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Benfeitor ignorado

Olavo de Carvalho

Época, 21 de julho de 2001

Ele lutou pela verdadeira “educação para a cidadania”

O falecimento de Mortimer J. Adler, aos 98 anos, há cerca de um


mês, não foi registrado pela imprensa nacional. Duvido que não
haja pelo menos uns poucos brasileiros que devam a esse
filósofo e educador o melhor do que aprenderam nesta vida – mil
vezes melhor do que poderiam ter aprendido em qualquer curso
universitário ou na leitura diária de todas as publicações culturais
impressas nesta parte do mundo. Mas, no geral, a cultura
nacional está hoje nas mãos de pessoas que ignoram Mortimer
J. Adler. Se não o ignorassem, não seriam o que são, nem a
cultura nacional a miséria que é.

A diferença básica entre a classe falante brasileira e a americana


que ela tanto inveja é, simplesmente, que esta recebeu na
escola uma liberal education, e ela não. Adler foi a estrela
máxima e a encarnação mesma da liberal education nos
Estados Unidos – o educador que, em última análise, fez a
cabeça da elite intelectual mais ágil do país mais forte do mundo.

Liberal education é, para resumir, a educação da mente para os


debates culturais e cívicos mediante a leitura meditada dos
clássicos. Acabo de escrever esta palavra, “clássicos”, e já vejo
que não sou compreendido. A falta de uma liberal education dá
a esse termo a acepção estrita de obras literárias famosas e
antigas, lidas por lazer ou obrigação escolar. Um clássico, no
sentido de Adler, não é sempre uma obra de literatura: entre os
clássicos há livros sobre eletricidade e fisiologia animal, os
milagres de Cristo e a constituição romana: coisas que ninguém
hoje leria por lazer e que geralmente são deixadas aos
especialistas. Mas um clássico não é um livro para especialistas.
É um livro que deu origem aos termos, conceitos e valores que
usamos na vida diária e nos debates públicos. É um livro para o
homem comum que pretenda ser o cidadão consciente de uma
democracia. Clássicos são livros que criaram as noções de
realidade e fantasia, senso comum e extravagância, razão e
irrazão, liberdade e tirania, absoluto e relativo – as noções que
usamos diariamente para expressar nossos pontos de vista. Só
que, quando o fazemos sem uma educação liberal, limitamo-nos
a repetir um script que não compreendemos. Nossas palavras
não têm fundo, não refletem uma longa experiência humana nem
um sólido senso de realidade, apenas a superfície verbal do
momento, as ilusões de um vocabulário prêt-à-porter. A
educação liberal consiste não somente em dar esses livros a ler,
mas em ensinar a lê-los segundo uma técnica de compreensão
e interpretação que começa com os eruditos greco-romanos e
atravessa, como um fio condutor, toda a história da consciência
ocidental.

A liberal education é uma tradição nos EUA desde antes da


Independência. Adler lutou como um leão para que se tornasse
patrimônio de todos os americanos, mas seu sucesso foi só
parcial. As universidades principais têm, todas, seus programas
de liberal education, mas no ensino médio a idéia não pegou por
completo. Hoje a diferença essencial entre a rede de escolas
públicas, fábricas de delinqüentes, e as escolas de elite que
formam os governantes e os líderes intelectuais americanos é
que estas se atêm fielmente à velha educação liberal e aquelas
se deleitam em experimentos pedagógicos de “engenharia
comportamental” – muitos dos quais inspiram os programas de
nosso MEC.

Fala-se muito, hoje, em educação para a cidadania. Mas só há


duas maneiras de formar o cidadão: a educação liberal e a
manipulação ideológica. Ou o sujeito aprende a absorver os
dados da “grande conversação” entre os espíritos superiores de
todas as épocas e a tomar posição sabendo do que fala, ou
aprende a falar direitinho como seus mestres mandaram, usando
os termos com a conotação que desejam, segundo os interesses
dominantes do dia. A opção brasileira está feita. Por isso, neste
país, poucos souberam da vida ou da morte de Mortimer J. Adler.

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