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Agradecimentos

Gostaríamos de agradecer a prestimosa colaboração da Dra. Maria Alice


Lustosa, professora e psicóloga clínica, PhD, que, mesmo estando envolvida com
diversas atividades, algumas delas voluntárias, fez questão de contribuir para o
desenvolvimento deste trabalho, realizando a revisão técnica e dando importantes
contribuições com sua experiência e conhecimentos especializados.

Não poderíamos deixar de expressar nossa gratidão, igualmente, ao saudoso


amigo, também professor e psicólogo clínico, Dr. Franz Victor Rudio (in memoriam), de
quem pudemos desfrutar por algum tempo a proveitosa e agradável companhia e a
quem devemos ter sido o nosso interesse despertado pela Abordagem Centrada na
Pessoa, não apenas por seus esclarecimentos sempre úteis, mas principalmente, por
seu jeito de ser, que transmitia, através de suas atitudes, o grande valor que ele
verdadeiramente dava ao ser humano.

Sergio Paulo

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Índice

Capítulo 1 - Conhecimentos Fundamentais Página

1. Histórico 3
2. A Visão Otimista do Ser Humano Ensejada pela ACP 4
3. A Tendência Atualizante 4
4. A Percepção da Realidade Objetiva 6
5. A Percepção de Si – O Auto-Conceito 7
6. A Distorção e a Negação da Experiência – Os Mecanismos de Defesa 9
7. A Relação de Ajuda da Abordagem Centrada na Pessoa 11
8. A Reativação da Tendência Atualizante – As Condições Facilitadoras 11
do Crescimento
9. As Condições Facilitadoras do Crescimento 12
9.1. A Compreensão Empática 12
9.2. A Consideração Positiva Incondicional 15
9.3. Congruência 17
10. Os Efeitos das Atitudes Facilitadoras do Crescimento 19

Capítulo 2 - Prática da ACP

1. Os Objetivos do CVV 20
2. Os Treinamentos de Papéis (Roleplay – RP) 20
3. A Avaliação do RP 23
4. O Clima Afetivo da Relação de Ajuda 26
5. As Frases Feitas 27
6. A Construção do Diálogo – O Silêncio do Voluntário 29
7. O Silêncio da Pessoa que Procurou o CVV 30
8. As Perguntas Diretas da Outra Pessoa 31
9. A Quarta Condição 34
10. Masturbação 35
11. O "Papo Furado" 37
12. A Postura dos Voluntários 38
13. Os Pedidos de Doação 39
14. Os “Contatos Freqüentes” 40
15. A Solidão 41
Referências Bibliográficas 45

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A Abordagem Centrada na Pessoa – ACP
Capítulo 1 - Conhecimentos Fundamentais

1. Histórico
Em 11 de dezembro de 1940, um desconhecido psicólogo chamado Carl
Ramson Rogers, à época com 38 anos, apresentou numa palestra, realizada na
Universidade de Minnesota, o que considerava serem "os mais recentes conceitos em
psicoterapia". Esses conceitos haviam sido desenvolvidos ao longo de seus doze anos
de experiência em psicoterapia no Rochester Society for the Prevention of Cruelty to
Children - NY, uma instituição que se dedicava a auxiliar a crianças pobres e
delinqüentes, e a partir de intensas pesquisas realizadas durante o ano de 1940, na
Universidade de Ohio.
Rogers resumiu a nova abordagem, que acreditava estar sendo praticada pela
maioria dos psicólogos mais jovens, em quatro tópicos (1, p. 35):

 Intensa confiança na tendência do indivíduo para o crescimento, para a


saúde e maturidade. A terapia objetivava libertar o cliente para o desenvolvimento,
para o amadurecimento;
 Maior ênfase aos sentimentos que à compreensão intelectual (não se
explicava ao cliente o que estava acontecendo com ele, do ponto de vista psicológico,
mas dava-se valor ao que ele sentia);
 Valorização do "aqui e agora" ao invés das experiências passadas do
cliente;
 O momento da relação terapêutica era visto como uma experiência de
crescimento em si mesma.

Rogers ficou surpreso ao perceber o espanto generalizado com que sua palestra
fora recebida. Entre críticas contundentes, elogios, apupos e ovações constatou que
havia, na verdade, criado uma nova abordagem, inovadora e revolucionária em muitos
aspectos.
Ao longo das décadas que se seguiram, nas Universidades de Ohio, Chicago,
Wisconsin e posteriormente no Centro de Estudos da Pessoa, em La Jolla – Califórnia,
Rogers, pesquisador incansável, coordenou uma série de estudos, envolvendo um
grande número de colaboradores e agregou contribuições de outros profissionais às
suas idéias, que adquiriram, então, um cunho científico e tiveram sua eficácia
psicoterápica comprovada. Com a publicação, em 1942, de Psicoterapia e Consulta
Psicológica (8), a nova abordagem recebe a denominação de Terapia Não-Diretiva. Em
1951, surge Terapia Centrada no Cliente (12), que estabelece uma Teoria da
Personalidade e uma Teoria de Psicoterapia. É alcançada a maturidade científica.
Posteriormente, Rogers percebeu que havia um imenso campo, ainda
inexplorado, para aplicação dos princípios que regiam a Terapia Centrada no Cliente.
Dedica-se à aplicação da abordagem a outros campos das relações humanas. Em
1961 publica Tornar-se Pessoa (14), escrevendo, pela primeira vez, para não
psicólogos. Surgem os Grupos de Encontro (13) - 1970, dos quais participariam
milhares de pessoas, em quase todo o mundo, inclusive na extinta URSS (em plena
Guerra Fria) e no Brasil. A nova abordagem, facilitadora do crescimento e promotora

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da melhoria das relações humanas, é aplicada à pedagogia (6), à sociologia, às
relações industriais e à política. Surge a Abordagem Centrada na Pessoa, cujos
princípios são essencialmente os mesmos definidos na palestra de Minnesota.
Por seus ingentes esforços para solucionar conflitos intergrupais envolvendo
minorias oprimidas e para diminuir tensões internacionais, Rogers foi indicado para
receber o Prêmio Nobel da Paz, em 1987, ano em que veio a falecer, aos 85 anos de
idade, em plena atividade.

2. A visão Otimista do Ser Humano Ensejada pela ACP


A utilização da ACP como meio de ajuda psicológica requer adequação da visão
que temos do ser humano, pois esta determina as atitudes que teremos em nossas
relações com as outras pessoas.
"Se, por exemplo, eu penso que o homem é visceralmente mal e que as chaves
da solução de seus problemas se encontram em mim, estabeleço um modo de
relacionamento totalmente diferente do que se eu tiver uma visão otimista dele e julgá-
lo capaz de dirigir-se a si mesmo" (10, p. 56).
A ACP preconiza que as camadas mais profundas do ser humano são
naturalmente construtivas (5) e que, quando está livre de ameaças, o indivíduo escolhe
direções construtivas para seu crescimento e realização de seus potenciais (11, p.
127).
A conseqüência prática dessa confiança na natureza positiva do ser humano se
traduz principalmente no respeito que se deve ter pelas pessoas, o que significa que
todo ser humano tem o direito inalienável de ser quem é e de fazer as opções que
julgar mais adequadas para si, já que dispõe de autodeterminação – capacidade de
dirigir-se a si mesmo.
A conquista dessa visão, a construção desse princípio é fundamental para
aplicação da ACP.
A seguir serão abordados outros aspectos da natureza humana, que reforçarão
a constituição da visão da ACP sobre o ser humano.
A Abordagem Centrada na Pessoa é, por conseguinte, um meio de libertação
das forças construtivas que, por motivos que serão analisados posteriormente,
tornaram-se momentaneamente indisponíveis ao indivíduo. O voluntário, em seu
diálogo de ajuda, atua como um promotor do crescimento da pessoa com quem
conversa.

3. A Tendência Atualizante
O conceito de Tendência Atualizante (ou tendência ao desenvolvimento) é o
mais importante fundamento da ACP.
Desde o início, Rogers percebeu que havia uma tendência para o crescimento,
para o desenvolvimento presente em todos os seus clientes. Em 1946 (5) formalizou o
que chamou de "a descoberta da capacidade do cliente". O conceito foi amadurecendo
ao longo dos anos, a partir da contribuição das idéias de outros teóricos, até que em
1959 surge o conceito de Tendência Atualizante (9).
Todas as formas de vida estão animadas por um impulso natural para o
crescimento, para o desenvolvimento e realização de seus potenciais, visando sua
conservação e enriquecimento.

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Quando uma semente desfruta de determinadas condições, começa a germinar.
Seu esforço não é, com certeza, no sentido de sobreviver; o pequeno broto tentará se
tornar uma planta plena, completa, pelo desenvolvimento das potencialidades que traz
dentro de si.
Da mesma forma, quando os gametas masculino e feminino se encontram, no
processo da fecundação, tem início a multiplicação das células (mitose). As células
vão-se reproduzindo e se especializando, formando órgãos e posteriormente o
organismo completo. A direção do processo é a plenitude, o ser completo, pleno.
Quando nasce, o ser humano é frágil e incapaz, mas traz dentro de si uma
infinidade de potencialidades que poderão ser desenvolvidas ao longo de sua vida: não
sabe falar, mas poderá dominar diversos idiomas; não sabe andar, mas é
potencialmente capaz de bater o recorde dos 100m rasos e assim por diante.
A vida nos proporciona as experiências que necessitamos para desenvolver as
potencialidades que trazemos dentro de nós: "A vida é uma força positiva que constrói
o homem. Todas os recursos, de que alguém precisa para o seu desenvolvimento,
encontram-se nas experiências que ela oferece" (10, p. 12).
A Tendência Atualizante possui alguns aspectos:
 Autodeterminação / autonomia: todo indivíduo busca sua autonomia,
possuindo a capacidade de dirigir-se a si próprio. Dentro da ACP, se constitui falta de
respeito, além de procedimento inadequado e contraproducente, julgar, influenciar ou
ter qualquer atitude que vise determinar o que o outro deve, ou não deve, fazer para
dirigir sua vida. A tendência à conquista da autonomia é claramente percebida quando
a criança começa a solicitar da mãe (ou do pai) liberdade para escolher (sua roupa, seu
penteado, o que comer etc.) e para realizar tarefas que até então eram realizadas por
outras pessoas (amarrar os sapatos, tomar banho etc.).
 Auto-realização: fazendo uso de sua autodeterminação, o indivíduo busca
realizar-se no suprimento de suas necessidades, sempre visando promover sua auto-
estima. Quando tem sede, por exemplo, a pessoa não se contenta com qualquer copo
d'água. Há exigências que precisam ser satisfeitas, tanto para o copo, quanto para a
água. Provavelmente um copo sujo não servirá, assim como água poluída e
contaminada será rejeitada. Apenas quando a necessidade atinge níveis muito altos, é
que o grau de exigência pode baixar. Estando num deserto, morrendo de sede,
provavelmente ninguém se importará em dividir a mesma poça d'água com algum
camelo. O mesmo processo ocorre para os diversos níveis das necessidades físicas e
psicológicas do ser humano.
 Conservação: a partir do impulso natural da Tendência Atualizante, todo
indivíduo busca promover sua conservação, a manutenção de sua existência, fazendo
uso de sua autodeterminação e auto-realização.
 Socialização: é anseio básico de todo indivíduo buscar a integração com
outros seres humanos; esta necessidade pode ser facilmente identificada no desejo
que todos possuem de participar de determinados grupos, seja na constituição de uma
família, na adesão a algum clube social, no engajamento num trabalho voluntário ou
grupo religioso ou simplesmente no convívio com os amigos no bar da esquina.
As condições exteriores são essenciais para a efetivação da tendência ao
desenvolvimento: se uma semente cai num beiral, por exemplo, a planta "tenta" se
desenvolver, mas as limitações do ambiente imporão restrições que afetarão seu
amadurecimento. Por mais que se esforce, ela jamais conseguirá alcançar a plenitude
de suas potencialidades, se comparada a plantas que se desenvolveram em condições

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mais favoráveis (no solo, por exemplo). Da mesma forma, algumas vezes, o ambiente
em que o indivíduo cresceu ou vive, é de tal forma aniquilador, limitador, desprovido de
afeto, restritivo, ameaçador, que afeta seu desenvolvimento natural, seu
amadurecimento. Ao se relacionar com as pessoas que ligam para o CVV, o voluntário
não pode desconsiderar que, por trás de cada voz que ele ouve, existe uma história
que ele desconhece, mas que foi decisiva para tornar a pessoa quem ela é.
A Tendência Atualizante é a expressão mais fundamental da vida, de tal sorte
que se ela desaparecer, desapareceu a própria vida. Contudo, a Tendência Atualizante
pode se tornar indisponível, ou seja, pode deixar de atuar, circunstancialmente. Os
motivos que podem levar a este estado serão analisados mais adiante. Através de
atitudes facilitadoras do crescimento é possível criar condições favoráveis à reativação
da Tendência Atualizante.

4. A Percepção da Realidade Objetiva


A chamada realidade objetiva não é a mesma para todos. Cada indivíduo
concebe a realidade a partir de uma tradução subjetiva que faz dela, de tal sorte que
ela assume significados particulares para cada um (10, p. 36). É como se a realidade
(os acontecimentos, as pessoas, os objetos etc.) se projetasse para o mundo interior
de cada pessoa (o campo perceptual) através de filtros, que produzissem determinados
matizes, determinadas nuanças, que a tornassem absolutamente pessoal.
Por exemplo, quando entro no elevador do meu prédio fico feliz por ele me
conduzir ao 12° andar com rapidez e segurança; para mim o elevador é uma invenção
genial e fico aborrecido quando sou obrigado a subir de escadas, na falta de energia
elétrica. Por outro lado, minha mãe detesta elevadores; ela os evita; sente-se como
num caixão e tem a nítida sensação de ele despencará repentinamente, sempre que é
obrigada a entrar num.
Mas afinal, o que é um elevador: uma máquina maravilhosa, segura e rápida, ou
um caixão, pronto para despencar e matar seus ocupantes? A resposta está num
pensamento do filósofo grego Protágoras, que pode ser considerado o primeiro
Humanista da história: "O homem é a medida de todas as coisas". Isso quer dizer que
todas as coisas recebem um valor, um significado, atribuído por cada indivíduo. Por
isso é que, ao perder o emprego, alguém pode achar ser essa uma ótima oportunidade
de crescimento, de renovação e outra, em condições semelhantes, pode pensar em
matar-se.
É interessante observar como isso nos torna tão diferentes, únicos. Em Tornar-
se Pessoa, Rogers afirma "Acabei, no entanto, por reconhecer que essas diferenças
que separam os indivíduos, o direito que cada pessoa tem de utilizar sua experiência
da maneira que lhe é própria e de descobrir o seu significado, tudo isso representa as
potencialidades mais preciosas da vida" (14, p. 32).
Fica claro que a percepção estabelece o comportamento. Como percebo o
elevador como uma máquina maravilhosa, fico tranqüilo ao entrar num; já minha mãe
tem dispnéia e entra em pânico. Em outras palavras, reagimos não à realidade objetiva,
mas à tradução que dela fazemos.
Durante uma relação de ajuda da ACP, pode ocorrer uma alteração da
percepção da outra pessoa. Muitos já viveram a situação de iniciar uma relação de
ajuda com uma pessoa desesperada, que acreditava não haver mais saídas e terminar
a ligação ouvindo o riso descontraído e cheio de esperança da mesma pessoa. Com

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certeza nada de objetivo, de concreto, se alterou para ela ao longo da ligação. Mas
alterou-se a sua percepção do contexto em que se encontrava ou de si mesma. A
nova perspectiva não foi criada durante a relação. Ela já existia, apenas não era
percebida pela pessoa, que estava "fixada" em determinados aspectos. Vale ressaltar
que o voluntário não contribuirá para alteração da percepção do outro com a força de
seus argumentos, ou com informações que julga importantes. As atitudes do voluntário,
facilitadoras do crescimento e que serão analisadas mais adiante, é que criarão
condições favoráveis a esse tipo de mudança.
Uma visualização do fenômeno de alteração da percepção se torna possível
quando utilizamos as figuras frente-fundo, da Gestalt Terapia:

Dependendo do ângulo em que se fixe o olhar, poderão ser percebidas


diferentes imagens. As figuras são compostas por essas imagens que, entretanto,
podem não ser percebidas, a princípio, por todos.
Está, portanto, na percepção do indivíduo a chave para se compreender suas
atitudes, seu comportamento. Mas a percepção do outro só pode ser conhecida por
outra pessoa se ele a revelar. Dificilmente poderemos compreender alguém tendo por
base a nossa própria percepção. O conceito de compreensão empática, exposto mais
adiante, completará esta idéia.

5. A Percepção de Si - O Auto-conceito
Dentro do campo perceptual há uma parcela reservada à percepção de si
mesmo. É a auto-imagem, imagem de si, eu, self ou auto-conceito. Denominações
diferentes para o mesmo fenômeno: assim como percebe e atribui valores à realidade
que o cerca, o indivíduo percebe a si mesmo e atribui, da mesma forma, significados a
si (10, p. 42). O auto-conceito vai se formando gradativamente, à medida que o
indivíduo vai se relacionando com os outros e com o ambiente. Assim como ocorre com
a percepção da realidade objetiva, nem sempre corresponde à realidade, como
veremos adiante.

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O auto-conceito estabelece a própria identidade do indivíduo – esse sou eu –
como resultado da percepção do eu e do eu-em-relacionamento com os outros e com o
ambiente. Possui quatro aspectos (1, p. 67):

 Percepções das próprias características e habilidades;


 Percepções e conceitos em relação aos outros e ao ambiente;
 Qualidades de valor que são percebidos nas experiências;
 Metas e ideais que são percebidos como tendo valor positivo ou negativo.

O auto-conceito forma-se durante a infância, desde a fase de bebê, podendo


alterar-se ao longo da vida. O processo de formação do auto-conceito vai levar a uma
estruturação de um todo coerente, organizado, que proporcionará ao indivíduo um
"perfil", uma imagem daquilo que ele julga ser.
Algumas vezes, contudo, incorporamos valores de outrem ao nosso auto-
conceito, sem nos darmos conta disso. É o fenômeno da introjeção, que vai gerar uma
obstrução na comunicação do indivíduo com ele mesmo. A maior necessidade
psicológica da criança é a de ser aceita e amada, em especial pelas pessoas
chamadas significativas, as mais importantes para ela, normalmente os pais. Como
esse amor nem sempre é incondicional, a criança começa a identificar o que deve
fazer, ou melhor, como "deve ser" para recebê-lo. Nesse processo, que pode ser
compreendido como uma "violência ao direito do indivíduo de expressar algo que lhe
era significativo" (10, p. 30), podem ser incorporados ao auto-conceito da criança
valores que na verdade expressam o desejo de seus pais. Vejamos os exemplos a
seguir:
Exemplo 1:
- vide exemplo original em (10, p. 30)
Uma criança tem necessidade de demonstrar carinho por sua mãe.
Sistematicamente a mãe rejeita esse carinho (rejeita a expressão do carinho da
criança). Progressivamente a criança pode ir introjetando o valor da mãe (a frieza e a
insatisfação que ela expressa ao receber o carinho) assumindo-o como se fosse seu:
ao invés de distinguir entre ela e a mãe (mamãe não gosta que eu faça carinho nela)
assume, gradativamente, que é ela, a criança, quem não gosta de fazer carinho na
mãe. A personagem desse exemplo poderá desenvolver dificuldades para,
posteriormente, vivenciar o desejo de fazer carinho, de expressar afeto, especialmente
por sua mãe, pela auto-proibição que foi incorporada ao seu auto-conceito.
Exemplo 2:
- vide exemplo original em (1, p. 68)
Uma criança sente ciúme de seu irmão e tem prazer ao agredi-lo. Sua mãe lhe
diz "meu filho, assim mamãe não gosta mais de você...", "isso é muito feio, você não
pode sentir ciúme do seu irmãozinho...", "mamãe está muito aborrecida com você...".
Na verdade, a mãe do exemplo expressa que aquele sentimento (o ciúme) é mau e que
ao senti-lo a criança não merece ser amada. Pela necessidade de se sentir aceita e
amada, como no exemplo anterior, a criança poderia incorporar o valor da mãe, como
se fosse seu. Nesse caso ocorreria o surgimento da auto-proibição de sentir ciúme do
irmão e do prazer em agredi-lo.
A introjeção leva à incorporação de valores de outrem ao auto-conceito do
indivíduo. A partir de determinadas circunstâncias, isso pode levar a pessoa a conflitos

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e sofrimentos difíceis de terem suas causas identificadas, porque somos o que somos,
não aquilo que está estabelecido em nós que devemos ser.
O fenômeno da introjeção não é restrito à infância; podemos introjetar valores de
pessoas significativas ao longo de toda a nossa vida: da professora, da(o)
namorada(o), de um profissional de destaque que admiramos etc. A seguir serão
analisadas as conseqüências da introjeção para o funcionamento da pessoa.

6. A Distorção e a Negação da Experiência – Os Mecanismos de Defesa


O conceito de experiência pode ser definido como tudo aquilo que pode ser
representado na consciência, ou seja, tudo que pode ser vivenciado. Há, neste sentido,
uma ampla gama de possibilidades: sentimentos, lembranças, sonhos, desejos, ideais,
pensamentos e sensações (fome, frio, impulsos sexuais, o que vemos, ouvimos etc.).
Temos a tendência para vivenciar livremente as experiências que vêm reforçar a
nossa auto-imagem, nosso auto-conceito. Toda experiência que não se encaixar na
configuração do auto-conceito existente se tornará ameaçadora, podendo ser distorcida
ou negada à consciência, visando a manutenção da estrutura estabelecida. A ameaça
está na revelação da realidade (a existência de determinada experiência) de que não
somos exatamente o que acreditamos que somos, o que significa uma ameaça à nossa
própria identidade. Para manutenção das estruturas já existentes entram em ação os
mecanismos de defesa. Note-se que tudo ocorre sem que a pessoa tenha plena
consciência do que está ocorrendo, ou seja, não é por desejo do indivíduo que certa
experiência é negada ou distorcida. “O indivíduo, aparentemente, é capaz de
discriminar entre estímulos ameaçadores e não-ameaçadores e de reagir de acordo
com isso, mesmo que não seja capaz de reconhecer conscientemente os estímulos a
que está reagindo” (12, p. 575).
Quando ocorre o fenômeno da negação ou distorção de experiências, surgem
determinados sintomas característicos: angústia, ansiedade, sensação de insegurança,
uma tensão interior de causa aparentemente desconhecida, podendo haver falta de
controle sobre o próprio comportamento. Apesar de não ter consciência da negação ou
distorção de determinada experiência, o indivíduo sente algo, como um indício de que
qualquer coisa "anormal", diferente está acontecendo consigo. Podem surgir também
afecções somáticas (distúrbios físicos).
No exemplo 1, do item anterior, em determinado momento de sua vida, a
criança, por exemplo já adulta, pode, ao rever sua mãe, sentir afeto por ela; pode surgir
o desejo de acariciá-la. O surgimento dessas experiências, entretanto, será ameaçador
à integridade do eu, onde está estabelecido "eu não sinto afeição e se sinto não tenho
desejo de manifestá-la". Essas experiências poderiam ser negadas à consciência,
sendo simplesmente ignoradas pela personagem. Se as experiências, contudo, fossem
distorcidas, poderiam assumir a forma de "pena" da mãe, por ela estar envelhecida ou
doente, se for o caso. Nesse caso, o comportamento, que acompanha o auto-conceito,
poderia se aproximar da manifestação de carinho, assumindo, por exemplo, a feição de
uma atitude de zelo pela "pobre senhora", já desgastada pela vida. O sentimento de
compaixão, ao contrário do sentimento de afeto, poderia ser admitido à consciência e
vivenciado livremente. Poderiam, também, devido à representação incorreta na
consciência, se manifestar sob a forma, por exemplo, uma terrível enxaqueca, que
surgiria quando a pessoa visse sua mãe.

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No exemplo 2, se houvesse a negação das experiências, a criança vivenciaria
que não sente nenhum prazer em agredir o irmãozinho; no caso de distorção,
representaria na consciência que isso é muito feio, quando a experiência original é de
prazer, de satisfação.
Vejamos mais um exemplo: digamos que eu tenha de mim a imagem de ser
totalmente fiel à minha esposa, de ser incapaz de desejar qualquer outra mulher que
não seja ela. Um dia, estando eu no meu plantão, surge, para um atendimento pessoal,
uma mulher muito bonita, uma mulher extremamente sedutora e sensual. Ao vê-la,
surge em mim, um desejo, um impulso sexual. O impulso, entretanto, não pode ser
admitido plenamente à consciência, porque tenho estabelecido em meu auto-conceito
que não sinto desejo por nenhuma outra mulher que não seja a minha. Meu organismo,
que funciona como um todo organizado, não está sob o controle do meu auto-conceito.
O impulso surge como expressão do meu ser. Como não pode ser vivenciado,
representado/simbolizado adequadamente na consciência, o impulso sexual que sinto
pode ser negado à consciência: posso não perceber nada em mim tendo visto a bela
mulher, mas posso começar a rejeitá-la, buscando qualquer motivo para justificar a
rejeição; posso ficar ansioso para terminar a conversa, como posso sentir-me
inesperadamente ameaçado por ela, ou, posteriormente, por qualquer outra que me
faça lembrá-la. Mas a experiência também pode ser distorcida; posso, por exemplo,
pensar comigo mesmo: "que mulher vulgar... onde já se viu, vestir-se assim de forma
tão insinuante...? que desrespeito!". Note-se que a experiência original, um impulso
sexual, foi distorcida transformando-se em desprezo, em reprovação, sentimentos
facilmente admissíveis à consciência, nesse caso. O auto-conceito estava rígido,
absolutizado, por isso não havia abertura à realidade.
Vale destacar que a negação ou distorção de certas experiências não nos torna
melhores. Ao contrário, nos impossibilita de entrar em contato com a nossa realidade
íntima, impedindo-nos de modificá-la. Ao mesmo tempo cria obstáculos, por vezes
intransponíveis, ao nosso bom funcionamento, desabilitando-nos a lidar com
determinadas situações. Nesse último exemplo, se houvesse em mim abertura à
experiência, eu poderia perceber o impulso sexual que tive e, pela inconveniência que
ele representa, teria recursos interiores para lidar com ele. Se flexibilizasse meu auto-
conceito neste aspecto, poderia admitir que "sou fiel à minha esposa, mas mesmo o
homem mais fiel do mundo pode, diante de uma mulher muito sensual, ter um desejo
que não seja pela própria mulher". Esse novo aspecto do auto-conceito, teria sido
construído pela realidade. Ao invés de querer adequar a realidade à minha auto-
imagem, eu adequaria minha auto-imagem à realidade, vivendo o processo que pode
ser denominado como atualização, que é sinônimo de crescimento, de
amadurecimento.
A desarmonia que se estabelece entre o auto-conceito e a experiência é
denominada incongruência, assim como a desarmonia entre a originalidade da
experiência e sua representação na consciência. A congruência, ao contrário, significa
o acordo, a correspondência, a harmonia entre o auto-conceito, a experiência e a
vivência. Mais adiante serão analisados outros aspectos da congruência e seu valor
nas relações de ajuda.
A incongruência desabilita o indivíduo a viver sua vida plenamente e se
desenvolver, pelo surgimento de uma ameaça interior. A energia que a pessoa poderia
aplicar em seu crescimento, no enfrentamento dos desafios da vida, passa a ser
requisitada para fazer frente às ameaças interiores, que a incongruência estabelece.

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7. A Relação de Ajuda da Abordagem Centrada na Pessoa
O conceito de relação de ajuda precisa ficar muito claramente estabelecido, para
que cada voluntário saiba o que está fazendo quando atende o telefone ou conversa
com alguém num atendimento pessoal.
A relação de ajuda ocorre quando alguém que necessita de ajuda para achar a
solução para algum problema ou dificuldade, que não pode resolver sozinho, encontra
alguém que julga ser capaz de ajudá-lo. Os dois interagem, se comunicam através de
uma conversa, cujo assunto é o problema e a solução do problema. Mas é uma
conversa diferente, tem um objetivo definido: a compreensão e a solução do problema.
Os indivíduos desempenham papéis específicos: um deseja ajuda, o outro se propõe
ajudar (10, p. 9).
Por exemplo, uma pessoa precisa de dinheiro, procura um amigo, explica sua
situação, pede o dinheiro emprestado e diz que se não arrumar o dinheiro vai se matar;
o outro abre a carteira e dá o total pedido. Nesse caso houve uma relação de ajuda?
Naturalmente que sim!
No CVV, contudo, a relação de ajuda assume características próprias: as
relações de ajuda do CVV são de Orientação Não-Diretiva ou da ACP.
Isso nos traz uma séria conseqüência: todo voluntário precisa conhecer muito
bem a ACP e ser capaz de colocá-la em prática. Um conhecimento imperfeito levará a
uma prática imperfeita. Mas só o conhecimento não bastará; será preciso também ser
capaz de colocá-la em prática, efetivando, ao mesmo tempo, em cada voluntário o
processo de crescimento, de desenvolvimento da personalidade que ela exige.
Em toda relação de ajuda, o objetivo é a solução de um problema, mas na ACP,
o problema não está em primeiro plano, nossa atenção não vai se focalizar no
problema da pessoa, mas na própria pessoa, ou mais especificamente, no seu
desenvolvimento, no seu amadurecimento, no seu crescimento, para que ela possa
funcionar melhor como pessoa, possa lançar mão de seus recursos interiores, que
estão momentaneamente indisponíveis, para resolver aquele problema e outros de sua
vida.
Pode-se afirmar, então, que o objetivo fundamental de toda relação de ajuda da
ACP é criar condições para que o outro liberte seu desenvolvimento, pela reativação da
sua Tendência Atualizante.
O meio através do qual se dá a ajuda é o diálogo. Relação de ajuda é diálogo;
sem diálogo não há relação de ajuda. Mais adiante serão abordados os parâmetros
que norteiam os diálogos da ACP.

8. A Reativação da Tendência Atualizante – As Condições Facilitadoras do


Crescimento
Vivenciando experiências ameaçadoras em seu mundo íntimo, o indivíduo terá
emperrado o impulso natural para a plenitude – a Tendência Atualizante. A existência
de incongruências fica mais evidente quando se constata a não-efetivação dos
aspectos da Tendência Atualizante. Muitos de nós já atendemos pessoas que têm
dificuldades em dirigir suas vidas "– dá pra você me dar um conselho?"
(autodeterminação); que estão sem saber o que lhes é mais adequado, o que lhes
convém "– freqüentemente ele me agride, mas fico em dúvida se devo me separar ou
não" (auto-realização); que estão dependentes de outrem "– sem ela na minha vida eu

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não sou ninguém; se ela me deixar acho que faço uma besteira" (autonomia); que se
isolaram e têm dificuldades em manter relacionamentos – "estou com medo dos
homens; já em decepcionei tanto; cheguei a conclusão que é melhor ficar sozinha
mesmo..." (socialização) e desejam atentar contra a própria vida "– a vida perdeu o
sentido pra mim, nada mais tem graça..." (conservação).
O que inicialmente foi fruto da intuição e sensibilidade de Rogers, posteriormente
adquiriu caráter científico, pelas intensas pesquisas (2, p. 311-381; 15, p. 109-120; 16,
p. 299-344) realizadas no sentido de se comprovar a possibilidade de reativação da
Tendência Atualizante. "As pesquisas sobre as condições necessárias e suficientes
hipotetizadas por Rogers são volumosas e constituem um corpo de pesquisa que está
entre os maiores no campo da psicologia" (1, p. 88).
As conclusões levaram a certeza de que existem três condições, que são na
realidade atitudes que devem ser adotadas durante as relações de ajuda, sendo que
essas três condições são necessárias e suficientes. São necessárias porque se
qualquer delas for omitida, os resultados não serão alcançados. São suficientes porque
não há necessidade de qualquer outra condição, além das três necessárias, para se
promover o crescimento do outro.
A grande dificuldade para todos nós do CVV reside em se compreender
plenamente o significado dessas condições, em se ser capaz de colocá-las em prática
nas relações de ajuda dos plantões e efetivar em cada voluntário o processo de
crescimento, de desenvolvimento da personalidade que elas exigem, como já foi dito
anteriormente.

9. As Condições Facilitadoras do Crescimento


As condições facilitadoras do crescimento são, na verdade, atitudes, necessárias
e suficientes, a serem adotadas pelos voluntários em suas relações de ajuda. É preciso
que fique claro que o voluntário não é o responsável pelo amadurecimento do outro,
assim como quem fornece terra e água a uma semente, não é o responsável por sua
germinação e seu crescimento. Quando a semente recebe condições favoráveis,
germina a partir de um impulso de sua natureza, iniciando seu desenvolvimento, que
visa torná-la uma planta plena. Esse processo pertence à planta, não a quem lhe gerou
as condições de crescimento, ou seja, a planta terá determinado tipo de folha,
apresentará determinada estrutura, certa aparência e gerará os frutos conforme sua
natureza. O voluntário, analogamente, apenas cria condições psicológicas favoráveis à
efetivação do impulso para a plenitude, que também integra a natureza humana. O
processo não está sob seu controle. Quando o voluntário cria condições favoráveis ao
crescimento da pessoa com quem dialoga, não pode se preocupar com os resultados,
desejando que a pessoa se enquadre nesse ou naquele parâmetro que ele (o
voluntário) julga importante. O devir, o vir a ser, o tornar-se, diz respeito à pessoa e não
ao voluntário. Mas este não se esquece de sua visão positiva do ser humano e confia
que quando desfruta de condições favoráveis, livre de ameaças, o ser humano escolhe
direções positivas para mover-se.
São três as atitudes facilitadoras do crescimento:

9.1. A Compreensão Empática


Um conceito fundamental para que se entenda o que significa compreensão
empática é do quadro de referência interior, que pode ser entendido como o conjunto

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de experiências (vide item 6. A Distorção e a Negação da Experiência – Mecanismos
de Defesa) disponíveis à consciência do indivíduo em determinado momento (10, p.
41). Em outras palavras, significa o ambiente, o contexto emocional dentro do qual se
explicam e podem ser compreendidos os significados, os valores que o indivíduo atribui
às suas experiências e, consequentemente, o seu comportamento . Por exemplo, se
um rapaz de aproximadamente 15 anos nos relata que, determinado dia, ao ver sua
mãe e não podendo se conter desferira-lhe um murro no nariz, será difícil compreender
e aceitar essa atitude, que, a princípio, nos parecerá fruto de uma personalidade
psicopática. Entretanto, quando o rapaz nos relata que foi abandonado pela mãe ainda
bebê, no banco de uma praça, que foi achado quase sem vida e levado para uma
instituição para crianças abandonadas, onde sofreu profundamente os dramas da
solidão, da rejeição, da violência de outros menores e de funcionários desumanos e
que, por tudo isso, não fora capaz de perdoar sua mãe, tendo alimentado por ela
grande ódio, incentivado pelos mesmos funcionários que o agrediam, talvez se torne
mais viável compreender o que ocorreu no dia em que a mãe, depois de quinze anos,
resolveu aparecer no reformatório onde se encontrava o jovem desesperado.
É fácil deduzir, então, que a empatia vai sendo construída na medida em que a
relação de ajuda vai se desenrolando e o processo de auto-exploração vivido pelo
outro vai se desenvolvendo e ele vai comunicando ao voluntário o que deseja. O
voluntário tem papel fundamental no processo da construção e do aprofundamento da
empatia. Seu comportamento, suas atitudes e o que ele diz à outra pessoa contribuirão
positiva ou negativamente para a construção da empatia e, portanto, para a
concretização da comunhão afetiva com o outro.
A compreensão empática exige o abandono de nossas referências interiores e
um mergulho no mundo particular da outra pessoa. É como se, durante a relação de
ajuda, eu abandonasse o meu quadro de referência interior e passasse a viver, a sentir
e atribuir significados aos acontecimentos, às pessoas e a mim mesmo a partir
do quadro de referência interior do outro. Isso, de certa forma, me torna o outro, mas
eu jamais me esqueço de eu sou eu e o outro é o outro. De outra forma pode haver
contágio emocional, quando eu e o outro nos confundimos e eu passo a viver
realmente suas emoções (se está triste, fico triste; se está inseguro, sinto-me
inseguro etc.).
Esta alteração da referência usual (a centralização no outro), pouco comum nos
diálogos do dia-a-dia, é fundamental para que a outra pessoa possa elaborar, formar,
organizar seu campo de experiência sem a interferência de outrem. Quando o
voluntário substitui o outro (comunicando sua própria percepção) ou o influencia (com
críticas, julgamentos etc.) na elaboração de seu campo perceptual, interfere
diretamente, como elemento estranho na comunicação dele com ele mesmo,
arruinando a compreensão empática.
Rogers associa a empatia a um jeito de ser, o que significa que ela não pode ser
improvisada, não sendo fruto da interpretação de um papel, mas que deve ser
conseqüência da realidade interior, como aliás, devem ser também as demais atitudes
facilitadoras do crescimento: "A maneira de ser em relação à outra pessoa denominada
empática tem várias facetas. Significa penetrar no mundo perceptual do outro e sentir-
se totalmente à vontade dentro dele. Requer sensibilidade constante para com as
mudanças que se verificam nessa pessoa em relação aos significados que ela percebe,
ao medo, à raiva, à ternura, à confusão ou ao que quer que ela esteja vivenciando...
Passamos a ser um companheiro confiante dessa pessoa em seu mundo interior ...

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Estar com o outro dessa maneira significa deixar de lado, neste momento, nossos
próprios pontos de vista e valores, para entrar no mundo do outro sem preconceitos.
Num certo sentido, significa pôr de lado nosso próprio eu, o que pode ser feito apenas
por uma pessoa que esteja suficientemente segura de que não se perderá no
mundo possivelmente estranho ou bizarro do outro e de que poderá voltar sem
dificuldades ao seu próprio mundo quando assim o desejar... a empatia é uma maneira
de ser complexa, exigente e intensa, ainda que sutil e suave" (7, p. 73).
Como o outro, ao dialogar conosco, está nos comunicando algo, nos
transmitindo informações, a compreensão empática também pode ser entendida como
uma decodificação, porque muitas vezes as mensagens que o outro nos envia não
estão explícitas, claras, nítidas, nem para ele mesmo. É preciso que, através de sua
sensibilidade, o voluntário seja capaz traduzir a mensagem da pessoa, indo além dos
fatos, além das palavras, atingindo os significados profundos, sobretudo emocionais,
presentes na comunicação. A chave para essa decodificação se encontra no quadro de
referência interior do outro (10, p. 41).
O conceito de metacomunicação torna-se, aqui, particularmente interessante.
Metacomunicação significa comunicação sobre comunicação (4, p.36), informação
sobre informação. A comunicação humana está impregnada de informações que
alteram a acepção das palavras, dando à comunicação significados totalmente
diferentes dos significados estritos das palavras utilizadas. Essas informações podem
ser o tom de voz, um gesto, o ritmo com que a frase é dita, o contexto etc.. É mais que
óbvio que o ser humano pode dizer alguma coisa, querendo significar outra, com
sentido totalmente diferente. Por exemplo, quando uma mãe diz a seu filho, que fez
uma travessura, "Muito bonito!...", não está, naturalmente expressando que apreciou a
traquinagem do garoto, mas exatamente o oposto. Se dou bom dia a alguém e esse
alguém me responde "Bom Dia" com entonação de desânimo ou tristeza,
imediatamente compreendo que aquele não está sendo um bom dia para aquela
pessoa. Para compreender empaticamente o outro, o voluntário não pode, portanto, se
restringir às palavras que ele pronuncia; precisa ir além delas, penetrando a dimensão
oculta dos significados, dos sentimentos, percebendo intenções e decifrando atitudes.
É importante destacar que sendo empático, o voluntário não julga, não filosofa,
não infere (deduz pelo raciocínio), não interpreta, não supõe, nem inventa. Aguarda
que o outro se revele e, então, compreende.
Nada disso, entretanto, terá sentido se o voluntário não for capaz de comunicar
adequadamente o que compreendeu. É preciso que o outro saiba exatamente o que o
voluntário percebeu do ele comunicou, sob pena de, a revelia do desejo do voluntário
de compreender, a pessoa se sentir incompreendida. Dizer simplesmente "estou
compreendendo" ou manter silêncio e dizer depois que estava compreendendo tudo,
em nada contribui para a clarificação do outro; o que foi compreendido? Essa é a
questão fundamental. O voluntário deve desenvolver as habilidades de selecionar,
dentro do todo da comunicação do outro, aquilo que seja mais significativo e de
sintetizar em poucas palavras e de maneira clara o que exatamente compreendeu do
que a pessoa comunicou. Os dois aspectos da compreensão empática – a
compreensão propriamente dita e a comunicação ao outro do que foi compreendido –
são igualmente importantes.
A compreensão empática pode ocorrer em diversos níveis: desde a
superficialidade do que foi dito, a acepção das palavras pura e simplesmente - resposta
compreensiva do tipo reiteração ou reflexo-simples (10, p. 93; 1, p. 128), passando

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pelos significados, atitudes e sentimentos que o outro manifestou - resposta
compreensiva reflexo do sentimento (10, p. 93; 1, p. 131), atingindo os significados e
sentimentos que ainda não foram simbolizados pela pessoa, não estando sob seu foco
perceptivo - resposta compreensiva do tipo elucidação (10, p. 94; 1, p. 139), até atingir
o que poderia ser definido como o ápice da empatia, algo além da compreensão, a
vivência da experiência junto com outro, o desvelamento (1, p. 141). A segundo
Capítulo deste trabalho abordará a técnica das respostas compreensivas.
No exemplo anterior, ir ao encontro do jovem que agredira sua mãe, penetrar em
seu mundo interior e desvendar o significado de seu dorido relato talvez fosse
responder-lhe "Todos esses anos você odiou sua mãe por ter abandonado você.
Compreendi que ao vê-la naquele dia a dor, a raiva que você sentia por ela era tão
grande que você a agrediu... foi assim mesmo?".
Fica claro que respostas pré-estabelecidas, aprendidas em "treinamentos" ou
decoradas são antíteses da empatia, assim como comportamentos rígidos, mecânicos
e inautênticos.
Note-se, também, a importância da forma não-enfática da comunicação do
voluntário, que propõe ao outro a sua compreensão do que foi apreendido do que ele
expressou, sem afirmar peremptoriamente o que julga ser a "expressão da verdade". O
voluntário precisa ser cuidadoso em suas intervenções, estando consciente de que
pode estar penetrando num campo minado ou tocando estruturas frágeis, prontas a
ruir. Dois mais dois pode ser quatro para o voluntário, mas não necessariamente para a
outra pessoa. Por exemplo, posso estar irritadíssimo com alguém, vermelho e de dedo
em riste no nariz dessa pessoa e afirmar que o que ela me disse não me deixou
nervoso coisa nenhuma. Todos podem estar percebendo claramente que estou
nervoso, mas eu julgo que não estou. E se alguém me diz que naquele momento fiquei
enfezado, aborrecido, afirmo que não, porque na realidade para mim, devido a uma
incongruência, eu não me via assim. Numa situação dessas é contraproducente revelar
à pessoa algo que já esteja claro para nós, mas que ainda não está para a pessoa.
Nesse caso estaríamos adiantados em relação a ela ao invés de caminhar a seu lado.
Como se pode ver, a compreensão empática exige flexibilidade, despojamento,
perspicácia, amabilidade, adequação da visão do ser humano à ACP e da própria
personalidade, pela construção do jeito de ser empático. Mas, ao mesmo tempo, é,
sem dúvida, um poderoso antídoto contra a solidão, pois quanto mais incompreendido
é (se sente) o indivíduo, mais isolado se sente (está). Quando compreendemos
empaticamente alguém, nos aproximamos profundamente dele, o que faz com que ele
não se sinta mais tão só.

9.2. A Consideração Positiva Incondicional


A consideração positiva incondicional é, possivelmente, a mais importante das
três atitudes facilitadoras do crescimento, indo ao encontro da necessidade
fundamental de todo ser humano de ser aceito e amado. Como foi visto no item 5. A
Percepção de Si - O Auto-conceito, as incongruências e, portanto, os desajustamentos
psicológicos, com a conseqüente indisponibilidade da tendência atualizante,
surgem pela falta de aceitação. Através da consideração positiva incondicional o
voluntário pode proporcionar à pessoa com quem dialoga a aceitação que ela necessita
para entrar em contato mais aberto consigo própria, criando condições favoráveis a
mudanças. Essas mudanças podem ser entendidas como as alterações de
percepções, de perspectivas, citadas no item 4. A Percepção da Realidade Objetiva,

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que levarão a mudanças de comportamento. Num processo psicoterápico, realizado
por um psicoterapeuta, a mudança significa alteração no auto-conceito e, por
conseguinte, na personalidade. Pode-se afirmar, então, a partir disso, que a função
primária do voluntário do CVV é comunicar aceitação.
É curioso confrontar valores da vida cotidiana com os da ACP. Nesse caso
específico, por exemplo, a maioria das pessoas crê que qualquer mudança deva
ocorrer por meio de argumentações e mesmo por pressão psicológica. Mas quanto
mais se pressiona alguém para que mude, mais a pessoa "finca o pé" para não se
movimentar. Todos reagimos a mudanças forçadas. Se alguém nos empurra, jogamos
o corpo na direção do empurrão, mas em sentido contrário, visando a manutenção do
nosso equilíbrio. Do ponto de vista psicológico, o processo é análogo. Se desejarmos
ajudar alguém a mover-se psicologicamente, é preciso não pressioná-lo: "... para
ajudar a transformação de alguém, o melhor é não pressioná-lo na direção da
mudança, nem mesmo ensinar-lhe o caminho a seguir ou guiá-lo pela inteligência, mas,
sim, o melhor é aceitar, dando valor aos seus receios, às suas angústias, às suas
resistências, a tudo que o impede de mudar" (3, p. 69).
Isso tem sérias implicações práticas para o voluntário, que, permanecendo
sintonizado com os princípios renovadores e estimulantes da ACP em suas relações
de ajuda, não deseja que a outra pessoa pare de chorar; não deseja que ela deixe de
estar desesperada; não deseja que o outro não pense mais em suicídio; cria condições
para que se efetive uma mudança, confiando nos impulsos naturais do indivíduo, que
são a mais pura e irresistível expressão da vida.
É preciso que fique bem claro que aceitar nada tem a ver com aprovar. A
aceitação significa, acima de tudo, uma validação do indivíduo, do jeito que é. Isso não
tem nenhuma relação com a aprovação de seu comportamento. A um sujeito que me
liga e diz que agrediu o vizinho, aceitá-lo é dar a ele o direito de ser como é, tendo
flexibilidade para compreender seus motivos, sem reprová-lo ou criticá-lo, valorizando,
não a sua atitude, mas os sentimentos, os pensamentos, as sensações, enfim, tudo o
que ele experienciou relativamente ao episódio que me relata. Se outro me diz que
parou de fumar, não digo a ele "que ótimo fulano, fico feliz por você.", porque também
nesse caso eu o estaria julgando, emitindo um parecer sobre seu comportamento. Não
custa lembrar que o que realmente importa é o valor, o significado que o outro atribui à
sua experiência e não o valor atribuído pelo voluntário.
Rogers define assim a consideração positiva incondicional: "Se tudo o que a
pessoa exprime – verbalmente ou não verbalmente, direta ou indiretamente – a
respeito dela mesma parece-me igualmente digno de respeito ou de aceitação, em
outras palavras, se eu não desaprovo e nem manifesto oposição a nenhum elemento
que a pessoa me expressou, então eu tenho para com esta pessoa uma atitude de
consideração positiva incondicional" (10, p. 79).
Dentro da perspectiva da consideração positiva incondicional o voluntário deve
manifestar em ralação a outra pessoa, além da aceitação, calor humano, respeito e
acolhimento.
O respeito dentro da ACP assume um significado muito particular. Considera-se
desrespeito, além de ser infrutífero, não apenas julgar ou criticar, mas também dirigir e
influenciar o outro, dizendo o que ele deveria, ou não deveria, fazer. É muito fácil falar
sobre o respeito, tão fácil quanto desrespeitar. Muitas vezes não damos a devida
atenção às nossas atitudes e o quanto elas podem ser desrespeitosas.

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Dentro da ACP, o respeito nasce do reconhecimento profundo e verdadeiro de
que o outro é, "ele mesmo, o melhor perito que existe para saber e decidir sobre o que
mais lhe convém no plano de sua existência" (10, p. 61). Ajudar a pessoa que nos
procurou, não significa, então, diminuir essa capacidade potencial dela, mas criar
condições favoráveis para que ela possa efetivá-la.
Note-se que a consideração positiva deve ser incondicional, o que a torna mais
difícil de ser vivenciada, devido à nossa rigidez e por questões culturais: estamos
acostumados a considerar as outras pessoas quando se encaixam dentro de
determinados padrões nossos, que podem variar desde a condição sócio-econômica-
cultural à utilização correta do português, passando pela aparência, opção sexual etc..
Quem não se encaixa, recebe a ausência de consideração (estima, respeito,
importância dada a alguém) ou a desconsideração (desrespeito, desatenção, ofensa).
O voluntário do CVV precisa rever constantemente seus valores e flexibilizar seus
critérios de avaliação, compreendendo que existe um valor intrínseco em cada
indivíduo, o valor de ser humano.

9.3. Congruência
A congruência possui três aspectos igualmente importantes. O primeiro diz
respeito à transparência exigida do voluntário durante as relações de ajuda, ou seja, à
congruência (harmonia) que deve existir entre o que é simbolizado na consciência (o
que é vivenciado pelo voluntário) e o que ele comunica. Nossas relações sociais
comuns acontecem sob o domínio de determinadas regras, às quais todos estamos
submetidos, embora não estejam formalizadas em lugar algum. Por exemplo, quando
cruzamos com um vizinho no elevador do nosso prédio, e ele nos dá bom-dia e nos
pergunta se está tudo bem, é óbvio que a essa pergunta a resposta "esperada" é bom-
dia, tudo bem e com você tudo certo?, ou algo que o valha. Quem se atrevesse a
responder o que estivesse realmente sentindo e começasse a falar de suas
preocupações, frustrações etc. certamente seria tomado por inconveniente ou
perturbado. Nas relações sociais habituais a verdade não importa. As perguntas e as
respostas já estão previamente estabelecidas, devendo ser apenas adequadas a cada
ocasião e ligeiramente flexibilizadas ao jeito de ser de cada um. O que importa é se sair
bem, mesmo que não se seja sincero, comunicando o que realmente se desejaria. Às
perguntas adequadas esperam-se respostas igualmente adequadas. Esta regra,
conquanto tenha, indiscutivelmente, seu valor, acaba por contribuir para que grande
parte das nossas relações interpessoais se mantenha dentro de uma "superficialidade
educada e segura", o que pode ser, para muita gente, sinônimo de isolamento e
solidão.
Nas relações de ajuda da ACP, as regras são bem diferentes. Quando a pessoa
começa a conversar com o voluntário, normalmente mantém-se dentro dos limites da
superficialidade, tanto para sondar seu interlocutor e avaliar se é seguro prosseguir e
abrir-se, como pelo hábito, pela maneira usual de se conduzir numa conversa. É
fundamental que o voluntário demonstre por suas atitudes que ali, naquele momento
da relação de ajuda, vigoram a sinceridade, a verdade, a transparência, ou seja, o
voluntário não é falso, não dissimula, sente realmente tudo o que está comunicando,
sem necessariamente comunicar tudo o que está sentindo, porque há conveniência e
inconveniência do que pode ser comunicado. A transparência significa que, através das
atitudes do voluntário, o outro sabe o que está acontecendo dentro dele (do voluntário).
É como se a pessoa olhasse ou ouvisse o voluntário e visse seu coração. Essa atitude

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"influencia" o outro que acaba tendo uma atitude recíproca, mas em relação a si
mesmo, assumindo um comportamento mais verdadeiro na relação e consigo próprio.
Nesse ponto vale destacar que a relação de ajuda funciona como um sistema
fechado, com a interação de dois elementos, onde um elemento influencia o outro, num
processo que pode ser comparado ao feed-back (retroalimentação) dos circuitos
eletrônicos, nos quais a entrada influencia a saída, que por sua vez, através do feed-
back, influencia a entrada. O comportamento do voluntário (o que ele disser, como
disser, quando disser e por que disser) vai gerar uma reação no outro. Muitas vezes
nos enganamos atribuindo as dificuldades ou mesmo o fracasso de determinada
relação de ajuda única e exclusivamente à outra pessoa, como se o voluntário fosse
uma peça desprovida de valor na relação. Tal, entretanto, não se dá, ocorrendo,
mesmo, o oposto: o voluntário é peça fundamental na relação, tanto quanto a pessoa
com quem ele conversa e seu comportamento será decisivo para o êxito ou fracasso
da relação de ajuda. A influência da pessoa sobre o voluntário será agora melhor
compreendida, no segundo aspecto da congruência.
Enquanto o voluntário conversa com uma pessoa em seu plantão, estão
surgindo em seu organismo (seu ser) diversas experiências. Ele pode, por exemplo,
estar com sede, ter vontade de ir ao banheiro, sentir-se cansado ou preocupado com a
hora; mas pode, também, vivenciar experiências basicamente decorrentes da relação
que está em curso, com a pessoa que o contatou. Interesse, indiferença, ansiedade,
medo, desejo, compaixão, insegurança, ternura, rejeição, recordações, tristeza etc.,
podem surgir no íntimo do voluntário, sem que ele tenha qualquer controle sobre o
surgimento dessas experiências. É fundamental, entretanto, que ele esteja atento e
aberto a elas, vivenciando-as o mais livremente possível, para ser capaz de lidar com
elas. Em outras palavras, é fundamental que o voluntário seja, tanto quanto possível,
congruente. Quem deseja auxiliar alguém a viver um processo de mudança, de melhor
comunicação consigo mesmo, de abertura a realidade íntima, de crescimento interior,
deve estar, ele próprio, vivendo esse processo, porque ninguém pode dar aquilo que
não tem!
Este processo de abertura crescente às experiências, que leva a um
funcionamento mais pleno do ser, com aumento de auto-confiança e criatividade,
recebeu de Rogers a denominação de Vida Plena (14, cap. VII). No CVV, os exercícios
de vida plena, realizados nas reuniões de grupo, são excelentes oportunidades para
identificação dos mecanismos de defesa que nos impedem de viver plenamente a
nossa realidade íntima. Um dos compromissos mais sérios do voluntário do CVV diz
respeito ao seu próprio crescimento, ao seu desenvolvimento como pessoa, seu
amadurecimento, que ele deve fomentar e pelo qual deve zelar, compreendendo que
quem não vive esse processo não poderá ajudar o outro a vivê-lo.
Como foi visto no item 6. A Distorção e a Negação da Experiência – Os
Mecanismos de Defesa, as experiências podem ser negadas ou distorcidas. Tanto num
caso como noutro, ocorre perda de parcelas da realidade. Ao distorcer ou negar a
experiência à consciência, necessariamente eu me incapacito a compreender o outro
empaticamente, porque a originalidade da experiência, seu valor peculiar é perdido. Se,
por exemplo, a outra pessoa me conta que sua mãe faleceu e eu, por ter perdido minha
própria mãe recentemente, me emociono, posso facilmente, se não me dou conta
disso, "compreender" que o outro está profundamente pesaroso pela perda da
mãezinha querida, quando a comunicação dele foi num tom indubitavelmente claro de
quem está conformado e mesmo aliviado pelo fim do sofrimento da velhinha. A

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mensagem da pessoa poderia ter sido facilmente decodificada, mas foi distorcida,
assumindo outro significado, totalmente diferente do original. Note-se que, nesse
exemplo tudo ocorreu sem que eu tivesse consciência plena do que estava se
passando. A experiência ameaçadora era a aceitação, a conformação com a morte da
mãe, que para mim, sendo inaceitável, foi distorcida em forte saudade e
inconformação. Eu e o outro nos misturamos e para mim, nesse momento, não houve
distinção clara entre um e outro. Por isso o voluntário precisa estar atento ao que se
passa no outro, o que ele comunica, o que vivencia e, ao mesmo tempo, atento ao que
se passa em si mesmo. É claro que o que não chegou claramente à consciência não
poderá ser identificado com precisão. Daí a necessidade do fomento constante ao
processo de crescimento - a busca da plenitude, a conquista de si mesmo, a melhoria
da comunicação consigo próprio – que o voluntário deve assumir como uma parcela
bastante significativa de suas responsabilidades no CVV.
O terceiro aspecto é a validação, a legitimação das outras duas condições
facilitadoras do crescimento. Significa que tanto a compreensão empática quanto a
consideração positiva incondicional devem ser verdadeiras, não podendo ser fruto de
simulações. É preciso realmente mergulhar no mundo interior do outro e manifestar
calor humano, respeito e aceitação incondicional como resultado da autenticidade do
voluntário e do valor que ele sinceramente dá à pessoa. Qualquer desvio nesse sentido
levará, fatalmente, a uma retração da pessoa criando, ou pelo menos mantendo, os
obstáculos à libertação de seu desenvolvimento.

10. Os Efeitos das Atitudes Facilitadoras do Crescimento


Preconiza-se, na ACP, a existência de uma quarta condição do crescimento: a
percepção por parte da outra pessoa, das três atitudes facilitadoras do crescimento,
efetivadas pelo voluntário. Se o outro perceber, num grau mínimo, essas atitudes,
sentindo-se empaticamente compreendido, sendo aceito incondicionalmente e
constatando a congruência (verdade, sinceridade, autenticidade) do voluntário, tenderá
a ter uma atitude recíproca à percebida, mas em relação a si mesmo. Tenderá, então,
como resultado das intervenções empáticas do voluntário, a se compreender melhor
(seus sentimentos, seu comportamento, suas idéias, seu ambiente, sua percepção das
outras pessoas, dos acontecimentos, de si mesmo etc.), a se aceitar mais (se alguém –
o voluntário – foi capaz de me aceitar, então eu também posso me aceitar) e a ser mais
congruente (conquista do acordo entre o auto-conceito, a experiência e a simbolização
na consciência), criando condições às mudanças que poderão proporcionar um modo
de funcionamento mais pleno, mais harmonioso, mais consciente e libertando a vida
que flui dentro de si.

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A Abordagem Centrada na Pessoa – ACP
Capítulo 2 - Prática da ACP
1. Os Objetivos do CVV
A missão do CVV está estabelecida desde a sua constituição, tendo sido
atualizada, recentemente, na Reunião de Planejamento do CN de janeiro de 2003:
“Valorizar a Vida, contribuindo para que as pessoas tenham uma vida mais plena e,
conseqüentemente, prevenindo o suicídio”. Para atingir seus objetivos, o CVV se
propõe a ajudar emocionalmente às pessoas que desejem receber esse tipo de auxílio.
Todos as demais possibilidades, tais como pecuniária, distribuição de vestuários e
gêneros ficam, portanto, descartadas, assim como quaisquer outras que excedam o
âmbito emocional. Por sua desvinculação religiosa, fica também afastada a orientação
religiosa, tanto quanto a realização de orações e preces.
Desde a década de 70, o CVV estabeleceu que a ajuda emocional oferecida às
pessoas que entram em contato com seus voluntários se daria com base na ACP –
Abordagem Centrada na Pessoa. Isso, por conseguinte, impossibilita o improviso e a
implantação de métodos "pessoais" como abordagens que orientem o contato da
pessoa que procurou o CVV em busca de auxílio.
É, portanto, compromisso de todo voluntário do CVV, buscar ampliar sempre
seus conhecimentos da ACP e habilitar-se na prática da relação de ajuda, nos moldes
preconizados por esta abordagem.

2. Os Treinamentos de Papéis (Roleplay – RP)


Objetivos: Os exercícios de RP visam criar uma condição semelhante à dos
atendimentos que ocorrem no dia-a-dia dos postos, gerando meios de ser vivenciada a
relação de ajuda, dentro da maior realidade possível, mas numa circunstância de
treinamento, onde possa haver uma avaliação e os erros e acertos possam ser
analisados e compreendidos, visando o aprimoramento da capacidade de ajuda dos
voluntários, o que equivale a dizer, o desenvolvimento da habilidade de efetivar a ACP
numa relação de ajuda.
Sistemática: um voluntário/candidato assume a posição de quem busca ajuda
(a pessoa que procura o CVV), outro a de quem se dispõe a ajudar (de voluntário),
outro coordena o processo (facilitador ou coordenador do RP) e os demais voluntários
participantes, acompanham o desenrolar da relação que se estabelece, participando
das avaliações posteriores ou assumindo, algum dentre eles, a posição de voluntário,
no retorno do mesmo caso, para experimentação prática de alguma idéia ou em nova
tentativa de desenvolver a relação de ajuda, se for o caso.
O coordenador/facilitador do RP pode interrompê-lo quando julgar necessário;
para tanto, os dois participantes são informados dessa possibilidade antes do início do
exercício, concordando com o procedimento (quando todos já sabem desse
procedimento, o aviso se torna desnecessário, mas pode ser, em alguns casos,
conveniente lembrá-lo); a interrupção torna-se oportuna quando há, por exemplo, um
desvio muito acentuado dos princípios da ACP (quando o voluntário está "perdido" no
atendimento), quando o exercício forneceu material suficiente para ser analisado ou
quando se tornou sem sentido (com repetições, quando o assunto simplesmente se

Versão: janeiro 2014 20


esgotou etc.). Naturalmente o RP não deve ser interrompido durante um período de
forte conteúdo emocional, de riqueza em termos de auto-exploração, de descoberta de
mecanismos de defesa etc.. Para se decidir sobre o momento oportuno da interrupção
é preciso, além de discernimento, calma e paciência, sem desprezo ao tempo, que é
precioso em qualquer reunião.
Conquanto seja claro, vale a pena lembrar que o objetivo do RP é o treinamento.
Portanto, quem deseja desabafar sem os possíveis inconvenientes do exercício
(colegas em torno, interrupções etc.) deve procurar algum colega de plantão. Ao
mesmo tempo, contudo, o coordenador de RP deve ter sensibilidade e tato para
solicitar uma interrupção, especialmente quando quem passa o caso está
emocionalmente envolvido.
Tipos: há basicamente três modalidades de RP, cada uma com sua
particularidade, vantagens e desvantagens.
 Roleplay (propriamente dito): segue exatamente a sistemática descrita
acima, sendo que o caso apresentado é fruto da criação do voluntário/candidato, que
tenta o mais possível, reproduzir determinada personalidade, visando a realização do
exercício. O RP é, portanto, uma simulação. Sua vantagem é a possibilidade de
propiciar casos que são importantes em termos de treinamento, tanto em reuniões
mensais de grupo quanto em PSV’s, que não poderiam ser apresentados como
vivência real dos participantes, como por exemplo, suicídios, masturbação, depressões
etc.. Sua desvantagem é a grande dificuldade que há em se conseguir reproduzir
plenamente determinada personalidade, por mais experiente que seja o voluntário, o
que torna a interação com quem atende, sempre mais limitada, por ser resultado da
mistura entre o que o voluntário vivencia realmente naquele instante e o que ele supõe
que seria vivenciado pela personalidade que interpreta.
De qualquer modo, é preciso que haja interação, que o que é dito por um e por
outro tenha eco no interior de ambos. Nesse sentido, fica claro ser inadequada a
postura do voluntário que está buscando ajuda (apresentando o caso) de seguir por
determinado caminho, ou visar determinado desfecho, independentemente do que
ouça do outro voluntário/candidato, a não ser que o caso apresentado seja exatamente
esse, alguém que não ouve, não percebe, não interage com seu interlocutor.
 Autoplay: com sistemática idêntica à do RP, o AP difere dele por ser o caso
apresentado, uma vivência real do voluntário/candidato. A vantagem e a desvantagem
dessa modalidade são a desvantagem e a vantagem da anterior, ou seja, o AP não
permite que certos tipos de casos, importantes ao treinamento, sejam apresentados,
mas em compensação, é capaz de produzir uma interação absolutamente real entre os
participantes, o que lhes proporciona vivências tão significativas quanto às que ocorrem
nos atendimentos reais. No Autoplay são totalmente dispensáveis formalidades do tipo
“fechar os olhos”, dizer “CVV, bom dia” e esclarecer se é atendimento pessoal ou
telefônico. Na verdade, não é um caso nem outro: o fulano vai conversar com o
beltrano, na sala onde estão reunidos, todos os participantes estão presentes e é um
exercício de RP. Tudo é real.
É importante que se destaque que pode ocorrer uma mistura de realidade e
simulação em determinados casos. Daí a importância de se ser mantida uma postura
de seriedade e de se ter sempre consideração e respeito com o colega/candidato que
passa o caso.
 Multiplay: modalidade na qual um voluntário passa o caso (busca ajuda) e os
demais integrantes do grupo, com exceção do que coordena o exercício, participam

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como voluntários, falando um após o outro em seqüência ou livremente, quando assim
o desejarem. A princípio, esse tipo de RP pode ser interessante quando se deseja
descontrair o grupo, mas dificilmente o resultado final será satisfatório em termos de
relação de ajuda, porque os enfoques são, normalmente, muito diferentes uns dos
outros, o que torna o diálogo muito fragmentado.
Aplicabilidade: O RP tem lugar nas reuniões mensais de grupo e na parte
prática do Programa de Seleção de Voluntários - PSV, que visa o desenvolvimento de
novos voluntários. É, sem sombra de dúvida, um importante instrumento para o
aperfeiçoamento constante dos voluntários, mas assume, indiscutivelmente, um caráter
mais grave, mais crítico no desenvolvimento dos candidatos a voluntários, durante o
PSV.
O RP nos Estágios Probatórios: Especialmente neste caso, deve ser
priorizada a conquista da habilidade de dialogar de acordo com os princípios da ACP.
Na prática, isso significa que os casos envolvendo manipulações, "cantadas", as
perguntas diretas, chamadas drásticas e similares devem ser apresentadas depois que
os candidatos desenvolveram (compreenderam e foram capazes de colocar em prática,
mesmo que com alguma dificuldade) a capacidade de conversar com o outro a partir
dele, alterando o usual "centro em si mesmo", para a outra pessoa.
Esta capacidade, a de compreender empaticamente o outro, é mais facilmente
desenvolvida dentro de um ambiente de realidade, onde os participantes realmente são
quem são, ao invés de viverem papéis: o outro é realmente ele mesmo assim como o
voluntário. Ambos sentem verdadeiramente os efeitos de seus erros e acertos, da
compreensão ou incompreensão, da consideração ou desconsideração comunicadas e
recebidas, de suas congruências ou incongruências. O que é dito assume um valor
próprio - o valor da realidade - que dificilmente existe nos casos de simulações, que,
entretanto, têm sem dúvida, seu valor, porque muitos temas só podem ser abordados
dentro do universo da vivência de papéis.
No período inicial do desenvolvimento dos candidatos devem, portanto, ser
evitadas as situações de atendimento em que o candidato se sinta acuado,
desconcertado, encurralado, pressionado, em "saia justa", como se costuma dizer. O
Monitor que passa o caso deve, antes, ajudar o candidato, conversando pausadamente
e em momentos oportunos perguntando se o candidato compreendeu o que ele disse e
o que compreendeu. Se o candidato tem uma participação inadequada (se julga, centra
em si mesmo, critica etc.), o Monitor pergunta com naturalidade: fulano, como você vê
essa última colocação? Quando você disse “...”, você acha que foi empático? E o ajuda
a compreender o que seria ser empático naquele momento. Após essas interrupções o
caso prossegue normalmente.
Outra vantagem da aplicação do Autoplay durante o PSV é que como os
candidatos são estimulados a contar situações de suas próprias vidas, os monitores
têm excelente oportunidade para conhecê-los mais profundamente, o que,
naturalmente, gera mais material para a avaliação de cada um.
A Ordem dos Atendimentos nos Estágios Probatórios: os primeiros casos
dos estágios devem, portanto, ser passados pelos Monitores (Autoplays). Conforme
descrito acima, esses casos devem ser didáticos e passados de forma favorável ao
candidato, visando seu aprendizado. Após essa etapa, os candidatos passam e
atendem casos entre si (priorizando o Autoplay). Ao longo do processo, os Monitores
vão introduzindo os casos que constam da relação de temas de RP (e que dificilmente
serão contemplados pelos Autoplays) adequados à etapa em que o processo de

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desenvolvimento dos candidatos se encontra. A qualquer momento, os Monitores
podem (e devem), diante das dificuldades dos candidatos, atender, eles próprios, os
mesmos casos atendidos por eles, para que os candidatos tenham uma idéia de como
seria um atendimento mais adequado e vão elaborando a convicção de que é possível
se realizar uma relação de ajuda orientada pela ACP. Note-se que não há uma ordem
rígida dos tipos de casos a ser seguida nos estágios. A atividade deve ser centrada no
grupo. Os caso surgem espontaneamente, trazidos pelo próprio grupo. Os casos que
não são contemplados dessa forma são apresentados pelos Monitores, mas em
momentos adequados, normalmente também gerados pelo grupo, que pode abordar o
assunto como dúvida ou indiretamente em algum Autoplay.
O RP nas Reuniões Mensais de Grupo: Naturalmente tudo isso pode ser
adotado também nas reuniões de grupo. Além da vantagem relativa ao
desenvolvimento da habilidade de dialogar segundo a ACP, configura-se um bom
momento para que os membros do grupo possam falar de si, o que pode ser muito útil
não só para a aproximação do grupo, mas também como meio de descoberta e
enfrentamento de questões íntimas, o que pode resultar em desenvolvimento da
personalidade dos participantes.

3. A Avaliação do RP
Os Parâmetros de Avaliação: Como o RP é um exercício de vivência da
relação de ajuda orientada pela ACP, seus parâmetros de avaliação devem ser os
mesmos da ACP: compreensão empática, consideração positiva incondicional e
congruência. A efetivação dessas atitudes por parte do voluntário, independentemente
de quaisquer resultados que possam ser apreciados, é que deve ser considerada
quando da avaliação do RP. Note-se que, de todos os participantes do exercício, um
deve receber maior atenção: aquele que atendeu, pois o RP visa, principalmente,
fornecer meios de desenvolvimento da capacidade de ajuda.
Os Procedimentos da Avaliação: O procedimento de avaliação, contudo, pode
variar conforme a inclinação ou experiência de cada grupo. A seguir são listados alguns
desses procedimentos:
 O Voluntário - Consciência de Si Mesmo: Terminado o exercício, estabelece-
se um breve diálogo entre o coordenador do RP e o voluntário (ou candidato) que
atendeu o caso. A pergunta básica que o coordenador faz ao voluntário (ou candidato)
é “O que se passou com você durante o RP?”. Em outras palavras, o coordenador
tenta, nos instantes que se seguem, ser um facilitador para que o voluntário (ou
candidato) descubra o que se passou em si, o que sentiu, o que vivenciou ao longo do
RP e como isso influenciou o desenvolvimento do exercício (por exemplo, ficou tenso,
apático, inseguro, ansioso, desconcertado, com raiva, excitado etc?). Essas
informações podem ser muito úteis na medida em que o voluntário fica sozinho em
seus plantões, necessitando desenvolver a capacidade de auto-analisar-se, de
auscultar seu próprio íntimo, identificando suas dificuldades para poder lidar com elas;
tais dificuldades são relativas a seus preconceitos, a contágios emocionais, sua
inflexibilidade etc.. Devem ser evitadas as avaliações descritivas, que visam
"desvendar os mistérios do caso", porque outros voluntários (ou candidatos) podem
desejar atender o mesmo caso. Justificativas de erros e deslizes por parte de quem
atendeu o caso são desnecessárias.
 O Outro – Feed-Back: A seguir o voluntário (ou candidato) que foi o outro na
relação, informa se percebeu as dificuldades relatadas pelo colega, descreve os efeitos

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delas em si mesmo e relata outras passagens que possam ser significativas, em
termos dos parâmetros de avaliação. Especialmente quando o caso é real (não
simulado), um questionamento torna-se particularmente interessante: “Como é estar na
posição da outra pessoa, desnudando o interior, ou relatando passagens muito
pessoais, para um estranho?”; “Que dificuldades foram sentidas?”. Quem ocupa essa
posição pode compreender melhor o que se passa com a pessoa que liga para o CVV
em busca de ajuda. Devem ser evitadas, igualmente, as avaliações do tipo "o
atendimento foi muito bom..., ou muito mal" e similares, por serem muito pouco
objetivas e esclarecedoras. Pode ocorrer algumas vezes que o colega pretenda em sua
avaliação apoiar o outro, justificando ou minimizando suas dificuldades ou destacando
excessivamente seus acertos. É preciso considerar que o momento do RP é de
treinamento, de desenvolvimento, oportunidade privilegiada para se errar, quando não
se consegue acertar. Se o colega tem dificuldades, melhor é, para todos, que elas
sejam conhecidas claramente, principalmente por ele próprio, que deve estar
empenhado em aprimorar-se como voluntário plantonista.
 O Grupo – Participação Dinâmica: Durante todo o desenrolar do caso, os
demais componentes do grupo precisam ficar atentos às nuanças da relação,
preferencialmente anotando frases que ocorreram, tanto adequadas quanto
inadequadas, sugerindo, nesse caso, uma colocação mais apropriada. Pode ser
interessante e enriquecedor retornar o caso; nesta situação, um outro membro do
grupo assume a posição de voluntário e o caso é repassado.
A Crítica: No processo de avaliação a crítica é fundamental, conquanto não
deva ser contundente. É comum ouvirem-se avaliações do tipo "Foi ótimo... eu não
faria melhor" ou "Esse caso foi muito difícil, mas o voluntário se saiu muito bem". Há,
nesses casos, uma espécie de complacência com os erros do colega, por questões de
amizade e consideração, havendo também, ao mesmo tempo, um investimento nessa
forma branda de crítica, que poderá ser aplicada ao voluntário que a faz, quando for
sua vez de recebê-la: eu não critico você e você em retribuição também não me critica.
E o RP passa como uma experiência insossa, onde não se aprende nada e tudo
permanece como está. É preciso destacar os pontos positivos e negativos do
atendimento, realizando um mergulho no caso e tentando perceber se as atitudes
facilitadoras do crescimento foram ou não uma realidade e por que foram ou deixaram
de ser.
A crítica, entretanto, não deve ser dirigida ao colega (ou candidato), mas à
eficiência do que foi dito para o benefício da outra pessoa. A experiência comprova que
frases do tipo “Você não deveria (ou não poderia) ter dito isso”, “Isso foi errado”, “Você
errou quando disse aquilo” etc., apenas aumentam a inibição e a insegurança de quem
é criticado. Podem ser muito mais proveitosas em termos de aprendizado, colocações
como “no momento em que você disso aquilo, como você acha que o outro recebeu?”;
“Você acha que foi empático, quando disso aquilo?... do que realmente ela estava
falando?” etc.. Naturalmente essas questões devem abordar os equívocos cometidos,
sendo igualmente importante destacar os acertos, os momentos em que houve
empatia, aceitação, calor humano etc.. Quando o voluntário (ou candidato) tem
dificuldades para perceber algo que o coordenador do RP percebeu, podem ser
consultados o colega (ou candidato) que passou o caso e os que participaram na
assistência.
Os Casos Difíceis: Destaque-se, também, que os equívocos que cometemos
numa relação de ajuda, não ocorrem pela dificuldade do caso, como muitas vezes se

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diz. Ocorrem pela nossa dificuldade pessoal em lidar com aquele tipo de caso ou
porque havia desconhecimento ou falta de destreza na aplicação da ACP de nossa
parte. Quando se aprende e se ganha prática para lidar com o caso difícil, ele passa a
ser como os outros. O RP é o momento oportuno para ampliação dos nossos
conhecimentos e para o desenvolvimento da habilidade de dialogar com base na ACP.
O Sigilo: Por último, é preciso estar atento à questão do sigilo. Infelizmente, por
mais que se aborde o assunto, ainda ocorrem referências às pessoas que ligam. “Eu
também já atendi essa pessoa...”, “Quando ela me ligou, falou ainda mais, disse isso,
isso e aquilo” e comentários similares precisam ser evitados. Todos os participantes do
grupo precisam estar atentos para preservar a privacidade dos que confiram no CVV e
entraram em contato.
O NÂO: muitos candidatos se ressentem de receber uma quantidade maciça de
“nãos” quanto aos procedimentos permitidos pela ACP. Chegam ao final dos estágios
sabendo tudo o que não podem fazer/dizer, mas sem saber o que podem e devem
fazer/dizer para realizar a relação de ajuda. É fundamental que os Monitores
desenvolvam a habilidade de transmitir os valores, os princípios da ACP e orientar sua
prática, pronunciando o menos possível o advérbio mais temido do PSV. O não limita e
restringe, por isso, é interessante substituí-lo. Ao invés de definir o que “não pode”, é
mais interessante propor aos candidatos reflexões que os ajude a elaborar, construir,
assimilar os conceitos da ACP: “Em que isso foi útil para ajudar a pessoa?”. Caso se
chegue a conclusão de que não foi útil, “O que seria mais adequado?”, “Você acha que
foi empático naquele momento, quando disse isso, isso e aquilo?”, “Como você acha
que ela se sentiu quando você disse que “80kg para uma mulher de 1,60m significa
que ela está gorda”; como isso vai influenciar a relação de ajuda?” são exemplos de
um modo diferente de lidar com essas ocorrências (aquelas onde o “não pode” cabe
como uma luva). Melhor que dizer que tal resposta ou idéia não foi adequada, que “não
pode” é, didaticamente mais eficiente, ajudar o candidato a construir seu
conhecimento, chegando às conclusões da ACP, que é o paradigma, a referência
básica para todas as situações. O candidato deve conceber sua própria “bússola
interna”, através da qual se guiará dentro da diversidade de situações com as quais
poderá se deparar em seus plantões no CVV.
Note-se que num dos exemplos acima, antes de propor ao candidato o que seria
mais adequado, houve uma abertura para que ele explicasse seu ponto de vista. Esse
procedimento simples e aparentemente sem valor, expressa, na verdade, a confiança
que o Monitor tem na pessoa do candidato, que pode ter percebido algo que, o próprio
Monitor não percebeu. O Monitor não é, então, o “grande sábio” que está a orientar os
“discípulos ignorantes”, transmitindo seus “conhecimentos e experiências inigualáveis”.
É, antes, alguém que compreende que, mesmo sem conhecimentos específicos, uma
pessoa pode, utilizando suas habilidades próprias, sua sensibilidade e experiências
pessoais, assimilar conceitos até então formalmente desconhecidos por ela e
demonstrar capacidades que jaziam adormecidas, aguardando o momento oportuno
para se manifestarem. O Monitor é o fomentador desse processo: o desenvolvimento
dos candidatos na direção estabelecida pela ACP.
Isso não significa, contudo, uma valorização incondicional ou indiscriminada das
intervenções dos candidatos. A adequação ou inadequação será estabelecida pela
análise da intervenção tendo-se a ACP como referência.

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4. O Clima Afetivo da Relação de Ajuda
O clima psicológico da relação de ajuda precisa fornecer as condições
necessárias à mudança. Mudança significa alteração de percepção, abertura à
experiência, trazer à consciência o que está indisponível no momento ou impedido de
ser simbolizado corretamente, permitir-se ser o que realmente se é. Isso proporciona
ao indivíduo uma nova visão de si e da realidade que o cerca, propiciando novas
perspectivas, que podem ser saídas para as situações difíceis, conflitantes, em que se
encontre.
As atitudes facilitadoras do crescimento (compreensão empática, consideração
positiva incondicional e congruência), se vivenciadas plenamente pelo voluntário, serão
capazes de formar esse clima, onde o outro desfruta de liberdade experiencial -
liberdade para experienciar-se a si mesmo, superando as barreiras interiores que o
impedem de comunicar-se mais plenamente consigo próprio.
A afetividade é componente essencial da relação de ajuda da ACP e surge a
partir do sentimento verdadeiro que o voluntário tem em relação ao ser humano. Tudo
o que é dito pelo outro precisa "tocar" o voluntário, que se importa com o sofrimento
alheio, não sendo indiferente a ele. A comunicação do voluntário necessariamente
deve expressar o valor que ele dá ao outro, através de meios que possam ser
percebidos pela pessoa: o tom de voz, o próprio teor da comunicação, a postura e a
gesticulação , quando em atendimento pessoal.
Esse clima afetivo pode ser "decomposto" em diversas parcelas, todas
igualmente importantes, que devem ser desfrutadas pela outra pessoa:
 Ausência de ameaças: por ameaças se compreendem as críticas, as
induções, as persuasões, as sugestões, as explorações que têm como base a
curiosidade, os julgamentos morais (que provocam distanciamento), a frieza, a
indiferença, a rigidez, as inferências (deduções) que são resultado, muitas vezes, do
fenômeno da projeção (quando o voluntário projeta no outro o que é seu: eu nesta
circunstância me sentiria assim, portanto ele também se sente assim) etc.. Deve haver
permissividade (qualidade de permissivo; que dá permissão, tolerante, indulgente) para
que o outro seja ele próprio, mesmo que isso possa ser, a princípio, vergonhoso,
indigno, ridículo, reprovável ou repugnante, de acordo com os padrões sociais usuais.
 Confiança no voluntário: construída a partir da postura do voluntário, de suas
atitudes, que devem ter como base as facilitadoras do crescimento. Surge naturalmente
quando o outro se sente compreendido empaticamente, percebe ser considerado
positivamente por alguém congruente.
 Tranqüilidade, serenidade do voluntário: o ritmo do outro precisa ser
respeitado. É preciso seguir a seu lado, sem pressioná-lo para que se adiante e sem
deixá-lo adiantar-se, deixando para trás o voluntário.
 Liberdade de expressão: o outro, que está a elaborar mentalmente o que
pensa e sente (no coração e no corpo), precisa ter liberdade para comunicar isso da
forma que julga mais adequada. Ao invés de sentir-se agredido, de reprovar o outro e
criticá-lo pela forma como se expressa, o voluntário deve tentar adequar-se a ele,
utilizando um vocabulário que seja, o mais possível, inteligível pela outra pessoa. Esse
esforço contudo, chamado de nivelamento, não deve conduzir o voluntário a viver um
papel, tornando-se artificial e dissimulado. A adequação da linguagem deve manter-se
dentro dos limites da naturalidade para o voluntário. Esse esforço é realizado por quase
todos nós, no nosso dia a dia. Quando nos dirigimos ao porteiro do nosso prédio,
dificilmente vamos utilizar as mesmas palavras que aplicamos num diálogo com um

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cliente da empresa onde trabalhamos. De maneira idêntica, ao falarmos com uma
criança, não vamos usar palavras que ela, obviamente, não compreenderá. O esforço
para o nivelamento da nossa comunicação já faz parte da nossa vida, devendo,
apenas, ser mais bem compreendido e adequado às relações de ajuda do CVV.
 A participação ativa do voluntário: o voluntário está longe de ser um mero
expectador dos processos de elaboração da outra pessoa. Ele deve assemelhar-se a
um companheiro de jornada, que segue lado a lado com o outro, na medida em que
este se embrenha nas paisagens desconhecidas e ameaçadoras de si mesmo. Para
melhor compreensão do que significa isso, suponhamos que nos propomos a caminhar
ao lado de alguém. Podemos assumir três posturas diferentes em relação ao outro:
Podemos pegá-lo pelo braço e dirigi-lo para onde queremos que ele vá, sem considerar
sua vontade ou necessidades. Podemos dar a ele, amigavelmente, o braço e, com
sutileza, induzi-lo para que ele siga por onde desejamos, sendo que esse nosso desejo
pode ser consciente ou não. E podemos estar determinados a acompanhá-lo ativa e
atentamente, seja por onde for, chegue aonde chegar, leve o tempo que levar. Esse
destino será desconhecido de ambos; não será algo preestabelecido; na medida que
avança, o outro vai se descobrindo e restabelecendo seu rumo. O voluntário, apesar de
não ser um guia, ajuda o outro em sua jornada, sinalizando o caminho com as
informações que o outro mesmo forneceu, tornando mais claro o que antes estava
oculto ou confuso.
Note-se que a pessoa que está sob o “efeito” de seus problemas, que são
obnubilantes, confusionais, tem dificuldade em distinguir precisamente o sente e o que
pensa relativamente à situação com a qual está envolvida.
Nas relações de ajuda do CVV, não adotamos apenas a aparência de não saber
quais serão os rumos e o desfecho da relação de ajuda, nós realmente não sabemos (e
não estamos interessados em saber). A postura não-diretiva da ACP não é uma
estratégia para que o outro encontre ou deduza algo que já sabemos. Isso seria
enganar a pessoa que nos procurou, o que é totalmente antagônico à ACP, já que,
nesse caso, não haveria congruência do voluntário.
Dentro desse ambiente favorável, o outro pode, na medida em que avança no
conhecimento de si, expressar com confiança e transparência o que elabora
mentalmente, o que pensa e sente.

5. As Frases Feitas
Ao longo do tempo, foram introduzidas no CVV frases que se tornaram tão
conhecidas e utilizadas, que muitos passaram a acreditar que elas eram a mais pura e
confiável expressão da Abordagem Centrada na Pessoa, que o CVV adota. São,
contudo, a antítese do que preconiza a ACP. O que as torna realmente inadequadas e
danosas é a forma mecânica como são utilizadas, sendo introduzidas em momentos
totalmente impróprios.
Na verdade, tais frases apenas evidenciam a dificuldade que alguns voluntários
têm para lidar com determinadas situações e para trabalhar com o material recebido da
outra pessoa (não sabem o que fazer com o que a pessoa disse). As frases surgem
então, como recursos para aliviar a própria ansiedade e escapar da situação que
julgam ser ameaçadoras, desconcertantes ou intimidativas.
É preciso destacar o caráter pernicioso que podem adquirir quando assumem
duplo sentido. As comunicações de duplo sentido são frontalmente contarias ao

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princípio da transparência (vide item 9.3. Congruência, do Capítulo I), sendo, também,
geradoras de patologias psicológicas importantes nas relações. Não devem ser
evitadas, portanto, apenas porque não ajudam, mas porque podem prejudicar, e muito,
as pessoas que procuraram o CVV.
Vejamos algumas delas:
 Você não gostaria de falar sobre isso? Normalmente aplicada no início do
atendimento para dar uma "força" à pessoa para que entre no assunto. Mas os que a
utilizam não se dão conta de que, nesse ponto, o assunto já está em andamento e que,
ao invés de propor à pessoa que fale, o voluntário deve expressar o que compreendeu
do que foi comunicado pelo outro até aquele instante.
 Estou aqui pra te ouvir. Frase utilizada no início do atendimento, para
comunicar disponibilidade ou quando o voluntário se vê acuado, sentindo-se sem saída
(em manipulações e cantadas, por exemplo). É importante que se compreenda que o
voluntário do CVV não está disponível apenas para ouvir o outro, mas para dialogar
com ele. Quando alguém afirma que ninguém o ouve, está na verdade afirmando que
não lhe dão atenção, não dão valor ao que ele diz. Somente nesse sentido estrito é que
o voluntário pode afirmar que está disponível para ouvir. Entretanto essa afirmativa
precisa ser muito bem compreendida. Muitos voluntários ao ouvi-la, acabam
assimilando que devem assumir na relação de ajuda uma postura passiva, de ouvintes
atentos, que em nada mais participam das experiências que o outro vivencia durante a
relação de ajuda. Este engano leva, freqüentemente, ao silêncio e à apatia do
voluntário, que se escora na afirmativa de que o mais importante é ouvir, quando na
verdade o objetivo da relação de ajuda só será atingido se se tornarem realidade todas
as três atitudes facilitadoras do crescimento. Além disso, a disponibilidade interna para
acolher, assim como o respeito, a consideração, o calor humano etc., não devem ser
comunicadas em palavras, mas através de atitudes.
 Isso é importante pra você? Os que têm por hábito utilizar esta frase, o
fazem sempre que não desejam responder a alguma pergunta da outra pessoa. Se a
analisarmos mais detidamente, facilmente perceberemos que ela, na verdade,
expressa o descontentamento do voluntário com a pergunta recebida e sua intenção de
não respondê-la ou, pelo menos, criar obstáculos para isso. Sob a máscara de uma
proposta de reflexão (cuja resposta é óbvia: é claro que é importante, senão não teria
sido perguntado) há, na realidade, uma repreensão, uma censura, um pito, que o
voluntário passa na pessoa, sem contudo, assumi-lo. Há, então, uma incongruência: o
que é sentido pelo voluntário é absolutamente diferente do que ele comunica. Ao
recebê-la, a pessoa deduz que sua pergunta não foi bem aceita, que o voluntário não
gostou de ser questionado da forma como foi e, naturalmente, se sente desconfortável,
desconcertada e culpada por ter feito algo que desagradou o voluntário. Sente que foi
infeliz, mas não fica claro o porquê. Colocações dessa espécie só contribuem para
afastar a pessoa, conforme analisado no item 9.3. Congruência, do Capítulo I.
 Você já conhece o nosso trabalho? De maneira idêntica à anterior, essa
pergunta usualmente comunica que algo que foi dito pela outra pessoa, o assunto ou a
forma como ela o aborda desagradou o voluntário e que ele, o voluntário, não deseja
seguir pelo caminho que está sendo trilhado ou se configura adiante. Freqüentemente
é utilizada como um "corte" na conversa, como se o voluntário dissesse "com quem
você pensa que está falando... eu não estou aqui para isso". Gera desconforto, mal
estar e demonstra uma incongruência do voluntário.

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 Como é que você está se sentindo? O aspecto mais grave dessa pergunta,
que pode parecer a princípio bastante coerente com a ACP, é a sua
extemporaneidade, ou seja, a inadequação dos momentos em que é aplicada. Os que
lançam mão dessa pergunta, da forma como descrito, partem do princípio de que o
sentimento é não apenas o aspecto mais importante da relação de ajuda, mas o único
que têm valor. A partir desse princípio, há uma concentração, um foco extremamente
seletivo no sentimento da pessoa, a ponto de dirigir sua atenção (a da pessoa) para
seus sentimentos várias vezes ao longo da conversa. Freqüentemente ocorre do
voluntário se ver sem ter o que dizer, pois rapidamente podem se esgotar as
possibilidades de um diálogo restrito a sentimentos, que podem, inclusive, ser
declarados pela própria pessoa em sua primeira frase. Essa concentração nos
sentimentos do outro tem como apoio outra idéia de aparência coerente com a ACP, a
de que o problema da pessoa não tem importância (o importante é o sentimento) e que
por isso o voluntário não deve abordar esse tipo de assunto. Conforme visto em 9.1.
Compreensão Empática, do Capítulo I, a constituição do diálogo, da parte do
voluntário, é basicamente o material fornecido pela própria pessoa, a quem ele tenta
compreender empaticamente, na dimensão experiencial (da experiência, da vivência)
da pessoa; suas comunicações são o resultado de seu esforço para que o outro
perceba o que ele compreendeu do que foi comunicado.

6. A Construção do Diálogo – O Silêncio do Voluntário


Freqüentemente observamos candidatos e voluntários permanecendo, durante
exercícios de Roleplay, longos períodos em silêncio, para depois justificarem essa
postura pela afirmação de que "o outro só queria desabafar". Esse mito precisa ser
desfeito, pois quem liga para o CVV não deseja apenas falar, deseja conversar, isto é,
ser ouvido e ouvir, por isso buscou outro ser humano, alguém potencialmente capaz de
compreendê-lo. Em complemento a essa justificativa, afirma-se que seria indelicado
interromper a pessoa, que falava ininterruptamente. Ora, o silêncio do voluntário, nesta
circunstância, é ansiogênico, ou seja, gera ansiedade. Na verdade, o voluntário com
sua postura silenciosa está estimulando a pessoa a falar cada vez mais ansiosamente,
incessantemente, com menores intervalos. No final, a pessoa não se sentirá aliviada,
por ter desabafado, mas frustrada por ter interagido com um interlocutor mudo, ou
quase mudo.
O diálogo da ACP não se faz sozinho; é construído. Seu principal construtor é o
voluntário. Mesmo que a pessoa inicialmente, demonstrando ansiedade, o que é
absolutamente normal, fale sem dar muita chance de participação ao voluntário, este
precisa, buscando os momentos mais adequados, participar ativamente, comunicando
ao outro o que compreendeu. Note-se que a participação do voluntário, quando é
empática, desperta na pessoa o desejo de ouví-lo, ao mesmo tempo em que neutraliza
a ansiedade potencializada pelo silêncio inoportuno.
Outras vezes, o voluntário se torna silencioso por estar chocado ou por ter sido
de alguma forma "tocado" pelo que a pessoa disse. Nesses casos, a situação se
complica e nem sempre é possível retomar o fio da meada. Para evitar este tipo de
situação, o voluntário precisa, de acordo com o que foi visto no item 9.3. Congruência,
do Capítulo I, estar aberto ao que se passa em si e consciente de que é preciso viver
um processo constante de conquista de si mesmo, de abertura à realidade
experiencial, de flexibilização. A experiência, acumulada pelo tempo tem também,

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indiscutivelmente, seu valor para que o voluntário amplie sua capacidade de lidar com
situações inusitadas ou chocantes.

7. O Silêncio da Pessoa que Procurou o CVV


Não é incomum o voluntário deparar-se com ligações em que a outra pessoa
permanece absolutamente muda, do outro lado da linha. Quando o silêncio surge logo
no início do contato, ou seja, quando a pessoa nada diz ao voluntário, caracterizando a
chamada do tipo "muda", é necessária uma boa dose de paciência e calma, para
contrabalançar a ansiedade que costuma conduzir à precipitação. Após a abertura
tradicional, o voluntário pode permanecer calado por alguns instantes (talvez 10 a 15
segundos possam servir como referência). Devem ser evitados os "alôs!" insistentes,
que dão a entender que o voluntário não sabe o que está acontecendo. Passado esse
primeiro intervalo, pode-se, por exemplo, informar o próprio nome e comunicar nossa
disponibilidade (ausência de pressa, predisposição para aceitar): "meu nome é fulano;
gostaria que você soubesse que estou à sua disposição para nós conversarmos". Dito
isso, novamente o voluntário aguarda (pode usar a mesma referência de tempo
anteriormente adotada).
A comunicação da nossa disposição de permanecer disponível pode ser repetida
novamente, Após isso, o voluntário comunica o que está compreendendo: "vejo que no
momento você está com dificuldades para se comunicar, não é mesmo?..." (por
exemplo). É, então, realizado um “esforço empático” para ir ao encontro da pessoa,
valorizando seu esforço para se comunicar: “imagino que para você ter ligado é porque
você deve estar buscando algum tipo de ajuda... e como você não consegue falar, eu
entendo que deve estar muito difícil pra você...” (por exemplo); pode-se prosseguir
nesse esforço para comunicar nosso desejo de compreender a pessoa, norteando-nos
por suas possíveis dificuldades para se comunicar mais plenamente: sua dor, sua
insegurança diante de um desconhecido, seu receio de não ser aceita ou bem recebida
etc..
Finda essa etapa e não tendo havido comunicação da pessoa (além da
comunicação de que está difícil conversar), o voluntário novamente comunica o que
compreendeu e informa que vai desligar, mas "abre as portas" para que a pessoa ligue
novamente depois, sem se sentir constrangida: "me parece que está realmente muito
difícil para você conversar comigo neste momento... eu vou, então, desligar o telefone,
mas gostaria que você soubesse que permaneço aqui para conversar com você,
quando você achar que é o momento para isso. Se quando você ligar eu não estiver
mais aqui, não se preocupe; haverá um outro voluntário para conversar com você". Se
a pessoa não responder, o voluntário desliga o telefone.
Há alguns voluntários que, em situações como essa, ficam imaginando que
podem, na verdade, estar sendo manipulados por algum “engraçadinho”, que não
tenha o que fazer. Ora, ao pensar dessa forma, o voluntário pode acabar prejudicando
alguém que realmente precisa de ajuda. O CVV foi constituído para disponibilizar ajuda
a quem precisa e deseja ser ajudado. Por essas pessoas é que o voluntário está em
seu plantão.

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8. As Perguntas Diretas da Outra Pessoa
Possivelmente, uma das situações mais incômodas para o voluntário do CVV
ocorre, quando ele recebe perguntas diretas da pessoa que procurou o CVV. Nesses
casos, o voluntário, muitas vezes, sente como se estivesse assumindo o centro do
diálogo, indo, portanto, contra o princípio básico da ACP de não-diretividade. Outras
vezes, sente-se manipulado, usado pela outra pessoa, o que lhe causa desconforto e
mal-estar.
Vejamos alguns casos:

 A pessoa realmente não deseja uma resposta: às vezes fazemos certas


perguntas ao nosso interlocutor apenas para enriquecer o que dizemos ou para
destacar algo; são recursos de retórica, adornos da linguagem; não desejamos
realmente que ele responda literalmente à nossa pergunta.
Por exemplo: “... Que uma mulher seja amante de um homem casado, tudo
bem... Ela é quem sabe. Agora, a mulher sendo amante de um homem casado e se
casar com outro homem e ainda por cima manter a relação com o amante... Ah!,
espera aí! O que é que você acha? Isso é o fim, não é não?!”. Naturalmente muito
mais que questionamentos, as perguntas expressam o caráter absurdo, inadmissível
que a situação tem, na visão da pessoa e a indignação que isso lhe causa. Ser
empático, nesse caso, é ir ao encontro do que foi expresso, sem preocupação com
respostas objetivas. Por exemplo: “eu vejo que isso te causa uma tremenda
indignação, que isso é realmente o fim da picada pra você...”.

 A resposta não deve ser dada diretamente: como foi visto no item 9.2.
Consideração Positiva Incondicional, do Capítulo I, o voluntário deve abster-se de
julgar, criticar, dirigir e influenciar o outro. Algumas perguntas, se respondidas, vão,
necessariamente, significar uma violação desse princípio. Responder objetivamente a
esse tipo de pergunta significa lançar no campo perceptual (vide item 4. A Percepção
da Realidade Objetiva, Capítulo I) do outro, o qual desejamos preservar (para que ele
possa experienciar a si mesmo), nossa própria percepção, tanto ao respondermos
afirmativamente, quanto negativamente. Conquanto seja verdade que algumas
pessoas só perguntam por perguntar, pois desconsideram as respostas (já tem
formado o próprio juízo), é preciso prudência para não confundir mais ainda a outra
pessoa com nossas próprias impressões. Em situações como essa, ao invés de sentir-
se pressionado e reagir, o voluntário precisa abrir-se para compreender empaticamente
o outro. Os exemplos a seguir, mostram algumas possibilidades desse tipo de
pergunta, evidenciando a influência decisiva do contexto em que ocorrem, para
adequação da resposta do voluntário, que, no caso, é do sexo masculino:

a) “...nós estávamos conversando.. aí ele chegou e foi apresentado a mim e a


Cláudia. Me interessei por ele na mesma hora. A certa altura conversávamos sobre
como é difícil manter a forma e como os homens quase que exigem isso das
mulheres... foi então que ele disse que jamais desejaria uma mulher gorda e que ele
nunca iria transar com uma. Fiquei arrasada. Você acha que as mulheres gordas não
despertam desejo nos homens?” Se o voluntário em questão recebe a pergunta para si,
vai, certamente, se ver numa situação adversa, criada por ele mesmo. O caminho para
não se meter em becos sem saída é manter o centro do diálogo no outro. Por outro
lado, uma resposta do tipo “O que ele disse foi como um balde de água fria nas tuas

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pretensões, não foi?” seria indiscutivelmente empática: estaria concentrada numa
experiência que de fato ocorreu: as pretensões da mulher foram por água abaixo,
quando o homem a descartou. Mas ela expressou uma preocupação mais significativa
ao formular sua pergunta. Uma resposta mais completa, que contemplaria essa
vivência da mulher talvez fosse: “Me parece que a tua preocupação não diz respeito
somente aquele homem, ou a mim, o que nós pensamos das mulheres gordas; você
me passa uma preocupação com os homens em geral; É esse o teu receio, o teu
medo, que você não desperte o interesse dos homens?”.

b) “eu tinha tantos planos, sabe?... aquele homem fazia parte da minha vida;
mas quando ele me disse que eu tinha engordado demais, que ele já não sentia
atração por mim, fiquei arrasada. Bateu o maior grilo. Você acha que as mulheres
gordas não despertam desejo nos homens?”. Também aqui, tentar responder
diretamente a pergunta recebida significa tecer a teia da qual o próprio voluntário será
prisioneiro. Como no exemplo anterior, referir-se ao fim do romance com uma resposta
do tipo “Todos os teus sonhos, os teus planos com ele se desfizeram, ruíram, quando
ele te disse que não te desejava mais.”, também seria uma resposta empática, mas
não contemplaria a experiência, certamente muito importante para a mulher aquela
altura: a dúvida, a desconfiança dos verdadeiros motivos dele para por fim ao
relacionamento. Uma possibilidade de resposta que contemplaria essa experiência
poderia ser “Você fala como quem não acredita na explicação dele, no motivo que ele
alegou pra terminar tudo.”.

 A pergunta pode ser devolvida: em alguns casos é interessante que a


própria pessoa que fez a pergunta busque a resposta. Essa possibilidade, contudo (a
de devolução da pergunta para a pessoa), deve ser explorada com cautela. De nada
adianta lançar de volta automaticamente todas as perguntas que o outro fizer, pois, em
muitas situações a resposta encontrada não solucionará a questão proposta pela
pergunta. A devolução, portanto, deve estar coerente com o contexto em que ocorre.
No exemplo (a) da mulher gorda, devolver-lhe a pergunta seria muito natural: “Você, o
que acha? Será que nenhum homem se interessa por gordinhas, como aquele, ou
também há os que se interessam? A pergunta pode parecer tendenciosa, mas não é.
Também não é uma cobrança. Objetiva permitir a mulher lançar mão de sua própria
experiência para elaborar um conceito: se ela sendo gorda pode ou não ser desejada
pelos homens. Caso ela o elabore, ótimo, a dúvida desaparecerá; caso não consiga, a
relação de ajuda prossegue normalmente. Já no exemplo (b), não teria sentido retornar
a pergunta, porque o motivo do sofrimento da mulher nada tem a ver “exatamente” com
a resposta que poderia ser encontrada à pergunta objetiva que foi feita.

 A pessoa espera por esclarecimentos: há perguntas que não afetam, pelo


menos de maneira significativa, a percepção da outra pessoa e, portanto, não há
porque não serem respondidas. Por não distinguir corretamente esse tipo de pergunta,
eventualmente o voluntário cria situações desagradáveis dando a impressão de que
não sabe a resposta ou se sabe, não deseja fornecê-la, preferindo que a pessoa a
deduza. Por exemplo: “... Você viu ontem o Jornal da TV?”; “... Qual é o seu nome?”;
“Você está aí todo dia?”; “... Quem é o próximo voluntário na escala?”; “... O que o
CVV?”. A essas perguntas o voluntário deve responder tranqüilamente.

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 A pergunta invade a privacidade do voluntário: esse tipo de pergunta
costuma gerar constrangimento e dúvida; o voluntário se questiona se deve ou não
respondê-la. Algumas vezes, a pergunta parece tão inofensiva, mas aí surge o receio
de, se respondida a primeira pergunta, a pessoa possa iniciar um processo de invasão,
levando o voluntário a perder o controle sobre a relação de ajuda e sobre sua
privacidade. Por exemplo: “Você é casada?”; a seguir podem surgir outras perguntas
encadeadas a essa: “Tem filhos?” ou “É feliz com seu marido?”. Muitas vezes, para não
responder a essas perguntas, o voluntário se escuda em pretensas normas do CVV:
“Não posso responder, porque o CVV não permite”. É obvio que essa resposta deixa
transparecer que se o CVV permitisse o voluntário não se importaria em revelar
informações de sua vida pessoal, o que pode incentivar o outro insistir.
O ponto crucial, como visto anteriormente, é a motivação profunda da pessoa, o
que realmente ela desejou expressar ao formular a pergunta. Vejamos os exemplos a
seguir, que também exploram a importância do contexto, que pode alterar radicalmente
o significado de uma pergunta.
a) “... sua voz é tão doce,... você deve ser uma mulher muito interessante; você
é casada?” é obvio que se trata de uma cantada. A resposta pode ser: “Está me dando
a impressão, pela forma como você se referiu à minha voz e a mim, de que você está
tentando me seduzir... é isso, eu percebi corretamente?”. Nesses casos é fundamental
não afirmar a intenção percebida de maneira peremptória, pois isso não deixa saída
para a outra pessoa. A forma utilizada no exemplo deixa uma saída para o outro, que
pode negar a intenção, evitando-se, assim, um constrangimento intransponível ao
prosseguimento da relação. Mas, caso haja insistência e evolução da cantada (com a
introdução de outras perguntas), uma possibilidade para lidar com a situação seria: “Eu
não estou entendendo... você ligou para o CVV, um serviço oferecido a quem precisa
de ajuda; não vejo como responder a essas suas perguntas possa ajudá-lo”.
b)“... eu não estou mais agüentando meu marido, nossa relação está uma
loucura; eu já não sei mais o que fazer; não sei se você está me compreendendo
...você é casada?”. Está claro que a intenção dessa pessoa é totalmente diferente da
do exemplo anterior, ao formular a mesma pergunta. Uma possível resposta seria:
“Você está vivendo uma situação difícil no seu casamento e se questiona se uma
pessoa que não é casada poderia compreender essa situação, não é?” Caso haja
insistência, pode-se, por exemplo, propor a pessoa: “Será que eu preciso estar
vivendo, ou já ter vivido, determinada situação para compreender alguém que está
vivendo essa situação?”.

Note-se que há perguntas cujo significado explícito é igual ao implícito e outras


nas quais o significado explícito é diferente do implícito. É importante destacar que as
perguntas diretas da outra pessoa (as que ocorrem na realidade dos atendimentos, não
as de treinamentos, que podem ser repetidas insistentemente para gerar situações
constrangedoras, propositalmente), quando são respondidas empaticamente pelo
voluntário, não são repetidas por ela. Quando o voluntário compreende o significado
implícito da pergunta, ou seja, quando não se prende unicamente à forma, à capa que
reveste o que a pessoa realmente está perguntando, não há insistência, por um motivo
muito simples: a pergunta foi, efetivamente, respondida. Ocorrendo, entretanto,
extraordinariamente, insistência da pessoa para que o voluntário responda, ele mesmo,
a pergunta, o voluntário precisa sempre se lembrar de que emitir sua opinião não vai
ajudar a pessoa com quem está conversando: além de significar, em muitos casos, a

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emissão de um atestado de incapacidade da pessoa, há também o problema da
responsabilidade que se assume, porque o outro, muitas vezes, vê o voluntário, de
certa forma, como uma “autoridade”, atribuindo ao que ele diz, um valor particularmente
importante. No caso de insistências o voluntário pode, por exemplo, responder: “olha...
eu estou vendo que você deseja muito que eu te diga o eu penso, mas eu,
sinceramente, não vejo como isso vai poder te ajudar a lidar com essa situação”.
Vejamos um exemplo onde uma voluntária não mediu bem as possíveis
conseqüências de suas respostas: uma mulher relata que seu marido está
desempregado há três anos e que ela sente que ele se acomodou: ela o sustenta e
ainda recebe maus tratos. Tem se perguntado o que é que está fazendo com aquele
homem em casa. Segue-se, então, o seguinte diálogo:
Mulher: - Você é casada?
Voluntária: - Não, não... já fui, agora sou separada.
Mulher: - Tem filhos?
Voluntária: Sim, tenho, dois.
O diálogo prossegue normalmente até se encerrar sem problemas. Algumas semanas
depois, a mesma mulher liga para a voluntária e comunica seu desejo de se separar do
marido, mas manifesta a preocupação com a cobrança dos filhos (ela os tem). Ocorre,
então, novo diálogo:
Mulher: - No teu caso, quando você se separou, os teus filhos não te cobraram?
Voluntária: - Não... não; realmente não houve cobranças... eu conversei muito com eles
e eles entenderam e aceitaram numa boa.
Naturalmente a mulher, a partir desse momento, poderia se inclinar para a
separação, mais confiante, acreditando na viabilidade de seu desejo e contando que
seus filhos poderiam compreender e aceitar seus motivos. Mas ocorre que, além dos
filhos (os da voluntária e os da outra mulher) serem diferentes como pessoas, as
famílias (a da mulher e a da voluntária) pertencem a classes sócio-econômico-culturais
diferentes. Na comunidade onde a voluntária convive, é “normal” a mulher se separar
do marido; os rapazes e moças convivem bem com essa realidade. Isso, entretanto,
não ocorre com a outra mulher: em sua comunidade a mulher deve se “sacrificar até o
fim” para manter o casamento, que é “indissolúvel”. Os filhos dela, que por acaso são
homens, terão muita dificuldade para aceitar a atitude dessa mãe, que pensa em
“desfazer o lar e abandonar o marido, exatamente no momento em que ele mais
precisa dela, por estar desempregado”, de acordo com a visão dos filhos. A
responsabilidade pelas possíveis conseqüências das atitudes da mulher quanto a esse
problema, deverão ser, com certeza, divididos com a voluntária, que poderá, inclusive,
ser cobrada posteriormente pela mulher insatisfeita e mesmo por familiares dela.

9. A Quarta Condição
Como já foi visto no item 9.3. Congruência, do Capítulo I, são três as condições
facilitadoras do crescimento. Pode-se, contudo, postular uma quarta condição: o outro
deve perceber, pelo menos num grau mínimo, as atitudes (comportamento e palavras)
– compreensão empática, consideração positiva incondicional e congruência - do
voluntário. Caso isso não ocorra, não há relação de ajuda, dentro dos conceitos da
ACP, pois o doente que não ingere o remédio não pode ser considerado como tratado.

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Essa possibilidade ocorre freqüentemente nos casos de uso de drogas e álcool.
Quando a pessoa que entrou em contato está drogada ou alcoolizada, dificilmente
poderá perceber com clareza o que o voluntário está comunicando em termos da ACP.
Nesses casos, a recomendação é, depois de devidamente identificada essa
“impermeabilidade”, abreviar a ligação, precipitando sua finalização.
É importante observar que nem todas as pessoas que ingeriram álcool ou
usaram drogas estão nessa condição. O voluntário precisa usar de bom senso para
distinguir o que realmente está acontecendo, sem preconceito nem precipitações.

10. Masturbação
Os chamados "casos de masturbação" são aqueles em que a outra pessoa, seja
homem ou mulher, liga com o objetivo de transformar o(a) voluntário(a) em
acompanhante de seu processo de auto-excitação, cujo clímax é, naturalmente, o
orgasmo.
Para isso, muitas vezes solicita ao(à) voluntário(a) que lhe diga algo excitante,
com voz sensual, tentando torná-lo(a) co-participante de sua masturbação. Outras
vezes dissimula, tornando mais difícil a identificação do que realmente está ocorrendo
do outro lado da linha.
Nestes casos deve-se considerar alguns aspectos importantes:
 É preciso que o(a) voluntário(a) esteja preparado(a) para esse tipo de
contato; se fica chocado(a) torna-se incapaz de lidar com a situação. Normalmente a
masturbação não é considerada como expressão de alguma patologia (conquanto
possa ser), principalmente se o indivíduo mantém relações sexuais com freqüência
menor do que necessitaria para satisfazer-se. Ao mesmo tempo, também não deve ser
encarada como "falta de vergonha" ou coisa parecida. Todo ser humano tem
necessidade de sexo, sendo que para uns essa necessidade pode ser muito mais
expressiva do que para outros. Os treinamentos em RP podem ser de grande valia
para preparar o(a) voluntário(a) para lidar com esses tipos de casos, diminuindo o
impacto emocional que possam causar.
 A identificação da masturbação já em andamento, ou da intenção da pessoa
em se masturbar, nem sempre é fácil e exige perspicácia e prudência. Normalmente a
respiração, a voz e o assunto abordado denunciam esse tipo de ocorrência, mas não
necessariamente. Pessoas portadoras de problemas respiratórios, asmáticas por
exemplo, costumam apresentar um quadro de respiração e voz bastante semelhante. É
preciso discernimento e calma para não trocar um caso pelo outro. Mas quando o(a)
voluntário(a) percebe realmente tratar-se de masturbação é preciso abordar o assunto
abertamente, sem constrangimentos.
 Temos, ao longo dos últimos anos, baseado nossa abordagem a esse tipo
de caso na idéia de que quem liga para um desconhecido buscando companhia para
se masturbar está muito solitário, necessitando de atenção e calor humano. A partir
dessa visão, muitos voluntários se propõem, mesmo, a acompanhar a pessoa em sua
masturbação, até que chegue ao clímax e possa, então, conversar e, quem sabe,
vivenciar uma relação de ajuda. Essa visão “fraternal” desse tipo de procedimento da
pessoa que liga para o CVV para se masturbar, tem, com certeza, contribuído para que
isso tenha se tornado o problema que é hoje, com tantas chamadas desse tipo, que
causam, normalmente, grande constrangimento, principalmente às voluntárias.
 É preciso, contudo, refletir mais friamente sobre essa delicada questão.
Quem será essa pessoa que liga para uma instituição, cujo objetivo é plenamente

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conhecido de todos, qual seja, o de ajudar pessoas desesperadas, em sofrimento e as
que pensam em matar-se? Que pessoa procuraria excitar-se com a voz constrangida
de outra pessoa, que não deseja participar de sua masturbação? Quem quer chegar ao
clímax com alguém que não está excitado, que está, na verdade, manipulado,
envergonhado, subjugado, de certa forma? Quem se lembrou de estupradores fez uma
associação lógica. A essência dos dois comportamentos é basicamente a mesma; a
diferença está na força, na coação empregadas no estupro e ausentes nos casos de
masturbação por telefone. O prazer está, exatamente, no constrangimento da outra
pessoa. Quanto maior, mais excitante para o masturbador.
 Pode-se afirmar, portanto, que quem liga para o CVV para se masturbar, é
portador de uma doença, uma psicopatologia, a “perversão”, que, aliás, não tem
tratamento, por serem desconhecidas as suas causas.
 Fica claro, então, que a postura mais eficiente para esses casos, é o não-
constrangimento”.
 Isso não significa, contudo, o abandono da tentativa de reverter o processo.
O voluntário pode, por exemplo, dizer que compreende a necessidade dele (o outro) de
se masturbar, mas que gostaria de propor uma conversa, porque imagina que ele deva
estar se sentindo muito sozinho. Esse esforço para transformar a intenção da outra
pessoa pode dar certo e sempre vale a pena tentar.
 Mas, de qualquer forma, se a pessoa já está muito excitada e não consegue
mais interromper o processo ou se ela simplesmente não deseja conversar, o(a)
voluntário(a) deve informar que percebeu isso, que estará disponível para conversar
com ela em outra oportunidade, quando ela assim o desejar, mas que no momento terá
que desligar. Dito isso, o(a) voluntário(a) desliga o telefone.
Essa última atitude, a de desligar o telefone quando a pessoa insiste em se
masturbar, precisa ser adotada por todos os voluntários do Posto. Se a pessoa que se
masturba encontra algum(a) voluntário(a) que a acompanha até que atinja o clímax, ou
em outras palavras, que se deixa usar para atingir esse fim, muito provavelmente vai se
concentrar nele(a), contatando-o(a), preferencialmente em relação aos demais, para se
masturbar e poderá cobrar dos(as) outros(as) a mesma postura. É preciso que o grupo
chegue a um consenso e feche um acordo para padronizar a forma de atendimento a
esse tipo de caso.
 Uma última consideração diz respeito à possibilidade de algum voluntário se
sentir atraído, de forma não-consciente, por esse tipo de situação. Acompanhando a
masturbação de outra pessoa, pode experienciar certa excitação, sem que se dê conta
de estar, na verdade, sendo movido por motivações outras, que não a de ser útil a
alguém “solitário”. Abrir-se à própria realidade íntima e abordar o assunto em exercícios
de Vida Plena é sempre a melhor postura para quem deseja entrar em contato consigo
mesmo e caminhar em direção à plenitude.
 Mesmo sem motivações não-conscientes, o voluntário que adota essa
atitude precisa refletir sobre a ajuda que está oferecendo e suas conseqüências,
porque ao acompanhar o outro em sua masturbação, acaba se tornando “parceiro”
dele, mesmo sem o desejar, incentivando-o a ligar outras vezes em busca de novos
“parceiros”, o que tem gerado mal-estar e decepções em muitos voluntários,
principalmente nas mulheres, que se sentem agredidas e usadas.

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11. O "Papo Furado"
É comum observar-se o voluntário aborrecido, algo indignado, com a pessoa que
contatou o Posto ou nos exercícios de RP quando constata tratar-se do que se
convencionou chamar de "caso sem conteúdo emocional".
Muitas vezes, diante dessas situações e principalmente em contatos de primeira
vez, o voluntário lança mão da célebre pergunta "Você já conhece o nosso trabalho?",
já analisada no item 5. As Frases Feitas.
É preciso, contudo, não se precipitar. O outro pode estar testando o voluntário
para certificar-se de que é seguro prosseguir e comunicar o que realmente o fez ligar
(vide item 9.3. Congruência, do Capítulo I). Essa avaliação pode durar alguns minutos
ou algumas ligações. Não há pressa, assim como não há motivo para o voluntário
sentir-se usado. Afirmar que no CVV os voluntários estão disponíveis apenas para
conversar sobre "assuntos sérios", porque o CVV é uma instituição séria e sérios são
também seus voluntários, pode ser um sério equívoco, de conseqüências lamentáveis.
Apenas quando se tornem freqüentes as ligações e fique claro que o objetivo é
somente um bom papo furado, devido à solidão ou por qualquer outro motivo, e se a
ligação se alongar, é que o voluntário pode, com muita calma, com a delicadeza que
deve caracterizá-lo sempre, propor à pessoa que desligue, argumentando que há,
provavelmente, alguém necessitando de ajuda tentando entrar em contato com o posto,
mas deixando claro que a pessoa pode voltar a contatar novamente o CVV quando
desejar.
Mas, o que fazer, como se portar num diálogo como esse, "sem conteúdo
emocional"? A ACP não deve ser esquecida nesses casos, conquanto sua aplicação
possa ser mais restrita. Tentando não assumir posições extremas (por um lado a ACP
em sua plenitude e por outro, seu abandono completo e entrega ao total à conversa
ordinária), o voluntário precisará de habilidade para não transformar a conversa numa
chatice, nem se esquecer de sua responsabilidade de facilitador do processo de
crescimento da outra pessoa. Vejamos um exemplo real, onde P é a pessoa que
procurou o CVV e V é o voluntário:

P: Eu estava vendo o Sem Censura essa semana... você viu o Sem Censura essa
semana?
V: Não, não vi, não...
P: Apareceu lá uma tal de Fulana, dizendo que inhame cura dengue. Eu já tinha lido
isso num livro... escrito por Sicrana de tal. Você conhece a Sicrana?
V: Não, não... realmente não conheço.
P: Pois é, ela descreve as propriedades do inhame e afirma que ele pode até curar a
dengue. Mas as pessoas não estavam acreditando muito nela, não. Mas, tanto isso é
verdade, que antigamente existia na farmácia um extrato de inhame... era para depurar
o sangue; o inhame aumenta as propriedades imunológicas do organismo...
V: Ou seja, o inhame realmente tem propriedades terapêuticas, medicinais... Ela não
estava inventando.
P: Pois é, ele tem... E é barato, pode ser encontrado em qualquer feira ou
supermercado; a população pode comprar, você entende?
V: É um recurso terapêutico de fácil acesso...
P: É isso mesmo!...
Como se pode observar, o "papo" correu naturalmente, sem que o outro
percebesse que havia um esforço de compreensão por parte do voluntário. Mesmo

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abordando um assunto "sem conteúdo emocional", foi possível valorizar a pessoa,
dando valor ao que ela disse e mantendo-a como centro do diálogo.
O voluntário, contudo, mesmo recebendo contatos freqüentes da mesma
pessoa, não pode esquecer-se de que está de plantão no CVV. Se se distrai, acaba
assimilando que a pessoa com quem conversa é alguém de seu círculo intimo de
amizade; na verdade não é. Por mais intimidades a pessoa tenha revelado ao
voluntário, este precisa, para sua própria segurança, para segurança de seus colegas e
do CVV, ser capaz de mantê-la na condição de "pessoa que procura", conservando-se,
por sua vez, como voluntário de plantão, a serviço do CVV.

12. A Postura dos Voluntários


Eventualmente o voluntário se vê em situação difícil, sem saber o que fazer, o
que dizer a outra pessoa, como se estivesse num beco-sem-saída, sem meios de
reverter o que já aconteceu. Tenta em vão “escapulir” da “saia-justa, mas tem
dificuldades. Ocorre que algumas vezes, e normalmente ele não se dá conta disso, foi
ele próprio - o voluntário, o construtor da situação desagradável em que se encontra,
pela inobservância do que poderia ser definido como a "pragmática dos atendimentos”,
ou seja, o conjunto de regras que devem ser seguidas nas relações com as pessoas
que procuram o CVV em busca de auxílio.
Talvez pudéssemos priorizar essas regras, que se forem observadas, trarão
mais segurança a outra pessoa, ao voluntário, ao posto e ao CVV:
1ª. Aplicação da ACP: Em qualquer contato, a primeira preocupação do
voluntário deve ser a tentativa de aplicação da Abordagem Centrada na Pessoa, que
não terá lugar em raríssimas ocasiões, como na insistência de masturbação, quando o
outro está alcoolizado ou drogado (note-se que nestes casos o outro não consegue
perceber as atitudes facilitadoras adotadas pelo voluntário) e nos suicídios em
andamento, quando o tempo deve ser utilizado na tentativa de socorrer a pessoa que
está morrendo. Para isso é necessário que tenha, como ponto de partida, uma visão do
ser humano coerente com a preconizada pela ACP, conheça seus fundamentos, saiba
como colocá-la em prática numa relação de ajuda e esteja comprometido com a
promoção de seu desenvolvimento pessoal (vide item 9.3. Congruência, do Capítulo
I). Se se sente despreparado ou se não crê na eficiência da ACP, o voluntário terá, com
certeza, muito mais dificuldades para realizar de maneira eficiente as relações de ajuda
em seu plantão.
2ª. O voluntário de plantão tem um compromisso com o CVV: o voluntário
nunca deve se esquecer de que, durante seu plantão, está prestando um serviço e o
está fazendo em nome de uma instituição - o CVV. As 41/2h de seu plantão devem ser
dedicadas à prevenção do suicídio e ao apoio emocional das pessoas com quem entra
em contato. Suas necessidades pessoais, suas carências, seus desejos e problemas
precisam ficar de lado, para que possa se dedicar ao outro. Esquecer esse
compromisso é transformar a relação de ajuda num encontro vulgar (comum, ordinário,
trivial), como qualquer outro da vida diária, que em nada tem a ver com a prevenção do
suicídio e o apoio emocional. É misturar os papéis de quem busca ajuda e de quem se
propõe a ajudar. O plantão do CVV não pode ser encarado, sob nenhuma hipótese,
como oportunidade do voluntário suprir suas próprias necessidades pessoais, sejam
elas de que tipo forem. Como o trabalho do CVV é fundamentalmente uma atividade de
grupo, onde o individualismo não pode ter lugar, a conduta de cada voluntário durante

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seu plantão acaba sendo a sua contribuição pessoal para o fortalecimento ou
enfraquecimento da instituição e para a formação da imagem, boa ou má do CVV
perante a sociedade.
3ª. O voluntário não é um "resolvedor" dos problemas alheios: as pessoas
que procuram o CVV devem permanecer numa categoria muito especial: são a razão
da existência do CVV e por isso devem ser respeitadas. Contudo, suas demandas, que
podem ser dos mais variados matizes (solidão, carências afetiva e sexual, necessidade
financeira, desejo de dominar e criar conflitos - contatos de sociopatas etc.), precisam
ser assimiladas com cautela e discernimento. Diante dessas demandas variadas, o
voluntário, não pode se esquecer do que está se propondo oferecer e da
responsabilidade que assumiu com o CVV. Seu objetivo não é o de resolver o
problema da outra pessoa (o problema da pessoa é dela e cabe a ela resolvê-lo); é
criar condições favoráveis para que ela própria, superando suas barreiras emocionais,
lance mão de seus recursos interiores e os enfrente, da maneira que julgar mais
adequada.
Isso pode parecer o óbvio, tema batido e rebatido. Entretanto, diante das
demandas da outra pessoa, o voluntário pode se sensibilizar além do que deveria,
ultrapassando os limites da relação de ajuda e quebrando normas de segurança,
invadindo a vida da pessoa, a privacidade dos colegas e o sigilo, desrespeitando quem
procurou o CVV.
Quando, por exemplo, o voluntário descreve a aparência de um colega de outro
horário, informa sua profissão etc. ao outro, está invadindo a privacidade dele; quando
convida a pessoa que o procurou (normalmente com quem mantém contatos
freqüentes) para participar de algum evento do posto, está invadindo a privacidade dos
colegas; quando pega informações da pessoa (seja o telefone, endereço ou qualquer
outra), anota um pedido dela no Diário de Plantão ou no quadro de avisos (seja ele
qual for), está quebrando o sigilo em relação ao outro; quando oferece ajuda financeira
ou indica algum profissional que "atende de graça", está focando sua atenção no
problema da pessoa, desejando resolvê-lo.
Em todos esses casos, está indo contra normas de conduta que ele próprio, o
voluntário, aceitara ao ser admitido ao quadro de voluntários do CVV.
Em resumo, o outro pode querer tudo, mas o voluntário precisa se restringir a
dar o que é preconizado pelo CVV: ajuda emocional, baseada na ACP.

13. Os Pedidos de Doação


Eventualmente surgem, em atendimentos pessoais principalmente, pedidos de
ajuda material (comida, doações diversas, dinheiro etc.) ao voluntário. Na maioria dos
casos, a pessoa explica sua situação, sem deixar transparecer sua intenção de pedir
uma doação. Os relatos, quase sempre muito comovedores, vão sensibilizando o
voluntário, até que, em determinado momento, ocorre o pedido. Se o voluntário não
está devidamente preparado, pode acabar oferecendo as roupas que estão guardas
para o bazar, a comida que está na geladeira, tirando do seu bolso algum dinheiro ou
indicando a instituição assistencial que freqüenta, para que a pessoa busque ajuda lá.
Tudo isso seria muito natural, se o voluntário não estivesse nesse momento a
serviço do CVV, instituição que esclarece aos que desejam fazer parte de seus
quadros, que esse tipo de ajuda não é permitida aos seus voluntários, pois a ajuda que
o CVV oferece é limitada ao âmbito emocional.

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O voluntário que age por conta própria, desconsiderando o grupo do qual faz
parte, contribui para a fragmentação, para o enfraquecimento da instituição que ele
tanto preza, em qualquer circunstância.
Nesse caso específico, ao receber uma doação, a pessoa, automaticamente,
transforma o posto e o CVV em referências para a solução desse tipo de problema.
Não será de se estranhar se a pessoa retornar em outro dia e cobrar de um colega a
mesma postura adotada por aquele que doou qualquer coisa.

14. Os “Contatos Freqüentes”


Muito se ouve dos voluntários que o público do CVV é muito restrito, que sempre
ligam as mesmas pessoas, os chamados “clientes” ou “habitués”, o que lhes causa, de
uma maneira geral, descontentamento, diminuindo seu entusiasmo com o trabalho.
Com relação a esse assunto, é preciso tecer algumas considerações:
 Divulgação: apesar dos esforços realizados nos últimos tempos para se
incrementar a divulgação, é preciso reconhecer que há muito ainda a ser feito e que a
divulgação tem que ser constante e focada no público alvo, os que podem necessitar
de ajuda emocional. Normalmente os postos se concentram na divulgação para
conquistar voluntários. Apesar de não ser um motivo decisivo, a divulgação tem sua
influência na ocorrência desse tipo de contato, pois, como é natural, se mais pessoas
souberem do CVV, haverá maior diversidade de contatos.
 Outras Causas: talvez o que realmente incomode os voluntários nesse tipo
de caso não seja exatamente o fato de uma pessoa conhecida ligar novamente, mas o
caso, o assunto, o tema ser o mesmo das vezes anteriores, com pequenas variações.
Para se compreender melhor esse tipo de ocorrência será preciso analisar alguns
aspectos diferentes do problema, que podem estar, na verdade, intimamente
relacionados.
As atitudes facilitadoras do crescimento, se bem efetivadas pelo
voluntário, criarão as condições favoráveis ao crescimento (à mudança) da pessoa
(vide item 10. Os Efeitos das Atitudes Facilitadoras do Crescimento, do Capítulo I).
Não serão, contudo, garantia de mudança instantânea, de solução para todos os
problemas e conflitos. É mais que natural que as pessoas que procuram o CVV em
busca de ajuda desejem, e precisem, contar com a ajuda de seus voluntários por um
tempo (algumas semanas, pelo menos), em muitos casos, para chegar ao ponto de
prescidir da ajuda. Quanto mais complexo o problema, mais tempo é provável que
demande para ser equacionado. Cabe ao voluntário não criar expectativas, que podem
se transformar facilmente em frustrações, que por sua vez podem assumir a feição de
falta de paciência, intolerância e cobranças ao outro.
Será que o voluntário está sendo capaz de realizar as relações de ajuda
conforme preconizado pela ACP? É preciso destacar que repetir algumas frases feitas,
responder com algumas interjeições (hum-hum etc.) e perguntar mecanicamente “como
é que você está se sentindo” nada tem a ver com as atitudes libertadoras dos impulsos
construtivos e realizadores dos potencias elevados da vida. Isso significa que o
voluntário não-capacitado não consegue contribuir para desenvolvimento da pessoa,
criando, algumas vezes, ele mesmo, mais obstáculos a esse desenvolvimento, com
intervenções inadequadas. Conforme visto no item 7. A Relação de Ajuda da
Abordagem Centrada na Pessoa, do Capítulo I, cabe ao voluntário conhecer a teoria
básica da ACP, dominar sua prática e viver um processo constante de desenvolvimento
interior para que possa se habilitar a ajudar as pessoas que procuram o CVV. Além

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disso, a intimidade, que ocorre com certa freqüência, nos casos de contatos
constantes, pode anular a efetivação das possibilidades libertadoras da ACP: o
voluntário passa a desenvolver um diálogo comum com a outra pessoa, ao invés de um
diálogo de ajuda.
Diante de suas dificuldades, o voluntário num movimento de defesa, para
preservar a imagem de si, pode voltar-se contra o outro, responsabilizando-o por seus
próprios embaraços: “Esse cara é muito chato... repete sempre a mesma coisa!” ou
“Não agüento mais essa mulher, sempre com o mesmo papo...”, são possibilidades da
efetivação do mecanismo de defesa, citado. Esse mecanismo pode atuar não somente
nesse tipo de situação, mas em todas em que poderia ficar claro para o voluntário o
seu despreparo e inabilidade. É também possível que esse tipo de comportamento seja
uma reação a algo trazido pelo outro, que afetou o voluntário, mas de tal modo que ele
não pôde perceber. Sentindo-se, de alguma forma, ameaçado pela pessoa, o voluntário
pode erguer suas defesas, elaborando uma determinada idéia da pessoa, de forma a
distanciar-se dela e sentindo-se incomodado quando entra em contato com ela. Mais
uma vez, o desejo de integrar-se, de estabelecer um diálogo franco e aberto consigo
mesmo e os exercícios de Vida Plena, podem ser de grande utilidade.
Por outro lado, há indivíduos que têm estabelecido em si, que são
inconvenientes e estão convencidos de que são “chatos”. Em seus relacionamentos,
buscam, angustiadamente, a confirmação desse auto-conceito. Quando o voluntário se
aborrece, quando perde a paciência e comunica, direta ou indiretamente, implícita ou
explicitamente, que o outro é inoportuno, desagradável ou maçante, deixa de ser
terapêutico (no sentido lato) e acaba confirmando a auto-imagem depreciativa da outra
pessoa, o que, naturalmente, em nada contribui para que ela se modifique, muito pelo
contrário.
Uma última consideração sobre esse assunto: quando é que alguém
precisa repetir algo que disse? A resposta é simples e objetiva: quando não é
compreendido por seu interlocutor. Se alguém repete o mesmo assunto várias vezes,
portanto, é possível que ainda não tenha se sentido empaticamente compreendido.
Conforme visto anteriormente, nem tudo o que o outro diz (explicitamente) é o que ele
está realmente querendo dizer. Enquanto não for empaticamente compreendido, é
possível que o outro continue a repetir indefinidamente sua história. Cabe ao voluntário
tentar compreende-lo. Questionar-se sobre os porquês das dificuldades de se
relacionar bem e de compreender o outro, também pode ser muito útil nesses casos.

15. A Solidão
Solidão significa abandono e angústia ou liberdade e prazer?
A solidão é, possivelmente, o sentimento mais freqüente nos contatos que ocorrem no
CVV. Convém, então, conhecê-la bem para que se possam ter procedimentos
adequados diante das diversas situações que a envolvem e com as quais se depara o
voluntário em seus plantões.
Em primeiro lugar, seria interessante buscar-se uma definição de solidão. Um
dicionário de língua portuguesa poderá nos informar que solidão é um "estado de quem
se acha ou se sente desacompanhado ou só; isolamento". Do ponto de vista
psicológico, essa definição é bastante incompleta, mas destaca um determinado
aspecto da solidão que também é importante: o isolamento.

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O isolamento é um significado usual, lato, da palavra solidão. Posso dizer, por
exemplo, que gosto de caminhar na Floresta da Tijuca, porque aprecio a solidão da
qual desfruto quando faço isso. Na verdade estou afirmando que gosto do isolamento
momentâneo que a caminhada na Floresta me proporciona.
No isolamento, então, o indivíduo está geográfica, espacialmente só. Pode se
encontrar, por exemplo, perdido no meio de um deserto, trabalhando num farol de
alguma ilha distante ou simplesmente sozinho em sua casa de veraneio.
O isolamento pode, portanto, não ser tão incômodo quanto possa parecer à primeira
vista, podendo mesmo, ser buscado pela pessoa para relaxar, ler ou escrever algo,
meditar, orar etc.. Nesses casos, a pessoa pode nem se dar conta de que está sozinha,
isolada, se for esta uma experiência prazerosa para ela.
Mesmo cercado de pessoas o indivíduo pode estar, contudo, isolado, por não se sentir
próximo a nenhuma delas. É quando isolamento assume o significado de separação.
Pode ser o caso, por exemplo, de um estrangeiro que se encontra recém chegado a
um país estranho ou de pessoas que, por sua raça, credo ou condição sócio-
econômico-cultural, são discriminadas nas comunidades onde têm que viver.
O isolamento pode ser, também, uma forma infantil de comunicar descontentamento,
mágoa ou efetivar vingança.
Indivíduos portadores de certas psicopatologias, como depressão, esquizofrenia e
autismo, podem, igualmente, se isolar dos demais. Mas nesses casos haverá também
um isolamento psicológico.
O isolamento pode, portanto, gerar ou não um sentimento de solidão.
Para conhecermos melhor esse sentimento – a solidão, podemos iniciar citando o que
se poderia chamar de uma solidão existencial, que acomete a todos os indivíduos:
fomos lançados ao mundo e temos que viver a vida fundamentalmente sós. Essa
solidão que, na verdade, é conseqüência da liberdade de que o ser humano desfruta, o
preço que tem que pagar para usufruí-la, fica mais nítida nos momentos capitais da
vida: no nascimento, na morte, na tomada de decisões cruciais ou quando somos
obrigados a suportar o peso de acontecimentos funestos. É quando nos sentimos
desamparados, amedrontados, algumas vezes desejando não-existir.
É essa sensação, de fragilidade, de abandono, de amedrontamento que o indivíduo
que sente solidão experiencia.
O temperamento de cada um estabelecerá uma tendência maior ou menor ao
isolamento e à solidão. Diante das circunstâncias da vida, essa tendência poderá
amenizar ou agudizar o isolamento e a solidão. Há, entretanto, acontecimentos que,
por serem extremamente dolorosos para o indivíduo, podem suplantar a mais intensa
tendência ao convívio e à superação.
Quase sempre associamos a solidão à ausência de convívio, entendendo que o
solitário não convive com ninguém. Mas essa é apenas uma “meia-verdade”. Quando o
indivíduo está só, está, na realidade, convivendo consigo mesmo, de maneira mais
intensa. Esse convívio, contudo, pode ser prazeroso ou extremamente penoso.
Quando, ao longo de sua vida, a pessoa aproveitou suas experiências para promover
seu crescimento, desenvolvendo suas potencialidades, a partir da Tendência
Atualizante, assumindo suas escolhas e, portanto, a responsabilidade por sua
existência, provavelmente se sentirá à vontade, sem incômodos, em sua própria
companhia.
Se, ao contrário, o indivíduo, ao longo de sua vida, fez escolhas não-autênticas (que
não tiveram por base sentimentos, valores e necessidades verdadeiros), se não se

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desenvolveu quanto poderia até aquela altura de sua existência, poderá sentir-se
frustrado, angustiado, vazio, ansioso, ter pouca estima por si mesmo (baixa auto-
estima; olha para si e não gosta do que vê) e julgar-se incapaz de lidar com sua
liberdade existencial. Esse convívio incômodo pode, facilmente, transformar-se em
lembranças desagradáveis, cobranças e remorso, num diálogo consigo mesmo (ou
monólogo) de inquirições, imprecações (praguejar, amaldiçoar) e insultos, tornando o
indivíduo um crítico impiedoso de si mesmo.
Além desse convívio incômodo, do qual a pessoa não pode livrar-se naturalmente,
ocorre também, nesses casos, o surgimento de um medo: o medo de perder o controle
sobre os próprios pensamentos e sentimentos, ou seja, de perder a consciência de si.
A presença dos outros serve para estabelecer limites para nós e sem ela algumas
pessoas parecem se sentir perdidas ou desorientadas. Daí o medo, o pavor que
sentem diante da solidão. Essas pessoas se utilizam de mil recursos para se distrair,
afastar a solidão e não conviver consigo mesmas.
Atualmente, mais que em qualquer outro tempo, existem muitos meios de se fugir da
solidão, desde os proporcionados pelos avanços tecnológicos (TV, rádio, vídeo K7,
DVD, Internet etc.) aos comportamentos comuns, às vezes compulsivos, como o
chopinho freqüente com os amigos, certos relacionamentos afetivos/sexuais, a adesão
à instituições ou clubes, uso de drogas etc.. Tudo isso, provavelmente, não resolverá o
problema da solidão, que poderá voltar a atormentar o indivíduo.
Essa análise superficial da solidão traz implicações práticas para o voluntário do CVV:
 Inicialmente é preciso considerar a importância da ACP especificamente
para esse tipo de situação: primeiramente pela possibilidade da criação de condições
facilitadoras do crescimento do outro, o que vai ao encontro de uma necessidade
profunda de quem vivencia a solidão: melhoria do diálogo consigo mesmo, do auto-
conhecimento, possibilidade de uma maior aceitação de si e a conquista de maior
congruência. Destaque-se, nesse ponto, a importância da compreensão empática, que
é, eficiente recurso contra a solidão, pois se sentindo compreendido empaticamente, o
outro, automaticamente, percebe que não está mais só, que alguém está tão próximo
dele que é capaz de perceber as menores nuanças de suas experiências.
 Outro aspecto relevante é o desconforto e o mal-estar experimentados pelo
voluntário quando a conversa deixa de ter o “aspecto de sofrimento”, quando o assunto
assume a forma do corriqueiro, do habitual e os sentimentos parecem desaparecer
(quando a pessoa liga, por exemplo, para falar de algum assunto de menor
importância, como o andamento da novela das oito). Muitos entendem que, nesses
casos, devem abreviar a ligação, pois sua disponibilidade é para os que “necessitam de
ajuda”. A pessoa que está tentando driblar sua solidão pode não utilizar em seu diálogo
palavras e formas que a associem imediatamente ao sofrimento, mas seu contato
também é um pedido de socorro. Sua aflição, apesar de presente, pode não ser
evidente. Fritando um bife ou de vassoura na mão, falando banalidades, a outra pessoa
sente uma angústia que a sensibilidade do voluntário precisa captar. Ora, conversar
(sem se esquecer de sua proposta fundamental: ajudar as pessoas que procuram o
CVV) com alguém que sente solidão, mesmo que seja sobre o cachorro que ficou
doente, sobre o custo de vida ou mesmo acompanhar a pessoa durante algum tempo,
enquanto ela realiza alguma tarefa doméstica, é sim uma atividade das mais
importantes, perfeitamente de acordo com a proposta de valorização da vida do CVV.
 Como em qualquer outro diálogo de ajuda, o voluntário precisa estar atento
ao que ocorre na relação e, se for o caso, impor limites ao contato que contemplem

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tanto as necessidades do outro, quanto às suas próprias e às das demais pessoas que
possam estar tentando se comunicar com o CVV. O voluntário precisa deixar de ver a
pessoa solitária (que não tem outros problemas a não ser a própria solidão), como
alguém que está tomando a vez de outra pessoa que possa estar “realmente”
precisando de ajuda. Deve passar a vê-la como quem tem esse problema específico –
a solidão. Assim, o voluntário pode dedicar a ela mais tempo e lhe dar a atenção que
ela realmente necessita e merece. Que a proposta não seja acabar com a solidão da
pessoa, mas amenizar a angústia, a ansiedade e o desconforto provocados pela
solidão, permanecendo o voluntário ao lado da pessoa por algum tempo.
 Um último aspecto diz respeito ao significado que a solidão tem para o
próprio voluntário. Se a solidão é para ele assustadora, intimidativa, se ele mesmo se
apavora diante dela, então, naturalmente, terá dificuldades de manter um diálogo com
outra pessoa que vive essa experiência, orientado pela ACP. É possível que tente
despachar o outro ou perguntar a ele se já pensou nesse ou naquele recurso, se já fez
isso ou aquilo contra a solidão, porque, nesse caso, já não estará sentindo a solidão do
outro, mas a sua própria. Falar sobre sua solidão em exercícios de RP (Autoplays) e
Vida Plena pode ser um recurso interessante para compreendê-la melhor e aceitar
mais as experiências que a tornaram tão desagradável.

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Referências Bibliográficas

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