, in a certain way, are similar to the biomedical ones.
However, the explanations of causes and the forms of treatment sometimes do not follow the
biomedical approach. The variety of causes of diarrhea disease among Indian children implies the
choice of the therapeutic process, which can be the search for a traditional specialist, the
preparation of teas and infusions and the search for the health services. Such explanations and
forms of treatment presuppose the existence of a negotiation process between people from the
same culture and from distinct cultures. Thus, the health services, when treating the child with
diarrhea, must not only consider the biomedical perspective, but they should also interact with
the Indian perception and practices, in order to identify the causes and to define the diagnosis
and treatment, mainly because of the coexistence of these practices in the local context.

Keywords: Children’s health; infantile diarrhea; ethnography; Kaiowá and Guarani indians.

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Recebido em: 03/09/2007


Modificado em:15/01/2008
Aprovado em: 20/02/2008

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