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DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

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TRATADO DE DIREITO ELEITORAL

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LUIZ FUX
LUIZ FERNANDO CASAGRANDE PEREIRA
WALBER DE MOURA AGRA
Coordenadores

Luiz Eduardo Peccinin


Organizador

DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Belo Horizonte

CONHECIMENTO JURÍDICO

2018

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TRATADO DE DIREITO ELEITORAL

Coordenadores Organizador Comissão Científica Comissão Executiva


Luiz Fux Luiz Eduardo Peccinin Roberta Maia Gresta Maitê Chaves Marrez
Luiz Fernando Casagrande Pereira Frederico Franco Alvim Paulo Henrique Golambiuk
Walber de Moura Agra João Andrade Neto Waldir Franco Félix Júnior

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CONHECIMENTO JURÍDICO

Luís Cláudio Rodrigues Ferreira


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D597 Direito Constitucional Eleitoral / Luiz Fux, Luiz Fernando Casagrande Pereira, Walber de
Moura Agra (Coord.); Luiz Eduardo Peccinin (Org.). – Belo Horizonte : Fórum, 2018.

575 p.
Tratado de Direito Eleitoral
V. 1

ISBN da Coleção: 978-85-450-0495-0


ISBN do Volume: 978-85-450-0496-7

1. Direito Eleitoral. 2. Direito Constitucional. 3. Direito partidário. 4. Ciência


Política. I. Fux, Luiz. II. Pereira, Luiz Fernando Casagrande. III. Agra, Walber de Moura.
IV. Peccinin, Luiz Eduardo. V. Título.

CDD 341.28
CDU 342.8

Informação bibliográfica deste livro, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura (Coord.); PECCININ,
Luiz Eduardo (Org.). Direito Constitucional Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2018. 575 p. (Tratado de
Direito Eleitoral, v. 1.) ISBN 978-85-450-0496-7.

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SUMÁRIO

PARTE I
DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

CAPÍTULO 1
UM OLHAR HERMENÊUTICO SOBRE O DIREITO ELEITORAL
LENIO LUIZ STRECK........................................................................................................................... 17
1.1 Introdução.................................................................................................................................... 17
1.2 O (Novo) CPC e o direito eleitoral: sobre a necessidade de pensar o direito como
um todo..........................................................................................................................................18
1.3 Sobre o problema do ativismo no direito eleitoral: ou de quando o direito não
é mais a “régua”.......................................................................................................................... 22
1.4 Da “teoria” para a “prática”: ou de como não há nada tão prático como uma teoria ...... 24
1.5 Considerações finais................................................................................................................... 27
Referências................................................................................................................................... 28

CAPÍTULO 2
INTERCONEXÕES DO DIREITO ELEITORAL COM O DIREITO CONSTITUCIONAL
EMILIANE ALENCASTRO.................................................................................................................. 29
2.1 Introdução.................................................................................................................................... 29
2.2 A força da supremacia constitucional e dos demais instrumentos de defesa da
hierarquia normativa.................................................................................................................. 29
2.3 A construção do direito eleitoral pátrio à luz da história das constituições do Brasil.... 33
2.4 O tratamento do direito eleitoral sob a égide da Constituição de 1988.............................. 40
2.5 Conclusão..................................................................................................................................... 44
Referências................................................................................................................................... 44

CAPÍTULO 3
DIÁLOGOS EM TORNO DE UM CONCEITO INDETERMINADO?
AS INELEGIBILIDADES, O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O CONGRESSO
NACIONAL
MIGUEL GUALANO DE GODOY, EDUARDO BORGES ESPÍNOLA ARAÚJO.................... 49
3.1 Introdução.................................................................................................................................... 49
3.2 A natureza jurídica das inelegibilidades................................................................................. 51

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3.3 A interpretação judicial das inelegibilidades......................................................................... 55
3.4 O diálogo institucional sobre as inelegibilidades.................................................................. 60
3.5 Considerações finais................................................................................................................... 64
Referências................................................................................................................................... 65

CAPÍTULO 4
CONSTITUCIONALISMO E SOBERANIA POPULAR: FUNDAMENTOS DO
DIREITO ELEITORAL DEMOCRÁTICO
BRUNO GALINDO................................................................................................................................ 67
4.1 Introdução: as relações entre direito eleitoral e democracia................................................ 68
4.2 O antagonismo democracia x ditadura em Karl Popper....................................................... 69
4.3 Os graus de autoritarismo e de democracia nos regimes políticos segundo
Szmolka Vida............................................................................................................................... 70
4.4 Constitucionalismo em regimes autoritários e democráticos: comparações
possíveis........................................................................................................................................ 77
4.5 Constitucionalismo e conformação do processo político segundo Karl Loewenstein.... 78
4.6 Fundamentos de um direito eleitoral democrático................................................................ 81
4.7 Conclusão: por um direito eleitoral a serviço da soberania popular.................................. 89
Referências................................................................................................................................... 90

CAPÍTULO 5
REVISITANDO O DIREITO ELEITORAL: DIREITOS FUNDAMENTAIS,
DEMOCRACIA E O NOVO CONSTITUCIONALISMO
LUIZ FUX, CARLOS EDUARDO FRAZÃO...................................................................................... 93
5.1 Considerações iniciais ............................................................................................................... 93
5.2 O marco teórico: o novo direito constitucional ..................................................................... 94
5.3 A releitura do direito eleitoral à luz da axiologia constitucional........................................ 96
5.3.1 Levando a liberdade de expressão a sério............................................................................... 96
5.3.2 A deferência à soberania popular sem olvidar dos cânones de moralidade da
Lei da Ficha Limpa.....................................................................................................................101
5.3.3 Proporcionalidade e razoabilidade ........................................................................................104
5.4 Conclusões..................................................................................................................................108

PARTE II
ABRANGÊNCIA DOS DIREITOS POLÍTICOS

CAPÍTULO 1
A DEMOCRACIA E A RESTRIÇÃO AOS DIREITOS POLÍTICOS
NÉVITON GUEDES............................................................................................................................. 111
1.1 As eleições e a democracia........................................................................................................111
1.2 O poder de limitar a cidadania também encontra limites...................................................115

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CAPÍTULO 2
DIREITOS POLÍTICOS E SUAS RESTRIÇÕES
FERNANDO NEVES DA SILVA, CRISTINA MARIA GAMA NEVES DA SILVA................ 121
Referências................................................................................................................................. 138

CAPÍTULO 3
O SACRIFÍCIO DOS DIREITOS POLÍTICOS ATRAVÉS DA PENA DE
INELEGIBILIDADE
VÂNIA SICILIANO AIETA................................................................................................................ 141
3.1 Apresentação...............................................................................................................................141
3.2 O asseguramento constitucional dos direitos políticos.......................................................143
3.3 A necessária distinção entre ativismo judicial e judicialização da política......................149
3.4 O sacrifício dos direitos políticos através da pena de inelegibilidade..............................151
3.5 Conclusões................................................................................................................................. 154
Referências..................................................................................................................................160

CAPÍTULO 4
DIREITOS POLÍTICOS DAS PESSOAS JURÍDICAS?
ADRIANO SANT’ANA PEDRA........................................................................................................ 165
4.1 Introdução...................................................................................................................................165
4.2 Povo e cidadania.........................................................................................................................165
4.3 Participação de pessoas físicas e jurídicas nas decisões da polis........................................168
Referências..................................................................................................................................173

CAPÍTULO 5
SUFRÁGIO, VOTO E SISTEMA ELEITORAL NO BRASIL: DESCAMINHOS E
CAMINHOS DA INCLUSÃO POLÍTICA
FILOMENO MORAES......................................................................................................................... 175
5.1 Introdução ..................................................................................................................................175
5.2 Sufrágio, voto e sistema eleitoral no constitucionalismo brasileiro.................................. 177
5.2.1 A Constituição de 1824............................................................................................................. 177
5.2.2 A Constituinte de 1890/1891 e a Constituição de 1891..........................................................179
5.2.3 A Constituinte de 1933/1934 e a Constituição de 1934.........................................................181
5.2.4 A Constituinte e a Constituição de 1946.................................................................................182
5.2.5 O Congresso Constituinte e a Constituição de 1988.............................................................183
5.3 Algumas considerações sobre o processo eleitoral brasileiro.............................................185
5.4 O “eterno retorno” da reforma política e o sistema eleitoral..............................................187
5.5 Considerações finais..................................................................................................................188
Referências ..............................................................................................................................................189

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CAPÍTULO 6
FUNDAMENTOS DA DEMOCRACIA E O VOTO FACULTATIVO
MARCO ANTÔNIO MARTIN VARGAS, RICHARD PAE KIM............................................... 193
6.1 Introdução...................................................................................................................................193
6.2 Democracia, participação política e seus fundamentos – Uma resenha descritiva........194
6.3 Cidadania e sufrágio..................................................................................................................196
6.4 O voto e sua natureza jurídica – Direito e/ou dever?...........................................................199
6.5 Debates sobre os argumentos.................................................................................................. 201
6.6 Considerações finais................................................................................................................. 205
Referências................................................................................................................................. 206

CAPÍTULO 7
O VOTO NULO E SEUS EFEITOS: UM ENSAIO SOBRE A (FALTA DE) LUCIDEZ DA
JURISPRUDÊNCIA DO TSE
JOÃO ANDRADE NETO.................................................................................................................... 209
7.1 Introdução.................................................................................................................................. 209
7.2 Os votos originariamente nulos...............................................................................................212
7.2.1 Votos originariamente nulos por erro do eleitor...................................................................214
7.2.2 Votos originariamente nulos por vontade do eleitor............................................................215
7.2.3 O direito de votar nulo como um direito fundamental.......................................................218
7.3 O sistema de invalidades eleitorais e de defesa da autenticidade das eleições................219
7.3.1 Votos anulados........................................................................................................................... 220
7.3.2 Votos nulificados....................................................................................................................... 221
7.4 Invalidade e renovação das eleições....................................................................................... 221
7.5 A jurisprudência atual do TSE................................................................................................ 224
7.6 A separação entre duas categorias de votos nulos: um caso de mutação legal............... 226
7.6.1 A evolução da jurisprudência do TSE.................................................................................... 227
7.6.2 O problema do RMS nº 23.234 e do §7º do art. 77 da CRFB/88........................................... 230
7.7 Conclusão: afinal, votar nulo pode anular uma eleição?.................................................... 233
Referências................................................................................................................................. 234

CAPÍTULO 8
DE ONDE VIEMOS, QUEM SOMOS, PARA ONDE VAMOS? UM BREVE RELATO
ACERCA DO PERCURSO DA CIDADÃ BRASILEIRA, DESDE O ACESSO AO VOTO
ATÉ SEU STATUS QUO NO CENÁRIO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO
CARLA PINHEIRO, GINA POMPEU.............................................................................................. 239
8.1 Introdução.................................................................................................................................. 239
8.2 De onde veio e como nasceu e se materializou a luta pela paridade de acesso
ao poder político entre homens e mulheres?........................................................................ 240
8.3 Quem somos: a incursão da cidadã brasileira no cenário da política nacional.............. 243
8.4 Entre onde estamos e para onde vamos: as conquistas e perspectivas da mulher
na política brasileira.................................................................................................................. 244
8.5 Conclusão................................................................................................................................... 247

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PARTE III
DE UMA JUSTIÇA SIMBÓLICA À ASPIRAÇÃO CONCRETIVA

CAPÍTULO 1
JUSTIÇA ELEITORAL BRASILEIRA: HISTÓRICO, FUNÇÕES E POSSÍVEIS
PROPOSTAS DO DIREITO COMPARADO PARA A REVITALIZAÇÃO
DO MODELO DE ORGANISMO ELEITORAL
WALDIR FRANCO FÉLIX JÚNIOR.................................................................................................. 251
1.1 Considerações iniciais: a Justiça Eleitoral como manifestação mais direta do
ativismo judicial brasileiro?..................................................................................................... 251
1.2 Justiça Eleitoral brasileira: razões da atual estruturação e exemplos de inovação
no ordenamento jurídico.......................................................................................................... 252
1.3 Organismos eleitorais e propostas para uma atuação judicial contida............................ 258
1.4 Conclusões..................................................................................................................................262
Referências................................................................................................................................. 263

CAPÍTULO 2
NORMATIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES: A JUSTIÇA ELEITORAL DETÉM FUNÇÕES
LEGISLATIVAS?
ELAINE HARZHEIM MACEDO....................................................................................................... 265
2.1 Introdução.................................................................................................................................. 265
2.2 As tradicionais e as nem tão tradicionais funções da Justiça Eleitoral .............................267
2.3 As novas funções do Poder Judiciário versus Justiça Eleitoral........................................... 272
2.4 Juízo legislativo e o grau de discricionariedade nas respostas dadas pela lei
ao processo eleitoral ou a opção de não legislar................................................................... 275
2.5 Considerações finais................................................................................................................. 280
Referências................................................................................................................................. 281

CAPÍTULO 3
DIREITO JUDICIAL E JUSTIÇA ELEITORAL: A JUDICIALIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES
NO BRASIL
EDUARDO MEIRA ZAULI................................................................................................................ 283
Referências................................................................................................................................. 302

CAPÍTULO 4
A FORMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA ELEITORAL: NECESSIDADE DE REFLEXÃO
E COERÊNCIA
ADRIANA SOARES ALCÂNTARA................................................................................................. 305
4.1 Introdução.................................................................................................................................. 305
4.2 As fontes do direito eleitoral................................................................................................... 306
4.3 A subsidiariedade no direito eleitoral................................................................................... 309
4.4 A jurisprudência como fonte de direito eleitoral..................................................................310

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4.5 Conclusão....................................................................................................................................319
Referências................................................................................................................................. 320

CAPÍTULO 5
PODER REGULAMENTAR E TSE: FONTE DO DIREITO ELEITORAL
INCONSTITUCIONAL E EXERCÍCIO ABUSIVO DESSE PODER NORMANTE
RUY SAMUEL ESPÍNDOLA.............................................................................................................. 323
Referências................................................................................................................................. 334

PARTE IV
PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES DO DIREITO ELEITORAL

CAPÍTULO 1
O PERCURSO ENTRE REGRAS E PRINCÍPIOS
BRUNO MENESES LORENZETTO.................................................................................................. 339
1.1 Introdução.................................................................................................................................. 339
1.2 Norma como gênero e o problema da sanção....................................................................... 340
1.3 Regra(s) e princípios.................................................................................................................. 344
1.4 Considerações finais................................................................................................................. 351
Referências................................................................................................................................. 353

CAPÍTULO 2
IGUALITARISMO ELEITORAL: POR UMA FORÇA DE EFEITO ÓTIMA AO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE DE OPORTUNIDADES NAS COMPETIÇÕES
ELEITORAIS
MARCELO ROSENO DE OLIVEIRA............................................................................................... 355
2.1 Introdução.................................................................................................................................. 355
2.2 Os direitos políticos prestacionais na ordem jurídica brasileira....................................... 357
2.2.1 O financiamento público das atividades político-partidárias........................................... 357
2.2.2 O acesso gratuito ao rádio e à TV........................................................................................... 360
2.3 O valor equitativo das liberdades políticas............................................................................361
2.4 A compensação das desigualdades no campo das disputas eleitorais............................. 366
2.5 Conclusão................................................................................................................................... 375
Referências..................................................................................................................................376

CAPÍTULO 3
O PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO DIREITO ELEITORAL
ALINE OSORIO.................................................................................................................................... 377
3.1 Introdução.................................................................................................................................. 377
3.2 Um novo marco teórico para a liberdade de expressão...................................................... 379
3.2.1 Por que a liberdade de expressão deve ser tão protegida?................................................. 379

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3.2.2 Como proteger a liberdade de expressão? A posição preferencial da liberdade de
expressão e suas consequências............................................................................................. 383
3.2.3 Quando é possível restringir a liberdade de expressão?.................................................... 387
3.3 A importância da liberdade de expressão no direito eleitoral........................................... 390
3.3.1 Constitucionalização do direito eleitoral e os princípios constitucionais eleitorais...... 390
3.3.2 A liberdade de expressão e suas aplicações no direito eleitoral........................................ 393
3.3.3 A liberdade de expressão e a proibição da propaganda antecipada................................. 395
3.4 Conclusão................................................................................................................................... 401

CAPÍTULO 4
A PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA COMO VETOR DA (I)MORALIDADE NA
POLÍTICA: DE PRINCÍPIO À REGRA, NO ABISMO QUE SEPARA O DEVER SER
DO SER
JULIANA RODRIGUES FREITAS, PAULO VICTOR AZEVEDO CARVALHO..................... 403
4.1 Reflexões introdutórias............................................................................................................. 403
4.2 De uma perspectiva teórica..................................................................................................... 404
4.3 ...para o abismo que separa o dever ser do ser........................................................................ 408
4.4 Reflexões conclusivas.................................................................................................................413
Referências..................................................................................................................................414

CAPÍTULO 5
MANDATO, AUTONOMIA PARTIDÁRIA E REPRESENTATIVIDADE POLÍTICA
FERNANDO GUSTAVO KNOERR.................................................................................................. 415

CAPÍTULO 6
A CRIAÇÃO DO DIREITO PELA JUSTIÇA ELEITORAL E O PRINCÍPIO DA
ANUALIDADE
ANDERSON SANT’ANA PEDRA.................................................................................................... 431
6.1 Introdução.................................................................................................................................. 431
6.2 Segurança jurídica como finalidade do Estado.................................................................... 433
6.2.1 A incerteza no direito............................................................................................................... 434
6.3 Princípio da anualidade eleitoral............................................................................................ 434
6.3.1 Conceito, importância e objetivo............................................................................................ 434
6.3.2 Espécie de direito fundamental.............................................................................................. 436
6.3.3 Força normativa da Constituição............................................................................................ 437
6.3.4 Extensão da expressão “processo eleitoral”.......................................................................... 438
6.3.5 Validade, vigência e eficácia da norma processual eleitoral.............................................. 440
6.4 Criação do direito pela Justiça Eleitoral................................................................................ 441
6.4.1 Considerações iniciais.............................................................................................................. 441
6.4.2 Função interpretativa da Justiça Eleitoral............................................................................. 443
6.4.3 Estado constitucional e função legislativa............................................................................ 444
6.4.4 Função normativa da Justiça Eleitoral................................................................................... 445

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6.5 Considerações finais................................................................................................................. 448
Referências................................................................................................................................. 449

CAPÍTULO 7
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ESTRITA NA SEARA ELEITORAL
PEDRO HENRIQUE GALLOTTI KENICKE, ANA CAROLINA DE CAMARGO CLÈVE.... 453
7.1 O princípio da legalidade e a matéria eleitoral .................................................................... 454
7.2 Sobre o poder regulamentar do Tribunal Superior Eleitoral............................................. 456
7.3 Reconhecimento jurisprudencial do poder regulamentar................................................. 460
7.4 Audiências públicas efetivas no poder regulamentar e o respeito ao princípio
da legalidade.............................................................................................................................. 462
7.5 Conclusões................................................................................................................................. 463
Referências................................................................................................................................. 464

PARTE V
SISTEMAS ELEITORAIS E REFORMA POLÍTICA

CAPÍTULO 1
MAIS EXÓTICOS QUE JABUTICABAS? OS SISTEMAS ELEITORAIS BRASILEIROS
HELGA DO NASCIMENTO DE ALMEIDA, LARISSA PEIXOTO GOMES .......................... 469
1.1 Introdução: o que significa estudar o sistema eleitoral brasileiro?................................... 469
1.2 Sistemas eleitorais e seus desdobramentos........................................................................... 470
1.3 Debatendo sistemas eleitorais: pensar em múltiplos encaixes.......................................... 472
1.4 1891-1932: o período em que quase ninguém votava............................................................474
1.4.1 Principais características...........................................................................................................474
1.5 1932-1945: entre o fascismo getulista e a representação proporcional.............................. 479
1.5.1 Principais características.......................................................................................................... 479
1.6 1945-1965: a curta esperança democrática............................................................................. 482
1.6.1 Principais características.......................................................................................................... 482
1.7 1965-2017: ditadura, reabertura e reformas........................................................................... 486
1.7.1 Principais características.......................................................................................................... 486
1.8 Conclusão: a jabuticaba eleitoral brasileira........................................................................... 490
Referências................................................................................................................................. 493

CAPÍTULO 2
DESAFIOS DO SISTEMA REPRESENTATIVO BRASILEIRO: SOBRE QUANDO
A NORMATIVIDADE DOS IDEÓLOGOS E OS INTERESSES DOS AGENTES
POLÍTICOS SE UNEM PARA PRODUZIR RESULTADOS OPOSTOS ÀS DEMANDAS
DO PÚBLICO
EMERSON URIZZI CERVI................................................................................................................. 497
2.1 Introdução.................................................................................................................................. 497

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2.2 A democracia moderna e sistemas políticos......................................................................... 500
2.3 Sistemas, instituições e ciclos políticos.................................................................................. 503
2.4 Minirreforma eleitoral de 2015 e o encastelamento dos barões......................................... 508
2.5 Notas conclusivas.......................................................................................................................511
Referências..................................................................................................................................512

CAPÍTULO 3
UMA ANÁLISE ECONÔMICA DA LEGISLAÇÃO REFERENTE AO
FINANCIAMENTO DA POLÍTICA NO BRASIL: REFORMAS E EFEITOS
ANA CLAUDIA SANTANO.............................................................................................................. 515
3.1 A análise econômica do direito e o pensamento político....................................................515
3.2 A trajetória histórica da legislação sobre o financiamento da política brasileira –
a distância entre o mundo do ser e o do dever-ser...............................................................519
3.3 O conturbado estado da arte do sistema de financiamento da política no Brasil........... 522
3.4 A análise econômica do sistema de financiamento político no Brasil.............................. 525
3.4.1 O limite de gastos constante na Lei nº 13.165/15....................................................................526
3.4.2 As fontes de arrecadação de recursos e a restrição das doações de pessoas
jurídicas.......................................................................................................................................531
3.4.3 Os mecanismos de controle de entrada e de saída de recursos......................................... 535
3.5 Considerações finais: expectativa e pessimismo.................................................................. 537
Referências................................................................................................................................. 538

CAPÍTULO 4
CANDIDATAS DE FACHADA: A VIOLÊNCIA POLÍTICA DECORRENTE DA
FRAUDE ELEITORAL E DO ABUSO DE PODER E AS RESPOSTAS JURÍDICAS
PARA EFETIVAÇÃO DOS GRUPOS MINORITARIAMENTE REPRESENTADOS
GEÓRGIA FERREIRA MARTINS NUNES, LORENA DE ARAÚJO COSTA SOARES........ 543
4.1 Introdução.................................................................................................................................. 543
4.2 As candidaturas de fachada em violação à cota feminina: violência política contra
as mulheres na fraude eleitoral e no abuso de poder.......................................................... 546
4.2.1 Do cabimento da ação de impugnação de mandato eletivo (AIME): a incidência
da fraude eleitoral..................................................................................................................... 551
4.2.2 Do cabimento da ação de investigação judicial eleitoral para o combate da
violência política contra as candidatas sob a ótica do abuso de poder............................ 556
4.3 Das consequências advindas da violação do art. 10, §3º, da Lei nº 9.504/97:
presença de candidatura de fachada punível com a cassação do registro/diploma/
mandato de todos os candidatos beneficiados pela fraude/abuso de poder.................... 559
4.4 A Justiça Eleitoral no combate às candidaturas femininas de fachada: análise
dos recentes julgados relativos ao pleito municipal de 2016 e a expectativa para as
eleições 2018............................................................................................................................... 562
4.5 Conclusão................................................................................................................................... 567
Referências................................................................................................................................. 568

SOBRE OS AUTORES............................................................................................................................ 571

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PARTE I

DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

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PÁGINA EM BRANCO

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CAPÍTULO 1

UM OLHAR HERMENÊUTICO SOBRE


O DIREITO ELEITORAL

LENIO LUIZ STRECK

1.1 Introdução
Há algum tempo cunhei o termo “filosofia no direito” para diferenciar a nossa
abordagem da tradicional filosofia do direito. Podemos começar fazendo o mesmo,
entendendo porque a hermenêutica no direito eleitoral é distinta da hermenêutica do
direito eleitoral.
A filosofia no direito se constitui como uma abordagem que procura desvelar
como os paradigmas filosóficos se apresentam como standards de racionalidade para a
compreensão do fenômeno jurídico. Isto é, a filosofia deixa de ser um ornamento para um
discurso pretensamente rigoroso e passa a ser a sua própria condição de possibilidade.
Quando falamos de hermenêutica nos espaços de formação jurídica ou da prática
judiciária o que inicialmente se apresenta no imaginário é a ideia de uma técnica
específica de interpretação de textos/eventos. Nesta linha de raciocínio, a hermenêutica
do direito eleitoral seria esta metodologia aplicada a este ramo. Contudo, o que proponho
transcende este espectro prático, apesar de dele não abdicar. A ideia da hermenêutica
no direito eleitoral é uma proposta de compreender os limites e as possibilidades que
este possui, bem como propor caminhos constitucionalmente adequados. Eis a tarefa
da crítica hermenêutica do direito (CHD) que tenho desenvolvido. Eis o nosso lugar de
fala, ou melhor, o ponto sobre o qual olhamos o direito eleitoral.
Neste breve ensaio o olhar estará voltado para três importantes aspectos do direito
eleitoral. O primeiro diz respeito à legislação, mais especificamente as incongruências
da LC nº 64 com o Novo CPC. O segundo será uma análise do fenômeno do ativismo
judicial a partir de um imaginário (também) compartilhado por aqueles que atuam
na área eleitoral. O terceiro, e último, terá como enfoque a decisão judicial. Faremos
um sucinto estudo de caso da ADI nº 4.650 que tratou do modelo de financiamento
de campanhas eleitorais. Espero despertar olhares outros, que assim como os nossos
almejam um direito eleitoral constitucionalmente legítimo.

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1.2 O (Novo) CPC e o direito eleitoral: sobre a necessidade de pensar o


direito como um todo
Desde março de 2016 estamos sob a vigência de um Novo Código de Processo
Civil. Diante da centralidade que este possui, as mais diversas áreas do direito brasileiro
passaram, têm passado ou necessitam passar por ajustes. Por óbvio, não seria diferente
na seara eleitoral. Assim temos nos perguntado: há conflito das regras eleitorais com o
Novo CPC? O dispositivo da LC nº 64 que permite julgamentos por presunções e por
livre convencimento se harmoniza com a garantia da não surpresa do CPC?
Como sabemos, o CPC estabelece garantias que, embora pudessem ser retiradas
de uma interpretação constitucional já de há muito (vide arts. 5º, LIV e LV e 93, X),
agora aparecem explicitadas, como a não surpresa (art. 10) e a necessidade de ampla
fundamentação (art. 489), além do art. 371 que, como demonstrarei, vai em sentido
oposto a um dos pilares da Lei Complementar nº 64 que trata da inelegibilidade. Nestas
reflexões, vou me ater a apenas a um dos aspectos da legislação eleitoral. Sigo, pois,
com a análise do ponto que considero fulcral na antinomia entre a legislação eleitoral e
o CPC 2015. Segundo o art. 23 da LC nº 64:

O Tribunal formará sua convicção pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos
indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda
que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de
lisura eleitoral.

Informo de antemão que sei que o Supremo Tribunal Federal julgou constitucional
o referido dispositivo (ADI nº 1.082) e que a Lei nº 64 é de natureza complementar. Ora,
existem dispositivos de LC que são materialmente de lei ordinária. Caso contrário,
todos os dispositivos sobre prova do CPP e do CPC deveriam ser provenientes de LC.
O art. 23 é algo estranho posto na legislação eleitoral. Afinal, qual a razão de a prova
em matéria eleitoral ser mais “flexível” e menos exigente em termos garantísticos do
que as demais áreas?
Ainda sobre a questão (in)constitucional, o Ministro Marco Aurélio, relator da
ADI nº 1.082 (regras que permitem produção de provas por juiz eleitoral são válidas),
asseverou:

A possibilidade de o juiz formular presunções mediante raciocínios indutivos feitos a partir


da prova indiciária, e fatos publicamente conhecidos ou das regras de experiência não
afronta o devido processo legal, porquanto as premissas da decisão devem ser estampadas
no pronunciamento, o qual está sujeito aos recursos inerentes à legislação processual.1

Eis o busílis da questão. Pode, na democracia, o juiz formular presunções mediante


raciocínios indutivos feitos a partir da prova indiciária? Qual é o problema de induções
e julgamentos por presunções? Um não. Vários. O principal deles é que, em julgamentos
por presunções, o pobre do utente não pode provar o contrário. Ele é culpado de plano,
só porque “só-podia-ser-ele” e que “todo-mundo-sabe-que-foi-assim”.

1
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 1.082. Rel. Min. Marco Aurélio. p. 3-4. Disponível em: <http://redir.stf.
jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7065151>. Acesso em: 10 nov. 2017.

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Por outro lado, o “interesse público de lisura eleitoral” tudo justifica? Quem dirá
o que interessa ao público? Vejam a fragilidade normativa de um dispositivo desse tipo.
Substitua-se ele por “o juiz decidirá conforme a sua consciência e da forma que melhor
atenda ao interesse público de lisura eleitoral”, e não haverá nenhuma diferença relevante
da situação atual. Se o juiz está autorizado a decidir com base em indícios e presunções,
e se é ele mesmo quem decide como e quando deve fazê-lo, estamos simplesmente
dependentes não de uma estrutura e, sim, de um olhar individual.
Aliás, ainda que se admitisse que esse art. 23 da LC nº 64 fosse constitucional – pois
entendo o contrário – o Novo CPC deveria ter revogado a LC nº 64 nestes dispositivos, que
são materialmente objeto de lei ordinária. Afinal, a Constituição, no §9º do art. 14 exige
lei complementar em matéria de inelegibilidade e não em matéria processual, in verbis:

§9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua


cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de
mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das
eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo
ou emprego na administração direta ou indireta.

É importante esclarecer que a matéria de lei complementar é somente a parte de


direito material, isto é, para os casos de inelegibilidade! A parte processual pode ser
alte­rada por lei ordinária. E/ou pode sofrer os influxos de outra lei, como é o caso do
Novo CPC.
Vejamos. O art. 15 do CPC explicita que na ausência de normas que regulem
processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes
serão aplicadas supletiva e subsidiariamente. Ou seja, há uma conjugação de suple­
tividade e subsidiariedade. Não somente o CPC colmata lacunas (entendidas no sentido
tradicional), como permite, por óbvio, que o novo texto seja utilizado para dar nova ou
outra interpretação a dispositivo do ramo do direito previsto para essa dupla função
(supletividade e subsidiariedade).2
Dierle Nunes, analisando o art. 10 do CPC,3 acentua exatamente que uma forma
de aplicação secundária do CPC para o direito eleitoral é o contraditório substancial do
art. 10, que impede a prolação de decisões-surpresa. O art. 10 é antitético ao art. 23 da
LC nº 64. O art. 10 garante um juiz imparcial; ele não permite que o juiz decida, em grau
algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às
partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria fática ou jurídica
sobre a qual deva decidir de ofício. Ora, o art. 23 permite exatamente o contrário, isto
é, deixa que o juiz integre um dos lados da persecução eleitoral e examine fatos não
alegados ou até tire conclusões baseadas em presunções sem base legal.
Ademais, o art. 23 colide com o art. 371 do CPC (“O juiz apreciará a prova constante
dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as
razões da formação de seu convencimento”). Como compatibilizar a permissão de livre

2
Nesse sentido, os trabalhos de Suzy Koury (As repercussões do novo Código de Processo Civil no direito do
trabalho: avanço ou retrocesso. Revista TST, v. 78, n. 3, jul./set. 2012) e Carlos Henrique Bezerra Leite (Curso
de direito processual do trabalho. 9. ed. São Paulo: LTr, 2011. p. 100), os quais, embora escritos para o direito do
trabalho, servem para compreender a problemática do direito eleitoral.
3
CUNHA, Leonardo Carneiro da; NUNES, Dierle; STRECK, Lenio Luiz. Comentários ao Código de Processo Civil.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

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apreciação dos fatos públicos e notórios com o art. 371? Fazendo uma concessão à velha
metodologia – já sem uso e despicienda para a hermenêutica – mas para argumentar e
auxiliar na retirada de dúvidas, fica nítido que houve intenção na retirada da palavra
“livre”, aliás, não somente do art. 371.
Portanto, das duas uma: ou se aplica o CPC como uma forma de trazer garantias
efetivas aos contendores no processo eleitoral (com respeito pleno aos ditames consti­
tucionais) ou não se aplica. Mas, neste caso, também não se pode aplicar “as partes
boas”, por assim dizer, como o poder de o relator (art. 932) resolver monocraticamente
os recursos. Ou a aplicação é em um todo coerente e íntegro (art. 926, CPC) ou não se
poderá fazê-lo ad hoc.
Não podemos olvidar que o art. 371 do CPC-2015 ocupa hoje o lugar outrora
preenchido pelo art. 131 do CPC revogado, que assim dispunha: “O juiz apreciará
livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que
não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na decisão, os motivos que lhe formaram
o convencimento”. Como se pode observar, o termo livremente foi suprimido do sistema
de direito processual positivo, razão pela qual não existe mais espaço para a chamada
“livre apreciação da prova”: é preciso que no plano dogmático sejam desenvolvidos
critérios racionais de valoração probatória objetivamente controláveis pelas partes, sob
pena de haver razões de decidir pairando dentro da consciência indevassável do juiz.
Na verdade, a proibição do chamado “livre convencimento motivado” é daquelas
garantias processuais que decorreriam de uma interpretação constitucional, embora
só agora apareçam explicitadas no sistema processual civil positivo vigente. Exemplos
crassos são (1) a vedação da decisão-surpresa (CPC, art. 10) (extraível do art. 5º, LIV e
LV, da CF) e (2) a necessidade de ampla fundamentação (CPC, art. 489, §1º) (retirável
do art. 93, X, da CF).
Poder-se-ia argumentar que o art. 23 da LC nº 64/1990 traz uma regra especial
anterior e o art. 371 do CPC/2015, uma regra geral posterior; nesse caso, não haveria
revogação: lex posteriori generalis non derogat priori especiali. No entanto, não se pode
olvidar a regra do art. 15 do CPC atual: “Na ausência de normas que regulem processos
eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão apli­
cadas supletiva e subsidiariamente”. Note-se que a aplicação do CPC/2015 ao processo
eleitoral se faz de modo tanto subsidiário (i.e., em caso de lacunas da lei processual eleitoral)
quanto supletivo (i.e., de forma complementar). Portanto, o juiz eleitoral não está isento
de explicitar em sua decisão a criteriologia racional com base na qual valorou as provas
e de, com isso, permitir que as partes impugnem objetivamente a valoração realizada.
É bem verdade que o TSE editou a Resolução nº 23.478/2016, que “estabelece
dire­trizes gerais para a aplicação da Lei nº 13.105 de 2015 – Novo Código de Processo
Civil – no âmbito da Justiça Eleitoral”. Nela está prescrito no parágrafo único ao art. 2º
que “a aplicação das regras do Novo Código de Processo Civil tem caráter supletivo
e subsidiário em relação aos feitos que tramitam na Justiça Eleitoral, desde que haja
compatibilidade sistêmica” (d. n.). Contudo, abstraindo-se a (i)legitimidade da ressalva, não
se divisa qualquer particularidade que torne o âmbito processual eleitoral “quimicamente
dependente” do chamado “princípio do livre convencimento motivado”.
Ademais, poder-se-ia também argumentar que a regra do art. 23 da LC nº 64/1990
é hierarquicamente superior à regra do art. 371 do CPC/2015, razão por que também
não haveria revogação: lex inferiori non derogat legi superiori. No entanto, nada impede a

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aludida revogação. Conforme já destaquei, o §9º do art. 14 da CF-1988 (com a redação


dada pela Emenda de Revisão nº 4/1994) exige edição de lei complementar federal
apenas para o estabelecimento de outros casos de inelegibilidade não previstos no texto
constitucional.
Para que se estabeleçam regras de direito processual eleitoral, basta que se edite lei
ordinária federal (CF/1988, art. 22, I). Assim, o art. 23 da LC nº 64/1990 é expressão de um
“excesso de forma legislativa”, pois deveria constar de texto de lei ordinária, não de lei
complementar. Ou seja, o sapateiro foi muito além das chinelas. Daí por que a doutrina
sempre alertou que, “quando a lei complementar extravasa o seu âmbito de validez,
para disciplinar matéria de competência da lei ordinária da União, é substancialmente
lei ordinária”.4
Uma vez admitida a aplicação do art. 331 do CPC/2015 ao processo eleitoral,
chega-se a outra conclusão: suprimiu-se do sistema a possibilidade inquisitiva de o juiz
atentar “a atos e circunstâncias constantes dos autos não indicados ou alegados pelas
partes”. Ou seja, ao objeto do processo só são aportadas as questões fáticas levantadas
pelas partes, sem que nessa matéria o juiz possa ampliá-lo. É bem verdade que o art. 23
da LC nº 64/1990 obriga o tribunal a atentar oficiosamente “para circunstâncias ou
fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes”, desde “que preservem o
interesse público de lisura eleitoral” (d. n.). Lembre-se de que, na Justiça Eleitoral, para
além de interesses egoísticos, tutela-se primordialmente uma macroinstituição chamada
“lisura das eleições”, pilar central da democracia representativa, que se fragmenta em
microinstituições como “isonomia entre os candidatos”, “moralidade das eleições” e
“proteção da vontade do eleitor” (obs.: instituições nada mais são do que entidades [e.g.,
organizações públicas, escolas, museus], bens [e.g., patrimônios histórico e artístico,
meio ambiente], relações [e.g., família, casamento], valores [e.g., fé pública, veracidade
da propaganda, lealdade concorrencial, moralidade administrativa], agrupamentos [e.g.,
comunidades tradicionais], hábitos [e.g., tradições, festas, costumes], utilidades [e.g.,
saúde, esporte, segurança, educação] e normas [e.g., lei, Constituição], cuja preservação
estrutural e cujo bom funcionamento são indispensáveis à identidade e à própria
existência de determinada sociedade e ao bem-estar de seus cidadãos). Nesse sentido, o
processo eleitoral caracteriza-se não só por uma forte nota de supraindividualidade, mas de
supragrupalidade (afinal, não diz respeito a um grupo ou uma coletividade específica, mas
a toda a sociedade). Todavia, a tutela do chamado “interesse público de lisura eleitoral”
nada mais é do que a tutela de um direito subjetivo difuso, que é “direito subjetivo sob
titularidade indeterminada” ou “não subjetivado”, cuja satisfação em juízo só se pode
fazer a requerimento de quem tem legitimidade ativa para tanto: o MP (CF, art. 129,
III). Portanto, o art. 23 da Lei de Inexigibilidades cria uma usurpação funcional, pois
imputa à autoridade judicial atribuição típica do Ministério Público Eleitoral. Ou ainda
pior: arranca o “im” da imparcialidade (imparcialidade = não atuar como parte = ser
funcionalmente neutro), atirando o juiz no mesmo patamar daqueles que se interessam
ex ante pelo desfecho que será dado à causa. Em suma, o juiz pode se tornar um “promotor
eleitoral fantasiado com toga”.

4
BORGES, José Souto Maior. Eficácia e hierarquia da lei complementar. Revista de Direito Público, São Paulo,
n. 25, p. 93-103, 1973. p. 98. No mesmo sentido: ATALIBA, Geraldo. Lei complementar na Constituição. São Paulo:
RT, 1971. p. 35-36. Esse entendimento, aliás, já fora consagrado no STF desde o julgamento da ADC nº 1-DF, cujos
autos foram relatados pelo Ministro Moreira Alves.

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Entendo que o STF errou quando julgou o dispositivo constitucional (ADI nº


1.082/DF, rel. Min. Marco Aurélio). Mas é sabido também que há outras decisões que
assustam a comunidade jurídica e que se repetem nos quatro cantos do país. Como se
não fossem o suficiente, sobrevém o caso da chapa Dilma-Temer, em que o TSE quase
abriu perigoso precedente, por força do qual os processos jamais teriam fim, reforçando
temerariamente o inquisitivismo judicial na Justiça Eleitoral. É a isto que a comunidade
jurídica não dá a devida importância, talvez porque a doutrina se comporte como profeta
do passado: apenas descreve o que a jurisprudência diz e a isso não se opõe. Por isso, em vez de
estar “torcendo” pela cassação da chapa, a comunidade jurídica deveria estar pensando
no que isso representa(ria) em termos de direitos (d)e garantias processuais.
Continuo a indagar: afinal, qual a razão de a prova em matéria eleitoral ser mais “flexível”
e menos exigente em termos garantísticos do que as demais áreas?
Portanto, das duas uma: ou se aplica o CPC como forma de trazer garantias efetivas
aos contendores no processo eleitoral (com respeito pleno aos ditames constitucionais), ou
não se aplica. Tertium non datur. Mas, neste caso, também não se pode aplicar “as partes
boas”, por assim dizer, como o poder de o relator (art. 932) resolver monocraticamente
os recursos. Ou a aplicação é em um todo coerente e íntegro (CPC, art. 926), ou não se
poderá fazê-lo ad hoc.
Parece minimamente paradoxal que para a discussão acerca de uma nota promis­
sória ou uma cláusula de um contrato de leasing se tenha a garantia da não surpresa,
com o reforço dos arts. 371, 489, 926 e 927, e, ao mesmo tempo, mantenhamos o poder
de julgamento por livre apreciação de prova e por presunções justamente na atividade
mais importante de uma democracia: uma eleição? Para dirimir um problema de divisão
de um terreno, todas as garantias de contraditório etc.; já para o processo eleitoral, a
possibilidade de a parte ser surpreendida e até mesmo de o juiz julgar por coisas que só ele
percebeu, a partir da sua intuição ou algo correlato... Afinal, o que é uma presunção? Como
aferir isso? Se o poder emana do povo, não tem de se dar mais valor ao voto popular
do que às presunções pessoais?
É por tais razões que questionamos a validade do art. 23 da LC nº 64. A OAB (já
que, por óbvias razões, o MP nada fará) deve urgentemente discutir a constitucionalidade
e/ou incompatibilidade com os arts. 10 e 371 do Novo CPC. A comunidade jurídica e
os tribunais devem se preocupar com isso. Não podemos tratar esse assunto de forma
emotivista, ou seja, como senão existissem critérios para além de nós mesmos. As palavras
da lei importam e é por isso que devemos nos importar com tudo isso, para imitar uma
frase de E.P. Thompson.

1.3 Sobre o problema do ativismo no direito eleitoral: ou de quando o


direito não é mais a “régua”
Há tempos a Folha de S. Paulo publicou uma matéria com o título: “Procurador
eleitoral promete não ‘tolher’ debate político”.5 A matéria dá conta de entrevista do novo
procurador eleitoral Dr. Eugênio Aragão, criticando sua antecessora, Dra. Sandra Cureau,

5
LEITÃO, Matheus; MOTTA, Severino. Procurador eleitoral promete não “tolher” debate político. Folha de S.
Paulo, Brasília, 12 out. 2013. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/133486-procurador-
eleitoral-promete-nao-tolher-debate-politico.shtml?loggedpaywall>.

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UM OLHAR HERMENÊUTICO SOBRE O DIREITO ELEITORAL
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que teria sido muito dura na apreciação do direito eleitoral. Ele defendeu uma forma
diferente de atuação ao Ministério Público Eleitoral. Criticou o fato de a Dra. Cureau
“passar a régua” e processar todo mundo (parece-me ser esse o sentido de “passar a
régua”). Minha pergunta, de pronto, é: quem tolhe o debate (ou não tolhe o debate) é o
agente ou os pressupostos que estão fixados na lei?
Eis um bom exemplo de como o direito não deve ser. Aliás, importante esclarecer
que não tomei partido por nenhum dos procuradores, a análise aqui feita trata apenas
do que há de simbólico no ocorrido. O que quero dizer é que o direito eleitoral, como
qualquer ramo do direito, não pode depender da posição pessoal dos seus manejadores-
intérpretes-aplicadores.
Se, por exemplo, em uma decisão sobre o aborto – suponhamos que o STF esteja
decidindo a descriminalização –, ficarmos esperando a posição pessoal (ou subjetividade
pessoal) do ministro do STF, estamos (ou estaremos) mal. Imagino a discussão: “ele é
católico; ele não é; ele é agnóstico; ele é liberal; ele é conservador...” e assim por diante.
Assim foi no caso dos embargos infringentes. Não preciso tomar posição para um lado
ou outro para dizer que o país não pode ficar refém, em suspense, acerca de como o
ministro X ou Y vai decidir. Sua posição pessoal em nada (deveria) importa(r). Como
bem diz Dworkin, não me importa o que pensam os juízes. Não nos importa para que
time torcem, suas preferências sexuais etc. Decidir não é o mesmo que escolher. Decidir
é um ato de responsabilidade política. Devemos insistir nisso.
Por consequência, isso também se aplica ao Ministério Público. Quer dizer que o
direito eleitoral brasileiro depende da régua do encarregado de aplicar a lei? Teremos que,
dependendo do lado em que estivermos, torcer para que um “durão” ou um “não durão”
seja guindado ao cargo? Quer dizer que o destino do direito eleitoral pode depender da
posição (subjetividade) dos detentores do poder? Isso vale para o STF, para o STJ etc.
Tomar decisões no campo jurídico é ter responsabilidade política. Não é simples­
mente escolher um lado ou outro. A razão prática do juiz ou do membro do MP deve
ser suspensa. Se assim não for, não deveriam assumir cargos.
A decisão jurídica, em especial a judicial, é um ato de responsabilidade política.
O que quero dizer com isso? Que o magistrado, ao proferir sua decisão, deve estar
comprometido com os fundamentos do Estado Constitucional, que tem como seu núcleo a
democracia. Portanto, proferir uma decisão judicial não implica resgatar antigos dilemas
(já superados), como o de buscar a vontade da lei, a vontade do legislador ou tampouco
apelar para um suposto “poder discricionário”.
A decisão judicial deve, ao contrário de tudo isso, ser construída de acordo com a
legalidade (constitucional). É o que chamo de respostas constitucionalmente adequadas
(ou corretas), somente obtidas através do filtro de uma Teoria da Decisão Judicial, que
eu proponho e descrevo nos meus Verdade e consenso e Jurisdição constitucional e decisão
jurídica.
Do contrário o que temos é o ativismo. Mas o que é ativismo? É uma corrupção
funcional entre os poderes. Alguns ativismos até podem produzir resultados produtivos,
mas não necessariamente isso significa que o ativismo seja bom. O que precisa ficar claro
é que discutir sobre o ativismo implica debater os limites da atuação do Judiciário (e do
Ministério Público), que, ao extrapolar suas funções, pode agir para o bem ou para o mal.
Antoine Garapon diz que o ativismo começa quando, entre várias soluções possíveis, a

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escolha do juiz é dependente do desejo de acelerar a mudança social ou, pelo contrário,
de travá-la. A questão que se coloca é: de que lado a gente está? Eis a questão...
O problema é justamente este: acharemos “bom” quando o ativismo produzir
decisões contrárias a todos os avanços do direito? É preciso lembrar que o ativismo
judicial tem relação com o kelseniano conceito de que interpretação é um ato de vontade
(claro, isso no plano do que Kelsen entendia como decisão jurídica). E atos de vontade
não têm controle. E onde não há controle, não há democracia. Simples, pois.
Quando um juiz decide, ele deve perguntar: o que a legalidade constitucional (Elías
Díaz) diz sobre esta questão? Vejamos: um problema jurídico deve ser respondido por
argumentos jurídicos. Direito não é moral. Moral não corrige o direito. Nada importa
sobre a personalidade do juiz. Ao direito não importam as inclinações do magistrado,
porque temos uma Constituição e códigos para responder às questões jurídicas (desde
logo, remeto o leitor para as três últimas linhas deste texto). É isso o que se chama de
direito democraticamente construído: um direito que dispensa opiniões e convicções
pessoais. Se a democracia depender de opiniões pessoais, teremos que rezar para termos
“homens bons” conduzindo o direito. E, como diz o psicanalista Agostinho Ramalho
Marques Neto, “Deus me livre da bondade dos bons”.
No caso do Ministério Público é a mesma coisa. Quando o MP acusa, esta acusação
deve estar fundamentada na legislação produzida democraticamente. Este é o ponto: a
fundamentação jurídica (seja ela judicial ou acusatória) deve ser um exercício rigoroso
de legalidade e, por conseguinte, de constitucionalidade, o que não está presente na
personalidade do juiz ou promotor. O Ministério Público deve(ria) ser uma magistratura:
já na denúncia deve haver um ato de decisão e não de mera escolha.
Uma “régua” não é uma régua em si; assim como uma coisa não é em si e nem
uma lei é “em si”. O texto não é a coisa. No texto não está a lei. Mas nem a lei é aquilo
que o intérprete-manejador diz o que ela é. Em termos de régua, se é com ela que
medimos o alcance da lei, o seu tamanho não pode depender do manejador. Nem a lei
tem o tamanho em si, como se nela já estivesse contida a sua régua, nem o manejador
usa a régua que quer, fazendo com que esta – a lei – passe a ter o tamanho da régua do
manejador. Caso contrário, teremos que torcer para que tenhamos manejadores com
“boas escolhas de réguas”.
Como cidadãos precisamos saber, por exemplo, se o fato de o Bolsa Família ter
beneficiado 2.168 políticos é crime ou não. E se determinada manifestação em inau­
guração de obra é ou não campanha antecipada. E que saibamos todos de antemão o
que se pode e o que não se pode fazer na campanha eleitoral. E não queremos que isso
dependa do tamanho da régua que irá medir o alcance da lei. É por isso que decidir não
é o mesmo que escolher!

1.4 Da “teoria” para a “prática”: ou de como não há nada tão prático


como uma teoria
Devemos de início pontuar que esta cisão entre teoria e prática inexiste como
tradicionalmente é concebida. Para a hermenêutica o nosso processo compreensivo
não se dá apartado da nossa experiência fática no mundo. Deste modo, não teorizamos
sobre o vácuo e após aplicamos na realidade. O próprio teorizar já é uma aplicação.
Como também a própria aplicação (sempre) esconde um modo de compreender as

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LENIO LUIZ STRECK
UM OLHAR HERMENÊUTICO SOBRE O DIREITO ELEITORAL
25

coisas, uma teoria. Entretanto, no direito isto ainda soa estranho. Após uma leitura
filosófica ou doutrinária sempre aparece alguém e pergunta: “mas e na prática?”. Para
tentar responder a esta indagação, vamos ver como esta questão do ativismo judicial
se manifestou dentro de um caso concreto na seara constitucional/eleitoral, na ADI nº
4.650-DF que tratou do financiamento de campanhas eleitorais.
No Informativo nº 7326 do STF temos um importante registro da atuação do relator
desta ADI, o Ministro Luiz Fux, que: “julgou inconstitucional o modelo brasileiro de
financiamento de campanhas eleitorais por pessoas naturais baseado na renda, porque
dificilmente haveria concorrência equilibrada entre os participantes nesse processo
político”. Na sequência, acrescentou:

a participação de pessoas jurídicas apenas encareceria o processo eleitoral sem oferecer,


como contrapartida, a melhora e o aperfeiçoamento do debate e que a excessiva participação
do poder econômico no processo político desequilibraria a competição eleitoral, a igualdade
política entre candidatos, de modo a repercutir na formação do quadro representativo.

Ademais, ainda:

recomendou ao Congresso Nacional a edição de um novo marco normativo de financiamento


de campanhas, dentro do prazo razoável de 24 meses, observados os seguintes parâmetros:
a) o limite a ser fixado para doações a campanha eleitoral ou a partidos políticos por
pessoa natural, deverá ser uniforme e em patamares que não comprometam a igualdade
de oportunidades entre os candidatos nas eleições; b) idêntica orientação deverá nortear a
atividade legiferante na regulamentação para o uso de recursos próprios pelos candidatos;
e c) em caso de não elaboração da norma pelo Congresso Nacional, no prazo de 18 meses,
será outorgado ao TSE a competência para regular, em bases excepcionais, a matéria.

Como estamos inseridos em uma prática social específica, o direito brasileiro,


sugiro que comecemos com este questionamento básico: a Constituição estabelece um
(outro) modelo de financiamento de campanhas eleitorais? Não é possível apontar onde
está a parametricidade constitucional que sustenta as afirmações dos votos dos quatro
ministros (relator e mais três) que votaram por essa inconstitucionalidade? Existem
muitas coisas das quais não gostamos, pelas quais temos preferências, mas daí a serem
inconstitucionais no sentido daquilo que se entende por parametricidade, há (quase
que) um abismo.
Precisamos indagar: desde quando o STF declara inconstitucionais “modelos”
de alguma coisa? De forma moralista, ele faz a escolha pelo povo e em lugar do povo?
O Parlamento serve para o quê? Alguém dirá: mas neste caso o STF está acertando...
então por que você está criticando? Respondo: as questões (in)constitucionais não estão
à disposição do STF.
Continuo a perguntar: e desde quando o STF manda o Congresso fazer uma lei
estipulando as condições e requisitos, se a própria Constituição, parâmetro maior para
qualquer julgamento, nada fala a respeito? Além do problema da difusa e discutível
parametricidade, o estabelecimento de prazo somente teria sentido se o STF dissesse – de

6
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Informativo, n. 732. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/infor­
mativo/documento/informativo732.htm>. Acesso em: 9 out. 2017.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
26 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

forma fundamentada – estar em face de uma Appellentscheidung (apelo ao legislador).


Este ocorre quando a Constituição determina algo, o Congresso não faz e a Corte Consti­
tucional exorta ao Parlamento que faça a regulamentação em um prazo razoável para
que aquela situação não se converta em uma inconstitucionalidade.
Para ser mais claro: o apelo ao legislador só ocorre quando a Corte reconhece que
a lei ou a situação jurídica não se tornou ainda inconstitucional. Então, faz a exortação.
Em outras situações, o Tribunal restringe-se a constatar a inconstitucionalidade, sem, no
entanto, declará-la. Entretanto, observo que no caso desta ADI não há a possibilidade de
uma Appellentscheidung. De fato, parece que o STF simplesmente está não só legislando
como também dizendo como o Congresso deverá fazer no futuro. Mas, insisto: onde
está a concreta situação que propicia(ria) o/um apelo ao legislador?
Há neste caso uma evidente falta de parametricidade. Nesse sentido, são sufi­
cientes as palavras declaradas por um dos quatro ministros do STF que já votaram na
ADI nº 4.650, o Ministro Roberto Barroso: “Em tese, não considero inconstitucional em
toda e qualquer hipótese a doação [a campanhas eleitorais] por empresa”. Você então
poderia perguntar: ele votou contra a ADI nº 4.650-DF? Não, ele votou a favor. Num
simples exercício de lógica concordaríamos que se a inconstitucionalidade não existe...
então... ela não existe. Questão de sintaxe e de semântica. Podem as doações ser ruins,
inadequadas, antiéticas, imorais etc., etc. (e mais um etc.!). E (muitas vezes) o são. Mas,
a pergunta que a nossa Suprema Corte deveria responder é tão somente essa: são elas,
as doações, inconstitucionais? Podem ser ruins, mas... são inconstitucionais?
Alguém poderá dizer que o Supremo invocou princípios e que, afinal, o direito
é um sistema de regras e princípios. Correto. Todavia, é possível extrair do princípio
republicano um modelo de financiamento de campanha? E essa “extração de sentido” se
faz agora, depois de tantas eleições? Nas anteriores o modelo valeu? Era constitucional?
Seria mais adequado se o princípio invocado fosse o da igualdade. Afinal, a igualdade
de participação no processo eleitoral não está à disposição das maiorias políticas, porque
essa questão está no núcleo do regime democrático. Mas não foi nessa linha que os
quatro votos trilharam. Dizendo de outro modo: uma coisa é declarar inconstitucional
determinado dispositivo por ferir, na especificidade, a igualdade (ou outro princípio);
outra coisa é dizer que todo o modelo conformado por tais dispositivos é inconstitucional;
e outra coisa ainda é o STF se transformar em legislador positivo.
É dever do STF, no exercício da jurisdição constitucional, garantir a igualdade de
chances no processo eleitoral. E que, para isso, deve levar em consideração a desigualdade
em termos de poder econômico (e também político-administrativo!). Entretanto, o STF
deve fazer isso em termos paternalísticos. O STF deveria dizer que condições de finan­
ciamento na atual legislação não garantem a igualdade de participação, ao invés de
querer impor um sistema específico de financiamento ao Legislativo, apenas para que
este o regulamente, sob pena de que, se não o fizer em 24 meses, a Justiça Eleitoral deverá
fazê-lo. Esse é o ponto que fragiliza a decisão do STF até aqui. O STF não pode estabelecer
“o” sistema de financiamento de campanha, optando por um modelo específico de
financiamento, em substituição ao Congresso. Mas penso que o STF pode e deve declarar
inconstitucionais pontos específicos da legislação vigente em matéria de financia­mento
de campanha, caso esses pontos não sejam compatíveis com a igualdade de participação
política. Mas, haja, aqui, fundamentação. E fundamentação da fundamentação. Um
movi­mento diametralmente oposto ao do ativismo judicial.

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LENIO LUIZ STRECK
UM OLHAR HERMENÊUTICO SOBRE O DIREITO ELEITORAL
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Algo parece claro, o STF não pode dizer qual é “único” sistema que garanta a
igualdade (se público, privado ou misto), mas quais pontos do sistema já vigente, seja
ele público, privado ou misto, não garantem a igualdade política. O problema é como
o STF se vê, por um lado, como “legislador positivo” (concorrente ou subsidiário), já
definindo qual sistema de financiamento garante a igualdade (o público, por exemplo)
ou, mais especificamente para o caso da ADI nº 4.650, como o STF compreende o tal
instituto do “apelo ao legislador” (predefinindo não apenas os prazos – 24 meses – para
o legislativo legislar, mas predefinindo parâmetros dentro dos quais o legislador deve
legislar), enfim, o modo com que o STF aplica a discutível Lei nº 9.868/1999. O interessante
é que o tal “apelo” nem foi discutido até o momento.
Numa democracia constitucional, são os próprios cidadãos, mediante seus
representantes políticos ou diretamente, que têm o direito de definir o que consideram
relevante do ponto de vista da igualdade e da desigualdade, sobre o pano de fundo de
uma história política de aprendizado constitucional vivido com a experiência da violação
da igualdade, que não deve admitir retrocessos, embora eles possam acontecer. Se o
sistema deve ser só público ou não, e mesmo assim qual deve ser esse sistema público,
isso deve ser decidido “politicamente”, obviamente dentro de parâmetros constitucionais
que levem coerentemente os direitos políticos a sério, pelo Poder Legislativo, mediante
um necessário debate público mais amplo.

1.5 Considerações finais


Como vimos, a hermenêutica no direito eleitoral nos abre horizontes outrora
enco­bertos. Diferentemente de uma técnica de interpretação, a tradição hermenêutica
como ontologia versa sobre a nossa condição humana. Entender que os sentidos não
estão ao nosso dispor, mas que os partilhamos intersubjetivamente, nos traz também
respon­sabilidades. E uma delas se dá na compreensão dos limites e possibilidades que
encontramos no interior de práticas sociais das quais participamos, como o direito e,
mais especificamente, como o direito eleitoral.
Outra clareira que a hermenêutica nos abre é a do diálogo. E nesta as perguntas são
fundamentais como aberturas para o outro. Assim, não podemos nos cansar de indagar:
qual a importância de um texto legal? Qual a importância da Constituição? O que vale
mais: o texto legal ou a opinião pessoal do intérprete? Na democracia, o Judiciário,
inclusive o STF, pode tudo? Vivemos numa democracia ou numa juristocracia?
Os textos legais não são tudo, não detêm os seus sentidos. Mas, também não são
estruturas ocas que podem ser preenchidas com qualquer conteúdo. Quando pensamos
o contrário, podemos cair num literalismo estéril, ou num ativismo que transforma o
direito numa média das perspectivas personalistas de seus participantes, sobretudo, os
julgadores.
Isto não é uma discussão distante, como demonstrei. Ela está presente nas nossas
legislações, na nossa prática judiciária e em nosso imaginário. Precisamos dar-nos conta
disso. Que os nossos olhos sejam abertos.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
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Referências
ATALIBA, Geraldo. Lei complementar na Constituição. São Paulo: RT, 1971.
BORGES, José Souto Maior. Eficácia e hierarquia da lei complementar. Revista de Direito Público, São Paulo,
n. 25, p. 93-103, 1973.
CUNHA, Leonardo Carneiro da; NUNES, Dierle; STRECK, Lenio Luiz. Comentários ao Código de Processo Civil.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
KOURY, Suzy. As repercussões do novo Código de Processo Civil no direito do trabalho: avanço ou retrocesso.
Revista TST, v. 78, n. 3, jul./set. 2012.
LEITÃO, Matheus; MOTTA, Severino. Procurador eleitoral promete não “tolher” debate político. Folha de
S. Paulo, Brasília, 12 out. 2013. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/133486-procurador-
eleitoral-promete-nao-tolher-debate-politico.shtml?loggedpaywall>.
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito processual do trabalho. 9. ed. São Paulo: LTr, 2011.
STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais de teoria do direito à luz da
crítica hermenêutica do direito. Belo horizonte: Casa do Direito, 2016.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 1.082. Rel. Min. Marco Aurélio. Disponível em: <http://redir.stf.jus.
br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7065151>. Acesso em: 10 nov. 2017.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Informativo, n. 732. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/
informativo/documento/informativo732.htm>. Acesso em: 9 out. 2017.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

STRECK, Lenio Luiz. Um olhar hermenêutico sobre o direito eleitoral. In: FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz
Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura (Coord.); PECCININ, Luiz Eduardo (Org.). Direito
Constitucional Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 17-28. (Tratado de Direito Eleitoral, v. 1.)
ISBN 978-85-450-0496-7.

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CAPÍTULO 2

INTERCONEXÕES DO DIREITO ELEITORAL


COM O DIREITO CONSTITUCIONAL

EMILIANE ALENCASTRO

2.1 Introdução
O reconhecimento da superioridade normativa da Constituição, para além de
impor a limitação e a vinculação de todos os poderes estatais, permitiu a irradiação de seu
conteúdo por todo o ordenamento jurídico. “The Constitution must ever remain supreme.
All must bow to the mandate of this law”.1 Isso implica que não há poder constituído
ou seara jurídica válida que não possua interconexão com o direito constitucional.
Com o direito eleitoral não seria diferente. Tratando-se de ciência dirigida ao
estudo de normas e procedimentos que permitem a escolha dos titulares dos mandatos
eletivos, abrangendo regras, princípios e todas as ações e garantias destinadas ao
exercício do sufrágio popular, a autonomia do direito eleitoral não o absolve do dever
de ser construído e interpretado à luz da Constituição.
Para conhecer a dimensão da interconexão do direito eleitoral com o direito cons­
titucional, fez-se uma análise retrospectiva da formatação do direito eleitoral ao longo da
história das Constituições do Brasil, passando a um exame mais acurado do tratamento
dispendido pela Constituição vigente.

2.2 A força da supremacia constitucional e dos demais instrumentos de


defesa da hierarquia normativa
A Constituição passou a ser tida como norma inaugural e superior no século XVIII.2
Seu escopo primordial era a limitação do poder, tese que ganhou força com a vivência

1
“A Constituição deve sempre ser suprema. Todos devem se curvar ao mandato desta lei” (tradução nossa de
CRUZ, Isagani A. Philippine political law. Quezon City: Central Law Book Publishing, 1991. p. 11).
2
No mesmo sentido, Raul Machado Horta em “A ideia de Constituição despontou no mundo antigo, preocupando
Aristóteles em sua Política, penetrou a idade média com a Magna Charta e ganhou conteúdo mais nítido e

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
30 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

do liberalismo. Em processo contínuo de amadurecimento, a força normativa da Consti­


tuição, tida como instrumento capaz de limitar e vincular a todos os poderes, dotou-a
de prerrogativas, fazendo com que deixasse de ser simples manifesto político e passasse
a ser norma jurídica fundamental e suprema.
A primazia da Constituição advinda com a vivência de um Estado Constitucional
de Direito trouxe prerrogativas à vontade constitucional.3 O direito perfaz-se ainda
mais complexo e a obediência à ordem política passa a exigir uma explicação de ordem
racional,4 sendo premente a construção de uma ciência jurídica congruente, cuja carac­
terização das Constituições acompanhe a construção conceitual que lhes é dispendida.
Tecendo uma análise retrospectiva das principais teses que, ao estabelecer um
conceito de Constituição, justificam a supremacia da Constituição, tem-se que a teoria
do escalonamento de Kelsen dispôs a Lex Mater como fundamento supremo de validade
das normas jurídicas, apondo-a como vértice da pirâmide. Respaldada em uma norma
hipotética fundamental, o formato vertical inaugural reduzia o objeto do fenômeno
jurídico às normas e a um corte axiológico.5 Uma vez superada a crença na existência
de uma ciência jurídica pura, o fundamento do direito e de todo valor jurídico estaria
na Constituição que, por sua vez, justificaria sua supremacia em uma decisão política.6
Mantida a defesa da impureza da norma jurídica, sob uma vertente sociológica, a
supre­macia da Constituição decorre da institucionalização dos fatores reais de poder,7
estando limitada a uma correspondência exata da realidade, desapegada de qualquer
força modificativa.8
Nesse contexto, a Constituição é suprema porque goza de maior referência no
imaginário popular, leia-se força dominante em dado lapso temporal. Suas disposições
atuam como invariáveis axiológicas, alçadas ao patamar de dogmas, validando as demais
por uma filtragem ideológica.9 Violado esse limite de “ser mero respaldo”, perder-se-ia a
força normativa e a Constituição passaria a ser menos que lei ordinária, transmudando-
se em um material qualquer e sem força vinculante.
A ordem jurídica, como um sistema de normas, exige uma identidade que faça da
profusão normativa um sistema; que torne claro o (des)pertencimento da norma a dada
ordem jurídica, de modo que o enfrentamento da validade dela transcende a filiação a
qualquer ciência jurídica e se conecta à questão de qualidade (mais que) formal de norma

preciso na elaboração doutrinária do conceito de Lex Fundamentalis, nos séculos XVII e XVIII” (HORTA, Raul
Machado. Direito constitucional. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 119).
3
BALAGUER CALLEJÓN, Francisco. Fuentes del derecho: principios del ordenamiento constitucional. 1. ed.
Madrid: Tecnos, 1991. p. 16.
4
LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Barcelona: Ariel, 1970. p. 174.
5
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
6
SCHMITT, Carl. Sobre los tres modos de pensar la ciencia jurídica. Tradução de Montserrat Herrero. Madrid: Tecnos,
1996. p. 27.
7
“Se cogen esos factores reales de poder, se extienden en una hoja de papel, se les da expresión escrita, y a partir
de este momento, incorporados a un papel, ya no son simples factores reales de poder, sino que se han erigido
en derecho, en instituciones jurídicas, y quien atente contra ellos atenta contra la ley y es castigado” (LASSALLE,
Ferdinand. Qué es una Constitución. Buenos Aires: Siglo Veinte Uno, 1969. p. 10).
8
“No espírito unânime dos povos, uma Constituição deve ser qualquer coisa de mais sagrado, de mais firme e de
mais imóvel que uma lei comum” (LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. São Paulo: Malheiros, 1995.
p. 24).
9
SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem constitucional. Construindo uma nova dogmática jurídica. Porto Alegre: safE,
1999. p. 104.

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EMILIANE ALENCASTRO
INTERCONEXÕES DO DIREITO ELEITORAL COM O DIREITO CONSTITUCIONAL
31

que retira sua legitimidade de uma outra pressuposta e superior. As prerrogativas da


Constituição emergem como instrumentos à salvaguarda da ordem jurídica.
A supremacia constitucional garante uma imperatividade de feição única às
normas constitucionais, ostentando tal posição de proeminência como decorrência da
soberania da fonte que a produziu:10 o poder constituinte originário –11 em discordância
da predileção de Hauriou.1213 A hegemonia e o caráter central da Constituição impõem
que o ordenamento seja interpretado no sentido que resulta de seus princípios e regras.14
A Constituição recolhe o fundamento de validade em si própria, constituindo
norma normarum, sendo-lhes reconhecido um valor normativo hierarquicamente superior,
o que a faz parâmetro obrigatório.15 Como fonte de produção normativa, justifica a
tendencial rigidez das leis fundamentais. Como parâmetro, conduz à exigência de
conformidade material de todos os atos com as regras e princípios constitucionais,16
razão pela qual, ainda que não haja menção expressa à supremacia, a existência de
normas referentes ao controle de constitucionalidade e de órgão específico de jurisdição
constitucional é suficiente ao reconhecimento da presença de tal prerrogativa.
Assim, a supralegalidade material consubstancia o controle de constitucionali­
dade, seja por vício nomoestático ou nomodinâmico. A supralegalidade formal impõe o
processo legislativo, a gênese das normas infraconstitucionais. Não é excessivo expli­citar
que a sufragação da supralegalidade formal conduzirá à violação da material, tal qual
ocorre na hipótese do vício nomodinâmico.

10
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. Salvador: JusPodivm, 2008. p. 98.
11
O poder constituinte, como manifestação da soberania, concebe a teoria do poder constituinte. Esta, por sua
vez, consubstancia o discurso sobre o poder, sendo o mito fundador e legitimador da ordem constitucional
(BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: para uma crítica do constitucionalismo. São Paulo: Quartier
Latin, 2008. p. 29). “La soberanía consiste em el supremo poder de expedir y derogar las leyes” (HELLER,
Hermann. La soberanía: contribución a la teoria del derecho estatal y del derecho internacional. México: Fondo de
Cultura Económica, 1995. p. 127).
12
Em Hauriou, a Constituição é suprema porque goza de soberania estatal (HAURIOU, Maurice. Principes de droit
public. 12. ed. Paris: Librairie Recueil Sirey, 1916. p. 678).
13
Cite-se, ainda, que em André Vicente Pires Rosa, a Constituição, como positivação jurídica da pretensão do
Poder Constituinte, autoproclama-se norma suprema, sendo, portanto, a justificativa primogênita do status
da Constituição (ROSA, André Vicente Pires. Las omisiones legislativas y su control constitucional. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006. p. 65) Em Enterría, por sua vez, a supremacia constitucional deriva do caráter normativo da
Constituição e de seu conteúdo supremo (GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. Hermenêutica e supremacia
constitucional: el principio de la interpretación conforme la constitución de todo el ordenamento. In: CLÈVE,
Clèmerson Merlin; BARROSO, Luís Roberto (Org.). Doutrinas essenciais – Direito constitucional: teoria geral da
Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 829. v. I). Em Georgakilas, a supremacia encontraria
fundamento na natureza de suas normas, haja vista tratarem da real estrutura da organização do poder político
(GEORGAKILAS, Ritinha Alzira Stevenson. A Constituição e sua supremacia. In: FERRAZ JÚNIOR, Tércio
Sampaio; DINIZ, Maria Helena; GEORGAKILAS, Ritinha Alzira Stevenson. Constituição de 1988: legitimidade,
vigência, eficácia, supremacia. São Paulo: Atlas, 1989. p. 101).
14
GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. Hermenêutica e supremacia constitucional: el principio de la interpretación
conforme la constitución de todo el ordenamento. In: CLÈVE, Clèmerson Merlin; BARROSO, Luís Roberto (Org.).
Doutrinas essenciais – Direito constitucional: teoria geral da Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
p. 829. v. I.
15
Pelo fato de a Lei Maior constituir a ordem fundamental jurídica da coletividade, ela estabelece os princípios
diretivos que forjam a unidade política, regula os procedimentos de superação de conflitos no interior da
sociedade e os procedimentos de formação da unidade política. Desses predicativos advém a força normativa da
Constituição, que permite a prerrogativa de que as normas constitucionais sejam obedecidas e cumpridas pelos
entes estatais e pela sociedade em geral (HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da
Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Fabris, 1998. p. 37).
16
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1997. p. 826;
1074.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
32 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

A supralegalidade é garantia jurídica oferecida às matérias às quais a Constituição,


por opção política, confere superioridade, por entendê-las essenciais ou fundamentais
à própria configuração ou estrutura do Estado, ou à estabilidade social do grupo que a
elas deverá submeter sua conduta coletiva e/ou individual de seus membros. Configura-
se em mecanismo que a própria Constituição desenvolve para garantir a sua obser­
vância pelas normas inferiores, diferindo da supremacia constitucional que, de ordem
sociológica, tem um escopo formal de pôr a norma constitucional num lugar de destaque
na hierarquia normativa.17
A qualidade de suprema conjugada ao caráter supralegal confere à Lei Maior uma
feição paradigmática e subordinante de todo o ordenamento, de modo que nenhum ato
jurídico pode subsistir validamente no âmbito do Estado se contravier seu sentido.18
Do escorço analisado, também resta claro que a supralegalidade, apesar de ser tratada
como prerrogativa independente, é instrumento de garantia da supremacia constitucional.
Se em razão da fonte ou da matéria, o fato é que a superioridade hierárquico-
normativa da Constituição só se coaduna com a vivência de Constituições rígidas.19
A supre­macia constitucional somente se verifica onde exista a rigidez constitucional,
tratando-se de ideias correlatas.20 Sendo o Poder Constituinte superior ao Legislativo,
apoiando-se na soberania da fonte produtora e legitimadora da ordem constitucional,
e conside­rando que o produto daquele é a Constituição, tem-se como consequência a
rigidez da última.21
A Constituição possui uma hierarquia superior às leis ordinárias e não é modifi­
cável pela autoridade legislativa ordinária.22 As Constituições rígidas vivem a distinção
entre o Poder Constituinte e os poderes constituídos.23 A instituição de um processo
diverso e dificultoso é a materialização da transmudação de uma função legislativa
ordi­nária em especial, consubstanciando verdadeiro serviço à democracia.
A rigidez é instrumento à estabilização jurídica. Saber se a Lei Maior implica ou
permite a apreciação de (in)constitucionalidade equivale a saber se a força vinculante
das normas sofre gradações,24 e tal prerrogativa justifica-se na existência de fonte norma­
tiva mais qualificada, o que colmata uma posição de supremacia perante os demais
instrumentos normativos. Nesse sentido, a rigidez seria uma consequência da supre­
macia da Constituição.25

17
DANTAS, Ivo. Novo direito constitucional comparado. Curitiba: Juruá, 2010. p. 166.
18
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional
transformadora. 7. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 111.
19
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. Salvador: JusPodivm, 2008. p. 101.
20
HORTA, Raul Machado. Direito constitucional. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 125.
21
SIEYÈS, Emmanuel Joseph. Observaciones sobre el informe del comité de constitución acerca de la nueva organización
de Francia. Introdução, estudo preliminar e compilação de David Pantoja Morán. Fondo de Cultura Económica:
México, 1993. p. 157.
22
BRYCE, James. Constituciones flexibles y constituciones rigidas. 2. ed. Madrid: Institutos de Estudios Políticos, 1962.
p. 25.
23
As constituições rígidas são atuais, haja vista o fato de seguirem o modelo de constitucionalização desenvolvido
após o término da Segunda Guerra Mundial. A Constituição britânica é singularidade que, aparentemente,
não se repetirá. As Constituições da Nova Zelândia e Israel também são modelos excepcionais, ligados a um
contexto político e social experimentado pelos respectivos Estados (LIPJHART, Arend. Modelos de democracia:
desempenho e padrões de governo em 36 países. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 248).
24
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Coimbra: Coimbra, 1996. p. 37.
25
Em André Ramos Tavares, a supremacia constitucional é que decorre da rigidez atribuída à Constituição.
Comente-se que, acaso tal posicionamento consubstanciasse uma superação dialética, configurada pela negação

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EMILIANE ALENCASTRO
INTERCONEXÕES DO DIREITO ELEITORAL COM O DIREITO CONSTITUCIONAL
33

Na lógica exposta resta irretorquível que a supralegalidade e a rigidez constitu­


cional se apresentam como ideias correlatas à supremacia constitucional. Esta, por sua
vez, é o espírito subjetivo, a ideia lógica que fundamenta tais atributos.
Os instrumentos de defesa da hierarquia normativa da Constituição colmataram
o cenário perfeito ao fenômeno denominado constitucionalização do ordenamento
jurídico, processo de transformação por meio do qual o ordenamento em questão resulta
completamente impregnado pelas normas constitucionais,26 sendo a Constituição capaz
de condicionar a legislação, a jurisprudência, a própria doutrina, as escolhas dos agentes
políticos e as relações sociais.27
Com o direito eleitoral não seria diferente. O direito eleitoral é ramo do direito
público, integrado por um conjunto de normas dirigidas à regulamentação das eleições,
que são meio de conversão da vontade popular em mandatos políticos democráticos.28
Para Fávila Ribeiro, é ciência que se dedica ao estudo de procedimentos e normas que
confi­guram e disciplinam o funcionamento do poder de sufrágio popular, permitindo
a “adequação entre a vontade do povo e a atividade governamental”.29
Por cuidar daquilo que é elementar à perpetuação das instituições políticas, para
além de oferecer a configuração válida que o direito eleitoral deve possuir, fazendo-o
materialmente constitucional, a Constituição cuidou de conferir a algumas matérias o
status de também formalmente constitucionais, fomentando maior estabilidade a essas
matérias e conferindo um status elevado a ser considerado na compreensão de toda a
sistemática do direito eleitoral.
Por ter como objeto matérias que antecedem o histórico das Constituições brasi­
leiras, a configuração do direito eleitoral no Brasil possui contornos singulares, fazendo
com que o legislador vivesse uma experiência tal qual a dos moradores de Macondo,
em Cem anos de solidão de Gabriel García Márquez, onde as coisas eram tão novas que
ainda não tinham um nome propriamente dito. Para identificá-las, era preciso apontar
com as mãos.

2.3 A construção do direito eleitoral pátrio à luz da história das


constituições do Brasil30
Apontemos, então, que para pensarmos a história faz-se premente concebê-la
como uma sucessão de momentos que formam uma totalidade. O póstumo, formulado
para se opor ao momento que o precede, nega seu passado por julgá-lo inadequado,
superando-o na medida em que o eleva a um estágio inferior, a fim de atingir as novas
necessidades.

do caráter primogênito da supremacia constitucional, a Constituição, por sua rigidez, ainda tida como norma
normarum, teria conservado seu fundamento de estabilização jurídica, essência que seria síntese fomentadora de
eventual tese (TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 63).
26
CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003. p. 49.
27
Ressalte-se que as consequências desse fenômeno à ciência jurídica, tais como a ampliação da jurisdição
constitucional e dos mecanismos de interpretação específicos, não merecem deleite neste trabalho, uma vez que
o distanciam de seu objeto.
28
ALVIM, Frederico Franco. Curso de direito eleitoral. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2016. p. 31.
29
RIBEIRO, Fávila. Direito eleitoral. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 4.
30
Neste trabalho, toma-se a primeira Constituição do Brasil como aquela outorgada em 1824, ao alvedrio daqueles
que defendem a lei orgânica elaborada em Pernambuco em 1817 como primeiro texto constitucional brasileiro.

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34 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Dito isto, rememore-se que, antes que fosse elaborada a primeira Carta Magna
brasileira, as eleições eram orientadas pela legislação portuguesa, o Livro das
Ordenações.31 O processo eleitoral envolvia agentes estatais diversos, mas sem indepen­
dência em relação ao governo instituído. O primeiro pleito eleitoral ocorreu em 1532,
no período colonial, com o intuito de que fossem escolhidos os membros da câmara
municipal da Vila de São Vicente/SP. Nesse momento, a qualidade de “homem bom”
era uma espécie de condição de elegibilidade.32
Em 1821, o Brasil experimentou a primeira eleição geral. D. João VI convocou
os brasileiros para a escolha dos representantes que comporiam as “Cortes Gerais de
Lisboa”.33 Pela primeira vez houve uma votação para cargos gerais, cuja função seria
elaborar as estruturas normativas essenciais da metrópole portuguesa. Até então as
eleições se restringiam à escolha dos membros do Legislativo local, ou seja, das câmaras
municipais.
Com a outorga da Constituição de 1824, denominada de “Constituição Política
do Império do Brazil”, instituiu-se uma monarquia, cabendo ao Poder Moderador a
coordenação dos poderes, tendo sido estabelecida a forma unitária de Estado. Possuindo
um sistema de governo sui generis, o primeiro texto constitucional brasileiro tinha o
escopo de organizar a estrutura política e administrativa do país diante da recente
proclamação da independência. A Constituição, após invocar a Santíssima Trindade,
dividia o poder em quatro órgãos – Legislativo, Moderador, Executivo e Judiciário –,
instituindo um Estado em que o imperador acumulava o poder Moderador e a Chefia
do Executivo, conduzido pelo modelo de separação de poder preconizado por Benjamin
Constant.34
Assegurou-se que ocorreriam eleições para a composição do Legislativo – a
Assembleia Geral –, de modo que as nomeações dos deputados e senadores e dos
membros dos conselhos gerais das províncias seriam feitas por meio de eleições
indiretas.35 Por sua vez, o Poder Judiciário, ao menos em nível teórico, era independente,
formado por juízes e por jurados, sendo facultado ao Poder Moderador suspender os
magistrados de sua função.36 Nesse contexto, a sua atuação se dava de forma tímida,
limitando-se à disciplina do alistamento e expedição do título de eleitor.

31
Importante consignar que os processos eleitorais no Brasil começaram bem antes da independência. Quando
os colonizadores chegaram, à medida que foram encontrando metais preciosos e outras especiarias de valor
elevado, utilizavam-se de “eleições” para escolha daqueles que iriam ser os tutores ou guardas-mores regentes
do Tesouro do Rei (GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p 395).
32
FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. 3. ed. São Paulo: Globo, 2001.
p. 214.
33
PRADO JR., Caio. Evolução política do Brasil: Colônia e Império. São Paulo: Brasiliense, 1999.
34
“Si la somme totale du pouvoir est illimitée, les pouvoirs divisés n’ont qu’à former une coalition, et le despotisme
est sans remède. Ce qui nous importe, ce n’est pas que nos droits ne puissent être violés par tel pouvoir, sans
l’approbation de tel autre, mais que cette violation soit interdite à tous les pouvoirs” (CONSTANT, Benjamin.
Écrits politiques. Gallimard: Marcel Gauche, 1997. p. 317; 320).
35
“Art. 90. As nomeações dos Deputados, e Senadores para a Assembléa Geral, e dos Membros dos Conselhos
Geraes das Provincias, serão feitas por Eleições indirectas, elegendo a massa dos Cidadãos activos em Assembléas
Parochiaes os Eleitores de Provincia, e estes os Representantes da Nação, e Provincia”.
36
AGRA, Walber de Moura. Curso de direito constitucional. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 64.

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INTERCONEXÕES DO DIREITO ELEITORAL COM O DIREITO CONSTITUCIONAL
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No art. 179,37 a Constituição ainda contava com um rol de direitos civis e políticos
de baixa eficácia38 que, apesar de ter servido de inspiração para Cartas futuras, mantinha
a escravidão e trazia a hipótese de suspensão do exercício dos direitos políticos por
incapacidade física ou moral, por exemplo (art. 8º, I).
Estabelecido um sistema de eleições indiretas, havia previsão do direito ao voto.
Nas eleições primárias, destinadas à escolha daqueles que votariam nos deputados e
senadores, o voto era censitário, por influência da legislação portuguesa, restrito aos
homens livres, aos maiores de vinte e cinco anos e que possuíssem renda anual de mais de
100 mil réis. Por sua vez, para votar na eleição dos deputados e senadores, fora instituída
espécie de condição de elegibilidade com base na renda anual, tendo que ser superior a
200 mil réis e, para ser candidato, superior a 400 mil réis, além de ser brasileiro e católico.
Ainda sob a égide da Constituição de 1824, foi editado o Dec. nº 3.029/81, a Lei
Saraiva, que introduziu no sistema eleitoral brasileiro o voto direto nas eleições, inclusive
nas eleições dos senadores, deputados à Assembleia Geral, membros das Assembleias
Legislativas provinciais, vereadores e juízes de paz, rompendo a tradição de eleições
indiretas.39 Também determinou que o alistamento fosse de competência da magistratura,
criou o título de eleitor e tratou da cédula do voto.40
A Constituição de 1891, que inaugurou a forma de governo republicana no Brasil,
irrompendo com a divisão tripartite de poder, adotou o modelo de separação de poderes
sugerido por Montesquieu.41 Além de prever a garantia constitucional do remédio cons­
titucional do habeas corpus e a laicidade do Estado, a Constituição de 1981 reafirmou
o fim da escravidão e fora construída com preceitos racionais, declarando que “Todos
são iguaes perante a lei” e que “A Republica não admitte privilegio de nascimento,
desconhece foros de nobreza, e extingue as ordens honorificas existentes e todas as suas
prerogativas e regalias, bem como os titulos nobiliarchicos e de conselho” (art. 72, §2º).
Com o advento da Primeira República, depois da queda da monarquia, introduziu-
se uma nova roupagem ao sistema eleitoral brasileiro. A Constituição, além de recep­
cionar a Lei Saraiva, reiterou o voto direto,42 não secreto,43 também para o Executivo.44

37
“Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade,
a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. [...]”.
38
Tal qual elucida Luís Roberto Barroso, uma das grandes marcas do constitucionalismo imperial é o abismo entre
a abstração normativa e a realidade social e institucional (BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a
efetividade de suas normas. Limites e possibilidades da Constituição brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
p. 12).
39
A Lei Saraiva, promulgada em 1881, foi a provisão mais importante, haja vista que estabelecia o voto direto
e atribuía à magistratura importantes funções (FERREIRA, Luiz Pinto. Código Eleitoral comentado. São Paulo:
Saraiva, 1990. p. 21).
40
“Art. 15. [...] §19. O voto será escripto em papel branco ou anilado, não devendo ser transparente, nem ter
marca, signal ou numeração. A cedula será fechada de todos os lados, tendo rotulo conforme a eleição a que se
proceder”.
41
“Art. 15. São orgãos da soberania nacional o Poder Legislativo, o Executivo e o Judiciario, harmonicos e
independentes entre si”.
42
Apesar de ter sido estabelecido o voto direto, é de conhecimento público que a primeira eleição da República foi
feita por meio de voto indireto, elegendo o Presidente Marechal Deodoro da Fonseca.
43
Sobre a questão do voto censitário, importante que nesse momento foram considerados “eleitores”, detendo
capacidade eleitoral ativa, todos os brasileiros, do sexo masculino, que estavam em gozo de seus direitos civis e
políticos, desde que maiores de 21 anos.
44
Suscite-se que, já em 1890, o Regulamento Alvim, materializado no Decreto nº 511, instituiu o voto direto, mas
não foi eficiente em sanar o problema das fraudes. As mesas eleitorais eram nomeadas pelos presidentes das
Câmaras Municipais, cenário que, diante do número de vícios que fomentava, exigia regulamentação em sentido

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36 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

De maneira acertada, não restringia a elegibilidade a condições econômicas, tendo sido


emendada em 1926 para proibir a reeleição de presidentes e governadores dos estados,
levando ao ápice o princípio da periodicidade dos governos.
A diplomação dos eleitos era realizada pelo sistema de verificação dos poderes,
em que a competência para verificar a vontade dos eleitores cabia ao próprio órgão
legislativo. Cada casa legislativa formava uma comissão de verificação de poderes, que
em nível federal era composta por grupos de deputados responsáveis por determinada
quantidade de estados, analisando os diplomas dos deputados e verificando a “licitude”
das eleições que os elegeram.45 Tal sistema fora alvo de muitas críticas, uma vez que
permitia que o Legislativo diplomasse apenas aqueles que queria, fenômeno conhecido
como “degola”.
O sistema possuía lacunas que colmatava inúmeras burlas. O processo democrático
brasileiro fora aviltado em razão da institucionalização da fraude eleitoral e da existência
de uma oligarquia que favoreceu o surgimento do coronelismo, fenômeno responsável
por transformar a cidadania brasileira numa espécie de “rebanho eleitoral”.46 Tal cenário
fora permissivo à Revolução de 1930, propulsora de uma nova ordem constitucional.
Como defluência do colapso da República Velha pelo movimento de 1930, fora
criada a Justiça Eleitoral em 1932,47 tendo sido estabelecido o voto feminino, o sufrágio
universal e o voto secreto.48 Assim, em 1932 fora elaborado o primeiro Código Eleitoral
(Dec. nº 21.076) e instituída a Justiça Eleitoral, cuja competência tinha uma extensão
além do julgamento de litígios judiciais.49 A realização de uma nova ordenação eleitoral,
elaborada antes da Lex Mater, foi bastante elucidativa, elucubrando que a nova ordem
não poderia mais suportar as contumazes fraudes eleitorais, o coronelismo, a inexistência
de oposição e a inexistência de partidos nacionais.50
Com o supedâneo de um movimento que pregava a modernização das estruturas
arcaicas da Primeira República, cumulada ao repúdio às tratativas político-eleitorais de
grupos dominantes e à busca pela moralização das eleições, fora criada e delimitada as

diverso (FERREIRA, Manoel Rodrigues. A evolução do sistema eleitoral brasileiro. Brasília: Senado Federal, 2001.
p. 226).
45
FIGUEIREDO, Vítor Fonseca. O papel da comissão verificadora de poderes da Câmara Federal para a
articulação do Estado brasileiro durante a Primeira República. In: ENCONTRO REGIONAL (ANPUH-MG),
XVIII, 2012. Anais... Mariana, 2012. Disponível em: <http://www.encontro2012.mg.anpuh.org/resources/
anais/24/1340624650_ARQUIVO_TEXTOCOMPLETOANAISANPUH-VITORFONSECAFIGUEIREDO.pdf>.
Acesso em: 27 fev. 2018.
46
Expressão utilizada na obra em conjunto de SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO,
Daniel. Curso de direito constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 229.
47
SILVA, Zélia Lopes da. A República dos anos 30. A sedução do moderno: novos atores em cena: industriais e
trabalhadores na Constituinte de 1933-1934. Londrina: Ed. UEL, 1999.
48
VELLOSO, Carlos Mário da Silva; AGRA, Walber de Moura. Elementos de direito eleitoral. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
2016. p. 33.
49
“Art. 5º É instituida a Justiça Eleitoral, com funções contenciosas e administrativas. Parágrafo único. São orgãos
da Justiça Eleitoral: 1º) um Tribunal Superior, na Capital da República; 2º) um Tribunal Regional, na Capital de
cada Estado, no Distrito Federal, e na séde do Governo do Território do Acre; 3º) juizes eleitorais nas comarcas,
distritos ou termos judiciários. Art. 6º Aos magistrados eleitorais são asseguradas as garantias da magistratura
federal. Art. 7º Salvo motivo justificado perante o Tribunal Superior, a exoneração de seus membros ou a de
membros dos Tribunais Regionais sómente póde ser solicitada dois anos depois de efetivo exercicio. Art. 8º Ao
cidadão, que tenha servido efetivamente dois anos nos tribunais eleitorais, é licito recusar nova nomeação”.
50
SILVA, Estevão; SILVA, Thiago. Eleições no Brasil antes da democracia: o Código Eleitoral de 1932 e os pleitos de
1933 e 1934. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 23, n. 566, dez. 2015. p. 75.

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EMILIANE ALENCASTRO
INTERCONEXÕES DO DIREITO ELEITORAL COM O DIREITO CONSTITUCIONAL
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competências da Justiça Eleitoral. Até a sua criação, várias formas de sanar as fraudes
ao sistema democrático haviam sido frustradas.51
A República Velha terminou de ser enterrada com a Constituição de 1934, tendo sido
a primeira Constituição a instituir o voto feminino.52 Sob a égide do constitucionalismo
social no Brasil, também se inauguraram o mandado de segurança e a ação popular como
garantias constitucionais. A Lex Mater em comento decorria de um projeto constitucional
progressista no que tange aos direitos sociais e à ordem econômica, mas que nunca pôde
ser vivenciado, haja vista o golpe desferido pelo próprio líder revolucionário. Esclarece
Paulo Bonavides e Paes de Andrade que, apesar do “brilhantismo jurídico”, não havia
um projeto político-econômico no país, instabilidade que prejudicou sobremaneira a
permanência da nova ordem constitucional.53
No curto período de vigência da Constituição de 1934, é importante suscitar
que fora recepcionado o Código Eleitoral supramencionado, o que foi essencial para o
fun­cionamento e a aferição da máquina democrático-representativa.54 Para Pontes de
Miranda, o significado sociológico apropriado da Revolução de 1930 e da Constituição de
1934 foi o de unificar o processo e o direito eleitoral material, direcionando a legislação
às mãos do Poder Legislativo e a aplicação às da Justiça Eleitoral.55
A estruturação dos órgãos da Justiça brasileira começa a ser disciplinada em
nível constitucional a partir do texto constitucional de 1934, que incluiu a Justiça
Eleitoral como órgão do Poder Judiciário,56 com o intuito de garantir a efetiva prática
do sis­tema representativo.57 Tal inovação foi importante tendo em vista que a Justiça
Elei­toral passou a ostentar nível constitucional, estando caracterizada pela supremacia
e suprale­galidade. A Constituição de 1934 também revogou a representação classista,
ou seja, o sufrágio profissional.
Em 1935 foi elaborado um novo Código Eleitoral, substituindo o anterior de 1932.
Tal modificação ocorreu para que houvesse uma adaptação com a nova realidade consti­
tucional e também em razão de críticas realizadas pela própria magistratura eleitoral.58
Fora estabelecida a atuação do Ministério Público no processo eleitoral, tendo sido

51
“As eleições, mais do que expressar as preferências dos eleitores, serviram para legitimar o controle do governo
pelas elites políticas estaduais. A fraude era generalizada, ocorrendo em todas as fases do processo eleitoral
(alistamento dos eleitores, votação, apuração dos votos e reconhecimento dos eleitores)” (NICOLAU, Jairo
Marconi. História do voto no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 34).
52
“Art. 108. São eleitores os brasileiros de um e de outro sexo, maiores de 18 anos, que se alistarem na forma da lei.
Parágrafo único - Não se podem alistar eleitores: a) os que não saibam ler e escrever; b) as praças-de-pré, salvo os
sargentos, do Exército e da Armada e das forças auxiliares do Exército, bem como os alunos das escolas militares
de ensino superior e os aspirantes a oficial; c) os mendigos; d) os que estiverem, temporária ou definitivamente,
privados dos direitos políticos”.
53
BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2002. p. 326.
54
FARIA, Antônio Bento de. Repertório da Constituição Nacional: Lei de Segurança Nacional. Rio de Janeiro:
F. Briguiet, 1935. p. 151.
55
MIRANDA, Francisco C. Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1967. t. IV; Comentários à Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Guanabara, 1937.
t. II.
56
FARIA, Antônio Bento de. Repertório da Constituição Nacional: Lei de Segurança Nacional. Rio de Janeiro:
F. Briguiet, 1935. p. 151.
57
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Justiça Eleitoral e representação democrática. In: ROCHA, Cármen Lúcia
Antunes. Direito eleitoral. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 387.
58
VALE, Teresa Cristina de Souza Cardoso. Pré-História e História da Justiça Eleitoral. In: SIMPÓSIO NACIONAL
DE HISTÓRIA – ANPUH, XXVI, 2011. Anais... São Paulo, 2011. p. 35.

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38 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

também criadas as Juntas Especiais na estrutura do Poder Judiciário, incumbidas de


apurar as eleições municipais. Os juízes eleitorais passaram a ter competência para julgar
os crimes eleitorais, extensão da competência que só existia para os Tribunais Eleitorais.
Ainda na instabilidade da década de 30, fora outorgada a Constituição de 1937
pelo Estado Novo, inspirada na Constituição polonesa fascista de 1935. Na oportunidade,
fora extinto o Senado Federal e a Câmara dos Deputados passou a ser composta por
representantes eleitos por sufrágio indireto (art. 46), forma de voto a ser seguida também
para o chefe do Executivo.
Sob a égide da Constituição de 1937, paralela à restrição de direitos a ao esva­
ziamento do Poder Judiciário, a Justiça Eleitoral, como órgão dotado da função de
possibilitar a expressão da vontade dos eleitores, foi abolida. A competência para legislar
sobre matéria eleitoral, em qualquer nível, por sua vez, esteve sob o crivo privativo da
União.59 Os partidos políticos foram extintos e as eleições diretas suspensas, bem como
foram extintas a Justiça Eleitoral e a Federal. Estabelecera-se o voto indireto às eleições
para presidente da República, com o mandato correspondendo ao lapso temporal de
seis anos.
Há quem defenda, inclusive, que a Constituição em comento sequer entrara em
vigor, sob o argumento de que a condicionante posta no art. 187, qual seja a necessidade
de aprovação em plebiscito, não fora cumprida. Contudo, ainda que houvesse sido
concretizado o plebiscito, o texto constitucional nos seus outros aspectos também não
se realizara, carecendo de eficácia uma vez que fora amplamente desrespeitado.60
Já em 1945, Getúlio Vargas assinou um Ato Adicional (Lei Constitucional nº 9),
convocando eleições para presidente da República, governador de estado, membros
do Parlamento e das Assembleias Legislativas. O referido ato normativo, verdadeira
emenda à Constituição, também previa o sufrágio direto. Em seguida, fora editada nova
Lei Constitucional nº 13, atribuindo poderes constituintes ao parlamento, cujos membros
seriam eleitos um mês depois.
Assim, fez-se necessária a construção de um novo Código Eleitoral, que foi
confeccionado no mesmo ano. A grande inovação foi de conceder exclusividade aos
partidos políticos na apresentação dos candidatos aspirantes aos cargos eleitorais,
expurgando a possibilidade de candidatura avulsa, que prevalecia anteriormente, no
que fortaleceu os partidos políticos. A partir da nova ordem eleitoral passou-se a exigir
o registro dos partidos políticos perante o Tribunal Superior Eleitoral.61
Nesse cenário foi promulgada a Constituição de 1946, com a proposta de redemo­
cratização do país. Além de reinserir o Senado Federal como segunda câmara legislativa,
houve forte desenvolvimento dos direitos sociais e da ordem social e econômica.
No mundo Pós-Segunda Guerra, a onda constitucional trouxe um novo modelo de
Constituição. A nova fórmula envolve a constitucionalização dos direitos fundamentais,
que ficavam imunizados contra a ação eventualmente danosa do processo político

59
“Art. 16 da Constituição de 1937. Compete privativamente à União o poder de legislar sobre as seguintes
matérias: [...] XXIII - matéria eleitoral da União, dos Estados e dos Municípios; [...]”.
60
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de direito
constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 193.
61
CÂNDIDO, Joel José. Direito eleitoral brasileiro. São Paulo: Edipro, 2006. p. 36.

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EMILIANE ALENCASTRO
INTERCONEXÕES DO DIREITO ELEITORAL COM O DIREITO CONSTITUCIONAL
39

majoritário: sua proteção passa a caber ao Judiciário.62 A Justiça Constitucional, em


que se vislumbravam escassos motivos de perigo para a democracia, sobreveio a ser o
instrumento de proteção da Constituição, que passara a desfrutar de efetiva força de
norma superior do ordenamento jurídico, resguardada por mecanismos jurídicos de
censura dos atos que a desrespeitassem.
As alterações promovidas pela Constituição de 1946 impôs a modificação do
Código de 1945 e ensejou a criação do Código Eleitoral de 1950, disciplinando matérias
desco­nhecidas até então, como a garantia do exercício livre da propaganda partidária,
aboliu o processo de alistamento eleitoral ex officio e assegurou o voto do analfabeto e o
voto dos relativamente incapazes – maiores de 16 e menores de 18 anos.
Posteriormente, em 1964, com o golpe militar, foram suspensas as eleições diretas
para o cargo de chefe do Poder Executivo.63 Nesse contexto histórico fora promulgado o
vigente Código Eleitoral brasileiro, por meio da Lei nº 4.737, de 15.7.1965, estabelecendo
competências jurisdicionais, legislativas e administrativas à Justiça Eleitoral.
As crises institucionais vivenciadas sob a vigência da Constituição de 1946
colmataram a destituição do poder civil pela ditadura militar, permitindo que a ordem
constitucional inaugurada pela Constituição de 1967 tivesse a palavra “democracia”
evitada e trocada pela expressão “regime representativo”.64 Seu texto outorgado trouxe
o bipartidarismo e uma centralização exacerbada do poder da União e do presidente da
República.65 Também foi estabelecido o voto indireto para a escolha do chefe do Executivo
e a possibilidade de que fossem suspensos os direitos e garantias constitucionais. A
ditadura atingiu um estágio ainda mais avançado com a edição do Ato Adicional nº 5
de 1968, que previa a possibilidade de suspensão dos direitos políticos e cassação de
mandatos em todas as esferas federativas pelo presidente da República.
Em 1969 foi promulgada a EC nº 1 que, segundo José Afonso da Silva, serviu como
um mecanismo de outorga de um novo texto constitucional, que passou a reger a ordem
jurídico-estatal do Brasil.66 A amplitude das reformas que introduziu pretendia mudar
a ordem constitucional vigente, amparando-se numa série de fatos de natureza política,
econômica e social, contando a participação ativa de múltiplos segmentos da sociedade.
A Constituição de 1988, resultante de um processo de redemocratização do país,
é a mais democrática e avançada na história constitucional brasileira, seja pelo seu
processo de elaboração, seja pela função da experiência acumulada dos acontecimentos
constitucionais pretéritos.67 Tendo elegido como seus fundamentos o pluralismo político
(art. 1º, V) e determinado como objetivos da República uma sociedade livre, justa e

62
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção
do novo modelo. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 263.
63
Trata-se do Código Eleitoral mais duradouro da história brasileira. Depois do de 1932, em 1935, por meio da Lei
nº 48, fora estabelecido o segundo CE. Dez anos depois, fora aprovado o terceiro, por meio do Dec.-Lei nº 7.586.
O quarto resultou da Lei nº 1.164 de 1950, seguido pelo atual Código Eleitoral.
64
MIRANDA, Francisco C. Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. 2. ed. Rio de Janeiro: Henrique Cahen,
1973. p. 423. t. I.
65
A Constituição de 1967 deve ser tida como outorgada, ainda que com o “beneplácito” do Legislativo (BARROSO,
Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo
modelo. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 36-37).
66
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 87.
67
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de direito
constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 203.

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40 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

solidária, bem como a busca da erradicação da pobreza e da marginalização e a redução


das desigualdades regionais (art. 3º, I e III), a Constituição vigente indica a importância
dos direitos fundamentais e sociais na nova ordem jurídica brasileira.
Nesse sentido, como reflexo do reestabelecimento dos direitos políticos e da
liberdade pela sociedade, o Código Eleitoral de 1965 teve que passar por diversas
mudanças guiadas pelas leis eleitorais supervenientes, sendo possível citar a Lei das
Inelegibilidades (LC nº 64/90), a Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096/95), a Lei das
Eleições (Lei nº 9.504/97). Cite-se ainda a Lei da Ficha Limpa (LC nº 135) que, por meio
de iniciativa popular, acresceu novos casos de inelegibilidade e aumentou a sua extensão
temporal, fixando um parâmetro de oito anos, objetivando densificar a probidade e a
moralidade na administração da res publica.
O amadurecimento do direito eleitoral erigiu a Justiça Eleitoral como órgão
de ampla adesão popular, sendo evidente que goza de dilatada legitimidade.68 A sua
configuração atual, para além de guardar congruência com sua historicidade, deve ser
compreendida à luz da Constituição de 1988, sendo premente um exame mais acurado
de como é atualmente estabelecida a sistemática do direito eleitoral.

2.4 O tratamento do direito eleitoral sob a égide da Constituição de 1988


Embora o Código Eleitoral vigente anteceda cronologicamente a Constituição, a
sua recepção implica que a perspectiva do direito eleitoral atual foi adaptada.69 É possível
afirmar, inclusive, que o direito eleitoral está visceralmente ligado à Constituição, de
modo que algumas de suas principais normas encontram-se diretamente no texto
constitucional, seja por meio de regras ou de princípios, sejam explícitos ou implícitos.
Contextualize-se que as normas jurídicas são um gênero que comporta, em meio
a outras classificações,70 duas grandes espécies, quais sejam as regras e os princípios.71
As regras são cláusula de exceção umas das outras, formulando o cotejo do tudo ou
nada.72 São mandamentos ou comandos definitivos que, quando válidos, determinam
a realização exatamente do que exigem. O conflito entre regras é solucionado por meio
de cláusula de exceção que elimine o conflito ou declare inválida uma das regras, ao
menos.73 Como consequência, os direitos nelas fundados também serão definitivos.74

68
“Pouca gente duvida da legitimidade do processo eleitoral brasileiro” (NICOLAU, Jairo Marconi. História do voto
no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 8).
69
O Código Eleitoral foi recepcionado como lei material complementar na parte que disciplina a organização e
a competência da Justiça Eleitoral, sendo lei ordinária no remanescente (STF, Plenário. MS nº 26.604. Rel. Min.
Cármen Lúcia, j. 4.10.2007. DJe, 3 out. 2008).
70
As normas jurídicas comportam inúmeras classificações. No entanto, o objeto deste trabalho desmerece maior
debruçamento.
71
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 255-295.
72
“Regras são aplicadas de modo tudo ou nada. Se os fatos que a regra determinar ocorrerem, então ou a regra é
válida, situação em que a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não, caso em que não contribuirá em nada
para a decisão” (DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1997. p. 24).
73
ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. p. 87-88.
74
“O principal traço distintivo entre regras e princípios, segundo a teoria dos princípios, é a estrutura dos direitos
que essas normas garantem. No caso das regras, garantem-se direitos (ou impõem-se deveres) definitivos,
ao passo que, no caso dos princípios, são garantidos direitos (ou são impostos deveres) prima facie” (SILVA,
Luís Virgílio Afonso da. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais.
Mimeografado. 2005. p. 51).

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EMILIANE ALENCASTRO
INTERCONEXÕES DO DIREITO ELEITORAL COM O DIREITO CONSTITUCIONAL
41

A Constituição de 1988 optou por trazer algumas regras de interesse do direito


eleitoral, conferindo maior estabilidade jurídica a essas matérias. Tal qual organiza
Frederico Arruda Alvim, podemos citar os direitos políticos, algumas hipóteses de
inelegibilidade, a ação de impugnação do mandato eletivo, os partidos políticos e a
organização da Justiça Eleitoral,75 a própria função jurisdicional da Justiça Eleitoral,
entre outras. Cite-se que algumas dessas normas estão abrangidas pela cláusula de
intangibilidade,76 não podendo eventual proposta de emenda tendente a aboli-las ser
sequer objeto de deliberação.
De outra sorte, os princípios possuem a dimensão do peso, podendo interferir uns
nos outros e, nesse caso, deve-se resolver o conflito levando em consideração o peso de
cada um.77 Evidentemente, isso não se faz por meio de critérios de mensuração exatos,
mas segundo a indagação sobre quão importante é um princípio ou qual o seu peso em
dada situação.78 O que ocorre é um confronto de pesos entre as normas que se coteja.
Por outra vertente, os princípios também podem ser compreendidos como normas que
ordenam que algo seja realizado na maior medida, dentro das possibilidades jurídicas e
reais existentes, sendo verdadeiros comandos de optimização.79 O grau de cumprimento
do que o princípio prevê é determinado pelo seu cotejo com outros princípios e regras
opostas (possibilidade jurídica) e pela consideração da realidade fática sobre qual operará
(possibilidade real).80
A vivência da revalorização do direito resultou na concepção de que as forças
sociais não podem ser tratadas simplesmente como objetos, devendo ser integradas na
concepção de direito e Constituição. Resta impossibilitado o afastamento dos valores
sociais das normas de direito. Tais valores devem integrar o direito, sendo postos no
texto fundamental da ordem juridicamente positivada.81
Quando os princípios são incorporados a um sistema jurídico-constitucional-
positivo, refletem a própria estrutura ideológica do Estado, como tal representativa
dos valores consagrados pela sociedade.82 Como representante de valores, o estudo dos
princípios permite o enfrentamento da axiologia constitucional, a qual se manifesta,
em termos de aplicabilidade e eficácia de valores, no sistema constitucional positivo.83
Nesse diapasão, o direito constitucional vivo, longe de ser mero discurso téc­
nico, passa a ser compreendido como realização de valores essenciais da sociedade.84

75
ALVIM, Frederico Franco. Curso de direito eleitoral. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2016. p. 33.
76
“Na medida em que estabelecem as garantias fundamentais para a efetividade dos direitos políticos, essas regras
também compõem o rol das normas denominadas cláusulas pétreas e, por isso, estão imunes a qualquer reforma
que vise a aboli-las” (STF. RE nº 633.703. Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 23.3.2011. DJe, 18 nov. 2011; RE nº 631.102
ED. Rel. p/ o ac. Min. Dias Toffoli, j. 14.12.2011).
77
DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1997. p. 26.
78
DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1997. p. 27.
79
ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. p. 86.
80
ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. p. 86-87.
81
HABERLE, Peter. Teoría de la Constitución como ciencia de la cultura. Madrid: Tecnos, 2000.
82
DANTAS, Ivo. Princípios constitucionais e interpretação constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1995. p. 59.
83
Para Palazzo, o prestígio dos valores constitucionais não se deve à condição de formalmente superiores, mas do
fato de que os princípios constitucionais são valores nos quais o homem reconhece a si mesmo, ainda que condi­
cionados à mutabilidade da história. São valores fundamentais e progressivos, constitucionais no sentido de que
com eles os povos trabalham a construção do futuro (razão da vocação para projeção internacional) (PALAZZO,
Francesco C. Valores constitucionais e direito penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1989. p. 2).
84
CAPPELLETTI, Mauro. O controle de constitucionalidade das leis no direito comparado. 2. ed. Tradução de Aroldo
Plínio Gonçalves. Porto Alegre: safE, 1992. p. 40.

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42 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

A Constituição, como ordem jurídica fundamental da comunidade, passa a abranger


as normas que organizam aspectos básicos da estrutura dos poderes públicos e de seu
exercício, as normas que protegem as liberdades em face do Poder Público e as normas
que tracejam fórmulas de compromisso e de arranjos institucionais para a orientação
das missões sociais do Estado, bem como para a coordenação de interesses multifários,
característicos da sociedade plural.85
Os princípios constitucionais são a porta pela qual os valores passam do plano ético
para o mundo jurídico,86 retirando os princípios de órbita secundária ou subsidiária para
serem alçados ao centro do sistema jurídico. De lá, irradiam-se por todo o ordenamento,
influenciando a interpretação e aplicação das normas jurídicas em geral e permitindo
a leitura moral do direito.87
Os princípios constitucionais são conhecidos majoritariamente como normas
abertas presentes na Constituição, de textura imprecisa quanto à sua incidência
direta e concreta, e que se aplicam como diretrizes de compreensão às demais normas
constitucionais. Isso porque são dotados de grande abstração e têm por objetivo imprimir
determinado significado ou, ao menos, orientar as demais normas que se relacionam
entre si, conferindo unidade à Constituição e ao ordenamento jurídico. Os princípios
constitucionais, portanto, servem de vetores para a interpretação válida da Constituição
e de todas as searas do direto.88
Ivo Dantas, defensor da existência de hierarquia entre princípios,89 leciona que o
vocábulo princípio posto na Constituição, em verdade, não encerra o sentido de espécie
de norma, mas de “mandamento central, nuclear de todo o sistema constitucional” ou
“como origem, ponto inicial, diretriz a ser seguida” por todos os subsistemas.90 Assim,
deve ser compreendido a partir de um papel que desempenha na interpretação da própria
Constituição e de todo o ordenamento jurídico-positivo como um sistema homogêneo
e coerente, determinante da própria atuação do Estado.
Defendida a unidade axiológica da Constituição e de todo o ordenamento jurídico,
passa-se à defesa de que os princípios constitucionais eleitorais colmatam a existência
de um processo eleitoral que assegure a captação da vontade dos eleitores em um pleito
eleitoral desenvolvido de forma livre, justa e transparente. Da relação existente entre
a Constituição e o direito eleitoral, resulta a representação do conteúdo ideológico do
modelo de processo eleitoral consagrado na Constituição, o que conduz à moralização
das eleições.

85
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de direito
constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 61-63.
86
“Every legal system is built upon principles tha reflect its fundamental conceptions and its basic values”
(DOLINGER, Jacob. Evolution of principles for resolving conflicts in the field of contracts and torts. Recueil des
Cours, v. 283, 2000. p. 229).
87
“A leitura moral propõe que todos nós – juízes, advogados, cidadãos – interpretemos e apliquemos estas
cláusulas abstratas (da Constituição) na compreensão de que elas invocam princípios de decência política e
de justiça” (DWORKIN, Ronald. Freedom’s law: the moral reading of the American Constitution. Cambridge:
Harvard University Press, 1996. p. 2).
88
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 205.
89
Para o autor, a presença de princípios constitucionais fundamentais e de princípios gerais (setoriais) significa
a existência de hierarquia (interna) na própria Constituição que funcionará, de modo decisivo, no instante de
apreciar-se a constitucionalidade, seja a norma infra ou inserida na própria Constituição, sobretudo pelo Poder
de Reforma. Assim, admite-se a existência de normas constitucionais inconstitucionais.
90
DANTAS, Ivo. Constituição e processo: direito processual constitucional. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2015. p. 459.

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EMILIANE ALENCASTRO
INTERCONEXÕES DO DIREITO ELEITORAL COM O DIREITO CONSTITUCIONAL
43

O sistema eleitoral, como espécie de sistema jurídico, deve ser dinâmico, aberto
mediante uma estrutura dialógica traduzida na disponibilidade e “capacidade de apren­
dizagem” das normas constitucionais para captarem a mudança da realidade e estarem
dispostas às concepções cambiantes de “verdade” e da “justiça”.91
Não há consonância na doutrina acerca de quais são os princípios específicos
do direito eleitoral. José Jairo Gomes elenca como princípios fundamentais de direito
eleitoral a democracia, a democracia representativa, o Estado Democrático de Direito,
a soberania popular, os princípios republicano e federativo, o sufrágio universal, a
legiti­midade, a moralidade, a probidade e a igualdade, mencionando a existência de
outros princípios.92
Para Roberto Moreira de Almeida, os princípios específicos do direito eleitoral
são o princípio da anualidade ou da anterioridade da lei eleitoral, da celeridade, da
periodicidade da investidura das funções eleitorais, da lisura das eleições ou da isonomia
de oportunidades e o princípio da responsabilidade solidária entre candidatos e partidos
políticos.93 Para Frederico Franco Alvim, as espécies seriam o princípio da lisura ou
da legitimidade das eleições, o da competitividade das eleições, da autenticidade do
resultado, da legalidade, da proteção do processo eleitoral, do máximo aproveitamento
do voto, da máxima extensão do direito de voto, da anualidade ou da anterioridade da
lei eleitoral e o da igualdade do voto.94
A CF faz menção ao pluralismo político e à cidadania, tendo posto tais preceitos
como fundamento da República Federativa Brasileira (art. 1º, V e II); à autenticidade do
voto (direto, secreto, universal e periódico), explicitamente eleita como cláusula pétrea
no art. (60, §4º, II), todos eles integrando aquilo que Raul Machado Horta denomina
“normas centrais na Constituição Federal”.95 A Lex Mater também trata do princípio da
anualidade eleitoral e da normalidade das eleições, trazendo também os princípios da
probidade, moralidade e legitimidade, havendo ainda uma gama de princípios implícitos.
O fato é que a Constituição Federal, em seu art. 1º, constitui a República Federativa
do Brasil em um Estado Democrático de Direito e sua vivência institui a predisposição
de um ordenamento jurídico que goze de legitimidade democrática. Para além da
adequação à lei, exige-se conformação com a vontade popular e com os fins propostos
pelos cidadãos.96 A Constituição emerge como garantia do direito de todos, até mesmo
diante da vontade popular, a fim de assegurar a convivência entre interesses diversos
em uma sociedade heterogênea.97
Como os princípios são a espécie normativa que permite maior abertura dialógica
entre o texto normativo e a realidade fática, possibilitam uma sintonia fina com as
demandas do Estado Democrático de Direito, assumindo relevância ímpar para dirimir
eventuais antinomias e garantir maior eficácia do ordenamento jurídico. Dessa ratio,

91
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2000. p. 1123.
92
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2016.
93
ALMEIRA, Roberto Moreira de. Curso de direito eleitoral. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2016.
94
ALVIM, Frederico Franco. Curso de direito eleitoral. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2016.
95
HORTA, Raul Machado. Direito constitucional. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.
96
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 157.
97
FERRAJOLI, Luigi. Pasado y futuro del Estado de Derecho. Tradução de Pilar Allegue. In: CARBONELL, Miguel
(Ed.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003. p. 13-29.

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44 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

emerge que a violação a um princípio é mais grave do que a ofensa a uma regra positiva,
uma vez que atinge todo o sistema em que se insere o ordenamento.98

2.5 Conclusão
A relação do direito eleitoral com o direito constitucional é tão pujante que as
matérias se confundem. Sem a Constituição, não existe direito eleitoral; e sem as regras
do processo democrático, a Constituição tende a perder sua legitimidade.
Enquanto a Constituição concebe a validade do direito eleitoral, por meio de uma
estrutura principiológica e de regras que gozam de status constitucional, densificando
sua força normativa – pois de outro modo ele ficaria cambiante, ao talante das variáveis
da política brasileira – o direito eleitoral, por sua vez, contribui à perpetuação do Estado.
A regularidade das eleições permite que o Estado se perpetue com as adequações exigidas
pela sociedade complexa que está em constante mudança.
A legítima conversão da vontade popular em mandato político permite que seja
vivenciada a força ativa da Lex Mater, impedindo a experiência do arquiteto introvertido
do pensamento, que de tão acanhado mora por detrás da lua confiscada pelos técnicos
extrovertidos,99 revitalizando, assim, a soberania da fonte que a produziu. Em suma, a
democracia brasileira não pode subsistir sem esses dois pilares.

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98
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 29.
99
Frase que se adequa a qualquer trabalho que defenda a atividade pensante como meio de atingir o conhecimento
(ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Zahar, 2009).

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EMILIANE ALENCASTRO
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47

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
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ALENCASTRO, Emiliane. Interconexões do direito eleitoral com o direito constitucional. In: FUX, Luiz;
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(Org.). Direito Constitucional Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 29-47. (Tratado de Direito Eleitoral,
v. 1.) ISBN 978-85-450-0496-7.

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CAPÍTULO 3

DIÁLOGOS EM TORNO DE UM CONCEITO


INDETERMINADO? AS INELEGIBILIDADES, O SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL E O CONGRESSO NACIONAL

MIGUEL GUALANO DE GODOY

EDUARDO BORGES ESPÍNOLA ARAÚJO

3.1 Introdução
A decisão do Supremo Tribunal Federal que, no bojo do Recurso Extraordinário
nº 929.670/SP, determinou a aplicação retroativa do prazo de inelegibilidade de 8 anos
reacendeu o debate sobre a Lei Complementar nº 135/2010 (a Lei da Ficha Limpa).
Ao final do julgamento do recurso, o Plenário adotou tese de repercussão geral após
rejeitar a modulação dos efeitos da decisão, mantendo a aplicação da norma para
candidaturas registradas já para as eleições de 2018.
A tese de repercussão geral foi fixada nos seguintes termos:

A condenação por abuso do poder econômico ou político em ação de investigação judi­cial


eleitoral, transitada em julgado, ex vi do artigo 22, inciso XIV, da Lei Complementar 64/90,
em sua redação primitiva, é apta a atrair a incidência da inelegibilidade do artigo 1º, inciso
I, alínea “d”, na redação dada pela Lei Complementar 135/2010, aplicando-se a todos os
processos de registros de candidatura em trâmite.

No caso paradigma, o recorrente foi condenado por abuso de poder político e


por captação ilícita de sufrágio nas eleições de 2004, nos termos do caput do art. 22 da
Lei Complementar nº 64/1990. Findo o prazo de inelegibilidade fixado à época, o sujeito
candidatou-se e foi eleito para a legislatura de 2008. Todavia, ao tentar a reeleição em
2012, seu registro foi indeferido pela Justiça Eleitoral com fundamento no novo, e mais
elástico, prazo instituído pela Lei da Ficha Limpa.
Por seis votos a cinco, a estreita maioria dos ministros do STF entendeu que a
ampliação do prazo de restrição de 3 (três) para 8 (oito) anos incidiria sobre os candidatos

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
50 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

declarados como inelegíveis anteriormente à edição da Lei Complementar nº 135/2010.


De acordo com o voto-vista do Ministro Luiz Fux, que foi acompanhado pelos ministros
Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Dias Toffoli e Cármen Lúcia, a retroação
do novo prazo seria constitucional por serem as hipóteses de inelegibilidades “simples
opções político-legislativas, alicerçadas em fundamentos diversos, que limitam o acesso
dos cidadãos aos cargos eletivos”.
Entretanto, para os ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Alexandre
de Moraes, Marco Aurélio e Celso de Mello, a inelegibilidade declarada em decorrência
da condenação no caput do art. 22 da Lei Complementar nº 64/1990 não poderia ser
ampliada a posteriori por não se confundir com a inelegibilidade prevista pela alínea
“d” do inc. I do art. 1º da lei. Por ser o prazo de 3 (três) anos parte integrante da decisão
de procedência da ação de investigação eleitoral, o cumprimento integral seria coberto
pelo manto da coisa julgada formal e material. Possuindo caráter sancionatório, as
inelegibilidades atrairiam o óbice da irretroatividade da lei penal e da proteção à coisa
julgada e ao direito adquirido.
Como todo e qualquer conceito jurídico indeterminado, a inelegibilidade permite
distintas interpretações. Sua centralidade no processo eleitoral, contudo, inspira maiores
debates. Embora haja um consenso sobre ser inelegibilidade o “obstáculo que impede
o cidadão de exercer a cidadania passiva, impossibilitando que ele possa ser votado
e, consequentemente, possa ser detentor de mandato eletivo”,1 há forte dissenso, na
doutrina e também na jurisprudência, em torno de sua natureza jurídica: adequação do
indivíduo ao estatuto eleitoral ou sanção.
A conceituação da inelegibilidade e a avaliação de seus efeitos jurídicos são dois
dos maiores desafios do direito eleitoral.

Por consistir em severa restrição a exercício do direito fundamental, a definição de


ine­le­gibilidade – afastando-a de institutos similares por seus efeitos, mas distintos onto­
logi­ca­mente – implica dificuldade diuturna, verificando-se tratamentos contraditórios
entre doutrina e jurisprudência.2

Longe de ser discussão com fins meramente teóricos, a palavra final sobre qual
a natureza jurídica do instituto impacta a dinâmica da eleição – mais, a dinâmica da
relação entre os poderes.
Explorar divergências teóricas e suas implicações práticas será o objetivo do
presente trabalho. Para tanto, serão identificadas as diferentes posições doutrinárias
sobre a natureza jurídica das inelegibilidades para, após, explorar as interpretações que
o Poder Judiciário já atribuiu a essa categoria. Considerada a importância da discussão
ao processo eleitoral, serão expostas e avaliadas de maneira crítica as possibilidades de
atuação e resposta do Poder Legislativo à controvérsia.

1
AGRA, Walber de Moura. Temas polêmicos de direito eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 19.
2
ZÍLIO, Rodrigo López. Direito eleitoral. 5. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2016. p. 181.

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MIGUEL GUALANO DE GODOY, EDUARDO BORGES ESPÍNOLA ARAÚJO
DIÁLOGOS EM TORNO DE UM CONCEITO INDETERMINADO? AS INELEGIBILIDADES, O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O CONGRESSO NACIONAL
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3.2 A natureza jurídica das inelegibilidades


O direito eleitoral é repleto de conceitos que, não obstante sejam informados por
representações intelectuais e abstratas de algo inteligível, possuem conteúdo e extensão
em larga medida incertos.3 Assim ocorre, por exemplo, com os conceitos de “soberania
popular”, “moralidade, normalidade e legitimidade das eleições” e “processo eleitoral”.
Para além das zonas de certeza negativa e positiva, em que respectivamente não existem
dúvidas sobre a aplicabilidade e inaplicabilidade do conceito, a falta de clareza conduz
à impossibilidade de serem formados juízos de “tudo ou nada”, mas somente de “mais
ou menos”.4 Daí surgirem interpretações distintas, mas todas igualmente plausíveis.
As inelegibilidades, contudo, apresentam particularidades que tornam a ausência
de precisão na sua conceituação especialmente controvertida ao direito eleitoral. Situada
na fronteira entre direito e política, as inelegibilidades impõem restrição ao exercício
do direito eleitoral passivo – ou seja, do direito de receber votos. Portanto, são centrais
em razão do “inegável impacto na competição político-eleitoral, notadamente porque
pode, uma vez reconhecida a inelegibilidade de determinada candidato, modificar o
panorama da eleição, alterando, no limite, o resultado final das urnas”.5
Em regimes nos quais a competição política ocorre por meio do exercício do voto,
as hipóteses de inelegibilidade atuam como instrumento de controle da oferta eleitoral.6
Os requisitos para disputar o voto dos eleitores é uma variável fundamental na definição
da natureza do regime político. Na medida em que existe chance na disputa se os grupos
políticos estão aptos a lançar candidatos, as inelegibilidades mostram-se importantes
meios de garantir a lisura ou permitir a manipulação do processo eleitoral.
O regime militar de 1964 manipulou as hipóteses de inelegibilidades com o fito
de impedir a candidatura e cassar o mandato dos oposicionistas. Valendo-se do pretexto
de preservar a democracia, a exação e probidade administrativa, a lisura e normalidade
da eleição contra o abuso de poder econômico e uso indevido da influência de exercício
de cargos e funções públicas e a moralidade para o exercício do mandato, eram alijados
da disputa política não só os subversivos, mas todos os opositores ao regime.7 Com
base na Lei nº 4.738/1965 e, após, na Lei Complementar nº 5/1970, o governo declarava
inelegíveis os cidadãos que o próprio cassara a partir dos atos institucionais.
A carga moral que fora conferida às inelegibilidades pela Constituição de 1967
não foi replicada na Constituição de 1988, porque “as inelegibilidades possuem, assim,
um fundamento ético evidente, tornando-se ilegítimas quando estabelecidas com
fundamento político ou para assegurar o domínio do poder por um grupo que o venha
detendo, como ocorreu no sistema constitucional revogado”.8 Nos autos da Consulta nº
1.147/DF, de relatoria da Ministra Cármen Lúcia, o Tribunal Superior Eleitoral afirmou
que as hipóteses de inelegibilidades se orientam “à proteção da sociedade, a garantia

3
ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. p. 223.
4
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 28.
5
FUX, Luiz; FRAZÃO, Carlos Eduardo. Novos paradigmas do direito eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 179.
6
MARCHETTI, Vitor. Competição eleitoral e controle das candidaturas: uma análise das decisões do TSE.
Cadernos ADENAUER, São Paulo, v. 15. p. 96.
7
SOARES, Gláucio Ary Dillon. As políticas de cassações. Dados, Rio de Janeiro, n. 21, 1979. p. 70.
8
SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 9. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 231.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
52 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

da liberdade do voto dirigido para aqueles que têm condições de representação dentro
dos princípios acolhidos como valores da sociedade”.
O sentido ético por detrás do instituto exige que suas hipóteses sejam criadas e
aplicadas com vistas à realização da soberania popular, não de um moralismo amorfo.
A eticidade por detrás do instituto ficou ainda mais clara com a revisão constitucional
feita em obediência ao art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, quando
o constituinte alterou a redação do art. 14, §9º, da Constituição a fim de acrescer aos
objetivos da inelegibilidade, até então voltada à proteção da normalidade e legitimidade
dos pleitos contra influência do poder econômico e abuso do exercício de função, cargo
ou emprego na Administração Pública, a salvaguarda da probidade administrativa e
da moralidade para o exercício do mandato.9
Na democracia, a inelegibilidade possui três fundamentos éticos: a manutenção e
o funcionamento do regime democrático, para garantir a moralidade e a neutralidade em
face do poder econômico e político, a defesa do princípio da isonomia, para garantir que
todos os cidadãos tenham igual chance na disputa política, e a salvaguarda do princípio
republicano, para garantir que todos os cidadãos possam ocupar cargos públicos e evitar
que determinados grupos políticos ou familiares perpetuem-se no poder.10
A tradição do direito constitucional brasileiro era a de restringir as hipóteses de
inelegibilidade apenas às hipóteses previstas constitucionalmente, não admitindo outras
que não as previstas nos textos constitucionais – assim foi nas Constituições de 1891,
de 1934 e de 1946.11 Já no governo militar, primeiro mediante a Emenda Constitucional
nº 14/65 e depois pela Constituição de 1967, foi permitida a instituição de novas hipóteses
via legislação infraconstitucional. A Constituição de 1988, em igual sentido, estipula em
seu art. 14, §9º, que “a lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e
os prazos para sua cessação [...]”.
Por representarem uma limitação inequívoca ao princípio da soberania popular,
as hipóteses de inelegibilidade devem ser instituídas diretamente no texto constitucional
ou em lei de natureza complementar. A Constituição de 1988, particularmente nos §§4º,
5º, 6º e 7º do seu art. 14, estabelece algumas hipóteses de inelegibilidade. A primeira
é a inelegibilidade dos inalistáveis, que são os estrangeiros e brasileiros em período
de serviço militar obrigatório, e dos analfabetos. A segunda é a inelegibilidade por
motivos funcionais. Os chefes do Poder Executivo, seus sucessores e substitutos no
mandato só poderão ser reeleitos para um único período subsequente. A última hipótese
constitucional é a inelegibilidade reflexa, a abarcar os indivíduos que possuem vínculos
pessoais com o chefe do Poder Executivo, como cônjuge, companheiro e parente.
Em atendimento ao art. 14, §9º, da Constituição de 1988 e revogando a Lei Com­
plementar nº 5/1970, o legislador ordinário promulgou a Lei Complementar nº 64/1990 a
fim de viabilizar o controle de candidaturas a partir de critérios infraconstitucionais da
probidade administrativa, moralidade pública, normalidade e legitimidade dos pleitos.
Nos incisos e parágrafos dos arts. 1º e 2º da Lei Complementar nº 64/1990, estão previstas
as hipóteses de inelegibilidade e seus respectivos prazos de duração.

9
ARCURI, Daniela Maraccolo. É a inelegibilidade condição, sanção ou causa? Ballot, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, jan./
abr. 2016. p. 190.
10
AGRA, Walber de Moura. Temas polêmicos de direito eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 151.
11
MARINHO, Josephat. Inelegibilidades no direito brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 2, n. 6,
jun. 1965. p. 6.

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MIGUEL GUALANO DE GODOY, EDUARDO BORGES ESPÍNOLA ARAÚJO
DIÁLOGOS EM TORNO DE UM CONCEITO INDETERMINADO? AS INELEGIBILIDADES, O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O CONGRESSO NACIONAL
53

Os dispositivos legais não deixam margem à dúvida sobre a conceituação da


inelegibilidade como um obstáculo ao exercício dos direitos políticos passivos e à
eventual assunção de cargo público eletivo. Tanto é que a doutrina nacional pouco
diverge em torno das definições. Para José Afonso da Silva, por exemplo, trata-se do
“impe­dimento à capacidade eleitoral passiva (direito de ser votado)”.12 Em definição
seme­lhante, José Jairo Gomes entende como o “impedimento ao exercício da cidadania
passiva, de maneira que o cidadão fica impossibilitado de ser escolhido para ocupar
cargo político-eletivo”.13 Rodrigo López Zílio, para citar mais um exemplo, define como
“impedimento ou restrição à capacidade eleitoral passiva, previsto expressamente na
Constituição Federal ou em Lei Complementar, pelo prazo estabelecido em lei”.14
A controvérsia doutrinária instala-se quando se põe em discussão o regime jurídico
das inelegibilidades. Há uma corrente majoritária, para quem as inelegibilidades podem
ser qualificadas como inadequação do indivíduo em face do estatuto jurídico ou sanção
decorrente da prática de ilícito eleitoral, a depender da hipótese. Por outro lado, há
uma parcela minoritária entre eleitoralistas que defende um único regime jurídico – a
inelegibilidade como inadequação.
Majoritariamente, entende-se que há inelegibilidade cominada e inelegibilidade
originária (ou inata).15 No caso de inelegibilidade cominada, encartada pelos arts. 19 e
20, inc. XIV, da Lei Complementar nº 64/1990, “está-se no campo da responsabilidade
eleitoral, havendo responsabilização pela prática de atos ilícitos ou auferimento de
benefícios destes decorrentes”.16 Trata-se da sanção a ser aplicada ao cidadão por decisão
judicial de natureza constitutiva em razão da prática de abuso de poder econômico ou
político, como descrito nas normatizações eleitorais.
No caso de inelegibilidade originária, que encontra assento no art. 14, §§4º a 7º,
da Constituição da República de 1988 e art. 1º, inc. I, da Lei Complementar nº 64/1990,
têm-se as hipóteses que descrevem um impedimento, uma inadequação do cidadão ao
regime jurídico-eleitoral. Prescindindo da prática de transgressão eleitoral, pois busca
a garantia dos princípios do equânime tratamento dos candidatos e da moralidade
administrativa,17 a inelegibilidade inata – ou originária – será declarada pelo Poder
Judiciário caso a descrição normativa amolde-se ou não a um fato jurídico.
O entendimento majoritário, que distingue as inelegibilidades entre cominadas
e originárias (ou inatas), apoia-se em três razões.18 A primeira razão se funda sob o
argumento de que a inelegibilidade-sanção decorreria da condenação por abuso do poder
econômico, desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos meios de comunicação,
ao passo que a inelegibilidade-inata decorreria de condições subjetivas que tornam os

12
SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 9. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 230
13
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 195.
14
ZÍLIO, Rodrigo López. Direito eleitoral. 5. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2016. p. 189.
15
Será mapeada a discussão sobre o regime jurídico com amparo na leitura de Luiz Fux e Carlos Eduardo Frazão.
Há outras leituras possíveis, a exemplo de Daniela Maraccolo Arcuri, para quem a inelegibilidade é enquadrada
ora como condição, causa ou sanção. Cf. ARCURI, Daniela Maraccolo. É a inelegibilidade condição, sanção ou
causa? Ballot, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, jan./abr. 2016.
16
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 199.
17
COSTA, Adriano Soares da. Instituições de direito eleitoral. 10. ed. rev., ampl. e atual. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
p. 184.
18
FUX, Luiz; FRAZÃO, Carlos Eduardo. Novos paradigmas do direito eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 180-
181.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
54 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

titulares inadequados à postulação de cargos eletivos. A segunda razão se funda sob o


argumento de que existe a inelegibilidade como sanção porque assim está expressamente
previsto no dispositivo normativo: “cominando-lhes a sanção de inelegibilidade para
as eleições que se realizarem nos oito anos subsequentes à eleição em que se verificou”.
A terceira razão se funda sob o argumento de que a inelegibilidade é sanção na medida
em que a causa restritiva consta do título judicial que reconhece a prática abusiva.
A parcela minoritária dos eleitoralistas rejeita a dualidade dos regimes jurídicos
sob o argumento de que o art. 22, inc. XIV, da Lei Complementar nº 64/1990 cuidou
somente de reproduzir em forma procedimental “a inelegibilidade da alínea ‘d’, espe­
cificamente indicando os comandos impostos ao juiz nas hipóteses de condenação por
abuso de poder econômico, abuso de poder de autoridade e pelo uso indevido dos meios
de comunicação”.19 Ambas possuiriam igual natureza uma vez que seriam aferidas
apenas quando da formalização do registro de candidatura, permanecendo até então
sobrestados os efeitos da declaração da inelegibilidade. Uma vez afastada a dualidade,
seriam todas as inelegibilidades mera inadequação do cidadão às prescrições do estatuto
jurídico-eleitoral – porque assim fora fixado pelo Supremo Tribunal Federal na Ação
Direta de Inconstitucionalidade nº 4.578 e nas ações declaratórias de constitucionalidade
nºs 29 e 30.
Entre os desdobramentos da definição do regime jurídico das inelegibilidades, o
principal respeita à retroatividade das novas hipóteses. Uma vez estabelecido serem as
inelegibilidades apenas a exigência de adequação ou conformação ao regime quando do
requerimento do registro de candidatura, o resultado será a instantaneidade dos efeitos
da inelegibilidade, respeitando-se somente o princípio da anualidade eleitoral previsto
pelo art. 16 da Constituição de 1988, na medida em que não há direito adquirido a
regime jurídico,20 consoante o entendimento consolidado do Supremo Tribunal Federal.
Contudo, se assentado que as inelegibilidades podem ter natureza sancionatória,
sob os argumentos de que decorrem da prática de ilícito eleitoral e que almejam impedir
a repetição das condutas reprováveis, as hipóteses de inelegibilidade cominada devem
ser aplicáveis exclusivamente aos fatos jurídicos ocorridos após a entrada em vigência
do dispositivo normativo.21 Ainda que não possuam a natureza dos ilícitos penais, as
novas causas incidirão em respeito aos preceitos da segurança jurídica e legalidade.
Como é característico dos conceitos jurídicos indeterminados,22 cujos contornos
são desenhados pela Administração Pública na aplicação das leis e pelo Poder Judiciário
na resolução de litígios, o regime jurídico das inelegibilidades foi definido pelo Poder
Judiciário – por meio do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal,
como será visto adiante.

19
FUX, Luiz; FRAZÃO, Carlos Eduardo. Novos paradigmas do direito eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 187.
20
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 196.
21
AGRA, Walber de Moura. Temas polêmicos de direito eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 162.
22
ROMERO-PÉREZ, Jorge Enrique. El principio de seguridad juridica en el derecho administrative. In: VALIM,
Rafael; OLIVEIRA, José Roberto Pimenta; DAL POZZO, Augusto Neves (Coord.). Tratado sobre o princípio da
segurança jurídica no direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2013.

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MIGUEL GUALANO DE GODOY, EDUARDO BORGES ESPÍNOLA ARAÚJO
DIÁLOGOS EM TORNO DE UM CONCEITO INDETERMINADO? AS INELEGIBILIDADES, O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O CONGRESSO NACIONAL
55

3.3 A interpretação judicial das inelegibilidades


A juridicização e a posterior judicialização da disputa política transferiram ao
Poder Judiciário um papel fundamental no funcionamento da democracia – chegando ao
ponto de tutelar o eleitor na escolha dos governantes por meio da cassação de registros
de candidatura e mandatos eletivos.23 Via de regra, cabe ao Tribunal Superior Eleitoral a
decisão final nos processos eleitorais, mediante recurso especial eleitoral, franqueando-se
acesso ao Supremo Tribunal Federal apenas no caso de afronta expressa a dispositivo
constitucional, devendo ser interposto recurso extraordinário contra o acórdão eleitoral.
Como “guardião da Constituição”, o Supremo Tribunal Federal também pode ser
diretamente provocado a aferir a adequação da legislação eleitoral frente à Constituição
de 1988 por meio das ações de controle abstrato de constitucionalidade.
Tanto no controle abstrato quanto no concreto, o Supremo Tribunal Federal atua
no delineamento dos contornos dos conceitos jurídico-eleitorais indeterminados – como
quitação eleitoral e processo eleitoral, por exemplo.24 Carente de definição na lei infra­
cons­titucional, o conceito de quitação eleitoral foi ampliado a fim de acrescentar em
seu âmbito, que já abarcava o gozo e o exercício dos direitos políticos e o atendimento
das con­vocações da Justiça Eleitoral, a regular prestação de contas e o pagamento das
multas eleitorais. Para determinar a incidência ou não do princípio da anualidade
eleitoral prevista no art. 16 da Constituição de 1988, discussões foram travadas em
torno da extensão do “processo eleitoral” para definir seu campo de incidência e seu
lapso temporal.
E assim foi por diversas e polêmicas vezes chamado a decidir sobre o conteúdo e
a extensão da categoria “inelegibilidade”, inclusive antes da promulgação do texto em
vigência. Em setembro de 1963, quando o governo de João Goulart emitiu os primeiros
sinais da radicalização política que conduziria ao isolamento generalizado entre a direita
e esquerda,25 o Supremo Tribunal Federal foi instado a decidir sobre a elegibilidade dos
sargentos sob a Constituição de 1946. Com amparo no parágrafo único de art. 132 da
Carta,26 o Supremo confirmou decisão de Tribunal Regional Eleitoral que declarara ser
inelegível a categoria. Em reação, os sargentos da Aeronáutica e Marinha sublevaram-se
em Brasília por doze horas, cortaram as comunicações da capital com o restante do país
e detiveram o Ministro do Supremo, Victor Nunes Leal, e o Presidente em exercício da
Câmara dos Deputados, Clóvis Mota.
Sob a vigência da Constituição Republicana de 1988, o Supremo Tribunal Federal
começou a delimitar as inelegibilidades ao diferenciar suas hipóteses frente às condições
de elegibilidade. Tal diferenciação já fora assentada, à luz da Constituição de 1967 e

23
Cf. ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Justiça Eleitoral contramajoritária e soberania popular: a democrática vontade
das urnas e a autocrática vontade judicial que a nulifica. Revista Jurídica da Universidade do Sul de Santa Catarina,
ano 3, n. 7, jul./dez. 2013.
24
SALES, José Edvaldo Pereira. Conceitos jurídicos indeterminados no direito eleitoral: em busca de referenciais
(compromissos) hermenêuticos. Revista de Direito Eleitoral – RBDE, Belo Horizonte, ano 4, n. 6, p. 98-104, jan./jun.
2012.
25
FERREIRA, Jorge. O golpe faz 50 anos. In: ALONSO, Angela; DOLHNIKOFF, Miriam (Org.). 1964 – Do golpe à
democracia. São Paulo: Hedra, 2015. p. 49.
26
“Art. 132. Não podem alistar-se eleitores: [...]. Parágrafo único. Não podem alistar-se eleitores as praças de pré,
salvo os aspirantes a oficial, os suboficiais, os subtenentes, os sargentos e os alunos das escolas militares de
ensino superior”.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
56 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

da já revogada Lei Orgânica dos Partidos Políticos, em artigo clássico de José Carlos
Moreira Alves.27 Em suma, seriam os pressupostos de elegibilidade os requisitos aos
quais o cidadão deve atender para que possa disputar os pleitos, ao passo que as causas
de inelegibilidade seriam os impedimentos que, se não afastados pelo indivíduo que
atende aos pressupostos de elegibilidade, impedem sua participação na eleição ou
fundamentam a impugnação do mandato – se eleito.
Entretanto, fez-se indispensável reafirmar a distinção em virtude de o legislador
por vezes empregar “inelegibilidade” em seu sentido amplo, abarcando ali a ideia de
“elegi­bilidade”.28 Assim está, por exemplo, no caput do art. 2º da Lei Complementar
nº 64/1990, que fixa a competência da Justiça Eleitoral para “conhecer e decidir as
arguições de inelegibilidade”, e no art. 15, que prevê a negativa ou o cancelamento
de registro quando “transitada em julgada ou publicada decisão proferida por órgão
colegiado que declarar a inelegibilidade do candidato”.
O Supremo Tribunal Federal debruçou-se sobre a questão quando do julgamento
das ações diretas de inconstitucionalidade nºs 1.057-MC/BA e nº 1.063-MC/DF, ambas
da relatoria do Ministro Celso de Mello. Ao apreciar dispositivos legais que dispunham,
respectivamente, sobre eleição indireta para governador e vice-governador no caso de
dupla vacância no último biênio do mandato e sobre o processo eleitoral de 1994, o
ministro relator destrinçou novamente a distinção entre as causas de inelegibilidade,
cuja previsão está no art. 14, §§4º a 7º, da Constituição e na Lei Complementar nº 64/1990,
e os pressupostos de elegibilidade, que estão arrolados no art. 14, §3º, da Constituição
da República.
Especificamente nesse ponto, o acórdão da ADI nº 1.063-MC/DF consignou:

[...] PRESSUPOSTOS DE ELEGIBILIDADE: O domicílio eleitoral na circunscrição e a filiação


partidária, constituindo condições de elegibilidade (CF, art. 14, §3º), revelam-se passíveis
de válida disciplinação mediante simples lei ordinária. Os requisitos de elegibilidade não
se confundem, no plano jurídico-conceitual, com as hipóteses de inelegibilidade, cuja
definição - além das situações já previstas diretamente pelo próprio texto constitucional (CF,
art. 14, §§5º a 8º) - só pode derivar de norma inscrita em lei complementar (CF, art. 14, §9º). 

A consequência principal da diferenciação entre as causas de inelegibilidade e os


pressupostos de elegibilidade é o afastamento da reserva de lei complementar no que diz
respeito aos pressupostos positivos – para empregar a conceituação do Ministro Moreira
Alves.29 Ao contrário dos casos que ensejam o impedimento ao direito político passivo,
que são instituídos por lei complementar, as condições para o exercício da capacidade
eleitoral passiva podem ser fixadas por lei ordinária.
A discussão foi retomada pelo Tribunal Superior Eleitoral ao julgar o polêmico
RO nº 1.069/RJ. A importância deste precedente não está apenas na reafirmação da
distinção entre elegibilidade e inelegibilidade, mas também na compreensão de que o
§9º do art. 14 da Constituição não seria autoaplicável por conferir à lei complementar a

27
ALVES, José Carlos Moreira. Pressupostos de elegibilidade e inelegibilidades. Estudos Eleitorais, Brasília, v. 11,
n. 2, maio/ago. 2016.
28
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 196.
29
ALVES, José Carlos Moreira. Pressupostos de elegibilidade e inelegibilidades. Estudos Eleitorais, Brasília, v. 11,
n. 2, maio/ago. 2016.

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DIÁLOGOS EM TORNO DE UM CONCEITO INDETERMINADO? AS INELEGIBILIDADES, O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O CONGRESSO NACIONAL
57

regulamentação de outras hipóteses de inelegibilidade a fim de resguardar “a probidade


administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregresso
do candidato”. A Justiça Eleitoral, posteriormente, chegou a editar a Súmula TSE nº 1330
para assentar este entendimento.
A fim de atender ao comando do dispositivo constitucional, foi promulgada a Lei
Complementar nº 135, que, em resumo, instituiu novas hipóteses de inelegibilidade e
ampliou os prazos de suspensão dos direitos políticos.31 Durante o vácuo legislativo, o
Supremo Tribunal Federal foi instado a se manifestar sobre a suposta incompatibilidade
entre a Lei Complementar nº 64/1990 e a Emenda Constitucional nº 4 no que respeitava
à exigência do trânsito em julgado das decisões judiciais para incidir a inelegibilidade.
O acórdão da ADPF nº 144, de relatoria do Ministro Celso de Mello, reafirmou a
presunção de inocência a fim de condicionar a inelegibilidade ao trânsito em julgado,
mas reconheceu a competência do legislador em fixar novas hipóteses de restrição ao
direito eleitoral passivo.
A Lei Complementar nº 135/2010 foi alvo de três ações de controle concentrado:
duas ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs nºs 29 e 30) e uma ação direta
de inconstitucionalidade (ADI nº 4.578). A natureza jurídica das inelegibilidades não
era controvérsia estranha à Corte e à sua jurisprudência, que sobre a questão já se
pronunciara, por exemplo, no MS nº 22.087/DF. Sob a relatoria do Ministro Carlos
Velloso, o acórdão consignou que a lei de inelegibilidade incidiria sim em fatos ocorridos
anteriormente à sua vigência, por não ser a inelegibilidade sanção:

CONSTITUCIONAL. ELEITORAL. INELEGIBILIDADE. CONTAS DO ADMINISTRA­DOR


PÚBLICO: REJEIÇÃO. Lei Complementar n. 64, de 1990, art. 1., I, “g”.
I - Inclusão em lista para remessa ao órgão da Justiça Eleitoral do nome do administrador
público que teve suas contas rejeitadas pelo T.C.U., além de lhe ser aplicada a pena de
multa. Inocorrência de dupla punição, dado que a inclusão do nome do administrador
público na lista não configura punição.
II - Inelegibilidade não constitui pena. Possibilidade, portanto, de aplicação da lei de
inelegibilidade, Lei Compl. n. 64/90, a fatos ocorridos anteriormente a sua vigência.
III - A Justiça Eleitoral compete formular juízo de valor a respeito das irregularidades
apontadas pelo Tribunal de Contas, vale dizer, se as irregularidades configuram ou não
inelegibilidade.
IV - Mandado de segurança indeferido.

Sobre a Lei Complementar nº 135/2010, o Supremo Tribunal Federal já havia se ma­


nifestado nos autos do Recurso Extraordinário nº 633.703/MG, sob relatoria do Ministro
Gilmar Mendes. De forma inédita,32 o STF deu provimento a recurso extraordinário contra

30
Não é autoaplicável o §9º do art. 14 da Constituição, com a redação da emenda constitucional de Revisão
nº 4/1994.
31
Sobre o processo legislativo que levou à promulgação da LC nº 135 e as inovações trazidas ao regime jurídico-
eleitoral das inelegibilidades, cf. SALGADO, Eneida Desiree; ARAÚJO, Eduardo Borges. Do Legislativo ao
Judiciário: a Lei Complementar nº 135/2010 (“Lei da Ficha Limpa”), a busca pela moralização da vida pública e
os direitos fundamentais. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 13, n. 54,
out./dez. 2013. p. 124-131.
32
MARCHETTI, Vitor. O “Supremo Tribunal Eleitoral”: a relação entre STF e TSE na governança eleitoral
brasileira. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC, Belo Horizonte, ano 5, n. 20, out./dez. 2011. p. 170.

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58 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

acórdão do Tribunal Superior Eleitoral para afastar a incidência da Lei da Ficha Limpa
ao pleito ocorrido no ano de sua promulgação, em atenção ao art. 16 da Constituição
de 1988: “Toda limitação legal ao direito de sufrágio passivo, isto é, qualquer restrição
legal à elegibilidade do cidadão constitui uma limitação da igualdade de oportunidades
na competição eleitoral”.
O Supremo Tribunal Federal, no RE nº 633.703/MG, evoluiu no entendimento
adotado por ocasião do RE nº 129.392/DF. Quando da promulgação da Lei Complementar
nº 64/1990, foi questionada a compatibilidade de seu art. 27, que determinava a entrada
em vigor da lei “na data da sua publicação” frente ao princípio da anterioridade
eleitoral. Contudo, o entendimento prevalecente foi o de que “cuidando-se de diploma
exigido pelo art. 14, §9º, da Carta Magna, para complementar o regime constitucional
de inelegibilidades, à sua vigência imediata não se pode opor o art. 16 da mesma
Constituição”.
No bojo das ADCs nºs 29 e 30 e da ADI nº 4.578, julgadas conjuntamente em
fevereiro de 2012, o Supremo Tribunal Federal consolidou seu posicionamento sobre a
natureza jurídica da inelegibilidade, ao tempo em que também consolidou divergências
internas em torno da aplicação retroativa de suas hipóteses –33 que assim permaneceram
até o julgamento do RE nº 929.670/DF, em outubro de 2017.
Relator das três ações, o Ministro Luiz Fux pontuou que as inelegibilidades nada
mais seriam do que a “imposição de um novo requisito negativo para que o cidadão possa
candidatar-se a cargo eletivo, que não se confunde com agravamento de pena ou com
bis in idem”. Em igual sentido, o Ministro Ricardo Lewandowski “rememorou inexistir
retroatividade, porquanto não se cuida de sanção, porém de condição de elegibilidade”.
Ao lado dos ministros Luiz Fux e Ricardo Lewandowski, compuseram a frágil
maioria os ministros Joaquim Barbosa, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Ayres Britto, para
quem as causas poderiam incidir retrospectivamente. Saíram vencidos os ministros
Celso de Mello, Marco Aurélio, Cezar Peluso e Dias Toffoli.
O acórdão, no tocante à natureza das inelegibilidades, assim dispôs:

[...] 1. A elegibilidade é a adequação do indivíduo ao regime jurídico - constitucional e legal


complementar - do processo eleitoral, razão pela qual a aplicação da Lei Complementar
nº 135/10 com a consideração de fatos anteriores não pode ser capitulada na retroatividade
vedada pelo art. 5º, XXXVI, da Constituição, mercê de incabível a invocação de direito
adquirido ou de autoridade da coisa julgada (que opera sob o pálio da cláusula rebus sic
stantibus) anteriormente ao pleito em oposição ao diploma legal retromencionado; subjaz
a mera adequação ao sistema normativo pretérito (expectativa de direito) [...].
6. O princípio da proporcionalidade resta prestigiado pela Lei Complementar nº 135/10, na
medida em que: (i) atende aos fins moralizadores a que se destina; (ii) estabelece requisitos
qualificados de inelegibilidade e (iii) impõe sacrifício à liberdade individual de candidatar-
se a cargo público eletivo que não supera os benefícios socialmente desejados em termos
de moralidade e probidade para o exercício de referido múnus publico [...].

33
SALGADO, Eneida Desiree; ARAÚJO, Eduardo Borges. Do Legislativo ao Judiciário: a Lei Complementar
nº 135/2010 (“Lei da Ficha Limpa”), a busca pela moralização da vida pública e os direitos fundamentais. A&C –
Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 13, n. 54, out./dez. 2013. p. 142.

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DIÁLOGOS EM TORNO DE UM CONCEITO INDETERMINADO? AS INELEGIBILIDADES, O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O CONGRESSO NACIONAL
59

Nesses termos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal confirmou que as causas


de inelegibilidade encartadas nas alíneas do inc. I do art. 1º da Lei Complementar 64/1990,
já com a redação dada pela Lei Complementar nº 135/2010, não encerrariam sanções,
mas sim inadequações do cidadão às prescrições do estatuto jurídico eleitoral.34
Idêntico entendimento já fora esposado pelo Tribunal Superior Eleitoral devido às
duas consultas formuladas quando do advento da nova legislação e do surgimento de
dúvidas sobre a aplicabilidade ao pleito de 2010.35 Em ambas as consultas, foi vencido
o Ministro Marco Aurélio.
Na Consulta nº 1.120-26, relatada pelo Ministro Hamilton Carvalhido, indagou-se:
“Uma lei eleitoral que disponha sobre inelegibilidade e que tenha a sua entrada em vigor
antes do prazo de 5 de julho, poderá ser efetivamente aplicada para as eleições gerais
de 2010?”. A resposta do Tribunal Superior Eleitoral, para admitir a aplicação da Lei
Complementar nº 135/2010 às eleições que ocorreriam no ano da entrada em vigência,
era a de que as normas sobre inelegibilidade não possuiriam a natureza de sanção penal,
prescindido assim da observância do princípio da presunção de inocência.
A segunda consulta, relatada pelo Ministro Arnaldo Versiani, também tratava da
aplicação imediata e retroativa das novas causas e dos novos prazos de inelegibilidade.
O Tribunal Superior Eleitoral, entre suas respostas aos quesitos formulados, reafirmou a
premissa de que as inelegibilidades não seriam penas. Ventilando diversos precedentes
do próprio TSE, definiu-se que “a inelegibilidade assim como a falta de qualquer
condição de elegibilidade, nada mais é do que uma restrição temporária à possibilidade
de qualquer pessoa se candidatar, ou melhor, de exercer algum mandato”.
O alinhamento entre o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral
não se dá apenas no regime jurídico das inelegibilidades. As características do modelo
brasileiro de governança eleitoral,36 que podem ser resumidas a órgão pertencente ao
Poder Judiciário, concentração de atividades administrativas, executivas e contenciosas,
e blindagem contra a interferência política, tornam o Tribunal Superior Eleitoral “um
órgão do STF para matérias eleitorais – não de direito, mas de fato”.37
Em primeiro lugar, três dos integrantes do órgão de cúpula da Justiça Eleitoral
são ministros do Supremo Tribunal Federal. Entre os três, a um caberá a Presidência
e a outro, a vice-presidência. A exclusividade de cargos diretivos aos ministros do
STF condiciona o funcionamento jurisdicional e administrativo do Tribunal Superior
Eleitoral ao perfil do ministro presidente. Os membros do Supremo Tribunal Federal,
ainda, possuem maior influência sobre o comportamento do Tribunal Superior Eleitoral,
por lá trabalharem no mínimo dois biênios. Por fim, compete ao Supremo a indicação
de dois advogados para atuarem como ministros do Tribunal Superior Eleitoral, o que
indica – no mínimo – um perfil adequado às expectativas da Corte Constitucional.

34
FUX, Luiz; FRAZÃO, Carlos Eduardo. Novos paradigmas do direito eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 189.
35
Cf. HECKMANN, Bernardo Henrique de Mendonça. A aplicabilidade da Lei da Ficha Limpa sob a atual
jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral e uma projeção do possível posicionamento do Supremo Tribunal
Federal em sede de controle concentrado de constitucionalidade. Revista do Tribunal Regional Eleitoral de
Pernambuco, Recife, v. 10, n. 1, dez. 2009. p. 13-16.
36
Trata-se do conceito de “governança eleitoral”, cujas atividades ocorrem no nível de formulação das regras,
aplicação das regras e adjudicação das regras. Cf. MOZAFFAR, Shaheen; SCHEDLER, Andreas. The comparative
study of electoral governance – Introduction. International Political Science Review, n. 23, 2002.
37
MARCHETTI, Vitor. Governança eleitoral: o modelo brasileiro de Justiça Eleitoral. Dados – Revista de Ciências
Sociais, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, 2008. p. 884.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
60 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

O alinhamento entre as duas instâncias não implica, entretanto, a existência de


entendimento pacífico entre os ministros do Supremo Tribunal Federal. Como ocorreu
no julgamento das ADCs nºs 29 e 30 e ADI nº 4.578, os ministros mostraram-se divididos
no RE nº 929.670/DF. Novamente, por detrás do imbróglio, residia a indefinição sobre a
natureza jurídica das inelegibilidades: se inadequação do indivíduo em face do estatuto
jurídico ou se sanção decorrente da prática de ilícito eleitoral. Mais do que ter sido uma
chance para o Supremo reafirmar ou reformar seu entendimento, o julgamento do RE
nº 929.670/DF apresentou-se como uma oportunidade aos poderes Legislativo e Judiciário
de dialogarem em torno das inelegibilidades.

3.4 O diálogo institucional sobre as inelegibilidades


Na última controvérsia envolvendo a LC nº 135, o Supremo Tribunal Federal e
o Tribunal Superior Eleitoral estavam novamente afinados. No Recurso Extraordinário
nº 929.670/DF, o Supremo manteve a decisão da Justiça Eleitoral que aplicou o prazo de
inelegibilidade retroativamente, afastando da disputa, com base na alínea “d” do inc. I
do art. 1º da LC nº 64/1990, candidato que fora condenado em 2004 por abuso de poder
econômico e captação ilícita de sufrágio. Para o Tribunal, a extensão do prazo de 3 para
8 anos para os crimes de abuso de poder econômico ou político, como estabeleceu a LC
nº 135/2010, incide sobre as condenações anteriores ao ano de 2010.
Responsável pelo voto que abriu divergência para formar a maioria vencedora, o
Ministro Luiz Fux ancorou seu entendimento em 3 pontos: primeiro, a multiplicidade
de critérios político-legislativos subjacentes às hipóteses de inelegibilidade enfraquece a
ideia de que as inelegibilidades possuem teor sancionatório, em quaisquer das causas de
incidência, inclusive nas tipificadas na Constituição e na Lei da Ficha Limpa. Assim, as
inelegibilidades seriam opções político-legislativas, calcadas em fundamentos diversos,
que limitam o acesso dos cidadãos aos cargos eletivos.
Em segundo lugar, inexistiria o instituto da “inelegibilidade-sanção”, na medida
em que: (i) a decisão condenatória com base no art. 22, inc. XIV, da LC nº 64 teria efeitos
jurídicos semelhantes às hipóteses do art. 1º, inc. I, da lei; (ii) a redação do art. 22, inc. XIV,
da LC nº 64 possuiria atecnia ao declarar que a inelegibilidade ali prevista seria sanção;
e (iii) como na ação de impugnação de mandato eletivo, na ação de investigação judicial
eleitoral a inelegibilidade constituiria efeito reflexo da condenação em título judicial.
Em terceiro lugar, o art. 22, inc. XIV, da LC nº 64 apenas reproduziria
procedimentalmente a inelegibilidade da alínea “d” do inc. I do art. 1º da lei.
A partir destes fundamentos, concluiu o Ministro Luiz Fux:38

Em consequência, verificado o exaurimento do prazo de 3 (três) anos, previsto na redação


originário do art. 22, XIV, por decisão transitada em julgado, é perfeitamente possível que
o legislador infraconstitucional proceda ao aumento dos prazos, o que impõe que o agente
da conduta abusiva fique inelegível por mais 5 (cinco) anos, totalizando os 8 (oito) anos,
sem que isso implique ofensa à coisa julgada, que se mantém incólume.

38
Embora o acórdão não tenha sido publicado, o voto do Ministro Luiz Fux foi disponibilizado no sítio eletrônico
do Supremo Tribunal Federal.

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MIGUEL GUALANO DE GODOY, EDUARDO BORGES ESPÍNOLA ARAÚJO
DIÁLOGOS EM TORNO DE UM CONCEITO INDETERMINADO? AS INELEGIBILIDADES, O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O CONGRESSO NACIONAL
61

Com isso não se está a franquear que o legislador estaria apto a estabelecer, a seu talante,
sanções em franca inobservância das garantias constitucionais. Somente se admite esse
alargamento dos prazos de inelegibilidade porquanto se parte da premissa de que não se
está diante de sanções ou penalidades. A inelegibilidade consubstancia requisito negativo de
adequação do indivíduo ao regime jurídico do processo eleitoral.

Pela margem de 1 (um) voto, prevaleceu o posicionamento da inelegibilidade


como inadequação, e não sanção – seja a causa prevista nos arts. 19 e 20, inc. XIV, no
art. 1º da LC nº 64, ou no art. 14, §§4º a 7º, da Constituição de 1988. Segundo o relator,
Ministro Luiz Fux, a decisão no RE nº 929.670 manteve-se fiel às decisões na ADC nº 29
e nº 30, em que estabelecida a constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa.
Se a decisão no controle concentrado já definira a inexistência da inelegibilidade
sanção, a rejeição à modulação de efeitos deixou de lado a aplicação do precedente
estabelecido no RE nº 637.485/RJ, segundo o qual as mudanças jurisprudenciais
promovidas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no correr de eleições não teriam
aplicabilidade imediata ao caso concreto, em observância ao art. 16 da Constituição.39
Na prática, tal decisão do Supremo Tribunal Federal rechaçou de vez a corrente
majoritária da doutrina que vislumbra dualidade no regime jurídico das inelegibilidades
para sacramentar a existência de um único regime.
Em face da decisão do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário
nº 929.670/DF, foi apresentado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei Complementar
nº 431/2017, cuja ementa é: “inclui dispositivo na Lei Complementar nº 64, de 18 de maio
de 1990, para disciplinar o alcance de hipóteses e prazos de inelegibilidade a fatos que
já tenham sido objeto de sentenças judiciais transitadas em julgado”. Se aprovado o PLP
nº 431/2017, a nova lei irá acrescentar à LC nº 64/90 o art. 22-A, que disporá:

Art. 22-A. As alterações das hipóteses de inelegibilidade e de seus respectivos prazos


de cessação previstos nesta Lei, inclusive as inseridas pela Lei Complementar nº 135, de
2010, não incidem sobre as condenações da Justiça Eleitoral que tenham fixado o prazo
do regime anterior.

Em termos práticos, o PLP nº 431/2017 pretende reinstituir a figura da


inelegibilidade-cominada – aquela aplicada em razão do cometimento de um ilícito
eleitoral, nos termos dos arts. 19 e 20, inc. XIV, da Lei Complementar nº 64. Dessa forma,
uma vez fixada por lei a natureza sancionatória dessas causas, não haveria como defender
a aplicação retrospectiva da Lei da Ficha Limpa ante as garantias fundamentais da lei
penal e da coisa julgada.
O objetivo do PLP nº 431 é “disciplinar, minimamente, a eficácia retroativa da
Lei Com­plementar nº 135, de 2010, já reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal”. Ao
inse­rir o art. 22-A na lei, a intenção do legislador é excluir da eficácia prospectiva da
LC nº 135 as inelegibilidades cujos quantuns tenham sido fixados de antemão por título
judicial condenatório e já tenham sido cumpridos pelo candidato. As justificativas para
tanto seriam a “segurança jurídica, a soberania popular, além de todas as consequências
sociais, financeiras e políticas daí decorrentes”.

39
“Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à
eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”.

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62 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Em relação à necessidade de promover a alteração legislativa, discorre o PLP nº


431/2017:

Parece-nos inaceitável, por exemplo, que a extensão dos prazos de inelegibilidade, sejam os
já encerrados ou aqueles ainda em curso, e já objeto de sentenças judiciais, possa conviver em
paz com os postulados do estado de direito. Esses casos configuram, de modo inequívoco,
salvo artifícios populistas e meramente retóricos, um claro exemplo de retroatividade de
lei nova para conferir efeitos mais gravosos a fatos já consumados.

Cuida-se, sem dúvida, de resposta do Congresso Nacional à decisão do Supremo


Tribunal Federal no RE nº 929.670.
Tão logo o PLP nº 431/2017 foi protocolado, surgiram críticas sobre a suposta
tentativa do Poder Legislativo de enfraquecer os rigores da Lei da Ficha Limpa. Supo­
sições à parte, é certo que a controvérsia em torno da retroatividade ou não das hipóteses
deriva da indeterminação da inelegibilidade como conceito jurídico, assim provocando
as mais díspares – porém igualmente plausíveis – leituras. É possível dizer, portanto,
que existe um desacordo razoável40 em torno da categoria “inelegibilidade”.
A relevância dos desacordos razoáveis na interpretação do texto constitucional e
do papel do legislador na delimitação de sentidos foi reconhecida pelo próprio Supremo
quando do julgamento das ações de controle concentrado promovidas em face da LC
nº 135. Ao apreciar a extensão da categoria “vida pregressa” que o legislador constituinte
incumbiu o legislador ordinário de zelar mediante a instituição de lei complementar que
viria a ser a Lei Complementar nº 135/10, o Tribunal argumentou que “o cognominado
desacordo moral razoável impõe o prestígio da manifestação legítima do legislador
democraticamente eleito acerca do conceito jurídico indeterminado de vida pregressa,
constante do art. 14, §9º, da Constituição Federal”.
No contexto dos diálogos institucionais, estimula-se a interação entre os poderes
Judiciário, Executivo e Legislativo na tarefa de interpretar e aplicar a Constituição.41
Cada qual com abordagem própria, as diferentes teorias sobre os diálogos institucionais
convergem na recusa à supremacia judicial, não atribuindo normativamente e tampouco
concedendo empiricamente à Corte Constitucional a “última palavra” sobre o sentido
do texto constitucional. Ao promover o controle judicial de constitucionalidade das leis,
os tribunais dão começo a um debate dinâmico e dialógico com os demais poderes na
busca pela resposta mais adequada ao desacordo sobre justiça.42
A separação dos poderes, compreendida sob um fundamento eminentemente
democrático (e a Constituição de 1988 assim nos constitui) mitiga a tão propalada “última
palavra”, seja ela atribuída ao Poder Judiciário ou Legislativo. “É necessário ponderar
esse suposto ápice do processo decisório com o fato de que a luta política está fadada
a continuar, e novos atos desafiarão a supremacia de uma ou de outra instituição”.43

40
Cf. WALDRON, Jeremy. Law and disagreement. Oxford: Oxford University Press, 1999. p. 227-231.
41
GODOY, Miguel Gualano. Devolver a Constituição ao povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais.
Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 88-113. Vide também: BATEUP, Christine. The dialogic promise: assessing the
normative potential of theories of constitutional dialogue. Brooklyn Law Review, New York, v. 71, 2006. p. 1.109.
42
GODOY, Miguel Gualano. Devolver a Constituição ao povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais.
Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 149-162.
43
MENDES, Conrado Hübner. Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação. São Paulo: Saraiva, 2011.
p. 187.

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DIÁLOGOS EM TORNO DE UM CONCEITO INDETERMINADO? AS INELEGIBILIDADES, O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O CONGRESSO NACIONAL
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A separação dos poderes multiplica o tempo da política, permitindo que


interpretações constitucionais possam ser realizadas pelo Tribunal e também pelo Parla­
mento. Os prós e contras em investir uma ou outra instituição com a decisão final nas
discussões constitucionais podem coexistir e informar “uma análise de custo-benefício
para o desenho de uma rodada procedimental, que é tudo que está ao alcance de um
arquiteto constitucional”.44
Tribunais e Parlamentos possuem a mesma legitimidade para a adoção de posturas
ativas, desde que estejam reciprocamente engajados no diálogo e no convencimento.
O desempenho argumentativo apresenta a alternativa para institucionalizar a moralidade
política de maneira mais eficaz ao conferir aos poderes Judiciário e Legislativo a chance
de analisar a mesma questão de acordo com sua expertise. Assim, o veto aposto por
um poder à decisão do outro é suficiente para iniciar uma nova rodada decisória e (re)
iniciar o diálogo institucional. Aquela instituição cuja decisão for derrubada terá que
enfrentar os argumentos da outra e reverter o ônus argumentativo imposto sobre si.45
No caso do Poder Legislativo, correções jurisprudenciais poderão ser realizadas
por meio de emenda constitucional ou de legislação ordinária, “desde que, à evidência,
demonstre que os pressupostos de fato e de direito que ensejaram a prolação da decisão
do Tribunal não mais subsistem, ou que estes se revelam inconsistentes”.46 Caso escolha
reverter a decisão judicial via lei ordinária, recairá sobre o Poder Legislativo um ônus
ainda maior, pois a lei nascerá com presunção de inconstitucionalidade, porque colidente
com pronunciamento do STF, devendo o legislador demonstrar exaustivamente as razões
que tornam devida e legítima a reversão jurisprudencial.
Nesse sentido, optando o Parlamento por editar uma lei ordinária que colide
fro­ntalmente com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal Federal, a chamada
“legislação in your face”, sua resposta será ilegítima se o legislador não cumprir com o
ônus de trazer novos argumentos e de demonstrar o desacerto do posicionamento do
Supremo devido a mudanças fáticas ou axiológicas que impactem a compreensão do
dispositivo constitucional.47 “Ausente esse ônus na justificação do projeto ou no parecer
das Comissões de Constituição e Justiça, eventual impugnação judicial perante a Corte
acarretará, na maioria esmagadora dos casos, nova declaração de inconstitucionalidade”.48
Foi exatamente o que ocorreu com a Lei nº 12.875/2013,49 promulgada pelo Poder
Legislativo em resposta à decisão do Poder Judiciário no bojo da ADI nº 4.430/DF e
nº 4.795/DF e posteriormente declarada inconstitucional na ADI nº 5.105/DF. Invalidada
a restrição à criação de novos partidos para as eleições de 2014, o Congresso promulgou
uma lei cujo projeto trouxe argumentos incapazes de infirmar a interpretação dada pelo
Supremo Tribunal Federal ao art. 17 da Constituição de 1988, que, além de encerrar a

44
MENDES, Conrado Hübner. Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação. São Paulo: Saraiva, 2011.
p. 187.
45
GODOY, Miguel Gualano. Devolver a Constituição ao povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais.
Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 88-113. Vide também: MENDES, Conrado Hübner. Direitos fundamentais,
separação de poderes e deliberação. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 171.
46
FUX, Luiz; FRAZÃO, Carlos Eduardo. Novos paradigmas do direito eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 5.
47
FUX, Luiz; FRAZÃO, Carlos Eduardo. Novos paradigmas do direito eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 5.
48
FRAZÃO, Carlos Eduardo. A PEC do financiamento empresarial de campanhas eleitorais no divã: a
constitucionalidade material à luz da teoria dos diálogos institucionais. Revista Brasileira de Direito Eleitoral, Belo
Horizonte, v. 7, n. 12, jan./jun. 2015. p. 50.
49
FUX, Luiz; FRAZÃO, Carlos Eduardo. Novos paradigmas do direito eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 5.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
64 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

liberdade de criação de partidos, tutela as agremiações que tenham representação junto


ao Parlamento, seja tal representatividade decorrente ou não da criação de nova legenda
no curso da legislatura.
O Projeto de Lei Complementar nº 431/2017 até agora não se desincumbiu deste
ônus, falhando em considerar e refutar todos os argumentos que sustentam o entendi­
mento do Supremo Tribunal Federal pela aplicação retrospectiva – não retroativa, como
consta no projeto – da Lei da Ficha Limpa. O PLP nº 431/2017 restringiu-se a afirmar
genericamente a importância da segurança jurídica, legítima expectativa e coisa julgada
no processo eleitoral, além de discorrer brevemente sobre a evolução da questão na
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e de Tribunais Regionais Eleitorais.
Em suma, o atual PLP nº 431 deixa de atacar a controvérsia em torno da existência
das inelegibilidades cominadas e sua natureza sancionatória. A seus superficiais
argumentos poderia ter sido acrescida a discussão doutrinária, que lhe é amplamente
favorável, e a discussão jurisprudencial, que possui a seu favor o voto de cinco ministros
do Supremo. O ônus seria devidamente arcado caso o projeto tivesse explorado os
autores da doutrina majoritária e o voto dos ministros vencidos. Tivesse feito isso, talvez
encontrasse melhores argumentos para apresentar contraponto substancial ao enten­di­
mento fixado pelo STF no RE nº 929.670.
Há, por fim, um equívoco histórico na fundamentação do PLP nº 431/16: afirmar
que “o legislador da Lei Complementar nº 135, de 2010, não enfrentou diretamente essa
questão [da retroação da lei], talvez por não prognosticar que interpretações no sentido
da retroatividade pudessem vingar”.
Ao contrário do que está exposto no PLP nº 431/2017, a questão foi sim enfrentada
pelo legislador, quem inclusive alterou o tempo verbal das alíneas “h”, “j”, “m”, “o” e
“q” do inc. I do art. 1º da lei, substituindo “os que tenham sido” por “os que forem”.
A questão, entretanto, não mais é a do Parlamento ter ou não pugnado pela retroação,
mas sim a do Tribunal tê-lo feito. Desejando reverter tal entendimento, o PLP deveria
confrontar os fundamentos da ADC nº 29 e nº 30 e da ADI º 4.578, e não ser recalcitrante
com fundamentos rasos e vagos.
Talvez tenha sido prematura a reação do Congresso Nacional, considerando que
o Supremo Tribunal Federal ainda poderá decidir por modular os efeitos da decisão no
RE. Na hipótese de a eficácia ser prospectiva, o que parece mais adequado em atenção
à boa-fé do jurisdicionado, o projeto perderá o objeto e seu destino será a gaveta,
pois o prazo de 8 anos valerá apenas para as futuras decisões judiciais a cominarem a
inelegibilidade por abuso de poder político ou econômico.
Todavia, votando a maioria dos ministros por não modular os efeitos da decisão,
aplicando-se imediatamente o novo entendimento da incidência da Lei da Ficha Limpa,
caberá ao Poder Legislativo aceitar a decisão ou esforçar-se em dar uma resposta
consistente (e melhor do que a proposta atualmente existente no PLP nº 431/2017), sob
pena de a futura lei poder ser legítima e imediatamente rechaçada pelo Poder Judiciário.

3.5 Considerações finais


A noção dos diálogos institucionais promove e valoriza a participação dos
poderes na busca por respostas às controvérsias constitucionais – no mais das vezes
provo­cadas por conceitos jurídicos indeterminados. Como visto, a natureza jurídica das

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MIGUEL GUALANO DE GODOY, EDUARDO BORGES ESPÍNOLA ARAÚJO
DIÁLOGOS EM TORNO DE UM CONCEITO INDETERMINADO? AS INELEGIBILIDADES, O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O CONGRESSO NACIONAL
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inelegibilidades provoca vivos desacordos no direito eleitoral. Doutrina e jurisprudência


estão longe de chegar a um acordo sobre a natureza sancionatória ou a mera adequação
do indivíduo frente ao estatuto eleitoral.
Diante disso, o controle judicial de constitucionalidade das leis e as decisões
judiciais ganham não apenas um novo potencial (democrático-deliberativo), mas
também uma nova função (deliberativo-legitimadora). Assim, a guarda da Constituição
por parte do Supremo Tribunal Federal não consiste mais em competência de dizer, em
definitivo, o que é a Constituição. Ao contrário, a guarda da Constituição consiste em
competência para decidir e, assim, expressar a sua compreensão sobre o significado da
Constituição.50 Ou seja, ao invés de o Supremo Tribunal Federal estabelecer a última
palavra sobre a natureza jurídica das inelegibilidades, ele exerce sua competência
decisória para dizer como as compreende diante do texto constitucional. A legitimidade
da sua decisão se funda, assim, não no mero exercício formal de sua competência de
guarda da Constituição, mas na legitimidade democrático-deliberativa de suas razões.
Todas elas, até aqui, plausíveis, bem postas e fundamentadas.
Nessa toada dialógica, a revisão judicial das leis deixa de ser vista como barreira
ou limitação ao Poder Legislativo. Ao contrário, pode e deve também funcionar como
propulsora de melhores deliberações. O controle de constitucionalidade, nesse sentido,
pode e deve funcionar para desafiar a política a se superar em qualidade.51 A participação
do Poder Legislativo nesse debate é fundamental. Até mesmo uma resposta em sentido
contrário é possível. Nesse último caso, todavia, exige de seus integrantes o compromisso
de arcar com o ônus argumentativo de considerar e rechaçar os fundamentos dos
entendimentos contrários aos seus. Não é o que se tem visto pelos sinais que envia
através do PLP nº 431/2017.

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ano 3, n. 7, jul./dez. 2013.

50
GODOY, Miguel Gualano. Devolver a Constituição ao povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais.
Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 165-166.
51
GODOY, Miguel Gualano. Devolver a Constituição ao povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais.
Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 165-166. Vide também: MENDES, Conrado Hübner. Direitos fundamentais,
separação de poderes e deliberação. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 212.

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66 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

GODOY, Miguel Gualano de; ARAÚJO, Eduardo Borges Espínola. Diálogos em torno de um conceito
indeterminado? As inelegibilidades, o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional. In: FUX, Luiz;
PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura (Coord.); PECCININ, Luiz Eduardo
(Org.). Direito Constitucional Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 49-66. (Tratado de Direito Eleitoral,
v. 1.) ISBN 978-85-450-0496-7.

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CAPÍTULO 4

CONSTITUCIONALISMO E SOBERANIA POPULAR:


FUNDAMENTOS DO DIREITO ELEITORAL
DEMOCRÁTICO

BRUNO GALINDO

No entanto, mesmo para uma definição mínima de democracia, como é a que


aceito, não bastam nem a atribuição a um elevado número de cidadãos do
direito de participar direta ou indiretamente da tomada de decisões coletivas,
nem a existência de regras de procedimento como a da maioria (ou, no
limite, da unanimidade). É indispensável uma terceira condição: é preciso
que aqueles que são chamados a decidir ou a eleger os que deverão decidir
sejam colocados diante de alternativas reais e postos em condição de poder
escolher entre uma e outra. Para que se realize essa condição é necessário
que aos chamados a decidir sejam garantidos os assim denominados direitos
de liberdade, de opinião, de expressão das próprias opiniões, de reunião, de
associação, etc. – os direitos à base dos quais nasceu o estado liberal e foi
construída a doutrina do estado de direito em sentido forte, isto é, do estado
que não apenas exerce o poder sub lege, mas o exerce dentro de limites
derivados do reconhecimento constitucional dos direitos “invioláveis”
do indivíduo. Seja qual for o fundamento filosófico destes direitos, eles
são o pressuposto necessário para o correto funcionamento dos próprios
mecanismos predominantemente procedimentais que caracterizam um
regime democrático. As normas constitucionais que atribuem estes direitos
não são exatamente regras do jogo: são regras preliminares que permitem
o desenrolar do jogo.
(BOBBIO, 1986, p. 20)

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
68 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

4.1 Introdução: as relações entre direito eleitoral e democracia


Embora isso não seja uma inteira novidade, vivemos tempos ainda mais complexos
nesta segunda década do século XXI. A linearidade analítica há muito tem sido uma
tarefa difícil nos diversos campos da ciência e da teoria. E não é diferente no direito e
em suas relações com outros fenômenos sociais como a política. Da Constituição como
“acoplamento estrutural entre direito e política” ou do direito eleitoral como subsistema
do sistema jurídico (em uma perspectiva luhmanniana – cf. Neves [2006, p. 95 e ss.]) até os
debates contemporâneos sobre se vivemos uma “pós-democracia” e um esgotamento do
Estado Democrático de Direito (CASARA, 2017), teorizar sobre esses “tempos líquidos”
(BAUMAN, 2007) é um desafio na proporção dessa complexidade moderna líquida (ou
pós-moderna) (BAUMAN, 2001).
Por sua vez, perceber como o direito eleitoral pode servir aos propósitos de
um Estado Democrático de Direito ou, paradoxalmente, à legitimação de situações
tirânicas, antidemocráticas ou “pós-democráticas”, exige dos estudiosos, em especial
eleitoralistas, constitucionalistas e cientistas políticos, uma reflexão sobre a própria
teoria democrática fundamentadora do constitucionalismo, calcada essencialmente
na ideia de soberania popular como pilar da democracia e do Estado de direito nesse
contexto líquido de intensificação de complexidades e incertezas. O aspecto formal da
democracia é expresso no direito eleitoral como parte integrante das regras do jogo
político que, ao serem respeitadas face à sua credibilidade e razoável consenso social
sobre sua justiça, transforma inimigos em adversários e torna civilizada a luta política,
sem que seja necessária a destruição do oponente que, por sua vez, derrotado em um
pleito pode vir a ser vitorioso em posterior disputa (BOBBIO, 1986, p. 39).
Retornar às concepções clássicas sem deixar de ter uma aguçada observação da
realidade contemporânea e de suas potenciais teorizações é a pretensão das linhas que
se seguem neste ensaio, agradecendo de antemão a oportunidade do desafio a partir
do honroso convite dos colegas docentes Luiz Fernando Casagrande Pereira e Walber
de Moura Agra a participar dessa importantíssima obra.
Neste ensaio, pretendo discutir as relações entre constitucionalismo, soberania
popular e direito eleitoral a partir das ferramentas analíticas propostas por dois
autores: a cientista política espanhola Inmaculada Szmolka Vida e sua teoria sobre
os regimes políticos híbridos, e o célebre constitucionalista alemão Karl Loewenstein
e sua classificação das constituições quanto à conformação do processo político
(LOEWENSTEIN, 1964, p. 217-219; SZMOLKA VIDA, 2010). Antes de abordá-los, porém,
faço do famoso filósofo liberal Karl Popper um ponto de partida teórico mais amplo
acerca dos fundamentos conceituais da democracia.
À luz dessas análises, abordo os fundamentos de um direito eleitoral democrático,
destacando algumas dificuldades de percalço do direito eleitoral brasileiro, a partir de
casos paradigmáticos da jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, como o recente
julgamento da chapa presidencial vitoriosa nas últimas eleições presidenciais, composta
por Dilma Rousseff e Michel Temer, bem como os casos de cassação de diplomas dos
governadores eleitos da Paraíba e do Maranhão, no final da década passada, para, ao
final, traçar algumas reflexões a título conclusivo.

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BRUNO GALINDO
CONSTITUCIONALISMO E SOBERANIA POPULAR: FUNDAMENTOS DO DIREITO ELEITORAL DEMOCRÁTICO
69

4.2 O antagonismo democracia x ditadura em Karl Popper


O antagonismo autoritarismo e democracia, já enfrentado por trabalhos anteriores
de minha autoria, pode ter uma análise a partir dos conceitos desenvolvidos pelo filósofo
anglo-austríaco Karl Popper em suas reflexões sobre as sociedades abertas (POPPER,
1987a; 1987b; 2001; 2012, p. 231 e ss.; 329 e ss.; 383 e ss.; GALINDO, 2015).
A minha opção pelo ponto de partida popperiano decorre do fato de que ele
permite um contraponto bastante claro e objetivo entre autoritarismo e democracia,
sendo uma teoria comparativamente menos ambígua do que as congêneres. Popper
não tergiversa em excessos relativistas sobre a democracia, em percepções que, na
prática, tendem a tornar a democracia uma espécie de “significante vazio”, na expressão
celebrizada pelo teórico político argentino Ernesto Laclau (LACLAU, 2005, p. 153;
MACIEL, 2010).
Popper se notabiliza na década de 40 do século XX com a obra A sociedade aberta e
seus inimigos. Nesta, contrapõe os conceitos de sociedade aberta e de sociedade fechada,
examinando filosoficamente o potencial totalitário de grandes tratados filosóficos de
autores como Platão, Aristóteles, Hegel e Marx, sendo especialmente crítico em relação
ao historicismo (POPPER 1987a; 1987b). Edifica capítulo próprio de uma filosofia política
antiautoritária, permitindo o posterior desenvolvimento de muitas teorias da democracia
sob sua inspiração.
Em termos de teoria democrática, Popper propõe conceitos substantivos de
democracia e ditadura, reduzindo as formas de Estado a essencialmente dois tipos
antagônicos: aqueles nos quais é possível livrar-se do governo sem derramamento de
sangue e aqueles nos quais isso não é possível, denominando os primeiros de democracia
e os últimos de ditadura ou tirania. Como teórico da democracia, ao invés do limite
amigo-inimigo de Carl Schmitt, Popper trabalha com a possibilidade de que a democracia
torne o inimigo adversário e o jogo político civilizado, reduzindo a belicosidade ao
aspecto retórico (POPPER, 2001, p. 128; SCHMITT, 2002, p. 56 e ss.).
Considerando esses pressupostos, a teoria popperiana da democracia nas socie­
dades abertas defende os seguintes postulados:

a) Democracia não é somente governo da maioria (esta pode governar de maneira tirânica),
mas aquele regime em que os governantes podem ser dispensados pelos governados sem
derramamento de sangue (possibilidade real de mudança pacífica e institucional);
b) Regimes políticos são variações das democracias (sociedades abertas) e das tiranias
(sociedades fechadas);
c) Única mudança legal previamente excluída é aquela que possa abalar profundamente
ou abolir a democracia;
d) Proteção às minorias como regra geral (há exceções como os violadores da lei e os
ativistas antidemocráticos);
e) Destruição da democracia implica destruição dos demais direitos (apesar de possíveis
e temporárias vantagens econômicas e sociais);
f) Apresentação de precioso campo de batalha para a realização de reformas sociais sem
violência. (POPPER, 2001, p. 129-133)

A partir dessas premissas, pretende o célebre filósofo traçar parâmetros claros


de distinção entre os dois regimes, tentando caracterizá-los a partir desse antagonismo.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
70 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Falta, contudo, em sua teoria política, contornos mais claros acerca dos diferentes graus
de democracia e de autoritarismo existente na diversidade de experiências políticas,
tentativa esta que parece especialmente mais explorada no trabalho de Szmolka Vida,
debatido adiante.

4.3 Os graus de autoritarismo e de democracia nos regimes políticos


segundo Szmolka Vida
Szmolka Vida, professora da Universidade de Granada/Espanha, considera a
existência de dois polos extremos como espécies de “tipos ideais” de regimes polí­
ticos: as democracias plenas e os autoritarismos fechados. Entre eles situa os que
denomina regimes políticos híbridos: as democracias defectivas e os autoritarismos
pluralistas. A parte relevante para essas múltiplas possibilidades de caracterização no
estudo de Szmolka Vida é a elaboração de critérios mais precisos de densificação do
autoritarismo e da democracia nos diversos regimes políticos efetivamente existentes.
Metodologicamente, ela considera três dimensões de análise para a identificação desta
plêiade de regimes políticos: 1) pluralismo e competência política na obtenção do poder
e no desenvolvimento dos processos políticos; 2) funcionamento do governo; e 3) direitos
e liberdades públicas (SZMOLKA VIDA, 2010, p. 122).
A partir delas, constrói o seguinte quadro esquemático, estipulando nele as
condi­ções das democracias plenas e dos autoritarismos fechados (cf. SZMOLKA VIDA,
2010, p. 123-124):

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BRUNO GALINDO
CONSTITUCIONALISMO E SOBERANIA POPULAR: FUNDAMENTOS DO DIREITO ELEITORAL DEMOCRÁTICO
71

(continua)

Categorias polares de regimes políticos

Dimensões
Democracia plena Autoritarismo fechado
analíticas

Pluralismo e 1. Pluralismo político Pleno 1. Ausência de Inexistência de


competição política competitivo. reconhecimento qualquer forma grupos políticos
na obtenção de partidos ou de pluralismo que representem
do poder e no grupos políticos aos político e de interesses e
desenvolvimento quais se possibilite competição objetivos distintos
dos processos participar dos política. dos de quem exerce
políticos. processos políticos. o poder.
Não exclusão de Impossibilidade de
nenhuma força disputar o poder
política que dispute por meios não
o poder por meios violentos. Não se
pacíficos. realizam eleições
Competição política pluralistas ou não
absoluta. estão previstos
Igualdade de mecanismos de
oportunidades na representação
luta pelo poder. legitimados pela
Cumprimento dos cidadania.
procedimentos
eleitorais com as
características de
periodicidade,
competitividade e
transparência.
Igualdade de
oportunidades
tanto em relação ao
exercício do direito
ao voto como a
poder apresentar-se
como candidato às
eleições.
Sistemas eleitorais
consensuais de
forma majoritária
pelas forças
políticas e ausência
de práticas de
gerrymandering.1
Cumprimento nas
eleições das funções
de representação
e formação de
governo.

1
Expressão de origem norte-americana que designa a prática de métodos controversos de definição de distritos
eleitorais com a finalidade de, através disso, obter vantagens políticas para o próprio partido ou coalizão em
detrimento dos demais. A referência principal diz respeito à eleição pelo voto distrital majoritário na qual a
prática do gerrymandering pode ser decisiva no pleito (BBC NEWS, 2004).

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
72 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

(continua)

Categorias polares de regimes políticos

Dimensões
Democracia plena Autoritarismo fechado
analíticas

Funcionamento do 2. Funcionamento Autonomia das 2. Funcionamento Instituições


governo. responsável do instituições não democrático sem nenhuma
governo através representativas no do governo. capacidade de
de instituições exercício de suas legislação e direção
representativas e funções. política.
autônomas. Governo sujeito à Governo não sujeito
responsabilidade à responsabilidade
política política.
(accountability). Agentes não eleitos
Ausência de agentes democraticamente
que decidem em determinando a
nome do Estado política do Estado.
não sujeitos à Inexistência de
responsabilidade equilíbrio entre os
política (veto poderes do Estado.
players). Dependência da
Inexistência Administração
de domínios junto ao poder. Alto
reservados. índice de fenômenos
Bom funcionamento de corrupção e
da Administração. clientelismo.
Baixa incidência
de fenômenos
de corrupção e
clientelismo.
Controle do
território pelo
Estado.
Capacidade de
dar resposta às
demandas básicas
dos cidadãos
(responsiviness).2

2
“El control del territorio por el Estado define a las democracias plenas pero no a los autoritarismos cerrados
puesto que también en estos últimos se produce normalmente el control territorial por el poder. Esto mismo
ocurre con la capacidad de dar respuesta a las demandas básicas de los ciudadanos, que puede ser llevado a cabo
por el régimen autoritario” (SZMOLKA VIDA, 2010, p. 124).

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BRUNO GALINDO
CONSTITUCIONALISMO E SOBERANIA POPULAR: FUNDAMENTOS DO DIREITO ELEITORAL DEMOCRÁTICO
73

(conclusão)

Categorias polares de regimes políticos

Dimensões
Democracia plena Autoritarismo fechado
analíticas

Direitos e liberdades 3. Pleno exercício Pleno exercício 3. Ausência de Negação do direito


públicas. de direitos dos direitos de garantias no de associação e
e liberdades associação e reunião. exercício dos reunião.
públicas. Pleno exercício direitos e Negação da
da liberdade de liberdades. liberdade de
expressão. expressão.
Pleno exercício da Ausência de
liberdade de crença.3 pluralismo e
Liberdade de liberdade
de imprensa. de imprensa
Pluralidade de meios nos meios de
de comunicação comunicação. Meios
e acesso a fontes de comunicação
alternativas de sujeitos ao controle
informação. do Estado.
Independência do Ausência de
Poder Judiciário. independência do
Ampla proteção Poder Judiciário
legal e judicial ou inexistência/
contra os abusos irrelevância deste.
cometidos pelo Abusos contínuos
Estado ou terceiros. cometidos pelo
Monopólio legítimo Estado ou terceiros
da violência pelo sem que exista
Estado. proteção legal e/
Respeito aos direitos ou judicial contra
humanos. os eles.
Uso arbitrário da
violência pelo
Estado.
O Estado
desempenha um
papel policial e
repressor. Violação
contínua dos direitos
humanos.

3
“En relación con la libertad religiosa consideramos que se trata de una libertad indispensable para definir un
régimen como democrático, sin embargo, creemos que los regímenes autoritarios pueden permitir su ejercicio,
por lo que no resulta una condición definitoria en esta categoría” (SZMOLKA VIDA, 2010, p. 123-124).

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74 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Szmolka Vida estipula esses polos opostos para precisar os regimes políticos
híbridos, propondo uma gradação a partir de pontos quantitativos que caracterizariam um
regime como mais próximo à democracia ou ao autoritarismo, servindo principalmente
à compreensão do hibridismo político do qual fala. Essa gradação, exposta no quadro
a seguir, será útil para fazermos uma aproximação das dimensões simbólicas e fáticas
do constitucionalismo no regime autoritário, compreendendo melhor as contribuições
de Loewenstein e Neves que adiante discutiremos.
Neste quadro, a autora estabelece uma pontuação maior aos caracteres mais
próximos à democracia plena e menor aos mais aproximados ao autoritarismo fechado,
operacionalizando mais precisamente a caracterização dos regimes políticos (SZMOLKA
VIDA, 2010, p. 126-129).
(continua)
Dimensões Variáveis Pontuações
analíticas

Pluralismo e Pluralismo político 4. Existe um pleno reconhecimento das opções políticas.


competição política 3. Entre os partidos ou grupos políticos se encontram reconhecidas forças de
na obtenção oposição, embora exista alguma força política relevante excluída.
do poder e no 2. Os partidos institucionais se veem relegados pela existência de um partido
desenvolvimento ou coalizão de caráter hegemônico ou ultradominante.
dos processos 1. Não existe reconhecimento legal de partidos ou grupos políticos ou existe
políticos apenas um partido único.

Competição 4. Existe igualdade de oportunidades no desenvolvimento dos pro­cessos


política políticos.
3. Existe certa competição política pela existência de distintas forças polí­
ticas que podem confrontar suas posições nos processos políticos. Não
obstante, esta competição pode se ver limitada pela exclusão de alguns
grupos políticos ou uma incompleta igualdade de oportu­nidades.
2. Em que pese o pluralismo ser reconhecido, não existe competição política
entre grupos políticos, pela situação hegemônica que desfrutam os
próximos ao regime em todos os processos políticos.
1. A competição política está excluída por completo pela negação do
pluralismo.

Periodicidade das 3. As eleições se realizam de forma periódica, de acordo com as previ­sões


eleições estabelecidas constitucional e legalmente.
2. A periodicidade das eleições se encontra sujeita a critérios políticos por
parte do poder.
1. Não se realizam eleições pluralistas ou não estão previstos meca­nismos
de representação legitimados pela cidadania.

Competição 4. Os partidos ou grupos políticos gozam de oportunidades similares durante


eleitoral a campanha eleitoral e respeito à exposição nos meios de comunicação,
de acordo com as normas comumente aceitas.
3. Formalmente, os partidos ou grupos políticos gozam de oportu­nidades
similares no processo eleitoral. Não obstante, a competição pode ser
afetada pela utilização de certos recursos do Estado a favor dos candidatos
próximos ao regime (ex., maior presença nos meios de comunicação
estatal dos partidos do governo, financiamento público favorável aos
partidos próximos etc.).
2. O regime político limita a possibilidade de apresentar candidaturas e
favorece claramente os candidatos próximos ao regime no processo
eleitoral.
1. Não se realizam eleições pluralistas ou não estão previstos meca­nismos
de representação legitimados pela cidadania.

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BRUNO GALINDO
CONSTITUCIONALISMO E SOBERANIA POPULAR: FUNDAMENTOS DO DIREITO ELEITORAL DEMOCRÁTICO
75

(continua)
Dimensões Variáveis Pontuações
analíticas

Transparência do 4. Não existem irregularidades significativas nos processos elei­torais. Os


processo eleitoral eleitores são livres em seu exercício do voto, sem existência de fenômenos
de distorção, tais como compra de votos, intimidação ou violência.
3. Ainda que não ocorram fraudes eleitorais em massa, existem certas
irregularidades não generalizadas, como compra de votos ou clien­telismo
eleitoral.
2. As irregularidades observadas nos processos eleitorais influem claramente
no resultado final da eleição.
1. Não se realizam eleições pluralistas ou não estão previstos mecanismos
de representação legitimados pela cidadania.

Exercício do direito 4. Não existem exclusões no direito ao voto dos adultos, seja em relação ao
ao voto sexo, raça, grupo étnico, propriedade, educação etc.
3. Podem existir demandas da sociedade de diminuição da idade para exercer
o direito ao voto ou se produzirem algumas irregula­ridades administrativas
na elaboração dos censos eleitorais.
2. Existe algum grupo social excluído do exercício do direito ao voto.
1. Não se realizam eleições pluralistas ou não estão previstos meca­nismos
de representação legitimados pela cidadania.

Sistema eleitoral 4. Existe um sistema eleitoral e de distribuição de assentos parlamen­tares


e distribuição estável e aceito de forma majoritária pelas forças políticas.
de assentos 3. Ainda que a lei eleitoral e de distribuição de assentos parlamen­tares sejam
parlamentares aceitas de forma majoritária, podem existir práticas de gerrymandering.
2. O sistema eleitoral foi estabelecido de modo unilateral pelo partido
ou grupo no poder, com a oposição relevante de forças polí­ticas sem
capacidade de influírem nas regras do jogo eleitoral.
1. Não se realizam eleições pluralistas ou não estão previstos mecanismos
de representação legitimados pela cidadania.

Funções das 3. Os resultados das eleições correspondem às preferências dos cidadãos e


eleições de servem para determinar quem decide em nome do Estado.
representação 2. Os resultados das eleições servem parcialmente para determinar as
e formação do preferências dos cidadãos (algumas opções políticas se encontram
governo excluídas do jogo político) e suas decisões (por existirem outros atores
políticos influentes não resultantes direta ou indiretamente das urnas).
1. Os cargos públicos não dependem das preferências dos cidadãos.

Funcionamento do Autonomia das 3. As instituições representativas são autônomas no exercício de suas


governo instituições funções, exercendo o Parlamento sua atividade de legislação e controle
representativas no do Executivo e o governo sua ação de direção política.
exercício de suas 2. Instituições formais de representação e de governo, que supõem áreas
funções de confronto, debate e representação, mas com funções legislativas e
executivas limitadas pelo poder que detêm outros atores políticos formais
ou informais.
1. Instituições sem qualquer capacidade de legislação e governo,
dependentes do poder.

Governo sujeito à 3. O Governo está sujeito à responsabilidade política através do mecanismo


responsabilidade das eleições (sistemas presidencialistas) ou da investi­dura e a censura
política parlamentar (sistemas parlamentaristas).
(accountability) 2. Existe formalmente a possibilidade de exigir responsabilidade política,
ainda que seja difícil levá-la a cabo pela submissão e depen­dência da
instituição parlamentar ou pela dificuldade em ocorrer a alternância do
poder.
1. O Parlamento não possui capacidade de censurar o governo (siste­­mas
parlamentaristas) ou não pode iniciar um processo de impeachment
(sistemas presidencialistas).

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
76 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

(continua)
Dimensões Variáveis Pontuações
analíticas

Agentes que 3. Ausência de agentes que decidem em nome do Estado não sujeitos à
decidem emnome responsabilidade política.
do Estado 2. Em que pese a existência de um governo surgido direta o indi­retamente
não sujeitos à através das urnas, agentes não sujeitos à responsa­bilidade política
responsabilidade influenciam a tomada de decisões: potências estrangeiras, exército,
política serviços de segurança, elites econômicas, grupos religiosos, grupos étnicos
(determinadas tribos, p. ex.).
1. A tomada de decisões é feita por agentes não legitimados e não sujeitos à
responsabilidade política no marco de sistemas políticos não pluralistas.

Domínios 3. Inexistência de domínios reservados. Vigora o princípio da separação de


reservados poderes.
2. Existência de agentes, formalmente reconhecidos, que ocupam o centro
do sistema político, assumindo poderes institucionais ou políticos que
deveriam ser exercidos pelo Parlamento ou pelo Governo, já que não existe
um funcionamento adequado dos freios e contrapesos das instituições
do Estado.
1. Não existe separação de poderes pela existência de uma auto­ridade única.

Fenômenos de 3. Fenômenos de corrupção e clientelismo episódicos.


corrupção e 2. Persistência de fenômenos de corrupção e clientelismo, ainda que não
clientelismo seja prática generalizada.
1. A corrupção e o clientelismo são elementos característicos no
funcionamento do governo e da administração.

Direitos e Direito de 4. Existe um reconhecimento pleno dos direitos de associação e reunião.


liberdades públicas associação e 3. Existe um amplo reconhecimento dos direitos de associação e reunião,
reunião ainda que estes possam ser vulneráveis pela exclusão de algum grupo
social relevante ou pelas limitações no direito de reunião de alguns
grupos políticos.
2. Existe um reconhecimento formal dos direitos de associação e reunião,
ainda que estes sejam habitualmente violados, podendo existir normas
que os restrinjam (por exemplo, a vigência de um estado de exceção).
1. Não existe reconhecimento legal dos direitos de associação e reunião.

Liberdade de 4. Reconhecimento pleno da liberdade de expressão.


expressão 3. Amplo reconhecimento da liberdade de expressão, ainda que possam
existir esferas sobre as quais esta liberdade se restringe (por exemplo,
integridade territorial, rei/presidente, religião etc.).
2. Reconhecimento somente formal da liberdade de expressão, sujeita à
habitual repressão.
1. Impossibilidade absoluta de exercer a liberdade de expressão.

Liberdade de 4. Pluralismo nos meios de comunicação. Liberdade de imprensa garantida


imprensa e dentro do respeito a outros direitos dos cidadãos.
pluralidade 3. Pluralismo e liberdade de imprensa, ainda que sujeita a restrições em
de meios de determinadas esferas (por exemplo, integridade territorial, rei/presidente,
comunicação e religião, etc.) atendendo a critérios políticos.
acesso a fontes 2. Reconhecimento apenas formal da liberdade de imprensa, sujeita à censura
alternativas de habitual. Dificuldade no acesso a fontes alternativas de informação.
informação 1. Ausência absoluta de pluralismo e de liberdade de imprensa. Meios de
comunicação sujeitos ao controle do Estado.

Autonomia do 4. Independência do Poder Judiciário e garantias de sua imparcia­lidade


Poder Judiciário diante dos grupos políticos.
3. Independência formal do Poder Judiciário, ainda que os tribunais possam
refletir ocasionalmente interesses estritamente políticos.
2. Utilização habitual do Poder Judiciário pelo regime político ou existência
de tribunais políticos.
1. Inexistência de qualquer tipo de separação de poderes no Estado.

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BRUNO GALINDO
CONSTITUCIONALISMO E SOBERANIA POPULAR: FUNDAMENTOS DO DIREITO ELEITORAL DEMOCRÁTICO
77

(conclusão)
Dimensões Variáveis Pontuações
analíticas

Proteção legal e 4. Ampla proteção legal e judicial dos cidadãos contra os abusos cometidos
judicial contra os pelo Estado ou terceiros.
abusos cometidos 3. Reconhecimento do império da lei, ainda que como princípio não
pelo Estado ou necessariamente efetivo.
terceiros 2. Referência apenas formal ao império da lei, ineficácia deste princípio
pela insegurança jurídica dos cidadãos no marco de sistemas políticos
pluralistas.
1. Abusos contínuos cometidos pelo Estado ou terceiros sem que exista
proteção legal ou judicial no marco de sistemas políticos não pluralistas.

Monopólio 3. Monopólio legítimo da violência pelo Estado.


legítimo da 2. Utilização ocasional dos meios de persuasão e coação com fins estritamente
violência pelo políticos.
Estado 1. Uso arbitrário da violência por parte dos grupos detentores do poder.

Respeito aos 3. Respeito e plenas garantias ao exercício dos direitos humanos.


direitos humanos 2. Adesão aos principais tratados internacionais de direitos humanos e
existência de mecanismos promovidos pelo Estado que os garantam,
não obstante continuarem ocorrendo ocasionais episódios de violação
de direitos humanos.
1. O Estado desempenha um papel essencialmente policial e repressor.
Sistemática violação dos direitos humanos.

A aplicação de tais critérios a uma verificação concreta de como se apresentam os


regimes políticos autoritários em termos de maior ou menor densidade de autoritarismo
pode ser de grande utilidade na delimitação das possibilidades analíticas sobre como
o direito eleitoral pode ou não estar em sintonia com o constitucionalismo democrático
e a soberania popular.

4.4 Constitucionalismo em regimes autoritários e democráticos:


comparações possíveis
Observar o constitucionalismo como fenômeno político-jurídico nos regimes
autoritários e na democracia pode, sem dúvida, auxiliar na compreensão do direito
eleitoral como instrumento de legitimação do regime político. Prefiro comparar constitu­
cio­nalismos em vez de constituições, considerando o fenômeno constitucional como
algo mais amplo do que o texto da Constituição, envolvendo este suas interpretações
doutrinárias, sua interpretação/aplicação pela jurisprudência, mudanças e rupturas
político-constitucionais, inserção social da constituição etc., aquilo que Ivo Dantas
denomina “direito constitucional enquanto processo” (não sendo aqui referência ao
processo judicial, mas ao constitucionalismo com esse significado), diferenciando do
“direito constitucional enquanto conhecimento”, que envolveria a teoria da constituição
em uma acepção ampla. É a dimensão diacrônica da constituição (DANTAS, 1999, p. 37;
CUNHA, 2002, p. 328; GALINDO, 2006, p. 41-42).
Neste momento, não se trata de lançar mão das técnicas do direito comparado
no que se referem a estudos específicos do direito constitucional de cada um dos
países envolvidos. Isso só será feito eventualmente, já que aqui o objetivo é traçar
macrocomparações que agrupem as linhas comuns, bem como as dessemelhanças entre
as variações dos dois extremos, sem detalhar os processos constitucionais específicos,
na linha macrocomparativa dos professores argentinos Bidart Campos e Walter Carnota

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
78 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

(DANTAS, 2000, p. 70-71). Quanto aos conceitos de constituição a serem inseridos no


contexto, a base é a classificação de Karl Loewenstein (1964), com algumas incursões
sobre as teses da constitucionalização simbólica de Marcelo Neves (2007), bem como da
força normativa da Constituição, de Konrad Hesse (1991).
Como afirmei em outra oportunidade, nem todas as ditaduras/regimes autoritários
são iguais em graus de autoritarismo. Da mesma forma, os regimes político-democráticos
não consolidam a democracia da mesma maneira, nem possuem a mesma “densidade
democrática” (GALINDO, 2015, p. 80-89). Entender o constitucionalismo nesses regimes
a partir das ideias de Loewenstein e Neves implica considerar as gradações dos referidos
regimes, no que o já exposto estudo de Szmolka Vida pode ser um relevante instrumento
analítico.

4.5 Constitucionalismo e conformação do processo político segundo


Karl Loewenstein
O estudo de Szmolka Vida serve como ponte para a atualização de conceitos
clássicos da teoria da Constituição, em especial a classificação “ontológica” das consti­
tuições elaborada em fins da década de 50 do século XX por Karl Loewenstein. Não
obstante o arguto trabalho de Marcelo Neves sobre o fenômeno da constitucionalização
simbólica já ter percorrido o caminho loewensteiniano, trazendo valiosas contribuições
à temática, optei por privilegiar as definições mais clássicas como pontos de partida,
atualizando-as e complementando-as com as reflexões do próprio Neves, de Szmolka
Vida, de Hesse, bem como uma modesta contribuição própria.
As percepções da professora espanhola demonstram que as constituições podem
percorrer diversos caminhos políticos dentro dos Estados que adotam alguma forma de
constitucionalismo. Independentemente de sua redação e extensão, há constituições com
maior e menor graus de normatividade e eficácia, a depender dos contextos políticos
nos quais elas se inserem. Considerando o constitucionalismo como um fenômeno
diretamente associado à expansão da democracia como regime político, a tendência é que
este último regime favoreça a normatividade constitucional, ao passo que o autoritarismo
tende a miná-la. A partir da pontuação do último quadro esquemático de Szmolka
Vida, pode-se preconizar que uma pontuação elevada implica maior normatividade
constitucional, ao passo que pontuações menores aproximam a Constituição do regime
do modelo semântico-instrumentalista descrito adiante.
Defendo tal tese partindo do pressuposto de que, em sua esmagadora maioria,
os textos constitucionais preconizam a democracia como regime político, ainda que o
contexto fático possa ser o de uma autocracia rígida e fechada. Sem querer adentrar
em uma perspectiva enciclopédica de voltas ao mundo em torno das constituições
formais dos países, basta verificar os textos das Cartas vigentes nas ditaduras em geral.
No regime nazista, a Constituição de Weimar permanecia formalmente em vigor, não
obstante Hitler governar a Alemanha por meio de decretos de emergência; o mesmo
aconteceu durante o último regime de exceção (1976-1983) na Argentina, que também
não revogou a democrática Carta de 1853-1860; a antiga Alemanha Oriental tinha por
nome oficial “República Democrática Alemã”; a África do Sul racista se colocava como
uma democracia institucional em seu constitucionalismo fático, já que não possuía Carta
formal no período do apartheid; a Constituição chilena de 1980 – até hoje em vigor – foi

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BRUNO GALINDO
CONSTITUCIONALISMO E SOBERANIA POPULAR: FUNDAMENTOS DO DIREITO ELEITORAL DEMOCRÁTICO
79

elaborada em pleno regime Pinochet, apesar de um conteúdo razoavelmente democrático


em termos textuais; a Lei Maior brasileira de 1967-1969, igualmente, previa o pleno
funcionamento dos poderes do Estado, harmônicos e independentes entre si, direitos
fundamentais e pluralismo político, não obstante tudo o que ocorreu no período.
Chega-se ao lugar comum de que nem sempre o fato de se ter um texto consti­
tucional progressista ou uma democracia formal significa que as coisas assim o sejam
de fato. Para Loewenstein, a questão fundamental de se tornar realidade a conformação
específica do poder político prevista constitucionalmente depende do meio social e
político no qual a Constituição esteja inserida. Destaca que quando a constituição é
implan­tada sem uma prévia educação política e uma democracia constitucional plena­
mente articulada, em um Estado recém-saído de uma autocracia ou de um regime
colonial, é quase um milagre fincar raízes imediatamente. É necessário um ambiente
nacional favorável à sua realização (LOEWENSTEIN, 1964, p. 217).
Daí a utilidade da classificação de Loewenstein em diferenciar as constituições
dos constitucionalismos efetivamente democráticos daquelas vigentes em períodos ou
regimes autoritários. De acordo com a conformação da realidade do processo político
em um país, o autor classifica as constituições em três tipos básicos: normativas,
nominalistas e semânticas, articulando estreitamente direito constitucional e política
concreta. Atente-se ao fato de que tais conceitos se classificam como conceitos típico-
ideais no sentido weberiano, de tal modo que na realidade social e política não haveria
constituições puramente normativas, nominais e semânticas, havendo vários graus de
normatividade, caracterizando-se as constituições pela predominância de um desses
aspectos apontados pelo autor (NEVES, 2007, p. 106).
Para ser considerada normativa, uma Constituição deve ser potencialmente
observada com lealdade pelos interessados, havendo uma simbiose entre a Lei Maior e
a comunidade. As normas de uma Carta normativa dominam o processo político e este
se adapta e se submete a elas. Ao direcionar de fato o processo de poder, os agentes
deste e as relações pertinentes se sujeitam generalizadamente às suas determinações
substantivas e ao seu controle procedimental. Nos seus dizeres, a Constituição normativa
é como uma roupa que cai bem e se pode realmente utilizar (LOEWENSTEIN, 1964,
p. 217; NEVES, 2007, p. 105). Como destaca Konrad Hesse (1991, p. 16), a Constituição
adquire força normativa na medida em que logra realizar suas pretensões de eficácia.
A Constituição nominal/nominalista, por sua vez, é vigente formalmente, mas
a dinâmica do processo político não se adapta às suas normas, havendo insuficiente
concretização constitucional. Não é simplesmente uma prática diversa do texto
constitucional – já que as próprias divergências interpretativas podem conduzir a
caminhos diferentes na concretização da Constituição – mas uma ausência de ressonância
de suas normas no processo de conformação do poder. Loewenstein atribui à falta
de pressupostos sociais e econômicos, tais como a ausência de educação política
generalizada e a inexistência de uma classe média autônoma, tal discrepância entre as
normas e a realidade do processo de poder. É como se a decisão política de instituir
aquela Constituição pudesse ter sido prematura e fosse necessária uma mudança
cultural naquele país para que as normas constitucionais em questão conformassem
de fato as relações políticas, sendo educativa a função primordial da Constituição
nominalista. Utilizando mais uma vez o exemplo da roupa, trata-se de uma delas que
se coloca no guarda-roupa e se aguarda o “corpo nacional” crescer e estar apto a usá-la

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
80 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

(LOEWENSTEIN, 1964, p. 218). Contudo, apesar da discrepância, é plausível considerar


a transformação gradativa de tal Constituição em uma carta normativa, especialmente
se presente como condição de possibilidade da eficácia da norma constitucional aquilo
que Hesse (1991, p. 19 e ss.) denominou de “vontade de constituição”, essencial para
uma transição do nominalismo constitucional à sua normatividade.1
A Constituição semântica/instrumentalista, a seu turno, seria basicamente um
mero reflexo da realidade existente do processo de poder, servindo, não como um corpo
normativo de controle e limitação deste, mas ao contrário como mero instrumento dos
seus detentores. A conformação do poder político está congelada em benefício destes,
independentemente de serem uma pessoa (ditador), uma junta, um comitê, uma assem­
bleia ou um partido. Se não houvesse uma constituição formal, o desenvolvimento
concreto do processo político não seria significativamente diferente, demonstrando
uma flagrante desimportância – mesmo retórica – da Constituição. Em lugar de servir
à limitação do poder, a Constituição é aqui mero instrumento de estabilização e de
eternização das intervenções dos poderosos de fato na comunidade. Não é possível
uma mudança pacífica de governo, apelando muitas vezes os setores oposicionistas
para expedientes como a luta armada e as insurreições contra os governantes. Ainda
utilizando o exemplo da roupa, o autor alemão destaca que não se trata efetivamente
de uma roupa, mas de um disfarce.
Loewenstein ainda ressalta que há um conjunto de caracteres que permite
reco­nhecer uma Constituição semântica de modo relativamente seguro: quando o
presi­dente da República pode permanecer no cargo sem limitação temporal; quando
unilate­ralmente e sem recorrer ao eleitorado possa vetar a legislação proveniente do
Parlamento; quando a confirmação das decisões políticas fundamentais estiver reservada
a plebiscitos/referendos manipulados em vez de serem discutidas em um parlamento
livremente eleito; quando o regime eleitoral só permita a existência de um único partido
(LOEWENSTEIN, 1964, p. 218-219; NEVES, 2007, p. 106).

1
O célebre professor da Universidade de Freiburg e também juiz do Tribunal Constitucional Federal
(Bundesverfassungsgericht) alemão explica seu conceito de vontade da constituição nesses termos: “Mas, a força
normativa da Constituição não reside, tão-somente, na adaptação inteligente a uma dada realidade. A Constituição
jurídica logra converter-se, ela mesma, em força ativa, que se assenta na natureza singular do presente (individuelle
Beschaffenheit der Gegenwart). Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas.
A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição
de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos
e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem.
Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na
consciência geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional –, não
só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung). Essa vontade
de Constituição origina-se de três vertentes diversas. Baseia-se na compreensão da necessidade e do valor de
uma ordem normativa inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido e disforme. Reside,
igualmente, na compreensão de que essa ordem constituída é mais do que uma ordem legitimada pelos fatos
(e que, por isso, necessita de estar em constante processo de legitimação). Assenta-se também na consciência
de que, ao contrário do que se dá com uma lei do pensamento, essa ordem não logra ser eficaz sem o concurso
da vontade humana. Essa ordem adquire e mantém sua vigência através de atos de vontade. Essa vontade tem
conseqüência porque a vida do Estado, tal como a vida humana, não está abandonada à ação surda de forças
aparentemente inelutáveis. Ao contrário, todos nós estamos permanentemente convocados a dar conformação
à vida do Estado, assumindo e resolvendo as tarefas por ele colocadas. Não perceber esse aspecto da vida do
Estado representaria um perigoso empobrecimento de nosso pensamento. Não abarcaríamos a totalidade desse
fenômeno e sua integral e singular natureza. Essa natureza apresenta-se não apenas como problema decorrente
dessas circunstâncias inelutáveis, mas também como problema de determinado ordenamento, isto é, como um
problema normativo” (HESSE, 1991, p. 19-20).

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CONSTITUCIONALISMO E SOBERANIA POPULAR: FUNDAMENTOS DO DIREITO ELEITORAL DEMOCRÁTICO
81

Nos regimes de exceção, há geralmente textos constitucionais com semblante


democrático. Porém, tais textos tendem a ter a sua função simbólica “hipertroficamente”
dimensionada em detrimento de sua aplicação como controle e limite do poder. As au­
to­cracias em geral possuem constituições semânticas/instrumentalistas (NEVES, 2007,
p. 109-110). Seu conteúdo tende a ser irrelevante no processo político diante da desim­
portância do texto constitucional. A pontuação do quadro proposto por Szmolka Vida
tende a ser baixa nos casos de constitucionalismos desse tipo, ao passo que sobe quando
aumenta o potencial de normatividade constitucional e se aproxima da constituição
normativa.
Resumidamente, pode-se afirmar que a referida pontuação tende a ser alta nas
consti­tuições normativas, intermediária nas constituições nominalistas e baixa nas
constituições semânticas/instrumentalistas.2
Democracia e Constituição normativa se reforçam mutuamente, compondo um
binômio fortalecido em regimes políticos democráticos de alta intensidade. Contudo,
boa parte dos regimes políticos, mesmo quando textualmente se afirmam Estados Demo­
cráticos de Direito em suas constituições, padecem das dificuldades dos regimes híbridos
descritos teoricamente por Szmolka Vida e tendem a constitucionalismos nominalistas
em um sentido loewensteiniano, que, a depender do momento histórico-social, podem,
por sua vez caminhar a um constitucionalismo normativo ou, diversamente, regredir a
um constitucionalismo semântico-instrumentalista.
No tópico a seguir, vejamos como o direito eleitoral pode servir ao reforço de um
constitucionalismo normativo e uma democracia sólida ou, ao revés, legitimar situações
de semantismo/instrumentalismo constitucional e autoritarismo velado.

4.6 Fundamentos de um direito eleitoral democrático


Nas constituições em geral, a soberania popular é erigida como princípio fundante
do próprio sistema. Na Constituição brasileira de 1988 não é diferente: a referência à
própria soberania popular (arts. 1º, parágrafo único, e 14, caput) e a seus corolários como
o Estado Democrático de Direito (arts. 1º, caput, e 17, caput), o pluralismo político (arts. 1º,
V, e 17, caput), o sufrágio universal (art. 14, caput), o republicanismo em normas que
dificultam a perpetuação no poder (art. 14, §§5º e 6º), a moralidade e legitimidade dos
pleitos eleitorais contra abusos do poder econômico ou político (art. 14, §9º), para não
falar de princípios mais genéricos como a igualdade (art. 5º, caput) que também informam
os pressupostos de um direito eleitoral democrático (GOMES, 2015, p. 35-64).
As normas eleitorais infraconstitucionais em geral não destoam disso, dado que
são em boa medida normas regulamentadoras das suas congêneres constitucionais.
Contudo, transitar entre as potencialidades normativas da soberania popular
é um desafio permanente para o direito eleitoral que deve servir, na perspectiva do
Estado Democrático de Direito, a alcançar a força normativa dos dispositivos aludidos

2
Aqui cabe um esclarecimento: Loewenstein utiliza expressamente o termo “constituição semântica”. Todavia,
Marcelo Neves tece crítica ao adjetivo usado pelo professor alemão, considerando que o uso do termo em sua
classificação destoa bastante do seu significado habitual. Daí Neves propor o adjetivo instrumentalista para
caracterizar essas constituições, partindo da ideia de que elas sejam meros instrumentos dos detentores do
poder. Não sendo objetivo deste trabalho entrar em tal debate, utilizo indistintamente as duas expressões. Mais
detalhes, cf. Neves (2007, p. 109).

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82 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

(na conceituação de Loewenstein e Hesse), bem como pontuações máximas, ou próximas


disso, nas dimensões analíticas preconizadas por Szmolka Vida, notadamente no campo
do pluralismo e competição política na obtenção do poder e no desenvolvimento dos
processos políticos.
Nesta perspectiva, a partir de variações nas ditas dimensões analíticas elaboradas
pela professora espanhola, proponho que o direito eleitoral democrático precisa assegurar
o pluralismo político almejando atingir a observância de premissas como: a) pleno
reconhecimento das opções políticas da sociedade; b) igualdade de oportunidades no
desenvolvimento dos processos políticos e eleitorais; c) periodicidade eleitoral de acordo
com a legislação, sendo as interrupções reguladas por normas preestabelecidas, sem
casuísmos interpretativos; d) oportunidades similares para os partidos/grupos políticos
em relação às campanhas eleitorais e ao acesso aos meios de comunicação; e) ausência
de irregularidades significativas nos processos eleitorais para que os eleitores tenham
plena liberdade no exercício do voto, sem distorções como compras de votos, intimidação
e violência; f) inexistência de exclusões do direito ao voto baseadas em gênero, sexo,
raça, etnia, classe social, instrução e outras; g) sistema eleitoral e de distribuição de
assentos parlamentares estável e aceito de forma majoritária pelas forças políticas em
disputa; h) resultados eleitorais correspondentes às preferências esboçadas no pleito
pelos cidadãos eleitores, servindo para determinar quem e o que se decide em nome
do Estado e da sociedade.
Na medida em que o direito eleitoral observe esses pressupostos, mais ele pode
garantir significativo grau de legitimidade aos pleitos eleitorais e consequentemente
às instituições conformadas por ele, pois no reconhecimento social de que as regras
do jogo democrático foram respeitadas, as condições de governabilidade são maiores
e a suportabilidade de um eventual governo ruim tende a ser mais ampla, posto que
sempre há de se considerar que o mau governo é essencialmente algo temporário. Não
se pode, por óbvio, desconsiderar de que se trata de uma possibilidade sempre presente
no Estado Democrático de Direito, qual seja, a de que a soberania popular nem sempre
conduzirá ao melhor dos governos, como já pensara Aristóteles há mais de dois milênios
sobre a degeneração da democracia (ARISTÓTELES, 1998, p. 105 e ss.; BOBBIO, 1998,
p. 55 e ss.; 2003, p. 137-138; KELSEN, 1993, p. 199-200).
Mas, ao se ter certo consenso básico de que a via da soberania popular ainda é a
menos ruim das alternativas, é necessário assegurar que essa possa de fato prevalecer, e
que o direito eleitoral seja uma via para tal. Nesta perspectiva, o Poder Judiciário Eleitoral
possui papel relevante em garantir a observância das regras do jogo democrático.
A Justiça Eleitoral tem por missão constitucional julgar e punir, de acordo com
a legislação, os abusos de poder econômico e político nos pleitos eleitorais. Em relação
a isso, não se afigura razoável afirmar que tais punições seriam, por si sós, ataques à
soberania popular ou ao Estado Democrático, pois a formação da vontade democrática
expressa em um pleito eleitoral depende de condições prévias de competitividade
político-eleitoral e de transparência do processo eletivo, o que implica se garantir a
“paridade de armas”, no que o Judiciário Eleitoral deve dentro de suas competências
coibir abusos de poder econômico e político.
Entretanto, essa tarefa é recheada de percalços. No presente tópico abordarei
dois tipos de casos emblemáticos das dificuldades enfrentadas pelo direito eleitoral
para assegurar a efetividade da soberania popular e contribuir para uma aproximação

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BRUNO GALINDO
CONSTITUCIONALISMO E SOBERANIA POPULAR: FUNDAMENTOS DO DIREITO ELEITORAL DEMOCRÁTICO
83

com as pontuações mais altas nas dimensões analíticas preconizadas por Szmolka Vida.
Os primeiros – em verdade, apenas um – a partir do debate sobre a imparcialidade dos
julgadores, em torno da Ação de Investigação Judicial Eleitoral nº 194.358 (julgamento
da chapa presidencial Dilma Rousseff/Michel Temer no TSE); os últimos, as cassações de
diploma dos mandatos dos governadores Cássio Cunha Lima (Paraíba) e Jackson Lago
(Maranhão) em 2009, envolvendo a possibilidade de substituição da vontade popular
soberana pela decisão de uma Corte Eleitoral.3
A questão da imparcialidade dos julgadores é uma temática historicamente
presente no debate constitucional e processual, mas tem se acentuado nos últimos
tempos, talvez em razão da excessiva exposição midiática de juízes, desembargadores e
ministros de cortes superiores, face a fenômenos como o ativismo judicial, a judicialização
da política e mesmo a politização do Judiciário, com um protagonismo institucional
provavelmente inédito no Brasil.
Inúmeras variáveis podem comprometer a imparcialidade do julgador, daí a
existência de regramento processual específico em relação a situações de impedimento
e suspeição, como no Código de Processo Civil/2015, arts. 144 a 148. Para além disso, a
preocupação com aspectos que possam comprometer a imparcialidade do magistrado
ganha novos contornos diante de situações não expressamente previstas na legislação
processual, mas que não são aceitáveis em um exame mais acurado de comportamentos
comprometedores por parte do julgador que possam vir a macular não apenas a decisão
em si, mas a imagem social de isenção e equidistância das partes que deve ter uma corte
judicial e seus membros.4
No caso escolhido, a questão da imparcialidade do julgador ganhou uma conside­
rável visibilidade dado o comportamento controverso do Ministro Gilmar Mendes,
então presidente do TSE.
Como destaquei em outra oportunidade, a história da Ação de Investigação
Judicial Eleitoral nº 194.358 é razoavelmente conhecida. Consiste na junção de várias ações
elei­torais de iniciativa do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e da Coligação
Muda Brasil, que alegavam fundamentalmente a ocorrência de abuso de poder econô­
mico e político por parte dos vencedores do pleito de 2014. A então Ministra Relatora,
Maria Thereza de Assis Moura, em fevereiro de 2015, chegou a negar seguimento à

3
É verdade que há questões que escapam ao direito eleitoral, como exemplo, o mecanismo do impeachment como
forma de responsabilização do governante. Recentemente passamos por um processo dessa natureza em relação
à Ex-Presidente Dilma Rousseff, processo profundamente controverso e cujas acentuadas críticas vão desde
a inexistência de justa causa para a condenação (ausência de crime de responsabilidade) até a deturpação da
soberania popular expressa nas urnas através de uma manobra parlamentar que termina por se assemelhar
ao voto de desconfiança parlamentarista em um sistema que não o concebe, ocasionando um impedimento
presidencial à revelia da Constituição, posição com a qual comungo (GALINDO, 2016; GALINDO, 2017b).
4
É relevante notar que em países com Estados Democráticos de Direito mais consolidados que o nosso, a
preocupação com a própria “aparência de imparcialidade” é levada profundamente a sério a ponto de ter sido
fundamento para o afastamento de magistrados das mais altas cortes em casos relevantes. Destaquem-se os casos
do Juiz Pablo Pérez Tremps, no Tribunal Constitucional da Espanha (Sentencia ATC 26/2007), cuja recusación foi
aceita pela Corte em razão de Pérez Tremps ter elaborado parecer jurídico sobre a mesma questão a pedido do
Instituto de Estudos Autônomos do Governo da Catalunha, e o do Lord Hoffman, no então Comitê de Apelação
da Câmara dos Lordes britânica (o equivalente à Suprema Corte do Reino Unido até a década passada), quando
foi considerado pelos seus pares impedido de participar do julgamento do pedido de extradição do ex-ditador
chileno Augusto Pinochet, em 1999, diante dos vínculos que a sua (do Lord Hoffmann) esposa possuía com a
Anistia Internacional, que demonstrara interesse no caso (CARVALHO, 2017, p. 259 e ss.; ROBERTSON, 2000,
p. 25-31; GRANT, 2000, p. 41 e ss.; CATLEY; CLAYDON, 2000, p. 63 e ss.).

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
84 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

ação, considerando na ocasião que as acusações eram excessivamente genéricas e não


apresentam indícios probatórios suficientes ao seu prosseguimento (GALINDO, 2017a).
Os autores recorreram e, em outubro de 2015, o TSE reformou a decisão monocrática
em questão, com voto-vista vencedor do Min. Gilmar Mendes, acompanhado por outros
4 ministros, entendendo, entre outras coisas, que ilícitos verificados pelos órgãos fiscali­
zadores no curso de investigações em andamento ou futuras estariam aptos à instrução
da ação (AgR-AIME nº 7-61.2015.6.00.0000/DF).
Em meio à grave crise que resultou na substancial mudança do cenário político,
com a destituição da Presidente Dilma pelo impeachment e a ascensão à Presidência do
antes Vice-Presidente Michel Temer, que passou a receber apoio político dos autores
da ação a partir de sua investidura definitiva na Presidência, a decisão do TSE se deu
somente em junho de 2017, com uma composição da corte parcialmente modificada e
tendo o Ministro Gilmar Mendes, agora presidente do TSE, decidido de modo diverso em
relação ao seu anterior voto-vista quanto à validade da apuração daqueles ilícitos, sendo
acompanhado por outros 3 ministros, o que resultou na absolvição da chapa presidencial
e na continuidade do Presidente Michel Temer à frente do Executivo nacional.
A discrepância de entendimentos da Corte em tão curto espaço de tempo enseja
várias reflexões: por um lado, a volatilidade das posições do Tribunal diante de situações
similares em face da frequente alteração de sua composição; por outro, a possibilidade
de que tal circunstância possa favorecer posturas casuístas da Corte, pois a ausência de
razoável deferência à sua própria jurisprudência contribui para situações de significativa
insegurança jurídica, dificultando a dworkiniana integridade no direito, dada a corrente
incoerência decisória (DWORKIN, 1997, p. 81 e ss.; 1999, p. 271 e ss.; BAHIA; SILVA,
2016, p. 23 e ss.; STRECK, 2016, p. 332 e ss.).
Não obstante, esse último aspecto pode ocasionar hard cases da importância do
caso Dilma/Temer uma opção decisionista dos julgadores, alterando os fundamentos
jurídicos a partir de considerações de natureza política, econômica ou moral, no caso,
paradoxalmente se utilizando das “virtudes passivas” (técnicas de autorrestrição)
apontadas por Alexander Bickel (BARBOSA; GOMES NETO, LIMA, 2017).
O TSE teria então se colocado em posição de autocontenção, blindando a análise
do mérito do conjunto probatório por considerar a existência de óbices de natureza
processual. Entretanto, esses mesmos óbices foram desconsiderados na decisão pelo
provimento do agravo regimental suprarreferido, quando, há menos de 2 anos, a Corte
teve posição ativista no mesmo caso e sobre a mesma questão, permitindo a continuidade
da ação e das investigações pertinentes (GALINDO, 2017a).5
Para além do problema quanto à ausência de punição de eventuais abusos do
poder econômico e da volatilidade jurisprudencial, há, como dito, controvérsias nesta
decisão do TSE no que diz respeito à garantia de um juízo efetivamente imparcial. Para
além da arguição de suspeição levantada pelo Ministério Público Eleitoral em relação
ao Min. Admar Gonzaga, rejeitada pela Corte, o caso do já citado Min. Gilmar Mendes
é bastante emblemático, principalmente por ter sido dele o “voto de Minerva” que
ocasionou o desempate no julgamento, que findou por ser favorável à chapa Dilma/
Temer e à continuidade deste último na Presidência da República.

5
Sobre a crítica processual, fundamental a leitura de Streck e Costa (2017).

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BRUNO GALINDO
CONSTITUCIONALISMO E SOBERANIA POPULAR: FUNDAMENTOS DO DIREITO ELEITORAL DEMOCRÁTICO
85

O comportamento do Min. Gilmar Mendes é razoavelmente conhecido. Com


frequência, o ministro é visto em almoços, jantares e encontros fora da agenda oficial
com pessoas processualmente interessadas em julgamentos nos quais sua participação
é provável. Entre estes, a AIJE referida, que inclui o próprio Presidente Michel Temer.6
Embora não se possa afirmar que isso por si só implique o comprometimento de
sua imparcialidade, a frequência com que tais encontros ocorrem e a ausência de
transparência de seus conteúdos lançou dúvidas concretas sobre a credibilidade de
suas decisões, especialmente quando possam beneficiar direta ou indiretamente aqueles
que tiveram esses encontros privilegiados. E a situação mais notória é precisamente o
caso da AIJE nº 194.358, pois ocorreu uma guinada no entendimento do ministro, se for
considerada a posição que teve no voto-vista vencedor em outubro de 2015 (quando a
presidente da República ainda era Dilma Rousseff) e a posição adotada em junho de
2017, com Temer à frente da Presidência em caráter definitivo.
Também em números, o comportamento do ministro o leva a ser o magistrado da
Suprema Corte que teve contra si o maior número de arguições de impedimento e de
suspeição (20 ao todo), apesar de nenhuma delas ter sido provida (CARVALHO, 2017,
p. 218). Em adendo, o Min. Gilmar Mendes também é o magistrado do STF que mais
teve contra si pedidos de impeachment (oito, ao todo), sendo o mais recente apresentado
contra ele em junho de 2017 junto ao Senado Federal subscrito por dois juristas de
grande renome, o Ex-Procurador Geral da República Cláudio Fonteles e o Professor
da Universidade de Brasília Marcelo Neves, por cometimento de vários crimes de
responsabilidade, pedido que igualmente não prosperou.7
Situações como essas, que têm se avolumado nos últimos tempos no Brasil em
outros campos que não o eleitoral, comprometem a credibilidade da Justiça como locus
de solução de conflitos referentes à legalidade dos pleitos e fidelidade destes à vontade
soberana do povo. Inequivocamente conduz a situações comprometedoras da competição
político-eleitoral e da transparência do processo eleitoral, possibilitando intervenções
judiciais não republicanas para beneficiar certos candidatos e/ou detentores de poder
político em detrimento de outros, o que não permitiria que a experiência brasileira no
campo do direito eleitoral pudesse figurar entre as mais altas pontuações na classificação
de Szmolka Vida em relação a esses aspectos. Não é à toa que mesmo antes dos recentes
acontecimentos, a percepção popular do sistema de justiça já não era das melhores,
segundo relatório do Índice de Confiança na Justiça Brasileira, publicado pela Fundação
Getúlio Vargas, bem como o indicador do Latinobarómetro, apesar de, por óbvio, as
pesquisas serem mais amplas e não envolverem apenas o Judiciário Eleitoral.8

6
Cf. Schreiber (2016; 2017); Franco (2016); Uribe (2017); Sadi (2017); Temer... (2017); Dias e Uribe (2017).
7
Cf. Mota (2017) e Garcia (2017).
8
“Segundo análise de Luciana Gross Cunha os principais problemas do Judiciário na percepção da população
são: o tempo de resolução dos conflitos, o alto custo do acesso, a desonestidade e a parcialidade da instituição
e sua deficiente capacidade para resolver os conflitos, nessa ordem. Sobre estes pontos, o último relatório do
Índice de Confiança na Justiça Brasileira, publicado pela FGV em setembro de 2015, com dados de 2014, mostra
que 70% do universo dos entrevistados não confia no sistema de justiça. Comparativamente, entre 11 instituições
pesquisadas, o Judiciário foi o 8º colocado, à frente apenas dos partidos políticos, do Congresso e do governo.
O estudo mostra ainda que quanto menor a renda menor é a confiança no funcionamento da justiça, registrando
que o acesso é maior quanto maior o grau de instrução e rendimento. A gradual queda de confiança no Poder
Judiciário também pode ser observada no indicador divulgado pela Latinobarómetro. Na pesquisa realizada em
2015 em que foram ouvidas 1250 pessoas, apenas 1% delas avaliaram a atuação da justiça como muito boa; 28%
como boa; 42% como ruim e 17% muito ruim, o pior resultado da série desde 2006” (CARVALHO, 2017, p. 333).

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86 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

O outro ponto merecedor de nossa atenção é o da possibilidade de substituição


da vontade soberana do povo pela decisão judicial de uma Corte Eleitoral. Neste caso,
são relevantes para análise as decisões do TSE em recurso ordinário que confirmou a
cassação do diploma do então governador da Paraíba, Cássio Cunha Lima, e de seu
vice, José Lacerda Neto,9 e em recurso contra expedição de diploma que determinou a
cassação do diploma do então governador do Maranhão, Jackson Lago, e de seu vice,
Luiz Carlos Porto.10 Os dois casos são similares e ocasionaram a perda do mandato dos
dois governadores e vices respectivos em razão da prática de condutas vedadas a agentes
públicos e abuso de poder econômico e político.
Contudo, o que interessa ao debate deste ensaio não é o conteúdo das decisões
quanto ao efetivo cometimento dos ilícitos eleitorais, nem se a Corte foi justa ou injusta
na imposição da pena de cassação dos diplomas. Em verdade, a questão relevante aqui
é o aspecto aparentemente acessório, mas que termina por se tornar principal no que diz
respeito à soberania popular, da sucessão governamental no caso das referidas cassações.
Em ambos os casos, o TSE determinou que assumissem o governo os candidatos que
ficaram na segunda colocação nas eleições de 2006, dado que estas foram decididas em
segundo turno.
Os ministros debateram bastante os relevantes aspectos técnicos da questão da
nulidade dos votos e de seu momento, mas tal debate obnubilou um aprofundamento
sobre o princípio da soberania popular. As referências a este foram esparsas nos
julgamentos em questão, tendo, afinal, o TSE decidido em relação à sucessão por um
caminho que não reforça esse princípio, mas, ao contrário, o fragiliza. Vejamos.
A soberania popular está presente, como já destacado, já no primeiro artigo da
Constituição de 1988, quando em seu parágrafo único atesta que “Todo o poder emana
do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos
desta Constituição”. Também no art. 14 quando expresso que “A soberania popular será
exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos,
e, nos termos da lei, mediante: I – plebiscito; II – referendo; III – iniciativa popular”.
Embora no presidencialismo brasileiro não tenhamos um mecanismo como o
referendo revogatório de mandato, como em constituições como as da Colômbia e do
Equador, todo o fundamento constitucional do poder político da República Federativa
do Brasil está assentado na soberania popular (GALINDO, 2016, p. 38 e ss.). No caso da
representação política parlamentar e na chefia do Poder Executivo em todos os níveis da
Federação, isso se expressa no voto e no respeito ao resultado das urnas, consagrando
aqueles que foram vitoriosos nas eleições.
É óbvio que uma vitória obtida em eleições com inobservância da lei e práticas
abusivas merece reprimenda judicial, inclusive a mais grave delas que seria a cassação
do diploma dos eleitos nessas condições. Contudo, a interpretação dos dispositivos
constitucionais e legais precisa conduzir à maior afirmação possível do princípio da
soberania popular. Nos casos em questão, o elemento teleológico aponta para que se
dê a interpretação “conforme” a soberania popular, apontando para a observância do
elemento hermenêutico sistemático que propicia a observância de dispositivos da própria

9
TSE. RO nº 317341920076000000/PB 212912007. Rel. Min. Marco Aurélio Mello. DJe, 19 maio 2009.
10
TSE. RCED nº 671/MA. Rel. Min. Eros Grau. DJe, 3 mar. 2009.

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BRUNO GALINDO
CONSTITUCIONALISMO E SOBERANIA POPULAR: FUNDAMENTOS DO DIREITO ELEITORAL DEMOCRÁTICO
87

Constituição a respeito (apontando para princípios da interpretação constitucional,


como os da unidade da Constituição, do efeito integrador e da concordância prática/
harmonização), bem como do regramento infraconstitucional (MÜLLER, 2000, p. 70 e ss.;
HESSE, 1998, p. 61 e ss.; CANOTILHO, 2002, p. 1209-1212; GALINDO, 2003, p. 153 e ss.).
Um olhar para a legislação infraconstitucional faz perceber que o art. 224 do
Código Eleitoral, em sua redação originária (caput e §§1º e 2º) não deixava clara uma
solução para esse tipo de impasse. A jurisprudência do próprio TSE teve variações ao
longo do tempo, dando soluções díspares, muitas vezes a depender da composição
momentânea da Corte que não favorece uma maior uniformização jurisprudencial.
Por outro lado, a própria Constituição estabelece, em relação à dupla vacância dos
cargos de presidente e vice-presidente da República, formas de escolha e investidura
dos cargos em tais situações, no caso, o regramento previsto no art. 81:

Art. 81. Vagando os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, far-se-á eleição


noventa dias depois de aberta a última vaga.
§1º Ocorrendo a vacância nos últimos dois anos do período presidencial, a eleição para
ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional,
na forma da lei.
§2º Em qualquer dos casos, os eleitos deverão completar o período de seus antecessores.

Embora a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal seja reiterada no sentido


da não incidência do princípio da simetria federativa no caso do art. 81, ele é um
referencial sistemático bastante relevante para explorar em termos hermenêuticos,
históricos e genéticos a interpretação que o Constituinte de 1987-1988 deu à questão
quando decidiu pelo regramento da questão por essa via. No mínimo, uma percepção
de compatibilidade de tais procedimentos com a soberania popular: no caso da dupla
vacância nos dois próximos anos, eleições diretas para ambos os cargos, portanto,
consulta direta aos eleitores acerca de quem deve exercer o mandato presidencial nos
anos restantes; na hipótese da dupla vacância nos dois últimos anos, a ponderação de
que seria uma situação de proximidade temporal com as eleições regulares e um curto
mandato “tampão”, admitindo que as eleições sejam indiretas. Ainda assim, obriga à
realização de eleições, sendo o Colégio Eleitoral o representante do povo nas duas Casas
do Congresso Nacional, portanto, detentor de uma legitimidade derivada do próprio
voto popular.
Ou seja, em todos os casos, a solução preconizada é a do voto, das eleições, da
soberania popular, e não da prevalência de uma decisão judicial sobre esta. Em casos
de dupla vacância no âmbito estadual e/ou municipal, nada obsta que, na ausência de
regra expressa na Constituição do estado ou na Lei Orgânica do município, o art. 81
possa ser aplicado. A jurisprudência do STF não obriga a sua reprodução obrigatória,11
mas uma possível aplicação subsidiária dele seria uma solução muito mais consentânea
com o princípio da soberania popular do que diplomar a candidatura derrotada no
pleito eleitoral.

11
STF. ADI nº 4.298. Rel. Min. Cezar Peluso. DJe, 27 nov. 2009; STF. ADI nº 3.549. Rel. Min. Cármen Lúcia. DJe,
30 out. 2007.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
88 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

É claro que é necessário ponderar que, tecnicamente, o fato de se considerarem


nulos os votos dados à chapa vencedora das eleições os excluiria da apuração, diante da
previsão do art. 77, §2º da Carta de 1988.12 Entretanto, a interpretação desse dispositivo
não pode ser dissociada do contexto de sua aplicabilidade. Primeiramente, a de que
a candidatura vitoriosa era válida até o momento das eleições e os eleitores que nela
confiaram o seu voto, o fizeram por essa razão, em princípio. Em segundo lugar, nada
indica que os eleitores que tiveram seus votos invalidados involuntariamente, já que não
votaram nulo por opção, escolheriam o segundo colocado no pleito; é de se presumir,
aliás, o inverso, especialmente em uma eleição decidida com a polarização de um segundo
turno, a de que tais eleitores possuam uma grande rejeição à candidatura derrotada,
sendo pouco provável que nela confiassem seu voto. Em terceiro lugar, a diplomação
dos eleitoralmente derrotados, ainda que em decorrência de abusos perpetrados pelos
vencedores, tende a dar ao eleitorado a percepção de que as eleições são decididas nos
tribunais pelos magistrados e não diretamente pela população. E, por fim, do ponto de
vista da governabilidade, tende-se a levar às cortes as disputas eleitorais, perpetuando a
situação de campanha política e provocando instabilidade governamental, já que governo
e oposição continuarão se digladiando pela conquista da chefia do Poder Executivo em
vez de exercerem seus papeis democráticos regulares.
Nesses casos, pode-se afirmar, levando mais uma vez em conta as variáveis da
dimensão analítica do pluralismo e competição política na obtenção do poder e no
desenvolvimento dos processos políticos, na proposta teórica de Szmolka Vida, que temos
sérios prejuízos no que diz respeito à competição política e eleitoral, à periodicidade das
eleições e às funções das eleições de representação e formação do governo, contribuindo
para uma pontuação mais baixa do regime político brasileiro em termos de intensidade
democrática nas variáveis em questão.
A jurisprudência do TSE sofreu severas críticas, a ponto de que a questão chegou
aos debates legislativos e foi objeto de pacificação quanto à sua não aplicação a partir da
denominada “minirreforma eleitoral” capitaneada pela Lei nº 13.165/2015, responsável
por várias alterações na legislação eleitoral, tendo este diploma legal acrescentado dois
parágrafos ao art. 224 do Código Eleitoral, um dos quais diz respeito diretamente à
vedação da diplomação do segundo colocado e realização de novas eleições no caso de
cassação de diploma de candidato eleito. Veja-se seu teor literal:

Art. 224. [...]


§3º A decisão da Justiça Eleitoral que importe o indeferimento do registro, a cassação do
diploma ou a perda do mandato de candidato eleito em pleito majoritário acarreta, após
o trânsito em julgado, a realização de novas eleições, independentemente do número de
votos anulados.

Apesar de alguns eleitoralistas verem problemas em torno da aplicabilidade dos


novos dispositivos e sua compatibilidade com a Constituição, em especial do §4º do
mesmo artigo (SEVERO; CHAVES, 2015, p. 117-118; FRAZÃO, 2016), ao menos se afigura
fora de dúvidas que a jurisprudência do TSE que determinava a diplomação do segundo

12
“Art. 77. [...]. §2º Será considerado eleito Presidente o candidato que, registrado por partido político, obtiver a
maioria absoluta de votos, não computados os em branco e os nulos”.

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BRUNO GALINDO
CONSTITUCIONALISMO E SOBERANIA POPULAR: FUNDAMENTOS DO DIREITO ELEITORAL DEMOCRÁTICO
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colocado em eleições majoritárias quando da cassação do diploma da candidatura


vencedora, como nos casos dos ex-governadores Cássio Cunha Lima (Paraíba) e Jackson
Lago (Maranhão), está superada e não mais pode ser aplicada a partir da vigência da
Lei nº 13.165/2015.
Neste caso, pode-se afirmar que o legislador, valendo-se de interpretação autêntica,
prestigiou o princípio da soberania popular, limitando a possibilidade de as cortes
eleitorais decidirem as eleições em lugar do povo eleitor.

4.7 Conclusão: por um direito eleitoral a serviço da soberania popular


A pretexto de conclusão, o direito eleitoral pode ser um relevante mecanismo de
reforço da força normativa da Constituição, traçando vias, em um país como o Brasil,
de uma transição do atual estado nominalista de nossa Carta Magna para uma Consti­
tuição normativa, na perspectiva loewensteiniana. E isso só se afigura possível se erigir
concretamente como seus fundamentos os aspectos da teoria dos regimes híbridos de
Szmolka Vida que levem à pontuação máxima ou, ao menos, se aproxime desta, nas
variáveis da dimensão analítica sobre o pluralismo e competição política, implicando:
1) pleno reconhecimento das diferentes opções políticas (pluralismo político);
2) igualdade de oportunidades políticas competitivas (competição política);
3) eleições com periodicidade plenamente garantidas na forma constitucional e
legal (periodicidade das eleições);
4) partidos/grupos políticos gozando de oportunidades similares durante a
campanha eleitoral, inclusive com a devida exposição junto aos meios de
comunicação (competição eleitoral);
5) ausência de irregularidades significativas nos processos eleitorais, com liber­
dade dos eleitores no exercício do voto, sem distorções relevantes do tipo
compra de votos, intimidações e violência (transparência do processo eleitoral);
6) inexistência de exclusões discriminatórias do direito de voto aos adultos, tais
como restrições de gênero, raça, etnia, renda, educação etc. (exercício do direito
de voto);
7) sistema eleitoral e de distribuição de assentos parlamentares estável e aceito
de forma majoritária pelas forças políticas (sistema eleitoral e distribuição de
assentos parlamentares);
8) correspondência entre os resultados eleitorais e as preferências dos cidadãos
(funções das eleições de representação e formação do governo).
Retornando ao que foi dito nas notas introdutórias deste ensaio, o direito eleitoral
é um mecanismo de extrema relevância para assegurar a preponderância da soberania
popular e, por conseguinte, o fortalecimento do próprio regime democrático. Na medida
em que possa ter, em sua interpretação, horizontes hermenêuticos em sincronia com isso,
o direito eleitoral aproximará o regime político de uma democracia plena. Do contrário,
esse distanciamento pode levar o direito eleitoral a ser um mecanismo de legitimação
de regimes velada ou abertamente autoritários, fazendo com que a hibridez destacada
por Szmolka Vida penda para o lado do autoritarismo fechado, além de transformar
uma Constituição formalmente democrática em um tipo essencialmente semântico, de
acordo com o conceito de Loewenstein.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
90 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Não custa lembrar que mesmo as mais ferrenhas ditaduras tiveram e têm processos
eleitorais, plebiscitos e referendos que, no entanto, servem basicamente para legitimar
o poder estabelecido como aparentemente democrático, enquanto a prática política é
essencialmente autoritária. E é a isso que o direito eleitoral não deve servir, devendo
preservar sua associação com o princípio democrático, sendo instrumento de consagração
da soberania popular no campo da disputa eleitoral.

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CONSTITUCIONALISMO E SOBERANIA POPULAR: FUNDAMENTOS DO DIREITO ELEITORAL DEMOCRÁTICO
91

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

GALINDO, Bruno. Constitucionalismo e soberania popular: fundamentos do direito eleitoral democrático.


In: FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura (Coord.); PECCININ,
Luiz Eduardo (Org.). Direito Constitucional Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 67-92. (Tratado de
Direito Eleitoral, v. 1.) ISBN 978-85-450-0496-7.

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CAPÍTULO 5

REVISITANDO O DIREITO ELEITORAL:


DIREITOS FUNDAMENTAIS, DEMOCRACIA
E O NOVO CONSTITUCIONALISMO

LUIZ FUX

CARLOS EDUARDO FRAZÃO

5.1 Considerações iniciais


Quase três décadas após a reconstitucionalização do país, o direito eleitoral
brasileiro permanece, em larga medida, distante dos vetores axiológicos insculpidos
na Constituição de 1988. Pior: seus principais institutos ainda são forjados sobre pilares
autoritários. É que, de um lado, o direito constitucional está sedimentado na tutela dos
direitos fundamentais e no autogoverno popular. De outro, subjaz ao direito eleitoral
uma filosofia que empresta peso desproporcional à igualdade política, notadamente a
de viés formal, em detrimento da liberdade, assim como os arranjos normativos nele
engendrados transitam entre um paternalismo exagerado e uma preservação do status
quo do cenário político-partidário. Adite-se a esses problemas que as exegeses fixadas
em âmbito eleitoral, não raro, colidem com a noção de autogoverno popular soberano
e negligenciam conceitos elementares de dogmática de direitos fundamentais.1
O objetivo deste ensaio consiste em revisitar esses pressupostos, de ordem a revelar
que a alternativa para esses déficits filosófico, teórico e dogmático não prescinde da ideia
de uma constitucionalização do direito eleitoral. Nossa empreitada está assim estruturada: no
item subsequente (5.2), serão apresentados, perfunctoriamente, os elementos comuns do
novo direito constitucional. Essa exposição se justifica para demonstrar o hiato existente

1
No mesmo sentido, FRAZÃO, Carlos Eduardo. Por um direito eleitoral constitucional. In: CARVALHO NETO,
Tarcísio Vieira de; FRAZÃO, Carlos Eduardo; NAGIME, Rafael. Direito eleitoral contemporâneo: estudos em
homenagem ao Ministro Luiz Fux. No prelo.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
94 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

entre essa novel axiologia e o direito eleitoral, e a necessidade de ampla revisão de seus
fundamentos teóricos e normativos. O item 5.3 é dedicado aos pilares do novo direito
eleitoral constitucionalizado. Erigimos três vetores: a liberdade de expressão, a soberania
popular e a proporcionalidade/razoabilidade. No item 5.4, as conclusões.

5.2 O marco teórico: o novo direito constitucional


A dogmática jurídica experimentou, nas últimas décadas, um conjunto notável de
mudanças na forma de conceber e de aplicar os institutos jurídicos, identificado sob a
rubrica de neoconstitucionalismo. Cuida-se de um novo paradigma no Direito, complexo e
multidimensional, caracterizado: (i) pelo reconhecimento de normatividade aos princípios,
que, ao lado das regras, passaram a ser invocados, direta e imediatamente, para o deslinde
das controvérsias jurídicas; (ii) pela superação do positivismo normativista, em especial
de matriz kelseniana, sem imiscuir-se em – ou incorrer no retrocesso das – fórmulas e
concepções metafísicas inerentes ao jusnaturalismo, porquanto incompatíveis com o
pluralismo existente nas sociedades contemporâneas; (iii) pela reaproximação entre
Direito e Moral, na cognominada virada kantiana, cujo eixo axiológico a partir do qual
se irradiam os demais valores do sistema jurídico passa a ser a dignidade da pessoa
humana; (iv) pela constitucionalização do Direito, fenômeno que se notabiliza tanto pela
incorporação pela Constituição de normas típicas de outros ramos do Direito quanto pela
releitura do ordenamento infraconstitucional à luz dos valores e normas constitucionais,
em especial dos direitos fundamentais (filtragem constitucional); e (v) pela judicialização
da política e das relações sociais.2 Convém desenvolver com mais vagar.
Em passado não muito distante, a concepção jurídica predominante não confe­
ria normatividade às Constituições. Os documentos constitucionais eram tidos como
proclamações retóricas, meramente políticas e dirigidas aos poderes estatais: a apli­ca­ção
direta e imediata de seus preceitos às controvérsias demandava a intermediação legis­lativa
(interpositio legislatoris). Nesse ambiente, a lei, em especial o Código Civil, ocu­pava o
centro do ordenamento jurídico. E porque atrelados à filosofia rousseniana, os pronun­
ciamentos judiciais deveriam estar estritamente fundamentados na lei – materia­lização
da vontade geral do povo. Paulatinamente, todavia, esse cenário se altera, com as
Constituições substituindo o Código Civil como norma e elemento unificador da ordem
jurídica. Alguns fatores explicam essa nova forma conceber o fenômeno jurídico.
Em primeiro lugar, o escopo dos próprios textos constitucionais foi significa­
ti­va­mente ampliado. No constitucionalismo liberal, as Constituições limitavam-se a
esta­belecer os princípios estruturantes do Estado e a definir um catálogo de direitos
indivi­duais. Com o advento do Estado de Bem-Estar Social (Welfare State),3 o panorama
se altera: os documentos tornaram-se mais ambiciosos e passaram a se imiscuir em temas
econômicos, sociais, ambientais etc. Constatou-se, em consequência, um vertiginoso
aumento da produção legislativa, o que ocasionara, ao mesmo tempo, a desvalorização
da lei e a perda da sacralidade dos Códigos. Sobressaiu, nesse ambiente, a Constituição

2
SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: SARMENTO, Daniel
(Org.). Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 113-146. Sobre o tema,
cf. CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003.
3
BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.

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LUIZ FUX, CARLOS EDUARDO FRAZÃO
REVISITANDO O DIREITO ELEITORAL: DIREITOS FUNDAMENTAIS, DEMOCRACIA E O NOVO CONSTITUCIONALISMO
95

como limite jurídico à atuação dos poderes instituídos, cujas disposições seriam dotadas
de imperatividade, força cogente e caráter vinculante.4
Em segundo lugar, e paralelamente a esse fenômeno, houve a expansão e o forta­
lecimento da judicial review, notadamente após a derrocada dos regimes nazifascistas.
De fato, as barbáries perpetradas durante o estado de exceção na Itália e, sobretudo, na
Alemanha evidenciaram que o legislador também pode ser cúmplice das atrocidades
cometidas sob a égide de um Estado de Direito meramente formal. Não por outra razão,
viu-se necessária a criação de mecanismos mais eficazes de tutela de direitos funda­
mentais, alteando-se a dignidade da pessoa humana a epicentro axiológico da nova
ordem jurídica pós-Segunda Guerra. Precisamente por isso, confiou-se a Tribunais e
Cortes Constitucionais a tarefa de fiscalizar a conformidade, formal e material, de leis
e atos normativos com as Leis Fundamentais. Transmuda-se, assim, o paradigma do
primado da lei para o da supremacia da Constituição.
Em terceiro lugar, a cultura jurídica também passou por profundas transforma­
ções, mediante a valorização dos princípios constitucionais. De simples comandos de
integração de lacunas, os princípios passam a ser compreendidos como espécies de
normas jurídicas, tal como as regras, podendo ser invocados, direta e imediatamente,
para o deslinde das controvérsias jurídicas. Eis o efeito dessa mudança: o significativo
aumento do espaço de atuação do intérprete/aplicador, que se viu obrigado a operar
com as disposições constitucionais, dotadas de supremacia formal e material, muitas
delas caracterizadas de elevada vagueza e abstração semântica.
Justamente pela elevada carga axiológica dos princípios, sua aplicação teve outro
efeito prático no mundo jurídico: propiciara a reaproximação entre o Direito e a moral.
Esse retorno do Direito aos valores – conhecido como virada kantiana – teve sua origem
com a derrocada dos regimes totalitários após a Segunda Guerra, já mencionada anterior­
mente, e com a reflexão crítica por parte dos juristas acerca das atrocidades perpetradas
pelo regime nazista.5
Por fim, esse reconhecimento do caráter normativo dos princípios repercutiu na
própria metodologia do Direito. Deveras, a aplicação mecanicista, ínsita à Escola da
Exegese francesa, cede terreno para métodos mais fluidos, mais abertos e menos ortodoxos
no equacionamento das questões jurídicas (e.g., a tópica, a ponderação de interesses). Para
bem ou para o mal, esse novo arranjo franqueia ao Poder Judiciário, em geral, e aos juízes,
em particular, amplas possibilidades decisórias, tornando-os poderosos players dentro
das dinâmicas interinstitucionais nas democracias constitucionais contemporâneas, na
medida em que operacionalizar normas vagas e abstratas confere maior plasticidade e
dinamismo ao ordenamento jurídico, de sorte a atender à evolução de uma sociedade
plural e a acomodar interesses variados dos seus muitos atores.
É nesse quadro que emerge a necessidade de uma constitucionalização do direito,
em sua dupla faceta: de um lado, o fenômeno se dá mediante a incorporação, nos textos

4
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: S.A.
Fabris, 1991.
5
Sobre a reaproximação do Direito com o mundo dos valores confira-se NINO, Carlos Santiago. Etica y derechos
humanos. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 1989, p. 3 e ss.; BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos
do novo direito constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In: ______ (Org.).
A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003, p. 1-49.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
96 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

fundamentais, de disposições oriundas de outros ramos do direito; de outro lado, em


sua dimensão talvez mais proeminente, ele se materializa pela irradiação dos valores
constitucionais por toda a legislação infraconstitucional, a qual deve ser lida pelas lentes
da Constituição. Trata-se daquilo que se convencionou denominar de filtragem consti­
tucional,6 segundo a qual as normas do ordenamento jurídico, em geral, e, em nosso
caso particular, a legislação eleitoral, devem ser apreendidas pelo prisma dos vetores
constitucionais, de maneira a concretizar os valores nela albergados.
Referido paradigma deve a fortiori ser aplicado ao direito eleitoral. De fato, os
institutos e categorias eleitorais ainda espelham uma dinâmica autoritária e que desconfia
da liberdade. Os influxos do novo direito constitucional ainda estão devidamente
sedimentados em âmbito político-eleitoral, de sorte que é chegada a hora de uma
verdadeira revolução copernicana no direito eleitoral. Na sequência, serão apresentados
alguns pilares sobre os quais, a nosso ver, deve ser erigido o direito eleitoral constitucional.
Por razões de tempo e de espaço, serão abordados apenas três mandamentos: a liberdade
de expressão, a soberania popular e o dever de proporcionalidade/razoabilidade.

5.3 A releitura do direito eleitoral à luz da axiologia constitucional


5.3.1 Levando a liberdade de expressão a sério7
Neste tópico, pretendemos discorrer, ainda que perfunctoriamente, acerca dos
fundamentos materiais ou substantivos da liberdade de expressão em âmbito eleitoral. E,
ao nos debruçarmos sobre a doutrina acerca do tema, destacamos interessante sistema­
tização feita pelo jurista lusitano Jônatas Machado,8 o qual vislumbra a existência de
três grandes formulações teóricas que visam conferir o substrato teórico à liberdade
fundamental de expressão.
A primeira categoria de autores, atrelados à cognominada teoria libertária, sustenta
que a liberdade de expressão seria um valor em si, autônomo, e que constitui componente
nuclear para o livre desenvolvimento da personalidade. Em sentido diverso, a segunda
corrente, reputada como teoria democrática, advoga que a liberdade de expressão ostenta
um caráter meramente instrumental, i.e., é tutelada apenas e tão somente para promover
outros valores que a sociedade considera essenciais (e.g., difundir o ideário democrático).
Por fim, a terceira matriz de pensamento, vertente da teoria instrumental, preconiza ser
a liberdade de expressão essencial para a busca da verdade. Nos parágrafos seguintes,
desenvolveremos cada uma delas.
De acordo com a teoria libertária (ou vertente substantiva,9 ou subjetiva10), a liber­
dade de expressão consubstancia direito moral dos cidadãos, porquanto estes teriam o

6
SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem constitucional: contribuindo para uma dogmática jurídica emancipatória. Porto
Alegre: S.A. Fabris, 1999.
7
Este tópico é inspirado em palestra proferida pelo Ministro Luiz Fux no âmbito de debate realizado no Centro de
Estudos Constitucional do UniCeub, ocorrido em 23.10.2014, cujo paper fora distribuído a todos os participantes.
8
MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de expressão: dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social.
Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 237 e ss.
9
KOATZ, Rafael Lorenzo-Fernandes. As liberdades de expressão e de imprensa na jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal. In.: SARMENTO, Daniel; SARLET, Ingo Wolfgang (Coord.). Direitos fundamentais no Supremo
Tribunal Federal: balanço e crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 385.
10
FARIAS, Edilsom Pereira de. Liberdade de expressão e comunicação: teoria e proteção constitucional. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2004, p. 63, 74.

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LUIZ FUX, CARLOS EDUARDO FRAZÃO
REVISITANDO O DIREITO ELEITORAL: DIREITOS FUNDAMENTAIS, DEMOCRACIA E O NOVO CONSTITUCIONALISMO
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inato direito de expor livremente suas ideias e de ouvir tão somente as informações e
ideias que quiserem. Cuida-se, verdadeiramente, de reconhecer a liberdade de expressão
como a própria expressão do homem, enquanto “dotado de direitos naturais ínsitos à
existência humana”.11 Nesta faceta, a liberdade de expressão se afigura como exterio­ri­
zação do princípio fundamental da Dignidade da Pessoa Humana e garantia do próprio
desenvolvimento da personalidade do indivíduo. Não por outra razão, Thomas Scanlon
afirma que a proteção da liberdade de expressão se justifica precipuamente na circuns­
tância de que a realização individual depende da interação de experiências e concepções
entre os membros de dada comunidade política.12
Em estrita sintonia com uma concepção libertária dos direitos (i.e., que visualiza
os indivíduos como agentes morais autônomos), o viés substantivo parte do pressuposto
de que os indivíduos são suficientemente capazes de filtrar as informações e ideias
e formar um juízo de valor livre e independente, de modo a definir suas próprias
escolhas.13 Justamente por isso, os adeptos dessa perspectiva repudiam qualquer forma
de cen­sura no conteúdo veiculado, máxime porque incompatível com a autonomia de
cada cida­dão e porque fomentaria o (pernicioso) controle do Estado sobre o discurso
público.14 Ao Estado e seus órgãos e agentes seria defeso estabelecer a agenda que será
deba­tida na esfera pública e, menos ainda, valorar as opiniões individuais. Ao revés, se
fosse fran­queada aos agentes estatais tal faculdade, tolher-se-ia a livre manifestação de
teses con­trárias àquelas defendidas pelo Governo.
Outra perspectiva igualmente relevante nesta temática é aquela defendida
pela teoria democrática (ou instrumental,15 ou objetiva16), cujo precursor foi Alexander
Meiklejohn. Para ele, o discurso público somente seria protegido contra regulações aptas
a comprometer a higidez das instituições democráticas.17 Todavia, indigitada proteção
ancorar-se-ia no fato de a liberdade de expressão ser um instrumento para a salvaguarda
de outros valores albergados constitucionalmente, e não um direito moral em si consi­
derado. Nesse viés, a liberdade de expressão deveria promover outras liberdades
(e.g., política ou religiosa) ou a própria democracia. Como se percebe, também aqui
a liber­dade de expressão goza de elevada proeminência, reclamando, bem por isso,
e igual­mente, tutela reforçada do Estado. Sem embargo, adverte Meiklejohn, o papel
assu­mido pelo Estado seria o de moderador neutro do debate público, de maneira a
atuar, nas sempre precisas palavras de Gustavo Binenbojm, como “curador de qualidade

11
CALAZANS, Paulo Murillo. A liberdade de expressão como expressão da liberdade. In: VIEIRA, José Ribas
(Org.). Temas de constitucionalismo e democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 82.
12
SCANLON, Thomas. A Theory of Freedom of Expression. In: DWORKIN, Ronald (Ed.). The Philosophy of Law.
Oxford: Oxford Univesity Press, 1977, p. 153 e ss.
13
DWORKIN, Ronald. Why Speech Must Be Free? In: ______. Freedom’s Law: The Moral Reading of the American
Constitution. Cambridge: Harvard Univesity Press, 1996, p. 200.
14
POST, Robert. Constitutional Domains. Cambridge: Harvard University Press, 1995, p. 268-331.
15
KOATZ, Rafael Lorenzo-Fernandes. As liberdades de expressão e de imprensa na jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal. In: SARMENTO, Daniel; SARLET, Ingo Wolfgang (Coord.). Direitos fundamentais no Supremo
Tribunal Federal: balanço e crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 385.
16
FARIAS, Edilsom Pereira de. Liberdade de expressão e comunicação: teoria e proteção constitucional. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2004, p. 63, 74.
17
É conhecida a frase cunhada por Alexander Meiklejohn, ilustrativa da perspectiva instrumental: “o essencial
não é que todos falem, mas que o que merece ser dito seja dito” (MEIKLEJOHN, Alexander. Political Freedom:
The Constitutional Powers of the People. New York: Harper, 1960, p. 25-28).

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
98 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

do debate público”.18 Daí a razão pela qual “[a proteção da liberdade de expressão se
explica] não porque ele é uma forma de auto-expressão, mas porque ele é essencial à
autodeterminação coletiva”.19
Dita teoria se alinha à existência de um livre “mercado de ideias”, tal como sus­
tentado por Oliver Wendell Holmes, no voto dissidente proferido em Abrams v. United
States, julgado pela Suprema Corte norte-americana em 1919.20 Nesse ambiente, o auto­
governo ínsito ao ideário democrático demandaria a intensa rede de troca de infor­
mações e embate de teses e ideias, em que os cidadãos poderiam veicular as diferentes
cosmovisões, de maneira a reciprocamente influenciarem-se.
A terceira corrente também outorga à liberdade de expressão um papel instru­
mental. Sucede que, nesta faceta, a liberdade de expressão não desempenharia o papel
de promoção de outras liberdades ou da democracia, mas se prestaria à identificação
da verdade. Ela foi desenvolvida pelo filósofo do pensamento utilitarista inglês John
Stuart Mill (1806-1873), reputado como pai do liberalismo moderno. Em seu ensaio sobre
A liberdade,21 de 1859, Stuart Mill defendeu que o governo não pode restringir a liberdade
de expressão, mesmo que essa seja a vontade da opinião pública.
O que justifica a proteção da liberdade de expressão, nessa vertente, é o fato de
ela produzir, ao menos idealmente, bons resultados para a sociedade, máxime porque
existem consideráveis chances de se atingir a verdade, bem como de se amainar a veicu­
lação de informações inverídicas ou inidôneas.
Além de consubstanciarem direito moral, aludidas liberdades também se justifi­
cam no fato de serem um instrumento para a salvaguarda de outros valores e liberdades
jusfundamentais, como a liberdade religiosa, a política e a própria estabilidade das
insti­tuições democráticas. Neste pormenor, sem que haja liberdade de expressão e
de infor­mação e sem que seja franqueada ampla possibilidade de debate de todos os
assuntos relevantes para a formação da opinião pública, não se há de cogitar de verda­
deira democracia. Não por outra razão, Robert Dahl defende que a caracterização de
uma sociedade verdadeiramente democrática não exige apenas eleições livres, justas
e frequentes, cidadania inclusiva e autonomia para as associações, como os partidos
políticos, mas também e, sobretudo, respeito à liberdade de expressão e de fontes de
informação diversificadas.22
Do ponto de vista prático, conquanto inexista hierarquia formal entre normas
cons­titucionais, é possível advogar que tais cânones jusfundamentais atuam como verda­
deiros vetores interpretativos no deslinde de casos difíceis (hard cases), por se situarem

18
BINENBOJM, Gustavo. Pluralismo e democracia deliberativa: as liberdades de expressão e de imprensa nos
Estados Unidos e no Brasil. Revista da EMERJ, v. 6, nº 23, 2003, p. 364.
19
FISS, Owen M. A ironia da liberdade de expressão: estado, regulação e diversidade na esfera pública. Tradução
de Gustavo Binenbojm e Caio Mário da Silva Pereira Neto. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 30. No mesmo
sentido, SUNSTEIN, Cass R. Democracy and the Problem of Free Speech. New York: Free Press, 1995; MICHELMAN,
Frank. Relações entre democracia e liberdade de expressão: discussão de alguns argumentos. In: SARLET, Ingo
Wolfgang (Org.). Direitos fundamentais, informática e comunicação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 49
e ss.
20
250 U.S. 616 (1919).
21
O livro constitui um dos marcos teóricos mais importantes de justificação da liberdade de expressão. No original,
On Liberty. O título do livro também é frequentemente traduzido para o português como Da liberdade ou Sobre a
liberdade.
22
DAHL, Robert. Sobre a democracia. Brasília: Editora UnB, 2001, p. 99 e ss.

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LUIZ FUX, CARLOS EDUARDO FRAZÃO
REVISITANDO O DIREITO ELEITORAL: DIREITOS FUNDAMENTAIS, DEMOCRACIA E O NOVO CONSTITUCIONALISMO
99

em uma posição privilegiada dentro da Constituição. Captando com maestria o ponto,


o Ministro Luís Roberto Barroso, em sede doutrinária, arremata que “(...) [se] entende
que as liberdades de informação e de expressão servem de fundamento para o exercício
de outras liberdades, o que justifica uma posição de preferência – preferred position – em
relação aos direitos fundamentais individualmente considerados. (...)”.23
Em âmbito político-eleitoral, essa proeminência da liberdade de expressão deve
ser trasladada por óbvias razões: os cidadãos devem ser informados da maior variedade
de assuntos respeitantes a eventuais candidatos, bem como das ações parlamentares
praticadas pelos detentores de mandato eletivo.24
Em primorosa obra a respeito da temática, a jovem jurista Aline Osório aponta
razões substantivas para o reconhecimento dessa centralidade da liberdade de expressão
no Direito Eleitoral. Em irreparável lição, vaticina que “as eleições são hoje a peça
central do sistema de autogoverno democrático. Em uma democracia representativa,
o direito de sufrágio permite que o povo exerça o poder político de modo indireto, a
partir da formação de um corpo de representantes. No entanto, o processo eleitoral é
mais do que um procedimento de tradução de votos e preferências em cargos eletivos,
em representação política. Ele constitui um processo participativo, em que cidadãos,
candidatos, partidos e meios de comunicação se engajam em um debate público,
indispensável para o processo de tomada de decisão de voto e de formação da vontade
coletiva”.25
Não obstante a liberdade de expressão encontrar-se preferencialmente prote­gida
no âmbito do processo eleitoral, esse direito fundamental poderá ser regulado, seja para
promover uma maior equalização de forças entre candidatos e partidos, seja para evitar
interferências indevidas no processo de deliberação coletiva e no próprio resul­tado do
pleito. Portanto, e na esteira da melhor doutrina sobre o tema, a vertente libertária e a
demo­crática não são incompatíveis entre si. Ambas podem, a rigor, caminhar juntas, e
devem ser igualmente protegidas e promovidas pelo Estado. De um lado, a teoria liber-
tária não oferece respostas satisfatórias ao fato de que a entrega do controle do discurso
público a regras eminentemente de mercado ultima por excluir a voz dos grupos mais
pode­rosos economicamente; de outro lado, a teoria democrática, ao propugnar pelo
controle do conteúdo do discurso, poderia acarretar a censura e o controle dos meios
de comunicação.26
Aludidas premissas teóricas já encontram eco na jurisprudência do Tribunal
Supe­rior Eleitoral. No leading case sobre o art. 36-A, na redação dada pela Minirreforma
Eleitoral de 2015 (Lei nº 13.165), o caso Brumadinho,27 a Corte reputou que apenas o
pedido explícito de votos consubstancia propaganda irregular antecipada, em exegese
estritamente literal do preceito legal, mas em consonância com a axiologia constitu­
cional subjacente à liberdade de expressão, a qual irradia seus efeitos na seara eleitoral.

23
BARROSO, Luís Roberto. Liberdade de expressão versus direitos da personalidade: colisão de direitos
fundamentais e critérios de ponderação. In: ______. Temas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005,
t. III, p. 105-106.
24
FUX, Luiz; FRAZÃO, Carlos Eduardo. Novos paradigmas do direito eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
25
OSÓRIO, Aline. Liberdade de expressão e direito eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 79.
26
BINENBOJM, Gustavo. Pluralismo e democracia deliberativa: as liberdades de expressão e de imprensa nos
Estados Unidos e no Brasil. Revista da EMERJ, v. 6, n. 23, 2003.
27
TSE, REspe nº 5124, rel. Min. Luiz Fux.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
100 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Na espécie, questionava-se que o recorrente publicara, em seu perfil no Facebook, uma


imagem contendo sua fotografia e, ao lado, a seguinte mensagem: “PSB/MG – O melhor
para sua cidade é 40!”.
Ao proceder a releitura do art. 36-A à luz dos vetores e cânones jusfundamen­
tais, consignou o Tribunal que a divulgação de mensagens em rede social, na internet,
de forma gratuita, com a menção a possível candidatura e o enaltecimento de uma
opção política, não consubstancia – e não pode consubstanciar – propaganda eleitoral
antecipada. Isso porque não se verifica, em veiculações desse jaez, qualquer prejuízo à
paridade de armas, porquanto qualquer eventual competidor poderia, se assim quisesse,
proceder da mesma forma, divulgando mensagens sobre seus posicionamentos, projetos
e qualidades, em igualdade de condições.
Ademais, com o fim das doações empresariais e com o reduzido tempo de campa­
nha eleitoral, impõe-se que os pretensos candidatos, no afã de difundir suas propostas
e de enaltecer suas qualidades pessoais, logrem buscar formas alternativas de conexão
com o seu (futuro) eleitorado, de modo que nos parece natural que eles se valham de
publicações em posts e de mensagens nas mídias sociais (Facebook, Twitter etc.) para
tal desiderato.
De efeito, dada a modicidade de seus custos, a veiculação de mensagens pelas
mídias sociais harmoniza-se com a teleologia que presidiu tanto a proscrição de finan­
cia­mento por pessoas jurídicas quanto a Minirreforma Eleitoral: o barateamento das
campanhas eleitorais, característica que as torna inaptas, segundo entendemos, a oca­
sionar interferência indevida do poder econômico no pleito.
Se passarmos a reprimir esses métodos alternativos de divulgação de propostas e
plataformas políticas, a Justiça Eleitoral contribuirá negativamente para o esvaziamento
integral do período democrático de debates (para alguns, denominado de pré-campanha)
instituído pela Lei nº 13.165/2015, na medida em que aniquilará, sem qualquer lastro
constitucional ou legal, a interação que deve ocorrer entre os pretensos candidatos e os
cidadãos. Pior: produzirá um chilling effect nesses pretensos candidatos, tamanho o receio
de verem suas mensagens e postagens qualificadas como propaganda extemporânea.
Teremos, assim, apenas candidatos-surpresa – aqueles que exsurgem apenas e tão
somente às vésperas do pleito. E esse modelo, decerto, antes de fortalecer, amesquinha
a democracia.
Em um desenho institucional que potencializa e leva a sério o regime democrá­tico,
franquear maior tempo aos pretensos candidatos para difundirem suas ideias e opi­niões
acerca dos mais diferentes temas, suas qualidades pessoais e seus planos de governo
futuro propicia maior possibilidade de controle social por parte dos demais players do
prélio eleitoral. Sem recair em idealismo ou romantismo, incompatíveis que são com a
construção de teorias jurídicas consistentes, certo é que a exposição por largo período de
tempo – sem pedido expresso de voto, o que é vedado por lei – permite que essas ideias
sejam testadas no espaço público: se, por um lado, forem falsas ou absurdas, a oposição
poderá contraditá-las e a população estará mais bem informada; se, por outro lado, forem
boas soluções alvitradas, a oposição terá de aperfeiçoar suas propostas e projetos, e o
cidadão será, mais uma vez, beneficiado. Hoje é um dado: sabemos mais a respeito da
campanha presidencial norte-americana do que sobre a brasileira, justamente porque
existe esse asfixiamento da veiculação de propostas e de ideias na arena pública. Indago:
é a manutenção desse modelo que nós queremos? A pergunta é meramente retórica.

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LUIZ FUX, CARLOS EDUARDO FRAZÃO
REVISITANDO O DIREITO ELEITORAL: DIREITOS FUNDAMENTAIS, DEMOCRACIA E O NOVO CONSTITUCIONALISMO
101

O que não se pode, portanto, é vilanizar a difusão dessas mensagens emitidas


pelos pré-candidatos, com propostas políticas, com o enaltecimento de qualidades e com
a menção a candidaturas futuras, pela simples razão de que a propaganda eleitoral não
pode ser vista como a Geni do processo político-eleitoral. Ela se afigura, verdadeiramente,
um instrumento a serviço da cidadania, o qual poderá criar um ambiente de melhor
informação aos cidadãos-eleitores em geral e, em consequência, proporcionar a chance
de produzirem um voto maduro, refletido e consciente.

5.3.2 A deferência à soberania popular sem olvidar dos cânones de


moralidade da Lei da Ficha Limpa
O princípio da soberania popular é corolário do princípio democrático. Subjacente
à noção de soberania popular está o fato de que todo o poder emana do povo, única
instância capaz de legitimar o domínio político.28 Encontra fundamento expresso no art.
1º, parágrafo único, e no art. 14, caput, da Carta Magna.
De forma similar ao seu fundamento direto e imediato (postulado democrático),
o princípio da soberania popular é, ao mesmo tempo, argumento de justificação e
vetor interpretativo. Como argumento de justificação, pauta a atuação dos legisladores
na formulação de desenhos e arranjos que aperfeiçoem as instituições democráticas.
Enquanto vetor interpretativo, orienta o intérprete/aplicador na apreciação das questões
jurídicas que se apresentam, reclamando uma postura de maior deferência (judicial self-
restraint) acerca das opções político-legislativas.
No julgamento das ADCs 29 e 30 e da ADI 4.578 (Relator Min. Luiz Fux), o Plenário
do Supremo Tribunal Federal, ao declarar a constitucionalidade de diversas disposições
da Lei da Ficha Limpa, demonstrou ampla deferência às opções político-legislativas com
espeque, dentre outras razões, no postulado da soberania popular.
Nesses precedentes, o argumento democrático, consubstanciado no fato de que se
tratava de lei de iniciativa popular e de que havia ampla aceitação pela opinião pública,
revelou ser um dos argumentos centrais para a declaração de constitucionalidade das
normas adversadas. Com efeito, a edição da Lei da Ficha Limpa é a expressão de um
forte sentimento de um determinado segmento de pessoas em reação a eventos sociais
ou políticos, verdadeiro backlash,29 desencadeado pela jurisprudência da própria Suprema
Corte em virtude de sua exegese extremamente ampliativa da cláusula de presunção
de inocência. Daí porque a própria legitimidade democrática da Constituição e da
jurisdição constitucional não prescinde, em alguma medida, de sua responsividade à
opinião popular.
No âmbito do Tribunal Superior Eleitoral, tenho manifestado que, após o resultado
legítimo das urnas, existe uma precedência da soberania popular em detrimento de outros
princípios caros ao processo eleitoral. É que, a meu juízo, a retirada de determinado
candidato investido no mandato, de forma legítima, pelo batismo popular somente deve

28
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003,
p. 2292.
29
POST, Robert; SIEGEL, Reva. Roe Rage: Democratic Constitutionalism and Backlash. Disponível em: <www.
papers.ssrn.com/abstract=990968>. Acesso em: 30 mar. 2018.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
102 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

ocorrer em bases excepcionalíssimas, notadamente em casos gravosos de abuso de poder


econômico e de captação ilícita de sufrágio, manifestamente comprovados nos autos.
Subjacente a esse posicionamento reside a premissa segundo a qual a Justiça
Elei­toral, após o resultado das urnas, não pode se arvorar como o terceiro turno dos
pleitos, substituindo a preferência do eleitorado, titular que é da soberania, por escolhas
pessoais, sem que se constatem violações contundentes e incontestes ao ordenamento
elei­toral. Ao contrário, em casos como estes, a Justiça Eleitoral deve manter uma postura
de moderação e de prudência, sob pena de aniquilar a vontade popular soberana.
O postulado da soberania popular, todavia, não se revela garantia absoluta.
Enquanto mandamento de otimização, a soberania popular não raro colide com o
prin­cípio da moralidade. De fato, A moralidade, a probidade e a ética também se afigu­
ram como princípios fundamentais do Direito Eleitoral, a teor do art. 14, §9º, da Lei
Fundamental.30 A aplicação mais emblemática dos retrocitados cânones ocorreu com a
edição – e ulterior chancela pelo Supremo Tribunal Federal – da Lei Complementar nº
135/2010, cognominada de Lei da Ficha Limpa.
Deveras, a LC nº 135/2010 representa um marco histórico no fortalecimento de
nossas instituições democráticas, porquanto resultou de intensa mobilização da sociedade
civil organizada, que formalizou projeto de lei junto à Câmara dos Deputados, subscrito
por mais de um milhão e trezentos mil cidadãos, importante mecanismo de democracia
direta e participativa.
De há muito a sociedade civil organizada reclama por ética no manejo da coisa
pública. Se é correta a premissa de que existe um descolamento entre a classe política
e a sociedade civil, e diversos estudos de ciência política corroboram tal assertiva, esse
distanciamento pode, em larga medida, ser creditado à ausência de cultura sinceramente
republicana e ao exacerbado (e nefasto) patrimonialismo entranhado em nossas
instituições e relações sociais, já denunciado por Raymundo Faoro, em seu clássico Os
donos do poder, e que ainda viceja nos dias atuais.
Para o cidadão, hoje é certo que a probidade é condição inarredável para a boa
administração pública e, mais do que isso, que a corrupção e a desonestidade são as
maiores travas ao desenvolvimento do país e ao resgate da credibilidade dos membros
da classe política perante a sociedade.
Ao editar a LC nº 135/2010, e estabelecer critérios mais rigorosos para o exercício
do ius honorum, o legislador ordinário não apenas prestigiou a vontade popular soberana.
Também deu concretude aos cânones constitucionais de moralidade e de ética, encartados
no art. 14, §9º, que devem presidir a competição eleitoral e pautar a conduta do agente
político quando da gestão da res publica. Noutros termos: o Congresso Nacional, ancorado
na legítima manifestação popular de quase 1,5 milhão de eleitores, erigiu um sólido
Estatuto da moralidade do Processo Eleitoral, para nos valer de feliz expressão cunhada
pelo eminente Ministro Joaquim Barbosa.
Aqui reside umas das premissas mais relevantes, e que deve nortear o deslinde das
presentes controvérsias: a ratio essendi conspira a favor dos mandamentos constitucionais
de moralidade e de ética.

30
A doutrina eleitoral trata os indigitados princípios de forma apartada. Ver GOMES, José Jairo. Direito eleitoral.
11. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 57-58. A nosso ver, inexiste diferença substancial no conteúdo jurídico entre os
princípios da moralidade, da probidade e da ética no âmbito eleitoral, razão por que serão tratados no mesmo
tópico.

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LUIZ FUX, CARLOS EDUARDO FRAZÃO
REVISITANDO O DIREITO ELEITORAL: DIREITOS FUNDAMENTAIS, DEMOCRACIA E O NOVO CONSTITUCIONALISMO
103

Com efeito, a Lei da Ficha Limpa materializa, no plano infraconstitucional, a vontade


do constituinte de 1988, notadamente o de revisão (ECR 4/94), que expressamente autorizou
o estabelecimento de novas hipóteses de inelegibilidade, no afã de salvaguardar a probidade
administrativa, a moralidade para exercício de mandato, considerada a vida pregressa do candidato,
e a normalidade e a legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso
do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.
Trata-se, à evidência, de arranjo institucional do processo político delineado pelo
titular do poder constituinte, que claramente optou por prestigiar, nesta quadra histórica,
a moralidade no prélio eleitoral, desenho que encontrou eco no Congresso Nacional.
E, obviamente, ambos são intérpretes autorizados da Lei Fundamental de 1988.
Em outras palavras, o próprio constituinte vislumbrou que a competição elei­toral
não pode prescindir da observância de certos padrões mínimos de conduta por parte
de seus players (e futuros agentes políticos): não se há de falar em legitimidade demo­
crática quando as condutas atribuídas aos titulares dos mandatos eletivos ultrajam os
patamares éticos e morais erigidos pelo legislador ordinário.
Justamente por isso, o intérprete/aplicador deve potencializar, sempre que
possível, a teleologia subjacente à LC nº 135/2010, de ordem a maximizar os mandamentos
constitucionais de moralidade e de ética que presidem o processo eleitoral. É preciso,
pois, cautela para com a fixação de exegeses que vulnerem o escopo da norma, sob pena
de encerrar verdadeira fraude à manifestação legítima e soberana da sociedade brasileira,
que contou com a ampla aquiescência dos membros do Parlamento.
Essa tensão entre soberania popular versus moralidade é constante no Tribunal
Superior Eleitoral. Recentemente, foi suscitada uma Questão de Ordem nos autos dos
ED-AgR-REspe 8353, rel. Min. Hérman Benjamin. O objeto da aludida QO consistia na
possibilidade, ou não, de contaminação da integralidade da chapa eleita em decorrência
do reconhecimento da inelegibilidade da candidata a Vice-Prefeita. E referida temática
toca um dos temas reputados como dogma no direito eleitoral, que é o da indivisibilidade
das chapas plurissubjetivas, na medida em que conclama que a Corte Superior Eleitoral se
debruce sobre a viabilidade de se adotar (ou não) soluções intermediárias no deslinde
de controvérsias envolvendo a exclusão de um dos integrantes da chapa majoritária
(e.g., reconhecimento de inelegibilidade, renúncia, desistência etc.).
É que, se é certo, de um lado, que a lógica ínsita aos pleitos majoritários não
auto­riza a formalização de candidaturas isoladas, circunstância que reclama a imediata
recom­posição da chapa em caso de exclusão de um dos seus integrantes, de outro lado,
não menos correta é a afirmação de que a aplicação cega e irrestrita do dogma da indivi­
sibilidade interdita a formulação de soluções justas e adequadas a hipóteses excepcionais
como as mencionadas algures.
A quaestio que se coloca, portanto, cinge-se à possibilidade (ou não) de, em certos
casos, o Tribunal estabelecer soluções intermediárias, com vistas a acomodar interesses
abstratamente contrapostos, como a necessidade de afastar do pleito candidatos consi­
derados inelegíveis sem ignorar as legítimas opções populares refletidas no escrutínio
nas urnas.
Ao equacionar a controvérsia, em meu voto-vista, procedi à acomodação da von­
tade popular soberana com a deferência necessária à Lei da Ficha Limpa. Ao determinar
o desmembramento da chapa em registro de candidatura, asseverei que, após o resultado
legítimo das urnas, existe uma precedência da soberania popular em detrimento de outros

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
104 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

princípios caros ao processo eleitoral. É que, a meu juízo, a retirada de determinado


candidato investido no mandato, de forma legítima, pelo batismo popular somente deve
ocorrer em bases excepcionalíssimas, notadamente em casos gravosos de abuso de poder
econômico e captação ilícita de sufrágio manifestamente comprovados nos autos, o que
não se verificara na espécie.31
In casu, aponto cinco circunstâncias que amparam a excepcionalidade do dogma da
indivisibilidade da chapa. Em primeiro lugar, o indeferimento do registro de candidatura
somente ocorreu em segunda instância, na sequência de uma decisão favorável prolatada
pelo juiz de primeiro grau (i.e., em 02.09.2016), circunstância suficiente para que se
presuma a boa-fé na permanência no pleito, em face da expectativa de resgate do
primeiro provimento.
Em segundo lugar, a chapa majoritária estava com seu registro deferido no prazo
fatal para a substituição de candidatos. Em terceiro lugar, a rejeição do registro foi
declarada às vésperas do certame (i.e., 26.09.2016), seis dias antes do pleito, excluindo-se
do espectro de ação da formação política a possibilidade de substituição da candidata
recusada. Em quarto lugar, o registro indeferido versa sobre condição de elegibilidade da
Vice, cujo papel na captação de votos é, como se sabe, político e socialmente irrelevante.
Em quinto lugar, não se tem notícia nos autos de ultraje à axiologia eleitoral, de modo
que a opinião afirmada nas urnas é fruto inconteste da livre vontade da comunidade
envolvida.
À luz de tais circunstâncias extraordinárias, tem-se a rara oportunidade de se
debruçar acerca da viabilidade de preservar as hipóteses contempladas no Estatuto das
Inele­gibilidades sem endossar pronunciamentos contramajoritários. Afasta-se candidato
ficha suja e salvaguarda-se a manifestação popular soberana.

5.3.3 Proporcionalidade e razoabilidade


O dever de proporcionalidade possui dupla dimensão: de vedação ao excesso
(Übermassverbot) e de vedação à proteção deficiente ou insuficiente (Untermassverbot).
De fato, a proporcionalidade constitui autêntica pauta de moderação e prudência a orientar
toda a atuação do Poder Público. Sua função é permitir a harmonia axiológica do sistema
normativo. Seu fundamento é a própria noção de princípios jurídicos como mandamentos
de otimização em face de restrições fáticas e jurídicas, na esteira do magistério de Robert
Alexy.32 Sua operacionalização é metodologicamente desdobrada em três etapas ou fases:
adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

31
Em sede doutrinária, averbamos que “subjacente a este posicionamento reside a premissa segundo a qual a
Justiça Eleitoral, após o resultado das urnas, não pode se arvorar como o 3º turno dos pleitos, substituindo a
preferência do eleitorado, titular que é da soberania, por escolhas pessoais, sem que se constatem violações
contundentes e incontestes ao ordenamento eleitoral” (FUX, Luiz; FRAZÃO, Carlos Eduardo. Novos paradigmas
do direito eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 116).
32
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros,
2011, p. 116. Extraem-se doutrinariamente outros fundamentos: cláusula do devido processo legal substantivo
(BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 1995); cláusula do
Estado de Direito (BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2016; e
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003,
p. 266-273); cláusula de abertura aos direitos fundamentais, ex vi do art. 5º, §2º, da CRFB/88 (DIMOULIS, Dimitri;
MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 193).

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LUIZ FUX, CARLOS EDUARDO FRAZÃO
REVISITANDO O DIREITO ELEITORAL: DIREITOS FUNDAMENTAIS, DEMOCRACIA E O NOVO CONSTITUCIONALISMO
105

Na primeira etapa do exame de proporcionalidade, a análise de adequação investiga


a aptidão da medida estatal para atingir a finalidade constitucional almejada. Trata-se,
aqui, de um cotejo entre meio e fim, a exigir que o meio selecionado seja empiricamente
idôneo à promoção do fim perseguido. Obviamente a promoção da finalidade colimada
admite graus distintos de intensidade, qualidade e certeza. Por razões democráticas
e técnicas, ligadas, respectivamente, à soberania popular (CRFB/88, art. 1º, parágrafo
único) e à Separação dos Poderes (CRFB, art. 2º c/c art. 60, §4º, III), deve-se respeitar a
vontade objetiva do Legislativo e do Executivo.33 Assim, a adequação é satisfeita com
a simples escolha de um meio que promova minimamente o fim, mesmo que não seja
o mais intenso, o melhor nem o mais seguro. A anulação de atos estatais, nesta fase,
somente será jus­tificável quando a inadequação da medida for evidente.
Na segunda etapa do exame de proporcionalidade, investiga-se a necessidade ou
exigibilidade da medida estatal. Procede-se, aqui, a uma análise comparativa entre meios
alternativos e o fim público perseguido. O objetivo é perquirir a existência (ou não) de
meios substitutos àquele originalmente escolhido pelo Estado e, em seguida, compará-
los em relação tanto ao grau de adequação à finalidade pública quanto ao impacto sobre
bens jurídicos contrapostos. Quer-se, com isso, evitar qualquer excesso da intervenção
estatal, interditando que o Poder Público se valha de termos mais gravosos quando
existentes alternativas igualmente eficazes, porém menos incisivas sobre a esfera jurídica
de terceiros.
Por fim, na última etapa do itinerário metodológico, o teste da proporcionali­
dade em sentido estrito impõe a comparação dos custos e dos benefícios da medida
restritiva. Consoante a abalizada lição de Robert Alexy, “quanto mais alto é o grau de
não-cumprimento ou restrição de um princípio, tanto maior deve ser a importância
do cum­primento do outro”.34 É a lei da ponderação. Pretende-se, com ela, aquilatar a
impor­tância dos bens jurídicos em jogo, fundamentando juridicamente a calibragem
das restrições derivadas da intervenção estatal.
Como dito, ao lado de vedação ao excesso, a proporcionalidade possui a dimensão
de proibição de proteção deficiente (Untermassverbot). Aludida acepção desenvolveu-se
no direito tedesco,35 a partir da convicção de que os direitos fundamentais não seriam
apenas direitos de defesa, oponíveis em face do Estado, mas, para além disso, possuiriam
uma dimensão objetiva, de vez que tutelam certos bens jurídicos e valores que devem
ser promovidos e protegidos diante de riscos e ameaças originários de terceiros.36
Justamente porque existe imperativo de tutela, o princípio da proporcionalidade emerge
como instrumento de controle da inação ou da atuação deficiente estatal.37

33
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros,
2011, p. 178-182.
34
ALEXY, Robert. On Balancing and Subsumption: a Structural Comparison. Ratio Juris, Oxford, v. 16, nº 14, Dec.
2003, p. 436. Tradução livre do original.
35
O leading case, em que se reconheceu a dimensão de proteção deficiente, ocorreu em 1974, quando o Tribunal
Cons­titucional Federal alemão reconheceu a inconstitucionalidade de lei que legalizara o aborto nos primeiros
três meses de gestação (BVerfGE 39, 1). Para o Tribunal, o legislador alemão, ao legalizar o aborto, não salva­guar­
dou suficientemente a vida do feto, de ordem que poderia, nas palavras da Corte, dar azo à obrigação de cri­mi­
nalização da conduta atentatória ao direito à vida, se os outros instrumentos não se revelassem suficientes para
a sua tutela. Aludido precedente foi superado em 1993, na decisão conhecida como Aborto II (BVerfGE 88, 3).
36
SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito constitucional: teoria, história e métodos de
trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 481.
37
SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre a
proibição do excesso e de insuficiência. Revista da AJURIS, Porto Alegre, ano 32, n. 98, 2005.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
106 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

No julgamento do RO nº 15.429 (caso Arruda), restou defendida a inconstitucio­


nalidade, com redução de texto, da parte final do art. 11, §10, da Lei das Eleições,38 por
ultraje ao princípio da proporcionalidade, em sua dimensão de proibição de proteção
insuficiente. Na ocasião, o Ministro Luiz Fux assentou que “(...) o legislador, no afã de
aperfeiçoar a jurisprudência desta Corte Superior Eleitoral, autorizando o juiz a aferir
as alterações, fáticas ou jurídicas, supervenientes à formalização do pedido de registro,
incorreu em manifesta ofensa ao princípio da proporcionalidade, em sua dimensão de
vedação à proteção deficiente (Untermassverbot)”, na medida em que, “ao não contemplar
[o art. 11, §10] no seu relato as causas supervenientes que atraiam a inelegibilidade, não
realiza, em sua máxima extensão, a efetividade dos princípios encartados no art. 14,
§9º, da Constituição”. Daí porque, “se, por um lado, a norma concretiza o exercício do
ius honorum, autorizando a análise das alterações, fáticas ou jurídicas, supervenientes
ao registro que afastem a inelegibilidade, por outro lado, negligencia o fato de que a
Constituição impõe, em razão da incidência dos princípios constitucionais da moralidade e da
probidade eleitorais, que apenas os cidadãos probos integrem a classe política” (grifo nosso).
A despeito de restar vencido quanto ao fundamento, acredito que a norma sub
examine não logra resguardar, de forma suficiente, o conteúdo jurídico do direito de
elegi­bilidade (capacidade eleitoral passiva), nos termos delineados pela Lei Fundamental
de 1988.
A seu turno, o princípio da razoabilidade, ao menos sob o aspecto metodoló­
gico, não se confunde com a proporcionalidade.39 Sua função consiste na contenção do
arbítrio estatal. Seu fundamento remonta ao próprio desenvolvimento da common law,
notadamente nos Estados Unidos, com decorrência da cláusula do substantive due process
of law.40 Seu conteúdo jurídico e sua operacionalização, todavia, são mais controvertidos na
doutrina e na jurisprudência.
Para o jurista argentino Humberto Quiroga Lavié, a razoabilidade se divide em
interna e externa. No tocante à razoabilidade interna, é preciso perquirir a existência de um
vínculo lógico entre os motivos determinantes de uma medida, a própria medida e a fina­
lidade por ela objetivada.41 A seu turno, a razoabilidade externa examina a medida estatal
à luz do senso comum da comunidade e com os valores constitucionais.42 No âmbito
do Tribunal Superior Eleitoral, não raro, tenho utilizado o princípio da razoabilidade
em feitos relativos aos processos de prestação de contas, notadamente em sua faceta
externa, no afã de aprovar contas com ressalvas nas hipóteses em que as irregularidades

38
Lei das Eleições. “Art. 11. (...)
(...)
§ 10. As condições de elegibilidade e as causas de inelegibilidade devem ser aferidas no momento da formalização
do pedido de registro da candidatura, ressalvadas as alterações, fáticas ou jurídicas, supervenientes ao registro
que afastem a inelegibilidade”.
39
Diversos juristas de elevada estirpe não traçam a diferenciação. Ver BARROSO, Luís Barroso. Curso de direito
constitucional contemporâneo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 340; BARROS, Suzana de Toledo. O princípio
da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília
Jurídica, 2003, p. 67-72. As jurisprudências do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral também
sustentam a equivalência entre os postulados da razoabilidade e da proporcionalidade. Cf., neste sentido, por
exemplo, STF – MC-ADI nº 1.753, Pleno, rel. Min. Sepúlveda Pertence. DJ 12.06.1998.
40
Cf. TRIBE, Laurence. American Constitutional Law. Foundation Press, 1978, p. 553-586 e 1.302-1.435.
41
QUIROGA LAVIÉ, Humberto. Curso de derecho constitucional. Buenos Aires: Depalma, 1985, p. 41 e ss.
42
SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito constitucional: teoria, história e métodos de
trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 485.

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LUIZ FUX, CARLOS EDUARDO FRAZÃO
REVISITANDO O DIREITO ELEITORAL: DIREITOS FUNDAMENTAIS, DEMOCRACIA E O NOVO CONSTITUCIONALISMO
107

que ensejam a desaprovação das contas apuradas pelas Cortes Regionais se verificam
em patamares diminutos.
Ilustrativamente, no AgR-AI 54.039,43 aduzi que, conquanto estivesse em conso­
nância com a razoabilidade interna, porquanto “exist[isse] vínculo lógico entre os motivos
determinantes do decisum [hostilizado] (i.e., ausência de comprovação da origem dos
recursos próprios aplicados), a própria medida (i.e., a desaprovação das contas) e a
finalidade por ela almejada (i.e., coibir o abuso de poder econômico e manter a lisura
e o equilíbrio do processo eleitoral)”, a desaprovação das contas pela Corte Regional
flumi­nense por doação estimável em dinheiro de R$ 300,00 desafiaria a razoabilidade
externa, de vez que não se afigura consentânea com a axiologia constitucional e com o
Estado Democrático de Direito, que, dentre outros princípios, tem na boa-fé objetiva
um dos pilares centrais, e o recorrente, ao prestar as contas, efetivamente não pretendeu
ludibriar a fiscalização da Justiça Eleitoral.
Na mesma toada, tenho asseverado que, em feitos atinentes à análise de contas, a
incidência dos princípios da razoabilidade reclama uma dupla avaliação: (i) exiguidade,
em termos nominais e absolutos, dos valores que ensejaram a irregularidade; e (ii) exiguidade,
em termos percentuais, dos valores cotejados com o montante arrecadado e despendido
nas campanhas. Tomando como base referidos parâmetros, já consignei que, “[ante]
as falhas apontadas na prestação de contas pela unidade técnica, a não comprovação
de despesas e a aplicação inadequada de recursos do Fundo Partidário, além de serem
meramente formais, alcançaram apenas 1,02% daqueles recursos – no montante de
R$ 84.198,82 (oitenta e quatro mil, cento e noventa e oito reais e oitenta e dois centavos)”.44
Outra categorização do princípio da razoabilidade é encontrada na obra de
Humberto Ávila, Teoria dos princípios. Para Ávila, indigitado princípio seria desmembrado
em: (i) razoabilidade como equidade; (ii) razoabilidade como congruência; e (iii) razoa­
bilidade como equivalência. Como equidade, exigiria a adaptabilidade dos comandos
gerais às peculiaridades do caso concreto, sempre que se verificar sua extrapolação
da nor­malidade de suas hipóteses de incidência, de forma a produzir uma incidência
injusta da disposição. Como congruência, impõe a existência de relação harmônica entre
as normas e as suas condições externas de aplicação, de maneira que o legislador não
se lastreie em premissa fática inexistente ou desafie a “natureza das coisas”. Por fim,
como equivalência, reclama-se a indispensável proporção entre a medida adotada e o
critério que a dimensiona.45
Na jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, já utilizei a formulação teórica
de Ávila, notadamente a acepção de razoabilidade como equivalência, para determinar
a aprovação de contas de candidatos, haja vista a desproporção entre a medida adotada
(i.e., desaprovação das contas) e o critério que a dimensionava (i.e., aplicação de 7% de
recursos repassados pela agremiação decorrentes de fontes vedadas).46
Em conclusão, o princípio da razoabilidade, em sua acepção de equivalência, impõe a
análise econômica das irregularidades contábeis, coadjuvada pelo elemento subjetivo do­
loso, e, bem por isso, desautoriza a conclusão a que chegou o aresto recorrido, na medida
em que se verifica a desproporção entre a medida adotada e o critério que a dimensiona.

43
TSE – AgR-AI 54.039, rel. Min. Luiz Fux, DJe 30.09.2015.
44
TSE – PC 96960, rel. Min. Luiz Fux, DJe 30.09.2015.
45
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. São Paulo: Malheiros, p. 153-162.
46
TSE – REspe 86348, rel. Min. Luiz Fux, DJe 15.03.2016.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
108 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

5.4 Conclusões
Com este breve ensaio, pretendemos lançar algumas luzes a respeito da necessi­
dade de reinterpretar os institutos e categorias eleitorais à luz da axiologia constitucional,
e ainda extremamente estranhas no âmbito eleitoral, e que podem fornecer valiosas
contribuições no equacionamento das questões jurídicas que se apresentam.
A nosso sentir, o direito eleitoral precisa urgentemente apostar na liberdade,
sem receios ou temores injustificados, de sorte a abandonar o que intitulamos de direito
eleitoral do inimigo ou da proibição. A legislação eleitoral, ainda nos dias atuais, desconfia
da liberdade e empresta excessivo peso à igualdade de chances. É chegada a hora de
inverter esse paradigma. A liberdade ostenta uma posição preferencial na ordem jurídica,
em geral, e na seara eleitoral, em particular, apresentando-se como filtro hermenêutico
por meio do qual a legislação infraconstitucional deve ser interpretada. E, diante de um
panorama de redução das campanhas eleitorais, potencializar o alcance das liberdades,
em especial a de expressão, pode reequilibrar a competição eleitoral, abrandando a
assi­metria existente entre os players e maximizando as chances de renovação política.
Além disso, o intérprete deve buscar soluções que acomodem, sempre que possí­
vel, os postulados da soberania popular e da moralidade. Acreditamos que um bom
standard é aquele que, durante a fase de registro de candidaturas, assegura maior peso
relativo à moralidade, ante o que preconiza o art. 14, §9º, da Lei Fundamental, segundo
o qual as inelegibilidades devem levar em consideração a vida pregressa do candidato.
Ultrapassado o obstáculo da Lei das Inelegibilidades, o mandamento nuclear que passa
a presidir o equacionamento das controvérsias deve ser a soberania popular: expungir
um candidato ficha limpa da titularidade do mandato requer um ônus argumentativo
mais elevado daqueles que impugnam o mandato, mediante a comprovação de ilícitos
eivados de extrema gravidade e aptos a comprometer, sobremodo, a legitimidade e a
normalidade das eleições.
Por fim, reputamos que os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade têm
espaço central no deslinde das controvérsias eleitorais e na releitura de seus institu­tos.
Os filtros da proporcionalidade e da razoabilidade, cada qual aplicado à luz de suas ca­
rac­terísticas internas, evita a incidência de sanções demasiado gravosas e inidôneas, as
quais poderiam ensejar indesejada e perniciosa ingerência na escolha legítima das urnas
ou mesmo impedir candidaturas legítimas. Ademais, cientes de que todos os arranjos
norma­tivos em âmbito político-eleitoral são subótimos, referidas disposições permitem
con­clusões mais justas e equânimes para celeumas complexas, de modo a conferir maior
plasticidade ao ordenamento eleitoral.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

FUX, Luiz; FRAZÃO, Carlos Eduardo. Revisitando o direito eleitoral: direitos fundamentais, democracia
e o novo constitucionalismo. In: FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de
Moura (Coord.); PECCININ, Luiz Eduardo (Org.). Direito Constitucional Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum,
2018. p. 93-108. (Tratado de Direito Eleitoral, v. 1.) ISBN 978-85-450-0496-7.

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PARTE II

ABRANGÊNCIA DOS DIREITOS POLÍTICOS

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PÁGINA EM BRANCO

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CAPÍTULO 1

A DEMOCRACIA E A RESTRIÇÃO
AOS DIREITOS POLÍTICOS

NÉVITON GUEDES

1.1 As eleições e a democracia1


A cada nova eleição, a Justiça Eleitoral brasileira tem experimentado um crescente
poder de intervenção no processo de escolha dos representantes do povo. De fato, como
sabem todos aqueles que lidam com o direito eleitoral em nosso país, a legislação hoje
em vigor permite ao Judiciário uma ingerência no processo eleitoral absolutamente
inédita em qualquer lugar do planeta.
Estudiosos do direito eleitoral, mesmo saudando, em unânime manifestação,
o espetacular papel que a Justiça Eleitoral tem cumprido em nosso país desde que foi
criada, vêm agora observando com honesta e sentida reserva o inadequado incremento
das competências do Poder Judiciário no sistema eleitoral brasileiro.
O grande estudioso da democracia, Robert Dahl, vê na democracia contemporânea
um sistema político dotado de seis pressupostos institucionais absolutamente simples
de serem compreendidos: agentes públicos eleitos; eleições livres, justas e frequentes;
liberdade de expressão; fontes de informação diversificadas; autonomia para as
associações e, por fim, cidadania inclusiva.2 Como se vê, para nada disso a Justiça Eleitoral
é condição indispensável. Na maior parte dos países democráticos, como se sabe, ela
sequer existe. O Judiciário Eleitoral é, entretanto, uma experiência bem-sucedida no caso
brasileiro, mas deve ter muito cuidado para não ser vítima de suas virtudes e sucesso.
Exceder naquilo que deu certo é um mal muito comum aos seres humanos.
A Justiça Eleitoral hoje, não se limitando à certificação dos poderes dos candidatos
vitoriosos, como sabemos todos, pode intervir e acaba intervindo no conteúdo e no

1
O presente capítulo baseia-se, essencialmente, em ideias por mim divulgadas na Revista Consultor Jurídico, na
coluna Constituição e Poder, do dia 17.9.2012.
2
DAHL, Robert. Sobre a democracia. Brasília: UnB, 2009. p. 47 ss.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
112 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

próprio resultado do processo eleitoral. O magistrado eleitoral brasileiro, graças a


uma jurisprudência e legislação cada vez mais ambiciosas, tem o poder não apenas de
certificar os registros de candidaturas e proclamar e diplomar os eleitos, mas também
de cassar mandatos alcançados com o voto popular, tornar inelegíveis os cidadãos e,
inclusive, sindicar e censurar o que os candidatos podem dizer e os eleitores podem
ouvir numa campanha eleitoral. Boa parte dessas funções, como é o caso do registro
de candidatura, podem ser exercidas de ofício e incidem diretamente sobre alguns dos
mais caros direitos fundamentais dos cidadãos. Aliás, nunca é demasiado lembrar: a
capacidade de votar e a de ser candidato correspondem a direitos fundamentais dos
mais prestigiados em todo mundo civilizado e democrático, não obstante sem muita
cerimônia sofram, no Brasil, restrições impostas até mesmo por meros atos normativos
secundários (resoluções) da Justiça Eleitoral.
O juiz eleitoral acaba, inclusive, tendo influência mesmo do ponto de vista político
sobre as eleições. Com efeito, como sabemos todos, basta a rejeição judicial, mesmo que
provisória, de um registro de candidatura, ou apenas a censura a algumas veiculações de
propaganda eleitoral, para que o candidato, ainda que alcance reformar definitivamente
a decisão em instâncias superiores, acabe politicamente perdendo as eleições, já que o
eleitor invariavelmente empresta acentuada importância às manifestações do Poder
Judiciário.
Isso já seria o bastante para advertir o magistrado da extrema cautela com que
deve se mover com relação aos poderes que lhe são conferidos em matéria eleitoral.
Quando imaginamos que a democracia, como diz a Constituição, é um regime em
que o poder emana do provo e em seu nome é exercido, fazendo-o diretamente ou por seus
representantes eleitos, qualquer intervenção de qualquer órgão, seja da sociedade civil
ou do Estado, no processo eleitoral, antes de tudo tem que ser observada com extremada
prudência e muita reserva.
O Poder Judiciário, os promotores eleitorais, os advogados eleitorais, só podem
pretender interferir na relação direta que deve existir entre o eleitor e o candidato quando
isso se fizer realmente necessário. Contudo, diante de uma legislação tão interventiva
como é a legislação que hoje disciplina as eleições, o que é reconhecido tanto por aqueles
que a criticam como aqueles que a aplaudem, o medo é que assalte em todos nós, que
atuamos com o direito, uma tentação de intervenção demasiada, para além, inclusive, do
que já se manifesta na própria lei, de tal maneira que, ao invés de colaborarmos para o
processo de formação de vontade livre do povo, pois é disso que se cuida a democracia,
acabemos por comprometer essa mesma liberdade do eleitor, que é quem, afinal de
contas, numa democracia, deve ter a última palavra.
Como professor de direito constitucional e tendo sido professor de direito eleitoral
por muitos anos, tenho insistido com meus alunos no fato de que os protagonistas do
processo democrático hão de ser, sempre e sempre, o candidato e o eleitor. A Constituição não
quer juiz, nem advogado, ou promotor, protagonizando processo eleitoral.
Dias desses li num órgão de comunicação social que quem quisesse vencer as
próximas eleições deveria contratar um bom advogado. Infelizmente, suspeito que o
diagnóstico seja correto, pois, tudo, no processo eleitoral brasileiro, vai-se confiando
ao Poder Judiciário. Quem bem observar o direito eleitoral em nosso país irá concluir
que, por trás de uma retórica de sacralização do eleitor, o que se vem verificando
desde sempre é uma enorme desconfiança com a sua capacidade de proceder à melhor

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NÉVITON GUEDES
A DEMOCRACIA E A RESTRIÇÃO AOS DIREITOS POLÍTICOS
113

escolha possível. Essa desconfiança, por óbvio, não se pode manifestar abertamente
por autoridades públicas, porquanto absolutamente contrária aos desígnios da nossa
democrática Constituição de 1988. Mas, fora dos acontecimentos oficiais, escuta-se aqui
e ali que uma intervenção judicial nas eleições é benéfica para o Brasil, pois o eleitor
não sabe votar.
Aliás, a desconfiança com o eleitor comum sequer é nova e se insere numa
vetusta tradição em que se busca contrapor as supostas misérias da democracia, na qual
prepondera o cidadão comum, às supostas qualidades da aristocracia (que pode ser o
partido único dos países socialistas, ou, no caso brasileiro, como muitos acreditam, o
Poder Judiciário, ou o Ministério Público), aristocracia sempre tida por bem informada,
detentora da verdade e de qualidades extraordinárias. O problema é que os fatos, sempre
teimosos, não se revelam assim como planejado.
Norberto Bobbio, na sua Teoria das formas de governo,3 refere a discussão relatada
por Heródoto, na sua História (Livro III, §§80-82), entre três persas – Otanes, Megabises e
Dario, o que pode ter sido a origem da discussão sobre a tipologia das melhores formas
em que os homens poderiam ser governados. Segundo o grande mestre italiano, o
episódio teria ocorrido na segunda metade do século VI antes de Cristo, mas o narrador,
Heródoto, escreve no século seguinte.
Do que aqui me interessa é o registro, já então, de uma longa tradição de descon­
fiança em relação à capacidade do povo de escolher livremente seus governantes, pois
suspeito que boa parte da legislação, que confere a juízes, promotores e advogados
o poder de intervir no resultado do processo eleitoral, muito se deve a essa antiga
tradição de uma inaceitável suspeita em relação à capacidade do eleitor de, livremente,
formar a sua vontade no processo eleitoral. No Brasil, por exemplo, afirma-se hoje com
excessiva confiança que se deve organizar e acrescer o poder de intervenção judicial nas
eleições para que, paradoxalmente, o eleitor possa decidir de forma livre. Obviamente,
quando se incrementa em excesso essa intervenção, nem é o eleitor quem decide nem
muito menos de forma livre. Mas voltando à narrativa de Heródoto, já ali se registra,
na opinião de Megabises, a suspeita com relação à capacidade do regime democrático
em encontrar os mais qualificados para o governo, ao mesmo tempo em que se deposita
uma quase infinita fé em confiar nossos destinos a alguma espécie de aristocracia, em
que os melhores fossem chamados a governar (cito):

Megabises: “A massa inepta é obtusa e prepotente; nisto nada se lhe compara. De nenhuma
forma se deve tolerar que, para escapar da prepotência de um tirano, se caía sob a da plebe
desatinada. Tudo o que faz, o tirano faz conscientemente; mas o povo não tem sequer a
possibilidade de saber o que faz. Como poderia sabê-lo, se nunca aprendeu nada de bom e
de útil, se não conhece nada disso, mas arrasta indistintamente tudo o que encontra no seu
caminho? Que os que querem mal aos persas adotem o partido democrático; quanto a nós,
entregaríamos o poder a um grupo de homens escolhidos dentre os melhores – e estaríamos
entre eles. É natural que as melhores decisões sejam tomadas pelos que são melhores”.4

3
BOBBIO, Norberto. Teoria das formas de governo. Tradução de Sérgio Bath. Brasília: Ed. Universidade de Brasília,
1998.
4
BOBBIO, Norberto. Teoria das formas de governo. Tradução de Sérgio Bath. Brasília: Ed. Universidade de Brasília,
1998.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
114 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Ora, nada justifica a crença em regimes aristocráticos e muito menos a descrença


no eleitor e, respectivamente, nas qualidades da democracia.
Segundo Ulrich Preuβ,

a superioridade normativa da democracia sobre as outras formas de poder assenta-se


precisamente na ideia de que o domínio apenas pode ser considerado legítimo quando
ele está a serviço da vontade daqueles que são dominados, sendo por eles, direta ou
indiretamente, exercido. A ideia básica de que é possível compatibilizar liberdade e domínio
é apenas constitutiva e característica da singularidade do modelo de domínio democrático.
Outras concepções de domínio, é certo, fazem variadas promessas de salvação e com isso
fundamentam a necessidade da mais profunda subordinação do indivíduo às exigências
daquele plano de salvação – mas só a democracia é um modelo de autodomínio dos seres
humanos. Essa qualidade única, contudo, faz da democracia suscetível, é certo, em modo
muito específico, às fraquezas da natureza humana.5

Outras formas de poder (teocracia, monarquia, aristocracia, ditadura) prometem


exercer o domínio através de indivíduos especialmente qualificados (santos, homens
ungidos por Deus, guerreiros, sábios e outros indivíduos com qualidades da mesma
extraordinária estatura). A democracia não. Ela se contenta e promete exercer o poder
através do ordinary man, ou seja, seu funcionamento baseia-se na intelectualidade e na
moral do homem comum ou, no dizer de Ulrich Preuβ, a democracia, diversamente
dos demais sistemas de domínio, sustenta humildemente o seu funcionamento na
mediocridade do ser humano (Durchschnittlichkeit der menschen).6
Portanto, como na democracia o funcionamento do poder não se assenta, de saída,
em nenhuma espécie de super-homem, de qualidades excepcionais, muitos acreditam
que, desconsiderando-se o acaso ou a sorte, apenas por uma conformação institucional
extremamente hábil é que se poderá esperar que o poder acabe exercido por pessoas
especialmente qualificadas. Entretanto, como se sabe, a queixa que se ouve de regra
sobre um suposto fracasso da democracia funda-se basicamente na suspeita de que até
agora não se conseguiu encontrar um sistema eleitoral ou mecanismo seguro de ordem
a assegurar que o domínio democrático traga para o exercício do poder as pessoas
mais qualificadas. Mas será que essa suspeita corresponde aos fatos? Será mesmo que a
democracia falha onde os demais regimes se mostram vitoriosos? Provavelmente, não!
O que se vê em toda parte é que, na sua modéstia, de não prometer mais do que
o exercício do poder pelo homem comum, a democracia vai se revelando muito mais
bem sucedida do que todos os demais sistemas, que trazem como promessa governantes
extraordinariamente bem preparados. Com efeito, basta um olhar superficial pela reali­
dade para se constatar que os países democráticos lograram trazer muito mais benefícios
e felicidade aos seus povos.
Como se sabe, os regimes totalitários e autocráticos e ditaturas de todos os tipos,
mascarando-se ou não como regimes democráticos, não têm pejo em anunciar a certeza
de que o governo é ali exercido pelos melhores, ao incrível fundamento de que o seu

5
PREUΒ, Ulrich. Die Bedeutung kognitiver und moralischer Lernfähigkeit für Demokratie. In: OFFE, Claus (Ed.).
Demokratisierung der Demokratie. Frankfurt: Campus Verlag, 2003. p. 259 e ss.
6
PREUΒ, Ulrich. Die Bedeutung kognitiver und moralischer Lernfähigkeit für Demokratie. In: OFFE, Claus (Ed.).
Demokratisierung der Demokratie. Frankfurt: Campus Verlag, 2003. p. 260

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NÉVITON GUEDES
A DEMOCRACIA E A RESTRIÇÃO AOS DIREITOS POLÍTICOS
115

sistema de poder assenta-se em mecanismos de filtros e controles especialmente bem


dispostos (que podem envolver até a manifestação de Deus, como no caso das monarquias
absolutas que se autolegitimavam num sistema de sucessão hereditária certificada por
uma suposta escolha divina).
A democracia, ao contrário, pressupõe a humildade de confiar o poder, como
já se disse, à Sua Excelência, ao eleitor, ou seja, ao cidadão comum. Nela, certamente,
todos também têm a expectativa de que, ao final, o poder seja entregue aos mais bem
capacitados na sociedade, mas isso não é o fundamental para que a escolha seja consi­
derada funcional no regime democrático. O que importa é que, disputando-se as eleições
com máximo de igualdade e liberdade, os cidadãos, os homens comuns, em sua maioria,
tenham a palavra final.
Aqueles que buscam e esperam, com a institucionalização de filtros e controles
cada vez mais sofisticados, a segurança de que a democracia ou qualquer outro regime
possa oferecer a certeza dos melhores, desconhecem a natureza das instituições humanas.
Nenhuma instituição humana pode pretender a perfeição do governo das coisas
e dos homens. Ninguém o conseguiu: nem o partido único do regime burocrático –
socialista, nem o Reich dos mil anos de Hitler, nem o rei filósofo de Platão. Suspeito que
o Poder Judiciário, no Brasil, também não o conseguirá.
Aliás, onde essa ideia de perfeição e pureza nos negócios humanos foi levada
muito a sério desaguou-se em ditaduras e totalitarismo. Na sua esplêndida obra, A
sociedade aberta e seus inimigos, a tônica de Karl Popper é a de demonstrar que todo
aquele que, cuidando de organizar o poder, anuncia a perfeição na terra dos homens
acaba entregando autocracia ou totalitarismo de algum gênero. O primeiro deles, como
se sabe, foi Platão e o seu rei filósofo. Do que dele restou, deixo, para terminar, a crítica
do grande Karl Popper:7

Que monumento de pequenez humana é essa ideia do rei filósofo! Que Contraste entre ela e a
simplicidade e humanidade de Sócrates, que advertia o estadista contra o perigo de deixar-se deslum­
brar por seu próprio poder, excelência e sabedoria, e que tentava ensinar-lhe o que mais importa: o
fato de sermos, todos, frágeis seres humanos! E como se desce, desse mundo de ironia e razão
e veracidade, ao reinado do sábio de Platão, cujos poderes mágicos o elevam muito acima
dos homens comuns, embora não tão alto que dispense o uso de mentiras ou despreze
o triste mercado de cada curandeiro, a venda de feitiços, de encantamentos criadores de
raça, em troca de poder sobre seus concidadãos.

1.2 O poder de limitar a cidadania também encontra limites8


Não obstante as suas qualidades, fato é que a democracia, também e especialmente
no caso brasileiro, como já deixamos insinuar ao introduzir o presente artigo, tem enfren­
tado consideráveis obstáculos. Consoante toda a nossa experiência constitucional como
país independente, e mesmo antes disso, sempre buscamos uma boa razão para limitar
o direito do cidadão de exercer o sufrágio. Por aqui, a raça, o sexo ou a falta de dinheiro

7
POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia;
Edusp, 1987. p. 173.
8
O presente capítulo baseia-se, essencialmente, em ideias por mim divulgadas na Revista Consultor Jurídico, na
coluna Constituição e Poder, do dia 16.4.2013.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
116 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

já foram fatores que limitaram o exercício pleno da cidadania. No século XIX, o grande
jurista do Império, Pimenta Bueno, o Marquês de São Vicente, certamente colhido pelo
contexto em que vivia, não teve pejo de declarar legítimas as limitações ao exercício do
sufrágio pelo que acreditava ser um conjunto de “incapacidades resultantes do sexo,
da menoridade, da demência, da falta de luzes e da ausência das habilitações, que
convertessem o voto em um perigo social”.9
Contudo, já vão longe os tempos em que o negro, a mulher, ou o pobre não podiam
exercer seus direitos políticos. Contemporaneamente, sufrágio geral, ou princípio da
universalidade, ou da generalidade, em matéria eleitoral, quer significar, em primeiro
lugar, que o simples fato de o indivíduo pertencer ao povo de um Estado já lhe confere o
direito de votar e ser votado, de eleger e ser eleito. Com eleições gerais, ou universais,
quer-se dizer, pois, que o direito de votar compete a todos os cidadãos, excluindo-se, de
regra,10 aqueles que não detenham a cidadania do país em que as eleições se verificam.11
Por outro lado, não se pode esquecer de que a capacidade, ou o direito fundamental,
de um cidadão de ser candidato para cargos políticos mescla-se, certamente, com o direito
de todos os eleitores de escolher determinadas pessoas para ocupar determinado cargo
público.12 Em outras palavras, o princípio da universalidade protege tanto eleitor como
o candidato, vinculando uma realidade a outra.
Assim, o lado mais visível do princípio da universalidade impõe a conclusão de
que, ao limitar o direito dos cidadãos de votarem, direta ou indiretamente, obstaculiza-
se também o direito daquele que pretende lançar-se como candidato. Entretanto, e esse
é o lado menos notado do princípio da universalidade, todas as vezes que se impede
alguém de se candidatar, estamos, sem dúvida, cerceando o cidadão no exercício legítimo
de seu voto. A equação é de fácil entendimento: (a) se, de um lado, num universo mais
restrito de eleitores, muito provavelmente, diverso será o resultado daqueles que serão
eleitos; (b) de outro, ao restringir o universo dos candidatos, com toda certeza, também
se reduzem as possibilidades abertas aos eleitores.
Da mesma forma que, no passado, uma legislação muito restrita quanto ao círculo
de eleitores (excluindo mulheres, pobres e analfabetos) comprometia o resultado quanto
ao universo de candidatos com reais possibilidades de êxito eleitoral, atualmente, ao
reduzir, significativamente, o universo de candidatos, o sistema eleitoral brasileiro
compro­mete o âmbito de proteção dos direitos do próprio eleitor. Em síntese, quem
cria inele­gibilidades, além de limitar candidaturas, goste ou não, atinge também o voto
do eleitor.
Nada obstante, sustentados num forte apelo midiático contra a política, não são
poucos os que festejam qualquer espécie de inovação legislativa tendente a restringir o
número de candidatos.
Como não se pode restringir o direito político de ser candidato sem comprometer o
direito político de votar, aqueles que tomam a sério o direito fundamental de participação
política do cidadão, facilmente, compreenderão que, ainda que uma ou outra restrição

9
BUENO, José Antônio Pimenta. Direito público brasileiro e análise da Constituição do Império. In: BUENO, José
Antônio Pimenta; KUGELMAS, Eduardo (Org.). Marquês de São Vicente. São Paulo: Editora 34, 2002. p. 265.
10
Atentar, no Brasil, à especial condição dos portugueses, conforme o art. 12, §1º.
11
DEGENHART, Christoph. Staatsrecht I: Staatsorganisationsrecht. Alemanha: C. F. Müller, 2017. p. 10.
12
NOWAK, John E.; ROTUNDA, Ronald D. Principles of constitutional law. St. Paul: West Group, 2004. p. 1019.

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NÉVITON GUEDES
A DEMOCRACIA E A RESTRIÇÃO AOS DIREITOS POLÍTICOS
117

se mostre necessária, ela apenas se justificará em situações e diante de motivos de


considerável relevância constitucional.
Pieroth e Schlink afirmam ainda que o princípio de que as eleições devem ser
gerais é, além de tudo, caso especial do princípio da igualdade das eleições, já que aqui se
estabelece e se impõe a ideia de que todos os cidadãos do Estado têm igual capacidade
para eleger e ser eleito.13
É certo, como adverte Klaus Stern, que a generalidade, ou universalidade, não
implica necessariamente a impossibilidade de serem impostas restrições ao direito
ao sufrágio. Tampouco implica a impossibilidade de toda espécie de diferenciação.
Limitações ou diferenciações, não obstante devam ser evitadas, podem ser admissíveis,
desde que exista uma causa constitucionalmente justificadora de sua existência.14 Por
exemplo, a nacionalidade tem sido, como se viu, uma exigência quase universalmente
admitida como requisito à titularização e ao exercício do sufrágio. No caso brasileiro, a
nossa Constituição, no art. 14, §2º, excluiu do universo dos eleitores tanto os estrangeiros
como, durante o serviço militar obrigatório, os conscritos.
De qualquer sorte, não obstante a exigência da nacionalidade, deve-se atentar,
no Brasil, à especial condição dos portugueses, conforme o art. 12, §1º (cito): “Aos
portugueses com residência permanente no País, se houver reciprocidade em favor de
brasileiros, serão atribuídos os direitos inerentes ao brasileiro, salvo os casos previstos
nesta Constituição”.
Além disso, no art. 14, §1º, a Constituição já havia excluído do conjunto de titulares
dos direitos políticos os brasileiros que ainda não tinham completado os 16 anos. Por
sua vez, os analfabetos, conquanto possam votar, são excluídos da capacidade política
passiva (art. 14, §4º, da Constituição). Não podem ser candidatos.
No direito comparado, depois de prever o sufrágio, no corpo original da Cons­
tituição, os norte-americanos através de emendas impuseram, ainda, uma série de limites
aos Estados no que tange ao seu poder de impor restrição ao princípio da universalidade
do sufrágio. Assim, a 15ª Emenda à Constituição norte-americana proibiu os estados-
membros de impor restrições com “base na raça, cor, ou prévia condição de servidão”; a
19ª Emenda proíbe cerceamentos ao voto em razão do sexo; a 24ª impede a imposição de
tributos como condição para que se possa votar (any poll tax or other tax), e a 26ª Emenda
garante o direito dos cidadãos ao sufrágio quando alcancem a idade de 18 anos.15
Entretanto, não obstante a ausência de expressa restrição ou autorização constitu­
cional para que se imponham restrições à universalidade do sufrágio, a Suprema Corte
norte-americana tem entendido razoáveis restrições impostas pelos estados-membros
com base em exigência de residência mínima na circunscrição eleitoral. Com base nesse
entendimento, por exemplo, aquela Corte já teve ocasião de decidir que apenas os
cidadãos residentes em determinada municipalidade têm direito de votar, considerando
legítima a denegação da garantia do voto a cidadãos que residam em áreas adjacentes
à cidade, mas nelas ainda não incorporadas, ainda que o município estendesse aos

13
PIEROTH, Bodo von; SCHLINK, Bernhard. Grundrechte: Staatsrecht II. 16. ed. Heidelberg: Müller, 2000. p. 110.
14
STERN, Klaus. Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland (Band I). Munich: C.H. Beck, 1984. p. 303-304.
15
Tudo cf. NOWAK, John E.; ROTUNDA, Ronald D. Principles of constitutional law. St. Paul: West Group, 2004.
p. 988-989.

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118 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

moradores das faixas limítrofes os seus poderes de polícia sanitária e de licença para
negócios.16
Em resumo, segundo o direito norte-americano ou alemão, o que o princípio
da universalidade do sufrágio impede é a existência de exclusões ilegítimas do cidadão
do processo eleitoral. Nesse sentido, mais uma vez a universalidade do sufrágio, ao
apresentar-se como caso especial do princípio da igualdade no âmbito das eleições,17 proíbe
o legislador, para além das próprias restrições constitucionais, de excluir das eleições
grupos determinados de cidadãos por motivação política, religiosa, econômica, profissional
ou social, assim como exige que todos possam, o máximo possível, exercer os seus direitos
políticos em igualdade de condições.
A ideia de que, à luz do princípio da universalidade do voto, o legislador ordinário
não pode impor exclusões ilegítimas poderia parecer despicienda no Brasil, ao argumento
de que aqui as únicas exclusões são aquelas já fixadas constitucionalmente. Contudo,
ao contrário do que tendemos a acreditar, a própria Constituição abre a porta para que,
direta, ou indiretamente, o legislador possa impor restrições ao universo dos que possam
votar ou ser votados, quando, por exemplo, estabelece os casos de perda e suspensão
de direitos políticos, arrolando situações que, na sua maioria, dependem da disciplina
do legislador ordinário.18
Além disso, no seu art. 14, §9º, a Constituição veiculou autêntica reserva de lei
qualificada, autorizando o legislador complementar a estabelecer outras possibilidades
de restrição ao sufrágio passivo, na forma de:

outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade


administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa
do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder
econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta
ou indireta.

Diante desse específico dispositivo constitucional, por tudo o que se disse, a


reserva de competência legislativa para restringir o sufrágio passivo deveria ser aqui,
como sempre, exercida com especial senso de cautela e de autocontenção. Sincera­
mente não tenho certeza de que esse tenha sido o caso da Lei Complementar nº 135, de
2010, a chamada Lei da Ficha Limpa. Colocando de lado todas as suspeitas de incons­
titucionalidades contra ela levantadas, mas afastadas pelo Supremo, o fato é que, do
ponto de vista puramente político, essa nova lei, indubitavelmente, pelo extenso rol de
inelegibilidades que suscita, simultaneamente, além das candidaturas que sepultou,
subtraiu do cidadão muitas de suas possibilidades de escolha. Não seria exagero dizer
que, no Brasil, hoje, em função da referida lei, boa parte das nossas disputas eleitorais

16
Ver Holt Civic Club v. Tuscaloosa, 439 U.S. 60, cf. NOWAK, John E.; ROTUNDA, Ronald D. Principles of
constitutional law. St. Paul: West Group, 2004. p. 1007.
17
JARASS, Hans; PIEROTH, Bodo. Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland: Kommentar. München: Beck,
2000. p. 657.
18
“Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: I - cancelamento
da naturalização por sentença transitada em julgado; II - incapacidade civil absoluta; III - condenação criminal
transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos; IV - recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou
prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII; V - improbidade administrativa, nos termos do art. 37, §4º”.

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NÉVITON GUEDES
A DEMOCRACIA E A RESTRIÇÃO AOS DIREITOS POLÍTICOS
119

serão decididas não nas ruas e pelos eleitores, mas em Tribunais e por juízes e operadores
do direito. Se isso, realmente, como sustentam os defensores da Lei Complementar nº
135, faz bem à democracia, acredito que não demoraremos a descobrir.
O direito eleitoral ordinário registra outros casos de restrição ao sufrágio, seja na
sua forma ativa, seja na sua forma passiva. O art. 71 do Código Eleitoral, por exemplo,
arrola várias situações em que o cidadão perderá a condição de eleitor com o cancela­
mento de seu alistamento eleitoral, entre as quais estão a infração às regras relativas ao
domicílio eleitoral, suspensão ou perda dos direitos políticos, a pluralidade de inscrição
(alistamento eleitoral) ou deixar o eleitor de votar em três eleições consecutivas.19 Logi­
camente, à exceção dos casos de perda ou suspensão dos direitos políticos (porque casos
de restrições impostas pelo próprio texto constitucional, no seu art. 15), todos esses
motivos de exclusão da condição de eleitor, como autênticas restrições ao princípio
da universalidade do sufrágio, só se justificam se forem considerados compatíveis,
constitucionalmente, entre outros princípios, com o princípio da proporcionalidade e
com a proteção do conteúdo essencial dos direitos fundamentais.
Assim, atenta à restrição ao voto imposta pela exclusão de alistamento eleitoral
a quem, por exemplo, deixe de votar em três eleições consecutivas, a jurisprudência do
TSE tem considerado superada a infração do eleitor que tenha justificado o seu voto
(art. 7º, do Código Eleitoral). Além disso, conforme lembra José Jairo Gomes, o Tribunal
Superior Eleitoral fixou em resolução não estar sujeito à sanção do cancelamento da
inscrição como eleitor o portador de doença ou deficiência que torne impossível ou
extremamente oneroso o cumprimento das obrigações eleitorais.20
Em resumo qualquer restrição ao sufrágio, seja no que diga respeito à capacidade
política ativa, seja no que respeite à capacidade política passiva, deve submeter-se ao
que a teoria constitucional, contemporaneamente, designa como “limites dos limites”,
entre os quais sobressaem o princípio da proporcionalidade e a garantia do conteúdo
essencial do direito fundamental. No caso do sufrágio, tenho séria e honesta dúvida se
a legislação do chamado “ficha-limpismo” no Brasil alcançou respeitar esses limites.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

GUEDES, Néviton. A democracia e a restrição aos direitos políticos. In: FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz
Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura (Coord.); PECCININ, Luiz Eduardo (Org.). Direito
Constitucional Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 111-119. (Tratado de Direito Eleitoral, v. 1.)
ISBN 978-85-450-0496-7.

19
“Art. 71. São causas de cancelamento: I - a infração dos artigos 5º e 42; II - a suspensão ou perda dos direitos
políticos; III - a pluralidade de inscrição; IV - o falecimento do eleitor; V - deixar de votar em 3 (três) eleições
consecutivas. (Redação dada pela Lei nº 7.663, de 27.5.1988) §1º A ocorrência de qualquer das causas enumeradas
neste artigo acarretará a exclusão do eleitor, que poderá ser promovida ex officio, a requerimento de delegado de
partido ou de qualquer eleitor”.
20
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 125.

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PÁGINA EM BRANCO

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CAPÍTULO 2

DIREITOS POLÍTICOS E SUAS RESTRIÇÕES

FERNANDO NEVES DA SILVA

CRISTINA MARIA GAMA NEVES DA SILVA

A capacidade política é fruto da cidadania, sendo exercida por meio da possibili­


dade de votar e estabelecer governo. Entre as liberdades e prerrogativas individuais
se encontram os direitos políticos, que permitem ao cidadão disputar eleições para o
exercício de funções de governo ou votar nelas, intervindo direta ou indiretamente na
vida pública. Os direitos políticos guardam íntima relação com a democracia, na medida
em que configuram a forma mais expressiva de participação dos cidadãos na definição
e na execução das políticas públicas. Pimenta Bueno, citado tanto por José Afonso da
Silva quanto por Alexandre de Moraes, definiu os direitos políticos como:

As prerrogativas, os atributos, faculdades ou poder de intervenção dos cidadãos ativos no


governo de seu país, intervenção direta ou só indireta, mais ou menos ampla, segundo a
intensidade de gozo desses direitos. São o Jus Cvitatis, os direitos cívicos, que se referem
ao Poder Público, que autorizam o cidadão ativo a participar na formação ou exercício da
autoridade nacional, a exercer o direito de vontade ou eleitor, o direito de deputado ou
senador, a ocupar cargos políticos e manifestar suas opiniões.1 2

Em Atenas, no século IV a.C., os direitos políticos eram exercidos somente


por ci­dadãos3 integrados em órgãos específicos,4 por sorteio, como regra geral, ou,

1
BUENO, Pimenta. Direito público brasileiro e análise da constituição do império. Rio de Janeiro: Nova Edição, 1985.
p. 458 apud SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 345.
2
BUENO, Pimenta. Direito público brasileiro e análise da constituição do império. Rio de Janeiro: Nova Edição, 1985.
p. 459 apud MORAES, Alexandre. Direito constitucional. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 207.
3
“Cidadão era o filho de cidadão, nascido livre e maior de 18 anos, aprovado após período de treinamento religioso
e militar, sob a direção de três membros de sua tribo” (AMARAL JUNIOR, Luciano. Regime constitucional dos
direitos políticos no Brasil. São Paulo: Saraiva, 1980. p. 40).
4
“Entre os órgãos políticos, o principal era o Conselho dos Quinhentos, dirigido por uma cúpula colegiada.
Ao Conselho dos Quinhentos, entre outras atribuições, competia convocar e preparar a ordem do dia das

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
122 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

excepcionalmente, pelo voto.5 Naquele modelo observa-se que havia um sistema no qual
apenas poucas e determinadas pessoas influenciavam a vida pública. De modo similar,
na Roma Antiga o exercício dos direitos políticos era privativo dos cidadãos – neste caso
os que fossem livres, romanos, desvinculados do pátrio poder e maiores de 25 anos.6
Na Idade Contemporânea, Hariou, em Derecho constitucional e instituciones polí­ticas,
citado por Luciano Amaral Junior,7 apontou quatro grandes ciclos. O primeiro ini­ciado
no final do século XVIII, com a independência norte-americana e a Revolução Francesa
de 1789. Os demais ciclos surgiram com as Revoluções Francesas de 1830 e 1846, em
seguida, a Primeira Guerra Mundial e, em sequência, a Segunda Guerra Mundial, por
meio do processo de descolonização.
Nos Estados Unidos, a Suprema Corte americana em diversas ocasiões se mani­
festou no sentido de que os direitos políticos são direitos fundamentais protegidos
sob a equal protection clause.8 Em Wesberry v. Sanders,9 registrou-se que em um país livre
nenhum direito é mais relevante do que ter voz na eleição daqueles que irão elaborar as
leis sob as quais os cidadãos irão viver, resultando daí que outros direitos, incluídos os
mais básicos, serão ilusórios se o direito de participar das eleições não for assegurado.10
Nos dias atuais os direitos políticos são resguardados no direito internacional
pelo art. 21 da Declaração Universal dos Direitos Humanos,11 pelos arts. 3º e 25 do Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos12 (Decreto nº 592/92) e pela Carta de Direitos
Fundamentais da União Europeia.13

Assembleias, julgar os magistrados e conhecer preliminarmente qualquer assunto a ser tratado pelos cidadãos.
Havia, ainda, as diversas magistraturas. Entre elas, a Tesouraria, o Comissariado para os Contratos Públicos,
a Recebedoria Geral e Auditoria, todas investidas de competências próprias. Desta forma, os Comissários da
Cidade poderiam coibir a construção de edifícios ou barreiras que obstruíssem as vias públicas os Comissários
dos Mercados controlavam os artigos colocados à vendas os Distribuidores apresentavam os feitos mensais,
isto é, os decorrentes ou do não-pagamento de juros por força de operação de mútuo ou de assinatos ou de
questões relativas aos escravos” (AMARAL JUNIOR, Luciano. Regime constitucional dos direitos políticos no Brasil.
São Paulo: Saraiva, 1980. p. 40-41).
5
AMARAL JUNIOR, Luciano. Regime constitucional dos direitos políticos no Brasil. São Paulo: Saraiva, 1980.
6
AMARAL JUNIOR, Luciano. Regime constitucional dos direitos políticos no Brasil. São Paulo: Saraiva, 1980.
7
AMARAL JUNIOR, Luciano. Regime constitucional dos direitos políticos no Brasil. São Paulo: Saraiva, 1980.
8
Cf. Kramer v. Union Free School Dist, 395, U.S. 621, 626 (1969); Harper v. Virginia St. Bd. of Elections, 383 U.S 663,
666 (1966); Reynolds v. Sims, 377 U.S. 533, 555 (1964).
9
Wesberry v. Sandres, 376 U.S 1, 17 (1964).
10
“No right is more precious in a free country than that of having a voice in the election of those who make the
laws under which, as good citizen, we must live. Other rights, even the most basic, are illusory if the right to vote
is undermined”.
11
“Artigo XXI 1. Todo o ser humano tem o direito de fazer parte no governo de seu país diretamente ou por
intermédio de representantes livremente escolhidos. 2. Todo ser humano tem igual direito de acesso ao serviço
público do seu país. 3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será expressa em
eleições periódicas legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a
liberdade de voto”.
12
“Artigo 3. Os Estados-partes no presente Pacto comprometem-se a assegurar a homens e mulheres igualdade
no gozo de todos os direitos civis e políticos enunciados no presente Pacto. Artigo 25. Todo cidadão terá o
direito e a possibilidade, sem qualquer das formas de discriminação mencionadas no artigo 2º e sem restrições
infundadas: 1. de participar da condução dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes
livremente escolhidos; 2. de votar e ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal
e igualitário e por voto secreto, que garantam a manifestação da vontade dos eleitores; 3. de Ter acesso, em
condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país”.
13
“Artigo 12. Liberdade de reunião e de associação – 1. Todas as pessoas têm direito à liberdade de reunião pacífica
e à liberdade de associação a todos os níveis, nomeadamente nos domínios políticos, sindical e cívico, o que
implica o direito de, com outrem, fundarem sindicatos e de neles se filiarem para a defesa dos seus interesses. 2.

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FERNANDO NEVES DA SILVA, CRISTINA MARIA GAMA NEVES DA SILVA
DIREITOS POLÍTICOS E SUAS RESTRIÇÕES
123

No Brasil Império, na vigência da Constituição de 1824, em face da concentração


de competências na pessoa do imperador, o exercício dos direitos políticos era bastante
limitado. Ao monarca, como chefe do Poder Executivo, competia livremente nomear e
demitir seus ministros. Já o Poder Legislativo era formado pelo Senado e pela Câmara.14
Os senadores eram indicados pelo imperador em caráter vitalício e a cada uma das
províncias era atribuído um número de senadores igual à metade de seus deputados.15
A função dos senadores era defender a monarquia e fortalecer o Executivo, funcio­
nando como freio à Câmara, que, por sua vez, era eleita e temporária. Os deputados
eram escolhidos pelos votos de dois tipos de eleitores: os de paróquia e os de província.
Os eleitores de paróquia elegiam os de província, que votavam nos deputados para a
Assembleia Geral.16
A Constituição qualificou os eleitores (denominados cidadãos ativos), bem como
os que poderiam ser votados, segundo o critério censitário. Podiam votar os maiores
de 25 anos,17 libertos e nascidos no Brasil. Para eleições paroquiais era necessário ter
renda líquida anual de cem mil réis e para as de província de duzentos mil réis. Ficavam
excluídos do direito ao voto os menores de 25 anos, os criados, os religiosos, as mulheres,
os escravos, os índios, os filhos que viviam na companhia dos pais (isto é, dependentes
economicamente)18 e os estrangeiros não naturalizados. Como se observa, efetivamente
a primeira Constituição do Brasil não buscou garantir o exercício dos direitos políticos
de forma a abranger o maior número possível de habitantes.
Proclamada a República e promulgada a Constituição de 1891 – com valores mais
liberais e democráticos – modificou-se a forma do Estado (de unitário para federal) e de
governo (de monarquia para república). Em seu art. 70, o §1º dispunha que não podiam
se alistar os mendigos, os analfabetos, os praças de pré e os religiosos de qualquer ordem,
e o §2º, que eram inelegíveis os cidadãos não alistáveis. As hipóteses de suspensão e
perda dos direitos políticos foram estabelecidas no art. 71 da Carta. A suspensão era
decorrente da incapacidade física ou moral e de condenação criminal, enquanto durassem
seus efeitos. A perda se relacionava às hipóteses de naturalização, aceitação de emprego
ou pensão de governo estrangeiro, sem licença do Poder Executivo Federal. No regime
então estabelecido foram afastadas as regras de sucessão hereditária e o instituto da
nomeação vigentes no Império, e os cargos políticos passaram a ser providos mediante
processo eleitoral. A nova disposição constitucional determinou que o Executivo fosse
chefiado pelo presidente da República, que deveria ser brasileiro nato, maior de 35 anos,
no gozo de seus direitos políticos. O mandato presidencial era de quatro anos, vedada a

Os partidos políticos ao nível da União contribuem para a expressão da vontade política dos cidadãos da União.
Artigo 39 – Direito de eleger e de ser eleito nas eleições para o Parlamento Europeu. 1. Todos os cidadãos da
União gozam do direito de eleger e de ser eleitos para o Parlamento Europeu no Estado-Membro de residência,
nas mesmas condições que os nacionais desse Estado. 2. Membros do Parlamento Europeu são eleitos por
sufrágio universal direto, livre e secreto. Artigo 40 – Direito de eleger e de ser eleito nas eleições municipais –
Todos os cidadãos da União gozam do direito de eleger e de ser eleitos nas eleições municipais do Estado-
Membro de residência, nas mesmas condições que os nacionais desse Estado”.
14
Constituição de 1824, art. 14.
15
Constituição de 1824, art. 41.
16
Constituição de 1824, art. 90.
17
No caso do limite de idade imposto para o voto, de 21 anos, abria-se exceção aos que fossem casados, bem como
para militares e bacharéis formados. Constituição de 1824, art. 32, I.
18
Constituição de 1824, art. 92.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
124 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

recondução. Diferentemente do disposto na Constituição Imperial, o chefe do Executivo


tornou-se passível de ser criminalmente responsabilizado.
O Poder Legislativo, por sua vez, passou a ser exercido pelo Senado Federal e pela
Câmara dos Deputados. Os senadores, três para cada estado e para o Distrito Federal,
eram eleitos para um mandato de nove anos entre os brasileiros no exercício dos seus
direitos políticos há pelo menos seis anos. Os deputados eram eleitos para um mandato
de três anos, entre os brasileiros no exercício dos seus direitos políticos há mais de
quatro anos. Foi estabelecido que o número de deputados fosse fixado por lei de modo
proporcional, sendo que não poderia exceder um por 70.000 mil habitantes e não poderia
ser inferior a quatro por estado.19 Em relação aos direitos políticos, a capacidade eleitoral
foi estendida a todos os brasileiros do sexo masculino acima de 21 anos de idade.20
Uma das mais importantes inovações introduzidas pela Constituição seguinte, a de
1934, foi a criação do voto secreto,21 estendido aos brasileiros22 maiores de 18 anos, exceto
os analfabetos, praças de pré, mendigos ou quem estivesse privado dos seus direitos
políticos. No capítulo dos direitos políticos, o alistamento eleitoral e o voto passaram a
ser obrigatórios para os homens bem como para mulheres que exerciam função pública
remunerada. O mandato presidencial permaneceu por quatros anos, sendo vedada a
recondução imediata ao cargo. O mandato dos senadores foi reduzido para 8 anos, bem
como o número de cadeiras por estado: dois representantes por unidade federativa.
Na Constituição de 1937, que segundo Luciano Amaral Junior “não teve o mínimo
de eficácia para ser vigente”, pois “o art. 187 previu a sua submissão a plebiscito nacional,
que jamais se realizou”,23 o exercício dos direitos políticos foi assegurado a ambos os
sexos, a partir dos 18 anos.24 As hipóteses de suspensão e perda dos direitos políticos
foram relacionadas nos arts. 118 e 119. As hipóteses de suspensão continuaram as mesmas
da Carta anterior, enquanto nas de perda foram incluídas a perda de nacionalidade, a
recusa motivada por convicção religiosa, filosófica ou política, de encargo, serviço ou
obrigação imposta por lei aos brasileiros e a aceitação de título.
A Constituição de 1946, no ponto que interessa a este estudo, manteve-se, em linhas
gerais, semelhante à de 1934, alterando, todavia, a quantidade de senadores por estado,
que retornou ao modelo de 1891 de três senadores por estado e pelo Distrito Federal.
Instaurada, em 1964, a Ditadura Militar, a Constituição de 1946 sofreu grande
golpe em sua legitimidade, na medida em que, através do Ato Institucional nº 1, tanto
ela quanto as Constituições estaduais foram mantidas “com as modificações constantes
deste Ato”. Em sequência com outros atos institucionais, sobreveio um conjunto de
rupturas políticas, que, entre outras coisas, acabou por estabelecer a forma indireta da
eleição presidencial e suspender as garantias dos congressistas e dos magistrados.

19
Constituição de 1891, art. 28, §1º.
20
As exceções foram estabelecidas no §1º do art. 70 e abrangiam mendigos, analfabetos, as praças de pré e os
religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações ou comunidades sujeitas a voto de obediência.
21
Estipulado no primeiro Código Eleitoral do Brasil, em 1932, em seu art. 57.
22
Quanto à atribuição da nacionalidade, foram considerados brasileiros, nos termos do art. 106 os nascidos no
Brasil, ainda que de pai estrangeiro, os filhos de brasileiros ou brasileiras, nascidos em país estrangeiro, estando
os seus pais a serviço e que ao atingirem a maturidade optarem pela nacionalidade brasileira.
23
AMARAL JUNIOR, Luciano. Regime constitucional dos direitos políticos no Brasil. São Paulo: Saraiva, 1980. p. 65.
24
Art. 117 da Constituição de 1937.

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FERNANDO NEVES DA SILVA, CRISTINA MARIA GAMA NEVES DA SILVA
DIREITOS POLÍTICOS E SUAS RESTRIÇÕES
125

Em 1967 foi promulgada uma nova Constituição e a possibilidade de os cidadãos


elegerem os agentes políticos, segundo Luciano Amaral Júnior, passou a ser assim
disciplinada:

a) eleitores são os brasileiros alistados e maiores de dezoito anos de idade; b) não são
alistáveis os analfabetos, os que não sabem se exprimir na língua nacional, os privados de
direitos políticos e os militares que não ostentem ao menos a graduação; c) o sufrágio é
obrigatório e universal; d) o voto é direto e secreto, salvo as exceções previstas (eleição de
Presidente e Vice-Presidente); e) o princípio da representação proporcional dos partidos é
assegurado expressamente f) são elencadas as diversas hipóteses de perda e suspensão de
direitos políticos g) editam-se as regras determinantes de inelegibilidade para a Presidência
da República, Senado Federal, Câmara dos Deputados, Chefias dos Executivos locais e
seus órgãos legislativos.25

Com a edição do AI nº 5, em 1969, ocorreu nova ruptura da ordem constitucional,


sendo atribuída ao chefe do Executivo competência para decretar recesso do Congresso,
das Assembleias Legislativas e das Câmara Municipais; intervir em qualquer estado-
membro ou município; decretar a perda dos direitos políticos de qualquer pessoa; cassar
mandatos eletivos nas áreas federal, estadual e municipal; confiscar bens; colocar juízes
em disponibilidade, mesmo que vitalícios.
Dessa breve rememoração dos textos das Constituições anteriores já se pode
constatar que os direitos políticos não podem existir em regime de governo que não seja
democrático, pois é o seu efetivo exercício que permite consolidar e fortalecer a soberania
popular. O pleno exercício dos direitos políticos exige eleições independentes e sem
abusos, tanto de ordem econômica, quanto de natureza política ou social, na medida
em que eles estão diretamente relacionados e interligados ao Estado Constitucional
Democrático de Direito, sendo uma garantia fundamental resguardada na Constituição,
como bem explicitou o nobre Ministro Dias Toffoli no julgamento das ADCs nºs 29 e
30,26 em conjunto com a ADI nº 4.578:27

O exercício e o gozo dos direitos políticos perfazem uma das facetas mais importantes dos
direitos fundamentais do cidadão. Remontam a uma conquista histórica, resultante de
séculos de batalha, e que se traduz, em suma, na possibilidade de o indivíduo influir no
destino do Estado e opinar, em uma conjuntura coletiva, na fixação dos fins e das regras
aplicáveis à sua comunidade, histórica e espacialmente contextualizada.

Tanto é assim que no Brasil, com a promulgação da Constituição de 1988, nominada


por Ulisses Guimarães de Carta Cidadã, houve especial cuidado de assegurar a todos
real oportunidade de escolher livremente os representantes da sociedade nos poderes
Legislativo e Executivo e de se candidatarem às funções principais nesses poderes,
desde que observadas as condições específicas e legítimas previstas na própria Lei
Maior ou expressamente delegadas às normas complementares e ordinárias, respeitados

25
AMARAL JUNIOR, Luciano. Regime constitucional dos direitos políticos no Brasil. São Paulo: Saraiva, 1980. p. 66-67.
26
STF, Plenário. ADC nºs 29 e 30. Rel. Min. Luiz Fux, j. 16.2.2012. DJe, 29 jun. 2012.
27
STF, Plenário. ADI nº 4.578/SC. Rel. Min. Luiz Fux, j. 16.2.2012. DJe, 29 jun. 2012.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
126 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

determinados limites e princípios. Nela os direitos políticos foram explicitamente


incluídos entre os direitos fundamentais, tendo José Afonso da Silva ressaltado que eles
“consistem na disciplina dos meios necessários ao exercício da soberania popular”.28
Em rápida síntese, pode-se dizer que são direitos políticos previstos na Constituição de
1988 o direito ao sufrágio, a alistabilidade, a elegibilidade, a iniciativa popular de lei, o
ajuizamento de ação popular e a organização e participação em partidos políticos. Tão
importante é o exercício dos direitos políticos que, além de o voto ser uma obrigação,
tal como expressamente previsto na Constituição, ela ainda fez questão de, inovando,
vedar explicitamente a cassação dos direitos políticos, garantia de extrema importância
quando se recorda o passado não muito distante.
Os arts. 14 e 1529 da atual Constituição (mas não apenas eles, já que a Lei Com­
plementar nº 64, de 1990, por determinação do legislador constituinte, também indica
outras hipóteses de restrições à capacidade de ser votado) estão diretamente ligados ao
exercício do sufrágio e do voto e relacionam as condições de elegibilidade e as hipóteses
de inelegibilidade.
José Afonso da Silva definiu as condições de elegibilidade como modalidade
positiva dos direitos políticos e as inelegibilidades como modalidade negativa.30
Os direitos políticos positivos podem ser divididos em ativos e passivos. Os
titu­lares dos direitos políticos ativos no campo eleitoral, ou seja, aqueles que devem
votar, nem sempre gozam plenamente dos direitos políticos. São pressupostos para sua

28
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 345.
29
“Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual
para todos, e, nos termos da lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular. §1º O alistamento
eleitoral e o voto são: I - obrigatórios para os maiores de dezoito anos; II - facultativos para: a) os analfabetos;
b) os maiores de setenta anos; c) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos. §2º Não podem alistar-se
como eleitores os estrangeiros e, durante o período do serviço militar obrigatório, os conscritos. §3º São condições
de elegibilidade, na forma da lei: I - a nacionalidade brasileira; II - o pleno exercício dos direitos políticos; III - o
alistamento eleitoral; IV - o domicílio eleitoral na circunscrição; V - a filiação partidária VI - a idade mínima de:
a) trinta e cinco anos para Presidente e Vice-Presidente da República e Senador; b) trinta anos para Governador e
Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal; c) vinte e um anos para Deputado Federal, Deputado Estadual
ou Distrital, Prefeito, Vice-Prefeito e juiz de paz; d) dezoito anos para Vereador. §4º São inelegíveis os inalistáveis
e os analfabetos. §5º O Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos e
quem os houver sucedido, ou substituído no curso dos mandatos poderão ser reeleitos para um único período
subsequente. §6º Para concorrerem a outros cargos, o Presidente da República, os Governadores de Estado e do
Distrito Federal e os Prefeitos devem renunciar aos respectivos mandatos até seis meses antes do pleito. §7º São
inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consanguíneos ou afins, até o segundo
grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal,
de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de
mandato eletivo e candidato à reeleição. §8º O militar alistável é elegível, atendidas as seguintes condições: I - se
contar menos de dez anos de serviço, deverá afastar-se da atividade; II - se contar mais de dez anos de serviço,
será agregado pela autoridade superior e, se eleito, passará automaticamente, no ato da diplomação, para a
inatividade. §9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim
de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa
do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso
do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. §10. O mandato eletivo poderá
ser impugnado ante a Justiça Eleitoral no prazo de quinze dias contados da diplomação, instruída a ação com
provas de abuso do poder econômico, corrupção ou fraude. §11. A ação de impugnação de mandato tramitará
em segredo de justiça, respondendo o autor, na forma da lei, se temerária ou de manifesta má-fé. Art. 15.
É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: I - cancelamento
da naturalização por sentença transitada em julgado; II - incapacidade civil absoluta; III - condenação criminal
transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos; IV - recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou
prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII; V - improbidade administrativa, nos termos do art. 37, §4º”.
30
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 346.

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FERNANDO NEVES DA SILVA, CRISTINA MARIA GAMA NEVES DA SILVA
DIREITOS POLÍTICOS E SUAS RESTRIÇÕES
127

obtenção a nacionalidade31 e a capacidade civil. Assim, os titulares são os brasileiros


maiores de dezoito anos, excepcionando-se os conscritos, durante o período de serviço
militar obrigatório. Aos maiores de dezesseis e menores de dezoito anos e aos maiores de
setenta anos, faculta-se o exercício do voto. Em relação aos estrangeiros, apenas podem
votar os portugueses com residência permanente no Brasil, por força do disposto no art.
12, §1º, da nossa Constituição, quando houver reciprocidade em favor de brasileiros.
Sob o ângulo passivo, ou seja, quanto ao direito de ser votado para cargos eletivos no
Executivo ou no Legislativo, devem ser observadas as condições de elegibilidade, a partir
do que regulado no próprio texto constitucional, que dispõe sobre as situações em que
essa garantia é afastada. Apesar de ser assegurado aos analfabetos e maiores de 16 anos
e menores de 18 anos o exercício de alguns dos direitos políticos, estes são considerados
inelegíveis, ou seja, podem votar, mas não podem ser votados, o que importa dizer que
os que se encontram nas situações indicadas não detêm capacidade para o exercício
pleno de todos os direitos políticos.32 Manoel Gonçalves Ferreira Filho33 observa, com
propriedade, que no direito brasileiro a cidadania tem graduação, variando entre mínima,
média e máxima, diante da gama de direitos políticos atribuídos ao cidadão.
Os direitos políticos negativos são aqueles que privam o cidadão de participar do
processo político visando ocupar cargos nos órgãos governamentais. José Afonso da Silva
os classifica como negativos porque “consistem no conjunto de regras que negam, ao
cidadão, o direito de eleger, ou de ser eleito, ou de exercer atividade político-partidária
ou de exercer função pública”.34
Em relação às hipóteses de inelegibilidade, apesar de algumas serem explicitadas
no próprio texto constitucional, o §9º do art. 14 delega ao legislador complementar
outras hipóteses com o:

fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato, con­


siderada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra
a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na
administração direta ou indireta.

Todavia, a atuação complementar não é absoluta, na medida em que a própria


Carta Magna estabelece os parâmetros dos outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua
cessação. É a limitação da limitação, como bem ilustra o notável Professor Néviton Guedes:

31
“Não se pode confundir cidadania com nacionalidade. Ser cidadão é ter direitos políticos. Ter nacionalidade
significa ser brasileiro, nato ou naturalizado (CF, art. 12). A nacionalidade é pressuposto da cidadania. Porém,
nem todo nacional é cidadão, porque nem todos têm direitos políticos, como se viu” (ZAVASCKI, Teori Albino.
Direito políticos. Perda, suspensão e controle jurisdicional. Revista de Informação Legislativa, v. 31, n. 123, jul./set.
1994. p. 178).
32
O saudoso Professor Teori Albino Zavascki faz a seguinte observação “Para certos cargos eletivos a elegibilidade
está condicionada ao limite mínimo de idade 35 anos para Presidente, Vice-Presidente e Senador; 30 para
Governador, Vice-Governador; 21 para deputado, Prefeito e Vice-Prefeito (CF, art. 14, §3º, VI). Assim, sob este
aspecto, antes de atingir 35 anos de idade, ninguém, a rigor, pode se dizer na plenitude dos direitos políticos”
(ZAVASCKI, Teori Albino. Direito políticos. Perda, suspensão e controle jurisdicional. Revista de Informação
Legislativa, v. 31, n. 123, jul./set. 1994).
33
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1975. p. 260
apud ZAVASCKI, Teori Albino. Direito políticos. Perda, suspensão e controle jurisdicional. Revista de Informação
Legislativa, v. 31, n. 123, jul./set. 1994
34
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 381.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
128 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Não é por outra razão, que a doutrina e a jurisprudência alemãs, ao cuidarem de restrições
a direitos fundamentais, emprestam especial relevo às chamadas restrições a restrições,
ou limites dos limites (Schranken-Schranken), que estão sempre a restringir a ação dos
poderes públicos, destaca-se, de um lado, a necessidade de proteger o núcleo ou conteúdo
essencial do direito (Wessengehalt) e, de outro, a obrigação de observar o princípio da
proporcionalidade.35

Dada a relevância da fixação dos parâmetros e das circunstâncias que restringem


direito fundamental, exige-se que a interpretação da norma infraconstitucional seja
realizada nos estritos limites em que conferida a autorização legislativa complementar
e nos exatos termos do que disposto nesta atuação. Não é possível, por mais tentador
que possa ser, ampliar o conteúdo da norma restritiva ou admiti-la em situação que não
atenda à finalidade indicada no art. 14, §9º, da Constituição da República.
Ainda em relação às restrições ao exercício dos direitos políticos, é necessário
destacar e distinguir as hipóteses de cassação, perda e suspensão de tais direitos.
Quanto à cassação,36 Cretella Júnior, em seu Comentários à Constituição de 1988,
pontua que “é instituto do direito administrativo que desconstitui ato anterior, podendo
ser funcional ou política”.37 E afirma:

é a mais radical das medidas contra o regime democrático, porque suprime precisamente
as três barreiras legais que se erguem contra o poder de polícia do Estado, os direitos do
cidadão, protegidos pela Constituição e pelas leis, as liberdades públicas e as prerrogativas
individuais, decorrentes do status do indivíduo, na sociedade, fixados em leis.38

O Professor Néviton Guedes, em um dos melhores e mais sólidos comentários


sobre o tema, expõe:

A proibição de cassação de direitos políticos consiste, essencialmente, em proibir-se que


qualquer autoridade tenha o poder de expedir decisão cujo conteúdo jurídico corresponda
diretamente à própria perda dos direitos políticos poderia sugerir dúvida, uma vez que
os casos de perda referidos no dispositivo parecem todos depender de ato ou decisão de
uma autoridade competente. Contudo, a dúvida é facilmente desfeita, se, tomando com
rigor lógico os conceitos, percebemos que em todos os casos de perda admitidos pelo
texto constitucional, diversamente do que sucederia caso se admitisse a própria cassação,
a decisão (conteúdo jurídico de um ato de autoridade) não visa diretamente – sobretudo
como sanção – à perda dos direitos políticos, ou seja, se bem observados os casos de perda
arrolados no art. 15, o poder constituinte em verdade admitiu à autoridades judiciárias
apenas o poder de tomar decisões que podem atingir os pressupostos de seu exercício,
implicando indiretamente a sua perda.39

35
GUEDES, Néviton. Capítulo IV – Dos direitos políticos. In: CANOTILHO, J. J. Gomes et al. (Coord.). Comentários
à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 673.
36
Conforme explicitado linhas acima, a vedação expressa na Constituição de 1988 foi um contraponto ao sistema
implantado em 1964 e ao Ato Institucional nº 5, de 1968, que possibilitou a cassação dos direitos políticos por dez
anos, para silenciar a oposição.
37
CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição de 1988. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.
p. 1115. v. II.
38
CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição de 1988. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.
p. 1115/1116. v. II.
39
GUEDES, Néviton. Capítulo IV – Dos direitos políticos. In: CANOTILHO, J. J. Gomes et al. (Coord.). Comentários
à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p 684.

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FERNANDO NEVES DA SILVA, CRISTINA MARIA GAMA NEVES DA SILVA
DIREITOS POLÍTICOS E SUAS RESTRIÇÕES
129

Temos, portanto, que o que a Constituição veda, com muita propriedade, é o ato
de força, de autoridade, muitas vezes de cunho essencialmente político; o conhecido e
preocupante faço porque quero, que não respeita o efetivo processo legal nem a garantia
de defesa concreta, constantemente utilizado em regimes ditatoriais.
Aliás, a proibição explícita de cassação dos direitos políticos é, sem dúvida,
uma justa e prudente reação ao período do governo militar, embora pareça evidente
que em caso de qualquer ruptura do regime democrático, pouco valerão as garantias
e os direitos antes assegurados. Todavia, é importante a vedação constitucional para
impedir que o governante de plantão, ainda que devidamente eleito e empossado sob
o juramento de cumprir a Constituição e as leis do país, resolva perseguir desafetos ou
tentar facilitar o caminho de correligionários, atitudes que, embora reprováveis, vez por
outra costumam aparecer.
A Constituição admite hipóteses de perda ou suspensão dos direitos políticos,
que, ao contrário da cassação, não são definitivas, podendo, em princípio, ser revertidas.
A perda decorre da supressão dos pressupostos de sua aquisição. Assim, é
plenamente possível que seus pressupostos sejam restabelecidos. José Afonso da
Silva, citado por Néviton Guedes,40 lembra que a Lei nº 818/49, ao regular a perda da
nacionalidade, também prevê hipótese de sua reaquisição. Cretella Júnior é claro ao expor
que “não se perde o que não se tem; perde-se aquilo que se tinha a posse ou a detenção”.
Prossegue complementando que “‘perda’ é idéia ligada à idéia de definitividade, embora
nem sempre o seja, pois, pode-se recuperar o que se perde”.41 De modo a afastar a
impressão de definitividade do ato que declara a perda de direitos políticos, basta ter
presente, em relação às situações que decorrem de sentença transitada em julgado, a
possibilidade de a decisão que levou à perda desses direitos ser modificada por ação
rescisória ou anulada por vício de forma.
Portanto, é possível dizer que a grande diferença entre hipóteses de perda e de
suspensão de direitos é a previsão de prazo certo para o restabelecimento desses direitos.
Enquanto nas situações de perda não há fixação de determinado espaço de tempo ao final
do qual os direitos políticos serão automaticamente restabelecidos, nos de suspensão
esse tempo é previamente determinado. Tanto os casos de perda quanto os de suspensão
dos direitos políticos estão taxativamente relacionados no art. 15 da Constituição, tendo
em vista a utilização do advérbio só antes do rol das hipóteses indicadas.
A primeira das hipóteses previstas no referido artigo diz respeito ao cancelamento
de naturalização por sentença transitada em julgado.42 Essa é, evidentemente, uma
situação de perda, ainda que o ato que cancela a naturalização possa vir a ser anulado
a partir da iniciativa do legítimo interessado. Os casos em que se admite a perda da
nacionalidade são os indicados no §4º, I, do art. 12 da Constituição do Brasil, que começa
justamente pelo cancelamento por sentença judicial em virtude de atividade nociva ao
interesse nacional.
A referência à necessidade de sentença judicial para configuração da perda
traz implícita a necessidade de observância do devido processo legal, com a efetiva

40
GUEDES, Néviton. Capítulo IV – Dos direitos políticos. In: CANOTILHO, J. J. Gomes et al. (Coord.). Comentários
à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 685.
41
CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição de 1988. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.
p. 1117. v. II.
42
Constituição da República de 1988, art. 15, §1º.

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130 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

possibilidade de ampla defesa, com os recursos a ela inerentes. A explicitação da


motivação impede o desvirtuamento da ação, embora, infelizmente, o conceito seja
bastante amplo, permitindo colocar sobre esse guarda-chuva personagens escolhidos por
motivos variados e muitas vezes indevidos.
Também é possível declarar a perda da nacionalidade do brasileiro quando ele
adquirir outra nacionalidade, salvo se a lei estrangeira reconhecer a nacionalidade
original ou impuser a naturalização de brasileiro residente no exterior como condição
para permanência em seu território ou para o exercício de direitos civis.
Outra hipótese de restrição a direito político (negativo) é a de incapacidade
civil absoluta, elencada no art. 15, §2º da Lei Maior. Pela lógica constitucional, aquele
que não é apto para gerir os próprios negócios jurídicos não pode pretender conduzir
negócios de natureza pública. O Código Civil estabeleceu os casos de interdição em seu
art. 1.767,43 mas nem todos eles são configuradores de incapacidade civil absoluta. O art. 3º
do Código Civil estipula que os menores de 16 anos são absolutamente incapazes de
exercer a vida civil, já no art. 4º consta o rol das incapacidades relativas, sendo eles os
maiores de 16 anos e menores de 18, ébrios habituais e viciados em tóxico, aqueles que,
por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade e os pródigos.
Muitos autores entendiam que a incapacidade civil absoluta prevista no Código
anterior configurava hipótese de suspensão, na medida em que seria possível a reversão,
desde que reconhecido o restabelecimento da capacidade civil do indivíduo. A nosso
ver, porém, salvo a hipótese de incapacidade civil do menor – que na verdade não é de
perda, pois não se perde o que ainda não se adquiriu –, as situações de incapacidade
civil absoluta dependiam de algo que não teria tempo certo para ocorrer, nem se poderia
saber se efetivamente iria ocorrer, como exemplo, o restabelecimento de enfermidade ou
de deficiência mental que afastava o discernimento para a prática dos atos da vida civil.
Por isso, nos filiamos à corrente dos que já entendiam que a segunda hipótese indicada
no art. 15 da Constituição é de perda dos direitos políticos e não de suspensão, na medida
em que mesmo não sendo definitiva, não há um termo certo para o restabelecimento
automático de tais direitos.
Quanto à perda dos direitos políticos em casos de incapacidade, colocamos para
reflexão a preocupação de que a incapacidade relativa, como a embriaguez habitual ou o
desenvolvimento mental incompleto, não impede a participação, ainda que indireta, nos
negócios de natureza pública. Apesar de essas situações restringirem a prática de certos
atos da vida civil e, portanto, prejudicarem a administração de negócio próprio, elas não
são causa para a perda dos direitos políticos, que interessam a toda a sociedade e cujas
consequências são infinitamente mais graves. Parece-nos haver, aqui, uma incongruência:
os negócios privados teriam mais relevância que os públicos?
A terceira situação descrita no art. 15 da Constituição diz respeito à condenação
criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos. Neste caso trata-se
inequivocamente de suspensão, como indicado no próprio texto. Ao julgar a ADPF
nº 144,44 o Supremo Tribunal Federal havia decidido que o termo inicial da restrição

43
Impõe a curatela: (i) àqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento
para os atos da vida civil; (ii) àqueles que, por outra causa duradora, não puderem exprimir a sua vontade;
(iii) aos deficientes mentais, aos ébrios habituais e aos viciados em tóxicos; (iv) aos excepcionais sem completo
desenvolvimento mental; e, por fim, (v) aos pródigos.
44
STF, Plenário. ADF nº 144. Rel. Min. Celso de Mello, j. 6.8.2008. DJe, 26 fev. 2010.

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FERNANDO NEVES DA SILVA, CRISTINA MARIA GAMA NEVES DA SILVA
DIREITOS POLÍTICOS E SUAS RESTRIÇÕES
131

era o trânsito em julgado da sentença condenatória. Nas palavras do Professor Néviton


Guedes:

A Suprema Corte recusou a tese segundo a qual, em consideração ao princípio da mora­


lidade e o da probidade administrativa, referidos no art. 14, §9º, a simples existência
de processos criminais, ou de improbidade administrativa, embora não transitados em
julgados, já seria o bastante para, nos termos do dispositivo, macular a vida pregressa,
justificando o indeferimento de seu registro de candidatura. Com base na exigência
constitucional de trânsito em julgado da decisão condenatória e na garantia fundamental
da presunção de inocência, compreendeu o Supremo Tribunal Federal que apenas as
decisões transitadas em julgado justificam a restrição ao direito político fundamental de
lançar-se como candidato.45

Todavia, no início de 2016 o mesmo Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Habeas


Corpus nº 126.292/SP,46 em uma total reversão de sua tranquila e firme jurisprudência,
resolveu, por maioria, que decisão condenatória de segundo grau possibilita o início da
execução de pena privativa de liberdade. Diante deste último julgamento (cuja revisão
tem sido objeto de constantes e consistentes manifestações), questiona-se como ficará
o exercício dos direitos políticos daqueles que tenham sido condenados criminalmente
em segundo grau, com recursos pendentes de apreciação, quando tais condenações não
sejam causa de inelegibilidade. Ou seja, os que tenham contra si condenação criminal
não transitada em julgada, pendente de confirmação, portanto, mas insuficiente para
gerar inelegibilidade. O direito de votar e de ser votado permanece mesmo após a
condenação em segundo grau?
Por outro lado, cabe indagar se a Constituição atribui maior ou menor importância
ao direito político de votar e de ser votado do que ao direito à liberdade individual, na
medida em que, para a suspensão destes últimos, é necessário o trânsito em julgado,
enquanto que, para a supressão do primeiro, basta uma decisão de segundo grau, ainda
que sujeita a recurso. Essa é uma importante questão que sempre merece ser considerada
pelos ilustres ministros de nossa Corte Suprema.
Ainda a propósito do assunto, é relevante fazer uma distinção entre o exercício
pleno dos direitos políticos positivos (que compreende os atos de votar e os de ser votado)
com as regras de inelegibilidade (direitos políticos negativos) que impedem o registro,
como candidatos, daqueles que tenham contra si determinadas decisões colegiadas não
transitadas em julgado.
As situações são diferentes, na medida em que é a própria Constituição da
Repú­blica que prevê situações em que o cidadão não pode ser votado e que autoriza o
legislador complementar a estabelecer outros casos de inelegibilidade a fim de proteger

45
GUEDES, Néviton. Capítulo IV – Dos direitos políticos. In: CANOTILHO, J. J. Gomes et al. (Coord.). Comentários
à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 687.
46
“CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
(CF, ART. 5º, LVII). SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA CONFIRMADA POR TRIBUNAL DE SEGUNDO
GRAU DE JURISDIÇÃO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. POSSIBILIDADE. 1. A execução provisória de acórdão
penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário,
não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da
Constituição Federal. 2. Habeas corpus denegado” (STF, Plenário. HC nº 126.292/SP. Rel. Min. Teori Zavascki,
j. 2.9.2016. DJe, 7 fev. 2017).

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132 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada


a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a
influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na
administração direta ou indireta.47 Assim, absolutamente viável considerar a existência
de decisão colegiada condenatória por determinados crimes como obstáculo ao direito
de disputar cargo eletivo de modo a preservar o trato da coisa pública, ainda que tal
decisão não tenha transitado em julgado.
Não se trata de cercear a liberdade ou de impor restrições ao direito de ir ou vir.
Cuida-se, ao contrário, de evitar a candidatura daquele que já foi considerado, pela
maioria dos componentes de um órgão judicial colegiado, como responsável por atos
desa­bonadores, com gravidade suficiente para impedir a assunção a um cargo público,
em que poderia ditar ou executar políticas públicas, na maior parte das vezes supor­
tadas pelos sofridos e escassos recursos da nação, o que é inadmissível. Além disso,
como esclarecido na ementa do Acórdão nº 4.59848 do Tribunal Superior Eleitoral, “a
inele­gibilidade importa no impedimento temporário da capacidade eleitoral passiva
do cidadão, que consiste na restrição de ser votado, não atingindo, portanto, os demais
direitos políticos, como, por exemplo, votar e participar de partidos políticos”.
Ainda em relação à terceira das hipóteses de restrição previstas no art. 15 da Carta
Magna, há um tema que merece especial consideração. Ao julgar o Recurso Extraordinário
nº 179.502/SP,49 nos idos de 1995, por apertada maioria, o Supremo Tribunal Federal
resolveu que toda e qualquer condenação criminal transitada em julgado, ainda que
no período do sursis, implica a automática suspensão dos direitos políticos. Em voto
vencido o eminente Ministro Sepúlveda Pertence observou que o art. 55 da Constituição
distinguiu hipótese de suspensão de direitos políticos (quando a perda do mandato
pende apenas de um ato declaratório da Mesa das Casas do Congresso Nacional) da
hipótese de perda do mandato legislativo por condenação criminal (quando dependerá
de decisão constitutiva da Casa Legislativa), assegurando amplo direito de defesa ao
condenado, a afastar, portanto, qualquer ideia de automaticidade. E ponderou:

Esse contencioso parlamentar seria de pomposa inutilidade, com todas as vênias, se toda
condenação criminal – fosse ela pelo crime de sono, de adultério ou de lesões corporais por
imperícia – devesse levar à suspensão de direitos políticos e, consequentemente, à perda do
mandato parlamentar, eis que dificilmente se conceberia um sistema constitucional onde
o mandatário político pudesse continuar a sê-lo, embora despido de direitos políticos.50

A partir daí se teve o tema por resolvido, como se vê do julgamento do Recurso


Extraordinário nº 577.012,51 no qual o nobre relator, Ministro Ricardo Lewandowski,

47
Constituição da República de 1988, art. 14, §9º.
48
TSE. Acórdão nº 4.598, j. 3.6.2004. DJ, 13 ago. 2004. RJTSE, v. 15-3, p. 228.
49
STF, Plenário. RE nº 179.502/SP. Rel. Min. Moreira Alves, j. 31.5.1995. DJ, 8 set. 1995: “EMENTA. Condição de
elegi­bilidade. Cassação de diploma de candidato eleito vereador, porque fora ele condenado, com trânsito em
jul­gado, por crime eleitoral contra a honra, estando em curso a suspensão condicional da pena. Interpretação do
artigo 15, III, da Constituição Federal. Em face do disposto no artigo 15, III, da Constituição Federal, a suspensão
dos di­reitos políticos se dá, ainda quando, com referência ao condenado por sentença criminal transitada em jul­
ga­do, esteja em curso o período da suspensão condicional da pena. Recurso extraordinário conhecido e provido”.
50
STF, Plenário. RE nº 179.502/SP. Rel. Min. Moreira Alves, j. 31.5.1995. DJ, 8 set. 1995, voto do Ministro Sepúlveda
Pertence.
51
STF, Primeira Turma. RE nº 577.012/MG. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. DJe, 25 mar. 2011.

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FERNANDO NEVES DA SILVA, CRISTINA MARIA GAMA NEVES DA SILVA
DIREITOS POLÍTICOS E SUAS RESTRIÇÕES
133

citando Pontes de Miranda em análise que fez de dispositivo semelhante na Constituição


de 1946, consignou que “a condenação criminal suspende, qualquer que ela seja, enquanto
eficaz a sentença, os direitos políticos, não só se a pena é restritiva de liberdade”.
Para o saudoso Ministro Teori Albino Zavascki,52 “o constituinte não fez exceção
alguma: em qualquer hipótese de condenação criminal haverá suspensão dos direitos
políticos enquanto durarem os efeitos na sentença”.53 Reconheceu o renomado professor,
todavia, que se trata:

de preceito extremamente rigoroso, porque não distingue crimes dolosos dos culposos,
nem condenações a penas privativas de liberdade e de condenações a simples penas
pecu­niárias, que também não distingue crimes de maior ou menos potencial ofensivo
ou danoso, sendo que a condenação por contravenção, que também é crime, acarreta, do
mesmo modo, o efeito constitucional.54

Sem faltar ao respeito devido à nossa Corte Suprema, o tema deve ser revisitado,
como, aliás, já anunciava o Ministro Sepúlveda Pertence no julgamento do Recurso
Extraordinário nº 418.876,55 no qual as circunstâncias concretas do caso, todavia, não
permitiram. E nessa revisão será importante ter presente que a interpretação de norma
constitucional não pode ser feita em tiras, conforme a conhecida lição do Ministro
Eros Grau, e que a solução deve se pautar pelos princípios da razoabilidade e propor­
cionalidade, como bem se vê da doutrina dos professores Gilmar Mendes e Paulo Gonet
Branco:

Utilizado, de ordinário, para aferir a legitimidade das restrições de direitos – muito embora
possa aplicar-se, também, para dizer do equilíbrio na concessão de poderes, privilégios ou
benefícios – o princípio da proporcionalidade ou razoabilidade, em essência, consubstancia
uma pauta de natureza axiológica que emana diretamente das idéias de justiça, equidade,
bom senso, prudência, moderação, justa medida, proibição de excesso, direito justo e valores

52
ZAVASCKI, Teori Albino. Direito políticos. Perda, suspensão e controle jurisdicional. Revista de Informação
Legislativa, v. 31, n. 123, jul./set. 1994.
53
ZAVASCKI, Teori Albino. Direito políticos. Perda, suspensão e controle jurisdicional. Revista de Informação
Legislativa, v. 31, n. 123, jul./set. 1994. p. 180.
54
ZAVASCKI, Teori Albino. Direito políticos. Perda, suspensão e controle jurisdicional. Revista de Informação
Legislativa, v. 31, n. 123, jul./set. 1994. p .180.
55
“Recurso extraordinário: prequestionamento e embargos de declaração. A oposição de embargos declaratórios
visando à solução de matéria antes suscitada basta ao prequestionamento, ainda quando o Tribunal a quo persista
na omissão a respeito. II. Lei penal no tempo: incidência da norma intermediária mais favorável. Dada a garantia
constitucional de retroatividade da lei penal mais benéfica ao réu, é consensual na doutrina que prevalece a
norma mais favorável, que tenha tido vigência entre a data do fato e a da sentença: o contrário implicaria
retroação da lei nova, mais severa, de modo a afastar a incidência da lei intermediária, cuja prevalência, sobre
a do tempo do fato, o princípio da retroatividade in melius já determinara. III. Suspensão de direitos políticos
pela condenação criminal transitada em julgado (CF, art. 15, III): interpretação radical do preceito dada pelo STF
(RE 179502), a cuja revisão as circunstâncias do caso não animam (condenação por homicídio qualificado a pena
a ser cumprida em regime inicial fechado). IV. Suspensão de direitos políticos pela condenação criminal: direito
intertemporal. À incidência da regra do art. 15, III, da Constituição, sobre os condenados na sua vigência, não
cabe opor a circunstância de ser o fato criminoso anterior à promulgação dela a fim de invocar a garantia da
irretroatividade da lei penal mais severa: cuidando-se de norma originária da Constituição, obviamente não lhe
são oponíveis as limitações materiais que nela se impuseram ao poder de reforma constitucional. Da suspensão
de direitos políticos - efeito da condenação criminal transitada em julgado - ressalvada a hipótese excepcional do
art. 55, §2º, da Constituição - resulta por si mesma a perda do mandato eletivo ou do cargo do agente político”
(STF. RE nº 718.876/MT. Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 30.3.2004. DJe, 4 jun. 2004).

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134 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

afins; precede e condiciona a positivação jurídica, inclusive a de nível constitucional, e,


ainda, enquanto princípio geral de direito, serve de regra de interpretação para todo o
ordenamento jurídico.56

Frente aos princípios indicados na transcrição acima não nos parece razoável nem
proporcional que a aplicação do art. 15, III, da Constituição seja automática e ampla.
Isto é, que decorra da prática de todo e qualquer crime, desde que presente a necessária
sentença condenatória com trânsito em julgado e efeitos vigentes, inclusive se ainda no
período da suspensão condicional da sanção.
Pelo atual entendimento do Supremo, crimes com menor potencial ofensivo
e sem maiores consequências, como o de desacato, podem levar automaticamente à
suspensão dos direitos políticos.57 Ou seja, até um simples acidente de trânsito, causado
por imperícia ou desatenção, com base na atual jurisprudência, pode retirar, ainda que
temporariamente, os direitos políticos do responsável, impedindo-o de participar, direta
ou indiretamente, da definição ou execução das políticas públicas.
No julgamento do Recurso Especial Eleitoral nº 531.807/MG58 no TSE, o em.
Ministro Gilmar Mendes fez as seguintes e lúcidas observações:

Com base na compreensão da reserva legal proporcional, as causas de inelegibilidade devem


ser interpretadas restritivamente, evitando-se a criação de restrição de direitos políticos
sobre fundamentos frágeis, inseguros e indeterminados [...], absolutamente ofensivo à boa
dogmática de proteção dos direitos fundamentais. [...]
O pleno exercício de direitos políticos por seus titulares (eleitores, candidatos e partidos)
é assegurado pela Constituição por meio de um sistema de normas que conformam o que
se poderia denominar de devido processo legal eleitoral. Na medida em que estabelecem
as garantias fundamentais para a efetividade dos direitos políticos, essas regras também
compõem o rol das normas denominadas cláusulas pétreas e, por isso, estão imunes a
qualquer reforma que vise a aboli-las.

Lembre-se, por curiosidade, de que a Lei Complementar nº 64, de 1990, em


seu art. 1º, inc. I, letra “e”, é expressa ao detalhar os crimes pelos quais a condenação
acarreta inelegibilidade. E entre eles não se encontra o de lesão corporal culposa, nem
o de desacato. Portanto – e desde logo esclarecendo que não se está a defender que a
inter­pretação da Constituição se faça a partir de legislação complementar, mas sim com
base em normas e princípios expressos na própria Carta Magna – a nosso ver deve ser
ponderada e repensada a rigorosa interpretação atualmente dada à aplicação automática
do art. 15, III, da Constituição da República.
Também a propósito da terceira restrição, ou seja, da suspensão dos direitos
políticos em razão de condenação criminal transitada em julgado, merece ser lembrado o

56
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva,
2007. p. 113-114.
57
Tal como observado pelo primeiro autor por ocasião do julgamento do TSE. RESP nº 19.633/SP. DJ, 9 ago. 2002,
p. 205: “Ementa: Recurso contra diplomação - Candidato que estava, à época do registro, com os direitos
políticos suspensos - Condenação por desacato - Pena de multa - Sentença criminal com trânsito em julgado -
Auto-aplicabilidade do art. 15, III, da Constituição Federal - Recurso não conhecido”.
58
TSE. RESPE nº 531807/MG. Rel. Min. Gilmar Mendes. DJe, 3 jun. 2015.

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FERNANDO NEVES DA SILVA, CRISTINA MARIA GAMA NEVES DA SILVA
DIREITOS POLÍTICOS E SUAS RESTRIÇÕES
135

que explicitou o em. Ministro Dias Toffoli, em voto proferido por ocasião do julgamento
no Recurso Especial Eleitoral nº 126-02.2012 (TSE):59

Posiciono-me, a respeito do tema, a favor da tese de que a transação penal não tem natureza
condenatória e não gera trânsito em julgado material, pois considero, que, embora haja, o
cumprimento de medidas restritivas de direito ou o pagamento de multa, não há verificação
ou mesmo assunção de culpa pela parte transacionante.
Isso porque o instituto da transação penal foi inserido no ordenamento jurídico penal
pátrio em razão da vertente despenalizadora da Lei nº 9.099/95, que tem por objetivo
a deliberada intenção do Estado de evitar não só a instauração do processo penal, mas
também a própria imposição da pena privativa de liberdade, quando se tratar de infração
penal revestida de menor potencial ofensivo.

Na exata interpretação de S. Excia., a suspensão “somente pode ocorrer com


a condenação que, além de transitada em julgado materialmente, decorra do devido
processo legal e apure a culpabilidade do cidadão, o que não ocorre na transação penal”,
pois, segundo o entendimento do Supremo Tribunal Federal, ela é “mera homologação
de acordo, sem natureza condenatória e sem trânsito em julgado formal ou material”,
tanto que seu descumprimento permite ao Ministério Público o eventual oferecimento
de denúncia.
Outra hipótese de perda dos direitos políticos é a elencada no item IV do mesmo
art. 15: recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos
do art. 5º, VIII, da Constituição da República.60 Pela leitura atenta desse dispositivo
verifica-se que o restabelecimento dos direitos políticos depende de o interessado, quando
possível, rever sua posição anterior e deixar de se eximir de atender à obrigação legal
ou de cumprir a prestação alternativa. Portanto, a causa da perda dos direitos políticos
acaba sendo o não cumprimento da prestação alternativa à obrigação legal a todos
imposta, desde que tal alternativa esteja prevista em lei.
O exemplo de obrigação legal que geralmente vem à mente é o do serviço militar
obrigatório, previsto no art. 143 da Constituição, cujo §1º dispõe que compete às Forças
Armadas, na forma da lei, atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz e depois
de alistados, venham a alegar imperativo de consciência. Todavia, como o alistamento é
condição para aquisição de direitos políticos e – como já dito nestas considerações – não
se perde o que ainda não se adquiriu, parece imprópria a referência. Observe-se, de
pronto, que para aquele cidadão maior de dezoito anos que, alistado, deixa de votar,
existem prestações alternativas, como a apresentação de justificativa, em prazo certo,
ao juiz eleitoral, ou o pagamento de multa. E, ainda, a possibilidade de readquirir tais
direitos, mediante nova inscrição no cadastro dos eleitores.
Um debate que surge é o dos casos de inadimplência de obrigação a todos imposta
sem que a lei preveja prestação alternativa. Nesta hipótese, e desde que a obrigação
seja razoável e sua inexecução guarde proporcionalidade com a consequência, poderá
ocorrer a perda dos direitos políticos.

59
TSE. RESPE nº 126-02.2012.6.10.0080/MA.
60
“Art. 5º [...] VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou
política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação
alternativa fixada em lei”.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
136 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Outra questão interessante que se apresenta é a relacionada com a necessidade de


instauração de algum procedimento, judicial ou administrativo, para a perda dos direitos
políticos pela razão indicada no inc. IV. A Constituição anterior atribuía, expressa­mente,
competência ao presidente da República para decretação da perda desses direitos.
Todavia, a atual Carta não mais atribui tal faculdade ao chefe do Poder Executivo Federal.
Ora, se a competência antes prevista passou a não mais existir, é evidente que só resta
o Poder Judiciário para dirimir a questão em caso concreto, após provocação da auto­
ridade legitimada, devendo ser assegurado ao interessado a mais ampla defesa, com
o contraditório que lhe é inerente, para que ele tenha efetiva oportunidade de se opor,
pelos motivos que entender adequados, à perda desse direito fundamental.
A quinta e última hipótese indicada no art. 15 da Constituição é a de suspensão
de direitos políticos decorrente de improbidade administrativa, nos termos de seu art.
37, §4º.61 Embora o dispositivo constitucional não faça referência à forma de constatação
da improbidade administrativa, é inquestionável a necessidade de instauração de
processo judicial a fim de que se apure, com observância do devido processo legal,
a efetiva prática de ato de improbidade administrativa. A mera existência de decisão
de órgão judicial colegiado torna inelegível aquele que foi condenado pela prática de
ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e
enriquecimento ilícito,62 desde que tal consequência tenha sido declarada na sentença.
Assim, para que ocorra a suspensão dos direitos políticos, ou seja, da obrigação de votar
e do direito de ser votado, é imprescindível que a decisão transite em julgado, tal como
dispõe o art. 20 da Lei nº 8.429/1992. Mais uma vez cabe invocar os ensinamentos do
Professor Néviton Guedes sobre o tema:

No seu art. 20, essa Lei estabelece expressamente que a suspensão dos direitos políticos
dependerá do trânsito em julgado da sentença condenatória. Confirmando os termos
expressos da Lei, aliás, a jurisprudência do TSE tem se firmado no sentido de que a
suspensão dos direitos políticos decorrente de ato de improbidade administrativa, por não
ter natureza penal, deve resultar de ação civil e depende de decisão expressa e motivada
por parte do juízo competente para que possa ser aplicada pela Justiça Eleitoral. Assim,
cuidando-se dos atos de improbidade referidos na Lei 8.429/92, a que faz menção o art.
15, V, combinado com o art. 37, §4º, da Constituição, não basta que o juízo competente
tenha condenado o indivíduo por ato de improbidade para que contra ele se possa impor a
suspensão dos direitos políticos, tendo o órgão jurisdicional que fazer expressa e específica
remissão à sanção de suspensão dos direitos políticos para que, após o trânsito em julgado
da decisão condenatória, o cidadão de fato tenha os seus direitos políticos suspensos.63

A propósito, cabe lembrar que as sanções referidas no citado §4º do art. 37 não são
necessariamente cumulativas. Assim, o juiz, considerando a relevância e as consequências
dos fatos apurados, pode aplicar todas ou apenas algumas delas. Nesse sentido explicitou

61
Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública,
a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e graduação previstas em lei, sem prejuízo da
ação penal cabível.
62
Lei Complementar nº 64, de 1990, art. 1, inc. I, letra “l”.
63
GUEDES, Néviton. Capítulo IV – Dos direitos políticos. In: CANOTILHO, J. J. Gomes et al. (Coord.). Comentários
à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 688.

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FERNANDO NEVES DA SILVA, CRISTINA MARIA GAMA NEVES DA SILVA
DIREITOS POLÍTICOS E SUAS RESTRIÇÕES
137

o em. Ministro Luiz Fux na ementa de acórdão proferido no Superior Tribunal de Justiça
no Recurso Especial nº 980.706/RS:64

8. As sanções do art. 12, incisos I, II e III, da Lei nº 8.429/92, não são necessariamente
cumu­lativas, cabendo ao magistrado a sua dosimetria; em consonância com os princípios
da razoabilidade e da proporcionalidade, que, evidentemente, perpassa pela adequação,
neces­sidade e proporcionalidade estrito senso, aliás, como deixa entrever o parágrafo único
do referido dispositivo, a fim de que a reprimenda a ser aplicada ao agente ímprobo seja
suficiente à repressão e à prevenção da improbidade.

Há, ainda, outro aspecto de restrição de direito político passivo por ato relacionado
com improbidade que merece ser destacado neste estudo, que é o previsto no art. 1º,
inc. I, letra “i”, da Lei Complementar nº 64, de 1990 que estipula:

Art. 1º São inelegíveis:


I - para qualquer cargo: [...]
i) os que, em estabelecimento de crédito, financiamento ou seguro, que tenham sido
ou estejam sendo objeto de processo de liquidação judicial ou extrajudicial, hajam
exercido, nos 12 (doze) meses anteriores à respectiva decretação, cargo ou função de
direção, administração ou representação, enquanto não forem exonerados de qualquer
responsabilidade.

A situação descrita na indicada letra “i” pode perdurar por tempo indeterminado,
pois, para tanto, é suficiente a mera existência de processo de liquidação, judicial ou
extrajudicial, que, na maior parte das vezes, se prolonga por muitos e muitos anos. Por
se tratar de lei complementar, os seus parâmetros devem estar dentro da autorização
concedida pelo legislador constituinte. Em outras palavras, deve respeitar os limites
estabelecidos no art. 14, §9º, da Constituição da República, entre eles a explicitação do
prazo de fixação da cessação da inelegibilidade. Assim, considerando que a hipótese da
referida letra “i” está relacionada à improbidade (motivo de suspensão e não de perda
de direitos políticos) a indefinição do momento em que se dará o restabelecimento
automático de todos os direitos políticos implica a inconstitucionalidade do que consta
na lei complementar.
Concluindo este apanhado de ideias e reafirmando o grande cuidado que se há de
ter quando se interpretam normas que restringem direitos políticos, que estão entre os
direitos fundamentais garantidos pela Constituição da República, necessária a lembrança
do Recurso Especial Eleitoral nº 21.273.65 Naqueles autos se discutia se a suspensão
dos direitos políticos de determinado prefeito após eleição interferiria no exercício dos
direitos políticos do vice-prefeito com ele eleito. O Tribunal Superior Eleitoral, após
boas discussões e oportunos pedidos de vista, concluiu:

por se tratar de questão de natureza pessoal, a suspensão dos direitos políticos do titular
do Executivo Municipal não macula a legitimidade da eleição, sendo válida a votação por­
quanto a perda de condição de elegibilidade ocorreu após a realização da eleição, momento
em que a chapa estava completa.

64
STJ, Primeira Turma. REsp nº 980.706/RS. Rel. Min. Luiz Fux. DJe, 23 fev. 2011.
65
TSE. RESPE nº 21.273, Nuporanga – SP. DJe, 27 maio 2004.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
138 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Também vale a menção ao julgamento, mais recente, do Recurso Especial Eleitoral


nº 36.173,66 no qual o Tribunal Superior Eleitoral decidiu que os que estiverem com os
direitos políticos suspensos podem participar de atividades político-partidárias, inclusive
comícios e atos de propaganda, na medida em que o art. 337 do Código Eleitoral, que
tipifica tais atividades como crime,

não guarda sintonia com os arts. 5º, IV, VI e VII, e 220 da Carta da República, que garantem
ao indivíduo a livre expressão de pensamento e a liberdade de consciência, ainda que o
exercício de tais garantias sofra limitações em razão de outras, também resguardadas pela
Constituição Federal.

Do voto do nobre relator, o Ministro Dias Toffoli, merece destaque essa signifi­
cativa passagem:

Com efeito, o mencionado dispositivo [art. 337, do Código Eleitoral] descreve como crime
a participação do cidadão que estiver com os direitos políticos suspensos em atividades
partidárias, inclusive comícios e atos de propaganda, comportamentos que dizem respeito
à liberdade individual, e não à prática de atos que se inserem no âmbito dos direitos
políticos, propriamente ditos.
Frise-se que a aludida norma não prevê como crime a filiação do cidadão nos quadros
da agremiação, o que consistiria, em tese, o exercício de um direito político albergado
consti­tucionalmente, que poderia sofrer restrição diante de um bem jurídico maior.
Mas, ao contrário, priva o cidadão de manifestar-se quanto às suas crenças e convicções
políticas, o que implica, a meu ver, restrição à liberdade de manifestação do pensamento
e de consciência.

Em suma, pode-se dizer que os direitos políticos são garantias basilares de uma
democracia constitucional. Ao decorrer da história se observa uma ampliação do acesso
dos direitos políticos diante não apenas da abrangência da definição de cidadão, mas
também do reconhecimento da necessidade de manifestação popular para o amadu­
recimento e fortalecimento da democracia.
Um sistema representativo deve não só garantir a todos, em suas plenas faculdades
mentais, a escolha de seus representantes, mas também garantir acesso àqueles que
buscam representar seus pares. Apenas situações especiais, devidamente definidas pelo
constituinte e pela legislação complementar, por força desta mesma Constituição, e que
não devem ser interpretadas com amplidão, podem restringir a participação do cidadão
no debate democrático e na vida pública, seja atuando como eleitor ou como candidato,
para colaborar, questionar ou tentar participar, direta ou indiretamente, das atividades
políticas de definição de caminhos e da gerência da coisa pública.

Referências
AMARAL JUNIOR, Luciano. Regime constitucional dos direitos políticos no Brasil. São Paulo: Saraiva, 1980.
CANOTILHO, J. J. Gomes et al. (Coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.

66
TSE. RESPE nº 36.173, Cajamar – SP. Rel. Min. Dias Toffoli, Acórdão nº 361-73.2012.626.0354. DJe, 30 set. 2015.

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FERNANDO NEVES DA SILVA, CRISTINA MARIA GAMA NEVES DA SILVA
DIREITOS POLÍTICOS E SUAS RESTRIÇÕES
139

CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição de 1988. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1989. v. II.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva,
2007.
MORAES, Alexandre. Direito constitucional. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2005.
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
ZAVASCKI, Teori Albino. Direito políticos. Perda, suspensão e controle jurisdicional. Revista de Informação
Legislativa, v. 31, n. 123, jul./set. 1994.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

SILVA, Fernando Neves da; SILVA, Cristina Maria Gama Neves. Direitos políticos e suas restrições. In:
FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura (Coord.); PECCININ, Luiz
Eduardo (Org.). Direito Constitucional Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 121-139. (Tratado de
Direito Eleitoral, v. 1.) ISBN 978-85-450-0496-7.

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CAPÍTULO 3

O SACRIFÍCIO DOS DIREITOS POLÍTICOS


ATRAVÉS DA PENA DE INELEGIBILIDADE

VÂNIA SICILIANO AIETA

3.1 Apresentação
O presente trabalho tem por objetivo mostrar que, mesmo em pleno século XXI,
existe a tentativa de implementar uma “sociedade punitiva”, fruto de um projeto político
transnacional, que recorre à legislação coercitiva e às táticas policialescas para dispersar
ou reprimir toda e qualquer forma de oposição ao poder das corporações, reprimindo o
dissenso político, através do sacrifício de direitos políticos, assegurados na Constituição
da República, com fins de solidificar o projeto neoliberal.
Nesse sentido, traçamos relações entre a realidade hodierna de criminalização
dos políticos, representantes do povo, eleitos pelo voto popular, com importantes con­
tribuições trazidas por autores que percebem nos efeitos do punitivismo neoliberal
imperante um progressivo desamparo nos direitos fundamentais, notadamente observado
nas constantes e assustadoras flexibilizações dos direitos constitucionais, como no caso da
supressão dos direitos políticos, que são subespécie dos direitos humanos, além do esvaziamento
dos direitos fundamentais assecuratórios da proteção dos cidadãos na processualística penal.
Os efeitos do punitivismo neoliberal sobre a legislação eleitoral, valendo-se de
alicerces teóricos preocupantes, são hoje bastante evidentes. A expansão reinante da
criminalização dos políticos apresenta-se, na maior parte das vezes, de forma velada,
como se não estivéssemos tratando verdadeiramente de problemática penal, mas tão
somente de “condições de elegibilidade”, como se a inelegibilidade não fosse uma pena,
mas sim um “prêmio”.
O cerne da motivação do presente trabalho está no papel ascendente de uma
política penal, inclusive no universo eleitoral, voltada para a prisão, punição e extirpação
de direitos constitucionais através de flexibilizações interpretativas advindas do fenômeno
da pré-compreensão do intérprete, para nos reportarmos aos ensinamentos de superlativa

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
142 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

importância para a hermenêutica constitucional de Konrad Hesse, em sua obra Escritos


de derecho constitucional.1
A intensa demanda e o evidente crescimento por mecanismos de “controle” e
“punição” no universo político, capitaneados pelo Poder Judiciário, sob a égide do
ativismo judicial, com o argumento de combater desvios ético-normativos dos agentes
políticos, têm demonstrado, na realidade, a chamada “judicialização da política”, postura
proativa do supracitado poder no desempenho de suas funções, interferindo de maneira
irregular e significativa nas eleições assim como nas ações políticas dos demais poderes.
Tal realidade repercute negativamente na atividade jurisdicional ao criar a perigosa
possibilidade de politização da função judicante, tão bem vislumbrada pelo professor
português Boaventura de Souza Santos ao asseverar que “a judicialização da política
conduz à politização da justiça”.2
Derivação desta forma de agir, e influindo permanente e sobremaneira no período
pré-eleitoral, é aquilo que podemos chamar de “judicialização do processo eleitoral”,
revelada na excessiva intromissão do Poder Judiciário na atividade política.
Com isso, deflagra-se um indesejável estado de controle político permanente por
parte da Justiça Eleitoral, que não pode se pretender protagonista do processo eleitoral,
intrometendo-se, por vezes indevidamente, no jogo democrático.
Ao revés, cabe a ela assegurar a legalidade e a serenidade dos conflitos políticos
acentuados do processo eleitoral, pois devemos lembrar que a atividade política durante
as eleições não deve ser cerceada, mas tão somente modulada, na medida em que o eidos
caracterizador do processo eleitoral reside na liberdade de expressão política.
Tal realidade é agravada pelos fatores psicológicos inconscientes, que fazem
parte da personalidade de qualquer pessoa e que influem na formação do juízo crítico,
notadamente na capacidade de julgar. Quando esses fatores prevalecem, a isenção do juiz
fica comprometida, independentemente da sua vontade. Nesse sentido, o conhecimento
dos fatores psicológicos do inconsciente do magistrado é indispensável para que o
julgador possa controlá-los e, com isso, conseguir o máximo de imparcialidade na hora
de julgar.
Observa-se ainda com atenta preocupação a policização intensa da natural confli­
tividade política das relações humanas. A Justiça Eleitoral, além de protagonizar a qualquer
preço, inclusive cometendo inconstitucionalidades gravosas, a posição de principal
agente do processo eleitoral, tem conduzido sua atuação maculada por manifestações
midiáticas alicerçadas pelos sentimentos de comoção popular e pela necessidade de
dar satisfação aos anseios de uma sociedade controlada pelos ditames dos meios de
comunicação, porta-vozes das elites, com o objetivo de expurgar da vida pública aquelas
pessoas tidas como indesejáveis e indignas do mandato popular.
Campeia no mundo jurídico, com esteio no credo liberal e conservador, a tentação
de buscar alicerce, no âmbito penal, nas instituições policiais e penitenciárias e, no âmbito
eleitoral, nas condenações às penas de inelegibilidade, através da defesa do encarceramento
e, em especial, conforme já asseverado, pela punição mais cruel aos representantes eleitos
pelas classes menos favorecidas que é a inelegibilidade, um verdadeiro “banimento do
mundo político”, condenando-se tais representantes à invisibilidade política.

1
HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional. Madrid: Centro, 1998.
2
SANTOS, Boaventura Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. Lisboa: Cortez, 1998.

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VÂNIA SICILIANO AIETA
O SACRIFÍCIO DOS DIREITOS POLÍTICOS ATRAVÉS DA PENA DE INELEGIBILIDADE
143

É possível observar que parte significativa dos meios de comunicação vêm


paulatinamente apresentando “fontes” pouco confiáveis e, o pior, se prestando a
interesses pouco nobres, pois sabem muito bem os prejuízos que eleitoralmente podem
causar aos candidatos através de veiculações que faltam com a verdade dos fatos.
Essas notícias falaciosas (fake news), vale-se dizer, divorciadas e distintas do direito
constitucional à liberdade de expressão, tornam-se agravadas quando o momento da
ofensa se dá no período eleitoral, trazendo prejuízos acentuados ao candidato, ao macular
sua imagem com uma notícia mentirosa, perante seus eleitores.
Não se trata a presente pesquisa de sustentar limitação à liberdade de informação,
tampouco ao direito constitucional de crítica. Os políticos experientes que sabem e são
cônscios das regras do jogo democrático suportam com resignação e autocontrole pessoal
os dissabores advindos da vida pública e das disputas eleitorais. Mas o presente estudo
se foca nos casos em que não estamos diante de subjetividades e de exercício democrático
de liberdade de expressão e direito constitucional de crítica.
São incidentes, cada vez mais presentes em nossa sociedade, que podem ser
configurados como casos em que pode se limitar a liberdade de informação, pois revelam
a veiculação de notícia inverídica.
Nesse sentido, vale a lembrança, que será explorada na presente pesquisa, da
figura do Homo Sacer, desenvolvida na obra de Giorgio Agamben, uma enigmática
figura trazida do direito criminal romano arcaico, que era um ser humano que podia ser
morto por qualquer um impunemente, mas que não devia ser sacrificado segundo as normas
prescritas pelo rito.3
O trabalho intenciona correlacionar tal figura com os párias da política, os desafetos
dos meios de comunicação, que podem, na sociedade atual, ser destruídos tanto moral
como politicamente, achincalhados pela imprensa e pela televisão, sem possibilidade de
defesa equânime e adequada e, por fim, julgados além dos limites do “estado de exceção”,
conforme a tese enunciada por Günther Jakobs, doutrinador alemão que a sustenta
com base em políticas públicas de combate à criminalidade interna e/ou internacional.4

3.2 O asseguramento constitucional dos direitos políticos


A democracia participativa foi positivada pela Constituição de 1988, pelo seu
art. 1º, parágrafo único, ao estabelecer que a eleição de representantes não é a única
forma de exercício do poder político. Somente através da sedimentação da democracia
participativa, poderá ser possível alcançar um direito constitucional de luta e de
resistência, para parafrasearmos os ensinamentos do mestre Paulo Bonavides.
Além dos mecanismos expressos de exercício da soberania popular, previstos
no art. 14 da Constituição brasileira de 1988, e pulverizados ao longo da Carta Magna
em dispositivos como os arts. 194, VII, 198, III, 204, II, 206, VI, e 277, §7º, o princípio
constitucional à participação política tem como pilares quatro princípios cardeais
correlacionados, que compõem a estrutura constitucional da democracia participativa.

3
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.
4
JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho penal del enemigo. Madrid: Thomson-Civitas, 2003.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
144 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Tais princípios correlatos ao princípio da participação política são o princípio da


dignidade da pessoa humana, o da soberania popular, o da soberania nacional e o da unidade
da Constituição.
Esses elos demonstram vínculos entre os direitos políticos e os direitos humanos.
Os direitos políticos, por tratarem do direito de participação das pessoas no poder político
do Estado, estão inseridos no universo dos direitos humanos por serem fundamentais
para a existência dos direitos sociais, econômicos e individuais.
Na moderna doutrina dos direitos humanos, os direitos políticos estão conca­
tenados com outros direitos fundamentais. Para uma democracia que assegure os direitos
de participação política, Luis Sanches Agesta advoga:

Los derechos políticos están intimamente vinculados a la estrutura misma del regimen
político, porque son derechos de participación. Non significan, como los derechos
individuales, uma esfera de autonomía o un limite de la acción del poder público, ni, como
los derechos sociales, uma demanda que ha de ser satisfecha por el Estado. Son como los
derechos públicos, con los que a veces tienen uma línea de separación casi inapreciable,
derechos de participación. Pero con un objeto distinto del que corresponde a las liberdades
o los derechos públicos, aunque estén intimamente relacionados con ellos. Las libertades
o derechos públicos suponen una participación que repercute directamente sobre las
corrientes de opinión; contribuyen a formar la opinión u son “libertades” que expresan
el pluralismo de crencias y opiniones. Los derechos políticos significan una participación
directa en las decisiones del poder político u se les configurar como una “libertad”, en
cuanto representan una capacidad de elección sobre la organización misma del poder, las
personas que han de ejercerlo o las decisiones misma del poder, las personas que han de
ejercerlo o las decisiones mismas que este adopta.5

O modelo liberal de representação política tem sido criticado e, sobretudo,


demonstra-se desacreditado, tal como se fosse algo irreal. E, com o advento do consti­
tucionalismo material, no decorrer do século XX, propiciou uma ambiência mais favorável
ao avanço da qualidade da representação política. No século XIX, os parlamentos eram
compostos por “notáveis” e o “povo” deveria ficar afastado do poder. Por isso, o sufrágio
restrito excluía da participação político-eleitoral um enorme contingente de pessoas,
fazendo com que os representantes eleitos não fossem ungidos pelo voto da maioria.6
Os partidos socialistas contribuíram bastante para mudanças na natureza da
representação. Em primeiro lugar, os deputados socialistas não eram porta-vozes dos
interesses burgueses. Além disso, os partidos socialistas exerciam uma fiscalização
ideológica severa sobre os representantes eleitos pelas suas legendas, fazendo com que
o mandato representativo se transformasse, em nível prático, não em um mandato civil,
mas sim em um mandato imperativo partidário.7
Porém, não obstante a organização da classe operária e a sedimentação dos
partidos políticos no bojo do constitucionalismo material, a classe trabalhadora custou

5
ROBERT, Cinthia; MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Teoria do Estado, democracia e poder local. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2000. p. 79.
6
ROBERT, Cinthia; MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Teoria do Estado, democracia e poder local. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2000. p. 80.
7
ROBERT, Cinthia; MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Teoria do Estado, democracia e poder local. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2000. p. 81.

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VÂNIA SICILIANO AIETA
O SACRIFÍCIO DOS DIREITOS POLÍTICOS ATRAVÉS DA PENA DE INELEGIBILIDADE
145

a se conscientizar da importância de votar em representantes que verdadeiramente


espelhassem a sua classe social.
Habermas, ao analisar o modelo clássico da esfera pública burguesa, considera que
a dimensão pública penetra em esferas cada vez mais significativas da sociedade. Por
outro lado, assinala que, ao revés, a função política tem se esvaziado significativamente,
na medida em que os fatos públicos não são, como deveriam ser, submetidos a um
controle político eficaz por um público crítico e preparado para a tomada de decisão política.
As novas relações entre direito e democracia exigem uma política que direcione
e reproduza um espaço comunitário mais participativo, assecuratório do exercício real
do kratos por parte do demos, compreendendo estratégias de ação transformadoras pela
participação ativa dos cidadãos. Tais tendências advogam paradigmas diferenciados,
divorciando-se da perspectiva jurídica liberal-individualista ao elegerem políticas
democráticas assentadas na descentralização, na participação popular, no poder local,
no controle das bases e no sistema de conselhos.8
Urge a noção de comunidade, sendo essa totalmente distinta do modelo liberal-
capitalista, ainda que mitigado pelas estratégias sociais e assistencialistas do welfare-
state. O novo modelo de comunidade impõe mecanismos mais dinâmicos, propiciando
a participação efetiva e concreta dos cidadãos, legitimando, em nível institucional,
politicamente, os movimentos sociais.
Sobre o assunto, vale ressaltar a lição de André Franco Montoro, ao sustentar a
existência de dois caminhos para realizar as transformações de sentido comunitário:
primeiramente, pela adoção de processos comunitários ou de participação. Segundo, pela
defesa e fortalecimento das comunidades intermédias em todos os níveis de vida social.9
Antônio Carlos Wolkmer considera que, na medida em que a democracia burguesa
formal e o sistema partidário envelhecem e não absorvem nem canalizam as demandas
sociais, surgem, naturalmente, condições de participação para as novas entidades
coletivas insurgentes. Por isso, muitas reivindicações e lutas políticas passam ao largo
dos partidos políticos e sindicatos, desaguando para os espaços públicos participativos
mais “abertos”.10
A Constituição brasileira de 1988 reza, em seu art. 14, os instrumentos de
democracia participativa, in verbis:

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e
secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
I - plebiscito;
II - referendo;
III - iniciativa popular.

8
WOLKMER, Antônio Carlos. Direito e democracia. Direito, Estado e sociedade, Rio de Janeiro, n. 5, p. 1-8, ago./dez.
1994. p. 1.
9
André Franco Montoro, em “Liberdade, participação, comunidade”, comunicação apresentada no II Congresso
Brasileiro de Filosofia Jurídica e Social, promovido pelo Instituto Brasileiro de Filosofia, realizado na USP, de 1 a
5.9.1986, p. 6-7 apud WOLKMER, Antônio Carlos. Direito e democracia. Direito, Estado e sociedade, Rio de Janeiro,
n. 5, p. 1-8, ago./dez. 1994. p. 3.
10
WOLKMER, Antônio Carlos. Direito e democracia. Direito, Estado e sociedade, Rio de Janeiro, n. 5, p. 1-8, ago./dez.
1994.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
146 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

No entanto, existem outros dispositivos constitucionais, também assecuratórios da


democracia, que se encontram pulverizados ao longo da Constituição, como exemplo a
participação da comunidade na gestão de políticas públicas (arts. 194, VII, 198, III, 204,
II, 206, VI e 227, §7º).
Isso pode ser explicado pelo fato de a democracia participativa estar positivada
no art. 1º, parágrafo único, rezando que a eleição de representantes não é a única forma
de exercício do poder político.11 Assim, estabelece a Constituição:

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Mas, embora a Constituição brasileira de 1988 tenha adotado os mecanismos de


exercício da soberania popular, estabelecidos no art. 14, não fez a inclusão do recall, não
obstante os esforços do constituinte Lysâneas Maciel, entusiasta da matéria, que tentou
almejar a aprovação de uma versão nacional do instituto, denominada voto destituinte.
O recall, também chamado de revogação, é o instrumento pelo qual, a requerimento
de certo número de eleitores, o mandato de um parlamentar ou de um funcionário eletivo
é submetido à apreciação do voto popular, sendo revogado se não obtiver confirmação.
O recall judicial também é aceito em algumas constituições estaduais dos Estados Unidos,
consistindo na revogação das decisões judiciais.
É inegável que o exercício da soberania popular, pela via da democracia parti­
cipativa, propicia um maior controle em termos de intensidade e de qualidade dos
cidadãos sobre o governo, dos governados sobre os governantes.
Entre os principais institutos de participação política conjugada pode-se apontar
a petição, o plebiscito, o referendo, a iniciativa popular legislativa, o veto popular legislativo e
a opção popular ou local option ou optional charter system.12
A petição tem por escopo uma solicitação às entidades representativas para que se
supra uma necessidade de interesse individual ou coletivo através de uma providência
legislativa, não se confundindo com a iniciativa popular legislativa em razão da petição
ser um ato individual, sem a exigibilidade de proposta definida nem percentual de
eleitores participantes.13
No Brasil, foi consagrada pelo art. 5º, inc. XXXIV, alínea “a”. Significa:

a faculdade reconhecida ao indivíduo ou grupo de indivíduos de se fazer ouvir por


quaisquer autoridades públicas para que se atenda uma necessidade de interesse particular
ou coletivo, seja com reclamações, seja com solicitações de variada natureza.14

Faz-se da maior importância asseverar que o direito de petição, em nível consti­


tucional, possui um caráter político, diferenciando-se das exigibilidades impostas à

11
Tal perspectiva possui sua geratriz no constitucionalismo ibérico, notadamente nas Cartas portuguesa, de 1976
e espanhola, de 1978, ambas influenciadas pela Lei Fundamental de Bonn, que transformou demandas, outrora
existentes exclusivamente no universo da doutrina, em direitos fundamentais.
12
SGARBI, Adrian. O referendo. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 101.
13
SGARBI, Adrian. O referendo. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 102. Adrian Sgarbi adverte que, malgrado os “ares
corriqueiros”, o instituto da petição, previsto na Constituição da República italiana, art. 50, tem utilização quase
nula.
14
SGARBI, Adrian. O referendo. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 104.

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VÂNIA SICILIANO AIETA
O SACRIFÍCIO DOS DIREITOS POLÍTICOS ATRAVÉS DA PENA DE INELEGIBILIDADE
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formulação e apresentação das petições no universo do direito processual civil. Assim,


são permitidas e asseguradas petições até mesmo para o presidente da República e o
Congresso Nacional.
O plebiscito15 formula-se como um instrumento que tem por fito “fornecer
ao governo uma pronúncia ou decisão dos eleitores sobre um fato, um assunto ou
acontecimento”.16 Tal instituto apresenta variantes de acordo com o ordenamento jurídico
e a doutrina que estejam sendo examinados. Se diferencia do referendo na medida que
é uma decisão política sobre uma situação atual ou futura enquanto o referendo visa à
aprovação popular de um ato normativo. O plebiscito também pode ser utilizado sobre
um fato já sucedido ou como consulta política acerca de uma decisão, desde que não se
esteja tratando de lei já aprovada.17
Por sua vez, em se tratando do referendo, esse instituto consiste na “submissão
ao eleitorado de todas ou algumas normas, após terem vigência, ou mesmo antes, para
constituí-las, revogá-las, conservá-las ou modificá-las”.18 Há de se inferir que a sua
característica principal é a de que deve versar sobre matéria normativa. Meirelles Teixeira
considera o referendo o instituto mais diretamente relacionado com as falhas e as ficções
do regime representativo,19 já que os cidadãos tomam parte da tarefa legislativa, ao
aprovar ou repelir medidas de caráter legislativo, leis ou projetos de leis. O referendo
pode ser obrigatório ou facultativo,20 efetuar-se antes ou depois de concluída a tarefa
legislativa,21 ter caráter político ou jurídico22 ou ser legislativo ou constituinte.23
A iniciativa popular legislativa tem por função dar andamento à sequência
procedimental que poderá terminar com a formação de um direito novo,24 através do
deferimento de certa parte ou percentual do eleitorado, a possibilidade de encaminhar
um projeto de lei ou apenas apresentar ao Poder Legislativo um documento com as

15
Adrian Sgarbi, ao dissertar acerca das origens do plebiscito, ensina in verbis: “Em Roma, durante o período da
República, se chamava plebiscitum a decisão soberana da plebe aprovada em assembléia (= concilium plebis),
decorrente da proposta inicial de um tribuno sobre uma medida que, graças a Lex Valeria Horatia de Plebiscitis
(± 449 a.C.), somente obrigaria os plebeus, constituindo uma das modalidades das Leges Rogatae. Sendo
certo que, após a Lex Hortencia de Plebiscitis (± 286 a.C.), foi também estendida aos patrícios, tornando-se de
manifestação obrigatória para todos” (SGARBI, Adrian. O referendo. Rio de Janeiro: Renovar, 1999).
16
SGARBI, Adrian. O referendo. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 108.
17
TEIXEIRA, José Horácio Meirelles; GARCIA, Maria (Org.). Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1991. p. 475.
18
SGARBI, Adrian. O referendo. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 111.
19
TEIXEIRA, José Horácio Meirelles; GARCIA, Maria (Org.). Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1991. p. 475.
20
Meirelles Teixeira explica que o referendo obrigatório ocorre quando a manifestação do corpo eleitoral constitui
elemento imprescindível na elaboração e validade das leis. Por outro lado, se for facultativo tem o caráter de uma
mera faculdade de que podem lançar mão o próprio corpo legislativo, o Executivo, uma parte do eleitorado ou
os estados federados nos países de regime federativo (TEIXEIRA, José Horácio Meirelles; GARCIA, Maria (Org.).
Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991).
21
Nesse caso, denomina-se referendo pré-legislativo ou pós-legislativo.
22
Será um referendo político quando tiver caráter consultivo, ou seja, quando não obrigar o Legislativo nem o
Executivo, tendo exclusivamente a missão democrática de saber a opinião dos eleitores, com a finalidade de
harmonizar os poderes constituídos com a opinião pública. Quando for um referendo jurídico, participará de
fato da formação da lei, ao aprová-la ou rejeitá-la. Nesse caso, assevera Meirelles Teixeira, constitui-se como um
genuíno veto popular (TEIXEIRA, José Horácio Meirelles; GARCIA, Maria (Org.). Curso de direito constitucional.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991).
23
O referendo constituinte apresenta-se como uma forma, mais democrática, de emenda ou revisão constitucional,
submetendo à aprovação popular as modificações constitucionais.
24
SGARBI, Adrian. O referendo. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 113.

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148 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

diretrizes da matéria para ser atribuída forma e conteúdo, desde que sejam respeitadas
as regras do processo de feitura das leis. Assim, faculta-se aos eleitores a possibilidade
de se iniciar uma proposta legislativa tendente à adoção de norma constitucional ou
infraconstitucional.25
A iniciativa popular é um processo eleitoral através do qual certos percentuais
do eleitorado podem propor a iniciativa de mudanças constitucionais ou legislativas
mediante a assinatura de petições formais que sejam autorizadas pelo Poder Legislativo
ou por todo o eleitorado. Segundo a Constituição de 1988 é a atribuição de competência
legislativa ao povo eleitor para o início do processo de formação da lei, seja no plano
federal (art. 61, II, §2º), ou no plano estadual (art. 27, §4º).
O veto popular, por sua vez, possibilita aos cidadãos, por uma votação de norma
que ainda não esteja em vigor, obstarem seu ingresso no ordenamento jurídico, por
força de rejeição eleitoral expressa.26
Por fim, a opção popular, nos dizeres de Adrian Sgarbi, significa “a pronúncia
do povo sobre uma questão da administração ou do legislativo com a finalidade de se
determinar a escolha entre duas ou mais medidas a serem tomadas”.27
Os instrumentos da democracia semidireta apresentam vantagens como a concre­
tização efetiva do princípio da identidade entre o demos e o kratos, a correção dos erros e
omissões dos corpos legislativos de representação, a diminuição da corrupção moral dos
representantes ligados a interesses divorciados dos representados e um maior combate
ao imobilismo das assembleias. Ao revés, pode ocorrer um aumento no grau de instabi­
lidade política já que o povo pode revogar, em um espaço de tempo mais breve, suas
próprias decisões. Além disso, pode-se apontar o aumento da falsa propaganda e da
demagogia, da manipulação das massas e até mesmo maiores dispêndios acarretados
pelas frequentes consultas populares.28
A democracia semidireta também se apresenta como um instrumento concre­
tizador dos movimentos sociais. Dalmo de Abreu Dallari, ao analisar o tema, sugere
um rol de modalidades de participação no âmbito dos poderes constituídos. Em se
tratando de mecanismos de participação popular, no âmbito do Poder Legislativo, o
autor apresenta seis diretrizes com fins de assegurar uma democracia de base, a saber:
o poder de “iniciativa legislativa” da comunidade com a consequente vinculação para
os representantes (as propostas legislativas da população não devem ser mera sugestão,
pois serão obrigatoriamente discutidas e aprovadas pela assembleia ou parlamento); a
prática do “plebiscito” enquanto consulta de caráter geral sobre assuntos fundamentais;
o exercício do referendum para a aceitação ou rejeição de medidas legislativas; o
pronunciamento da comunidade através do “veto popular” sobre determinado projeto
de lei; a convocação de “audiências públicas”, com a inscrição prévia da população, para
deliberar sobre futuros projetos e o ato de renovação do mandato e a reconfirmação tanto
do representante político quanto do servidor público comunitário.29

25
SGARBI, Adrian. O referendo. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 117.
26
SGARBI, Adrian. O referendo. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 118.
27
SGARBI, Adrian. O referendo. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 119.
28
TEIXEIRA, José Horácio Meirelles; GARCIA, Maria (Org.). Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1991. p. 481.
29
WOLKMER, Antônio Carlos. Direito e democracia. Direito, Estado e sociedade, Rio de Janeiro, n. 5, p. 1-8, ago./dez.
1994. p. 5.

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VÂNIA SICILIANO AIETA
O SACRIFÍCIO DOS DIREITOS POLÍTICOS ATRAVÉS DA PENA DE INELEGIBILIDADE
149

Por sua vez, os mecanismos de participação popular, na esfera do Poder Executivo


podem ser visualizados na participação do povo no planejamento, na consulta à
comunidade sobre proposta ou projeto orçamentário, na representação da comunidade
em órgãos consultivos e na direção de entidades de administração descentralizada e na
participação da população no exercício de um poder de controle para facilitar o direito
à informação.30
Por fim, no Poder Judiciário, a prática participativa da comunidade na administração
da justiça implica o real asseguramento de um concreto acesso a ela, com a criação de
tribunais distritais, centros de promoção de justiça nos bairros, comissões de apelação e
arbitragem, comitês de conciliação e mediação e sobretudo o controle externo dos atos
administrativos do Judiciário, salvaguardando as garantias dos magistrados (rezadas nos
arts. 93, 95, 96 e 125 da Constituição brasileira de 1988)31 e a sua independência em relação
aos atos jurisdicionais propriamente ditos e aos atos jurisdicionais impropriamente
ditos.32
No que tange ao papel do juiz no processo de aprimoramento da democracia,
vale ressaltar que a sentença não é um pedaço de lógica ou uma norma pura, mas sim
uma criação humana da inteligência, da vontade e do espírito do homem. Por isso, o juiz
não deve ser visto como um lógico que tem a lei como premissa maior, o caso concreto
como premissa menor e a sentença como conclusão.
Holmes, afirma que, antes de tudo, o juiz é um engenheiro social. Não se pode
negar a importância do juiz como elemento necessário à produção de uma democracia
participativa. Porém, há de se separar a decisão do juiz dos seus impulsos, ambições,
paixões e debilidades, pois o homem é fruto dos seus valores.
Contudo, sabemos que os direitos políticos, como desdobramento do princípio
estruturante insculpido no art. 1º, parágrafo único da Constituição da República, se
con­sagram nos direitos atribuídos ao cidadão, que lhe permitem, por meio das mais
diversas técnicas e instrumentos, desde os postulados mínimos da caracterização de uma
democracia, tais como o voto universal, direto, secreto, periódico, igual, livre, persona­
líssimo, até os mecanismos de asseguramento da qualificação da participatividade em
uma democracia.

3.3 A necessária distinção entre ativismo judicial e judicialização da


política
Há uma distinção entre ativismo judicial e judicialização da política. A interpreta­ção
constitucional vem paulatinamente propiciando maior espaço, não só no Brasil, mas
também em outros países, para o ativismo judicial e consequentemente para interpre­
tações mais extensivas da Constituição.

30
WOLKMER, Antônio Carlos. Direito e democracia. Direito, Estado e sociedade, Rio de Janeiro, n. 5, p. 1-8, ago./dez.
1994. p. 5.
31
Essa tese defende o controle externo do Judiciário, pela sociedade, no que tange aos atos judiciários de natureza
exclusivamente administrativa.
32
São considerados os atos propriamente ditos quando a função jurisdicional se desenvolve em um universo de con­
flito de interesses a serem resolvidos. Ao revés, se a atividade se realiza num processo em que inexiste conflito de
inte­resses, por não haver pretensão, denomina-se ato jurisdicional impropriamente dito. Portanto, quando inexiste
controvérsia, o processo é contencioso e, quando inexiste litígio, o processo é chamado de voluntário ou gracioso.

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150 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Essa conjuntura de maior engajamento dos juízes através do ativismo judicial


deflagra consequências no papel constitucional da divisão de poderes e na concretização
do princípio da segurança jurídica, suscitando preocupações quanto ao balizamento dos
processos hermenêuticos.
Não se trata de criticar o ativismo judicial positivo, mas buscar fronteiras objetivas,
limites na atuação do Poder Judiciário, pois afinal “quem controlará os controladores”33
se essa dimensão permanecer sem parâmetro apropriado.
Há de se buscar uma análise crítica do ativismo judicial, e sua distorção que é a
judicialização da política, em matéria constitucional. Nesse sentido, deve-se dar maiores
atenções à dicotomia atualmente observada entre um positivismo político moderado, no
esteio de Norberto Bobbio, e os levantes pós-positivistas da atualidade, que mais do que
se apresentarem como pós-positivistas, revelam-se na realidade como antipositivistas. Na
linha de defesa do positivismo moderado de Bobbio, alicerçada na moderna teoria da
interpretação, encontramos um caminho que metodologicamente permite a interação
entre princípios e regras.
É importante salientar que a análise dessa problemática implica a divisão
constitucional dos poderes, como já asseverado, e na necessária identificação entre
o momento da legislação e o momento da jurisdição, afastando-se as teses defensoras de
um ativismo judicial que confere ao magistrado-intérprete uma competência elástica
e subjetivizada com o fito de esclarecer a mens legis das normatividades insertas na
Constituição brasileira, alargando o balizamento da interpretação para ir até mesmo
além do que a Constituição estabeleceu e, por vezes, manifestando-se contrariamente
ao que dita a Carta Magna brasileira.34
Ao revés, ressaltamos o valor do garantismo jurídico, expressão do princípio da
legalidade, em matéria de interpretação constitucional, pois esse está isolado dos juízos
políticos de valor, manifestos nas interpretações maculadas pela ideologia e pelo legado
axiológico do magistrado no momento de proferir a decisão.
A análise dos fatores psicológicos inconscientes e na necessária observância do
legado axiológico pessoal do magistrado na construção da decisão judicial também é
um vetor analítico que não pode ser desconsiderado.
Não há norma jurídica, por mais clara e evidente, que não demande uma inter­
pretação. O legislador apresenta uma “linguagem seca”. Por isso, o juiz e o aplicador
do direito têm a tarefa de dar vida à norma. Na análise da problemática da herme­
nêutica constitucional, três alicerces irão se constituir como fundamentais à boa e
correta compreensão da norma. São eles o texto em si (corpus da norma), o intérprete (e
consequentemente seu legado pessoal) e a interpretação.
Deve-se considerar também que a interpretação constitucional apresenta um perfil
peculiar, pois contém em seu bojo um conteúdo ideológico. Assim, a atividade central da
aplicação da norma reside na interpretação, sendo o intérprete responsável pelo conteúdo
real da norma.

33
Clássica pergunta ressaltada pelo Professor Celso Lafer ao tratar da matéria, fazendo referência à obra DELMAS-
MARTY, Mireille. La refondation des pouvoirs. Paris: Seuil, 2007, em especial p. 38; 41-43; 67.
34
BOBBIO, Norberto. Formalismo juridico e formalismo ético. In: BOBBIO, Norberto; RUIZ MIGUEL, Alfonso
(Org.). Contribución a la teoria de derecho. Valencia: Fernando Torres, 1980. p. 105-117.

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O SACRIFÍCIO DOS DIREITOS POLÍTICOS ATRAVÉS DA PENA DE INELEGIBILIDADE
151

Nesse sentido, a importância de interpretar a Constituição é fundamental, dado o


caráter aberto, vago e plurissignificante de muitas de suas normas.35 Além disso, através
da interpretação, torna-se possível o conhecimento dos “íntimos significados de uma
Constituição”.36
Hoje, a hermenêutica da interpretação é entendida como um processo de compreen­
são de sentido, comportando a compreensão do texto com o papel desempenhado pelo
intérprete e seu legado pessoal na composição e construção da interpretação.37 Há de se
invocar na compreensão do significado das palavras que integram o texto, o contexto no
qual elas se inserem. Além da questão de se analisar o contexto, a moderna hermenêutica
trata, também, da problemática da pré-compreensão do intérprete, o que Gadamer
denomina “os preconceitos do intérprete”.38

3.4 O sacrifício dos direitos políticos através da pena de inelegibilidade


Não se pode esquecer que o sistema midiático tem a capacidade de fixação de
ideologias, interferindo sensivelmente na formação da opinião pública e na construção
do imaginário social.
Desse modo, o mito do “bom juiz” vai sendo paulatinamente construído nas men­
ta­lidades tal como se fosse um grande herói, de modo que, quando o momento deman­
dado se fizer “necessário”, o grande herói poderá desconsiderar direitos fundamentais
assegurados constitucionalmente, pois estes serão considerados, pela mass media, tão
somente como óbices indesejáveis à luta do magistrado pela “moralização do país”.
Então, por ignorância absoluta das regras do jogo democrático, a multitudo,39
conceito-chave do pensamento político de Espinosa (o filósofo prefere não usar o
termo povo), define o sujeito político o qual é portador da soberania,40 perfazendo-se,
no caso brasileiro, na parcela da população advinda do lumpesinato, a classe média
baixa com sua tradicional postura conservadora e de ascensão social e outros tantos por
compromisso ideológico revelado ou contido com posturas autoritárias, que considerará
o “bom juiz” justamente aquele que desconsiderar os direitos fundamentais assegurados
pela Constituição do país. Porque tais direitos atrapalhariam o caráter messiânico do
“salvador da pátria”.41
Espinosa considera que a expressão multitudo é a condição natural dos humanos
determinada pelos conflitos das paixões (medo, esperança, amor, ódio, ambição, inveja,

35
SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem constitucional: construindo uma nova dogmática jurídica. Porto Alegre: Sergio
Antônio Fabris, 1999. p. 113.
36
TEIXEIRA, José Horácio Meirelles; GARCIA, Maria (Org.). Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1991. p. 266.
37
Maria Garcia, lições de classe.
38
PÉREZ LUÑO, Antonio E. Derechos humanos, Estado de Derecho y Constitución. 5. ed. Madrid: Tecnos, 1995. p. 264.
39
Espinosa retoma o conceito republicano de que todo poder vem do povo (ESPINOSA, Baruch. Tratado teológico-
político. São Paulo: Martins Fontes, 2008).
40
GUERRA FILHO, Willis Santiago; CARNIO, Henrique Garbellini. Teoria política do direito: a expansão política do
direito. 2. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 7, nota 1 sobre estudos de Marilena
Chauí, notável estudiosa brasileira sobre Espinosa.
41
Espinosa considera que a expressão multitudo é a condição natural dos humanos determinada pelos conflitos das
paixões (medo, esperança, amor, ódio, ambição, inveja, ciúme, cólera, desejo de fama e de glória, generosidade,
compaixão), não sendo um sujeito coletivo homogêneo desejoso de liberdade, mas heterogêneo e sobretudo
passional (ESPINOSA, Baruch. Tratado teológico-político. São Paulo: Martins Fontes, 2008).

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152 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

ciúme, cólera, desejo de fama e de glória, generosidade, compaixão), não sendo um sujeito
coletivo homogêneo desejoso de liberdade, mas heterogêneo e sobretudo passional.
Ensina-nos Espinosa, em seu Tratado teológico-político,42 que a multitudo pode ser
um animal feroz e perigoso a ser tratado com prudência e muita precaução. Nesse sentido,
vale ressaltar, no esteio do magistério acadêmico de Marilena Chauí, notável filósofa e
estudiosa maior do pensador no Brasil, que Espinosa presenciou o assassinato, em praça
pública, de dois governantes republicanos, massacrados nas ruas pela multidão agressiva e
estimulada pela mídia de época, que eram os pregadores calvinistas então defensores da
monarquia.43
A passagem supracitada é deveras significativa para que não se idealize romanti­
camente a multitudo, pois, elogiando o pensador florentino, Espinosa destaca a assertiva
maquiavélica de que:

toda sociedade está dividida entre o desejo dos grandes de oprimir e comandar e o desejo do
povo de não ser oprimido nem comandado e que esse desejo, por ser puramente negativo
(não ser oprimido, não ser comandado), precisa assumir uma positividade que o realize,
ou seja, uma política republicana e democrática.44

Nos dias de hoje, no Brasil, encontramos uma situação bastante assemelhada.


Setores conservadores da sociedade, que até então se mantinham silenciosos e no
anonimato, muitos herdeiros do período ditatorial que o país atravessou, profundamente
insatisfeitos com as conquistas sociais das camadas mais baixas da sociedade brasileira,
capitaneados por associações de classe e por uma mídia profundamente agressiva na
defesa de um país conservador em suas práticas sociais e políticas, e com um projeto
econômico liberal que alavanque os interesses do empresariado nacional, insuflam a
classe média baixa e o lumpesinato em uma rotina de atitudes violentas nas ruas, nos
ambientes laborais e privados e nas mídias sociais.
Os setores progressistas, com práticas e pensamento humanista, acuados pelas
acusações de corrupção governamental, têm sido objeto de um patrulhamento ideológico
brutal e coercitivo em todos os campos de atuação da vida pública e até mesmo no
universo privado.
Observa-se, ainda, com atenta preocupação a policização intensa da natural confli­
tividade política das relações humanas. O Poder Judiciário, além de protagonizar, inclusive
cometendo inconstitucionalidades gravosas, a posição de principal agente do processo
eleitoral, tem conduzido sua atuação maculada por manifestações midiáticas alicerçadas
pelos sentimentos de comoção popular e pela necessidade de dar satisfação aos anseios
de uma sociedade controlada pelos ditames dos meios de comunicação, porta-vozes das
elites, com o objetivo de expurgar da vida pública aquelas pessoas tidas como indesejáveis
e indignas do mandato popular, malgrado sejam estas, independentemente de juízos
de valor, representantes eleitos pela vontade popular.

42
ESPINOSA, Baruch. Tratado teológico-político. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
43
GUERRA FILHO, Willis Santiago; CARNIO, Henrique Garbellini. Teoria política do direito: a expansão política do
direito. 2. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 7, nota 1. Marilena Chauí, citada nessa
nota, ressalta que Espinosa escreveu um cartaz que ia levar às ruas e que dizia ultimi barbarorum, “os últimos
bárbaros”, mas foi impedido por amigos que clamaram por sua segurança diante do perigo.
44
ESPINOSA, Baruch. Tratado teológico-político. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

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O SACRIFÍCIO DOS DIREITOS POLÍTICOS ATRAVÉS DA PENA DE INELEGIBILIDADE
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Nesse sentido, vale ressaltar a lembrança preciosa do magistério acadêmico de


Loïc Wacquant ao advertir-nos:

a desqualificação da Política, principalmente no registro paroxístico que poderíamos


caracterizar como antipolítica, encontrou na criminalização o mais poderoso dos instru­
mentos, na dependênciacontudo da publicidade espetaculosa dos procedimentos concretos
[...] os patíbulos operísticos do antigo regime foram substituídos pelo pelourinho virtual,
atado ao qual o padecente já não vê desfilar diante de sua vergonha os curiosos da praça,
mas é sua própria imagem que desfila, angustiada e impotente, por dezenas de milhares
de lares.45

Buscamos demonstrar que, mesmo diante da legitimidade da insatisfação da


“sociedade organizada”, não cabe ao Poder Judiciário agir na esteira do que considera
indignante, mas sim prestar a jurisdição, atento às leis e, principalmente, ao arcabouço
constitucional vigente. Até porque os mesmos atores que protestam em face dos
representantes eleitos são os que os elegem.
Nesse sentido, almeja-se traçar relações entre a realidade hodierna de criminalização
dos políticos, representantes do povo, eleitos pelo voto popular, com importantes
contribuições trazidas por autores que percebem nos efeitos do punitivismo neoliberal
imperante um progressivo desamparo nos direitos fundamentais, notadamente observado
nas constantes e assustadoras flexibilizações dos direitos constitucionais, como no caso da
supressão dos direitos políticos, que são subespécie dos direitos humanos, além do esvaziamento
dos direitos fundamentais assecuratórios da proteção dos cidadãos na processualística penal.
Como já asseverado na apresentação deste trabalho, os efeitos do punitivismo
neoliberal sobre a legislação eleitoral, valendo-se de alicerces teóricos preocupantes,
são hoje bastante evidentes. A expansão reinante da criminalização dos políticos
apresenta-se, na maior parte das vezes, de forma velada, como se não estivéssemos
tratando verdadeiramente de problemática penal, mas tão somente de “condições de
elegibilidade”, como se a inelegibilidade fosse um “prêmio” e não uma “pena”.
O alicerce teórico e ideológico das reflexões propostas encontra esteio nos escritos
de Loïc Wacquant, a partir de seu emblemático artigo publicado no Le Monde Diplomatique:
“Esse vento punitivo que sopra da América”.
Partindo dos trabalhos científicos de Wacquant, encontramos em sua obra Onda
punitiva a ideia que o retorno à prisão se perfaz como uma resposta à insegurança social e
não à insegurança criminal. Além disso, a referência do autor acerca da responsabilidade
individual é deveras oportuna. Ao empreendimento neoliberal no campo do direito
penal, assim como no direito eleitoral, não interessa a discussão das causas, das situações
que ensejam os problemas, mas apenas as responsabilidades individuais.
O cerne da motivação do presente estudo está no papel ascendente de uma
política penal, inclusive no universo eleitoral, voltada para prisão, punição e extirpação
de direitos constitucionais através de flexibilizações interpretativas advindas do fenômeno
da pré-compreensão do intérprete, para nos reportarmos aos ensinamentos de superlativa
importância para a hermenêutica constitucional de Konrad Hesse, em sua obra Escritos
de derecho constitucional.46

45
BATISTA, Nilo. Merci, Loïc. In: BATISTA, Vera Malaguti (Org.). Loïc Wacquant e a questão penal no capitalismo
neoliberal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2012.
46
HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional. Madrid: Centro, 1998.

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154 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Nesse sentido, vale aduzir o brilhante excerto do eminente Professor Nilo Batista,
em seu artigo Merci Loïc,47 ao comentar o problema:

Não se discutirão jamais as práticas do capitalismo financeiro – mas pode existir um


banqueiro desonesto, como aquele czar do NASDAC hoje encarcerado. Não se discutirão
jamais as opressões do latifúndio - mas pode haver um fazendeiro que mande matar a
missionária que está organizando a resistência dos camponeses. Não se discutirão jamais
as feridas abertas em Pachamama – mas poderemos acompanhar pela televisão o processo
contra o diretor da fábrica na qual ocorreu o último vazamento.

Do mesmo modo, não se discutirão no habitat da classe política, no universo


eleitoral, em especial em se tratando de chefes do Poder Executivo, as causas ensejadoras
dos atos cometidos. Ao revés, esse novo movimento do capital predador, que institui o
“Estado Penal” em substituição do desmantelamento do welfare state e seu “Estado
Previdenciário”, opta pelo encarceramento e em especial pela punição mais cruel
aos representantes eleitos pelas classes menos favorecidas que é a inelegibilidade, um
verdadeiro “banimento do mundo político”.48 Vale ressaltar que o sistema penal do
capitalismo, já nos seus primórdios, tinha a inelegibilidade como um de seus alicerces.49
O fato é que o empreendimento neoliberal precisa de um poder punitivo onipresente
e capilarizado, para o controle penal dos políticos que ele mesmo marginaliza. E encontra a
almejada “onipresença punitiva” nas perversas vinculações entre mídia – sistema penal,
pois o novo credo criminológico da mídia acredita ser a pena a solução de todos os conflitos
a serem enfrentados50 e, para tal, contribui em punir o ser humano antes mesmo que
ele possa se defender pelos meios que a sociedade oferece. Neste sentido, é importante
salientar que toda e qualquer reflexão que deslegitime o credo criminológico do discurso
midiático deve ser ignorada ou escondida do grande público, dos telespectadores.51

3.5 Conclusões
A afirmação democrática e do Estado de Direito diante da conjuntura de crise
que hoje vivenciamos se revela como um dos assuntos mais importantes para o direito
consti­tucional contemporâneo brasileiro, especialmente em se tratando de nosso pobre
país, em que as instituições políticas pagaram e ainda pagam um preço inestimável pelos

47
BATISTA, Nilo. Merci, Loïc. In: BATISTA, Vera Malaguti (Org.). Loïc Wacquant e a questão penal no capitalismo
neoliberal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2012.
48
Importante lembrar que a Lei Complementar nº 135/2010 que alterou o Estatuto das Inelegibilidades, a Lei
Complementar nº 64/1990, instituiu 8 (oito) anos de inelegibilidade aos apenados, o que podemos considerar, na
maior parte dos casos, como uma morte na política.
49
Sobre o assunto, oportuna é a lembrança do excerto do artigo de Nilo Batista, Merci, Loïc, ao asseverar:
“O sistema penal do capitalismo industrial ostentava cruel simplicidade: a fábrica, a penitenciária (invariavelmente
lesselegibility) e o exército de reserva, tudo sob o controle da criminalização da greve e da vadiagem. Simples,
silencioso e lucrativo” (BATISTA, Nilo. Merci, Loïc. In: BATISTA, Vera Malaguti (Org.). Loïc Wacquant e a questão
penal no capitalismo neoliberal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2012. Grifo nosso).
50
BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio, p. 3. Disponível em: <http://www.bocc.ubi.pt/pag/
batista-nilo-midia-sistema-penal.pdf>. Acesso em: 28 mar. 2018.
51
BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio, p. 6. Disponível em: <http://www.bocc.ubi.pt/pag/
batista-nilo-midia-sistema-penal.pdf>. Acesso em: 28 mar. 2018.

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O SACRIFÍCIO DOS DIREITOS POLÍTICOS ATRAVÉS DA PENA DE INELEGIBILIDADE
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anos ditatoriais que nos condenaram, além de outras tantas coisas piores, à fragilidade
dos partidos políticos e dos sistemas eleitorais.
Crise não é motivo para violação do Estado de Direito. Não é motivo para desres­
peito à Constituição da República. Crise não pode em hipótese alguma dar ensejo a uma
conjuntura quiçá aproximada de um estado de exceção.
Existem crises econômicas. Existem crises políticas. Contudo, o que não pode
acontecer é a transformação de uma crise política em crise institucional, colocando em
xeque a legitimidade das instituições da República.
Toda nação está sujeita ao que Maquiavel chamava de “a roda da fortuna”, pois
ora a sorte nos abraça e ora o revés político e econômico se faz presente em nossas vidas.
Assim é a política. Mas a marca consagradora da virtú maquiavélica é a
competência ou não de um político desenvolver uma estratégia eficaz de governo que
possa sobrestar as dificuldades impostas pela imprevisibilidade da história.
Desse modo, o “player político”, consagrado pela virtú, enfrenta as vicissitudes da
fortuna, e constrói uma estratégia para controlá-la e alcançar os seus objetivos.
Considerando a conjuntura atual e, pelo menos aprioristicamente, o compromisso
democrático, o agir político para o domínio das circunstâncias adversas, não se pode deixar
de ter, como eixo civilizatório, a manutenção do Estado de Direito e o respeito à Constituição,
sob pena de retroagirmos à barbárie digna da tipologia dos estados de exceção.
Não se toma o poder com um crime ou uma conspiração sem sujar o trono de
sangue. Essa é uma lição extraída da obra MacBeth, de Shakespeare, que não devemos
esquecer.
MacBeth é muito incômodo, porque ele revela o caráter da maldade humana,
aquela maldade oculta que de repente surge de uma ambição desenfreada de poder. É
o que vemos hoje no Brasil. A marca da maldade oculta.
Para quem o Brasil vive um momento perigoso de crescimento acelerado de
medidas próprias de um estado de exceção, que estão sendo praticadas cotidianamente,
e, o que é mais grave, naturalizadas, vulgarizadas, vale a lembrança desse excerto da
obra de Shakespeare, quando Lady MacBeth dizia, no ato V, cena I: “Aqui ainda há odor
de sangue. Nem todo perfume da Arábia deixaria essa mão cheirosa”.
Observa-se que nossa democracia vai assim se esfacelando e se transformando
em uma maquiagem, que confere a aparência de um Estado Democrático, mas ao invés
de ampliar e efetivar direitos vem suprimindo-os paulatinamente.
E o estado de exceção ocorre quando determinadas leis ou dispositivos legais
fundamentais são suspensos, no sentido de não serem mais aplicados. Isso quer dizer que
alguém, com poder institucionalizado, põe o direito que acha adequado para cada caso.
O soberano passa a ser aquele que decide sobre o estado de exceção, dizia Carl Schmitt.
Quando se suspende ou não se cumpre uma norma, notadamente uma norma
constitucional, e essa suspensão ou inércia na aplicabilidade não tem correção porque
quem tem que corrigir simplesmente não o faz ou convalida a suspensão, é porque o
horizonte começa a apontar para a exceção, ou seja, para o ovo da serpente.
E, nesse momento, os constitucionalistas precisam redobrar a atenção. E,
em especial, serem os agentes vigilantes na tarefa de reafirmarem o compromisso
democrático.
Juristas não podem virar torcedores cuja arquibancada predileta são as redes
sociais ou os julgamentos televisionados. Ainda que seja do seu próprio time. E essa
talvez seja a mais árdua das tarefas.

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156 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Kant nos ensinou que nossa razão também contém pressupostos importantes
para o modo como percebemos o mundo à nossa volta. Se você coloca óculos com lentes
vermelhas ou azuis, tudo ficará vermelho ou azul, pois as lentes dos óculos determinam
o modo como você percebe a realidade.
Os óculos das ideologias, assim como as premissas em nossa razão, levam a
nossa visão para as brumas das paixões. Mas nós precisamos amar o direito acima das
paixões. Mas, para isso, precisamos relembrar a velha lição socrática do “Conhece-te a
ti mesmo” e vencermos a nós mesmos.
Nesse sentido, vale parafrasear a lição do grande professor italiano Umberto
Eco, que asseverou, como crítico ácido do papel das novas tecnologias no processo de
disseminação da informação, “que as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis”,
que antes falavam suas asneiras nos “botequins da vida” sem causar dano à coletividade.
Estamos à mercê da moral das ruas. O direito virou uma torcida de leigos.
O direito se transformou em disputa de qual moral pessoal valerá mais. E não devemos
esquecer que a voz do povo colocou Cristo na cruz.
Por isso, precisamos combater os julgamentos com escopo midiático, o que foi
intensificado com o televisionamento das sessões de julgamento dos tribunais superiores,
gerando os comentaristas leigos de ocasião. Face a essa conjuntura, defender a estrita
legalidade virou um ato revolucionário.
Então, por absoluta ignorância das regras do jogo democrático, a multitudo,
conceito-chave do pensamento político de Espinosa (o filósofo prefere não usar o termo
povo), define o sujeito político que é portador da soberania, perfazendo-se, no caso
brasileiro, na parcela da população advinda do lumpesinato, ou na classe média baixa
com sua tradicional postura conservadora e de ascensão social e em outros tantos por
compromisso ideológico revelado ou contido com posturas autoritárias, que considerará
o “bom juiz” justamente aquele que desconsiderar os direitos fundamentais assegurados
pela Constituição do país, pois tais direitos atrapalhariam o caráter messiânico do
“salvador da pátria”.
O mito do “bom juiz” vai sendo paulatinamente construído nas mentalidades tal
como se fosse um grande herói, de modo que, quando o momento demandado se fizer
“necessário”, o grande herói poderá desconsiderar direitos fundamentais assegurados
constitucionalmente, pois eles serão considerados, pela mass media, tão somente óbices
indesejáveis à luta do magistrado pela “moralização do país”.
Estaremos, enfim, em um perigoso estado de exceção quando as situações ora
apresentadas não causarem mais a necessária indignação na comunidade jurídica;
quando a parcela majoritária da comunidade jurídica justificar e naturalizar tal compor­
tamento pelo argumento de que “os fins justificam os meios”. Nesse momento, estaremos
em uma rota de perigo institucional.
Observa-se, ainda, com atenta preocupação a odiosa criminalização da política. Não
podemos conduzir nossas atuações jurídicas motivados por manifestações midiáticas
alicerçadas pelos sentimentos de comoção popular e pela necessidade de dar satisfação
aos anseios de uma sociedade controlada pelos ditames dos meios de comunicação,
com o objetivo de expurgar da vida pública aquelas pessoas tidas como indesejáveis e
indignas do mandato popular, malgrado sejam elas, independentemente de juízos de
valor, representantes eleitos pela vontade popular.

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Mesmo diante da legitimidade da insatisfação da “sociedade organizada”, não


cabe ao Poder Judiciário agir na esteira do que considera indignante, mas sim prestar
a jurisdição, atento às leis e, principalmente, ao arcabouço constitucional vigente, até
porque os mesmos atores que protestam em face dos representantes eleitos são os que
os elegem.
Mesmo em pleno século XXI, existe a tentativa de implementar uma “sociedade
punitiva”, fruto de um projeto político transnacional, que recorre à legislação coercitiva
e às táticas policialescas para dispersar ou reprimir toda e qualquer forma de oposição
ao poder das corporações, reprimindo o dissenso político. Por essa razão, o fascismo que
emerge hoje não é político, mas sim social, e coexiste com uma democracia de baixíssima
intensidade, para parafrasearmos Boaventura de Souza Santos.52
Não podemos deixar de traçar relações entre a realidade hodierna de criminalização
dos políticos, representantes do povo e eleitos pelo voto popular, com importantes con­
tribuições trazidas por autores que percebem, nos efeitos do punitivismo imperante, um
progressivo desamparo nos direitos fundamentais, notadamente observado nas constantes
e assustadoras flexibilizações dos direitos constitucionais, como no caso da supressão dos
direitos políticos, que são subespécie dos direitos humanos, além do esvaziamento dos direitos
fundamentais assecuratórios da proteção dos cidadãos na processualística penal.
Por essa razão, a ideia da consolidação da vigilância e da punição se encontra
em várias entidades estatais, inclusive na motivação dos que abraçam a “judicialização
da política”.
A tentação de buscar alicerce, em âmbito penal, nas instituições policiais e
penitenciárias e, em âmbito eleitoral, nas condenações às penas de inelegibilidade, visa
alcançar, através da defesa do encarceramento, em especial, no universo eleitoral, e a
punição mais cruel aos representantes eleitos – que é a inelegibilidade –, um verdadeiro
“banimento do mundo político” de certos atores da política, indesejáveis ao sistema,
condenando tais representantes à invisibilidade política.
É possível observar que parte significativa dos meios de comunicação vem
paulatinamente apresentando “fontes” pouco confiáveis e, o pior, prestando-se a inte­
resses pouco nobres, pois sabem muito bem os prejuízos que eleitoralmente podem causar aos
candidatos através de veiculações que faltam com a verdade dos fatos.
Essas notícias falaciosas, vale-se dizer, divorciadas e distintas do direito constitucional
à liberdade de expressão, tornam-se agravadas quando o momento da ofensa ocorre no
período eleitoral, gerando prejuízos acentuados ao candidato perante seus eleitores, ao
macularem sua imagem com uma notícia mentirosa.
Portanto, estado de exceção é o sinônimo de estado de emergência política e de estado
de sítio, sendo uma prerrogativa normativa concedida ao poder dominante para aplicar
a Constituição, desaplicando-a, mantendo-a presente, malgrado seus direitos fundamentais
assegurados pelo Constituinte estejam sendo desrespeitados.
Essa exceção, que é uma “exclusão includente”, provoca a indistinção entre
regra e exceção, fazendo com que, em tempos de crise, como o atualmente vivido,
ocorra uma hipertrofia do Poder Executivo, uma erosão do Legislativo e, capitaneando
o mo­mento de revés institucional, a colonização da política pelo Poder Judiciário,

52
SANTOS, Boaventura Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. Lisboa: Cortez, 1998.

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158 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

transformando os magistrados em julgadores da conveniência e da interpretação, assim


como da legitimidade das decisões estratégicas fundamentais da política, universo esse
pertencente à classe política pelo voto popular.
Essa politização do Poder Judiciário tem se revelado maléfica à República, nota­
damente pela assumpção pública de posicionamento político dos magistrados, “inclusive
o que lhes é proibido pelo estatuto da Magistratura: obediência às amizades, receio
de manchetes agressivas da imprensa, demora injustificada em proferirem decisões
urgentes, complacência com inequívocos desvios de julgados de instâncias inferiores a
atingirem direitos políticos fundamentais, e recorrentes a um moralismo despolitizado
reinante em que muitas sentenças são embasadas por qualquer argumento emotivo”.
Nas relações contemporâneas entre direito e política, o direito estabelece as regras
do jogo, de modo a assegurar, como nos ensina Luigi Ferrajoli, a configuração das esferas
jurídico-políticas do “decidível” e do “indecidível”, que é a dimensão substancial das
garantias, hoje tão esquecidas, em especial, pelo próprio Poder Judiciário. Como, afinal,
controlar o exercício legítimo de um processo, sobretudo os políticos, se a imputação
desconhece os limites da legalidade material?
Torna-se irreal a pretensão de Luigi Ferrajoli de excluir do universo do decidível
situações jurídicas de tutela de direitos fundamentais, pois a proteção ao princípio
democrático, às regras do jogo, vem sendo paulatinamente substituída pelo exercício
abusivo do poder.
Mergulha-se na criminalização da política, valendo-se da arma da judicialização
para banir desafetos da vida política, artifício esse usado também por setores minoritários
da classe política que não apresentam expertise necessária para os duros embates da arena
política, fazendo com que eles busquem a judicialização, a interferência permanente do
Poder Judiciário, em assuntos que não lhes competem.
Essa nova configuração de poder usa uma marca paternalista de proteção aos
políticos que não têm competência para se estabelecer como legítimos representantes
do povo na arena política.
Ao contrário, no melhor esteio do constitucionalismo democrático, espera-se que,
na inércia dos demais poderes, a atividade jurisdicional possa dar fomento aos manda­
mentos constitucionais, impulsionando-os sem, contudo, criar direito, sem legislar criando o
que a Constituição não criou, pois na ideia de constitucionalismo não temos tão somente
o papel da garantia, mas também a noção de controle e de limite aos poderes, inclusive
do próprio Judiciário.
Atualmente qualquer pessoa pode observar que o descrédito popular quanto aos
mecanismos da democracia representativa deve-se, em grande parte, à desmoralização
do compromisso partidário entre o candidato eleito e a legenda que promoveu sua
eleição. Não há nada mais destrutivo da ética política do que a insignificância histórica
e social das siglas partidárias.
Essa deformação confunde o eleitor, afastando-o do eixo dos ideais civilizatórios
que impulsionam a cidadania. Se tal não bastasse, a promiscuidade da relação partidária
conspira contra a aglutinação sadia e programática dos segmentos da sociedade,
mercantilizando a carreira política e, não raro, empurrando a massa dos eleitores, como
gado no corredor do abate, para a devora do charlatanismo eleitoral.
Devemos nos preocupar com as causas deflagradoras do nascimento da crise
ética que vivemos. Sabemos que existem cientificamente paradigmas que devem ser
observados para a análise destes descaminhos.

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O SACRIFÍCIO DOS DIREITOS POLÍTICOS ATRAVÉS DA PENA DE INELEGIBILIDADE
159

Vivemos uma crise ética sem precedentes. E embora o direito não possa ficar
escravizado à moral, devemos tratar da crise ética, compreender essa mazela, para que
possamos buscar a superação por outros caminhos, certamente educacionais e culturais.
Entre as causas que alicerçam o nascimento da crise ética na condução dos
comportamentos públicos, encontra-se a desintegração das formas ordenadas da vida,
pois a ciência política nos ensina que a sociedade se forma e posteriormente ela mesma se
deprava, se desagrega e por fim desaparece se freios normativos não forem sedimentados
nas instituições como um todo.
A crise ética encontra seu berço natural na corrupção. E o eidos, a essência da
corrupção, se alicerça em três pilares. Em primeiro lugar, nas proposições ou juízos
de valor, pois existem certos padrões de lealdade, moral e virtude cívica que são
imprescindíveis para a manutenção de uma ordem política justa, equitativa e estável.
Ao contrário, podemos dizer que os atributos cardeais de um estado corrupto residem
no hedonismo exacerbado, no niilismo, no individualismo e no egoísmo social.
Num segundo plano, está a trilogia da desigualdade, na qual a busca pela riqueza,
pelo poder e pelo status desintegra o básico substancial dos políticos, gerando a perda da
lealdade civil básica, pois estes sacrificam-na em troca de galgar posições e de mantê-las.
Por fim, atenta-se à mudança da qualidade moral de vida do cidadão, somada à
desigualdade, gerando a deflagração das facções e dos grupos de interesses, conhecidos
como lobbies que, ao contrário de outros países, em nossa terra não são regulamentados
e fiscalizados como qualquer outra atividade, o que gera guetos em um submundo
invisível ao controle da sociedade civil organizada.
Precisamos de melhores pessoas. Precisamos voltar a ter pessoas extraordinárias,
para parafrasearmos Eric Hobsbawm, em obra que recebe este título, já que sabemos
todos que, na maioria dos casos, são os personagens “comuns” da história que, através
de atuações coletivas, desempenham papéis importantes na resistência dos povos, ainda
que por vezes ocultos pela história oficial.
Na luta política, mesmo na democrática, e aqui consideraremos, em respeito a
todos nós, a luta democrática que não recorre à violência, os homens serenos costumam
não ter como participar, pois os dois animais símbolos do homem político, e vamos para
isso recordar o capítulo XVIII do Príncipe de Maquiavel, são o leão e a raposa. Ensinava
Maquiavel, ao príncipe, a coragem do leão e a astúcia da raposa.
A política é a arte de domesticar feras. Em Dante, era Orfeu que domesticava as
feras. Mas esse dom de domesticar feras só consegue ser desenvolvido, ainda que na
política, quando também recorremos a um outro príncipe da literatura política.
Em A educação do príncipe cristão, de Erasmo de Rotterdam, as virtudes mais
elevadas do príncipe ideal são a clemência, a gentileza, a equidade, a civilidade, a
benignidade, a prudência, a integridade, a sobriedade, a temperança, a vigilância, a
beneficência e a honestidade. Essas são as virtudes de profunda esperança e fé em um
mundo melhor.
Devemos ser vozes corajosas na defesa do Estado de Direito, do devido processo
legal, pois nos dias de hoje um virtuoso acusador, com medo de virar culpado por
omissão, transforma até os advogados, defensores do acusado também em vilões.
Infelizmente, em toda classe profissional, ainda existem os que conclamam a
execração pública dos culpados, inclusive dos chamados “bodes expiatórios”, pois tais

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160 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

comportamentos, sabemos todos, além de justificar fracassos, têm o dom de construir


carreiras, promover mediocridades, massagear egos vaidosos.
A crítica política arrefece, mesmo diante de injustiças intoleráveis. E os acusadores
sabem disso. É o velho rito sacrificial. Canetti, em sua obra Massa e poder, nos deixa o
ensinamento de que “a fuga em massa cessa, depois que os leões abatem suas presas”.
A lei não pode ser esquecida ao sabor dos casuísmos. E a nossa preocupação com
esses recentes episódios bem pode ser comparada à advertência de Laccordaire, em uma
célebre passagem, na qual nos alerta: “Na luta entre o forte e o fraco, entre o servo e o
senhor, é a lei que liberta e a liberdade que oprime”.
Em Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém, Friedrich Nietzsche
afirma que a sabedoria é uma mulher que só ama quem é guerreiro. Do mesmo modo, a
política também ama os guerreiros que jamais desistirão de defendê-la.
Os defensores do Estado Democrático de Direito precisam estar imunes ao
pessimismo, pois sua fé precisa superar os dissabores que precisamos enfrentar no
caminho a ser trilhado.
A fé inabalável na realização de nossos sonhos talvez seja a maior lição que
devemos ter para defendermos com todas as nossas forças o Estado de Direito. Tal como
Sancho Pança, o fiel escudeiro de Dom Quixote, ao dizer: “Por que tanto sofrimento vão,
tantas derrotas humilhantes, se afinal, tudo o que perseguíamos não passava de sonhos
ilusórios?”. E nesse momento, Dom Quixote, despertado por esta censura amarga de
Sancho Pança, lega-lhe sua última lição de comovente esperança, ao afirmar: “Como,
meu fiel escudeiro, me falas de sonhos ilusórios, falaciosos. Os sonhos apenas existem”.
Apenas existem, mas são eles, os sonhos, que nos fazem viver e mais especialmente
lutar.

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VÂNIA SICILIANO AIETA
O SACRIFÍCIO DOS DIREITOS POLÍTICOS ATRAVÉS DA PENA DE INELEGIBILIDADE
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CAPÍTULO 4

DIREITOS POLÍTICOS DAS PESSOAS JURÍDICAS?

ADRIANO SANT’ANA PEDRA

4.1 Introdução
Os direitos políticos constituem o poder que os cidadãos têm de participar direta
ou indiretamente das decisões do seu Estado.1 Os direitos políticos são direitos públicos
subjetivos que investem o indivíduo no status civitatis, constituídos de instrumentos que
visam disciplinar as formas de atuação da soberania popular, permitindo o exercício da
liberdade de participação nos negócios políticos do Estado.
Este ensaio propõe-se a analisar a questão das pessoas jurídicas de direito privado
como titulares de direitos políticos. Segundo o Código Civil brasileiro (art. 44), são pessoas
jurídicas de direito privado: as associações, as sociedades, as fundações, as organizações
religiosas, os partidos políticos e as empresas individuais de responsabilidade limitada.
Assim, a partir da abordagem das diversas perspectivas dos direitos políticos, será
analisada a titularidade em causa.

4.2 Povo e cidadania


A Constituição brasileira, no parágrafo único do seu art. 1º, proclama que “todo o
poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”.
Mas quem é o povo?
O conceito de povo tem variado com o tempo. Se, por um lado, é o povo que
sempre deve governar, por outro, ele não é sempre o mesmo.2 Para o fascismo, por

1
PEDRA, Adriano Sant’Ana; PEDRA, Anderson Sant’Ana. A inelegibilidade como consequência da rejeição de
contas. In: COELHO, Marcus Vinícius Furtado; AGRA, Walber de Moura (Org.). Direito eleitoral e democracia:
desafios e perspectivas. Brasília: OAB, 2010.
2
PEDRA, Adriano Sant’Ana. Legitimidade ativa na ação popular: uma crítica ao conceito reducionista de cidadão.
In: MESSA, Ana Flávia; FRANCISCO, José Carlos (Coord.). Ação popular. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 411-426.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
166 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

exemplo, o povo era o próprio Estado; para o comunismo, o trabalhador. Em verdade, a


noção de povo já era conhecida e utilizada na Antiguidade clássica em matéria de teoria
política e de direito público. Mas, com o surgimento da ideia democrática, passou a ter
importância decisiva na era moderna. Assim, se o poder pertence ao povo, é imperioso
estabelecer este conceito, evitando-se assim as usurpações da soberania.3
José Luiz Quadros de Magalhães4 esclarece que o povo, como elemento do Estado
moderno, não se confunde com população, que é mera expressão numérica, demográfica
ou econômica, que não revela o vínculo existente entre a pessoa e o Estado. Da mesma
forma, não se confunde com a nação, que expressa somente a relação de pertinência a
uma comunidade histórico-cultural, ou seja, o compartilhar de valores comuns em uma
sintonia bem específica.
Para Carlos Ayres Britto,5 o povo é a encarnação da sociedade política, ou seja,
de “uma sociedade que se auto-reconhece como a subjetivação de um poder acima do
Direito e do Estado, que só pode ser um poder exclusivamente político”. José Joaquim
Gomes Canotilho6 traz moderna conceituação de povo nas atuais democracias, como uma
grandeza pluralística, uma pluralidade de forças culturais, sociais e políticas, tais como
partidos, grupos, igrejas, associações, personalidades, decisivamente influenciadoras da
formação de opiniões, vontades, correntes ou sensibilidades políticas.
O povo de um Estado nacional surge com a criação do sentimento de pertinência a
determinado Estado, sentimento este aceito, historicamente, sobre sentimentos nacionais
preexistentes, como na Espanha, onde o sentimento de pertinência a um Estado nacional
espanhol foi criado sobre o sentimento nacional preexistente de ser galego, basco, catalão
ou castelhano.7
Como muito bem salienta Friedrich Müller, “povo” não é um conceito unívoco,
mas plurívoco. A partir de uma análise conceitual, o autor expõe quatro modos de
utilização do conceito de “povo”, que são então localizados na sua relação com o
problema da legitimidade. Friedrich Müller analisa “povo” como povo ativo, “povo”
como instância global de atribuição de legitimidade, “povo” como ícone, e “povo” como
destinatário de prestações civilizatórias do Estado.
O “povo” como povo ativo abrange somente os eleitores. “Por força da prescrição
expressa as constituições somente contabilizam como povo ativo os titulares de
nacionalidade”.8 Mas os titulares de nacionalidade podem ter o direito de voto restringido
pela perda ou suspensão dos direitos políticos, como exemplo, de acordo com a faixa
etária ou ainda considerando a sanidade mental do indivíduo. Todavia, estas restrições
“tradicionalmente não são consideradas uma discriminação contrária à democracia, mas
estão, como tudo, tanto mais abertas à manipulação quanto mais um Estado se reveste

3
PEDRA, Adriano Sant’Ana. A Constituição viva: poder constituinte permanente e cláusulas pétreas. Belo
Horizonte: Mandamentos, 2005. p. 38.
4
MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 54-55. t. II.
5
BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 49.
6
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002.
p. 75.
7
PEDRA, Adriano Sant’Ana. A Constituição viva: poder constituinte permanente e cláusulas pétreas. Belo
Horizonte: Mandamentos, 2005. p. 39.
8
MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Tradução de Peter Naumann. 2. ed.
São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 56.

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ADRIANO SANT’ANA PEDRA
DIREITOS POLÍTICOS DAS PESSOAS JURÍDICAS?
167

de traços autoritários”.9 Entretanto, escreve Friedrich Müller que os “estrangeiros, que


vivem permanentemente aqui, trabalham e pagam impostos e contribuições, pertencem
à população. [...] A sua exclusão do povo ativo restringe a amplitude e a coerência da
justificação democrática”.
Friedrich Müller analisa ainda o papel do “povo” como instância global de atribuição
de legitimidade. Em tal concepção, o povo não é apenas fonte ativa da instituição de normas
por meio da eleição de representantes ou por meio de instrumentos de participação direta.
Ele é também o destinatário das prescrições, em conexão com deveres, direitos e funções
de proteção. “Nesse sentido ampliado, vale o argumento também para os não-eleitores,
e igualmente para os eleitores vencidos pelo voto”.10 Assim o povo como instância global
de atribuição de legitimidade não se refere ao mesmo aspecto do povo como povo ativo,
mas guarda pertinência aos titulares de nacionalidade. O povo justifica o ordenamento
jurídico, em um sentido mais amplo, como ordenamento democrático na medida em
que o aceita globalmente, não se revoltando contra este. Mensura-se assim se uma
decisão tomada por uma autoridade pode ser atribuída a uma norma democraticamente
instituída, ou se, pelo contrário, trata-se de um direito pretório ilegítimo.
O “povo” como povo ícone não se refere a ninguém no âmbito do discurso de
legitimação. A invocação do povo é somente uma metáfora em uma retórica ideológica,
encobrindo-se a análise do problema da legitimidade. “A iconização consiste em
abandonar o povo a si mesmo”, explica Friedrich Müller, “em ‘desrealizar’ (entrealisieren)
a população, em mitificá-la [...], em hipostasiá-la de forma pseudo-sacral e em instituí-
la assim como padroeira tutelar abstrata”.11 A iconização empenha-se em unificar em
“povo” a população diferenciada, justificando as contradições sociais subsistentes com
o argumento de que o povo assim as quis, apesar da Constituição ou em conformidade
com ela. A população heterogênea “é ungida como ‘povo’ e fingida – por meio do
monopólio da linguagem e da definição nas mãos do(s) grupo(s) dominantes(s) – como
constituinte e mantenedora da Constituição”.12 Aponta Friedrich Müller que “a simples
fórmula do ‘poder constituinte do povo’ já espelha ilusoriamente o uno”.13
Em sua última concepção, o “povo” como destinatário de prestações civilizatórias do
Estado, ou simplesmente povo destinatário,14 deve ser capaz de perceber e defender a tarefa
da preservação da Constituição democrática, procurando dotar a possível minoria dos
cidadãos ativos de competências de decisão e de sancionamento claramente definidas,
estabelecendo o modo através do qual a totalidade dos atingidos será tratada por tais
decisões e seu modo de implementação. Ninguém está legitimamente excluído do

9
MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Tradução de Peter Naumann. 2. ed.
São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 57.
10
MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Tradução de Peter Naumann. 2. ed.
São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 61.
11
MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Tradução de Peter Naumann. 2. ed.
São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 67.
12
MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Tradução de Peter Naumann. 2. ed.
São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 72.
13
MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Tradução de Peter Naumann. 2. ed.
São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 73.
14
MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Tradução de Peter Naumann. 2. ed.
São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 77.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
168 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

povo-destinatário,15 nem mesmo os menores de idade, os doentes mentais ou as pessoas


privadas dos direitos políticos.
Feita a análise das diferentes esferas funcionais – povo ativo, povo como instância de
atribuição de legitimidade e povo destinatário em oposição ao povo ícone –, é imperioso, como
diz Friedrich Müller, “levar o povo a sério como uma realidade”, aproximando o povo
ativo e o povo como instância de atribuição de legitimidade na medida do possível em termos
de política constitucional, na forma da Constituição.16 Situações como restrições étnicas,
apartheid racial, restrição do direito de voto relacionada ao sexo, ao grau de instrução,
ou a aspectos econômicos, estreitam o povo ativo e aumentam a diferença existente entre
este e o povo como instância de atribuição de legitimidade. “Quanto mais o ‘povo’ for idêntico
com a população no direito efetivamente realizado de uma sociedade constituída, tanto
mais valor de realidade e consequentemente legitimidade terá o sistema democrático
existente como forma”.17
Nestes termos, faz-se necessária a passagem de uma concepção de cidadania
restrita – associada à noção de alistamento eleitoral – para uma cidadania ampla –
pautada no exercício pleno dos direitos fundamentais em geral em um espaço público
democrático.
Ademais, não apenas os eleitores, mas todas as pessoas possuem legítimo interesse
em preservar o patrimônio público, a moralidade administrativa, o meio ambiente,
o patrimônio histórico e cultural, objetos da ação popular. São elas destinatárias de
prestações por parte do Estado e possuem interesse justificado em ter estes bens
protegidos.

4.3 Participação de pessoas físicas e jurídicas nas decisões da polis


Segundo José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira,

os direitos políticos (ou de participação política) são direitos de cidadania, ou seja, direitos
dos indivíduos enquanto cidadãos, enquanto membros da “república”, que o mesmo é
dizer, da coletividade politicamente organizada e são simultaneamente parte integrante
e garantia do princípio democrático, constitucionalmente garantido.18

André Ramos Tavares19 leciona que “os direitos políticos perfazem o conjunto
de regras destinadas a regulamentar o exercício da soberania popular”, constituindo
“o conjunto de normas que disciplinam a intervenção, direta ou indireta, no poder”.

15
MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Tradução de Peter Naumann. 2. ed.
São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 79-80.
16
O próprio Friedrich Müller exemplifica: “assim e.g. o direito eleitoral municipal para (determinados grupos
de) estrangeiros, ainda que eles não devam receber nenhum direito eleitoral para o Legislativo” (MÜLLER,
Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Tradução de Peter Naumann. 2. ed. São Paulo:
Max Limonad, 2000. p. 113).
17
MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Tradução de Peter Naumann. 2. ed.
São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 111.
18
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República portuguesa anotada. Coimbra:
Coimbra, 2007. p. 664. v. I.
19
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 718.

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ADRIANO SANT’ANA PEDRA
DIREITOS POLÍTICOS DAS PESSOAS JURÍDICAS?
169

Na lição de Pimenta Bueno, direitos políticos são

prerrogativas, atributos, faculdades, ou poder de intervenção dos cidadãos ativos no


governo de seu país, intervenção direta ou indireta, mais ou menos ampla, segundo a
intensidade do gozo desses direitos. São o Jus Civitatis, os direitos cívicos, que se referem
ao Poder Público, que autorizam o cidadão ativo a participar na formação ou exercício da
autoridade nacional, a exercer o direito de vontade ou eleitor, o direito de deputado ou
senador, a ocupar cargos políticos e a manifestar suas opiniões sobre o governo do Estado.20

Conforme preceitua a Constituição brasileira de 1988, em seu art. 14, caput, a


soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com
valor igual para todos e, nos termos da lei, mediante plebiscito, referendo e iniciativa
popular. Nos termos da Constituição brasileira, é possível elencar como direitos políticos,
em um rol não exaustivo, o direito de votar em eleições, plebiscitos e referendos, a
elegibilidade, a iniciativa popular, a ação popular, a organização e participação de
partidos políticos.
O constitucionalista português Jorge Miranda21 considera que “o sufrágio é o
direito político máximo, porque, através dele, os cidadãos escolhem os governantes
e, assim, direta ou indiretamente, as coordenadas principais de política do Estado”,
e acrescenta ainda que, ao seu lado, existem “direitos políticos menores”, tais como o
direito de petição, o direito de informação política, o direito de participação em atividades
subordinadas do Estado, o direito de ação popular, o direito de iniciativa legislativa, o
direito de iniciativa de referendo, direito de candidatura, o direito de acesso a cargos
políticos e o direito de participação em assembleia popular.
Acerca do direito português, anota ainda Jorge Miranda22 sobre a participação
popular:

Participação direta e ativa dos cidadãos é na Constituição, antes de mais, a eleição (arts. 10º,
nº 1, e 49º). E são também: a participação em associações e partidos políticos (art. 51º, nº 1),
o direito de representação (art. 52º, nº 1), a ação popular (art. 52º, nº 3), a apresentação de
candidaturas para Presidente da República (art. 127, nº 1) e para assembleias de freguesia
(art. 246º, nº 2), a participação na administração da justiça (art. 210º), a participação nos
plenários de cidadãos eleitores nas freguesias de população diminuta (art. 246º, nº 3); não
outras formas à margens destas ou contra estas.

Especificamente sobre a ação popular, a Constituição portuguesa dispõe que


“é conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses
em causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o
direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indenização [...]” (art. 52º,
nº 3). Verifica-se que, embora seja um direito político, a ação popular portuguesa pode
ser proposta por estrangeiros na defesa de direitos e interesses legalmente protegidos.

20
BUENO, Jose Antônio Pimenta. Direito público brasileiro e análise da Constituição do Império. Rio de Janeiro: Nova
Edição, 1958. p. 459.
21
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Coimbra: Coimbra, 2007. p. 100-109. t. VII.
22
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 1996. p. 161. t. II.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
170 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

A Constituição brasileira prevê diversos mecanismos de participação ativa do


povo, que não pode se limitar ao processo de escolha de representantes, mas deve
também participar diretamente das decisões da polis. O cidadão deve ser um indivíduo
participante e controlador da atividade estatal.23
Além das modalidades já referidas de democracia direta previstas no art. 14,
a Constituição brasileira prevê outras oportunidades de participação popular,24 v.g.
a instituição do júri (art. 5º, XXXVIII), a ação popular (art. 5º, LXXIII), a participação
do usuário na Administração Pública direta e indireta (art. 37, §3º), a denúncia de
irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União (art. 74, §2º),
o planejamento e execução da política agrícola (art. 187), a gestão quadripartite da
seguridade social (art. 194, parágrafo único, VII), a gestão democrática do ensino público
(art. 206, VI), e o Conselho de Comunicação Social como órgão auxiliar do Congresso
Nacional (art. 224). Merecem ainda ser lembradas as diversas experiências que vêm
sendo concretizadas, como exemplo, o orçamento participativo.25
Convém registrar ainda que a Constituição estabelece que as contas dos municípios
devem ficar, durante sessenta dias, anualmente, à disposição de qualquer contribuinte,
para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade, nos termos
da lei (art. 31, §3º). Além disso, a lei orgânica do município deve prever a cooperação
das associações representativas no planejamento municipal (art. 29, XII). As ações e
serviços públicos de saúde devem ter a participação da comunidade (art. 198). As ações
governamentais na área da assistência social devem ter assegurada a participação da
população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no
controle das ações em todos os níveis (art. 204, II). As comissões parlamentares devem,
em razão da matéria de sua competência, realizar audiências públicas com entidades
da sociedade civil (art. 58, §2º, II) e receber petições, reclamações, representações ou
queixas de qualquer pessoa contra atos ou omissões das autoridades ou entidades
públicas (art. 58, §2º, IV).26
No regime republicano, que é um regime de responsabilidade, os agentes públicos
respondem pelos seus atos perante o povo. Afinal, estão cuidando da res publica. Dessa
forma, nada mais natural do que o povo controlar suas atuações. É o exercício da vigilância
cidadã, papel que o cidadão desempenha de vigilante do Poder Público, não limitando
a ação política à escolha de um representante.27
Nesse sentido, qualquer pessoa pode representar à autoridade administrativa
competente para que seja instaurada investigação destinada à apuração de atos de
improbidade, na forma do art. 14 da Lei nº 8.429/1992, sem prejuízo de representar
também ao Ministério Público, com fulcro no art. 22 do mesmo texto legal.
Ainda a respeito do controle da Administração Pública suscitado pelo cidadão,
deve ser consignado que qualquer um pode fazê-lo para que seja sancionado o agente

23
PEDRA, Adriano Sant’Ana. Reforma política: compromissos e desafios da democracia brasileira. In: PEDRA,
Adriano Sant’Ana. Arquivos de direito público: as transformações do Estado brasileiro e as novas perspectivas para
o direito público. São Paulo: Método, 2007. p. 33.
24
STF. ADI nº 244/RJ. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. DJ, 31 out. 2002. p. 19.
25
PEDRA, Adriano Sant’Ana. Democracia participativa no município. In: SOUSA, Horácio Augusto Mendes de;
FRAGA, Henrique Rocha. Direito municipal contemporâneo: novas tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 56.
26
PEDRA, Adriano Sant’Ana. Cidadão: mais do que eleitor. A Gazeta, Vitória, 2 jul. 2006.
27
PEDRA, Adriano Sant’Ana. Democracia participativa no município. In: SOUSA, Horácio Augusto Mendes de;
FRAGA, Henrique Rocha. Direito municipal contemporâneo: novas tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 57.

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ADRIANO SANT’ANA PEDRA
DIREITOS POLÍTICOS DAS PESSOAS JURÍDICAS?
171

que haja incidido em abuso de autoridade. Tal possibilidade está contemplada na Lei
nº 4.898/1965, que regula o direito de representação e o processo de responsabilidade
administrativa, civil e penal, nos casos de abuso de autoridade. Para tanto, o interessado
procederá mediante petição “dirigida à autoridade superior que tiver competência legal
para aplicar, à autoridade civil ou militar culpada, a respectiva sanção” ou “dirigida ao
órgão do Ministério Público que tiver competência para iniciar processo-crime contra
a autoridade culpada” (art. 2º).
Como se vê, inúmeras são as possibilidades de o cidadão participar ativamente
das decisões da polis. Restringir a participação política àqueles que são alistados
eleitoralmente é restringir – em alguns casos – desproporcionalmente um direito
fundamental.
No Brasil, o texto constitucional exclui do alistamento eleitoral os conscritos – que
se encontram engajados para prestação de serviço militar obrigatório – e os estrangeiros.
Entretanto, quanto a estes, convém consignar que há o direito dos portugueses
equiparados de exercerem direitos próprios de brasileiros (art. 12, §1º, CF), salvo aqueles
exclusivos de brasileiro nato. Todavia, Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins28 também
anotam a possibilidade de os estrangeiros atuarem em partidos políticos:

O art. 17 da CF não inclui a nacionalidade brasileira entre os requisitos para a atividade


partidária. A condição de respeito à soberania nacional que prevê o caput desse artigo não
se refere à origem dos membros do partido e sim às finalidades e consequências de sua
atuação. Isso significa que, a princípio, a titularidade do direito de participação a partidos
políticos é universal. A Lei dos partidos políticos (Lei 9.096 de 19.09.1995) que concretiza
o art. 17 da CF dispõe em seu art. 16 que somente eleitores em pleno gozo de seus direitos
políticos podem filiar-se a partidos políticos. Essa previsão exclui da atuação partidária
oficial todos os estrangeiros e muitos brasileiros, sendo, em nossa opinião, de duvidosa
constitucionalidade.

Também neste contexto, Antonio Ibáñez Macías anota que a maioria dos imigrantes
estrangeiros residentes na Espanha carece dos direitos de sufrágio ativo e passivo nas
eleições, mas gozam de outros direitos políticos para sua integração social e política.

Além da liberdade de expressão, inerente à dignidade da pessoa e, por isso, reconhecida a


todas as pessoas independentemente de sua nacionalidade ou de sua situação administrativa
na Espanha (estar legal ou ilegalmente em território espanhol), estes direitos políticos são
os seguintes: de reunião e manifestação, de associação, de sindicalização e de greve.29

Acrescenta ainda o autor espanhol que estes direitos podem ser considerados
políticos porque constituem, em maior ou menor grau, formas de participação na vida
social e política e, portanto, de influência na formação da vontade estatal.
No Brasil, alguns direitos políticos conseguem sobreviver a uma interpretação
restritiva porque o texto constitucional ressalva expressamente a possibilidade do
seu exercício por todas as pessoas. É o caso do direito de petição, que é “um instituto
polivalente de participação política, de amplo espectro subjetivo, pois se estende a toda

28
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo: RT, 2007. p. 95.
29
IBÁÑES MACÍAS, Antonio. El derecho de sufragio de los extranjeros. Madri: Dykinson, 2009. p. 91.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
172 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

a sociedade”.30 O direito de petição possibilita ao indivíduo fiscalizar o Poder Público


e participar ativamente das decisões políticas que lhe afetam.
Analisando as distintas formas de exercício da democracia direta, Antonio-
Enrique Pérez Luño31 destaca que o direito de petição, previsto no art. 29 da Constituição
espanhola, é um dos meios de participação direta dos cidadãos. Convém esclarecer que,
no direito constitucional brasileiro, o direito de petição é assegurado “a todos” (art. 5º,
XXXIV, “a”, CF),32 33 e não apenas a quem é alistado eleitoralmente. Daí se conclui que o
direito de petição se presta para que o indivíduo direcione um pedido ao Poder Público
envolvendo tanto interesses próprios quanto interesses da coletividade. Ou seja, o
direito de petição é um instrumento que a Constituição coloca à disposição do indivíduo
para a defesa de seus direitos e também para ser utilizado na defesa de interesses que
transcendem a esfera pessoal do peticionário.
A restrição de direitos políticos para aqueles que não detêm título de eleitor deve
ser vista com muito cuidado.34 Não se pode restringir desproporcionalmente um direito
fundamental tão somente porque a pessoa não se encontra alistada eleitoralmente. Da
mesma forma que não se pode impedir o direito de reunião, de manifestação ou de greve,
por exemplo, para quem não é alistado eleitoralmente, deve-se reconhecer também a
estas pessoas a legitimidade para propor ação popular.35
Ademais, convém evidenciar a liberdade de expressão como condição necessária
ao exercício da cidadania e ao desenvolvimento da democracia. Tanto as pessoas físicas
quanto as jurídicas desfrutam de liberdade de expressão no contexto das disputas elei­
torais e podem manifestar-se a favor ou contra candidatos, partidos e propostas destes.
Mas naturalmente que as pessoas físicas e as pessoas jurídicas não devem ser
igualmente consideradas no âmbito político. Os cidadãos podem ter a pretensão legítima
de influenciar o processo político-eleitoral, mas o mesmo não se pode dizer das pessoas
jurídicas em geral. Por óbvio que os partidos políticos – que também são pessoas jurídicas –
possuem um especial papel nesse processo. Não obstante, o mesmo raciocínio não vale
para as demais pessoas jurídicas. A esse respeito, o Supremo Tribunal Federal (ADI
nº 4.650) declarou a inconstitucionalidade da legislação vigente que autorizava a doação
por pessoas jurídicas a campanhas eleitorais e a partidos políticos.

30
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito da participação política. Rio de Janeiro: Renovar, 1992. p. 107.
31
PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. Los derechos fundamentales. 8. ed. Madri: Tecnos, 2004. p. 182.
32
“O constituinte oportunizou a todos o exercício do direito de petição, portanto, aqui devem ser entendidos pessoa
física, inclusive menor, jurídica, sindicatos, associações, grupos e coletividades. Abrangem-se brasileiros natos,
naturalizados, estrangeiros residentes ou temporários, enfim, qualquer pessoa. [...] O Ministério Público, a nosso
entender, goza de titularidade para a interposição do direito de petição, sendo alcançado pela interpretação do
signo ‘todos’” (BONIFÁCIO, Artur Cortez. Direito de petição: garantia constitucional. São Paulo: Método, 2004.
p. 125).
33
Segundo José Afonso da Silva, o direito de petição “não pode ser formulado pelas forças militares, como tais, o
que não impede reconhecer aos membros das Forças Armadas ou das polícias militares o direito individual de
petição, desde que sejam observadas as regras de hierarquia e disciplina” (SILVA, José Afonso da. Curso de direito
constitucional. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.p. 442).
34
Deve-se ter especial cuidado quando for o caso de privação (suspensão ou perda) de direitos políticos (art. 15,
CF). Como foi visto aqui, o rol dos direitos políticos é muito grande, e não se pode falar apressadamente que as
hipóteses de privação de direitos políticos alcançariam todos eles, pois o texto constitucional prescreve a perda
ou suspensão “de” direitos políticos e não “dos” direitos políticos.
35
Vale mencionar ainda que a ação popular está prevista no art. 5º do texto constitucional, sob o capítulo “dos
direitos e deveres individuais e coletivos”, e não no art. 14, sob o capítulo “dos direitos políticos”, embora
também o seja.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
172 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

a sociedade”.30 O direito de petição possibilita ao indivíduo fiscalizar o Poder Público


e participar ativamente das decisões políticas que lhe afetam.
Analisando as distintas formas de exercício da democracia direta, Antonio-
Enrique Pérez Luño31 destaca que o direito de petição, previsto no art. 29 da Constituição
espanhola, é um dos meios de participação direta dos cidadãos. Convém esclarecer que,
no direito constitucional brasileiro, o direito de petição é assegurado “a todos” (art. 5º,
XXXIV, “a”, CF),32 33 e não apenas a quem é alistado eleitoralmente. Daí se conclui que o
direito de petição se presta para que o indivíduo direcione um pedido ao Poder Público
envolvendo tanto interesses próprios quanto interesses da coletividade. Ou seja, o
direito de petição é um instrumento que a Constituição coloca à disposição do indivíduo
para a defesa de seus direitos e também para ser utilizado na defesa de interesses que
transcendem a esfera pessoal do peticionário.
A restrição de direitos políticos para aqueles que não detêm título de eleitor deve
ser vista com muito cuidado.34 Não se pode restringir desproporcionalmente um direito
fundamental tão somente porque a pessoa não se encontra alistada eleitoralmente. Da
mesma forma que não se pode impedir o direito de reunião, de manifestação ou de greve,
por exemplo, para quem não é alistado eleitoralmente, deve-se reconhecer também a
estas pessoas a legitimidade para propor ação popular.35
Ademais, convém evidenciar a liberdade de expressão como condição necessária
ao exercício da cidadania e ao desenvolvimento da democracia. Tanto as pessoas físicas
quanto as jurídicas desfrutam de liberdade de expressão no contexto das disputas elei­
torais e podem manifestar-se a favor ou contra candidatos, partidos e propostas destes.
Mas naturalmente que as pessoas físicas e as pessoas jurídicas não devem ser
igualmente consideradas no âmbito político. Os cidadãos podem ter a pretensão legítima
de influenciar o processo político-eleitoral, mas o mesmo não se pode dizer das pessoas
jurídicas em geral. Por óbvio que os partidos políticos – que também são pessoas jurídicas –
possuem um especial papel nesse processo. Não obstante, o mesmo raciocínio não vale
para as demais pessoas jurídicas. A esse respeito, o Supremo Tribunal Federal (ADI
nº 4.650) declarou a inconstitucionalidade da legislação vigente que autorizava a doação
por pessoas jurídicas a campanhas eleitorais e a partidos políticos.

30
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito da participação política. Rio de Janeiro: Renovar, 1992. p. 107.
31
PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. Los derechos fundamentales. 8. ed. Madri: Tecnos, 2004. p. 182.
32
“O constituinte oportunizou a todos o exercício do direito de petição, portanto, aqui devem ser entendidos pessoa
física, inclusive menor, jurídica, sindicatos, associações, grupos e coletividades. Abrangem-se brasileiros natos,
naturalizados, estrangeiros residentes ou temporários, enfim, qualquer pessoa. [...] O Ministério Público, a nosso
entender, goza de titularidade para a interposição do direito de petição, sendo alcançado pela interpretação do
signo ‘todos’” (BONIFÁCIO, Artur Cortez. Direito de petição: garantia constitucional. São Paulo: Método, 2004.
p. 125).
33
Segundo José Afonso da Silva, o direito de petição “não pode ser formulado pelas forças militares, como tais, o
que não impede reconhecer aos membros das Forças Armadas ou das polícias militares o direito individual de
petição, desde que sejam observadas as regras de hierarquia e disciplina” (SILVA, José Afonso da. Curso de direito
constitucional. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.p. 442).
34
Deve-se ter especial cuidado quando for o caso de privação (suspensão ou perda) de direitos políticos (art. 15,
CF). Como foi visto aqui, o rol dos direitos políticos é muito grande, e não se pode falar apressadamente que as
hipóteses de privação de direitos políticos alcançariam todos eles, pois o texto constitucional prescreve a perda
ou suspensão “de” direitos políticos e não “dos” direitos políticos.
35
Vale mencionar ainda que a ação popular está prevista no art. 5º do texto constitucional, sob o capítulo “dos
direitos e deveres individuais e coletivos”, e não no art. 14, sob o capítulo “dos direitos políticos”, embora
também o seja.

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ADRIANO SANT’ANA PEDRA
DIREITOS POLÍTICOS DAS PESSOAS JURÍDICAS?
173

Referências
BONIFÁCIO, Artur Cortez. Direito de petição: garantia constitucional. São Paulo: Método, 2004.
BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
BUENO, Jose Antônio Pimenta. Direito público brasileiro e análise da Constituição do Império. Rio de Janeiro:
Nova Edição, 1958.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República portuguesa anotada. Coimbra:
Coimbra, 2007. v. I.
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo: RT, 2007.
IBÁÑES MACÍAS, Antonio. El derecho de sufragio de los extranjeros. Madri: Dykinson, 2009.
MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. t. II.
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 1996. t. II.
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Coimbra: Coimbra, 2007. t. VII.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito da participação política. Rio de Janeiro: Renovar, 1992.
MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Tradução de Peter Naumann.
2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000.
PEDRA, Adriano Sant’Ana. A Constituição viva: poder constituinte permanente e cláusulas pétreas. Belo
Horizonte: Mandamentos, 2005.
PEDRA, Adriano Sant’Ana. Cidadão: mais do que eleitor. A Gazeta, Vitória, 2 jul. 2006.
PEDRA, Adriano Sant’Ana. Democracia participativa no município. In: SOUSA, Horácio Augusto Mendes
de; FRAGA, Henrique Rocha. Direito municipal contemporâneo: novas tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2010.
PEDRA, Adriano Sant’Ana. Legitimidade ativa na ação popular: uma crítica ao conceito reducionista de
cidadão. In: MESSA, Ana Flávia; FRANCISCO, José Carlos (Coord.). Ação popular. São Paulo: Saraiva, 2013.
PEDRA, Adriano Sant’Ana. Reforma política: compromissos e desafios da democracia brasileira. In: PEDRA,
Adriano Sant’Ana. Arquivos de direito público: as transformações do Estado brasileiro e as novas perspectivas
para o direito público. São Paulo: Método, 2007.
PEDRA, Adriano Sant’Ana; PEDRA, Anderson Sant’Ana. A inelegibilidade como consequência da rejeição de
contas. In: COELHO, Marcus Vinícius Furtado; AGRA, Walber de Moura (Org.). Direito eleitoral e democracia:
desafios e perspectivas. Brasília: OAB, 2010.
PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. Los derechos fundamentales. 8. ed. Madri: Tecnos, 2004.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

PEDRA, Adriano Sant’Ana. Direitos políticos das pessoas jurídicas? In: FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz
Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura (Coord.); PECCININ, Luiz Eduardo (Org.). Direito
Constitucional Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 165-173. (Tratado de Direito Eleitoral, v. 1.)
ISBN 978-85-450-0496-7.

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ADRIANO SANT’ANA PEDRA
DIREITOS POLÍTICOS DAS PESSOAS JURÍDICAS?
173

Referências
BONIFÁCIO, Artur Cortez. Direito de petição: garantia constitucional. São Paulo: Método, 2004.
BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
BUENO, Jose Antônio Pimenta. Direito público brasileiro e análise da Constituição do Império. Rio de Janeiro:
Nova Edição, 1958.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República portuguesa anotada. Coimbra:
Coimbra, 2007. v. I.
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo: RT, 2007.
IBÁÑES MACÍAS, Antonio. El derecho de sufragio de los extranjeros. Madri: Dykinson, 2009.
MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. t. II.
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 1996. t. II.
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Coimbra: Coimbra, 2007. t. VII.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito da participação política. Rio de Janeiro: Renovar, 1992.
MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Tradução de Peter Naumann.
2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000.
PEDRA, Adriano Sant’Ana. A Constituição viva: poder constituinte permanente e cláusulas pétreas. Belo
Horizonte: Mandamentos, 2005.
PEDRA, Adriano Sant’Ana. Cidadão: mais do que eleitor. A Gazeta, Vitória, 2 jul. 2006.
PEDRA, Adriano Sant’Ana. Democracia participativa no município. In: SOUSA, Horácio Augusto Mendes
de; FRAGA, Henrique Rocha. Direito municipal contemporâneo: novas tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2010.
PEDRA, Adriano Sant’Ana. Legitimidade ativa na ação popular: uma crítica ao conceito reducionista de
cidadão. In: MESSA, Ana Flávia; FRANCISCO, José Carlos (Coord.). Ação popular. São Paulo: Saraiva, 2013.
PEDRA, Adriano Sant’Ana. Reforma política: compromissos e desafios da democracia brasileira. In: PEDRA,
Adriano Sant’Ana. Arquivos de direito público: as transformações do Estado brasileiro e as novas perspectivas
para o direito público. São Paulo: Método, 2007.
PEDRA, Adriano Sant’Ana; PEDRA, Anderson Sant’Ana. A inelegibilidade como consequência da rejeição de
contas. In: COELHO, Marcus Vinícius Furtado; AGRA, Walber de Moura (Org.). Direito eleitoral e democracia:
desafios e perspectivas. Brasília: OAB, 2010.
PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. Los derechos fundamentales. 8. ed. Madri: Tecnos, 2004.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

PEDRA, Adriano Sant’Ana. Direitos políticos das pessoas jurídicas? In: FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz
Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura (Coord.); PECCININ, Luiz Eduardo (Org.). Direito
Constitucional Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 165-173. (Tratado de Direito Eleitoral, v. 1.)
ISBN 978-85-450-0496-7.

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PÁGINA EM BRANCO

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CAPÍTULO 5

SUFRÁGIO, VOTO E SISTEMA ELEITORAL NO BRASIL:


DESCAMINHOS E CAMINHOS DA INCLUSÃO POLÍTICA

FILOMENO MORAES

[...] À medida em que se deslocam os limites dos direitos eleitorais, sente-se


a necessidade de deslocá-los mais; pois, a cada nova concessão, as forças da
democracia aumentam e as suas exigências crescem com o seu novo poder.
(Alexis de Tocqueville)

5.1 Introdução
A Constituição Federal de 1988 contempla a possibilidade de realização, conjunta,
da democracia representativa com a democracia participativa ou direta, ao estabelecer
que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição”. Assim, a produção de decisões políticas
advindas da atuação de representantes eleitos (vereadores, prefeitos, deputados
estaduais, governadores, deputados federais, senadores e presidente da República)
ou diretamente dos eleitores, abre a perspectiva de um modelo misto, de democracia
semidireta (MORAES, 2011; 2012). Neste passo, a Constituição Federal estabelece que
“a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto,
com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo;
III - iniciativa popular” (art. 14).
Como afirma Manuel Rodrigues Ferreira (2005, p. 15), “o direito do voto não foi
outorgado ao povo brasileiro ou por este conquistado à força ou imposto”. Na verdade,
“a tradição democrática do direito ao voto, de escolher governantes (locais), está de tal
maneira entranhada na nossa vida política, que remonta à fundação das primeiras vilas
e cidades brasileiras, logo após o Descobrimento”. Todavia, marchas e contramarchas,
avanços e recuos marcam o itinerário da cidadania eleitoral no Brasil.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
176 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Já se afirmou que o Estado brasileiro pode ser caracterizado de diversas fases na


sua evolução, a saber, a oligárquica, a populista, a burocrático-autoritária e a que busca
a realização poliárquica (O’DONNELL, 1972; 1990). No período de predomínio das
oligarquias, que corresponde ao Império e à República Velha, o setor popular não se
tornara ainda politicamente ativado, dando-se a competição política no estreito âmbito
das próprias oligarquias, das suas frações e dos seus notáveis. Durante o Império e na
expressão de Antônio Carlos de Andrada (apud PORTO, 2012, p. 373-374), as eleições,
tanto a dos deputados quanto a dos senadores, além das barreiras ao exercício da
cidadania, eram marcadas pelo “dedo flexível da fraude” ou pelo “punho cerrado da
violência”, ou seja, eram eleições em que o “voto popular não existia, tudo quanto havia
não era opinião do povo, era, pelo contrário, uma opinião fictícia forjada no embuste”.
Daí o “sorites fatal” de Nabuco de Araújo: “[...] o Poder Moderador pode chamar a quem
quiser para organizar Ministérios; esta pessoa faz a eleição porque há de fazê-la; esta
eleição faz a maioria. Eis aí o sistema representativo no nosso país!” (NABUCO, 1997,
p. 764).
Eleições “a bico de pena”, com a adulteração das atas feitas pela mesa eleitoral, a
criação de nomes falsos, a inserção na lista de pessoas que tinham morrido e os ausentes,
marcaram a quadra imperial e, mais ainda, a República Velha. Nas palavras de Francisco
Belisário Soares de Souza (1979, p. 33), tais eleições “são as mais regulares, segundo as
atas; não há nelas uma só formalidade preterida, tudo se fez a horas e com os preceitos das
leis, regulamentos e avisos do governo; é difícil que ofereçam brechas para nulidades”.
A entrada das massas na cena política dá-se na esteira das mudanças decorrentes
da Revolução de 30. A incorporação do setor popular urbano-industrial, continuamente
crescente durante o período populista, é resultante da importância numérica e da
importância econômica que o coloca como sócio, embora minoritário, da coalizão
de poder populista. Caracterizado por práticas que não deixavam de ser elitistas, o
popu­lismo enfatizava a inclusão seletiva de grupos sociais estratégicos e mobilizados,
prevalecendo, consequentemente, os mecanismos de cooptação. No entanto, o padrão
de intervenção estatal era sensível às pressões dos setores da massa urbano-industrial
que logravam organizar-se, embora funcionasse estabelecendo respostas preventivas à
reivindicação crescente por direitos políticos e sociais, antecipando-se a demandas mais
amplas e evitando a ampliação de direitos políticos. Era um processo de trocas desiguais
que se mantinha num equilíbrio delicado e contraditório, misto de engodo e conquista,
consenso e repressão discriminada, concessão e controle.
A emergência da ditadura civil-militar, em 1964, trouxe a repressão à ação cole­
tiva dos estratos subalternos e intervenção nas suas organizações. O autoritarismo-
burocrático, ao contrário do sistema populista, é eminentemente excludente, com a
nova coalizão dominante incluindo tecnocratas de alto nível, tanto militares quanto
civis, e trabalha em estreita associação com o capital estrangeiro. A nova configuração
de poder imprime restrições profundas aos mecanismos eleitorais e de organização
dos trabalhadores. Como salientou O’Donnell (1990), entre outros aspectos, o Estado
burocrático-autoritário caracterizou-se como: (1) um sistema de exclusão política de
um setor popular previamente ativado, o qual submete a severos controles que visam
a destruir ou capturar os recursos (especialmente os cristalizados em organizações de
classe e movimentos políticos) que sustentavam essa ativação; (2) tal exclusão provoca
a supressão da cidadania e da democracia política, e também a proibição do “popular”;

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(3) a partir das suas instituições levam-se a cabo tentativas sistemáticas de “despolitizar”
o tratamento de questões sociais, submetendo-se àquilo que se qualifica como critérios
neutros e objetivos de racionalidade técnica; (4) seu regime, não formalizado, porém
claramente vigente, implica o fechamento dos canais democráticos de acesso e, junto
com eles, dos critérios de representação popular ou de classe, ficando o acesso limitado
aos ocupantes da cúpula das grandes organizações, especialmente as Forças Armadas
e as grandes empresas privadas ou públicas.
Só foi com a debilitação do governo militar e a busca de parâmetros democráticos,
nas décadas de 70 e 80, que o país conquistou a cidadania política e a institucionalização
de uma democracia eleitoral. Coroada com a promulgação da CF/88, a recuperação ou
inauguração de franquias eleitorais transmutou o processo político em algo bastante
distinto do restante da história do país, sensivelmente marcada pela restrição à cidadania
eleitoral e por diversos fatores que não incentivavam a sua manifestação. É um longo
caminho que vai rotten system do Império e da República Velha à previsão constitucional
do “voto direto, secreto, universal e periódico” como cláusula pétrea.

5.2 Sufrágio, voto e sistema eleitoral no constitucionalismo brasileiro


Os frutos advindos das assembleias constituintes representam contrapontos
importantes aos surtos de autoritarismo que, periodicamente, marcaram a história
político-constitucional brasileira. No seu tempo, tais assembleias estabeleceram arenas
privilegiadas da participação política da sociedade, mesmo se se impuser um nível
de exigência maior em relação a elas. A propósito, merece atenção a assertiva de
Raymundo Faoro (2007, p. 257-258), trazida a lume antes da Constituinte de 1987/1988,
segunda a qual nunca o Poder Constituinte conseguira, nas suas quatro tentativas
(1823, 1890/1891, 1933/1934 e 1946), “vencer o aparelhamento de poder, firmemente
ancorado ao patrimonialismo de Estado, mas essas investidas foram as únicas que
arvoraram a insígnia da luta, liberando energias parcialmente frustradas”. De fato e
ainda de acordo com Faoro, “todos os passos, insuficientes na verdade, no caminho das
liberdades e da democracia, nos quase 160 anos de país independente, foram dados pelas
constituintes, que legaram à sociedade civil as bandeiras, frustradas e escamoteadas,
de sua emancipação”.1

5.2.1 A Constituição de 1824


Outorgada a Constituição a 1824, nela dispôs-se sobre o sistema eleitoral em
seus arts. 90 a 97. A escolha dos deputados e senadores da Assembleia Geral e dos
membros dos Conselhos Gerais das Províncias deveria dar-se por eleições indiretas.
Nas eleições primárias, os brasileiros no gozo dos direitos políticos e os estrangeiros
naturalizados votavam nos eleitores de província, os quais escolheriam os deputados gerais
e os deputados provinciais, estes a partir do ato adicional de 1834.

1
Na recuperação da trajetória do sufrágio, voto e sistema eleitoral no Brasil devem ser consultados, entre outros,
Ferreira (2005), Braga (1990), Souza (1979), Nicolau (2004; 2012), Moraes e Silveira (2012), Porto (2004), Limongi
(2014; 2015) e Lynch (2014).

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Funcionavam como barreiras ao exercício da cidadania política, entre outras,


a idade, a profissão e a renda anual, visto que eram impedidos de votar nas eleições
primárias os menores de 21 anos, salvo se casados, oficiais militares, bacharéis formados,
clérigos de ordens sacras; os filhos que ainda morassem com os pais, salvo se servissem
em ofícios públicos; os criados, categoria na qual não se incluíam os guarda-livros e
primeiros caixeiros das casas de comércio; os criados da Casa Imperial, se não fossem
de galão branco; os administradores das fazendas rurais e fábricas; os religiosos e
quaisquer que vivessem em comunidade claustral; e os que não tivessem renda líquida
anual mínima de cem mil réis. Para ser eleitor de província ou de deputado, de senador
e de membro de Conselho Geral de Província, por sua vez, era elegível qualquer cidadão
capaz de votar nas eleições primárias, exceto os libertos, os criminosos pronunciados
em querela ou devassa e os que não tivessem renda líquida anual de duzentos mil réis.
Ademais, para ser nomeado deputado, o eleitor deveria ser brasileiro nato, professar a
religião do Estado e ter renda líquida anual de quatrocentos mil réis. Não havia restrição
quanto à circunscrição eleitoral do indivíduo para que ele fosse elegível, de sorte que,
cumpridas as exigências constitucionais, o cidadão poderia ser escolhido para os cargos
eletivos de qualquer distrito, independentemente de ali ter nascido ou residido, ou ser
domiciliado.
A Constituição atribuiu a uma lei a ser editada a regulamentação do “modo prático
das eleições” e o número dos deputados, levando em conta a população do Império. A
lei prevista pela Constituição só viria 22 anos depois, com decretos e atos normativos
outros disciplinando as eleições durante o Primeiro Império, a Regência e alguns anos
do Segundo Império. Finalmente, foi editada a Lei nº 387, em 19.8.1846, que disciplinou,
entre outros aspectos, a qualificação dos votantes e as eleições primária e secundária,
acabando com a qualificação pelas mesas receptoras e organizando juntas de qualificação.
Tal lei recebeu alteração importante por meio do Decreto nº 842, de 19.9.1855,
conhecido como a Lei dos Círculos, pois, além de estabelecer “incompatibilidades
eleitorais”, instituiu os distritos (“círculos”) em que aconteceriam as eleições. Em
seguida, veio o Decreto nº 1.082, de 18.8.1860 (a Segunda Lei dos Círculos), que alterou a
Lei nº 387/1846 e o Decreto nº 842/1855, aumentando o número de deputados de cada
“círculo” para três. Outra importante reforma da legislação eleitoral foi a inaugurada
pelo Decreto nº 2.675, de 20.10.1875 (denominado de Lei do Terço), visto que instituiu um
sistema no qual os eleitores votavam em dois terços dos elegíveis, assim proporcionando
a representação das minorias. Além disso, esse diploma normativo introduziu o título
eleitoral e a possibilidade de conhecimento, por parte do Poder Judiciário, de questões
relativas a ambas as fases do processo eleitoral.
Com a edição da Lei nº 3.029, de 9.1.1881, a Lei Saraiva, o sistema eleitoral foi
profundamente alterado. As modificações mais notórias foram a abolição das eleições
indiretas e a instituição de eleições diretas, a vedação do voto do analfabeto, a expansão
do papel da magistratura no processo eleitoral e a ampliação das incompatibilidades
eleitorais. Além disso, os títulos eleitorais passaram a ser assinados pelo juiz e o
alistamento eleitoral passou a ser realizado permanentemente.
De fato, o Segundo Império brasileiro caracterizou-se por reduzidíssima parti­
cipação política, grande quantidade de barreiras à ampliação da cidadania, além do
voto censitário, fraude, corrupção, intimidação, ausência de partidos efetivos, enfim,
institucionalização política rarefeita (SANTOS, 1991; LIMONGI, 2014; MORAES,

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2017). Um dos mais finos analistas do processo eleitoral do seu tempo, dedicado à
política teórica e prática, José de Alencar (1868, p. 4-5), como ele próprio referia, havia
“apalpado os defeitos” das eleições, no seu terreno, no seu processo, nas atas levadas
à tarefa de verificação dos poderes, eleições, constatando que o “vício maior” das
eleições brasileiras estava na “qualificação defeituosa adotada pela legislação vigente”.
As revisões anuais, as juntas irresponsáveis, a dificuldade dos recursos, a confusão de
extensas listas e o poder discricionário das mesas paroquiais sobre o reconhecimento da
identidade do qualificado tornavam o direito de sufrágio incerto e precário e levavam à
extorsão da soberania popular. Assim, a permanência da qualificação e o melhoramento
de seu processo constituíam “o prólogo da reforma eleitoral”, a base sólida sobre que
posteriormente se levantasse qualquer sistema tendente a aperfeiçoar a representação
nacional. Em suma, a reforma era exigência da “dignidade nacional, enxovalhada nas
farsas eleitorais; a verdade do sistema prostituído pela fraude; o pundonor dos cidadãos
que sentavam no parlamento sem a consciência de sua legitimidade”.
A década de 70 e os inícios dos anos 80 do século XIX assistiram à movimentação
relevante pela reforma do sistema eleitoral, com a abolição das eleições indiretas.
O Gabi­nete Sinimbu tentou aprová-la na Câmara dos Deputados e, para tranquilizar os
grandes proprietários rurais, propôs a eliminação do voto dos analfabetos e a elevação
do censo, isto é, da renda mínima anual exigida para a inscrição nas listas eleitorais. Na
ocasião, questio­nando a “aristocracia eleitoral” e a “soberania de gramáticos” que se
pretendia implantar, o deputado José Bonifácio, o Moço (SILVA, 1979, p. 78), reverberava
a proposição legislativa, observando que “pelo recenseamento de 1872 o número dos
que sabem ler e escrever é apenas 1.013.055” resultando “dezenove partes da população
sem parte no governo do Império, senhoreadas pelo resto”.
O “projeto, injusto, violento, impolítico e cheio de perigos” acarretou a queda
do Gabinete Sinimbu, designando-se primeiro-ministro o Conselheiro José Antonio
Saraiva, que, por fim, logrou a aprovação do Decreto nº 3.029, de 9.1.1881 (Lei Saraiva).
Estabeleceu-se, então, que a escolha de senadores, deputados para a Assembleia Geral
e os membros das assembleias legislativas das províncias, assim como a eleição de
qualquer outra autoridade seriam procedidas do sistema de votação direta. Todavia,
com a contrapartida da vedação ao voto do analfabeto e o aumento do piso do censo.

5.2.2 A Constituinte de 1890/1891 e a Constituição de 1891


Com a instalação da República em 1889, era o momento de adequar as leis eleitorais
à nova forma de governo. Assim, as primeiras providências foram no sentido de revogar
a Lei Saraiva e de elaborar nova normatividade, que pudesse, principalmente, garantir
eleições de líderes da nova forma de governo.
As primeiras eleições da República ocorreram em 15.9.1890, com o fito de escolher
a Assembleia Constituinte, eleições tais disciplinadas pelo Decreto nº 510, de 22.6.1890
(Regulamento Alvim). Naquele momento, certamente, o primeiro passo da longa marcha
da “democracia brasileira, representativa, laica e republicana”, foi dado com “o primeiro
voto na eleição de deputados à Assembleia Constituinte de 1891” (SANTOS, 2007, p. 13).
Todavia, a organização social, econômica e política subjacente à Constituição de 1891,
isto é, a República Velha, foi muito bem caracterizada por Robert Levine (2001, p. 20-21)
como um período de “cidadania limitada”, em que “os brasileiros [...] não gozavam nem

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de uma democracia nem de mais oportunidades para melhorar de vida”. No período,


na sua maior parte, “a cidadania, na prática, estendia-se apenas à elite” e “abusos contra
os direitos humanos eram lugar-comum”, pois, “excetuando-se as atividades religiosas,
a sociedade tinha poucas oportunidades de se reunir. A vida nos vilarejos, prejudicada
pelo poder dos proprietários de terras, carecia da tradição de autonomia que gozavam
os vilarejos no México ou no Peru”.
A Constituição de 1891 estabelecia que podiam ser eleitores os maiores de 21
anos, desde que não fossem mendigos, analfabetos, praças de pré (exceto alunos de
escolas militares de ensino superior), religiosos de ordens monásticas, companhias,
congregações ou de qualquer comunidade sujeitos ao voto de obediência, regra ou
estatuto que importasse a renúncia da liberdade individual. O voto pela renda foi
abolido, entretanto, conservou-se a proibição do voto do analfabeto.
De modo geral, os críticos da Constituição republicana insistiram na necessi­
dade de adaptar as instituições à realidade nacional e afirmavam o contraste do “país
legal” em relação ao “país real”, isto é, a parcial ou total inadequação das instituições
a partir de 1891 à evolução do Brasil. Por conta do dedutivismo jurídico-formal, o
constitucionalismo republicano seria vítima da reificação institucional, ou seja, da aceitação
do ponto de vista segundo o qual as mesmas instituições acarretam sempre os mesmos
efeitos políticos, independentemente da ordem econômica e social em que se inscrevem.
Para Alberto Torres (1982, p. 34), por exemplo, a Constituição Federal de 1891 fora “fruto
de uma revolta sem cultivo prévio na opinião e sem preparo organizador – surgida,
inesperadamente, das trevas da conspiração política, para a realidade, por força de um
trabalho subterrâneo”. Assim, considerava que a Constituição, “como obra de estética e
de ideal político, é talvez o mais notável documento de cultura jurídica contemporânea”
e que talvez não houvesse outra “onde as definições e as classificações, o rigor e o
cuidado no desenvolver regras e funções, tenham atingido a tanta perfeição; nenhuma
levou tão longe o empenho de proclamar as mais avançadas conquistas da liberdade
humana e da democracia” (TORRES, 1982, p. 80). Todavia, a “perfeição técnica” discrepa
substancialmente das “necessidades positivas” e das “formas de vida real”:

Desde que se sai [...] do terreno puramente abstrato e da contemplação da forma, começam
a surgir as lacunas, as imperfeições e incoerências do sistema. Não tendo por fim regular
fatos da vida pública do povo e do país, atender às suas necessidades positivas, faltou ao
legislador o critério prático, próprio de um trabalho legislativo assentado sobre o terreno
da observação e da experiência, único que pode dar às leis uma feição inteligível, porque
reflete as formas da vida real democrática. (TORRES, 1982, p. 80)

Por seu turno, Oliveira Vianna (1927) também acentuou a disjunção entre o “país
legal” e o “país real”, como a base do seu diagnóstico do caráter utopicamente liberal
das instituições jurídico-políticas levadas a termo com a Constituição de 1891, em
contraste com o caráter clânico-oligárquico das instituições sociais. A seu ver, os “bons
rapazes, que se haviam adestrado em atirar pedras no governo, colhidos de surpresa
para a grave missão de estadistas, tiveram que improvisar às pressas um programa de
construção” (VIANNA, 1927, p. 23-24), com exagerada “crença no poder das fórmulas
escritas”. Assim, “os republicanos da Constituinte construíram um regímen político
baseado no pressuposto da opinião pública organizada, arregimentada e militante”,
de “uma opinião que não existia, e ainda não existe entre nós” (VIANNA, 1927, p. 43).

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5.2.3 A Constituinte de 1933/1934 e a Constituição de 1934


A Revolução de 1930 definiu de forma aguda o impasse político-constitucional
que caracterizou a República Velha, com as fortes críticas que, desde a promulgação
da Constituição de 1891, eram veiculadas. O combate à cidadania restrita e à hege­
monia das oligarquias já era objeto das revoltas tenentistas dos anos 20, das cisões
interoligárquicas e das demandas relativas ao sistema eleitoral, ao respeito pelo voto, ao
reconhe­cimento dos candidatos eleitos, além da organização do movimento operário,
que já se manifestava. Assim, o movimento que culminou com a Revolução de 1930,
a crer nos discursos e manifestos da Aliança Liberal (AL), tinha como finalidade o
estabe­lecimento da legitimidade da forma representativa de poder, abalada pelos
desvios, distorções e degenerações do presidencialismo e das práticas eleitorais que
desfi­guravam a manifestação da vontade popular. No momento, podiam-se ver com
nitidez as “famílias interpretativas” referentes ao tema da representação. Como salienta
Renato Lessa (2009, p. 15):

Para uns – positivistas e castilhistas – um mecanismo que requer substância, para além de
formalismos jurídicos e constitucionais; para outros – Alberto Torres e Oliveira Vianna –,
uma farsa, interditada por fatalismos atávicos e sociológicos; ainda para outros – Ruy
Barbosa, por exemplo, um imperativo para implantar a verdade do regime de 1891; para
gente, enfim como o bravo gaúcho proto-democrata brasileiro Joaquim Francisco Assis
Brasil [...] –, uma forma de organização da opinião nacional, vital à democratização do país.

Cumpre acentuar que, por determinação presidencial de fevereiro de 1931,


estabeleceu-se comissão – formada por Joaquim Francisco de Assis Brasil, João
Crisóstomo da Rocha Cabral e Mário Pinto Serva e destinada ao estudo e à revisão
da legislação vigente –, tendo em vista a apresentação de projeto de Código Eleitoral.
Por fim, por meio do Decreto nº 20.076, de 24.2.1932, foi instituído o Código Eleitoral,
para regular “em todo o país o alistamento eleitoral e as eleições federais, estaduais
e municipais” (art. 1º), com o que se procedia à institucionalização de princípios e
demandas que orientaram a Revolução de 30.
O Código Eleitoral proporcionou profundas mudanças, como o estabelecimento
do sufrágio universal e do voto direto e secreto, a instituição da Justiça Eleitoral (com
“funções contenciosas e administrativas”) em substituição às comissões legislativas de
verificação de poderes,2 enfim, um conjunto de alterações que consistiam nas propostas
da Aliança Liberal, no seu lema “justiça e representação”. Ademais, o Código Eleitoral de
1932 ampliava o colégio eleitoral, ao mesmo tempo em que, embora mantendo a idade
de 21 anos prevista também no texto constitucional de 1891 (art. 70, caput), estabelecia

2
Uma das pedras angulares da República Velha, a verificação de poderes pela Câmara dos Deputados foi
mecanismo instituído durante o governo de Campos Sales, favorecendo o poder das oligarquias contra as
tentativas de oposição e organizando “uma maioria arregimentada e resoluta”, no dizer de Campos Sales. De fato,
a verificação de poderes, como bem observou Assis Brasil, “substituiu-se à eleição. E que reconhecimentos! As
crônicas autênticas da época, as próprias atas dos corpos legislativos exibem casos de se fazer um representante
da nação por simples emenda, mandando trocar um nome por outro. E não simplesmente isso, mas um nome
que aparecia virtualmente sem votos por outro que os ostentava nos papéis eleitorais. A única atenuante era –
não se tratar verdadeiramente de averiguar quem era mais votado, porque ninguém a era: as eleições figuravam
na consciência pública como simples fantasmagoria” (BRASIL, 1990, p. 140).

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“que é eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na forma
deste Código”.3
Para as eleições para a Câmara dos Deputados e as Assembleias Legislativas,
passava-se a obedecer ao sistema de representação proporcional,4 ultrapassando-se um
debate recorrente desde a época do Império entre majoritaristas e proporcionalistas.
Incluiu-se também no Código Eleitoral a representação classista, fruto das pressões
tenentistas, por meio do Clube 3 de Outubro.
O significado do Código Eleitoral, no que se refere ao processo de reconstitu­cio­
nalização, foi enfatizado por Getúlio Vargas em discurso na sessão solene de abertura da
Assembleia Nacional Constituinte, ao afirmar que a reforma eleitoral foi compromisso
de candidato e “imposição inadiável ao assumir a chefia do governo revolucionário”
atestando-o “o Código Eleitoral, já qualificado ‘carta de alforria do povo brasileiro’, e o
pleito de 3 de maio, do qual se disse, unanimemente, ser a eleição mais livre e honesta
realizada, até hoje, no Brasil” (BRASIL, [s.d.]).
As conquistas do Código Eleitoral de 1932 foram, no geral, absorvidas pela
Constituição de 1934. Porém, o país logo entrou em estado de sítio e, em 1937, com a
inauguração do Estado Novo, a CF/34 foi sepultada, outorgando-se outra Constituição,
em que a representatividade do poder e o princípio democrático foram severamente
comprometidos.

5.2.4 A Constituinte e a Constituição de 1946


Pelo Decreto-Lei nº 7.586, de 28.5.1945 (Lei Agamenon Magalhães), que regulou,
“em todo o país, o alistamento eleitoral e as eleições a que se refere o art. 4º da Lei
Constitucional nº 9, de 18 de fevereiro de 1945”, “os lugares não preenchidos com a
apli­cação do quociente eleitoral e dos quocientes partidários são atribuídos ao partido
que tiver alcançado maior número de votos, respeitada a ordem de votação nominal
de seus candidatos” (art. 48).
Diferentemente do pleito para a Constituinte dos anos 30, agora, as eleições con­
sis­tiram em votar em senadores e deputados federais, respectivamente, pelo sistema
majori­tário e pelo sistema proporcional. Sendo aquele decreto editado com a finalidade de
dirigir as eleições que marcaram o restabelecimento do regime democrático, restabeleceu
os órgãos da Justiça Eleitoral, extintos na Carta de 1937, confirmou àquela as mesmas
atribuições estabelecidas pela Constituição de 1934 e pelo Código Eleitoral de 1935 e
trouxe-lhe outras competências, entre as quais ordenar o registro dos partidos políticos
e dos candidatos à Presidência da República e à Constituinte.
Em 1945, foi estabelecido que os candidatos não poderiam disputar eleições sem
o apoio de partidos, alianças ou coligações partidárias, admitindo-se, inclusive, que,

3
O art. 4º do Código Eleitoral estabelecia: “Não podem alistar-se eleitores: a) os mendigos; b) os analfabetos;
c) as praças de pré, excetuados os alunos das escolas militares de ensino superior. [...]”. Por sua vez, a qualificação
fazia-se ex officio ou por iniciativa do cidadão. Qualificavam-se ex officio: “a) os magistrados, os militares de terra
e mar, os funcionários públicos efetivos; b) os professores de estabelecimentos de ensino oficiais ou fiscalizados
pelo Governo; c) as pessoas que exerçam, com diploma científico, profissão liberal; c) os comerciantes com firma
registrada e os sócios de firma comercial registrada: e) os reservistas de 1ª categoria do Exército e da Armada,
licenciados nos anos anteriores” (art. 37).
4
“Art. 38. [...] §2º Na eleição do Presidente da República, dos Governadores dos Estados, dos membros do Conselho
Federal, ou para o preenchimento de vagas nas Câmaras Legislativas, prevalecerá o princípio majoritário”.

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nos pleitos majoritários, o candidato pudesse inscrever-se em mais de uma legenda, e


tornando-se obrigatória a constituição de partidos nacionais.
As eleições, inclusive as para a Assembleia Constituinte, realizadas em 2.12.1945,
marcam “a incorporação definitiva dos setores médios e baixos das classes médias
no processo político e o advento da participação política das classes trabalhadoras”
(SOARES, 1973, p. 59), em outras palavras, ocasionando o fim da hegemonia da política
oligár­quica e a sua substituição por uma política poliárquica, com uma participação cada
vez maior dos setores populares.
Durante a vigência da CF/46, a participação popular nas eleições teve um grande
crescimento.

Em 1930, os votantes não passavam de 5,6% da população. Na eleição presidencial de 1945,


chegaram a 13,4%, ultrapassando, pela primeira vez, os dados de 1872. Em 1950, já foram
15,9%, e em 1960, 18%. Em números absolutos, os votantes pularam de 1,8 milhão em 1930
para 12,5 milhões em 1960. Nas eleições legislativas de 1962, as últimas antes do golpe de
1964, votaram 14,7 milhões. O número de eleitores inscritos era em geral 20% acima do
dos votantes, devido abstenção que sempre existia, apesar de ser o voto obrigatório. Em
1962, por exemplo, o eleitorado era de 18,5 milhões, correspondente a 26% da população
total. (CARVALHO, 2002, p. 146)

A efervescência política que marcou os anos 50 e os primeiros anos da década de


60 trouxe à baila a problemática das “reformas de base” ou de estrutura. Roland Corbisier
(1968, p. 1; 106), um dos mais importantes ideólogos de tais reformas, acentuava que, “a
rigor, a reforma prioritária, que deveria anteceder todas as outras, é a Reforma Eleitoral”,
pois, para que o Congresso pudesse votar as reformas, “seria indispensável, antes de
mais nada, modificar a sua composição”, cabendo a indagação crucial:

[...] Ora, se o Legislativo Federal é constituído, em sua maioria, por latifundiários, grandes
industriais, comerciantes e banqueiros, ou por seus representantes, como pretender possa
votar as reformas que contrariam os interesses dessa maioria conservadora?5

O golpe civil-militar de 1964 acabou por desfigurar a CF/46, sobretudo com a


edição de quatro atos institucionais, em que se baseou a suspensão dos direitos políticos,
a cassação dos mandados legislativos federais, estaduais e municipais, a ampliação dos
poderes legislativos do presidente da República, a extinção dos partidos políticos, com
cancelamento dos respectivos registros.

5.2.5 O Congresso Constituinte e a Constituição de 1988


Na esteira da convocação estabelecida pela Emenda Constitucional nº 26, de
27.11.1985, o Brasil viveu um dos mais importantes momentos de ativação política da
socie­dade civil organizada, que dava continuidade ao processo de mudança política,

5
Ainda segundo Corbisier (1968, p. 168), a reforma eleitoral, entendida como democratização do processo de
constituição do poder, todavia, não bastava. Fazia-se necessário, também, “democratizar os partidos políticos,
fazendo-os funcionar de baixo para cima, das bases para as cúpulas”, pelo que uma lei orgânica dos partidos
deveria complementar a reforma eleitoral.

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o qual, iniciando-se em meados da década de 70 e prolongando-se pelos anos 80,


ocasionou a inflexão do regime militar, a construção de instituições representativas
e multipartidárias e a realização de uma nova Constituição. O ritmo cadenciado das
mudanças, as negociações entre os agentes que pressionavam pela abertura política e
os líderes do regime burocrático-autoritário sugeriram a existência de um tipo especial
de transição, denominado “transição pela transação” (SHARE; MAINWARING, 1984;
MORAES, 1998a; SANTOS, 2000).
A atitude conciliatória do governo Geisel teve o condão de fazer com que o
Parlamento despertasse do marasmo a que fora reduzido durante os anos do governo
Médici. Ademais, o debate político que precedeu as eleições de 1974, a franquia aos
candidatos tanto da Aliança Renovadora Nacional (Arena) quanto do Movimento
Democrático Brasileiro (MDB) ao rádio e à televisão e a relativa liberdade com que se
procedeu às eleições faziam acreditar que o regime realmente estava mudando, embora
o presidente da República reiterasse a sua disposição de governar com os “instrumentos
de exceção”, apesar de preferir vê-los “não tanto em exercício duradouro ou frequente,
antes como potencial de ação repressiva ou contenção enérgica” (apud COUTINHO;
GUIDO, 2001, p. 2.513).
Ademais, os resultados das eleições, à medida que constituíam a primeira
manifestação do eleitorado depois de iniciada a “distensão”, eram muito significativos
para a mensuração da popularidade do regime. Acarretavam mesmo o esboroar da sua
autoestima, a prenunciar medidas tendentes a evitar a perda do controle do processo de
mudança política. Ou seja, partindo do pressuposto de que a manutenção do controle
do processo pelo próprio regime era a condição sine qua non sob a qual repousava a
possibilidade de abertura, era bastante previsível a tomada de medidas que evitassem o
crescimento da oposição parlamentar e que anulassem os efeitos dos resultados eleitorais.
A Constituição Federal estabelece que o Poder Legislativo é exercido pelo
Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
Por sua vez, a Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos,
pelo sistema proporcional, em cada estado, em cada território e no Distrito Federal.
Por sua vez, o número total de deputados, bem como a representação por estado e pelo
Distrito Federal, será estabelecido por lei complementar, proporcionalmente à população,
procedendo-se aos ajustes necessários, no ano anterior às eleições, para que nenhuma
daquelas unidades da Federação tenha menos de oito ou mais de setenta deputados.
Já o Senado Federal compõe-se de representantes dos estados e do Distrito Federal,
eleitos segundo o princípio majoritário. Cada estado e o Distrito Federal elegerão três
senadores, com mandato de oito anos.
O Poder Executivo é exercido pelo presidente da República, auxiliado pelos
ministros de Estado. A eleição do presidente e do vice-presidente da República se
realizará, simultaneamente, no primeiro domingo de outubro, em primeiro turno, e no
último domingo de outubro, em segundo turno, se houver, do ano anterior ao do término
do mandato presidencial vigente. Será considerado eleito presidente o candidato que,
registrado por partido político, obtiver a maioria absoluta de votos, não computados
os em branco e os nulos. Se nenhum candidato alcançar maioria absoluta na primeira
votação, far-se-á nova eleição em até vinte dias após a proclamação do resultado,
concorrendo os dois candidatos mais votados e considerando-se eleito aquele que obtiver
a maioria dos votos válidos. Se, antes de realizado o segundo turno, ocorrer morte,

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desistência ou impedimento legal de candidato, convocar-se-á, entre os remanescentes,


o de maior votação. Se ainda remanescer, em segundo lugar, mais de um candidato com
a mesma votação, qualificar-se-á o mais idoso.
No que se refere aos estados, a CF dispõe que o número de deputados à Assembleia
Legislativa corresponderá ao triplo da representação do estado na Câmara dos Deputados
e, atingido o número de trinta e seis, será acrescido de tantos quantos forem os deputados
federais acima de doze, o que se aplica também aos deputados à Câmara Legislativa.
Será de quatro anos o mandato dos deputados estaduais, aplicando-se lhes as regras
da CF, entre outros aspectos, sobre o sistema eleitoral. Dispõe ainda a CF que a eleição
do governador e do vice-governador, observadas as regras do art. 77, e dos deputados
distritais coincidirá com a dos governadores e deputados estaduais, para mandato de
igual duração.
Sobre os municípios, a CF estabelece que a eleição do prefeito, do vice-prefeito e
dos vereadores se dará para mandato de quatro anos, mediante pleito direto e simultâneo
realizado em todo o país. A eleição do prefeito e do vice-prefeito se realizará no primeiro
domingo de outubro do ano anterior ao término do mandato dos que devam suceder,
aplicadas as regras do art. 77, no caso de municípios com mais de duzentos mil eleitores.
Quanto aos partidos políticos, a CF estabelece que lhes é assegurada autonomia
para definir a sua estrutura interna e estabelecer as regras sobre a escolha, formação
e duração de seus órgãos permanentes e provisórios e sobre a sua organização e
funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações
nas eleições majoritárias, vedada a sua celebração nas eleições proporcionais,6 sem
obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual,
distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e
fidelidade partidária.
A CF/88 conservou o registro eleitoral obrigatório para as pessoas com idade
compreendida entre dezoito e setenta anos e, facultativamente, para os maiores de
setenta anos, ampliando-se esse direito para os maiores de dezesseis e menores de
dezoito anos e analfabetos.

5.3 Algumas considerações sobre o processo eleitoral brasileiro


A experiência partidário-eleitoral que vai de 1945 até 1964 inspirou larga produção
de estudos, de modo geral caracterizados por uma preocupação mais externalista, por
atribuírem ao processo de desenvolvimento econômico e social vivido pelo Brasil – com
destaque para a urbanização e a industrialização – o papel de fatores preponderantes
nas tendências assumidas pelo sistema partidário-eleitoral (MORAES, 1998b).
Entre os muitos estudiosos que se debruçaram sobre a matéria, Hélio Jaguaribe
(1962) e Celso Furtado (1967) preocuparam-se em estabelecer um diagnóstico sobre a
lentidão do Brasil em modificar o seu sistema político. O primeiro destacava a existência
de uma política de clientela em contraposição a uma política ideológica; o outro acentuava a
disjunção entre o voto rural e o voto urbano. Na análise de Furtado, com as Constituições

6
A Emenda Constitucional nº 97, de 4.10.2017, vedou as coligações partidárias nas eleições proporcionais e
estabeleceu cláusula de desempenho, a partir de 2020, para as eleições dos deputados federais.

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de 1934 e 1946, o sistema eleitoral, o regime federativo, a estrutura de partidos – de


patronagem – estabeleciam uma representação predominantemente oligárquica no
Congresso Nacional, centro do poder político de fato. Todavia, o processo de urbanização,
advindo das modificações na estrutura social, valorizou o voto dos habitantes da cidade,
que se fez sentir no voto majoritário dirigido ao Poder Executivo. Por conseguinte, um
Legislativo controlado pela “velha oligarquia” e um Executivo de cunho progressista
acarretariam um relacionamento entre os poderes capaz de paralisar virtualmente o
exercício do governo.
Um segundo momento da literatura brasileira sobre partidos e eleições se inicia nos
anos 60, prolongando-se pelos anos 70 e 80, com preocupação mais político-institucional
do fenômeno eleitoral. Por exemplo, Gláucio Ary Dillon Soares (1973) chamou a atenção
de modo particular para o papel do estado-membro na política nacional e discorreu
sobre uma das questões mais recorrentes do debate partidário-eleitoral, a saber, a
do crescimento/declínio dos partidos e do eleitorado, compreendido na perspectiva
do espectro político-ideológico. Já Olavo Brasil de Lima Jr. (1983), na sua abordagem
sobre o sistema partidário, acentuou a existência de subsistemas partidário-eleitorais e
da “racionalidade instrumental” do voto, na formação política que se desenvolveu no
Brasil a partir da redemocratização de 45.
Wanderley Guilherme dos Santos, ao analisar a crise de 1964, concorda que ela foi
resultado de um estado de imobilismo político, porém tal imobilismo não seria decorrência
de um impasse entre o Executivo de base urbana versus o Legislativo de raízes rurais.
O impasse teria sido consequência imperiosa de um conflito político caracterizado pela
dispersão de recursos entre atores radicalizados, que impossibilitou o desenvolvimento
adequado do sistema, acarretando uma crise de paralisia decisória. Indo de encontro ao
pensamento de Celso Furtado, o mesmo autor questiona que nunca ficou provado de
maneira conclusiva que o Legislativo, mesmo com a maioria de seus membros eleitos
em áreas rurais, “houvesse sido consistentemente reacionário e hostil às propostas
modernizantes oriundas do Executivo”. Afirma também que outra tese, ainda a ser
demonstrada, “é o pretendido caráter progressista dos sucessivos Executivos brasileiros,
algo que permanece suposto mais que confirmado” (SANTOS, 1986, p. 20; 22).
Além dos autores arrolados neste trabalho, há um conjunto de estudiosos do
fenômeno eleitoral – v.g., Ames (2003), Reis (2003), Bercovici (2005), Power (2010),
Salgado (2010; 2012), Aieta (2017), Caggiano (2017) –, principalmente constitucionalistas,
eleitoralistas e cientistas políticos, os quais, abordando aspectos teóricos, empíricos
e comparados, iluminam tal faixa da realidade política brasileira. São estudos que,
afastando a tradição ensaístico-opinativa, chegaram, com o uso de recursos metodológicos
consistentes, a resultados importantes.
De modo geral, podem classificar-se os sistemas eleitorais com base no princípio
majoritário e no princípio proporcional, a partir do que se distribui uma miríade de
for­mulações. No que concerne ao sistema majoritário, o resultado dá-se por maioria
simples, dois turnos ou voto alternativo. O sistema proporcional comporta o voto único
transferível e o voto em lista. Podem combinar-se os dois sistemas num sistema misto,
com características majoritárias e proporcionais.
No Brasil, assiste-se à existência de um sistema eleitoral proporcional, para as
eleições de deputados federais e estaduais e de vereadores; outro, majoritário, para as
eleições de senadores e de prefeitos de municípios com até duzentos mil eleitores; e

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mais outro, para as eleições de presidente da República e governadores, e prefeitos de


munícipios com mais de duzentos mil eleitores.
Tanto o princípio majoritário quanto o princípio proporcional já possuem vida
longa no processo político-constitucional brasileiro. Durante o Império, experimentaram-
se diversas modalidades de voto majoritário, que permaneceu durante a República Velha.
Ao longo da quadra republicana, o primeiro princípio, consagrado na Constituição de
1891, teve continuidade nas demais constituições; o princípio proporcional, introduzido
pelo Código Eleitoral de 1932, tornou-se presente em todas as constituições, a partir
de 1934. Deve-se salientar, em relação ao voto proporcional, que, no “eterno retorno”
da reforma política, é objeto de cerco recorrente, com o debate político-constitucional
acenando a para adoção do majoritaríssimo, quer puro quer misto.

5.4 O “eterno retorno” da reforma política e o sistema eleitoral


O sistema político brasileiro atual mescla formas de representação incomuns
nas democracias representativas, dado que reúne eleições majoritárias com segundo
turno, eleições majoritárias simples e eleições proporcionais. Ademais, o sistema é
marcado por uma característica peculiar, pela qual os votos preferenciais determinam
completamente a ordem dos candidatos, votando o eleitor em apenas um deputado e
não podendo o seu voto ser transferido. Talvez, tenha sido Jean Blondel (1957, p. 26)
quem, já há algum tempo, melhor tenha definido a particularidade e a potencialidade
do sistema proporcional no Brasil:

Votando em um candidato, de fato o eleitor indica, de uma vez, uma preferência e um


partido. Seu voto parece dizer: “Desejo ser representado por um tal partido e mais
especificamente pelo Sr. Fulano. Se este não for eleito, ou for de sobra, que disso aproveite
todo o partido”. O sistema é, pois, uma forma de voto preferencial, mas condições técnicas
são tais que este modo de escrutínio é uma grande melhora sobre o sistema preferencial
tal qual existe na França.

De fato, é um “modelo proporcional peculiar e diferenciado do modelo


proporcional tradicional, que se assenta em listas apresentadas pelos partidos políticos”
e que faz com que “o mandato parlamentar, que resulta desse sistema, afigure-se mais
como fruto do desempenho e do esforço do candidato de que da atividade partidária”. Por
outro, lado, “a formação de coligações entre partidos políticos para disputa de eleições
é uma das características marcantes do sistema proporcional brasileiro” (MENDES,
2014, p. 773).
Há pelo menos cinco opções de sistema eleitoral, a saber, três de representação
proporcional (lista aberta, lista fechada e lista flexível), o sistema majoritário distrital
e o sistema dito “distrital misto” (NICOLAU, 2008). Para cada modalidade, podem
apresentar-se vantagens e desvantagens, tanto apontadas teoricamente quanto extraídas
da experiência aqui e alhures (LIJPHART, 1995; NICOLAU, 2004; CORTI, 2012; LANDA,
2012; RUIZ, 2012; SANTANO, 2012).
No que concerne ao sistema de escolha dos parlamentares, de 1979 para cá se
caminhou de modo hesitante entre a instituição, via inspiração do Executivo militar,
do sistema distrital misto (majoritário e proporcional) e a manutenção do sistema

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188 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

proporcional de lista aberta, introduzido no país em 1932 e aperfeiçoado em 1935.


O sistema distrital misto chegou mesmo a ser adotado constitucionalmente em 1982,
todavia, foi revogado pela Emenda Constitucional nº 25/85.
Na legislatura em curso, um conjunto de propostas de modificação do sistema
proporcional veio à tona. Ultimamente, o espectro do voto distrital parece rondar
as instituições representativas brasileiras. A seu favor e com argumentos diversos,
conjuraram-se ou conjuram-se, entre outros, o atual presidente da República e o Senador
José Serra (PSDB-SP), o Ex-Presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha
(PMDB-RJ) e parte do PMDB, o líder do movimento “Vem para a Rua” e quejandos,
contrapostos às surpresas episódicas oferecidas, a cada quatro anos, pelas eleições
parlamentares, algumas provocadas por distorções institucionais, outras, pela própria
natureza das coisas da democracia política. Foi-se mais longe, propondo-se, inclusive,
o “distritão” (tecnicamente denominado “voto singular não transferível”), ou seja, o
sistema que cuidaria de tornar cada estado, nas eleições para deputado federal e deputado
estadual, e cada município, nas eleições para vereador, em uma única circunscrição ou
distrito, resultando eleitos, afinal, os mais votados em ordem decrescente.7
Nesta legislatura, analisando a proposta de reforma política relatada pelo
Deputado Vicente Cândido (PT-SP), a Câmara dos Deputados derrotou as modificações
relativas ao sistema eleitoral, nomeadamente, o voto distrital misto, o “distritão” e o
sistema de listas fechadas.

5.5 Considerações finais


O voto, como instrumento da cidadania, ora restrita, ora ampliada, acompanha
toda a evolução histórica do Brasil, da Colônia aos dias atuais, em que se vivencia um
experimento democrático. Em algumas épocas foi ou é obrigatório, em outras, facultativo;
já foi censitário, econômico ou cultural, atualmente, permitindo-se, inclusive, aos
analfabetos. Houve momentos em que as eleições foram caracterizadas por muita coerção,
momentos em que se alternam coerção e sedução; etapas com rarefeita ou com elevada
participação popular. A evolução também se deu no sentido da ação de votar, ou seja, o
voto falado, o voto “cochichado”, o voto escrito e, mais recentemente, o voto eletrônico.
Sistema eleitoral é um conjunto de normas para aferir votos e transformá-los
em poder político, contido em cadeiras parlamentares e cargos administrativos. Por
precaução, cumpre concluir que, como parte do sistema político, ou do arranjo institu­
cional de que participam o sistema partidário, o sistema de governo e a forma de Estado,
o relativo isolamento do sistema eleitoral que se dá neste trabalho é apenas para efeitos
analíticos.

7
O atual presidente da República é a voz mais loquaz em favor do tal “distritão” nas eleições proporcionais.
Em artigo em O Estado de São Paulo, arrolou razões jurídicas e políticas a justificarem a adoção do mecanismo
(TEMER, 2015, p. 2). Para tanto, extrai da Constituição Federal uma especiosa principiologia de decisão
majoritária, a envolver as eleições para o Legislativo e o Executivo, e as decisões judiciárias, que se dão por
maioria. E salienta que, como ponto fora da curva, “a única exceção à determinação de que a maioria é que fala
em nome do povo [...] é o critério de proporcionalidade obtido no quociente de votos”. Ademais, assevera que
“entre os valores constitucionais, vontade majoritária e partido político, deve prevalecer o primeiro”, quando
condena o voto proporcional e propõe o “distritão”.

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Aqui, já se experimentaram todos os sistemas eleitorais. Por tudo, não é temerário


concluir que a vocação do Brasil é a democracia representativa, majoritária (Executivo e
Senado) e proporcional (deputados federais e estaduais, e vereadores), a última já tão bem
demonstrada teórica e empiricamente, no passado e no presente. Na verdade, o sistema de
voto proporcional – objeto de tanto assédio – é o que, realizados certos aperfeiçoamentos,
constitui-se no melhor modelo para a institucionalização da democracia política entre
nós, como o demonstra a experiência dos últimos trinta anos.
Como suma das sumas, nunca é ocioso que a construção de uma democracia
política ou poliarquia depende, em boa medida, da ação dos eleitores de torná-la uma
democracia civilizada ou uma democracia boçal.

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PECCININ, Luiz Eduardo (Org.). Direito Constitucional Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 175-191.
(Tratado de Direito Eleitoral, v. 1.) ISBN 978-85-450-0496-7.

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CAPÍTULO 6

FUNDAMENTOS DA DEMOCRACIA
E O VOTO FACULTATIVO

MARCO ANTÔNIO MARTIN VARGAS

RICHARD PAE KIM

6.1 Introdução1
Novamente se verifica a discussão sobre a necessidade das reformas políticas e do
sistema eleitoral no Brasil. Entre as diversas questões postas – remodelação dos partidos
políticos, discussão sobre as coligações, controle dos gastos dos partidos, voto distrital,
necessidade de se elaborar um código moderno e que dê mais segurança aos processos
eleitorais – temos a renovação do debate sobre a substituição do sistema de votação
obrigatória pela facultativa. No tocante a este ponto, há que se avaliar, não somente sob
o ponto de vista prático ou decorrente do puro “achismo”, o que muitas universidades
norte-americanas denominam argumentos fuzzy, ou seja, ocos, sem consistência científica,
se a mudança pretendida por boa parte da população no país pelo sistema do voto
facultativo retratará ou não os principais fundamentos da democracia que é a tradução
livre da vontade do povo na escolha de seus dirigentes ou legisladores.
Não há dúvida de que no Brasil de hoje, em função do que disposto no art. 14,
§1º, incs. I e II da Constituição Federal, adotou-se um sistema misto, pois o alistamento
eleitoral e o voto são: “I - obrigatórios para os maiores de dezoito anos; II - facultativos
para: a) os analfabetos; b) os maiores de setenta anos; c) os maiores de dezesseis e menores
de dezoito anos”. Entretanto, a maioria dos brasileiros e com capacidade eleitoral se
encontra obrigada a votar, mesmo contra a sua vontade, e daí nos perguntamos se esta
opção política efetivada pela Constituição deve ou não prevalecer.

1
Este artigo é resultado da atualização e revisão de artigo originariamente publicado em obra coletiva: VARGAS,
Marco Antônio Martin; KIM, Richard Pae. Voto facultativo e os fundamentos da democracia: diálogos sobre
a noção de cidadania. MORAES, Alexandre de; KIM, Richard Pae (Coord.). Cidadania. São Paulo: Atlas, 2013.
p. 152-164.

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Evidentemente que as discussões sobre esses dispositivos constitucionais giram


sempre em torno de argumentos filosóficos, sociológicos ou políticos, uma vez que a
discussão no âmbito jurídico inexiste, em função da opção legal efetivada então pelo
constituinte de 1988. Ou seja, não há qualquer dúvida quanto à validade e o conteúdo
interpretativo das normas constitucionais mencionadas. O objeto da discussão posta
pretende renovar as reflexões sobre os sentidos da democracia, do conceito de cidadania,
e do exercício do sufrágio, bem como avaliar a natureza deste direito subjetivo.

6.2 Democracia, participação política e seus fundamentos – Uma


resenha descritiva
A democracia como regime político não possui valor como um fim pretendido, a
ser alcançado em si mesmo, mas cuida-se de instrumento para a efetivação de valores
que são essenciais para a adequada convivência do homem pela vontade do povo.
O sistema democrático implica a existência de um conjunto de regras e de procedimentos
a organizar o sistema político e o sufrágio a possibilitar a elaboração do melhor caminho
para a obtenção da decisão política de um povo, como a definição do universo de eleitores,
composição de partidos políticos, regras do processo eleitoral etc. Democracia não
configura a melhor decisão, mas o melhor iter, mediante a participação popular possível
e universal. Evidentemente que o conceito de democracia não é absoluto, mesmo porque,
como bem salientado por José Afonso da Silva, não existe democracia acabada;2 aliás, a
se tomar o termo no rigor de sua acepção, jamais existiu verdadeira democracia e jamais
existirá, embora concorde o autor que esse é o melhor regime político a ser aplicado.
A ideia de democracia, não há que se olvidar, passou a ser bem traduzida pela
frase atribuída ao presidente norte-americano Abraham Lincoln, no sentido de que
“é o governo do povo, pelo povo e para o povo”, ou seja, um sistema de convivência e de
gerência dos interesses cujos atores devem ser apenas os componentes entre os nacionais.
É evidente que esse regime deve ser composto de princípios, que restaram bem
retratados por Pinto Ferreira, que afirmou ser a democracia uma “forma constitucional de
governo da maioria que, sobre a base da liberdade e igualdade, assegura às minorias no
parlamento o direito de representação, fiscalização e crítica”.3 Embora se possa perceber
que dois pilares podem ser extraídos desta definição, quais sejam, a igualdade material
(ou substancial) e a liberdade (como direito geral de liberdade), dois outros fundamentos
se mostram também fundamentais para qualquer democracia: soberania popular, eis que
o povo deve ser a única fonte dos poderes constituídos e constituintes; e a participação
direta ou indireta (representação) a garantir o cumprimento da vontade popular.
Essa vinculação entre o povo e o poder pode ser realizada, basicamente, por três
vias. Na democracia direta, a participação do povo no processo do poder será direta.
Na representativa, ou democracia indireta, a vontade se dá por meio de representantes
eleitos. Por fim, temos a democracia semidireta, na qual há a representação com alguns
institutos de participação direta do povo em funções de governo, em que haverá o que

2
SILVA, José Afonso da. Democracia participativa. Cadernos de Soluções Constitucionais, São Paulo, v. 2, p. 183-214,
2006. p. 183.
3
FERREIRA, Pinto. Princípios gerais do direito constitucional moderno. São Paulo: Saraiva, 1971. p. 64.

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se denomina de democracia participativa, como no caso da participação da sociedade


em conselhos de políticas públicas paritários, da iniciativa popular, do plebiscito e do
referendo popular.
Hodiernamente, a concepção de participação do povo na época iluminista era
apenas na formação das leis, quando hoje a formação é dos poderes e ocorre em diversos
níveis locais, regionais ou federativo.
Não há como se conceber hoje que o povo possa decidir diretamente as leis que
pretende sejam cumpridas e governar ao mesmo tempo. Cuida-se, com o devido respeito,
de sistema utópico e imaginável apenas em países de pequena extensão territorial e com
um sistema avançado de informações e de comunicação, sem se olvidar de que o aspecto
histórico deste povo deverá levá-lo à construção de um regime democrático direto que
será, a toda evidência, mais complexo que as duas outras vias.
Independentemente da forma de governo que se adote, o regime democrático
representativo, inclusive, como já mencionado, deve pressupor a participação política
do cidadão livre, inclusive para expressar a sua liberdade, de se reunir ou de se associar,
influindo desta forma na política do país, além de eleger seus representantes. E, como
bem lembrado por Ana Florinda Dantas:

Essa liberdade necessária à participação política é conceitualmente diferente da liberdade


civil (a liberdade negativa, faculdade de fazer ou não fazer), caracterizando-se antes como
liberdade positiva de participar, ainda que indiretamente, na formação do Governo, e a
sua expressão fundamental é o ato de votar, sendo o sufrágio o poder que se reconhece ao
cidadão de participar na vida pública, tanto que Benjamin Constant comparou a liberdade
dos antigos com liberdade dos modernos, destacando ser a primeira a liberdade individual,
e a última a liberdade política, manifestada na relação do indivíduo com o Estado.4

A participação política, evidentemente, decorrerá do exercício dos direitos


políticos, que são direitos públicos subjetivos, cujo conteúdo sempre dependerá da ordem
jurídica positiva e a constitucionalização desses direitos propiciará uma imunidade,
ainda que relativa, contra os atos da autoridade estatal.
Conforme Antônio Carlos Mendes, os direitos políticos são situações subjetivas
expressa ou implicitamente contidas em preceitos e princípios constitucionais, reconhe­
cendo aos brasileiros o poder de participação na condução dos negócios públicos: a)
votando; b) sendo votado, inclusive investindo-se em cargos públicos; c) fiscalizando os
atos do Poder Público, visando ao controle de legalidade e da moralidade administrativa.5
Na visão de Monica Herman Salem Caggiano, uma vez que adotado o mecanismo
eleitoral como operador da representação política, “é de se reconhecer que, dentre os
direitos políticos, o de sufrágio, talvez seja o mais eminente em relação ao homem político,
integrante de uma comunidade social, exatamente por lhe propiciar a participação no
pólo epicêntrico das decisões políticas, quer ativa, que passivamente”6 (in verbis), cuida-
se de verdadeiro direito subjetivo do cidadão.

4
DANTAS, Ana Florinda. Voto facultativo e cidadania. Revista do Tribunal Regional Eleitoral de Alagoas, Maceió,
v. 1, n. 1, p. 13-26, 2007. p. 15.
5
MENDES, Antônio Carlos. Introdução à teoria das inelegibilidades. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 25.
6
CAGGIANO, Monica Herman Salem. Direito parlamentar e direito eleitoral. Barueri: Manole, 2004. p. 79.

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O poder de sufrágio, quando exercido por meio de processo eleitoral válido,


consagra a democracia, como anotado por Mônica Herman Salem Caggiano –7 que bem
rememora as clássicas lições de Sartori –, e quando desenvolvido o sistema de molde a se
acomodar ao macroprincípio de autodeterminação e seus corolários exigirá: i) atribuição
igual do direito de voto e sufrágio universal; ii) periodicidade do voto; iii) igualdade do
valor do voto; iv) pessoalidade do voto; v) sigilo do voto; vi) liberdade de postular cargos
eletivos; vii) respeito ao direito dos candidatos de disputarem respaldo popular viii) e
dos líderes políticos e candidatos de disputarem votos. Assim, somente com o respeito
a essas bases será viável o exercício do sufrágio que reflita uma preferência política dos
cidadãos e um processo democrático justo.
O respeito à democracia não significa respeito a um modelo, mas à evolução dos
processos políticos e eleitorais justos. O jurista Pinto Ferreira bem destacou que a “a
democracia não é uma doutrina imobilizada, petrificada em um dogma eterno, nem
tampouco uma forma histórica imutável, porém um sistema de ideias e uma instituição
que se retificam constantemente com o progresso ético e científico da humanidade”.8
Assim pensamos que a evolução de nossos sistemas político e eleitoral não só é possível,
mas necessária em nosso país.

6.3 Cidadania e sufrágio


Para a presente discussão há a necessidade de entendermos a posição do cidadão
nas relações com o Estado e com a própria sociedade. Para isto, não há como deixarmos
de analisar a dimensão, o sentido de cidadania.
Na concepção liberal de cidadania, esta pode ser definida como um status conce­
dido pelo Estado aos seus membros, sendo estes beneficiários iguais em direitos e
obrigações e, sob o seu aspecto político, temos a garantia do direito político de participar
da formação do poder e de participar das decisões políticas do Estado por meio dos
direitos eleitorais de votar e de ser votado.9 Hoje, ultrapassado o momento histórico do
surgimento de uma concepção individualista e de proteção dos direitos do cidadão sob a
perspectiva de sua dimensão vertical na relação do sujeito com o Estado, fala-se também
em uma dimensão horizontal como uma “condição objetiva de acesso a direitos, mas
também de comprometimento com os interesses da comunidade, como por exemplo,
a defesa ambiental, a responsabilidade social, a transparência dos negócios públicos, a
distribuição de renda e a inclusão social”.10
A cidadania, portanto, deve ser concebida como uma qualidade do próprio cida­
dão, consistente em um conjunto de direitos fundamentais que implique a intersubje­
tividade entre os cidadãos e que garanta a este indivíduo, de forma livre, o exercício de
seus direitos individuais, coletivos, sociais e políticos.

7
CAGGIANO, Monica Herman Salem. Direito parlamentar e direito eleitoral. Barueri: Manole, 2004. p. 80.
8
FERREIRA, Pinto. Princípios gerais do direito constitucional moderno. São Paulo: Saraiva, 1983. p. 195.
9
MARSHAL, Thomas Humphrey. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. p. 37.
10
SMANIO, Gianpaolo Poggio. A conceituação da cidadania brasileira e a Constituição Federal de 1988. In:
MORAES, Alexandre de (Coord.). Os 20 Anos da Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Atlas,
2009. p. 337.

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Evidente que aquele sentido de cidadão, como um morador da cidade, o natural


e habitante das cidades antigas ou Estados modernos, que é sujeito de direitos políticos
e que, ao exercê-los, intervém no governo do país,11 não mais há como prevalecer, seja
porque o estudo sobre a cidadania já ultrapassou as discussões de natureza privatística e
hoje cuida-se de instituto de direito público, pois trata da relação jurídica do indivíduo,
detentor dentro do sistema legislativo de uma posição jurídica, com o Estado, seja sob
o aspecto político-social, seja sob a óptica jurídica.
Conforme escólio de Oscar Svarlien, “cidadania não deve ser confundida com
domicílio, nem cidadão com habitante. O indivíduo pode ser cidadão de um estado
sem ser habitante do mesmo, ou pode ser habitante sem ser cidadão” e, completa, com
a seguinte definição que nos parece bem adequada: “a cidadania pode ser definida
como o estatuto oriundo do relacionamento existente entre uma pessoa natural e uma
sociedade política, como o Estado, pelo qual a pessoa deve a este obediência e a sociedade
lhe deve proteção”.12
Mas além desta dimensão vertical do liberalismo, como já acentuado, o conceito
de cidadania hoje ultrapassa os limites singelos dos direitos políticos de participação
e há que se reconhecer a existência de sua dimensão horizontal, de solidariedade,
abrangendo não só as relações entre o cidadão e a sociedade, mas também as relações
entre os cidadãos.13
Isto implica que não mais há como se acolher a tese de que os direitos da cidadania
estão apenas restritos à relação do cidadão com o Estado, mas se mostra ampliada, o que
deve nos levar a concluir que o cidadão não é apenas o indivíduo detentor de direitos
políticos, que apenas possui um título de eleitor “válido”, mas aquele que é detentor,
em sentido amplo, de direitos fundamentais civis, políticos e sociais, mesmo que na
forma técnica, jurídica, e não apenas para os cultores das ciências sociais e políticas,
seja simplesmente um eleitor. Aliás, há tempos se aguarda a diferenciação conceitual
entre cidadão e eleitor no ramo do direito, inclusive para se atender à utilização da
nomenclatura cidadão de forma mais ampla e abarcar a conceituação utilizada pelos
sociólogos e cientistas políticos.
Este é um aspecto de suma importância. Há que se ultrapassar os limites formais
hoje existentes no sentido de que apenas o indivíduo “detentor de direitos políticos e
que possa exercê-los” é que deva ser denominado cidadão em seu país. Aliás, como
bem salientado por Vladmir Oliveira da Silveira e Vanessa Toqueiro Ripari, a cidadania
“fechada” de origem grega evoluiu para uma cidadania “aberta” ou compartilhada, não
apenas para os novos indivíduos, mas também para novos direitos, ainda mais quando
as novas relações internacionais não mais permitem estruturas estanques de Estados
fechados, e, assim, concluem a respeito deste ponto:

O paradigma dos direitos de solidariedade demanda um Estado “aberto” à cidadania.


Assim, essa nova cidadania pela qual se clama também na pode ser alcançado nos moldes

11
QUINTANA, Juan Blasco; SILVA, Benedicto (Coord.). Dicionário de ciências social. Rio de Janeiro: FGV, 1986.
p. 177.
12
SVARLIEN, Oscar; SILVA, Benedicto (Coord.). Dicionário de ciências social. Rio de Janeiro: FGV, 1986. p. 177.
13
SMANIO, Gianpaolo Poggio. A conceituação da cidadania brasileira e a Constituição Federal de 1988. In:
MORAES, Alexandre de (Coord.). Os 20 Anos da Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Atlas,
2009. p. 343.

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do tradicional Estado nacional homogeneizante, dominador (imperialista) e negador das


diferenças, mas deve caracterizar-se por um conteúdo mais abrangente e sempre com
pluralidade jurídica e de tutela. Torna-se imperioso por isso o reconhecimento de uma
cidadania pluritutelada – e, portanto, nacional, regional e universal –, que assegure em
diferentes partes do globo o “direito a ter direitos”, na célebre expressão de Hannah Arendt,
impulsionando mudanças que não se restringirão apenas a uma noção ou outra (cidadania
estatal), mas serão implementadas de modo universal e regional.14

A soberania do povo é exercida pelo sufrágio universal que significa aprovação,


apoio. Com todo o respeito aos que sustentam de forma contrária,15 não há que se
confundir o sufrágio, que é um direito público subjetivo consistente no exercício deste
poder pelo voto, de forma democrática, da elegibilidade, que é o direito político da
pessoa de ser escolhida para governar e para representar o povo, pois os direitos são
tratados separadamente no art. 14, caput e §3º da Constituição Federal.16
Ademais, não há que se confundir voto com sufrágio, sendo que o primeiro é o
instrumento pelo qual se exerce o segundo, que se trata do direito político indelegável,
eis que personalíssimo.
Este sufrágio pode ser universal ou restrito, igual ou desigual. Vejamos.
O sufrágio universal é “aquele em que o direito de votar é atribuído ao maior
número possível de nacionais. As eventuais restrições só devem fundar-se em circuns­
tâncias que naturalmente impedem os indivíduos de participar do processo político”.17 É
evidente que isto não significa a concessão genérica e ilimitada de direitos políticos, mas
que a concessão do direito deve ser excepcional, como é aos estrangeiros, conscritos (art.
14, §2º, CF/88) e aos absolutamente incapazes, por exemplo. Neste caso, não se admite
restrição eventual ou sem justificativa em contrariedade com a igualdade e a razoa­
bilidade, como as exclusões por motivos étnicos, políticos, econômicos ou intelectuais.
O sufrágio restrito existe quando este direito é concedido apenas a alguns
nacionais, a uma minoria, como nos casos históricos de sufrágio censitário, cultural ou
capacitário, e masculino.
O sufrágio censitário possui fundamento na capacidade econômica do indivíduo.
E, como lembra Pinto Ferreira, essa forma de sufrágio dominou a Europa no século XIX e,
no Brasil, foi adotada pela Constituição Imperial de 1824 e pelas constituições
republicanas de 1891 e 1934, que excluíram esse direito dos mendigos, por exemplo.18
O sufrágio cultural ou capacitário restou fundado na condição intelectual da pessoa,
isto é, as pessoas que passassem a ter este direito deveriam possuir certo grau de
instrução, comprovado pela posse de um diploma acadêmico ou pelo exercício de certas

14
SILVEIRA, Vladimir Oliveira da; RIPARI, Vanessa Toqueiro. A cidadania regional americana e o ordenamento
jurídico brasileiro. Diálogos e Debates – Revista Trimestral da Escola Paulista da Magistratura, ano 9, n. 4, ed. 36,
p. 22-28. p. 24.
15
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 120.
16
Veja que o art. 14, caput, da CF estabelece que a soberania popular “será exercida pelo sufrágio universal e pelo
voto direto e secreto, com valor igual para todos” e no seu §3º, a Constituição prevê que “são condições de
elegibilidade, na forma da lei: I – a nacionalidade brasileira; II – o pleno exercício dos direitos políticos; III – o
alistamento eleitoral; IV – o domicílio eleitoral na circunscrição; V – a filiação partidária. VI – a idade mínima
[...]”.
17
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. São Paulo: Atlas, 2016. p. 50.
18
FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 36. v. 1.

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profissões, sendo que esta modalidade restritiva vigorou na história de nosso país até a
sua extirpação pela Emenda Constitucional nº 25/1985. Hoje, ao contrário, o analfabeto
tem garantido o seu direito de votar, ainda que o seu exercício seja facultativo, como
prevê o art. 14, §1º, inc. II, letra “a” da Constituição Federal. No sufrágio masculino
podia-se votar a totalidade dos homens que cumprissem com os requisitos legais e em
vários países se passou diretamente do sufrágio censitário ao universal, sem esta situação
de permeio. Entretanto, em alguns países como na Grécia (1822), França (1848), Suíça
(1848), Espanha (1891), Noruega (1897), Império Austro-Húngaro (1907), Suécia (1911),
Países Baixos (1917), Bélgica (1919), Reino Unido (1918) e Itália (1919), chegou a vigorar
esta forma restritiva de sufrágio durante décadas.19
O sufrágio igual, fundado no princípio da isonomia, significa que todos possuem
o mesmo poder político no processo eleitoral, razão pela qual se aplica a expressão
inglesa: one man, one vote.
Por sua vez, no sufrágio desigual, admite-se a “superioridade de determinados
votantes, pessoas qualificadas a quem se confere maior número de votos”, que se
espelha nos “princípios elitistas, oligárquicos e aristocráticos, de prevalência de classes
ou grupos sociais”,20 e que hoje não faz mais sentido, como ocorre nos casos de: voto
familiar, em que o pai de família acaba por deter o número de votos equivalentes aos de
seus filhos; voto plural, em que o indivíduo passa a votar mais de uma vez na mesma
eleição, desde que o faça na mesma circunscrição eleitoral; e, do voto múltiplo, em que
o eleitor pode votar mais de uma vez na mesma eleição, em diversas zonas eleitorais
de comarcas diferentes.
Podemos inferir, portanto, que a relação entre sufrágio e voto se encontra
intimamente ligada, na medida em que o voto representa o seu exercício. E é evidente
que a forma como esse direito deve ser exercido traça os limites efetivos do próprio
direito e o qualifica.

6.4 O voto e sua natureza jurídica – Direito e/ou dever?


O sufrágio, como direito, com o devido respeito às teses contrárias, não pode ser
exercido de forma compulsória. Vejamos.
Hoje, como decorrência da obrigatoriedade do voto aos maiores de 18 anos,
excluindo-se os votos facultativos previstos ao analfabeto e ao menor de 18 e maior
de 16 anos e do maior de 70 anos de idade, o não comparecimento ao primeiro e/ou
segundo turno das eleições enseja a aplicação de multa e, caso o eleitor deixe de votar
em três eleições consecutivas, nos termos do art. 71, inc. V, do Código Eleitoral, terá a
sua inscrição cancelada.
O Tribunal Superior Eleitoral regulamentou a questão no art. 80, caput, da
Resolução nº 21.538/03, ao dispor que o eleitor que deixar de votar e não se justificar
perante o juiz eleitoral até 60 dias após a realização da eleição incorrerá em multa
imposta pelo juiz eleitoral e a ser cobrada na forma prevista nos arts. 7º, 85 e 367 do
Código Eleitoral, e o §1º do referido art. 80 desta resolução reduziu o prazo para 30 dias
quando o eleitor retorna ao país.

19
As datas se referem ao ano em que se iniciou este critério em cada país.
20
FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 292. v. 1.

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Veja-se que, portanto, o eleitor terá a sua inscrição cancelada e perderá a sua
condição como cidadão-eleitor, caso não restem cumpridos os requisitos mencionados.
Portanto, excluiu-se do eleitor, com esta sistemática, o direito dele de protestar pela sua
omissão perante as urnas, obrigando-o a um comparecimento sem maior sentido, como
já sabemos, os votos nulos e em branco não são computados para qualquer candidato,
partido ou coligação.
A legislação atual, como se verifica, transforma o cidadão que não concorda em
participar do sistema de escolha política em cidadão de segunda categoria, pois aquele
que não votar e deixar de justificar no prazo legal poderá ter contra si aplicadas oito
espécies de penalidades, a depender do caso concreto, a saber: a condenação ao paga­
mento de multa; a proibição de se inscrever em concurso público ou de tomar posse
em cargo público; proibição de tirar passaporte ou carteira de identidade; proibição de
receber remuneração de órgãos e entidades estatais; proibição de participar de licitação
pública; impedimento de obter empréstimo de entidades financeiras estatais; proibição
de renovar matrícula de ensino oficial ou fiscalizado pelo governo e, ainda, de praticar
qualquer ato para qual se exija quitação do serviço militar ou imposto de renda. Ou seja,
transforma esse eleitor em um verdadeiro “fora da lei”.
Afirmar-se que este direito público subjetivo deve ser também um dever cívico
e que, por isso, seria obrigatório para os maiores de 18 anos e menores de 70 anos, nos
termos do art. 14, §1º, da Constituição Federal, nos parece negar o próprio sentido de
democracia, não se podendo olvidar a colocação de Hannah Arendt (em sua clássica
obra A mentira na política) no sentido de que o sufrágio universal na democracia não
pode ser obtido pela obediência, mas o seu princípio deve ser compreendido como
funcionalidade de políticas públicas.
Ferreira Pinto chegou a sustentar que o sufrágio seria também um dever ao
afirmar que “é uma função da soberania popular na democracia representativa e na
democracia mista como um instrumento deste, e tal função social justifica a legitima a
sua imposição como um dever, posto que o cidadão tem o dever de manifestar a sua
vontade na democracia”,21 sugerindo que a massa popular não estaria preparada para
o voto facultativo.
Entretanto, hoje não há como se certificar a imaturidade do povo a exigir este tipo
de tutela estatal e tampouco há que se afirmar serem reduzidas as chances dos eleitores
de votarem em candidatos sérios e honestos. Decorridos quase oitenta e cinco anos de
voto obrigatório, mais especificamente, desde 1932, quando o governo provisório de
Getúlio Vargas o implantou por intermédio do primeiro Código Eleitoral brasileiro
(Decreto nº 21.076/32), não podemos chegar à conclusão de que foram escolhidos os
melhores candidatos, os mais honestos e capazes.
Nesse diapasão, Monica Herman Salem Caggiano22 bem demonstra a desneces­
sidade de tutela do Estado na opção do eleitorado brasileiro com relação ao exercício
do voto, quando faz uma análise do eleitor nas eleições gerais de 2010:

21
FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 295. v. 1.
22
CAGGIANO, Monica Herman Salem. O cidadão-eleitor, jogador com veto no processo eleitoral democrático.
Aspectos polêmicos e peculiares do cenário brasileiro. Eleições gerais 2010. In: LEAL, Victor Nunes.
A contemporaneidade do pensamento. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 26.

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FUNDAMENTOS DA DEMOCRACIA E O VOTO FACULTATIVO
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Merece reparo, ainda, o índice baixo de abstenção, de cerca de 18%, fator que insistem em
atribuir à obrigatoriedade do voto entre nós (consoante previsto no §1º do art. 14, CF). A
verdade é que a justificativa – quanto à ausência na votação – importa num procedimento
extremamente simples e as multas são irrisórias – isto quando não há anistia quanto às
sanções eleitorais – o que, na prática do cotidiano, conforma o nosso voto como facultativo.
Mais até, configurou a consulta eletiva de 2010 um megaespetáculo eleitoral, envolvendo
136,4 milhões de eleitores, um número 7,8% maior do que registrado no último pleito geral
de 2006, 26 Estados-membros da federação e mais o Distrito Federal, a seleção de Presidente,
Vice-Presidente, de 513 deputados federais, 54 senadores (2/3 do Senado), Governadores,
Vice-Governadores e deputados estaduais para as Assembléias Legislativas de cada um
dos Estados, sendo que só no de São Paulo 94. A taxa de abstenção, portanto, deve ser
considerada insignificante, confirmando a vocação eleitoral da cidadania brasileira.

6.5 Debates sobre os argumentos


Em interessante trabalho, Paulo Henrique Soares23 elencou os principais argu­
mentos sustentados pelos defensores dos votos compulsório e facultativo. E, para
que o debate possa ser ampliado, mencionaremos os resultados já desenvolvidos que
passamos a transcrever.
As teses favoráveis ao voto compulsório são as seguintes: a) o voto é um poder-
dever; b) a maioria dos eleitores participa do processo eleitoral; c) o exercício do voto
é fator de educação política do eleitor; d) o atual estágio da democracia ainda não
permite a adoção do voto facultativo; e) a tradição brasileira e latino-americana é
pelo voto obrigatório; f) a obrigatoriedade do voto não constitui ônus para o país, e
o constrangimento ao eleitor é mínimo se comparado aos benefícios que oferece ao
processo político-eleitoral.
Os argumentos favoráveis ao voto facultativo, por outro lado, advogam as
seguintes ideias: a) o voto é um direito e não um dever; b) o voto facultativo é adotado
por todos os países desenvolvidos e de tradição democrática; c) o voto facultativo melhora
a qualidade do pleito eleitoral pela participação de eleitores conscientes e motivados,
em sua maioria; d) a participação eleitoral da maioria em virtude do voto obrigatório é
um mito; e) é ilusão acreditar que o voto obrigatório possa gerar cidadãos politicamente
evoluídos; f) o atual estágio político brasileiro é propício ao voto facultativo.
Embora relevantes os argumentos expostos, nos parece que o principal elemento a
ser considerado para uma rápida revisão de nosso sistema de sufrágio é a necessidade de
se reconhecer que a Constituição deve ser uma carta garantidora de liberdades, que deve
afastar o eleitor moderno das amarras da estrutura feudal e da fossilização social, o que
de fato ocorreu no final do século XIV, principalmente na Europa, com o surgimento das
cidades livres. Esta liberdade deve envolver a decisão, a escolha, decorrente das análises
pessoais e subjetivas, buscando obter as desejáveis preferências, sem o condicionamento
de seu exercício por imposições draconianas do Estado.
Quando decorridos dez anos da promulgação de nossa Constituição Federal de
1988, o Senado Federal, por intermédio de reunião realizada pela na Comissão Tempo­
rária Interna para Estudos da Reforma Político-Partidária, acabou na oportunidade

23
SOARES, Paulo Henrique. Vantagens e desvantagens do voto obrigatório e do voto facultativo. Textos para
discussão, Brasília, n. 6, abr. 2004.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
202 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

por debater a questão acerca da necessidade de transmutação do art. 14 da CF, com o


objetivo de transformar o voto obrigatório em facultativo e, naquela época, afirmou-se:

Em primeiro lugar, o voto no Brasil, há muito é facultativo: de 47 para cá, tivemos 20 projetos
de anistia; de 92 para cá, todas as eleições foram anistiadas. Nenhum de nós conhece alguém
que tenha sido punido ou recebido pena por ter deixado de votar.
Vivemos, na verdade, uma ficção: estamos nos enganando, pensando que o voto tem que
ser obrigatório. Acho que a obrigação do cidadão é ser eleitor – ter o título eleitoral é uma
obrigação, um documento; entretanto, o ato de votar é um direito de cidadania que a
pessoa exerce, e no seu exercício, na sua participação de cidadania, isso vai se ampliando.
Os países nos quais existe o voto obrigatório são aqueles onde mais vezes as constituições
foram rasgadas e mais vezes entramos na escuridão do arbítrio.
Então, essa questão do voto obrigatório, da obrigação de a pessoa participar, não serviu,
para promover a educação, ampliar a questão da democracia. A meu ver, o voto facultativo
amplia essa questão da democracia, serve para a educação do cidadão e faz com que as
pessoas compareçam, votem.
No Brasil, em Minas Gerais, por exemplo, há uma abstenção muito elevada, pessoas que não
comparecem e não exercem o direito democrático de poder escolher, de poder participar.
Temos também um número bastante elevado de votos em branco e votos nulos.
Talvez essa proposta de voto facultativo, há alguns anos, não tivesse sentido, mas com o
avanço da democracia brasileira, que tem sido demonstrada ao longo dos últimos tempos,
em todos os episódios – o impeachment do Presidente da República, em que houve uma
discussão, sem tanques nas ruas; uma discussão democrática, a participação na CPI do
Orçamento; agora, essa questão dos precatórios –, está havendo um amadurecimento
democrático muito grande na escolha nas eleições, na maneira de comportar-se e de julgar
por parte da população, vendo o que é certo e o que é errado, e, às vezes, bem à frente da
elite, pelo sentimento que tem das coisas.
Essa questão do voto facultativo, do direito do cidadão exercer, é bastante positiva. Mesmo
as pesquisas de opinião demonstram que praticamente 70% da população, no Brasil todo,
quer o voto facultativo. Isso é um avanço, é uma maneira de garantirmos o direito do
cidadão e acabar com a história daquele paternalismo, não de ser obrigado; se for obrigado, o
cidadão não vai. Há também outras coisas que não tem servido para avançar na democracia.
Na verdade, o nosso povo, a nossa gente, gosta de participar do processo político por esse
Brasil afora e participa dos comícios, das reuniões. Acho que se poderia dar um avanço
profundo nessa questão do voto facultativo.24

O Senado Federal, em 9.7.2010, aprovou o Projeto de Lei nº 244/06, da autoria do


então Senador Marco Maciel, que visa eliminar as restrições aos eleitores que deixarem
de votar e que não vierem a apresentar justificativas para as suas ausências e estabelece a
revogação ao §1º do art. 7º da Lei nº 4.737/65 (Código Eleitoral). Este projeto, entretanto,
não pretende oficializar o voto facultativo, na medida em que a única penalidade que
se pretende manter é a multa que varia de 5% a 20% do valor do salário mínimo da
região do eleitor, além da perda do próprio título, caso não deixe de votar e não venha
a justificar a sua omissão em mais de três eleições sucessivas. Embora o projeto ainda
tenha de completar o restante do caminho processual legislativo, não há dúvida de que
se trata de um passo interessante para o voto facultativo.

24
SENADO. Relatório nº 1 de 1998 da Comissão Temporária Interna para Estudos da Reforma Político-Partidária.
Diário do Senado Federal, p. 18393-18394, 11 dez. 1998.

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MARCO ANTÔNIO MARTIN VARGAS , RICHARD PAE KIM
FUNDAMENTOS DA DEMOCRACIA E O VOTO FACULTATIVO
203

Entre as diversas propostas de emenda constitucional (PECs) apresentadas por


senadores, desde 1993, temos as de iniciativa dos ex-senadores Bello Parga (PFL/MA –
PEC nº 6/1993), José Serra (PSDB/SP – PEC nº 40/1996), Paulo Hartung (PSDB/ES – PEC
nº 60/1999) e Carlos Patrocínio (PTB/TO – PEC nº 31/1999), que restaram arquivadas.
Outras, mais recentes, estavam em andamento até dezembro de 2014, mas igualmente
acabaram sendo arquivadas, a saber, as PECs apresentadas pelo Senador Álvaro Dias
(PEC nº 14/2003) e pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, bem
como da Associação ACOCCI (PEC nº 28/2008).
Na Câmara tivemos a tramitação da PEC nº 159/2012, que visava modificar o
texto do art. 14 da Constituição Federal, a tornar facultativo o voto e o alistamento
eleitoral; no entanto, esta veio a ser arquivada. Em seguida, nova proposta surgiu por
meio da PEC nº 11/2015, que veio a ser apensada à PEC nº 352-A/2013, que contemplava
também a referida modificação. Aliás, saliente-se que por ato da Presidência da Câmara
dos Deputados (datado de 4/2/2015 e ainda não revogado!), restou criada a Comissão
Especial destinada a proferir parecer à Proposta de Emenda à Constituição nº 352-A, de
2013, que altera os arts. 14, 17, 27, 29, 45 e 121 da Constituição Federal, para tornar o voto
facultativo, modificar o sistema eleitoral e de coligações, dispor sobre o financiamento de
campanhas eleitorais, estabelecer cláusulas de desempenho para candidatos e partidos,
prazo mínimo de filiação partidária e critérios para o registro dos estatutos do partido
no Tribunal Superior Eleitoral, determinar a coincidência das eleições e a proibição da
reeleição para cargos do Poder Executivo, regular as competências da Justiça Eleitoral e
submeter a referendo as alterações relativas ao sistema eleitoral. Ocorre que quando essa
proposta, em 2015, aparentava avançar, a PEC nº 182 de 2007, que veio do Senado sem a
aprovação da proposta para a mudança para o sistema de voto facultativo, passou a ter
trâmite mais célere e a Casa legislativa aproveitou o ensejo para deliberar sobre o tema.
Infelizmente o Plenário da Câmara dos Deputados rejeitou, por 311 votos a 134, o
fim do voto obrigatório, previsto no relatório do Deputado Leonardo Picciani (PMDB-RJ)
para a PEC da reforma política (PEC nº 182/07, do Senado). Assim, manteve-se na Consti­
tuição o voto e o alistamento eleitoral obrigatórios para os maiores de 18 anos, e diante
da decorrente aprovação da EC nº 91/16, continuou facultativo apenas o alistamento para
os analfabetos, os maiores de 70 anos e aqueles maiores de 16 anos e menores de 18 anos.
Em 10.11.2016, dezenas de senadores que entendem que hoje o eleitor já demonstra
insatisfação com as candidaturas apresentadas votando nulo ou branco, e cansados de
verem as propostas anteriores serem arquivadas, apresentaram em conjunto proposta
de emenda à Constituição (PEC nº 61/2016) visando à implantação do voto facultativo
no Brasil. A proposta ainda aguarda designação de relator na Comissão de Constituição,
Justiça e Cidadania do Senado (CCJ). Eis alguns dos signatários da proposta: Senadora
Ana Amélia (PP/RS), Senador Aécio Neves (PSDB/MG), Senador Aloysio Nunes
Ferreira (PSDB/SP), Senador Álvaro Dias (PV/PR), Senador Antônio Anastasia (PSDB/
MG), Senador Antônio Carlos Valadares (PSB/SE), Senador Ataídes Oliveira (PSDB/
TO), Senador Benedito de Lira (PP/AL), Senador Dário Berger (PMDB/SC), Senador
Elmano Férrer (PTB/PI), Senador Fernando Bezerra Coelho (PSB/PE), Senador Flexa
Ribeiro (PSDB/PA), Senador Garibaldi Alves Filho (PMDB/RN), Senador Gladson Cameli
(PP/AC), Senador José Aníbal (PSDB/SP), Senador José Medeiros (PSD/MT), Senador
Lasier Martins (PDT/RS), Senadora Lúcia Vânia (PSB/GO), Senador Magno Malta (PR/
ES), Senador Omar Aziz (PSD/AM), Senador Paulo Paim (PT/RS), Senador Raimundo

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204 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Lira (PMDB/PB), Senador Reguffe (sem partido/DF), Senador Roberto Muniz (PP/BA),
Senador Romário (PSB/RJ), Senadora Simone Tebet (PMDB/MS), Senador Waldemir
Moka (PMDB/MS), Senador Wilder Morais (PP/GO) e outros. Imaginou-se que diante da
maciça adesão dos membros dessa Casa, o processo legislativo teria melhor condução do
que nas outras oportunidades. Entretanto, preocupa-nos o fato de que, ao menos até a
data do fechamento deste artigo,25 decorrido mais de 1 (um) ano do protocolo da proposta,
ainda não tenha sido designado um relator para a proposta de emenda constitucional.
Portanto, por ora, continuamos fora do sistema já adotado pela maioria dos
países. A título ilustrativo, eis o resultado do estudo realizado pela Central Intelligence
Agency – CIA, dos EUA, sobre a obrigatoriedade ou não do voto em 232 países, extraído
de levantamento feito pela Câmara dos Deputados:26

Dos 232 países do planeta, reconhecido pela CIA: 205 adotam VOTO FACULTATIVO (todos
do G8: EUA, Canadá, UK etc.); 24 adotam VOTO OBRIGATÓRIO (13 na América Latina:
Argentina, Brasil etc.); 1 adota sistema misto (facultativo, obrigatório apenas p/ presidente):
Áustria; 2 países não adotam eleições. Este fato (que demonstra que praticamente todos os
países desenvolvidos adotam voto facultativo) são um dos mais irrefutáveis argumentos a
favor da abolição do voto obrigatório e instituição do voto facultativo no Brasil e noutros
países do planeta.
A seguir, tradução livre da tabela da CIA:
1) VOTO FACULTATIVO = 205 países (praticamente todos os desenvolvidos do planeta,
todos do G8): EUA, Canadá, Alemanha, Reino Unido, França, Itália, Japão, Rússia (G-8),
Israel, Finlândia, Espanha, Portugal, Suécia, Suíça, Irlanda, Dinamarca, Noruega, Países
Baixos (foi obrigatório entre 1917-1967), Mônaco, Polônia, Vaticano (Santa Sé), Coréia, Hong
Kong, Nova Zelândia, Romênia, Hungria, Croácia, Turquia, Tunísia, Índia, Cuba, África do
Sul, China (eleições só em vilas, iniciadas em 1978), Ilhas Caimã, Afeganistão, Irã, Iraque,
Arábia Saudita (monarquia), Venezuela (foi obrigatório até 1999), etc.
2) VOTO OBRIGATÓRIO (compulsory vote) = 24 países27 (sendo 13 na América Latina):
Argentina, Austrália, Bélgica, Bolívia, Brasil, Chile, Congo (Rep. Democrática do Congo),
Costa Rica, Equador, Egito, Grécia, Honduras, Líbano, Líbia, Luxemburgo, México, Nauru,
Panamá, Paraguai, Peru, Rep. Dominicana, Singapura, Uruguai, e Tailândia.
3) VOTO MISTO (obrigatório para presidente, e facultativo para demais cargos): 1 país
(Áustria).
4) SEM ELEIÇÕES (none) = 2 países: Emirados Árabes Unidos e Saara Ocidental [...]
Entende-se que o voto é uma faculdade da pessoa, resultado de sua livre escolha e de sua
vontade. E, ato volitivo, para ser amplo e irrestrito, não há que ser obrigatório, visto que
a vontade é uma questão de consciência.

Não nos parece que devamos continuar a sustentar que embora o nosso país, hoje
entre as sete maiores economias do mundo, ainda se encontre habitado por cidadãos que

25
Fechamento ocorrido em 20.11.2017.
26
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Proposta de Emenda à Constituição nº__ , de 2012. Disponível em: <http://www.
camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=978583&filename=Tramitacao-PEC+159/2012>.
Acesso em: 1 out. 2012. Dados confirmados no sítio do The World Fact Book da Central Intelligence Agency
(CIA) (CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY. The World Fact Book. Disponível em: <https://www.cia.gov/library/
publications/the-world-factbook/fields/2123.html>. Acesso em: 20 nov. 2017).
27
Esses dados foram colhidos em 2012. Posteriormente, o Chile e a Líbia acabaram por adotar o sistema do voto
facultativo e, portanto, temos apenas 22 (vinte e dois) países que ainda mantêm a obrigatoriedade do voto em
todo o mundo.

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MARCO ANTÔNIO MARTIN VARGAS , RICHARD PAE KIM
FUNDAMENTOS DA DEMOCRACIA E O VOTO FACULTATIVO
205

não saibam participar politicamente das decisões do país de forma livre e que devam
ser obrigados a comparecer aos pleitos eleitorais. Aliás, definitivamente não se trata de
simples ônus político, uma vez que existe penalidade, sanção, para os casos de omissão
no cumprimento desta obrigação, como mencionamos nesse trabalho.
Não se olvida o fato de que nos países em que é adotado o voto facultativo, a
abstenção é maior do que naqueles em que o voto é obrigatório. Entretanto, embora
a média de abstenções para o primeiro grupo seja de 34,3% dos eleitores, o segundo
grupo não fica muito atrás, pois a média é de 25,8%, conforme levantamento do Idea
(International Institute for Democracy and Electoral Assistance) em 2016. Considerando que
nas eleições gerais de 2014 no Brasil, só a abstenção no primeiro turno foi de 19,4% e
que o absenteísmo brasileiro está abaixo da média dos últimos anos, que é de 25,8%,
podemos concluir por esses dados que o eleitor brasileiro é consciente e tem amplas
condições de participar da vida política no país, sem que seja sancionado por não exercer
o seu direito a voto.
Aliás, não nos parece correta a tese de que a desistência voluntária do exercício
do titular de um direito fundamental possa resultar na aplicação de uma penalidade a
este, seja com o estabelecimento de multa, ou mesmo de restrições ao pleno exercício
da cidadania, como o impedimento para a obtenção de documentos que viabilizem
a participação em concurso público ou mesmo para a obtenção de passaporte. Aliás,
tamanha é a irrazoabilidade dessas sanções que têm elas sido alvo de constantes ataques
institucionais e jurídicos, resultando muitas vezes em anistias que são concedidas com
o objetivo de minimizar os efeitos deletérios das penalidades.

6.6 Considerações finais


Não há dúvida de que hoje, pela Constituição Federal de 1988, o conceito de
cidadão não se resume apenas à capacidade eletiva. Basta a leitura dos seus dispositivos
para inferir que as terminologias cidadão e cidadania muito se aproximam do conceito
de membro do povo ou atributos do povo, ou seja, dos indivíduos que vivem em
determinado território e mantêm uma relação jurídica com o Estado.
A cidadania, como afirmado nesse trabalho, cuida-se de status concedido pelo
Estado aos indivíduos como titulares de direitos, em especial os fundamentais, e sua
qualificação como detentores de obrigações que se espera sejam igualitárias e propor­
cionais às suas condições pessoais. Portanto, não há como se conceber hodiernamente a
utilização da terminologia cidadão para aquele indivíduo que se encontra alistado perante
a Justiça Eleitoral e que se encontre em situação de quitação eleitoral. Portanto, impende
salientar que já se encontra ultrapassado o momento de diferenciar completamente os
sentidos de eleitor e cidadão.
Há que se construir os conceitos de cidadão e de eleitor coerentes com o sistema
jurídico e a realidade brasileira, o que, no nosso entender, deve se iniciar com a instituição
do voto facultativo e com a diferenciação ontológica e deontológica destes institutos.
Não há que se olvidar, ademais, a importante definição mínima de democracia
sustentada por Norberto Bobbio, no sentido de que não bastam “nem a atribuição a um
elevado número de cidadãos do direito de participar direta ou indiretamente da tomada
de decisões coletivas, nem a existência de regras de procedimento como a da maioria

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206 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

(ou, no limite, da unanimidade)”.28 A liberdade de participação na eleição daqueles que


devem decidir, no nosso sentir, se constitui em atributo essencial para o reconhecimento
da real democracia.
O eleitor brasileiro não pode ser considerado, com a devida vênia daqueles que
pensam o contrário, um cidadão alienado, inconsequente e sem responsabilidade política.
O cidadão brasileiro hoje conhece a política e os seus jogos e a discute diariamente.
Portanto, mostra-se de rigor que o povo brasileiro seja consultado com brevidade, por
meio de plebiscito, sobre a manutenção ou não da regra do voto obrigatório, a abandonar
esse ônus que é imposto na atualidade apenas aos cidadãos de 22 (vinte e dois) países
no mundo. O cidadão brasileiro que deixa de votar, de exercer o seu próprio direito
fundamental de participar do sufrágio não pode ser considerado cidadão de segunda
categoria.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

VARGAS, Marco Antônio Martin; KIM, Richard Pae. Fundamentos da democracia e o voto facultativo.
In: FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura (Coord.); PECCININ,
Luiz Eduardo (Org.). Direito Constitucional Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 193-207. (Tratado
de Direito Eleitoral, v. 1.) ISBN 978-85-450-0496-7.

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PÁGINA EM BRANCO

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CAPÍTULO 7

O VOTO NULO E SEUS EFEITOS: UM ENSAIO SOBRE A


(FALTA DE) LUCIDEZ DA JURISPRUDÊNCIA DO TSE

JOÃO ANDRADE NETO

Passava da meia-noite quando o escrutínio terminou. Os votos válidos


não chegavam a vinte e cinco por cento [...]. Pouquíssimos os votos nulos,
pouquíssimas as abstenções. Todos os outros, mais de setenta por cento da
totalidade, estavam em branco.
(José Saramago)

7.1 Introdução
A epígrafe acima foi retirada da obra Ensaio sobre a lucidez, de José Saramago,
que também inspira o título deste trabalho. A trama de Saramago se desenvolve a
partir de um evento específico: em um país imaginário, a imensa maioria do eleitorado
comparece às urnas, no dia da eleição, para votar em branco. No livro, a consequência
imediata de tal fato é a renovação da votação, com resultados ainda mais surpreendentes.
O número de votos válidos se reduz, e a onda branca se agrava, enquanto o governo e
as autoridades especulam sobre as possíveis causas daquele “corte de energia cívica”.
O pasmo inicial é rapidamente substituído por uma crise política. As condições da vida
democrática se degeneram e as instituições involuem para o autoritarismo.1 Embora se
trate de uma obra ficcional, o livro lança uma interessante premissa, bastante pertinente
ao contexto brasileiro atual. Desde pelo menos os anos 2000, movimentos pelo voto
nulo têm-se propagado pelo Brasil, particularmente nas redes sociais, defendendo que
mais da metade do eleitorado anule o próprio voto, com vistas a invalidar a votação

1
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a lucidez. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
210 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

e forçar a renovação do pleito.2 O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tem respondido a


isso com campanhas educativas que tratam a questão como um “mito eleitoral”.3 Este
artigo pretende demonstrar, porém, que há argumentos jurídicos razoáveis a favor da
tese de que votos nulos anulam a eleição – a qual, até pelo menos meados dos anos
2000, sintetizava a jurisprudência do próprio TSE acerca do assunto. Como o atual
entendimento do tribunal sobre o tema não é óbvio, nem expressa a única interpretação
possível do direito eleitoral vigente, mas resulta de uma mutação legal silenciosamente
operada pela jurisprudência, os argumentos postos pelos anulicionistas deveriam ser
enfrentados e eventualmente superados, mas não desacreditados.
De início, cumpre esclarecer o que se entende por mutação legal. O conceito foi
introduzido em outro artigo,4 e a discussão acerca dele não será inteiramente repro­
duzida aqui. No que é necessário à compreensão deste trabalho, o fenômeno é análogo
à mutação constitucional, conceituada por Jellinek.5 Trata-se da alteração da norma
infraconstitucional sem mudança textual formal, causada por fatos ou elementos
externos à argumentação jurídica, mas que repercutem internamente, na medida em que
impõem viragens na interpretação dos textos legais e, consequentemente, no conteúdo
propriamente normativo deles derivado. É promovida pela atividade dos intérpretes
– juízes, promotores, acadêmicos e demais participantes dos debates acerca do que o
direito é ou diz –, embora estes, individualmente considerados, não necessariamente
tenham consciência do papel que desempenham quando operam tais mudanças. A in­
consciência é elemento essencial do conceito, que o diferencia do ativismo judicial, ou
da deliberada instrumentalização da jurisdição, praticada por quem voluntária e arbi­
trariamente submete a função jurisdicional a resultados desejados ou a exerce a fim de
realizar alguma concepção pessoal de bem comum.6 As mutações legais são, portanto,
“inorganizadas”, pois ocorrem de modo “espontâneo, quase imperceptível, sem seguir
formalidades legais”.7 Em se tratando de alterações jurisprudenciais, como no caso em

2
O tema já foi amplamente explorado por: SILVA, Adriana Campos; SANTOS, Polianna Pereira dos; BARCELOS,
Júlia Rocha. Democracy and Information: The null vote and its misconception in Brazil. Revista Direitos
Fundamentais & Democracia, v. 22, n. 1, p. 257-277, 2017; SANTOS, Polianna Pereira dos. Voto e qualidade da
democracia: as distorções do sistema proporcional brasileiro. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017.
3
CAMPANHA do TSE nas redes sociais vai desmistificar mitos eleitorais. TSE, 16 jun. 2017. Disponível em:
<http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2017/Junho/campanha-do-tse-nas-redes-sociais-vai-desmistificar-
mitos-eleitorais>. Acesso em: 6 nov. 2017. Outro artigo publicado na Revista Eletrônica da EJE, no site do TSE,
alerta: “É importante que o eleitor tenha consciência de que, votando nulo, não obterá nenhum efeito diferente
da desconsideração de seu voto” (SANTOS, Polianna Pereira dos. Voto nulo e novas eleições. Revista Eletrônica
EJE, v. 3, n. 4, 2013. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/institucional/escola-judiciaria-eleitoral/revistas-da-
eje/artigos/revista-eletronica-eje-n.-4-ano-3/voto-nulo-e-novas-eleicoes>. Acesso em: 6 maio 2017).
4
ANDRADE NETO, João. Mutações legais no direito eleitoral: repercussões no sistema das invalidades eleitorais
e na renovação das eleições. Resenha Eleitoral, v. 21, n. 2, 2017.
5
JELLINEK, Georg. Reforma y Mutación de la Constitución. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991.
p. 7. Ver também BULOS, Uadi Lamêgo. Da reforma à mutação constitucional. Revista de Informação Legislativa,
v. 33, n. 129, p. 25-43, 1996; PEDRA, Adriano Sant’Ana. Teoria da mutação constitucional: limites e possibilidades
das mudanças informais da constituição a partir da teoria da concretização. Tese (Doutorado em Direito) –
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 2009; PEDRON, Flávio Quinaud. Mutação
constitucional na crise do positivismo jurídico: história e crítica do conceito no marco da teoria do direito como
integridade. Belo Horizonte: Arraes, 2012.
6
ANDRADE NETO, João. Controle e judicialização das eleições: a legitimidade de juízes e tribunais eleitorais para
decidirem “questões políticas”. In: MORAES, Filomeno; SALGADO, Eneida Desiree; AIETA, Vânia Siciliano
(Org.). Justiça eleitoral, controle das eleições e soberania popular. Curitiba: Íthala, 2016. p. 277-315.
7
BULOS, Uadi Lamêgo. Da reforma à mutação constitucional. Revista de Informação Legislativa, v. 33, n. 129, p. 25-
43, 1996. p. 6.

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JOÃO ANDRADE NETO
O VOTO NULO E SEUS EFEITOS: UM ENSAIO SOBRE A (FALTA DE) LUCIDEZ DA JURISPRUDÊNCIA DO TSE
211

estudo, os tribunais promovem verdadeiras guinadas em sua própria jurisprudência


sem o dizer expressamente, isto é, desconsiderando por completo julgados anteriores e
a ratio decidendi que os orientava.
Nas últimas décadas, o direito eleitoral relativo ao sistema de invalidades e de defesa
da autenticidade das eleições passou por profundas mutações legais que não têm atraído
a atenção devida da doutrina especializada.8 A mudança de entendimento do TSE
acerca das consequências jurídicas do voto originariamente nulo, logo endossada pelo
Supremo Tribunal Federal (STF), ilustra, portanto, um caso típico, não excepcional.
Os fatores externos que desencadearam essa mudança foram a implementação do sistema
eletrônico de votação e das urnas eletrônicas, amplamente utilizadas a partir de 1996, e o
aumento dos casos de cassação de candidatos eleitos, em razão da alteração da dinâmica
das ações eleitorais que a pleiteiam, a partir da introdução do art. 41-A à Lei das Eleições
(LE), em 1999.9 Advirta-se que esses acontecimentos não serão problematizados aqui.
Interessa-nos tão somente as consequências desses fatos para o sistema de invalidades e
de defesa da autenticidade das eleições.
Conforme se exporá, desde meados dos anos 2000, surgem na jurisprudência
duas categorias de votos nulos, cada uma delas com efeitos jurídicos distintos: a dos
votos originariamente nulos por erro ou vontade do eleitor, e a dos votos nulificados por
decisão da Justiça Eleitoral. Como os votos originariamente nulos por erro ou vontade
do eleitor não se somam aos votos nulificados ou anulados pela Justiça Eleitoral para fins
de aplicação do art. 224 do CE e renovação das eleições, eles não são capazes de acarretar
a invalidação do pleito. Por isso, votar nulo não anula a eleição, independentemente do
percentual de votos comprometido pela nulidade. Conquanto seja esse o entendimento
atual, amplamente dominante na doutrina e na jurisprudência, trata-se, diferentemente
da imagem disseminada pela propaganda institucional do TSE, de uma construção
jurisprudencial frágil, tanto historicamente, por ser muito recente, quanto teoricamente,
por se basear em premissas questionáveis.
A fim de alcançar essa conclusão, o artigo se divide da seguinte forma. A seção
seguinte tratará da nulidade originária dos votos, por erro ou vontade do eleitor, e do
direito fundamental de votar nulo. A seção 3 situa os votos originariamente nulos no
sistema de invalidades eleitorais e de defesa da autenticidade das eleições e os diferen­
cia dos votos anulados e dos votos nulificados pela Justiça Eleitoral. A seção 4 discute o
art. 224 do CE e a vinculação por ele estabelecida entre a invalidade dos votos e da votação
e a invalidade e possível renovação da própria eleição. A seção 5 detalha a jurisprudência
atual do TSE sobre a matéria. E, finalmente, a seção 6 expõe o caso de mutação legal que
gerou a separação dos votos nulos em duas categorias distintas, com efeitos jurídicos
diversos. Por fim, demonstra-se que, diferentemente do que as campanhas institucionais
do TSE querem fazer acreditar, o atual entendimento do tribunal data apenas do fim dos
anos 2000 e padece de problemas que dificultam a interpretação do sistema de invalidades
eleitorais e de defesa da autenticidade das eleições como integridade.

8
ANDRADE NETO, João. Mutações legais no direito eleitoral: repercussões no sistema das invalidades eleitorais
e na renovação das eleições. Resenha Eleitoral, v. 21, n. 2, 2017.
9
JORGE, Flávio Cheim. A ação eleitoral como tutela dos direitos coletivos e a aplicação subsidiária do
microssitema processual coletivo e do Código de Processo Civil. In: TAVARES, André Ramos; AGRA, Walber
de Moura; LUCON, Paulo Henrique dos Santos (Org.). O direito eleitoral e o Novo Código de Processo Civil. Belo
Horizonte: Fórum, 2016. p. 75–78.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
212 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

7.2 Os votos originariamente nulos


Não há, entre os dispositivos constitucionais que dispõem sobre os direitos
políticos e fundamentais, nenhuma cláusula expressa acerca do direito de votar nulo.
A existência dessa espécie de votos é, no entanto, expressamente mencionada pelo §2º
do art. 77 da CRFB/88, segundo o qual, “Será considerado eleito Presidente o candidato
que, registrado por partido político, obtiver a maioria absoluta de votos, não computados
os em branco e os nulos”.10 A leitura conjunta desse parágrafo com o §3º do art. 77 da
CRFB/88 permite inferir que nem os votos brancos nem os nulos são válidos: “Se nenhum
candidato alcançar maioria absoluta na primeira votação, far-se-á nova eleição em até
vinte dias após a proclamação do resultado, concorrendo os dois candidatos mais votados
e considerando-se eleito aquele que obtiver a maioria dos votos válidos”.11 Idêntica regra se
aplica, por previsão constitucional expressa, a governadores de estados12 e do Distrito
Federal13 e prefeitos de municípios com mais de 200.000 eleitores.14 No caso de prefeitos
de municípios com 200.000 eleitores ou menos, a regra é a mesma, mas por força do art.
3º da LE.15 Dessa forma, em se tratando de cargos eleitos pelo sistema majoritário, válidos
são apenas os votos efetivamente atribuídos a candidatos, desprezados os brancos e
originariamente nulos.
No sistema proporcional, os votos nulos tampouco são considerados para fins de
apuração. Diferença havia em relação aos votos brancos.16 Tanto os Códigos Eleitorais
de 1932, 1935 e 1950 quanto o parágrafo único do art. 106 do atual CE previam que eles
fossem incluídos no cálculo do quociente eleitoral.17 Apenas com a entrada em vigor da

10
Art. 77, §2º de BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Grifo nosso.
11
Art. 77, §3º de BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Grifo nosso.
12
Art. 28, caput: “A eleição do Governador e do Vice-Governador de Estado, para mandato de quatro anos, realizar-
se-á no primeiro domingo de outubro, em primeiro turno, e no último domingo de outubro, em segundo turno,
se houver, do ano anterior ao do término do mandato de seus antecessores, e a posse ocorrerá em primeiro de
janeiro do ano subseqüente, observado, quanto ao mais, o disposto no art. 77” (BRASIL. Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.
htm>).
13
Art. 32, §2º: “A eleição do Governador e do Vice-Governador, observadas as regras do art. 77, e dos Deputados
Distritais coincidirá com a dos Governadores e Deputados Estaduais, para mandato de igual duração” (BRASIL.
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicao.htm>).
14
Art. 29, II: “O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez
dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios
estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: [...] II - eleição
do Prefeito e do Vice-Prefeito realizada no primeiro domingo de outubro do ano anterior ao término do mandato
dos que devam suceder, aplicadas as regras do art. 77, no caso de Municípios com mais de duzentos mil
eleitores” (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>).
15
Art. 3º: “Será considerado eleito Prefeito o candidato que obtiver a maioria dos votos, não computados os em
branco e os nulos” (BRASIL. Lei n. 9.504, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para as eleições. Diário
Oficial, p. 21.801, 20 set. 1995).
16
COSTA, Tito. A propósito de votos em branco e votos nulos em eleições proporcionais e majoritárias. Estudos
Eleitorais, v. 1, n. 2, p. 131-137, 1997. p. 132. Cf. ALBUQUERQUE, Xavier de. Inconstitucionalidade do cômputo
dos votos em branco nas eleições proporcionais. Estudos Eleitorais, v. 1, n. 2, p. 79-93, 1997; e BONAVIDES, Paulo.
A Constituição e a invalidade do voto em branco. Estudos Eleitorais, v. 1, n. 2, p. 105-129, 1997, que, antes da
entrada em vigor da Lei nº 9.504/97, questionavam a constitucionalidade do art. 106 do CE em face dos arts. 45 e
77, §2º, da CRFB/88.
17
SANTOS, Polianna Pereira dos. Voto e qualidade da democracia: as distorções do sistema proporcional brasileiro.
Belo Horizonte: D’Plácido, 2017. p. 79-80.

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JOÃO ANDRADE NETO
O VOTO NULO E SEUS EFEITOS: UM ENSAIO SOBRE A (FALTA DE) LUCIDEZ DA JURISPRUDÊNCIA DO TSE
213

LE, em 1997, os votos brancos deixaram de ser considerados para fins de apuração. O
art. 107 da Lei 9.504/97 revogou expressamente o art. 106 do Código Eleitoral. Em lugar
deste, o art. 5º da LE dispõe que, “Nas eleições proporcionais, contam-se como válidos
apenas os votos dados a candidatos regularmente inscritos e às legendas partidárias”.18
Desse modo, em ambos os sistemas proporcional e majoritário, nem os votos brancos
nem os originariamente nulos são válidos e, por isso, não se somam aos apurados – nem
para determinação dos candidatos eleitos, nem para cálculo do quociente eleitoral.
O Código Eleitoral prevê, no caput e nos incisos do art. 175,19 hipóteses de nulidade
dos votos por problemas nas cédulas e, nos §§1º e 2º do mesmo artigo, nulidades dos
votos individualmente considerados.20 Trata-se de invalidades decorrentes de vícios na
expressão da vontade do eleitor ou nos meios ou instrumentos físicos envolvidos no ato de
votar.21 Nesses casos, a manifestação do eleitor não se aperfeiçoa: ou era incompreensível
e não podia ser conhecida, como quando a cédula não era adequadamente marcada;
ou não era confiável, porque se materializou por meio questionável ou duvidoso. Essas
nulidades fazem com que os votos por elas contaminados não produzam nenhum efeito
jurídico. A nulidade dos votos assim comprometidos é anunciada já no momento da
apuração: os votos nulos não são apurados.22
Perceba-se que se fala aqui dos votos originalmente nulos, natimortos ou “estéreis”,
que não geram os efeitos jurídicos que ordinariamente se espera deles: serem computa­dos
e somados aos demais, válidos, a fim de determinar os candidatos eleitos ou o número de
cadeiras ocupadas por cada partido ou coligação.23 A nulidade originária do voto é aquela
que ocorre “por ocasião do comparecimento do eleitor às urnas no dia da votação”.24

18
Art. 5º de BRASIL. Lei n. 9.504, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para as eleições. Diário Oficial,
p. 21.801, 20 set. 1995.
19
“Art. 175. Serão nulas as cédulas: I - que não corresponderem ao modelo oficial; II - que não estiverem devidamente
autenticadas; III - que contiverem expressões, frases ou sinais que possam identificar o voto” (BRASIL. Lei
n. 4.737, de 15 de julho de 1965. Institui o Código Eleitoral. Diário Oficial, 19 jul. 1965).
20
“§1º Serão nulos os votos, em cada eleição majoritária: I - quando forem assinalados os nomes de dois ou mais
candidatos para o mesmo cargo; II - quando a assinalação estiver colocada fora do quadrilátero próprio, desde
que torne duvidosa a manifestação da vontade do eleitor. §2º Serão nulos os votos, em cada eleição pelo sistema
proporcional: I - quando o candidato não fôr indicado, através do nome ou do número, com clareza suficiente
para distinguí-lo de outro candidato ao mesmo cargo, mas de outro partido, e o eleitor não indicar a legenda;
II - se o eleitor escrever o nome de mais de um candidato ao mesmo cargo, pertencentes a partidos diversos,
ou, indicando apenas os números, o fizer também de candidatos de partidos diferentes; III - se o eleitor, não
manifestando preferência por candidato, ou o fazendo de modo que não se possa identificar o de sua preferência,
escrever duas ou mais legendas diferentes no espaço relativo à mesma eleição” (BRASIL. Lei n. 4.737, de 15 de
julho de 1965. Institui o Código Eleitoral. Diário Oficial, 19 jul. 1965).
21
De acordo com Fávila Ribeiro, no art. 175 do CE, “[...] figuram as nulidades referentes a vícios sobre os sufrágios
individualmente considerados”. Mas isso só é parcialmente verdadeiro, como se demonstra adiante, ao tratar do
§3º desse artigo (RIBEIRO, Fávila. Direito eleitoral. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 397).
22
“Art. 174. As cédulas oficiais, à medida em que forem sendo abertas, serão examinadas e lidas em voz alta por
um dos componentes da Junta. §1º Após fazer a declaração dos votos em branco e antes de ser anunciado o
seguinte, será aposto na cédula, no lugar correspondente à indicação do voto, um carimbo com a expressão
‘em branco’, além da rubrica do presidente da turma. §2º O mesmo processo será adaptado para o voto nulo”
(BRASIL. Lei n. 4.737, de 15 de julho de 1965. Institui o Código Eleitoral. Diário Oficial, 19 jul. 1965).
23
PORTO, Walter Costa. Dicionário do voto. Brasília; São Paulo: Universidade de Brasília (UnB); Imprensa Oficial
do Estado, 2000. p. 454-455. Cf. GOMES, José Jairo. Invalidade no direito eleitoral: nulidade e anulabilidade de
votos. Revista Brasileira de Direito Eleitoral, v. 1, n. 1, p. 63-104, 2009. p. 73, defendendo que, a rigor, não se trata de
votos nulos, mas inexistentes.
24
DIAS, Renata Lívia Arruda de Bessa. Os votos brancos e nulos no estado democrático de direito. Revista Estudos
Eleitorais, v. 8, n. 1, p. 27-54, 2013. p. 31.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
214 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Há uma extensa literatura disponível acerca do fenômeno em diversos países25 e no


Brasil em particular.26 Conforme documentado, as causas que levam os eleitores a votar
nulo são variadas. Renata Dias observa que o eleitor pode votar nulo por razões como:
“(1) indiferença; (2) alheamento eleitoral; (3) erro no momento da digitação; (4) apatia
política; ou, ainda (5) protesto diante da insatisfação do quadro político que se estabelece
em um determinado país, estado ou município”.27 Todavia, para os fins deste trabalho,
essas causas podem ser reunidas em dois grupos: o erro ou a vontade do eleitor, os
quais se expõem a seguir.

7.2.1 Votos originariamente nulos por erro do eleitor


Em primeiro lugar, a nulidade originária pode ser causada por erro no preenchi­
mento da cédula de votação ou manipulação da urna eletrônica, um problema que não
pode ser desprezado, especialmente quando resultado da ignorância dos eleitores em
relação aos instrumentos por meio dos quais se materializa o voto. Em um influente
artigo publicado em meados da década de 1990, Power e Roberts28 demonstraram que o
alto índice de votos nulos no Brasil era explicado pela complexidade do sistema eleitoral
do país, particularmente no que se refere às eleições proporcionais por listas abertas.
No início dos anos 2000, uma pesquisa realizada por Nicolau29 confirmou aqueles
resultados, ao constatar que a alta taxa de votos inválidos brasileira “não [era], exclusi­
vamente, resultado de protesto contra o sistema político (ou do voto obrigatório) mas
resultado de uma combinação perversa entre cidadãos com baixíssima escolaridade e
uma cédula eleitoral que estava entre as mais complexas do mundo”. Contudo, o autor
também constatou uma tendência de queda nesse percentual, um efeito inesperado
da adoção da urna eletrônica, que, “ao facilitar o voto, permitiu que milhões de votos
deixados em branco ou anulados por dificuldade de expressar a preferência passassem
a ser contabilizados para os partidos e os candidatos”.30

25
HILL, Lisa; YOUNG, Sally. Protest or error? Informal voting and compulsory voting. Australian Journal of
Political Science, v. 42, n. 3, p. 515-521, 2007; MCALLISTER, Ian; MAKKAI, Toni. Institutions, society or protest?
Explaining invalid votes in Australian elections. Electoral Studies, v. 12, n. 1, p. 23-40, 1993; POWER, Timothy J.;
GARAND, James C. Determinants of invalid voting in Latin America. Electoral Studies, v. 26, n. 2, p. 432-444,
2007; UGGLA, Fredrik. Incompetence, alienation, or calculation?: Explaining levels of invalid ballots and extra-
parliamentary votes. Comparative Political Studies, v. 41, n. 8, p. 1141-1164, 2008.
26
ARBACHE, Guilherme; FREIRE, Danilo; RODRIGUES, Pietro. Invalid votes, political efficacy and lack of
preferences in Brazilian elections. IPSA Online Paper Room. Disponível em: <http://paperroom.ipsa.org/papers/
view/36099>. Acesso em: 6 maio 2017; MOISÉS, José Álvaro. Desafios da maioridade das eleições democráticas.
Em Debate, v. 1, p. 1-35, 2010.
27
DIAS, Renata Lívia Arruda de Bessa. Os votos brancos e nulos no estado democrático de direito. Revista Estudos
Eleitorais, v. 8, n. 1, p. 27-54, 2013. p. 37.
28
POWER, Timothy J.; ROBERTS, J. Timmons. Compulsory voting, invalid ballots, and abstention in Brazil.
Political Research Quarterly, v. 48, n. 4, p. 795, 1995.
29
NICOLAU, Jairo. Participação eleitoral no Brasil: evidências sobre o caso brasileiro. A questão social no novo
milênio, Coimbra, 2004. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt/lab2004/pdfs/JairoNicolau.pdf>. Acesso em: 6
maio 2017.
30
NICOLAU, Jairo. Participação eleitoral no Brasil: evidências sobre o caso brasileiro. A questão social no novo
milênio, Coimbra, 2004. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt/lab2004/pdfs/JairoNicolau.pdf>. Acesso em: 6
maio 2017.

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JOÃO ANDRADE NETO
O VOTO NULO E SEUS EFEITOS: UM ENSAIO SOBRE A (FALTA DE) LUCIDEZ DA JURISPRUDÊNCIA DO TSE
215

7.2.2 Votos originariamente nulos por vontade do eleitor


A segunda causa comum de nulidade originária dos votos é a manifestação
negativa da vontade do eleitor. Esse tipo de causa abarca atitudes políticas individuais
radicalmente distintas, desde o absoluto desinteresse à objeção de consciência. É, por­
tanto, incorreto reduzir os votos nulos tanto à categoria de “voto de protesto” – se com
isso se supõe necessariamente engajamento – como fazem alguns cientistas políticos,31
quanto à categoria de “voto apolítico”, como faz a jurisprudência do TSE.32 Afastada a
hipótese de erro, todas as demais causas de votos originalmente nulos implicam uma
decisão individual consciente que expressa um juízo do eleitor acerca de um sem-número
de elementos da sua vida política, os quais são concorrentes, mas não reciprocamente
excludentes.
Tal juízo pode ser crítico ou estratégico e direcionado a fatores externos ou auto­
dirigido. O juízo crítico, se direcionado a fatores externos, reflete o grau de insatisfação
do indivíduo com os candidatos e partidos em disputa, as regras ou o funcionamento
do sistema político, ou o próprio regime democrático, por exemplo. Mas o juízo crítico
pode também ser autodirigido, quando, por exemplo, reflete a percepção do eleitor sobre
seu nível de informação acerca da disputa ou o grau de envolvimento que ele próprio
deve à comunidade política em que se insere pelo fato mesmo de ser cidadão. Já o juízo
estratégico instrumentaliza o voto nulo: toma-o não como um fim em si mesmo, mas como
um meio. É o que fazem, por exemplo, os anulacionistas, quando defendem a invalidação
do próprio voto por acreditarem que, se a nulidade originária comprometer um número
suficiente de votos, as eleições se renovarão. De todo modo, seja crítico ou estratégico,
direcionado a fatores externos ou autodirigido, o juízo do eleitor é sempre político.33
Quem trata o voto nulo por vontade como um voto apolítico, como faz o TSE, nega
ou a existência desse juízo ou o caráter político dele. O segundo caso deixa transparecer
uma visão excessivamente estreita sobre o objeto da decisão política, pois erroneamente
reduz a esfera política à disputa político-partidária.34 Já o primeiro revela uma visão
pessimista sobre o sujeito que decide – duvida-se da racionalidade da decisão negativa
e da capacidade de os indivíduos refletirem sobre seu próprio papel no destino da
comunidade política. No caso do TSE, ambas as visões – estreita quanto à política e
pessimista quanto ao eleitor – se somam a uma concepção específica do cidadão como

31
MYATT, David P. A theory of protest voting. The Economic Journal, v. 127, n. 603, p. 1527-1567, 2017.
32
Ver, por ex., BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Especial Eleitoral 31696 - PE, de 28 maio 2013. Rel.
Min. Henrique Neves da Silva. Diário de Justiça Eletrônico, p. 166, 1º ago. 2013. p. 166.
33
CODATO, Adriano. Comportamento político e formas de protesto eleitoral: o voto nulo no Brasil e no Paraná.
Paraná Eleitoral, v. 62, p. 67-70, 2006. Cf. RAMOS, Paola Novaes. Alheamento eleitoral: reflexões sobre o
significado de votos em branco, votos nulos e abstenções na teoria política contemporânea. Mediações, v. 14, n.
1, p. 170-199, 2009. p. 178, contrapondo “A decisão por não escolher um candidato nas eleições”, o que a autora
denomina “alheamento eleitoral”, ao alheamento político.
34
Para uma concepção de política que abrange a competição político-partidária, mas não se confunde com esta,
ver ANDRADE NETO, João. Controle e judicialização das eleições: a legitimidade de juízes e tribunais eleitorais
para decidirem “questões políticas”. In: MORAES, Filomeno; SALGADO, Eneida Desiree; AIETA, Vânia
Siciliano (Org.). Justiça eleitoral, controle das eleições e soberania popular. Curitiba: Íthala, 2016. p. 289 ss.; ANDRADE
NETO, João. O positivismo jurídico e a legitimidade dos juízos eleitorais: a insuficiência da resposta juspositivista à
questão da judicialização da política. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), Belo Horizonte, 2010. Cap. 5.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
216 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

um órgão do Estado e da cidadania como uma função estatal,35 um “dever cívico”


de participação,36 subordinado a ideais coletivos a serem alcançados, de modo que
o exercício dos direitos políticos individuais só se justificaria se e quando estivesse a
serviço desses fins.
Essa visão funcionalista, que espelha o pensamento de autores franceses como
Hauriou, Duguit e Carré de Malberg,37 exerceu notável influência em doutrinadores do
direito público brasileiro.38 Todavia, ela não encontra amparo nem na realidade nem no
direito vigente. De fato, o processo de deliberação democrática é coletivo por definição,
na medida em que o resultado das eleições, a expressão da soberania do povo, depende
da soma das manifestações individuais. Não por outra razão, o indivíduo alfabetizado
que tenha entre 18 e 70 anos é constitucionalmente obrigado a se apresentar no dia e local
designados para a eleição. No entanto, a CRFB/88 resguarda a dimensão individual e
subjetiva desse processo, por garantir que cada um seja livre para dar razões a si mesmo
e encontrar e sopesar os argumentos que justificam manifestar-se de uma maneira e não
de outra, ou mesmo negativamente.39
A CRFB/88 confia ao julgamento soberano dos indivíduos não apenas a escolha
relativa ao destinatário do voto (em quem votar?), mas também às razões a serem
consideradas ao fazê-lo. Cabe a cada eleitor decidir, entre os infinitos fatores passíveis
de norteá-lo – que incluem razões não deliberativas, como paixões, interesses ou
compromissos ideológicos –,40 quais devem ser considerados ou desprezados, e, rema­
nescendo mais de um, como eles devem ser hierarquizados. Indo mais além, ao mencionar
a existência de votos brancos e nulos e prever que eles não se consideram para fins de
apuração, a CRFB/88 reconhece ao indivíduo o direito de não fazer parte do conjunto

35
Tal é a concepção que subjaz, por exemplo, a AMARAL, Roberto. Apontamentos para a reforma política: a
democracia representativa está morta; viva a democracia participativa. Revista de Informação Legislativa, v. 38,
n. 151, p. 29-65, 2001. p. 37, que afirma: “O conceito de democracia – qualquer – é incompatível com o absenteísmo,
pois a regra que a legitima é o governo produto da vontade da maioria, expressa no processo eleitoral”.
36
SANTOS, Eurico A. Gonzales Cursino dos. Da obrigatoriedade do voto. Revista de Informação Legislativa, v. 41,
n. 161, p. 101-105, 2004. p. 101.
37
Malberg trata da função desempenhada pelo eleitor que vota em CARRÉ DE MALBERG, Raymond. Teoría
general del Estado. México: Fondo de Cultura Económica, 2013. Cap. 3, §3º. Sobre a classificação de Hauriou,
Duguit e Carré de Malberg como representantes de uma teoria funcionalista do sufrágio, ver NOGUEIRA
ALCALÁ, Humberto. Regímenes políticos contemporáneos. 2. ed. Santiago: Jurídica de Chile, 1993. p. 87-88. Para
uma crítica do que denomina teorias jurídica e institucionalista da representação, ver URBINATI, Nadia. O
que torna a representação democrática? Lua Nova – Revista de Cultura e Política, n. 67, p. 191-228, 2006. p. 200-
201, observando que essa visão supõe “[...] que a identidade jurídica do eleitor/autorizador é vazia, abstrata e
anônima, sua funcão consistindo em ‘nomear’ políticos profissionais que tomem decisões às quais os eleitores se
submetem voluntariamente”. Para a autora, sob tal prisma, “a representação perde todo o seu caráter político e é
identificada com o ato de instituição da função de um orgão; a separação entre o cargo e o agente ou a formação
do Estado no sentido weberiano qualifica esta concepção como uma teoria do funcionalismo”.
38
Veja-se, por exemplo, MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 36. ed. atual. até a EC 64/2010. São
Paulo: Malheiros, 2010; SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 30. ed. São Paulo: Malheiros,
2008.
39
O projeto político instituído pela CRFB/88 é, portanto, simultaneamente coletivo e individual, nos termos
definidos por MANIN, Bernard. Legitimidade e deliberação política. In: WERLE, Denilson Luís; MELO, Rúrion
Soares (Org.). Democracia deliberativa. São Paulo: Esfera Pública, 2007. p. 31.
40
WALZER, Michael. Deliberação, e o que mais? In: WERLE, Denilson Luís; MELO, Rúrion Soares (Org.).
Democracia deliberativa. São Paulo: Esfera Pública, 2007. p. 306. Cf. ALMOND, Gabriel A.; VERBA, Sidney. The
civic culture: political attitudes and democracy in five nations. New ed. Newbury Park, Calif: Sage Publications,
1989. p. 14, para quem a orientação política dos indivíduos é composta não apenas por elementos cognitivos e
avaliativos, mas também afetivos.

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JOÃO ANDRADE NETO
O VOTO NULO E SEUS EFEITOS: UM ENSAIO SOBRE A (FALTA DE) LUCIDEZ DA JURISPRUDÊNCIA DO TSE
217

de votantes que definirão o resultado do pleito, tanto por protesto quanto por apatia
ou indiferença.41
Desse modo, os debates doutrinários sobre a natureza do sufrágio, se direito ou
função, expostos com clareza por Bonavides,42 resolvem-se na CRFB/88 em favor do
sufrágio como direito. Conquanto o voto seja formalmente obrigatório e por meio dele
se expresse a soberania popular a ser convertida em vontade estatal, ele é, antes de tudo,
um direito individual. Disso decorre a liberdade do cidadão para decidir inclusive acerca
de seu próprio grau de engajamento ou participação na comunidade política. Conforme
adverte Walzer,43 o direito de cada um de participar da deliberação pública não cria um
dever jurídico de participação qualificada nem autoriza a desqualificação das escolhas
daqueles que optam por não se engajarem mais ativamente no debate político-partidário:

[...] o corpo de cidadãos não é uma comissão de pesquisa, deliberando, por exemplo, sobre o
candidato mais qualificado para o Senado ou para a Presidência. [...] certamente precisamos
de eleitores que considerem cuidadosamente as evidências disponíveis e reflitam longa e
duramente sobre os argumentos dos candidatos e partidos em disputa. Mas eles não têm
por que se desqualificar a si mesmos se, devido aos seus interesses atuais ou compromissos
prévios, não podem ou não querem dar atenção a cada um dos competidores. Nem
estão impedidos de escolherem, por razões não deliberativas, as questões sobre as quais
centralizam suas considerações e reflexões.44

Tal conclusão se aplica sem ressalvas à decisão quanto a anular o voto ou não.
A CRFB/88 não elege as razões pelas quais eleitor deve se orientar ao decidir por votar
em um partido ou candidato ou por anular o voto, de modo que toda e qualquer razão
deve ser admitida. Isso traz sérias dificuldades à ideia de que o voto originalmente nulo
por vontade do eleitor é necessariamente um “voto de protesto” em sentido forte, isto
é, um caso de objeção de consciência ou mesmo de desobediência civil.45 Pois, embora
o voto originariamente nulo por vontade do eleitor seja político, ele não é – ao menos
não necessariamente – politicamente engajado. O eleitor pode anular o voto por ser
essa a expressão sincera de uma convicção política, garantida pelo direito à objeção de
consciência previsto no inc. VIII do art. 5º da CRFB/88.46 Mas pode igualmente anular seu
voto por, por exemplo, não se sentir suficientemente informado para decidir acerca do
melhor partido ou candidato, delegando a outros essa decisão, sem, com isso, pretender
colocar em questão o arranjo político-eleitoral vigente ou expressar uma convicção

41
Ver Paola Novaes Ramos, para mais sobre o voto nulo como manifestação do alheamento eleitoral (RAMOS,
Paola Novaes. Alheamento eleitoral: reflexões sobre o significado de votos em branco, votos nulos e abstenções
na teoria política contemporânea. Mediações, v. 14, n. 1, p. 170-199, 2009).
42
BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. Cap. 16.
43
WALZER, Michael. Deliberação, e o que mais? In: WERLE, Denilson Luís; MELO, Rúrion Soares (Org.).
Democracia deliberativa. São Paulo: Esfera Pública, 2007.
44
WALZER, Michael. Deliberação, e o que mais? In: WERLE, Denilson Luís; MELO, Rúrion Soares (Org.).
Democracia deliberativa. São Paulo: Esfera Pública, 2007. p. 305-306.
45
CARNEIRO, Renato César. Os votos brancos e nulos como atos de desobediência civil. Revista de Julgados, n. 8,
2004.
46
Art. 5º, VIII: “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou
política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação
alternativa, fixada em lei [...]” (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>).

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218 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

política. Nesse caso, dificilmente se poderia falar em objeção de consciência – o que de


maneira alguma implica desqualificar moral ou juridicamente a decisão.

7.2.3 O direito de votar nulo como um direito fundamental


Ao iniciar a seção 2, afirmei que, a partir de uma perspectiva jurídico-normativa,
o direito de votar nulo é um direito fundamental, embora o texto constitucional não
contenha menção expressa nesse sentido. Agora, porém, digo que esse direito nem
sempre se apoiará na liberdade de consciência em sentido forte ou estrito. Isso porque,
para a caracterização da “consciência” – ou, como prefere a CRFB/88, da “convicção”
–, exige-se algum grau de comprometimento sincero com ideias políticas, que não se
apresenta no caso de nulidade do voto por apatia ou indiferença.47 Mais adequado,
portanto, seria tratar os votos originalmente nulos por vontade do eleitor como um caso
de exercício de uma liberdade mais abrangente, a manifestação do pensamento, que, de
todo modo, constitui um direito fundamental, previsto no inc. IV do art. 5º da CRFB/88.48
Essa conclusão permite diferenciar a obrigação de comparecimento, a todos
imposta, da obrigação de escolha político-partidária.49 Enquanto o abstencionismo (ou
absenteísmo) é uma reação à primeira, os votos brancos ou nulos por vontade do eleitor
são uma reação à segunda.50 O indivíduo que comparece ao local de votação no dia
designado para tanto e se apresenta à mesa receptora de votos cumpre formalmente a
obrigação legal a todos imposta, não se podendo dele exigir que efetivamente escolha

47
Conforme explica Michael Walzer, o conceito de consciência proveio da ideia de “[...] um tribunal interior de
julgamento moral, dado a nós por Deus”. Hodiernamente, porém, há dois modos de concebê-la sem vinculá-
la a seu sentido religioso original, e ambos exigem um grau de convicção ou comprometimento. Em primeiro
lugar, “Podemos descrever a consciência como ‘um código moral meramente pessoal’ [...]”, se supormos
“[...] que qualquer ‘crença sincera’ pode ser chamada de religiosa se ‘preencher o mesmo lugar’ na vida do
indivíduo que a crença em deus”. É essa a concepção de consciência predominante no direito estadunidense
relativo ao recrutamento militar, por exemplo. Contudo, não é necessário exigir da consciência tal grau de
intensidade, transformá-la em um substituto da fé religiosa, ou reduzi-la a uma opção individualista. Ela pode
ser alternativamente “[...] descrita como um conhecimento moral que compartilhamos, não com Deus, mas com
outras pessoas – nossos concidadãos ou nossos camaradas em um movimento, partido ou seita”. Assim, “[...] a
objeção conscienciosa, em sua [segunda] forma não religiosa, é o resultado do pluralismo político [...]” (WALZER,
Michael. Das obrigações políticas: ensaios sobre desobediência, guerra e cidadania. Tradução de Helena Maria
Camacho Martins Pereira. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. p. 106; 113-114; 116). É essa a concepção de consciência
implícita no texto constitucional brasileiro: a de um conjunto de razões religiosas, políticas ou filosóficas.
O inc. VIII do art. 5º da CRFB/88, que garante a escusa de consciência, fala tanto em “crença religiosa” quanto em
“convicção filosófica ou política” (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>). E não poderia ser diferente, já que, como
adverte Walzer, “O esforço para se fazer uma distinção entre ‘estar comprometido com uma doutrina política’
e ‘estar comprometido com uma doutrina moral (religiosa)’ é inteiramente sem sentido e fútil, a menos que a
política seja definida de forma tão limitada que ninguém terá probabilidade de ser um opositor contencioso
por amor a ela” (WALZER, Michael. Das obrigações políticas: ensaios sobre desobediência, guerra e cidadania.
Tradução de Helena Maria Camacho Martins Pereira. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. p. 116).
48
Art. 5º, IV: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato [...]” (BRASIL. Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituicao.htm>).
49
NICOLAU, Jairo. Participação eleitoral no Brasil: evidências sobre o caso brasileiro. A questão social no novo
milênio, Coimbra, 2004. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt/lab2004/pdfs/JairoNicolau.pdf>. Acesso em:
6 maio 2017.
50
PASQUINO, Gianfranco. Abstencionismo. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco
(Org.). Dicionário de política. 11. ed. Tradução de Carmen C. Varriale, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira et al.
Brasília: Universidade de Brasília (UnB), 1998, v. I. p. 7.

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JOÃO ANDRADE NETO
O VOTO NULO E SEUS EFEITOS: UM ENSAIO SOBRE A (FALTA DE) LUCIDEZ DA JURISPRUDÊNCIA DO TSE
219

algum(ns) entre os partidos e candidatos em disputa, sem, com isso, violar-lhe o direito
fundamental de abster-se de escolher,51 seja em razão de convicções políticas sinceras,
seja por apatia ou indiferença. Um Estado Democrático de Direito que institua a
obrigatoriedade do voto, como é o caso do Brasil, tem de necessariamente admitir que
o cidadão decida não sufragar nenhum dos partidos ou candidatos que disputam a
eleição, sob pena de converter-se em um Estado tirânico ou totalitário.

7.3 O sistema de invalidades eleitorais e de defesa da autenticidade das


eleições
Até aqui, falou-se apenas sobre o nulo originalmente nulo, por erro ou vontade
do eleitor. Essa não é, porém, a única espécie de invalidade nem mesmo de nulidade
dos votos. Interpretado sistematicamente, o direito eleitoral vigente estabelece um
sistema de invalidades e de defesa da autenticidade das eleições. Tal sistema tem por cúspide
o §9º do art. 14 da CRFB/88.52 Como observa Eneida Salgado, o princípio constitucional
da normalidade e legitimidade das eleições, que orienta a legislação eleitoral como
um todo, se manifesta como exigência de “autenticidade eleitoral”, tanto em sentido
formal quanto substantivo.53 Em sentido formal, ele prevê que eleições autênticas são
aquelas efetivamente conduzidas de acordo com as regras do jogo democrático, isto é,
em conformidade com o devido processo eleitoral constitucional e legal, assegurada
a igualdade de participação.54 Já em sentido substantivo, o princípio da autenticidade
eleitoral exige que o resultado das eleições seja fidedigno, isto é, corresponda à real
vontade do eleitor, que só pode vir à tona em um ambiente jurídico-institucional que
garanta a liberdade de consciência e reserve ao indivíduo um espaço protegido para
reflexão e decisão.55
Para proteger a autenticidade das eleições em ambos os sentidos, tanto formal
quanto substantivo, o legislador se valeu das inelegibilidades, como exige o §9º do art. 14
da CRFB/88, vinculando-as a um sistema de invalidades eleitorais.56 O Código Eleitoral
diferencia, por um lado, as invalidades que afligem o voto (§§1º, 2º, 3º e 4º do art. 175
do CE), a cédula (caput e incisos do art. 175 do CE) e a votação (CE, arts. 165, §§3º e 4º,
220, 221 e 222); por outro lado, entre as hipóteses textuais de nulidade (arts. 175 e 220

51
No mesmo sentido, FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. O voto: direito ou dever? Revista de Direito
Constitucional e Internacional, v. 48, p. 91-101, 2004: “quando se fala que o voto é obrigatório, nos moldes previstos
pelo sistema constitucional brasileiro, se está a fazer referência à obrigatoriedade formal, ou seja, àquela que não
está afeta ao conteúdo do voto”.
52
“Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger
a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato,
e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de
função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta” (BRASIL. Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>).
53
SALGADO, Eneida Desiree. Princípios constitucionais eleitorais. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 36.
54
SALGADO, Eneida Desiree. Princípios constitucionais eleitorais. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 33.
55
SALGADO, Eneida Desiree. Princípios constitucionais eleitorais. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 41-48.
56
RIBEIRO, Fávila. Direito eleitoral. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 395. Advirta-se, porém, que, a despeito
da tentativa de agrupar os arts. 165, 175 e 219 a 223 do CE em um sistema, as inconsistências decorrentes de sua
interpretação conjunta são patentes.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
220 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

do CE) e as de anulabilidade (arts. 165, 221 e 222 do CE).57 A atual jurisprudência do


TSE tenta fazer sentido desse sistema de modo diferente. O tribunal separa, de um lado,
as hipóteses de invalidade (nulidade ou anulabilidade) que são aptas a comprometer
a eleição em toda a circunscrição – e assim forçarem a sua renovação –, daquelas que,
de outro lado, não o são. Aqui cabe uma explicação mais detida sobre as categorias
mencionadas.

7.3.1 Votos anulados


O Código Eleitoral sanciona com a “anulabilidade” dois grupos de irregularidades
muito distintas. Primeiramente, a anulação é a sanção aplicada ao simples desrespeito
de formalidades ou procedimentos eleitorais, e a irregularidades cuja repercussão é
meramente individual (ou, ao menos, localizada). O art. 221 do CE, por exemplo, prevê
que a votação de seções específicas é anulável devido a vícios no procedimento, como
no caso de extravio de documento e de restrição ao direito de fiscalizar. Por se tratar
de irregularidades isoladas, os efeitos da anulação se circunscrevem à seção eleitoral
afetada, e a invalidação dos votos pode ser decretada de ofício pela junta apuradora.
O mesmo se aplica ao art. 165 do CE, que estipula causas de anulação da votação de seções
eleitorais específicas devido a vícios na própria urna, verificados antes da abertura desta.
Em segundo lugar, o Código Eleitoral sanciona com a anulação dos votos a prática
de graves ilícitos eleitorais que repercutem na eleição como um todo. O art. 222 do CE
(c/c o art. 237) diz que a votação é anulável quando viciada de falsidade, fraude, coação,
abuso de poder econômico ou de autoridade, ou emprego de processo de propaganda
ou captação de sufrágios vedados por lei.58 Ele visa garantir a autenticidade eleitoral em
sentido substantivo. O objetivo principal da norma é, assim, recompor a legitimidade
das eleições que tenha sido comprometida por algum ilícito eleitoral típico.59 Hoje
se entende o art. 222 do CE se aplica a todos os casos em que a Justiça Eleitoral julga
procedentes “ações de apuração de ilícitos cíveis eleitorais em sentido amplo” – isto é,
uma ação de investigação judicial eleitoral (AIJE), uma ação de impugnação ao mandato
eletivo (AIME), ou uma representação eleitoral típica, cujo rito segue o art. 22 da LC
nº 64/90 –, as quais têm por fim a cassação do registro, diploma ou mandato do candidato
beneficiado pelo ilícito.60

57
BRAMRAITER, Juliana. Os reais efeitos do voto nulo na atualidade e seu reflexo para o regime da democracia
representativa no Brasil. Revista Estudos Legislativos, v. 7, n. 7, p. 61-93, 2013. p. 65-69.
58
“Art. 222. É também anulável a votação, quando viciada de falsidade, fraude, coação, uso de meios de que trata o
art. 237, ou emprego de processo de propaganda ou captação de sufrágios vedado por lei. [...] 237. A interferência
do poder econômico e o desvio ou abuso do poder de autoridade, em desfavor da liberdade do voto, serão
coibidos e punidos” (BRASIL. Lei n. 4.737, de 15 de julho de 1965. Institui o Código Eleitoral. Diário Oficial, 19 jul.
1965).
59
Observe-se que é um erro considerar que as demais invalidades eleitorais decorrem de atos lícitos e reservar a
expressão “ilícitos eleitorais” apenas aos ilícitos eleitorais típicos, como exemplo, o abuso de poder, as condutas
vedadas ou a captação ilícita de sufrágio. Nas palavras de Marcos Bernardes de Mello, a invalidade é em si uma
sanção e atos inválidos são, portanto, ilícitos: “se a contrariedade a direito constitui elemento cerne da ilicitude e
é, também, o fundamento da invalidade dos atos jurídicos, não é possível extrair-se outra conclusão senão a de
que o ato jurídico inválido integra o gênero fato jurídico ilícito lato sensu” (MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria
do fato jurídico: plano da validade. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p.51).
60
ZILIO, Rodrigo López. Direito eleitoral. 5. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2016. p. 68.

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JOÃO ANDRADE NETO
O VOTO NULO E SEUS EFEITOS: UM ENSAIO SOBRE A (FALTA DE) LUCIDEZ DA JURISPRUDÊNCIA DO TSE
221

7.3.2 Votos nulificados


Similarmente ao que ocorre com a anulação, o art. 175 do CE trata como igualmente
nulas duas categorias de votos cuja causa imediata de nulidade é distinta. A primeira,
discutida acima, na seção 2, é a dos votos nulos por causa constitutiva ou originária, isto é,
votos que já nascem nulos em razão de erro ou vontade do eleitor ao preencher a cédula
de votação ou digitar na urna eletrônica. Ela está prevista no caput, nos incisos e nos
§§1º e 2º do art. 175 do CE. Esses votos não têm nenhum efeito jurídico e são utilizados
apenas para fins estatísticos. A segunda é a categoria de votos nulos por causa posterior,
superveniente ou externa, isto é, votos que são nulificados em razão de uma decisão da
Justiça Eleitoral. Neste caso, a nulidade decorre do §3º do art. 175 do CE, que prevê: “Serão
nulos, para todos os efeitos, os votos dados a candidatos inelegíveis ou não registrados”.
Diferentemente do que ocorre com os votos originariamente nulos, nesse segundo
caso, a materialidade da manifestação do votante não é posta em questão. Não recaem
dúvidas ou suspeitas sobre a vontade do eleitor, nem vícios sobre sua exteriorização ou
sobre o modo como se manifesta. Ao contrário, a sanção de nulidade recai sobre votos
existentes, materialmente perfeitos e, portanto, apuráveis, mas nulificados porque dados
a candidatos não registrados ou cujo registro foi indeferido.
A invalidade prevista no §3º do art. 175 do CE decorre do indeferimento do
registro de candidatura ou do reconhecimento da inelegibilidade de candidato, pela
Justiça Eleitoral, depois das eleições – ou depois do fechamento das urnas eletrônicas. Isso
ocorre em duas situações. Em primeiro lugar, pode acontecer de o pedido de registro da
candidatura (RCand) ou a ação de impugnação do registro de candidatura (AIRC) serem
julgados tardiamente. Se a decisão final de indeferimento do registro for proferida “antes
da preparação das urnas eletrônicas e o candidato nelas não tiver seu nome incluído, o
problema da validade dos votos sequer chega a ser colocado”.61 Mas, se o candidato se
encontrava sob judice no dia da eleição ou do fechamento da urna eletrônica, e, somente
após as eleições ou o fechamento da urna, a Justiça Eleitoral indefere seu RCand ou julga
improcedente a AIRC contra ele ajuizada, os votos por ele obtidos são nulificados. Em
segundo lugar, pode acontecer de o diploma do candidato registrado e diplomado ser
desconstituído pelo provimento de um recurso contra expedição de diploma (RCED).
Em ambas as situações, a nulidade dos votos decorre do §3º do art. 175 do CE. Ela é um
efeito extrínseco de uma decisão judicial que não tem por objeto nem a conformidade
do voto para com os requisitos legais aplicáveis nem o cumprimento de formalidades
legais durante a votação.

7.4 Invalidade e renovação das eleições


A relação entre a invalidade e a convocação de novas eleições se estabelece expli­
citamente em razão do disposto no caput do art. 224 do CE, cuja redação é a seguinte:

Art. 224. Se a nulidade atingir a mais de metade dos votos do país nas eleições presidenciais,
do Estado nas eleições federais e estaduais ou do município nas eleições municipais,

61
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 12. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Gen, Atlas, 2016. p. 845.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
222 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

julgar-se-ão prejudicadas as demais votações e o Tribunal marcará dia para nova eleição dentro do
prazo de 20 (vinte) a 40 (quarenta) dias.62

Implícita na passagem “julgar-se-ão prejudicadas as demais votações” está a


ideia de que a própria eleição é inválida caso a invalidação da votação de um ou mais
candidatos comprometa a maioria dos votos para o cargo naquela circunscrição elei­
toral. Como adverte Gomes, embora o caput do art. 224 do CE fale em “nulidade”,
o termo é usado aí “em sentido amplo”, como sinônimo de “invalidade, abarcando,
pois, a anulabilidade. Por processo metonímico, tomou-se a espécie pelo gênero”.63 A
jurisprudência e a doutrina majoritária convergem nesse ponto.64 Prevalece o enten­
dimento de que, embora o caput do art. 224 do CE fale em “nulidade”, seu âmbito de
incidência é mais amplo. Desse modo, tanto as hipóteses textuais de nulidade previstas
no Código Eleitoral quanto as de anulabilidade podem, em tese, acarretar a invalidação
da votação e a renovação das eleições para o mesmo cargo em toda a circunscrição.
Outro aspecto a destacar é que o artigo estipula uma relação de imputação entre a
invalidação de votos, a que se refere como “nulidade”, e a convocação de novas eleições.
Esta é consequência jurídica, ou efeito “anexo”,65 externo ou extrínseco, legalmente
atribuído àquela e, portanto, inafastável, indissociável dela e juridicamente necessário.66
Ou seja, a invalidade e consequente renovação da eleição não precisa ser requerida,
nem constitui objeto de decisão jurisdicional. Tomemos por exemplo a AIJE, prevista no
art. 22 da LC nº 64/90. Ao ajuizá-la, o investigante requer apenas a cassação do mandato
dos candidatos beneficiados pelo abuso de poder e a inelegibilidade dos investigados
que hajam praticado ou contribuído para a prática do ato ilícito. Não há que constar
da petição inicial o pedido de que, caso a anulação da votação dos candidatos cassados
comprometa mais da metade dos votos para o cargo na circunscrição, novas eleições
sejam convocadas. Essa questão não é objeto de deliberação judicial. Se ela consta do
dispositivo de uma sentença ou acórdão, configura um pronunciamento de natureza
meramente administrativa.67
O mesmo se pode dizer sobre o §3º do art. 224 do CE, introduzido em 2015:

§3º A decisão da Justiça Eleitoral que importe o indeferimento do registro, a cassação do


diploma ou a perda do mandato de candidato eleito em pleito majoritário acarreta, após
o trânsito em julgado, a realização de novas eleições, independentemente do número de
votos anulados.

62
BRASIL. Lei n. 4.737, de 15 de julho de 1965. Institui o Código Eleitoral. Diário Oficial, 19 jul. 1965. Grifos nossos.
63
GOMES, José Jairo. Invalidade no direito eleitoral: nulidade e anulabilidade de votos. Revista Brasileira de Direito
Eleitoral, v. 1, n. 1, p. 63-104, 2009. p. 72.
64
ZILIO, Rodrigo López. Direito eleitoral. 5. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2016. p. 76.
65
ZILIO, Rodrigo López. Direito eleitoral. 5. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2016. p. 73.
66
O conceito de efeitos jurídicos extrínsecos, em oposição aos intrínsecos, é essencial a vários subsistemas eleitorais.
Sobre sua importância para o subsistema das inelegibilidades, ver GRESTA, Roberta Maia et al. Por que a Lei
da Ficha Limpa incide sobre situações jurídicas constituídas antes de sua vigência: duas objeções superadas. In:
SOARES, Igor Alves Noberto et al. (Org.). Coletânea de artigos jurídicos NAP 2011. Curitiba: CRV, 2012. p. 207.
67
“1. Não há possibilidade de ajuizamento de representação a fim de postular a nulidade de pleito majoritário e
convocação de novas eleições, tendo em vista a falta de fundamento legal que ampare a postulação por intermédio
do meio processual preconizado. 2. A manifestação do juízo eleitoral, no que concerne ao requerimento de
nova eleição, consubstancia-se pronunciamento que se exaure em matéria afeta à atividade administrativa da
Justiça Eleitoral, daí porque não cabe recurso, mas faculta-se à parte interessada jurisdicionalizar a questão
por intermédio das vias cabíveis” (BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Acórdão no Recurso Especial Eleitoral
26.097 - SP, de 12 jun. 2007. Rel. Min. Carlos Eduardo Caputo Bastos. Diário de Justiça, p. 185, 24 ago. 2007. p. 185).

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JOÃO ANDRADE NETO
O VOTO NULO E SEUS EFEITOS: UM ENSAIO SOBRE A (FALTA DE) LUCIDEZ DA JURISPRUDÊNCIA DO TSE
223

Como ocorre com o caput do art. 224 do CE, implícita no §3º está a ideia de que a
própria eleição para cargo majoritário é inválida e tem de ser renovada na circunscrição
se os votos ou a votação obtidos pelo candidato eleito são inválidos. Trata-se, igualmente,
de um efeito extrínseco que necessariamente decorre de um fato jurídico. Aqui, porém, o
fato jurídico tomado como gerador da invalidade é a própria decisão da Justiça Eleitoral
que indefere o registro, desconstitui o diploma ou cassa o registro, o diploma ou o
mandato, o que torna irrelevante se, confrontada com os números totais da eleição para
o cargo na circunscrição, a invalidade compromete mais ou menos da metade dos votos.
A possibilidade de conciliação do caput com o §3º do art. 224 do CE já foi objeto
de consideração do TSE na Resolução nº 23.456/201568 e no julgamento dos Embargos
de Declaração no Recurso Especial Eleitoral (ED REspe) nº 139-25, de 2016.69 Nos dois
casos, o TSE firmou o entendimento de que a incompatibilidade entre as regras é apenas
aparente. Cada uma delas se refere a hipóteses diversas: “a regra do §3º se aplica quando
o candidato mais votado [nas eleições majoritárias], independentemente do percentual
de votos obtidos, tem o seu registro negado ou o seu diploma ou mandato cassado”,
enquanto “o caput se aplica quando a soma dos votos nulos dados a candidatos que não
obteriam o primeiro lugar [nas eleições majoritárias ou proporcionais] ultrapassa 50%
dos votos dados a todos os candidatos (registrados ou não)”.70
O §3º, que é norma mais restrita, só incide, portanto, sobre os casos de cassação ou
indeferimento do registro de candidatos eleitos pelo sistema majoritário. Mesmo nesse
universo, há considerável dúvida acerca de sua aplicação a senadores71 e presidentes
da república.72 Consensual é apenas sua incidência sobre governadores e prefeitos
de mu­nicípios com mais de 200.000 eleitores.73 Em todo caso, se não se está diante de
uma decisão da Justiça Eleitoral acerca de candidatos eleitos pelo sistema majoritário –
isto é, se se trata de vereadores e deputados, eleitos pelo sistema proporcional, ou de
candidatos a prefeito e governador que não foram eleitos, mas ficaram em segundo ou
terceiro lugar, por exemplo –, a norma a aplicar é o caput do art. 224 do CE. Neste caso,
conquanto a votação obtida pelos candidatos cassados ou não registrados seja toda ela

68
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 23.456, de 15 dez. 2015. Dispõe sobre os atos preparatórios
para as eleições de 2016. Diário de Justiça, 24 dez. 2015.
69
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Embargos de Declaração no Recurso Especial Eleitoral 139-25/RS, de 27 nov.
2016. Rel. Min. Henrique Neves da Silva. Publicado na sessão de 28 nov. 2016.
70
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Embargos de Declaração no Recurso Especial Eleitoral 139-25/RS, de 27 nov.
2016. Rel. Min. Henrique Neves da Silva. Publicado na sessão de 28 nov. 2016.
71
A suposta inconstitucionalidade da aplicação do §3º do art. 224 do CE às hipóteses de indeferimento de registro,
cassação de diploma e perda do mandato de senador, é objeto das ADIs nºs 5.525 (BRASIL. Supremo Tribunal
Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.525/DF, de 13 maio 2016. Rel. Min. Roberto Barroso. Requerente:
Procuradoria Geral da República.), e 5.619 (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade
5.619/DF, de 31 out. 2016. Rel. Min. Roberto Barroso. Requerente: Partido Social Democrático (PSDB)).
72
Ver, por exemplo, os recentes artigos; BERNARDELLI, Paula. Justiça Eleitoral está imprevisível no caso da
cassação da chapa Dilma-Temer. Justificando, 21 mar. 2017. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.
br/2017/03/21/justica-eleitoral-esta-imprevisivel-no-caso-da-cassacao-da-chapa-dilma-temer/>. Acesso em: 6
maio 2017; GRESTA, Roberta Maia. Ações contra Dilma e Temer e o cenário político eleitoral. Jota, 29 abr. 2016.
Disponível em: <https://jota.info/colunas/e-leitor/e-leitor-o-que-acoes-contra-dilma-e-temer-podem-reservar-ao-
cenario-politico-29042016>. Acesso em: 6 maio 2017.
73
A suposta inconstitucionalidade da aplicação do §3º às hipóteses de indeferimento de registro, cassação de
diploma e perda de mandato de prefeito de municípios com 200.000 eleitores ou menos é objeto da ADI nº 5.619,
na qual a PGR se manifestou pela improcedência desse pedido (ou seja, pela constitucionalidade da aplicação)
(BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.619/DF, de 31 out. 2016. Rel. Min.
Roberto Barroso. Requerente: Partido Social Democrático (PSDB)).

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
224 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

invalidada, a invalidação da votação anterior e a renovação da eleição para o mesmo


cargo dependem de que, somados todos os votos da circunscrição, mais da metade dos
votos tenha sido invalidada.74

7.5 A jurisprudência atual do TSE


Deixemos de lado o §3º do art. 224 do CE, para focarmo-nos no caput desse artigo.
A incidência dele pressupõe, como já dito, que os votos inválidos sejam somados, a fim
de que se determine se a invalidade compromete mais da metade dos votos do cargo
na circunscrição. Mas nem todos as espécies de votos inválidos entram nesse cálculo.
Embora seja amplamente majoritário, tanto na doutrina quanto na jurisprudência,
que o caput do art. 224 do CE inclui tanto hipóteses de nulidade quanto de anulabili­
dade, o entendimento atual do TSE é no sentido de que nem todas as causas de nuli­
dade e anulabilidade acarretam a invalidação e a consequente renovação das eleições.
Na apli­cação do art. 224 do CE, são consideradas apenas as invalidades decorrentes de
uma decisão da Justiça Eleitoral cujos efeitos sejam a nulificação dos votos obtidos por
candi­datos inelegíveis ou não registrados ou a anulação da votação obtida por candidato
bene­ficiado por fraude, abuso de poder, captação ilícita de sufrágio etc.
De modo conciso,75 isso implica que não se consideram, para determinar se as
eleições são válidas:
a) As nulidades das cédulas, previstas no caput e nos incisos do art. 175 do CE, e
dos votos, previstas nos parágrafos §§1º e 2º do mesmo artigo. Essas nulidades
fazem com que os votos por elas contaminados não produzam nenhum
efeito jurídico. Eles não são somados nem para fins de apuração nem para
determinar se a eleição como um todo foi válida. Nesse grupo, se incluem os
votos originariamente nulos por erro ou expressa manifestação do eleitor. Eles
não dão causa à renovação da eleição.
b) As anulabilidades dos arts. 165 e 221 do CE. Esse grupo de invalidades tem em
comum com o anterior o fato de tampouco gerarem a renovação das eleições
e, por isso, não serem consideradas para fins de aplicação do art. 224 do CE.
Mas, diferentemente das nulidades mencionadas em (a), estas podem gerar
consequências jurídicas, pois, conforme previsto no Código Eleitoral, são
capazes de levar à convocação de eleições suplementares, no caso em que a
ordem dos candidatos eleitos possa ter sido alterada em razão da invalidade.76
Nesse caso, porém, só se repete a votação nas seções atingidas, e apenas os
eleitores registrados naquelas seções e os candidatos que concorreram ao pleito
anterior são considerados.77

74
NEISSER, Fernando. A ação de ressarcimento de danos causados à União no caso da anulação de eleições
pela Justiça Eleitoral. In: AGRA, Walber de Moura; PEREIRA, Luiz Fernando; TAVARES, André Ramos (Org.).
O direito eleitoral e o Novo Código de Processo Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 452-453.
75
Essas hipóteses foram detalhadamente analisadas em: ANDRADE NETO, João. Mutações legais no direito
eleitoral: repercussões no sistema das invalidades eleitorais e na renovação das eleições. Resenha Eleitoral, v. 21,
n. 2, 2017.
76
Neste grupo, também se inserem as hipóteses do art. 220 do CE, que prevê casos de nulidade da votação
decorrentes do desrespeito a formalidades que a lei considera essenciais.
77
Está-se, aqui, diante de outro caso recente de mutação legal no direito eleitoral. Até algumas décadas atrás,
a doutrina reservava a expressão “eleições suplementares” exclusivamente para a renovação das eleições

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JOÃO ANDRADE NETO
O VOTO NULO E SEUS EFEITOS: UM ENSAIO SOBRE A (FALTA DE) LUCIDEZ DA JURISPRUDÊNCIA DO TSE
225

Isso significa que, de acordo com a atual jurisprudência do TSE, no Direito Eleitoral
vigente, só há duas hipóteses de invalidade que podem levar à renovação das eleições
por aplicação do art. 224 do CE:
c) A anulação da votação obtida por candidatos beneficiados por fraude, cor­
rupção, abuso de poder, conduta vedada, captação ilícita de sufrágio, ou
captação e gastos de recursos ilícitos e condenados pela Justiça Eleitoral em
uma ação eleitoral típica (AIJE, AIME e representação cujo rito segue o art. 22
da LC nº 64/90), nos termos do art. 222 c/c o art. 237 do CE. Esses artigos visam
garantir a autenticidade eleitoral em sentido substantivo. O objetivo principal
dessas normas é recompor a legitimidade das eleições que tenha sido compro­
metida por algum ilícito eleitoral típico.
d) A nulificação dos votos dados a candidatos cujo registro for: indeferido após
as eleições ou o fechamento das urnas eletrônicas, nos casos de improcedência
do RCand ou procedência da AIRC; ou desconstituído, no caso de provimento
do RCED. Essas ações são genericamente chamadas de ações de arguição de
inelegibilidade e a nulidade dos votos delas decorrente está prevista no §3º do
art. 175 do CE.
Esse entendimento do TSE é amplamente respaldado pela doutrina contempo­
rânea.78 Ele carrega duas consequências importantes. Em primeiro lugar, a invalidade
e a renovação das eleições dela decorrente serão necessariamente provocadas por uma
decisão judicial proferida por um juiz ou tribunal eleitoral no exercício da jurisdição,
em ações nas quais os eleitores não integram o polo ativo.79 E, em segundo lugar, a
incidência do art. 224 do CE será sempre efeito anexo de uma decisão judicial que não
tem por objeto a arguição de nulidade ou anulabilidade e que, portanto, prescinde tanto
de um pedido nesse sentido quanto da provocação da parte interessada.80

decorrentes da invalidação de seções eleitorais específicas, prevista no art. 187 do CE. Ver, por exemplo,
RIBEIRO, Fávila. Direito eleitoral. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 319; 388. Tal entendimento era confirmado
pela jurisprudência do TSE, segundo a qual, “Verificado que os votos anulados da seção eleitoral podem alterar
a representação partidária na Câmara Municipal, deve o TRE marcar a realização de eleição suplementar para
renovação da votação [...]” (BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Acórdão 10.854 no Recurso Especial Eleitoral
8.404 - PR, de 17 ago. 1989. Rel. Min. Romildo Bueno de Souza. Diário de Justiça, 13 out. 1989). Ainda hoje, o
uso da expressão “eleições suplementares” para indicar exclusivamente as eleições convocadas nos termos do
art. 187 do CE, isto é, em razão da invalidação de seções eleitorais específicas, é respaldado por autores como
REIS, Márlon Jacinto. O Novo 3º do art. 224 do Código Eleitoral e a posse do segundo colocado. Eleições &
Cidadania, v. 4, n. 4, p. 343-364, 2012. p. 354-355, e ZILIO, Rodrigo López. Direito eleitoral. 5. ed. Porto Alegre:
Verbo Jurídico, 2016. p. 73. No entanto, tal sentido restrito foi abandonado pelo TSE, que passou a se valer da
expressão “eleições suplementares” para tratar indistintamente da renovação das eleições em razão da anulação
de seções específicas ou da invalidação das eleições como um todo. Ver, por exemplo, BRASIL. Tribunal Superior
Eleitoral. Acórdão no Mandado de Segurança 147.854 - SC, de 20 mar. 2012. Rel. Min. Marcelo Henriques Ribeiro
de Oliveira. Diário de Justiça Eletrônico, t. 96, 23 maio 2012.
78
Ver, por ex., GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 12. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Gen, Atlas, 2016. p. 844-
845; NEISSER, Fernando. A ação de ressarcimento de danos causados à União no caso da anulação de eleições
pela Justiça Eleitoral. In: AGRA, Walber de Moura; PEREIRA, Luiz Fernando; TAVARES, André Ramos (Org.).
O direito eleitoral e o Novo Código de Processo Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 437.
79
REIS, Márlon Jacinto. O Novo 3º do art. 224 do Código Eleitoral e a posse do segundo colocado. Eleições &
Cidadania, v. 4, n. 4, p. 343-364, 2012. p. 353.
80
Este é outro importante ponto em relação ao qual se operou uma mutação legal. O Código Eleitoral ainda prevê
meios autônomos para a decretação da invalidade de atos eleitorais – as arguições de invalidade. Todavia, com
o tempo, os meios próprios foram silenciosamente deixados de lado pela doutrina e pela jurisprudência no
tratamento do sistema de invalidações previsto no Código Eleitoral. Isso ocorre, não coincidentemente, à medida
que as ações eleitorais específicas (AIME, AIJE e representações do art. 22 da LC nº 64/90), destinadas a apurar

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
226 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

7.6 A separação entre duas categorias de votos nulos: um caso de


mutação legal
Como visto, atualmente, a jurisprudência do TSE reconhece dois conjuntos de
hipóteses de invalidade dos votos ou da votação aptos a gerar a invalidação das eleições
para o cargo em toda a circunscrição, como disposto no caput do art. 224 do CE. O primeiro
conjunto é composto pelas hipóteses de indeferimento do registro de candidatura
ou provimento do RCED, em razão da falta de alguma condição de elegibilidade ou
incidência de alguma causa de inelegibilidade. O segundo grupo é formado pelas hipó­
teses em que a anulação dos votos é efeito da condenação por ilícito eleitoral típico em
ações que visam à cassação do registro de candidatura, do diploma ou do mandato
eletivo. Disso decorre que o art. 224 do CE nunca será aplicado a outros casos que não
os do §3º do art. 175 ou do art. 222 do CE.81 Esse nem sempre fora o entendimento do
TSE, porém.
Na realidade, até meados dos anos 2000, a incidência do art. 224 do CE, e a
reali­zação de novas eleições em toda a circunscrição, quando comprometida mais da
metade dos votos, era acarretada não apenas pelas hipóteses de nulidade do §3º do
art. 175 do CE e de anulabilidade do art. 222 do CE, mas também pelas demais hipó­teses
de anu­labilidade espalhadas no Código Eleitoral e de nulidade por vícios no processo de
votação, previstas no caput, incisos e demais parágrafos do art. 175 do CE. Esses votos
nulificados ou anulados por diferentes causas, pela junta apuradora ou por decisão
judicial, se somavam para fins de determinar se as eleições seriam válidas. Assim é que,
nos dizeres de Ribeiro,82 cédulas marcadas com expressões, frases ou sinais que permi­
tissem identificar o autor do voto – o que, por força do inc. III do art. 175 do CE, implica
nulidade – ocasionavam a renovação das eleições, nos termos do art. 224 do CE, desde
que a nulidade excedesse mais da metade do total da votação.
No que mais diretamente interessa a este trabalho, hoje está pacificado na juris­­
prudência que, ao se referir à “nulidade”, o caput do art. 224 do CE não inclui os votos
nulos cuja invalidade decorre da manifestação negativa dos eleitores ou de erro na
digitação da urna eletrônica ou no preenchimento da cédula de votação.83 O TSE dife­
rencia, portanto, duas categorias de votos nulos, que geram efeitos jurídicos distintos.
A primeira, discutida na seção 2 acima, é a dos votos nulos por causa constitutiva ou
originária, isto é, votos que já nascem nulos em razão de erro ou vontade do eleitor ao
preencher a cédula de votação ou digitar na urna eletrônica. A segunda, introduzida na
seção 3.2, é a categoria de votos nulos por causa posterior, superveniente ou externa, isto
é, votos que são nulificados em razão de uma decisão da Justiça Eleitoral. O TSE entende

os ilícitos eleitorais típicos (conduta vedada, abuso de poder, captação de sufrágio etc.), ganharam importância,
e a cassação de candidatos eleitos passou a ocupar posição de relevo no horizonte de atribuições e competências
da Justiça Eleitoral.
81
REIS, Márlon Jacinto. O Novo 3º do art. 224 do Código Eleitoral e a posse do segundo colocado. Eleições &
Cidadania, v. 4, n. 4, p. 343-364, 2012. p. 355.
82
RIBEIRO, Fávila. Direito eleitoral. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 412. Assim também a jurisprudência da
época: BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Acórdão 5.361 no Recurso Especial Eleitoral 4.005 - AL, de 5 abr.
1973. Rel. Min. Márcio Ribeiro. Boletim Eleitoral, v. 263, t. 1.
83
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Agravo Regimental no Recurso Especial Eleitoral 25.585, de 5 dez. 2006.
Rel. Min. Antônio Cezar Peluso, Diário de Justiça, 27 fev. 2007.

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JOÃO ANDRADE NETO
O VOTO NULO E SEUS EFEITOS: UM ENSAIO SOBRE A (FALTA DE) LUCIDEZ DA JURISPRUDÊNCIA DO TSE
227

que estes “votos dados a candidatos cujos registros encontravam-se sub judice, tendo
sido confirmados como nulos, não se somam, para fins de novas eleições (art. 224, CE),
aos votos nulos decorrentes de manifestação apolítica [sic] do eleitor”.84
Noutras palavras, conquanto os votos obtidos por candidato não registrado ou
inelegível sejam nulos, e quanto a isso haja consenso na doutrina e na jurisprudência,
eles são considerados para fins da aplicação do art. 224 do CE – diferentemente do que
ocorre com os votos nulos por manifesta vontade do eleitor ou erro na votação. Somente
os votos nulificados podem levar à renovação das eleições, nos termos do art. 224 do CE:

Para fins do art. 224 do Código Eleitoral, a validade da votação – ou o número de votos
válidos – na eleição majoritária não é aferida sobre o total de votos apurados, mas leva
em consideração tão somente o percentual de votos dados aos candidatos desse pleito,
excluindo-se, portanto, os votos nulos e os brancos, por expressa disposição do art. 77,
§2º, da Constituição Federal.85

A absoluta maioria dos juristas está de acordo com a jurisprudência do TSE. Citam-
se, por exemplo, Neisser,86 Gomes,87 Santos88 e Silva et al.89 Apesar da quase inexistência
de dissenso, a interpretação do TSE é questionável, particularmente em razão da pouca
amplitude dada pelo tribunal ao termo “nulidade” do caput do art. 224 do CE – que
dele exclui os votos originariamente nulos por erro ou vontade do eleitor. Uma objeção
que se pode formular à jurisprudência do TSE é a de que: para fins de aplicação do art.
224 do CE, não existe um embasamento jurídico razoável para a diferenciação entre
votos originariamente nulos por erro ou vontade do eleitor, de um lado, e votos nulos e
anuláveis por decisão da Justiça Eleitoral, de outro, pois o artigo fala indistintamente em
“nulidade”, e, se a norma não distingue, não é dado ao intérprete o fazer. Aqui importa
compreender, primeiro, como a jurisprudência do TSE evoluiu até chegar a este ponto
e, depois, por que o atual entendimento do tribunal é juridicamente frágil e se sustenta
em premissas questionáveis.

7.6.1 A evolução da jurisprudência do TSE


O atual entendimento do TSE acerca da nulidade dos votos e da invalidade das
eleições pode ser resumido da seguinte forma:

84
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução Normativa 22.992, de 19 dez. 2008. Processo Administrativo
20.159 - PI. Rel. Min. Eliana Calmon. Diário de Justiça Eletrônico, t. 178, 18 set. 2009.
85
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Agravo Regimental em Ação Cautelar 3.260 - MG, de 4 jun. 2009. Rel. Min.
Arnaldo Versiani Leite Soares. Diário de Justiça Eletrônico, 4 ago. 2009.
86
NEISSER, Fernando. A ação de ressarcimento de danos causados à União no caso da anulação de eleições
pela Justiça Eleitoral. In: AGRA, Walber de Moura; PEREIRA, Luiz Fernando; TAVARES, André Ramos (Org.).
O direito eleitoral e o Novo Código de Processo Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 433.
87
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 12. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Gen, Atlas, 2016. p. 586.
88
SANTOS, Polianna Pereira dos. Voto e qualidade da democracia: as distorções do sistema proporcional brasileiro.
Belo Horizonte: D’Plácido, 2017. p. 84-87.
89
SILVA, Adriana Campos; SANTOS, Polianna Pereira dos; BARCELOS, Júlia Rocha. Democracy and Information:
The null vote and its misconception in Brazil. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, v. 22, n. 1, p. 257-277,
2017. p. 269-270.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
228 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

[...] os votos nulos propriamente ditos, também denominados como apolíticos, não se somam
aos votos dados aos candidatos com registro indeferido para verificação do total de votos
válidos. Assim, a aferição da validade da votação para aplicação da regra do art. 224 do
Código Eleitoral é realizada em face do universo dos votos dados efetivamente a candidatos.90

No trecho destacado, as expressões “votos propriamente nulos” e “votos apolíticos”


são indistintamente utilizadas para se referir aos votos contaminados por nulidade
originária, decorrente do erro ou da vontade do eleitor. É significativa a mudança
de posicionamento do TSE quando se compara esse acórdão com a jurisprudência
anterior. Desde pelo menos a década de 1970, já sob a vigência do atual Código Eleitoral,
prevalecia o entendimento jurisprudencial de que quaisquer hipóteses de invalidade
de votos podiam conduzir à convocação de novas eleições. A jurisprudência do TSE
havia se firmado no sentido “da anulação da eleição majoritária, qualquer que [fosse] o
motivo da nulidade da votação, votos ou cédulas, desde que se apur[asse] o excesso de
mais da metade sobre o total do comparecimento”.91 Em mais de uma oportunidade, o
TSE se manifestou no sentido de que, “Para a nulidade da eleição, tratada no art. 224
do Código Eleitoral, concorrem não só as nulidades da votação (art. 220 a 222), quanto
as do voto (art. 175)”.92
Como Juliana Bramraiter constata,93

o TSE sustentava que tanto as hipóteses de nulidade previstas no art. 175 do Código
Eleitoral – pertinentes às cédulas e aos votos – quanto as dos arts. 220, 221 e 222 do diploma –
nulidade e anulabilidade da votação – ensejavam a realização de nova eleição em caso de
atingida mais da metade dos votos.

Ou seja, quer fossem os votos originariamente nulos por erro ou vontade do


eleitor, quer fossem nulificados ou anulados pela Justiça Eleitoral, dever-se-ia aplicar o
art. 224 do CE quando, somada, a invalidade alcançasse mais da metade dos votos da
circunscrição.94 A autora documenta decisões similares posteriores. Do início da década
de 1980, destaca o acórdão:

Como os candidatos do PDS, que concorreram sob amparo da liminar, não lograram
registro, seus votos devem ser considerados nulos, de acordo com a regra do art. 175,
§3º. [...] Houve, portanto, 3.806 votos nulos, isto é, 3.581 dos candidatos não registrados do PDS,
mais 225 de votos nulos propriamente ditos; por outro lado, os votos válidos foram 2.852 do
candidato do PMDB acrescidos dos 366 em branco – que são obviamente votos válidos –
ou sejam, 3.218. Ora, se a nulidade atingiu a 3.806 e só 3.218 permaneceram válidos, é claro que

90
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Especial Eleitoral 31696 - PE, de 28 maio 2013. Rel. Min. Henrique
Neves da Silva. Diário de Justiça Eletrônico, p. 166, 1º ago. 2013. Grifos nossos.
91
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Acórdão 5.361 no Recurso Especial Eleitoral 4.005 - AL, de 5 abr. 1973. Rel.
Min. Márcio Ribeiro. Boletim Eleitoral, v. 263, t. 1.
92
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Agravo de Instrumento 4.069 - SP, de 27 set. 1973. Rel. Min. Carlos Eduardo
de Barros Barreto. Boletim Eleitoral, v. 268, t. 1.
93
BRAMRAITER, Juliana. Os reais efeitos do voto nulo na atualidade e seu reflexo para o regime da democracia
representativa no Brasil. Revista Estudos Legislativos, v. 7, n. 7, p. 61-93, 2013. p. 77.
94
BRAMRAITER, Juliana. Os reais efeitos do voto nulo na atualidade e seu reflexo para o regime da democracia
representativa no Brasil. Revista Estudos Legislativos, v. 7, n. 7, p. 61-93, 2013. p. 75-76.

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JOÃO ANDRADE NETO
O VOTO NULO E SEUS EFEITOS: UM ENSAIO SOBRE A (FALTA DE) LUCIDEZ DA JURISPRUDÊNCIA DO TSE
229

mais da metade dos votos apurados foi de votos nulos (a metade de 7.024 seria 3.512, número
evidentemente inferior a 3.806).
É de indiscutível aplicação ao caso a norma do citado art. 224, pelo que este Tribunal, o quanto
antes, deve determinar a renovação do pleito municipal [...].95

Curiosamente, o TSE manteve o entendimento anterior mesmo depois da CRFB/88.


No julgamento do REspe nº 10.989, em 1993, o tribunal determinou a convocação de novas
eleições municipais ao verificar que a soma dos votos originalmente nulos e dos votos
nulificados pela Justiça Eleitoral, em razão do indeferimento do registro do candidato
eleito, ultrapassava a metade dos votos da circunscrição. Na ocasião, consignou-se mais
uma vez que, “para a incidência do art. 224, não importa a causa da nulidade dos votos”.96
Como Bramraiter percebe,97 esse entendimento jurisprudencial persiste até a
década de 2000: “Prevaleciam os julgamentos do TSE no sentido de que nulidade de
qualquer espécie, alcançada a maioria absoluta dos votos, ensejaria a renovação das
eleições”. A autora identifica o ponto de virada jurisprudencial em 2006, no julgamento
do REspe nº 25.937, no qual se definiu:

Votos nulos não se confundem com votos anuláveis. Estes são reconhecidos a priori como
válidos, mas dados a candidato que praticou captação ilícita ou abuso do poder político e
econômico durante o processo eleitoral.
A jurisprudência deste Tribunal consagrou como válidos, mas suscetíveis de anulação posterior,
decorrente da aplicação do art. 41-A da Lei nº 9.504/97, os votos obtidos por candidato infrator, por
refletirem uma vontade orientada à escolha de um mandatário político. Não se somam a estes, para
fins de novas eleições, os votos nulos decorrentes de manifestação apolítica do eleitor, no momento
do escrutínio, seja ela deliberada ou decorrente de erro. [...]
Anulados menos de 50% dos votos válidos, impõe-se a posse do candidato segundo
colocado, e não a aplicação do comando posto no art. 224 do Código Eleitoral.98

Observe-se, porém, que o TSE tratava, então, de diferenciar os efeitos dos votos
nulos dos anuláveis, sem se manifestar sobre a existência, ou não, de diferentes cate­
gorias de nulidade. Portanto, a despeito do que afirma Bramraiter,99 o marco inicial da
nova jurisprudência não deve ser fixado no julgamento do REspe nº 25.937, em 2006.
Embora, desde 1999, já se encontrem manifestações isoladas de ministros no sentido de
distinguir os efeitos dos votos nulificados em decorrência do indeferimento do registro
de candidatura, daquela originária, decorrente de erro ou vontade do eleitor, a pesquisa
na base de dados do TSE na internet revela que, na verdade, somente em 2008, ao
responder à Consulta nº 22.992, o Tribunal formulou com clareza o novo entendimento:

95
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Mandado de Segurança 601 - MG, de 17 maio 1983. Rel. Min. José Maria de
Souza Andrade. Diário de Justiça, 26 jun. 1983. Grifos nossos.
96
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Especial Eleitoral 10989 - MT, de 10 dez. 1992. Rel. Min. José Paulo
Sepúlveda Pertence. Diário de Justiça, 13 maio 1993.
97
BRAMRAITER, Juliana. Os reais efeitos do voto nulo na atualidade e seu reflexo para o regime da democracia
representativa no Brasil. Revista Estudos Legislativos, v. 7, n. 7, p. 61-93, 2013. p. 79.
98
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Especial Eleitoral 25937 - BA, de 17 ago. 2008. Rel. Min. José
Augusto Delgado. Diário de Justiça, p. 120, 1 nov. 2006. p. 120.
99
BRAMRAITER, Juliana. Os reais efeitos do voto nulo na atualidade e seu reflexo para o regime da democracia
representativa no Brasil. Revista Estudos Legislativos, v. 7, n. 7, p. 61-93, 2013.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
230 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

“Os votos dados a candidatos cujos registros encontravam-se sub judice, tendo sido
confirmados como nulos, não se somam, para fins de novas eleições (art. 224, CE), aos
votos nulos decorrentes de manifestação apolítica do eleitor”.100 Mais uma vez, está-se
diante de um caso de mutação legal, em que as premissas da interpretação anterior
foram tacitamente abandonadas, sem serem enfrentadas. Tal mudança foi alegadamente
desencadeada pelo julgamento do Recurso em Mandado de Segurança nº 23.234,
pelo STF, em 1998.101 Como se demonstrará a seguir, porém, esta decisão não oferece
fundamento jurídico para a conclusão que o TSE dela extrai.

7.6.2 O problema do RMS nº 23.234 e do §7º do art. 77 da CRFB/88


No início desta seção, formulei uma objeção à atual jurisprudência do TSE, nos
seguintes termos: não existe um embasamento jurídico razoável para a diferenciação
entre votos originariamente nulos por erro ou vontade do eleitor, de um lado, e votos
nulos e anuláveis por decisão da Justiça Eleitoral, de outro, pois o art. 224 do CE fala
indistintamente em “nulidade”, entendida como “invalidade”, e, se a norma não
distingue, não é dado ao intérprete o fazer. A resposta oferecida pela doutrina e juris­
prudência majoritárias a tal objeção é só aparentemente satisfatória. Afirma-se que a
separação entre os efeitos dos votos originariamente nulos e os dos votos nulificados
pela Justiça Eleitoral decorre do §2º do art. 77 da CRFB/88, que só se referiria à primeira
categoria. O próprio TSE baseia sua atual jurisprudência no que entende ter sido decidido
pelo STF acerca da matéria no julgamento do RMS nº 23.234, em 1998. De fato, naquela
ocasião, o STF definiu que o art. 224 do CE não conflita com o §2º do art. 77 da CRFB/88,
pois cada um deles rege “momentos lógica e juridicamente inconfundíveis da apuração
do processo eleitoral”.102 Estabeleceu-se, assim, que o art. 224 do CE cuida da “validade
da eleição – pressuposto da proclamação de seu resultado”, enquanto o §2º do art. 77 da
CRFB/88 fixa o critério para a proclamação do eleito em eleições que já se sabe válidas.103
Ou seja, o STF confirmou a jurisprudência então dominante no TSE, segundo a qual,

As matérias reguladas em um e outro dispositivo são perfeitamente distintas. A norma do


Código Eleitoral diz com a validade (rectius, eficácia) das eleições. Para que haja candidatos
eleitos, será mister que os votos nulos não superem a metade do total. Outro passo será o
de saber quem foi eleito e disso cuida disposição constitucional. [...] Vê-se que, havendo
maioria de votos nulos, far-se-ão novas eleições. Isso não ocorrendo, cuidar-se-á de verificar
se houve ou não maioria absoluta, quando exigível. Nessa fase não serão considerados os
votos nulos que, por suposto, não terão superado a metade, pois, quando tal ocorra, nem
se passa a essa segunda fase.104

100
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução Normativa 22.992, de 19 dez. 2008. Processo Administrativo
20.159 - PI. Rel. Min. Eliana Calmon. Diário de Justiça Eletrônico, t. 178, 18 set. 2009.
101
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso em Mandado de Segurança 23234, de 2 out. 1998. Rel. Min.
Sepúlveda Pertence. Diário de Justiça, 20 nov. 1998.
102
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso em Mandado de Segurança 23234, de 2 out. 1998. Rel. Min.
Sepúlveda Pertence. Diário de Justiça, 20 nov. 1998.
103
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso em Mandado de Segurança 23234, de 2 out. 1998. Rel. Min.
Sepúlveda Pertence. Diário de Justiça, 20 nov. 1998.
104
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Mandado de Segurança 2624 - AM, de 5 maio 1998. Rel. Min. Eduardo
Andrade Ribeiro de Oliveira. Diário de Justiça, p. 71, 29 jun. 1998.

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JOÃO ANDRADE NETO
O VOTO NULO E SEUS EFEITOS: UM ENSAIO SOBRE A (FALTA DE) LUCIDEZ DA JURISPRUDÊNCIA DO TSE
231

Perceba-se, porém, que o RMS nº 23.234, de 1998, não oferece o precedente que o
TSE pensa dele extrair. A controvérsia levada ao STF naquele caso, em sede de controle
difuso de constitucionalidade, se circunscrevia à recepção (ou não) do art. 224 do CE
pela Constituição, diante da possível incompatibilidade daquele artigo com o §2º do
art. 77 da CRFB/88. O STF não tratava ali da suposta existência de duas categorias de
votos nulos, cada uma com efeitos jurídicos próprios – ao menos, não diretamente. Na
realidade, uma análise mais cuidadosa da ratio decidendi do RMS nº 23.234 revela implícito
na decisão do STF o exato oposto do que concluiu o TSE.
O caso que deu azo à discussão, o MS nº 2.624, decidido pelo TSE em 1998, tratava
da renovação das eleições municipais em Tabatinga (AM), em razão do indeferimento
do registro do candidato eleito. Os votos por ele obtidos, nulificados pela decisão do
TRE-AM que lhe indeferiu a candidatura, foram somados aos demais votos nulos e
nulificados naquela circunscrição, obtendo-se, assim, invalidade que comprometia
mais da metade dos votos, a justificar a renovação do pleito. Por isso, o relator, Ministro
Sepúlveda Pertence, consignou:

Os precedentes do Tribunal [do TSE] são no sentido de que, à incidência do art. 224 do
Código Eleitoral, não importa a causa da nulidade dos votos [...].
Não creio, data vênia, que a lei eleitoral dê fundamento à distinção pretendida entre votos
nulos – porque dados a candidatos que sequer solicitaram registro – e supostos votos
inexistentes, porque sufragaram o nome de quem teve negado o registro da sua candi­
datura.105
Como se vê, o voto de relatoria confirma a jurisprudência anterior do TSE, que
tratava indistintamente as nulidades originária e superveniente, sem atribuir efeitos
diversos a cada uma delas. Não é razoável, portanto, remeter à decisão do STF no RMS
nº 23.234 a distinção entre as consequências jurídicas dos votos nulificados e origi­
nariamente nulos.
A verdade é que o §2º do art. 77 da CRFB/88 não é a norma adequada para embasar
tal distinção. Ao contrário, ele fornece um poderoso argumento contrário à diferenciação.
A Constituição afirma inequivocamente que votos nulos não são computados para a
definição dos candidatos eleitos, sem, porém, diferenciar entre nulidades originárias por
erro ou vontade do eleitor, de um lado, das decorrentes de decisões da Justiça Eleitoral,
de outro. Partindo-se da máxima de que “onde a norma não distingue, não é dado ao
intérprete fazê-lo”,106 os efeitos jurídicos das duas categorias de nulidade deveriam ser
os mesmos, fossem eles ditados pela CRFB/88 ou pelo Código Eleitoral.
No primeiro caso, a partir da premissa da superioridade da CRFB/88 em relação
à legislação ordinária, ter-se-ia que o §2º do art. 77 da CRFB/88 exclui as duas categorias
de votos nulos tanto do momento da apuração quanto do da averiguação da validade
ou não da eleição. Ou seja, ambas as espécies de nulidade (originária e superveniente)
produziriam votos verdadeiramente estéreis, sem nenhum efeito jurídico, como são os
votos em branco, diga-se. Não seria o caso, portanto, de incluir os votos originariamente
nulos, por erro ou vontade do eleitor, na hipótese de incidência do art. 224 do CE, mas,

105
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso em Mandado de Segurança 23234, de 2 out. 1998. Rel. Min.
Sepúlveda Pertence. Diário de Justiça, 20 nov. 1998.
106
ZILIO, Rodrigo López. Direito eleitoral. 5. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2016. p. 76.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
232 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

sim, de excluir dela os votos nulificados por decisões da Justiça Eleitoral proferidas em
RCEDs e processos de registro de candidatura (§3º do art. 175 do CE). Nessa linha de
argumento, em interpretação conforme a Constituição, o art. 224 do CE só seria aplicável
aos casos de anulação de votos pela Justiça Eleitoral em decorrência da procedência de
AIJEs, AIMEs e representações eleitorais específicas. Ora, mas uma vez que o §2º do
art. 77 da CRFB/88 não diferencia entre as duas categorias de nulidade, é de se indagar
se ele não deveria incidir sobre ambas. Votos nulos, quaisquer que fossem as causas
de nulidade, seriam desconsiderados para a determinação dos candidatos eleitos, e a
renovação das eleições prevista no caput do art. 224 do CE decorreria exclusivamente
da anulação de mais da metade dos votos válidos.
Por um lado, essa interpretação daria alguma unidade lógica ao art. 175 do CE.
A concluir que nenhuma espécie de voto nulo deve ser considerada para fins de
determinar se as eleições são válidas ou não, os efeitos jurídicos da nulidade do §3º
passam a ser os mesmos que os da nulidade do caput, dos incisos e dos §§1º e 2º desse
artigo. Lembremos que estes dispositivos tratam de causas originárias de nulidade do
voto do eleitor, que, por erro ou vontade deliberada, assinalava na cédula de votação
o nome de dois ou mais candidatos para o mesmo cargo, ou levantava dúvidas sobre o
conteúdo da própria manifestação da vontade, ao assinalar fora do quadrilátero próprio,
por exemplo. Os votos contaminados por essa nulidade já não produzem nenhum efeito
jurídico. Eles não são considerados nem na apuração nem para fins de determinar se
a eleição como um todo foi válida. Idêntico destino teriam os votos nulificados por
previsão do §3º do art. 175 do CE.
Por outro lado, porém, essa leitura propõe que o art. 224 se submeta a uma
interpretação conforme a Constituição para compatibilizá-lo com o §2º do art. 77 da
CRFB/88, o que, necessariamente, pressupõe a existência de um conflito entre as duas
normas. No entanto, essa possibilidade foi afastada pelo STF no julgamento do RMS
nº 23.234, quando se afirmou que o conflito entre as duas normas é apenas aparente,
uma vez que cada uma delas rege uma situação diversa.107 Essa primeira leitura deve
ser, portanto, abandonada.
Uma segunda leitura, alternativa, seria a que exclui as duas categorias de votos
nulos da apuração – cumprindo, assim, o que determina o §2º do art. 77 da CRFB/88 –,
mas considera ambas para fins de determinar se a eleição é válida ou inválida. Essa é
a correta ratio decidendi do RMS nº 23.234. No acórdão, o STF negou a existência de um
conflito real entre as normas legal e constitucional, sem, no entanto, questionar o fato
de que, no caso que havia dado azo à discussão sobre a recepção do art. 224 do CE pela
CRFB/88, o próprio TSE havia somado todas as categorias de votos inválidos – isto é,
os votos originariamente nulos, os votos anulados e os votos nulificados – para decidir
que aquela eleição municipal deveria ser renovada em razão do comprometimento de
mais da metade dos votos pela invalidade.108 Essa não é, porém, a conclusão que se
extrai da atual jurisprudência do TSE. Dela não se consegue extrair nem uma justificativa
jurídica para diferenciar os efeitos das duas categorias de voto nulo entre si, para fins

107
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso em Mandado de Segurança 23234, de 2 out. 1998. Rel. Min.
Sepúlveda Pertence. Diário de Justiça, 20 nov. 1998.
108
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso em Mandado de Segurança 23234, de 2 out. 1998. Rel. Min.
Sepúlveda Pertence. Diário de Justiça, 20 nov. 1998.

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JOÃO ANDRADE NETO
O VOTO NULO E SEUS EFEITOS: UM ENSAIO SOBRE A (FALTA DE) LUCIDEZ DA JURISPRUDÊNCIA DO TSE
233

de aplicação do art. 224 do CE, nem uma leitura que seja ao mesmo tempo adequada
e coerente e que garanta a integridade do sistema de invalidades eleitorais e de defesa da
autenticidade das eleições.

7.7 Conclusão: afinal, votar nulo pode anular uma eleição?


Este artigo tratou da nulidade dos votos no direito eleitoral brasileiro e de seus
efeitos. Conforme se expôs, a atual jurisprudência do TSE e a doutrina dominante dife­
renciam duas categorias de votos nulos, com efeitos jurídicos distintos. A primeira é a
nulidade originária, que contamina os votos por ocasião da própria votação. Os votos
originariamente nulos, por erro ou vontade do eleitor, são estéreis: não geram nenhum
efeito jurídico. Só são considerados para fins estatísticos e não interferem nem na
apuração do pleito nem no momento de determinar se as eleições são válidas ou não.
Essas hipóteses de nulidade estão concentradas no caput, nos incisos e nos §§1º e 2º do
CE. Embora a Constituição não o preveja expressamente, o direito de votar nulo é um
direito fundamental, decorrente da liberdade de manifestação do pensamento ou da
objeção de consciência por convicção política, conforme o caso.
A segunda espécie de nulidade é a superveniente. Trata-se então de votos origi­
nariamente válidos, mas dados a candidatos inelegíveis ou não registrados. Esses
votos são nulificados em razão de uma decisão tardia da Justiça Eleitoral em uma
ação de arguição de inelegibilidade. O indeferimento do registro de candidatura ou a
improcedência da AIRC depois do fechamento das urnas eletrônicas, ou o provimento
do RCED, que necessariamente ocorrerá depois das eleições, nulifica os votos obtidos
pelo candidato, conforme previsto no §3º do art. 175 do CE.
De acordo com a atual jurisprudência do TSE, logo absorvida pelo STF, apenas
esta segunda espécie de nulidade acarreta a invalidação da própria eleição e sua
renovação, nos termos do caput do art. 224 do CE, nos casos em que o número de votos
inválidos ultrapasse 50% dos votos dados ao cargo na circunscrição. Ou seja, somente
os votos nulificados se consideram nesse cálculo. A eles se somam os votos anulados
pela Justiça Eleitoral em decorrência da prática de ilícitos eleitorais típicos em benefício
de candidatos (fraude, corrupção, abuso de poder, conduta vedada, captação ilícita de
sufrágio etc.), mas não os votos originariamente nulos. Estes não são considerados para
fins de determinar se a eleição foi válida ou não. O entendimento largamente dominante,
inclusive na doutrina, é, portanto, no sentido de que votar nulo não anula a eleição para
determinado cargo, ainda que mais da metade do eleitorado da circunscrição o faça.
Todavia, como se demonstrou, essa conclusão só aparentemente decorre dos
fundamentos jurídicos invocados pelo TSE para justificá-la: o acórdão do STF no
RMS nº 23.234, de 1998. Nessa decisão, o STF tão somente negou a existência de uma
antinomia entre o §2º do art. 77 da CRFB/88 e o caput do art. 224 do CE. Nada se decidiu
ali sobre a existência de duas categorias de votos nulos com efeitos jurídicos distintos.
Logo, o acórdão não oferece o precedente que o TSE pensa dele extrair. Na realidade,
uma análise mais cuidadosa da ratio decidendi do RMS nº 23.234 revela implícito na
decisão do STF o exato oposto do que concluiu o TSE. Afinal, o STF fora provocado a se
manifestar, em recurso, sobre a decisão do próprio TSE que convocara novas eleições
municipais em Tabatinga (AM) após constatar, pela soma dos votos anulados, nulificados
e originariamente nulos, que mais da metade dos votos estava comprometida pela

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
234 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

invalidade. Ao julgar o RMS, porém, o STF não questionou tal cálculo, limitando-se a
declarar que o caput do art. 224 do CE fora recepcionado pela Constituição.
Para além da imprecisão do fundamento jurídico para a distinção entre os efeitos
das duas categorias de votos nulos, essa construção jurisprudencial se revela frágil tanto
histórica quanto teoricamente. Primeiramente, trata-se de um entendimento muito
recente e contrário à jurisprudência anterior, consolidada desde a década de 1970,
segundo a qual eleições eram invalidadas e renovadas em razão do alto percentual de
votos inválidos, consideradas, na soma, todas as espécies de invalidade, sem distinção.
Somente em 2008, ao responder à Consulta nº 22.992, o TSE viria a formular com
clareza o novo entendimento. Em segundo lugar, conquanto a jurisprudência atual seja
amplamente respaldada pela doutrina, é difícil apontar para ela um fundamento legal
específico. Afinal, embora o §2º do art. 77 da CRFB/88 exclua os votos nulos do momento
da apuração, ele nada diz sobre o momento da aferição da validade da eleição. Já o art. 224
do CE, que o faz, trata indistintamente da nulidade como causa da renovação do pleito.
Desse modo, a aplicar a máxima de que ao intérprete não é dado diferenciar onde a lei
não o faz, não há justificativa jurídica para afirmar que “votar nulo não anula eleição”.
E, no entanto, essa conclusão foi abraçada com tal intensidade pela Justiça Eleitoral,
que sucessivas campanhas de esclarecimento ao eleitorado têm sido promovidas, com o
intuito de alertar para o que se considera um óbvio “equívoco”: a ideia de que os eleitores
podem provocar a invalidação da eleição simplesmente por votarem nulo, caso a nulidade
ultrapasse mais da metade dos votos da circunscrição. Não é de conhecimento da opinião
pública, porém, que tal ideia que hoje se considera um “mito” tem origem na própria
jurisprudência do TSE, dominante até menos de uma década atrás, e que a jurisprudência
que a sucedeu carece de fundamentação jurídica mais substancial. O atual entendimento
do TSE resulta de uma mutação legal silenciosamente operada e está longe de expressar
a única interpretação possível do direito eleitoral vigente. Era de se esperar, portanto,
que o tribunal enfrentasse e eventualmente superasse as objeções a essa interpretação,
em vez de as reputar, de plano, absurdas. Para citar novamente Saramago, de cuja obra
se extraiu a epígrafe que abre este artigo, “há que ter o máximo de cuidado com aquilo
que se julga saber, porque por detrás se encontra escondida uma cadeia interminável
de incógnitas, a última das quais, provavelmente, não terá solução”.109

Referências
ALBUQUERQUE, Xavier de. Inconstitucionalidade do cômputo dos votos em branco nas eleições proporcionais.
Estudos Eleitorais, v. 1, n. 2, p. 79-93, 1997.
ALMOND, Gabriel A.; VERBA, Sidney. The civic culture: political attitudes and democracy in five nations.
New ed. Newbury Park, Calif: Sage Publications, 1989.
AMARAL, Roberto. Apontamentos para a reforma política: a democracia representativa está morta; viva a
democracia participativa. Revista de Informação Legislativa, v. 38, n. 151, p. 29-65, 2001.
ANDRADE NETO, João. Controle e judicialização das eleições: a legitimidade de juízes e tribunais eleitorais
para decidirem “questões políticas”. In: MORAES, Filomeno; SALGADO, Eneida Desiree; AIETA, Vânia
Siciliano (Org.). Justiça eleitoral, controle das eleições e soberania popular. Curitiba: Íthala, 2016.

109
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a lucidez. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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JOÃO ANDRADE NETO
O VOTO NULO E SEUS EFEITOS: UM ENSAIO SOBRE A (FALTA DE) LUCIDEZ DA JURISPRUDÊNCIA DO TSE
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

ANDRADE NETO, João. O voto nulo e seus efeitos: um ensaio sobre a (falta de) lucidez da jurisprudência
do TSE. In: FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura (Coord.);
PECCININ, Luiz Eduardo (Org.). Direito Constitucional Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 209-238.
(Tratado de Direito Eleitoral, v. 1.) ISBN 978-85-450-0496-7.

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CAPÍTULO 8

DE ONDE VIEMOS, QUEM SOMOS,


PARA ONDE VAMOS? UM BREVE RELATO
ACERCA DO PERCURSO DA CIDADÃ BRASILEIRA,
DESDE O ACESSO AO VOTO ATÉ SEU STATUS QUO
NO CENÁRIO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO

CARLA PINHEIRO

GINA POMPEU

Palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um
governo, ou uma revolução, alguns dizem que assim é que a natureza
compôs as suas espécies.
(Machado de Assis)

8.1 Introdução
O título do presente texto, De onde viemos, quem somos, para onde vamos?, é tomado
de empréstimo do pintor francês Paul Gaugin, de uma pintura sua que data de 1897,
época em que o artista viveu e expressou em sua arte a influência das cores intensas
e da forma de ser e de viver dos habitantes, mais especificamente das mulheres, da
Polinésia Francesa.
Também a história da participação feminina no cenário político do mundo e do
Brasil é marcada pela intensidade de uma luta que se espraia a partir de todo o mundo
ocidental, mas que ganha as nossas cores e o nosso jeito de ser, mais precisamente um
jeito de ser nordestino, já que as primeiras cidadãs brasileiras deixaram sua marca na
história com referência potiguar. Este é um nome indígena que designa aqueles e aquelas
nascidas no Rio Grande do Norte, assim como vahines, de Gaugin, é o nome dado às
mulheres na Polinésia Francesa.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
240 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Não cabe no presente contexto apontar toda a longa luta histórica da mulher
pelo acesso à voz e ao voto. E isso, não porque esse discurso seja dispensável, muito
pelo contrário! Para compreender o presente é imprescindível compreender como ele
se construiu, através de sua história, muitas vezes contraditória, com os seus discursos
de liberdade, igualdade, fraternidade – entre seres humanos em geral e entre homens
e mulheres em especial – que são atravessados muitas vezes por acontecimentos
incoerentes e arbitrários. Importante, no entanto, apontar alguns eventos e momentos
históricos que marcaram parte da caminhada da mulher rumo à paridade de gêneros no
acesso a cargos políticos e ao exercício do poder na construção do cotidiano brasileiro.
O direito à igualdade é direito humano por excelência. A igualdade também está
umbilicalmente ligada aos direitos políticos, como elemento central da democracia.
Assim, ao se falar acerca da igualdade de acesso ao universo político entre homens e
mulheres, aborda-se um direito político ao mesmo tempo que como categoria de um
direito humano. Retorna-se, dessa forma, ao questionamento que nomeia a obra de Paul
Gaugin: “De onde viemos, quem somos, para onde vamos?”. Viemos para ser iguais,
sem discriminação de qualquer natureza, como reza a nossa Constituição Federal, somos
cidadãos e cidadãs em plena luta, pela paridade material no acesso às decisões relativas
ao nosso presente e ao nosso futuro, na busca de um lugar melhor para as presentes e
futuras gerações.

8.2 De onde veio e como nasceu e se materializou a luta pela paridade


de acesso ao poder político entre homens e mulheres?
Quando se fala em luta pela igualdade surge um questionamento filosófico
importante, um reposicionamento da pergunta às avessas, ou seja, de onde veio a diferen­
ciação?1 Se os seres humanos são iguais per si, sejam eles de sexos diferentes – homens,
mulheres, homossexuais, transexuais –, apresentem-se sob fenótipos multicolores –
pretos, brancos, amarelos –, organizem-se culturalmente com as suas especificidades –
os chamados civilizados, indígenas ou quilombolas – etc., por que o conflito acerca da
diferença se a humanidade iguala, ou deveria igualar tudo?
Certo é que conflitos que marcam a diferenciação existem no imaginário e na
simbologia da humanidade, assim como transbordam na forma de histórias míticas e
de acontecimentos históricos. São de longa data, mesmo porque, pensando novamente
pelo viés filosófico, a dúvida surge, ou o questionamento sobre a igualdade está presente,
porque um ou alguns exemplares de desigualdade se materializam e buscam uma solução
para a questão que materialmente se impõe.
Já na mitologia grega, conta-se que as mulheres tinham direito ao voto na época
do Rei Cécrope I (que teria governado Atenas de 1558 a 1508 a.C). Quando Cécrope I
fundou uma cidade, nela brotaram uma oliveira e uma fonte de água. O rei perguntou
ao Oráculo de Delfos qual o significado desses dois eventos. A resposta foi que a oliveira
significava Atena e que a fonte de água era Poseidon. O oráculo disse, ainda, que os
cidadãos deveriam escolher Atena ou Poseidon para nomear a cidade. Todos os cidadãos
foram convocados a votar, homens e mulheres. Os homens votaram em Poseidon e as

1
RUSSELL, 2017.

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CARLA PINHEIRO, GINA POMPEU
DE ONDE VIEMOS, QUEM SOMOS, PARA ONDE VAMOS? UM BREVE RELATO ACERCA DO PERCURSO DA CIDADÃ BRASILEIRA...
241

mulheres em Atena. Esta venceu por um voto. Poseidon ficou irado pelo fato de haver
perdido e atacou a cidade com ondas gigantescas. Para apaziguar o deus, as mulheres
de Atenas aceitaram três severos castigos: a partir de então elas perderiam o direito de
voto, nenhum de seus filhos teria o nome da mãe e ninguém as chamaria de atenienses.
No que diz respeito à história propriamente dita, mais especificamente à história
moderna da luta das mulheres por seus direitos, tem-se uma referência importante no
final do século XVIII. Em 1789, foi publicada a Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão. Ocorre que os termos homem e cidadão foram levados em consideração
em sentido etimológico, estrito, ou seja, somente os seres humanos do sexo masculino
tinham direitos civis e políticos.
Em repulsa à exclusão da mulher do exercício de seus direitos civis e políticos,
dois anos depois, em 1891, a escritora Olympe de Gouges publicou a Declaração dos
Direitos da Mulher e da Cidadã. Um ano depois, Mary Wollstonecraft publicou um
livro intitulado Reivindicações dos direitos da mulher. No livro, defendia-se uma educação
para as meninas, futuras mulheres, em que elas pudessem realizar todo o seu potencial
como seres humanos.
Nesse sentido, cumpre lembrar que no ano passado e no ano em curso, 2018,
a autora Chimamanda Ngozi Adichie, nigeriana, torna-se um best-seller no mundo
ocidental, com pequenos livros intitulados Para educar crianças feministas,2 Sejamos todos
feministas,3 entre outros, com histórias e mensagens aparentemente simplistas sobre a
necessidade de um ideologia e de uma postura de igualdade entre homens e mulheres
que venha já do berço e que faça parte do cotidiano, tantos anos depois de Olympe e
de Wollstonecraft.
No século XIX, época em que viveram essas duas impetuosas mulheres, as moças
das classes mais abastadas aprendiam pouca coisa além de ler, escrever, costurar,
desenhar e cantar, e as mulheres eram consideradas bens de seus pais e maridos e
fornecedoras de herdeiros. Deviam total obediência e submissão primeiro ao pai e depois
ao marido. No final do século XX e início do século XXI muitas meninas continuam sendo
educadas a partir de papéis cristalizados, refutados pelas feministas de dois séculos
atrás, como bem descreve Chimamanda Ngozi Adichie, em seus livros.
Na seara social e jurídica, o Código de Napoleão, outorgado por Napoleão
Bonaparte em 1804, influenciou muitos países europeus, assim como países da América
Latina, entre eles o Brasil. Nele, eram enfatizados os direitos dos maridos e pais em
detrimento dos direitos das esposas e mães, que nem sequer eram referenciadas como
sujeitos de direitos na letra da Lei Civil.
Como consequência da exclusão feminina da esfera pública da sociedade, as
mulheres foram impedidas de exercer profissões, de cursar ensino superior e de votar
ou exercer cargos políticos. Em 1869 foi fundada a National Woman Suffrage Association,
por Susan Anthony e Stanton. A razão que deu origem à criação da Associação Nacional
das Mulheres Sufragistas foi a indignação frente à Décima Quinta Emenda à Constituição
norte-americana. Isso porque havia a menção no sentido de que “o direito de voto dos
cidadãos dos Estados Unidos não poderá ser negado ou cerceado por motivo de raça,
cor ou de prévia condição de servidão”, mas não havia qualquer menção a gênero.

2
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Para educar crianças feministas. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
3
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
242 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Felizmente as mulheres também receberam apoio de homens influentes no século


XIX, da perspectiva intelectual e política, como o filósofo John Stuart Mill, membro do
parlamento pelo Partido Liberal. Mill, defensor do liberalismo político e das liberdades
individuais, cujo pensamento político ainda reverbera na contemporaneidade, peticionou
exigindo a concessão do direito de voto às mulheres.
Também foi fundada uma outra associação de mulheres, essa mais radical,
denominada Women’s Social and Political Union, em 1903. As mulheres da União
Política e Social atiravam pedras nas janelas, faziam greve de fome quando eram presas,
recorriam enfim a todos os recursos para conseguir dar voz e visibilidade a suas causas.
Conseguiram com seus métodos assertivos significativa publicidade.
No entanto, o primeiro país a garantir o direito de voto para as mulheres foi a
Nova Zelândia, em 1893. Depois vieram a Austrália, em 1902, a Alemanha e a Inglaterra
em 1918, os Estados Unidos em 1920. A França e a Itália demoraram até 1945 para
conceder o direito de voto às mulheres. Na Suíça, este direito somente foi concedido
em 1971. A Arábia Saudita realizou suas primeiras eleições em 2005 e as mulheres não
puderam votar.
Cumpre ressaltar que, apesar do intenso trabalho das mulheres, que cumpriam
sua jornada doméstica e nas fábricas, durante o século XVIII, foi somente no final do
século XIX que as mulheres começaram a ter acesso à educação de nível superior. Apesar
de as mulheres nos Estados Unidos e na Inglaterra haverem trabalhado em funções
tradicionalmente reservadas a homens durante as Duas Grandes Guerras Mundiais,
com o final destas as mulheres tiveram de voltar a ocupar os seus afazeres domésticos
e devolver os cargos aos homens, sem reconhecimento pela ativa participação durante
as guerras e sem direito a uma posição ativa na vida pública.
Não se pode deixar de apontar que, na literatura, destacou-se a obra O segundo
sexo, de Simone Beauvoir, publicada em 1949.4 Na referida obra, a autora defende que
“não se nasce mulher, torna-se uma”. Em outras palavras, o que se atribuía como inato
ao sexo feminino, até então – como a maternagem, o cuidado de casa e a obediência ao
pai e ao marido –, era parte de construções culturais, e as mulheres eram tão aptas a
atividades intelectuais e políticas quanto os homens.
Mas a grande Revolução Feminista começou na década de 1960. Em 1963 Betty
Friedan publica a obra Mística feminina, que entrava em sintonia com o “movimento de
liberação feminina”.5 As reivindicações das mulheres eram direcionadas à igualdade
de acesso a postos de trabalho e aos salários pelo exercício das mesmas funções que os
homens. Mas não somente a isso. Já nessa época começou-se a articular no sentido da
mudança de paradigma do que chamamos “patriarcado”.
Assim, para que o direito à igualdade pudesse ser efetivamente exercido, defendia-
se a necessária mudança de paradigma nas relações privadas, ou seja, modificações no
papel exercido pelo homem e ratificado pelo Estado. Eram necessárias políticas públicas
que dessem suporte para a efetivação do direito à igualdade. As mulheres reivindicavam
acesso ao planejamento familiar, creches, protestavam contra a violência e a exploração
masculinas no âmbito doméstico, assim como contra todas as formas de discriminação
baseadas no gênero.

4
BEAUVOIR, Simone. Le deuxieme sexe. Paris: Galimard, 1949.
5
FRIEDAN, Betty. Mística feminina. Petrópolis: Vozes, 1971.

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CARLA PINHEIRO, GINA POMPEU
DE ONDE VIEMOS, QUEM SOMOS, PARA ONDE VAMOS? UM BREVE RELATO ACERCA DO PERCURSO DA CIDADÃ BRASILEIRA...
243

Muito embora as mulheres tenham conquistado vitórias como com o Equal Pay Act
de 1970, no Reino Unido, até hoje os salários médios das mulheres no mundo ocidental
não alcançaram paridade com os dos homens.
Em 1972 o Congresso norte-americano aprova a Emenda dos Direitos Iguais, que
nunca foi ratificada. Em 1973, no julgamento do caso Roe versus Wade, a Suprema Corte
legaliza o aborto nos Estados Unidos. Em 1975, o Sex Discrimination Act cria a Comissão
de Oportunidades Iguais no Reino Unido e Margaret Thatcher torna-se a primeira mulher
a liderar um grande partido político na Inglaterra.

8.3 Quem somos: a incursão da cidadã brasileira no cenário da política


nacional
No caminho de construção do acesso à cidadania da mulher brasileira, temos que
mesmo antes da Inglaterra, Mossoró, no Rio Grande do Norte, foi pioneiro ao autorizar
o voto feminino em eleições, o que não era permitido no Brasil até então, mesmo que não
houvesse proibição expressa na Constituição vigente. Assim, Celina Guimarães Viana,
invocando o art. 17 da Lei Eleitoral do Rio Grande do Norte, de 1926, foi a primeira
mulher a ter acesso ao voto no Brasil.
O art. 17 da Lei Eleitoral tinha o seguinte teor: “no Rio Grande do Norte, poderão
votar e ser votados, sem distinção de sexos, todos os cidadãos que reunirem as condições
exigidas por lei”. Assim o foi. Celina abriu um precedente, com seu título eleitoral, que
levou a um grande movimento nacional de mulheres de diversas cidades do Rio Grande
do Norte e de outros estados da Federação a fazerem o mesmo.
Em 1928, Alzira Soriano tornou-se a primeira mulher prefeita de um município
brasileiro, na cidade de Lages, no Rio Grande do Norte. Em 1933, Carlota Pereira de
Queiróz se tornou a primeira deputada federal brasileira. Em 1934 a Professora Antonieta
de Barros, catarinense e filha de uma escrava liberta, foi eleita a primeira parlamentar
negra da História do Brasil. Em 1979, Eunice Michiles tornou-se a primeira senadora do
Brasil. Em agosto de 1982 o Brasil tem sua primeira mulher ministra, ocupando a pasta
da Educação e Cultura, Esther de Figueiredo. Em 1989 tem-se a primeira candidatura de
uma mulher para a Presidência da República, Maria Pio de Abreu, do Partido Nacional.
Em 1995, Roseane Sarney torna-se a primeira governadora brasileira. Em outubro de
2010 Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores, venceu as eleições presidenciais no
segundo turno e tornou-se a primeira mulher presidente da República no Brasil. Em 2014
foi reeleita, mas foi afastada do poder em 2016 através de um processo de impeachment.
A iniciativa das mulheres no âmbito político fez com que outros espaços fossem
conquistados para elas na sociedade. O Decreto nº 21.076, de 24.2.1932, institui o Código
Eleitoral Brasileiro, estabelecendo-se em seu art. 2º ser eleitor o cidadão maior de 21
anos, sem distinção de sexo, alistado na forma do código. No art. 121 do mesmo código
estava estabelecido que os homens com mais de 60 anos e as mulheres de qualquer idade
poderiam se isentar de qualquer obrigação ou serviço de natureza eleitoral. Dessa forma,
o voto feminino não era obrigatório, mas permitido. Em 1933 as mulheres passaram a
poder se candidatar a cargos eletivos.

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244 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

8.4 Entre onde estamos e para onde vamos: as conquistas e perspectivas


da mulher na política brasileira
A participação equânime das mulheres na política é imprescindível para a
diminuição das desigualdades, para a afirmação da cidadania e consolidação da demo­
cracia no Brasil. O alicerce ideológico da Constituição de 1988 é o Estado Democrático de
Direito. A garantia dos direitos individuais e sociais são sua base concreta. A Constituição
estabelece dispositivos protetores de uma igualdade formal, assim como instrumentos
para a igualdade material.
Para a igualdade de oportunidades é necessário respeitar as diferenças, assim
como estas devem ser levadas em consideração na arquitetura das ações estatais.
A ci­da­dania pressupõe igualdade entre todos os membros da sociedade, para que não
subsistam privilégios de grupos ou classes sociais no exercício de direitos.
A Constituição de 1988, chamada por Paulo Bonavides de Constituição Cidadã,
não recebeu essa denominação sem o respectivo mérito que lhe conferiu azo. Isso
porque, a partir de 1988, o conceito de cidadania se expande para abarcar mais do que
direitos políticos de participação. Ela passou a ser um princípio norteador dos direitos
e deveres fundamentais da sociedade brasileira. A cidadania da Constituição de 1988
não apenas garante o direito ao voto, mas exige a participação ativa do indivíduo na
vida social brasileira.
Exemplo de participação ativa das pessoas para a proteção e promoção de uma
melhor qualidade de vida encontra-se, por exemplo, no art. 225 da Constituição de
1988, quando se determina que todos têm direito a um meio ambiente ecologicamente
equilibrado, sendo incumbência do Poder Público e da coletividade ações efetivas no
sentido de manter um meio ambiente saudável para as presentes e futuras gerações.
As políticas públicas também assumem papel central no que diz respeito à
construção de uma cidadania igualitária e justa. Na semântica constitucional de 1988,
temos que elas foram criadas com a intenção de combater a desigualdade material, como
um recurso na luta para enfrentar as injustiças cotidianas ocasionadas por preconceitos
ou falta de oportunidades ou, ainda, por dificuldades intrínsecas a condições pessoais
específicas.
Não é demais enfatizar o que pode parecer óbvio, quando a obviedade não se
efetiva no cotidiano nacional: a importância da participação das mulheres nos espaços de
poder institucional é uma questão de “justiça intuitiva”, já que a metade da população
não pode e não deve ser representada por 5% dos membros do Congresso Nacional.
Nada mais coerente do que a afirmação no sentido de que “as mulheres necessitam
ser representantes de si mesmas”. Suas necessidades específicas precisam ser levadas em
conta e se tornar norma. Ninguém melhor do que as próprias mulheres para apontar o
que lhes falta para que a igualdade formal e material apontada pela nossa Constituição
se torne realidade fática no cotidiano brasileiro.
Mais que opinar sobre questões exclusivas de gênero, ou seja, atuar em uma
posição defensiva, tendo em vista alcançar as mesmas condições de vida dos homens,
as mulheres devem atuar de forma ativa em assuntos de interesse geral, sobre todas
as questões inerentes à promoção de uma sociedade justa e solidária. E isso nos mais
diversos setores da vida pública, como na economia, nos setores de transporte, de saúde,
de previdência social, entre tantos outros.

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CARLA PINHEIRO, GINA POMPEU
DE ONDE VIEMOS, QUEM SOMOS, PARA ONDE VAMOS? UM BREVE RELATO ACERCA DO PERCURSO DA CIDADÃ BRASILEIRA...
245

A Constituição de 1988 determina especial proteção a crianças, idosos, índios,


negros e mulheres, além de outros. Para isso foram criadas as cotas nas chapas dos
partidos políticos como busca de garantir uma discriminação positiva em favor das
mulheres.
Importante repetir que existe uma distorção significativa, para não dizer
esmagadora, na representação política parlamentar de gênero no Brasil. Durante mais
de 500 anos os homens monopolizam os cargos de direção política. A implementação
da política de cotas femininas por meio de lei significa o reconhecimento da baixa
participação da mulher no poder e oferece um instrumento para modificar essa realidade,
daí sua importância e imprescindibilidade nos limites da moldura constitucional de 1988.
Em passado recente, a Lei nº 9.100, de 29.9.1995 estabeleceu – em seu art. 11, §3º –
que os partidos políticos deveriam preencher vagas nas chapas eleitorais com, no mínimo,
20% de candidatas mulheres. Em 1997, a Lei nº 9.504 eleva o mínimo de vagas femininas
para 30% e estabelece um percentual máximo de 70% para candidatura de cada sexo.
O impacto dessas modificações não foi significativo nas eleições municipais
para a legislatura 1997-2000. As mulheres, de 8%, passaram a ocupar 11% das cadeiras
legislativas municipais. A justificativa na época foi o pouco tempo de existência da lei e a
baixa divulgação dela. No entanto, a representação feminina não aumentou em eleições
posteriores para o Congresso Nacional.
No entanto, em 2002, foram eleitas 42 mulheres para a câmara dos deputados,
o que significou um aumento de 45% em relação à eleição anterior, mas em 2006, o
aumento foi pouco significativo: de 42 para 45 deputadas. Elas ocupavam menos de
10% do Congresso Nacional.
Com a Lei nº 12.34/09 foi reafirmada a cota de gênero e os partidos deixaram de
ter que reservar as vagas e passaram a ser obrigados a preencher vagas das chapas dos
partidos políticos com máximo de 70 e mínimo de 30% de cada gênero. Também foi
garantido 5% do fundo partidário de tempo de propaganda para a promoção e difusão
da participação de mulheres na política e 10% de tempo de propaganda gratuita para
difundir a participação feminina no poder. No entanto, o número de deputadas na
primeira presidência feminina no Brasil continuou em 10%.
Na verdade, conforme apontado acima, as cotas devem funcionar como meca­
nismos de discriminação positiva para combater o problema estrutural da baixa partici­
pação feminina. Ocorre que somente este mecanismo de ação afirmativa, isoladamente,
não é suficiente para elevar a participação das mulheres no universo político. É, em uma
linguagem metafórica, como se se estivesse tentando combater a doença com paliativos
que apenas são suficientes para combater alguns sintomas de uma doença que é bem
mais abrangente.
Não é verdade que o eleitorado discrimine as mulheres ou, em outros termos, não
é verdade que a mulher não “queira” representar a si mesma ou ter suas necessidades de
cidadã levadas em consideração na forma de políticas públicas ou de normas propria­
mente ditas. Na opinião do Instituto Vox Populi, o eleitorado, masculino e feminino,
não discrimina o sexo feminino, ao contrário, considera as mulheres mais competentes,
sensíveis e honestas ao ocuparem cargos de responsabilidade pública.
Existem algumas hipóteses acerca do fato de que a política de discriminação
posi­tiva não está modificando a percentagem de participação das mulheres nos espaços
institucionais de poder. Uma delas defende que o fato de a lei de cotas não impor

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246 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

penalidades aos partidos políticos que não obedecerem à percentagem mínima de gênero
é uma das causas do baixo incentivo dos partidos políticos em inserirem mulheres na cota
exigida por lei. O entendimento é no sentido de que as vagas que não são preenchidas
pelas mulheres não são significativamente importantes para os partidos.
Também se argumenta que existem mecanismos de boicote aos instrumentos
que visam diminuir as desigualdades de representatividade de gênero. Isso porque,
quando da aprovação da política de cotas, o número de candidatos que um partido ou
coligação poderia oferecer ao eleitorado foi aumentado para 150% do número de vagas
nas casas legislativas. Dessa forma se, por exemplo, determinado estado tem 50 cadeiras
de deputados, cada partido ou coligação pode ter 75 nomes para uma chapa de candidato.
O número de candidatos aumentou na mesma proporção do número de vagas abertas
para serem preenchidas por candidatas mulheres. Assim, os homens não abriram mão
de 30% de suas vagas, mas as vagas das mulheres se tornaram vagas excedentes.
O Brasil é um dos poucos países do mundo que lança muito mais candidatos
do que vagas em disputa. Pensa-se que, com menos candidatos, os votos obtidos pelas
mulheres tornar-se-iam mais significativos, o que estimularia as direções partidárias a
buscar candidatas efetivamente competitivas e não somente candidatas “fantoches”,
para cumprir um requisito legal formal sem a preocupação com uma efetiva resposta
material de mulheres eleitas.
Também a “campanha nominal”, na qual a figura do candidato se destaca na
cam­panha, é um ponto contra a inserção da mulher como candidata forte. Quem se
candidata, no Brasil, deve ter uma estrutura partidária e financeira substancial. Deve
ter acesso amplo aos meios de comunicação, precisa, enfim, ter o que se chama de
“uma base política forte”. O que envolve interesses além daqueles realmente coerentes
com uma plataforma de propostas políticas que tenham uma correspondência com as
necessi­dades da população.
Não há que se falar, enfim, em um “vazio feminino na política”. Como se as
mulheres não tivessem interesse em representar a si mesmas. O que ocorre é o reflexo
do monopólio masculino sobre a atividade política institucional que está sedimentada
no imaginário e na prática popular.
Pensa-se que a estrutura dos partidos políticos seja a maior responsável pela baixa
representação feminina, pois a sua estrutura é quem determina o acesso a recursos e a
tempo de propaganda eleitoral gratuita, os candidatos que serão apoiados por políticos,
entre outros. Partindo-se desse entendimento houve uma reforma eleitoral que aprovou
a reserva de, no mínimo 5%, por cento do fundo partidário para a criação e manutenção
de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres e impôs o
aumento de 2,5% para quando o partido não cumprir o percentual mínimo exigido.
Também destinou 10% do tempo da propaganda eleitoral gratuita dos partidos para a
divulgação da importância da participação feminina no poder político.
Tais medidas foram implementadas nas eleições de 2010, mas é preciso mais
tempo para que o eleitorado aponte por meio do voto que compreende a importância
da participação feminina no poder, assim como para que as rígidas estruturas político-
partidárias passem a promover a efetiva participação das mulheres nas campanhas
eleitorais.
A questão familiar ainda é uma das principais amarras sociais que impede a efetiva
participação da mulher na política. Como os afazeres e responsabilidades domésticas

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DE ONDE VIEMOS, QUEM SOMOS, PARA ONDE VAMOS? UM BREVE RELATO ACERCA DO PERCURSO DA CIDADÃ BRASILEIRA...
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ainda continuam a cargo dela, ela dispõe de menos tempo para as atividades político-
partidárias. O grau de desigualdade na divisão sexual do trabalho combinado com a
dupla jornada de trabalho impacta diretamente o engajamento da mulher comum na
vida política.

8.5 Conclusão
O tema desenvolvido abordou a origem do questionamento acerca da desigualdade
de gênero, relativamente aos titulares da tomada das decisões que regem o cotidiano
da sociedade brasileira. Abordou os discursos imaginários, por meio da mitologia, e
os fatos históricos concretos que construíram o acesso da mulher ao voto no mundo
ocidental e no Brasil.
Enfrentou também o status quo da situação de desigualdade de acesso ao poder
político vivenciado no Brasil do século XXI, mostrando que o problema continua sendo
tangenciado por mecanismos de pouca eficácia, que não proporcionam o objetivo que
se quer: alcançar a igualdade entre homens e mulheres no cotidiano das decisões sobre
como, quando e por que esta ou aquela decisão será tomada, em vez daquela outra.
Apontou o processo paulatino, as tentativas de mitigar a baixa representatividade
da mulher no cenário nacional porque, na verdade, as normas que se propõem a diminuir
as diferenças somente tangenciam o problema central e mitigam alguns sintomas sem
tocar no cerne da doença social: é necessário que o Estado e os cidadãos se unam em
prol de uma divisão democrática de papéis entre homens e mulheres, especialmente no
âmbito privado. Se as preocupações e tarefas domésticas forem um assunto que ocupe
igualmente a vida de homens e mulheres, assim como a vida no trabalho “extra lar” o é,
a doença começará a ser tratada e a igualdade de acesso às decisões que dizem respeito
a todos poderá ser efetivamente um assunto de todos.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

PINHEIRO, Carla; POMPEU, Gina. De onde viemos, quem somos, para onde vamos? Um breve relato
acerca do percurso da cidadã brasileira, desde o acesso ao voto até seu status quo no cenário jurídico
contemporâneo. In: FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura (Coord.);
PECCININ, Luiz Eduardo (Org.). Direito Constitucional Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 239-247.
(Tratado de Direito Eleitoral, v. 1.) ISBN 978-85-450-0496-7.

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PARTE III

DE UMA JUSTIÇA SIMBÓLICA


À ASPIRAÇÃO CONCRETIVA

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CAPÍTULO 1

JUSTIÇA ELEITORAL BRASILEIRA:


HISTÓRICO, FUNÇÕES E POSSÍVEIS PROPOSTAS
DO DIREITO COMPARADO PARA A REVITALIZAÇÃO
DO MODELO DE ORGANISMO ELEITORAL

WALDIR FRANCO FÉLIX JÚNIOR

1.1 Considerações iniciais: a Justiça Eleitoral como manifestação mais


direta do ativismo judicial brasileiro?
É inegável que o Judiciário é o poder constituído que goza de maior força na
atualidade brasileira, sobrepondo-se, por diversas vezes, a um Executivo enfraquecido
e a um Legislativo desmoralizado. Essa constatação, embora possua maior ou menor
acerto conforme a seara do direito que se venha a ter em comparação, soma-se ao fato
de que cada vez mais recrudesce a visão segundo a qual cabe ao juiz ser garantista e
ousado na interpretação da norma jurídica, revisitando paradigmas e dogmas inertes,
visando a atingir a realidade social material.1
E, dada sua intrínseca relação com o constitucionalismo brasileiro e com a
preservação do regime democrático, o contínuo embate entre o mero exercício de
funções típicas jurisdicionais e a tomada de outros espaços ou meios de atuação se faz
ainda mais forte na seara eleitoral. E as razões para tanto são plúrimas e nem sempre
tão diretamente perceptíveis.
No direito eleitoral, a Justiça Eleitoral goza de uma posição de primazia que
remonta às suas origens históricas e acaba por se refletir nos modos e nos mecanismos
de sua atuação cotidiana. Isso deriva, em um primeiro momento, da própria percepção
de que o tratamento constitucional que lhe é conferido deixa evidente a questão de

1
TURIZO, Jorge M.; CABALLERO, Roberto P. Activismo judicial y su efecto difuminador en la división y
equilibrio de poderes. Justicia, Barranquilla, n. 27, p. 30-41, jun. 2015. p. 31.

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252 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

que a sua função excede aquela judiciária, e passa a ser realmente um instrumento de
organização do regime democrático.2
Como se verá nos tópicos que seguem, é irrefutável que a própria Constituição
e o Código Eleitoral conferiram à Justiça Eleitoral um locus fundamental e funções que
geralmente fogem ao escopo do Poder Judiciário, a exemplo de suas competências
normativa, administrativa ou consultiva; e também é certo que ela desempenha um
papel paralelo de conscientização dos eleitorais, notadamente por meio das Escolas
Judiciárias Eleitorais.
O reconhecimento da constitucionalidade dessa atuação diferenciada, porém,
não pode se transmutar em uma carta branca para uma atuação desmedida e livre de
controles.3 Ao contrário, é necessário reconhecer que, mais do que uma missão ou uma
atribuição constitucional conferida a constituinte originário, a Justiça Eleitoral vem se
colocando no cenário da política brasileira em detrimento dos – e em menosprezo aos –
demais atores políticos com espaço constitucional reconhecido, a exemplo de partidos
políticos, candidatos e dos próprios eleitores.4
Contudo, deve-se relembrar sempre que democracia é participação e controle,
condicionada por circunstâncias sociais.5 E se é certo que a mera participação sem
controle não é capaz de garantir as características do regime democrático, é ainda muito
mais certo que o simples controle de nada adianta sem os processos de participação.
Logo, tendo-se em mente que a democracia não pode ser reduzida a um mero
princípio constitucional,6 é necessário compreender todos os fatores reais que a con­
formam atualmente. E nisso tem papel fundamental o entendimento dos porquês da
atuação da Justiça Eleitoral atualmente e ao longo do tempo.

1.2 Justiça Eleitoral brasileira: razões da atual estruturação e exemplos


de inovação no ordenamento jurídico
A compreensão do atual papel de proeminência desempenhado pela Justiça
Eleitoral no direito brasileiro decorre não só do alargamento do espaço de atuação
(ou melhor: de ingerência) do Poder Judiciário, mas também das próprias razões que

2
COSTA, Tailaine Cristina. Justiça Eleitoral e sua competência normativa. Paraná Eleitoral, v. 2, p. 99-114, 2013.
p. 105.
3
Veja-se, nesse ponto, a importância da distinção feita pelo agora Ministro Luís Roberto Barroso, no sentido de
que judicialização e ativismo judicial são conceitos próximos, mas que, em razão de suas causas imediatas,
distinguem-se. Assim, a judicialização decorrente do constitucionalismo brasileiro, ao passo que o ativismo é
uma escolha consciente de interpretar o texto constitucional (BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo
judicial e legitimidade democrática. Anuario Iberoamericano de Justicia Constitucional, Madrid, n. 13, p. 17-32.
p. 21-22).
4
A título de exemplo, veja-se, respectivamente, a) a criação de regra de perda do mandato por infidelidade
partidária ou os avanços (pois qualquer discussão é um avanço nessa seara) acerca da possibilidade de
candidaturas avulsas; b) as manifestações de alguns ministros contra a possiblidade de certos candidatos
concorrerem eleitoralmente, mesmo a partir da invocação de regras eleitorais inexistentes; ou c) as inúmeras
tutelas ao voto e à formação da vontade eleitoral por meio de uma maior liberdade de propaganda político-
partidária, todas essas constatações da tutela paternalista realizada pela Justiça Eleitoral.
5
SALGADO, Eneida D. Tijolo por tijolo em um desenho (quase) lógico: vinte anos do projeto democrático brasileiro.
237 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba,
2005. p. 15.
6
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e política: uma relação difícil. Lua Nova, São Paulo, n. 61, p. 5-24, 2004. p. 23.

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WALDIR FRANCO FÉLIX JÚNIOR
JUSTIÇA ELEITORAL BRASILEIRA: HISTÓRICO, FUNÇÕES E POSSÍVEIS PROPOSTAS DO DIREITO COMPARADO PARA A REVITALIZAÇÃO...
253

são subjacentes à sua estruturação histórica, às interrupções e às suas retomadas dessa


justiça especializada. O estudo das atuais funções por ela desempenhadas, portanto, é
inteiramente dependente da compreensão de sua evolução cronológica e de como se
deu sua atuação nos diversos períodos constitucionais brasileiros, como se verá adiante.
Inicialmente, convém expor as razões que levaram à sua instauração. Para isso,
pode-se afirmar a existência de um primeiro momento, tal como se costuma classificar
a história geral do Brasil em um período pré-colonial, de um período semelhante, pré-
institucional, que corresponde ao interregno entre o descobrimento do Brasil até a sua
instalação em 1932.7
Nele, fizeram-se presentes as duas primeiras “leis eleitorais” brasileiras (as quais,
não sendo especificamente leis, assemelhavam-se ao que hoje são, mutatis mutandi,
instruções eleitorais, comumente editadas pelo TSE como resoluções das eleições), sendo
uma de 1822 e outra de 1824. Exemplificativamente, na primeira delas, restringia-se
o voto às classes sociais dos senhores de engenho e fábricas, que gozavam de melhor
posição na sociedade brasileira, e que – juridicamente – em muito diferiam do modelo
sufragista universal já presente em Portugal.8
Nessa época anterior a 1932, o responsável pela administração das eleições
era o Poder Legislativo,9 em um modelo de organização que notadamente carecia de
critérios objetivos e estritamente técnicos, mormente em virtude das distorções nefastas
que incidiam sobre o processo eleitoral (desde irregularidades em julgamentos até
o corporativismo ínsito ao espírito legislativo). Por tais razões, fazia-se necessária a
transferência do controle das eleições a um órgão que pudesse dispor delas com maior
independência e imparcialidade; e, na história institucional brasileira, essas características
sempre foram atribuídas à função jurisdicional, fosse ela representada pela própria justiça
ordinária, por cortes especializadas ou, ainda, pela corte constitucional.10
Ao fim e ao cabo, a ausência de um órgão organizado e imparcial na adminis­
tração e condução do processo eleitoral no período entre a proclamação da República
e o fim do período da política do Café com Leite (que se representava pela política de
governadores)11 foi um dos principais fatores que, conforme aponta Daniel Oliveira
Carvalho, tornou possível a retomada do poder pela via revolucionária, com a ascensão
de Vargas (derrotado nas urnas) sobre o seu adversário, o governista Júlio Prestes, que
procurava suceder a Washington Luís como mais um paulista no exercício do poder,12
demonstrando como ainda a tomada do poder se via menos constrangida por regras
ínsitas ao Estado de direito e que hoje são – ou ao menos se pretendem – inexoráveis.

7
OLIVEIRA, Daniel Carvalho. 80 anos de Justiça Eleitoral: perspectivas históricas e desafios democráticos futuros.
Paraná Eleitoral, v. 1, n. 1, p. 11-23. p. 12.
8
OLIVEIRA, Daniel Carvalho. 80 anos de Justiça Eleitoral: perspectivas históricas e desafios democráticos futuros.
Paraná Eleitoral, v. 1, n. 1, p. 11-23. p. 12.
9
Mais especificamente, a verificação eleitoral por meio do legislativo remonta ao período de tempo entre a
primeira Constituição brasileira, de 1824, em seu art. 21, até a Constituição republicana de 1891, que a previa no
art. 18 (GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 13. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017. p. 76).
10
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 13. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017. p. 75-76.
11
JORGE, Flávio Cheim; ABELHA, Marcelo Rodrigues; LIBERATO, Ludgero. Curso de direito eleitoral. Salvador:
JusPodivm, 2016. 197.
12
OLIVEIRA, Daniel Carvalho. 80 anos de Justiça Eleitoral: perspectivas históricas e desafios democráticos futuros.
Paraná Eleitoral, v. 1, n. 1, p. 11-23. p. 13.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
254 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Para além disso, não se podia realmente tratar da existência de pleitos justos
e democráticos nesse momento da história constitucional brasileira também pela
inegável presença do fenômeno do “coronelismo”, que representava o desmedido
poder manifestado por coronéis, isto é, grandes proprietários rurais que, em razão
dessa condição social-hierárquica, ocupavam-se de recrutar indivíduos para combater
as insur­reições e levantes que viessem a ocorrer, na arregimentação de um “curral”
eleitoral. Nessa sociedade ruralizada, sem acesso à informação e aos espaços de poder,
os coronéis se tornavam responsáveis pela definição de quais seriam os candidatos a
receber votos dos eleitores, os quais, moral ou mesmo fisicamente, eram coagidos quando
da efetivação de seus votos.13
Logo, sendo fruto inerente do momento histórico de sua criação, a inspiração
inegável da Justiça Eleitoral está nas bandeiras da crítica à oligarquia instalada na
Primeira República e da total desconfiança do modelo de processo eleitoral gerenciado
não só pelo coronelismo desse período,14 mas também pelo histórico de fraudes que
acompanhou a formação da disputa eleitoral brasileira.
Com o advento do Decreto nº 21.076/1932, tanto a esfera contenciosa, quanto
aquela da própria administração e organização das eleições passa para a competência da
Justiça Eleitoral, constituindo-se esse diploma normativo no primeiro Código Eleitoral
brasileiro, o que se verifica principalmente pela previsão explícita de questões como
alistamento, elegibilidade, apuração de votos e mesmos sistemas eleitorais.15
O modelo de governança eleitoral adotado já em 1932 demonstra duas
características nítidas: primeiramente, o estabelecimento de um rol de garantias não
comumente verificáveis em organismos de outros países; por segundo, o fato de que essa
decisão política consciente por esse modelo tem se refletido em todo texto constitucional
até o presente momento.16
Em 1934, enfim, inicia-se a trajetória de percalços da constitucionalização da Jus­
tiça Eleitoral, com a sua inserção como órgão do Poder Judiciário (art. 63, “d”) e dotada
de competências específicas no trato das eleições federais, estaduais e municipais.17
O reconhecimento constitucional de sua importância, todavia, não foi o suficiente para
resistir às vicissitudes antidemocráticas que marcaram a história do país.
Assim, veio a Constituição de 1937 e seu ideário de início das práticas populistas,
não só com a tentativa getuliana de manter as reformas trabalhistas implantadas pelo
regime constitucional anterior, sob pena de perder o apoio popular que legitimava –
ao menos formalmente – o governo,18 mas também com a extinção da Justiça Elei­toral –
bem como dos partidos políticos –, ante a inaptidão manifestada pela sua natureza
demo­crática para conviver com um texto constitucional de viés marcadamente

13
JORGE, Flávio Cheim; ABELHA, Marcelo Rodrigues; LIBERATO, Ludgero. Curso de direito eleitoral. Salvador:
JusPodivm, 2016. p. 197-198.
14
MARCHETTI, Vitor. Governança eleitoral: o modelo brasileiro de Justiça Eleitoral. DADOS – Revista de Ciências
Sociais, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, p. 865-893, 2008. p. 880.
15
COSTA, Tailaine Cristina. Justiça Eleitoral e sua competência normativa. Paraná Eleitoral, v. 2, p. 99-114, 2013.
p. 101.
16
BARRETO, Álvaro Augusto de Borba. A Justiça Eleitoral brasileira: modelo de governança eleitoral. Paraná
Eleitoral, v. 4, n. 2, p. 189-216, 2015. p. 200.
17
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 13. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017. p. 76.
18
SILVA, João Carlos Jarochinski. Análise histórica das Constituições brasileiras. Ponto e Vírgula, n. 10, p. 217-244,
2011. p. 229.

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JUSTIÇA ELEITORAL BRASILEIRA: HISTÓRICO, FUNÇÕES E POSSÍVEIS PROPOSTAS DO DIREITO COMPARADO PARA A REVITALIZAÇÃO...
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autoritário. Esse período indubitavelmente ditatorial somente fora suplantado – e com ele
reestabelecida a jurisdição eleitoral – com a edição da Lei Agamenon e, posteriormente,
com a promulgação da Constituição de 1946.
Posteriormente, na Constituição de 1967, e durante todo o regime militar, os
direitos políticos, e a democracia de forma geral, foram ofuscados pelo autoritarismo que
marcou as decisões tomadas pelos sucessivos chefes de Estado. Apesar de tudo isso, a
Justiça Eleitoral se manteve como instituição, ainda que com reduzidas funções.19 Embora
mantida, a Justiça Eleitoral atuava de forma meramente secundária e performática
durante o regime militar, haja vista as sucessivas alterações constitucionais e nas
disposições eleitorais levadas a cabo de forma ditatorial.20 Como bem aponta Daniel
Oliveira Carvalho, em minucioso estudo sobre os 80 anos da Justiça Eleitoral:

É forçoso concluir que a Justiça Eleitoral, durante a ditadura militar, teve o papel de admi­
nistrar as eleições, porém, tal função foi afetada pelo olhar severo e sorrateiro de uma
ditadura que tinha o poder de regulamentar e administrar os pontos principais, cabendo
ao Poder Judiciário a função jurisdicional e consultiva, já que a regulamentar encontrava-
se praticamente extinta e a administrativa era muito mitigada.21

Finalmente superado o regime ditatorial e antidemocrático que marcou duas


décadas da vida constitucional brasileira, surge forte a Constituição de 1988; e, nela, não
mais se permite um mundo jurídico apartado da política institucional, de modo que o
direito se politiza e a política é juridicizada, pois que as normas constitucionais passam
a representar ferramentas para solução de entraves de cunho político, concretizando-se
anseios dos cidadãos.22
E a Justiça Eleitoral, por sua vez, volta a ser protagonista no direito nacional,
ganhando reconhecimento constitucional e uma plêiade de competências que – é
necessário reconhecer – nenhum outro órgão do Judiciário conta.
Desde 1988, são quatro as funções que a Justiça Eleitoral possui diretamente de sua
base constitucional. Primeiramente, encontra-se a mais precípua: a jurisdicional. Nela se
concentram as atividades relativas à sua competência de julgar e apresentar resolução
aos embates judiciais que surgem durante o período eleitoral ou que dele decorram
(sendo exemplos maiores, segundo parte da doutrina, as questões envolvendo o registro
de candidatura, a propaganda eleitoral e os crimes eleitorais).23 Em contraposição à
sua função consultiva – como se verá na sequência – na jurisdicional se faz necessário
o respeito estrito ao princípio da demanda, porquanto seja a atuação dependente
da provocação das partes e dentro dos mesmos limites postos por elas como objeto

19
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 13. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017. p. 77.
20
OLIVEIRA, Daniel Carvalho. 80 anos de Justiça Eleitoral: perspectivas históricas e desafios democráticos futuros.
Paraná Eleitoral, v. 1, n. 1, p. 11-23. p. 14.
21
OLIVEIRA, Daniel Carvalho. 80 anos de Justiça Eleitoral: perspectivas históricas e desafios democráticos futuros.
Paraná Eleitoral, v. 1, n. 1, p. 11-23. p. 15.
22
CARVALHO, Alexandre Douglas Z. de. Montesquieu e a releitura da separação de poderes no Estado
contemporâneo: elementos para uma abordagem crítica. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, n. 42,
p. 1-19, abr./jun. 2015. p. 15.
23
OLIVEIRA, Daniel Carvalho. 80 anos de Justiça Eleitoral: perspectivas históricas e desafios democráticos futuros.
Paraná Eleitoral, v. 1, n. 1, p. 11-23. p. 16.

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256 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

de seus pedidos,24 tal como sói ocorrer com toda a sistemática processual, aplicada
subsidiariamente aos pleitos eleitorais.25
Em segundo lugar se encontra a função administrativa, que trata da preparação,
administração e organização das eleições; é nela que estão, por exemplo, as questões
relativas a alistamento, transferência de domicílio, cadastros eleitorais, atos preparatórios
à votação e, depois, a sua contabilização, e, ainda, a própria proclamação dos resultados
obtidos nos pleitos.26
Por terceiro, a função normativa, presente desde a primeira estruturação de
um Código Eleitoral,27 e que se liga à edição de atos normativos que visam à correta e
adequada execução das leis eleitorais, sobretudo manifestada pela criação de Resoluções
pelo TSE – as quais, embora não sejam leis, possuem inegavelmente força de lei –,28
em atenção à prerrogativa prevista no art. 1º, parágrafo único, e art. 23, IX, ambos do
Código Eleitoral, ou mesmo no art. 61 da Lei dos Partidos ou art. 105 da Lei Eleitoral.29
Em tese, voltam-se elas à consolidação da interpretação conferida pela Justiça Eleitoral
à dispersa legislação, garantindo-se – novamente, repita-se, “em tese” – maiores níveis
de segurança, certeza e transparência à interpretação jurídica.
Por derradeiro, mas não menos importante, a função consultiva, através da qual
tanto o TSE quanto os Tribunais Regionais Eleitorais se ocupam de formular respostas
às indagações eleitorais – desvinculadas do pleito – elaboradas pelo rol de legitimados
dos arts. 23, XII e 30, VIII do Código Eleitoral.30 Nas consultas eleitorais, diferentemente
do que ocorre no contencioso eleitoral (ressalvadas, por evidente, a ação direita de
inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade), dispensa-se a
apresentação de partes legítimas e de um litígio a ser resolvido, pois se trata tão somente
de apresentar uma resposta a um possível caso hipotético que poderia ser debatido pela
jurisdição eleitoral.31
Em que pese os resultados proferidos não vinculem a atuação posterior das cortes
– seja aquela que proferiu sua opinião ou mesmo outras que se sujeitem ao entendimento
daquela –, certo é que, na prática, as respostas frequentemente guiam a interpretação
em casos concretos.
Especificamente quanto a esta última função, a despeito de toda sua funda­men­
talidade aos processos eleitorais, é certo que, por vezes, a Justiça Eleitoral extrapola
de suas funções ao editar atos normativos que surpreendem aos atores do processo

24
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 13. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017. p. 81.
25
Essa mesma regra, aliás, demanda a presença das condições geralmente ínsitas ao processo civil, tais como:
interesse, possibilidade jurídica do pedido e legitimação; ou mesmo os denominados pressupostos processuais,
como a jurisdição, a capacidade de postular em juízo, a competência do magistrado e a citação válida (GOMES,
José Jairo. Direito eleitoral. 13. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017. p. 81).
26
OLIVEIRA, Daniel Carvalho. 80 anos de Justiça Eleitoral: perspectivas históricas e desafios democráticos futuros.
Paraná Eleitoral, v. 1, n. 1, p. 11-23. p. 16.
27
BARRETO, Álvaro Augusto de Borba. A Justiça Eleitoral brasileira: modelo de governança eleitoral. Paraná
Eleitoral, v. 4, n. 2, p. 189-216, 2015. p. 207.
28
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 13. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017. p. 83.
29
OLIVEIRA, Daniel Carvalho. 80 anos de Justiça Eleitoral: perspectivas históricas e desafios democráticos futuros.
Paraná Eleitoral, v. 1, n. 1, p. 11-23. p. 16.
30
OLIVEIRA, Daniel Carvalho. 80 anos de Justiça Eleitoral: perspectivas históricas e desafios democráticos futuros.
Paraná Eleitoral, v. 1, n. 1, p. 11-23. p. 16.
31
BARRETO, Álvaro Augusto de Borba. A Justiça Eleitoral brasileira: modelo de governança eleitoral. Paraná
Eleitoral, v. 4, n. 2, p. 189-216, 2015. p. 210.

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JUSTIÇA ELEITORAL BRASILEIRA: HISTÓRICO, FUNÇÕES E POSSÍVEIS PROPOSTAS DO DIREITO COMPARADO PARA A REVITALIZAÇÃO...
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eleitoral, criando modificações relevantes e imprevisíveis, muitas vezes sem a


necessária anualidade prevista no art. 16 da Constituição.32 A resolução, apesar de ser
um instrumento jurídico de pouca força, passou a desempenhar uma função essencial
no cenário político-eleitoral brasileiro, a partir das interpretações promovidas pelo
TSE quanto ao texto constitucional, muitas vezes alterando o texto constitucional e seu
significado por meio desse instrumento inadequado.33
Na prática, percebe-se que as resoluções editadas pela Justiça Eleitoral – e que
possuem efeitos erga omnes – muitas vezes proveem de consultas realizadas a despeito
de qualquer situação concreta,34 constituindo-se então em um perfeito exemplo concreto
de como ela se vale de um poder que não lhe é conferido pela Constituição, realizando
uma atividade normativa que edita normas com força de lei ordinária. Em muitos
casos, aliás, essas resoluções acabam gerando grandes efeitos, como ocorrido com a
nº 23.376/2012 (a propósito da arrecadação e dos gastos de partidos e candidatos, e sua
consequente prestação de contas, no pleito de 2012), em que foram afetados diretamente
direitos fundamentais.35
E, em respeito ao princípio democrático e à ordem constitucional, essa atuação
desvinculada dos preceitos constitucionais e com fortes traços ativistas deve ser
combatida, o que não costuma ser feito em sede doutrinária. Nesse sentido, por exemplo,
é a manifestação de autores que defendem que, no contexto do fortalecimento da Justiça
Eleitoral, é natural a convivência com níveis altos e recrudescentes de ativismo judicial;
isso porque o ativismo nessa seara possui uma aptidão transformadora da realidade
sociopolítica, pela garantia de direitos aos indivíduos e pela defesa e manutenção do
regime democrático.36
Em uma exposição sintética, a judicialização e o ativismo se caracterizam pela
análise, pelo Judiciário, de questões de grande repercussão que geralmente competem
ao Legislativo e ao Executivo, o que acaba gerando uma transferência de poderes e
uma consequente mudança na argumentação e na linguagem com as quais participará
a sociedade.37
Especificamente quanto a suas características, um dos pressupostos do ativismo
judicial é a realização, pelo juiz, da função legislativa de criação de normas,38 de modo
que é possível asseverar que juízes e tribunais só atuam de forma legítima quando
fun­damentam suas decisões com base no texto constitucional,39 que certamente não

32
COSTA, Tailaine Cristina. Justiça Eleitoral e sua competência normativa. Paraná Eleitoral, v. 2, p. 99-114, 2013.
p. 107.
33
MARCHETTI, Vitor. Governança eleitoral: o modelo brasileiro de Justiça Eleitoral. DADOS – Revista de Ciências
Sociais, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, p. 865-893, 2008. p. 889.
34
COSTA, Tailaine Cristina. Justiça Eleitoral e sua competência normativa. Paraná Eleitoral, v. 2, p. 99-114, 2013. 104.
35
COSTA, Tailaine Cristina. Justiça Eleitoral e sua competência normativa. Paraná Eleitoral, v. 2, p. 99-114, 2013.
p. 104.
36
OLIVEIRA, Daniel Carvalho. 80 anos de Justiça Eleitoral: perspectivas históricas e desafios democráticos
futuros. Paraná Eleitoral, v. 1, n. 1, p. 11-23. p. 16-17. Explicitamente, Oliveira aduz que “faz-se imperativo
compreender que o fenômeno da judicialização da política é decorrente do necessário e importante processo de
amadurecimento do regime democrático e do exercício da cidadania na sociedade como um todo”.
37
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Anuario Iberoamericano de
Justicia Constitucional, Madrid, n. 13, p. 17-32. p. 19.
38
TURIZO, Jorge M.; CABALLERO, Roberto P. Activismo judicial y su efecto difuminador en la división y
equilibrio de poderes. Justicia, Barranquilla, n. 27, p. 30-41, jun. 2015. p. 33.
39
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Anuario Iberoamericano de
Justicia Constitucional, Madrid, n. 13, p. 17-32. p. 26.

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258 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

lhes confere tal prerrogativa. Assim, a grande preocupação é com a influência sofrida
pelo Judiciário de outros ramos do poder, o que poderia conduzir a decisões cujos
fundamentos sejam tendenciosos e argumentativamente débeis.40
Posto de forma clara, Tailaine Costa aponta:

Essa atuação protagonista vem acompanhada – ou melhor, é decorrente – do processo


de ativismo judicial. Utilizando-se do poder normativo, o qual não tem na Constituição
sua atribuição, o Tribunal Superior Eleitoral, por meio de atos normativos, limita direitos
fundamentais e determina as regras do processo eleitoral às vésperas do início da campanha
eleitoral.41

Dessa forma, resta impossível não reconhecer o TSE como uma corte altamente
ativista, haja vista as recentes posições adotadas em julgamentos e, em especial, em
manifestações realizadas em ambientes outros que não as suas sessões. E, certamente,
esse ativismo desenfreado é responsável por boa parte do atual descrédito de que goza
o Poder Judiciário brasileiro e que, de algum modo, já passa a afetar com uma força
recrudescente a jurisdição eleitoral.
Em vista dessas razões, pretende-se no tópico sucessivo expor – sem nenhuma
pretensão de completude ou de proposição definitiva – que: a) o modelo de governança
eleitoral adotado no Brasil não é uma imposição lógica, mas sim decorrente de uma
resposta específica a alguns questionamentos básicos que todo organismo eleitoral deve
responder; b) os modelos internacionais, sobretudo os latino-americanos, têm muito a
oferecer à evolução das instituições que cuidam do processo eleitoral brasileiro.

1.3 Organismos eleitorais e propostas para uma atuação judicial contida


Como visto no tópico anterior, o Brasil possui uma conformação sui generis de seu
organismo eleitoral, concentrando nele funções que estão, na maior parte dos países,
dispersas em instituições diferentes ou com uma formatação mais democrática.42 Nesse
sentido tem se manifestado parcela da doutrina, aqui retratada a partir de minucioso
texto de Vitor Marchetti, que, valendo-se da doutrina de Mozzaffar e Schedler, dispõe
sobre a governança eleitoral em uma nítida divisão em três vertentes complementares:
rule making, rule application e rule adjudication.
Para Marchetti, as três funções mencionadas se distinguem na medida em que, na
primeira, tem-se a formatação do processo eleitoral (ou, em outros termos, as definições
do jogo), dispondo-se sobre questões tais como a divisão das eleições e dos distritos, as
suas datas ou mesmo as fórmulas eleitorais de cômputo de votos e acesso aos cargos;
ainda, estabelecem-se desde já questões como os responsáveis pela administração das

40
TURIZO, Jorge M.; CABALLERO, Roberto P. Activismo judicial y su efecto difuminador en la división y
equilibrio de poderes. Justicia, Barranquilla, n. 27, p. 30-41, jun. 2015. p. 38.
41
COSTA, Tailaine Cristina. Justiça Eleitoral e sua competência normativa. Paraná Eleitoral, v. 2, p. 99-114, 2013.
p. 110.
42
Em específico, a concentração de todas as funções relacionadas às eleições – organização e contencioso – com
a adoção da regra de interseção somente é utilizada no Brasil (MARCHETTI, Vitor. Governança eleitoral: o
modelo brasileiro de Justiça Eleitoral. DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, p. 865-893,
2008. p. 878).

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JUSTIÇA ELEITORAL BRASILEIRA: HISTÓRICO, FUNÇÕES E POSSÍVEIS PROPOSTAS DO DIREITO COMPARADO PARA A REVITALIZAÇÃO...
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eleições e até regras de inelegibilidade. Na segunda, há aquilo que concerne à aplicação


do jogo eleitoral e de seus procedimentos, revelando-se desde a distribuição de urnas e
o registro de partidos e candidatos até a fixação de disposições sobre a neutralidade e
transparência no pleito. Na terceira e derradeira vertente, por sua vez, tem-se a resolução e
a “administração” (em um sentido mais largo) dos conflitos e divergências no transcorrer
do processo eleitoral, postas ao encargo do contencioso eleitoral, bem como a resolução
final dos resultados obtidos nos processos de votação.43
A exposição de Marchetti, porém, não possui base somente nos mencionados
autores. Isso porque o seu pressuposto e, sobretudo, a sua base estatística, deriva
de minuciosa análise empreendida por López-Pintor e pelo International Institute for
Democracy and Electoral Assistance – Idea, que classificaram os organismos eleitorais (OEs),
em expla­nação de Marchetti, a partir de dois aspectos: a) a sua posição institucional, isto
é, a sua relação direta com os poderes estatais constituídos; b) o vínculo institucional
que sujeita a sua estrutura e seus membros.44
Sendo a natureza da relação com outras instituições estatais, a posição institucional
de um organismo eleitoral pode ser dividida em quatro manifestações diversas: governa­
mental, independente, duplamente independente ou, ainda, misto. No primeiro caso,
representado por países tais como a Alemanha, a Áustria, os Estados Unidos, a Itália,
o Reino Unido, a Suécia e a Suíça, o organismo é atrelado ao Poder Executivo de seu
país, em geral pela via do ministério do interior ou da justiça. No segundo caso, como
o próprio nome sugere, não há nenhuma vinculação com tal poder estatal, sendo
exemplos a Austrália, o Canadá, Israel e quase todos os países latino-americanos. No
terceiro, há dois organismos distintos e complementares, sendo que normalmente
um se responsabiliza pela rule application e outro pela rule adjudication, mas ambos
são desvinculados do Executivo; são exemplos países como Peru, Jamaica, Romênia e
Moçambique. Por derradeiro, mistos são os casos em que, havendo dois organismos
eleitorais simultâneos, um deles é independente e outro vinculado ao Poder Executivo;
pertencem a esse último grupo a Espanha, a França, a Holanda, a Argentina, Portugal
e o Japão.45
Por sua vez, o vínculo institucional se refere ao meio de acesso ao posto de
membro de determinado organismo eleitoral (OE), podendo ser de carreira, partidário,
especializado ou mesmo combinado. No primeiro caso, o membro terá de pertencer a
uma carreira específica dentro do Poder Executivo, ou mesmo estar em uma posição
específica, como a de ministro da Justiça; não pertencendo a este poder estatal, ele se
encaixará em uma das demais formas. Por segundo, que é o modelo adotado em Israel,
na Colômbia e na Eslováquia, os membros do OE provêm de escolhas partidárias, sob
uma lógica que procura recriar no próprio organismo uma disputa político-partidária, na
crença de que esse confronto de posições venha a garantir um tratamento isonômico. No
terceiro caso, o membro escolhido deverá, ao contrário, ser privado de qualquer vínculo
partidário, a fim de cumprir com o critério de especialização; nesse perfil, o escolhido

43
MARCHETTI, Vitor. Governança eleitoral: o modelo brasileiro de Justiça Eleitoral. DADOS – Revista de Ciências
Sociais, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, p. 865-893, 2008. p. 867.
44
MARCHETTI, Vitor. Governança eleitoral: o modelo brasileiro de Justiça Eleitoral. DADOS – Revista de Ciências
Sociais, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, p. 865-893, 2008. p. 870.
45
MARCHETTI, Vitor. Governança eleitoral: o modelo brasileiro de Justiça Eleitoral. DADOS – Revista de Ciências
Sociais, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, p. 865-893, 2008. p. 870-871.

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260 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

será dotado de uma suposta neutralidade exatamente por poder exercer seu mister a
despeito de quaisquer influências partidárias; esse modelo, adotado na Austrália, no
Canadá, na Índia e na Coreia do Sul, não implica que o membro não tenha vínculos
com instituições da sociedade civil ou mesmo com universidades, mas só que não seja
ligado a nenhum partido. Por fim, no quarto modelo (denominado misto), há membros
provenientes de escolhas partidárias tanto quanto membros independentes, sendo
adotado, por exemplo, na Bulgária, no Equador, na Rússia e no Uruguai.46
A partir dos dois critérios expostos, veja-se como o panorama da América Latina
é extremamente variado. Primeiramente, destaque-se que somente a Argentina adota o
modelo misto, enquanto os demais países são independentes e nenhum deles optou pelo
modelo governamental. Em verdade, a maior parte deles optou também por escolher
membros com um perfil especializado, sendo exceções somente a Colômbia e Honduras,
que adotam o partidário, e Uruguai, Equador e El Salvador, que adota o combinado.47
No modelo independente e partidário adotado na Colômbia e em Honduras, os membros
do OE são escolhidos levando-se em consideração o tamanho das bancadas parlamentares
de cada partido político.48
O modelo de dupla independência, com um OE que se ocupa das funções de
rule application, e outro que trata da rule adjudication, é seguido por três países latino-
americanos: Chile, Peru e México.49 Em especial, merece destaque o modelo mexicano,
haja vista ser, provavelmente, o país cujo sistema eleitoral mais se assemelha ao brasileiro,
seja positivamente ou negativamente.
Nesse sentido, o sistema mexicano é um dos mais complexos e interessantes que
existem, pois há uma convivência de uma corte eleitoral com um órgão de administração
das eleições. A corte representa uma divisão especializada do Poder Judiciário, com sete
membros indicados pela Suprema Corte e selecionados por meio do Senado Federal. Já a
administração das eleições compete ao Instituto Federal Eleitoral (IFE), composto de nove
membros, todos eleitos pela Câmara dos Deputados, mas sem vínculos partidários; esses
membros, que se tornam responsáveis pelos procedimentos eleitorais, são acompanhados
de outros, partidários e com assento no IFE, mas sem direito a voto.50
Alguns modelos de justiça eleitoral, a exemplo do mexicano, demonstram como
é possível conviver com a defesa de uma democracia material pela intervenção forte e
pelo ativismo da jurisdição eleitoral.51
No Peru, da mesma sorte que no México, onde há também um sistema muito
específico, a divisão da organização eleitoral se dá entre o Juizado Nacional de Eleições
(JNE), responsável não só pelo contencioso e pela resposta a consultas acerca da

46
MARCHETTI, Vitor. Governança eleitoral: o modelo brasileiro de Justiça Eleitoral. DADOS – Revista de Ciências
Sociais, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, p. 865-893, 2008. p. 871-872.
47
MARCHETTI, Vitor. Governança eleitoral: o modelo brasileiro de Justiça Eleitoral. DADOS – Revista de Ciências
Sociais, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, p. 865-893, 2008. p. 874.
48
MARCHETTI, Vitor. Governança eleitoral: o modelo brasileiro de Justiça Eleitoral. DADOS – Revista de Ciências
Sociais, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, p. 865-893, 2008. p. 875.
49
MARCHETTI, Vitor. Governança eleitoral: o modelo brasileiro de Justiça Eleitoral. DADOS – Revista de Ciências
Sociais, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, p. 865-893, 2008. p. 876.
50
MARCHETTI, Vitor. Governança eleitoral: o modelo brasileiro de Justiça Eleitoral. DADOS – Revista de Ciências
Sociais, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, p. 865-893, 2008. p. 876.
51
EZQUIAGA GANUZAS, Francisco Javier. Justicia, justicia electoral y democracia. Vniversitas, Bogotá, n. 112,
p. 9-33, jul./dic. 2006. p. 26.

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WALDIR FRANCO FÉLIX JÚNIOR
JUSTIÇA ELEITORAL BRASILEIRA: HISTÓRICO, FUNÇÕES E POSSÍVEIS PROPOSTAS DO DIREITO COMPARADO PARA A REVITALIZAÇÃO...
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legislação, mas dotado também de certa atividade legislativa, e o Escritório Nacional


de Processo Eleitoral (ENPE), que se encarrega da organização e da execução de todo
o processo eleitoral. De sua parte, o JNE é formado por cinco membros, cada um deles
eleito por determinada instituição (Corte Suprema, Ministério Público, órgão de classe da
advocacia, faculdades públicas e faculdades privadas), os quais deverão ser escolhidos
segundo o que se denomina “regra de interseção”, ou seja, dentro dos próprios quadros
da instituição que o elege; uma vez eleito, seu mandato será de quatro anos.52
Também no Chile há uma separação entre as funções de contencioso eleitoral e
administração e execução das eleições. Esta cabe ao Serviço Eleitoral, que, apesar de
possuir um diretor escolhido pelo presidente da República, é um órgão independente.
Aquele, por sua vez, é o Tribunal Qualificador Eleitoral, composto por cinco membros,
sendo três oriundos da Corte Suprema (segundo a regra da interseção), um selecionado
de ex-presidentes da Câmara ou do Senado, e outro, derradeiro, entre os advogados
do país.53
Todos esses modelos, porém, fornecem meras aproximações parciais à estruturação
da governança eleitoral brasileira. Isso porque o Brasil é um caso peculiar e inigualável
de combinação de características diversas em um organismo eleitoral, estando presentes,
simultaneamente, a concentração das funções de rule application e rule adjudication em um
só OE, uma regra de interseção relevante e uma completa exclusão do Poder Legislativo
da indicação e da escolha dos membros. E esse estranho amálgama, por sua vez, leva a
uma combinação altamente prejudicial e incentivadora da judicialização da competição
político-partidária.54
Além disso, o modelo de governança eleitoral brasileiro é denominado
especializado, haja vista a formação puramente técnica dos membros das cortes
eleitorais – sejam eles juízes ou advogados –, e não provenientes meramente de escolhas
partidárias.55
Apesar de ser a judicialização da vida uma consequência do descrédito da de­
mo­cracia, certamente o recrudescimento dos fins e do papel do Judiciário contribui
direta­mente para o rompimento do sistema representativo.56 Por isso, é cada vez mais
neces­sário reconhecer que a legitimidade democrática não se enfraquece se a atuação
dos membros do Judiciário for pautada única e exclusivamente pela Constituição.57
É possível, então, afirmar como minimamente razoável a escolha feita por modelo
de organismo eleitoral como o adotado no Brasil? Ou, ainda, é necessário pensar em
uma forma de reestruturá-lo?
Ao fim e ao cabo, um organismo eleitoral será bom se cumprir com determinada
finalidade, isto é, utilizando-se de um nível de recursos razoável e proporcional à

52
MARCHETTI, Vitor. Governança eleitoral: o modelo brasileiro de Justiça Eleitoral. DADOS – Revista de Ciências
Sociais, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, p. 865-893, 2008. p. 878.
53
MARCHETTI, Vitor. Governança eleitoral: o modelo brasileiro de Justiça Eleitoral. DADOS – Revista de Ciências
Sociais, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, p. 865-893, 2008. p. 877.
54
MARCHETTI, Vitor. Governança eleitoral: o modelo brasileiro de Justiça Eleitoral. DADOS – Revista de Ciências
Sociais, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, p. 865-893, 2008. p. 880.
55
BARRETO, Álvaro Augusto de Borba. A Justiça Eleitoral brasileira: modelo de governança eleitoral. Paraná
Eleitoral, v. 4, n. 2, p. 189-216, 2015. p. 204.
56
VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista Direito GV, v. 4, n. 2, p. 441-464, jul./dez. 2008. p. 443.
57
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Anuario Iberoamericano de
Justicia Constitucional, Madrid, n. 13, p. 17-32. p. 30.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
262 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

riqueza nacional, possa o OE proporcionar eleições livres e justas e, judicialmente, possa


apresentar decisões acatadas indiscutivelmente pelos competidores políticos e que, com
isso, garantam a sua força institucional.58
Certamente, as decisões da Justiça Eleitoral gozam de ampla aceitação na siste­
mática processual eleitoral, em sua maioria. As frequentes manifestações em temas
sensíveis e que constituem as pautas mais notórias do Tribunal Superior Eleitoral,
porém, revelam um descompasso entre o exercício da função jurisdicional e de outras
que, em outro modelo de organismo eleitoral, provavelmente restariam ao encargo de
outra entidade. Nesse sentido, por exemplo, vale mencionar as diversas manifestações
de variados ministros do TSE a respeito de posicionamentos que serão posteriormente
adotados em julgados pautados, ou mesmo quanto a temas sensíveis que demandam a
atuação administrativa daquela corte superior.
Uma possível solução para esses imbróglios, a partir dos ensinamentos obtidos com
os demais organismos eleitorais, é por um desmembramento da função administrativa e
da função normativa da Justiça Eleitoral para um órgão independente, o que demandaria,
por óbvio, profundas mudanças no sistema constitucional e infraconstitucional brasileiro.

1.4 Conclusões
Tal como ocorrera em 1983 na Espanha, com o movimento dos “Juízes para a
democracia” (Jueces para la democracia), a América Latina vive atualmente um período
de reflexão acerca do papel desempenhado pelos juízes, principalmente, mas também
pela Justiça Eleitoral nos processos e transições democráticos, sob duas vertentes:
primeiramente, pela impossibilidade de se reconhecer um sistema como democrático
sem que nele se faça presente uma justiça verdadeiramente democrática; segundo, pelo
reconhecimento de que o Judiciário – e os juízes, em especial – são capazes de assumir
uma função de garantia de uma sociedade democrática.59
Essa opção por um modelo de forte atuação judicial, contudo, choca-se com opções
constituintes por uma sociedade mais democrática e que deveria ser capaz de tomar
um leque maior de escolhas pela via legislativa ordinária. Por isso, deve-se reconhecer,
tal como o fazia o atual Ministro Luís Roberto Barroso, que, em que pese sempre seja
facultado ao Judiciário atuar, a sua escolha criteriosa pela autocontenção, ou seja, pelo
não exercício de seu poder, é absolutamente louvável.60 Isso porque quando um juiz
interfere em uma esfera de atuação de outro poder, percebe-se uma ingerência que torna
turvos os limites que separam as funções estatais, provocando-se um efeito difuminador
(ou desvanecedor).61 E nada é mais prejudicial que a ruptura do sistema democrático
pelas suas próprias estruturas, por seus próprios poderes constituídos.

58
SANTOLAYA, Pablo. A administração eleitoral espanhola. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional,
Belo Horizonte, ano 12, n. 48, p. 41-64, abr./jun. 2012. p. 42.
59
EZQUIAGA GANUZAS, Francisco Javier. Justicia, justicia electoral y democracia. Vniversitas, Bogotá, n. 112,
p. 9-33, jul./dic. 2006. p. 11.
60
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Anuario Iberoamericano de
Justicia Constitucional, Madrid, n. 13, p. 17-32. p. 30.
61
TURIZO, Jorge M.; CABALLERO, Roberto P. Activismo judicial y su efecto difuminador en la división y
equilibrio de poderes. Justicia, Barranquilla, n. 27, p. 30-41, jun. 2015. p. 34.

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WALDIR FRANCO FÉLIX JÚNIOR
JUSTIÇA ELEITORAL BRASILEIRA: HISTÓRICO, FUNÇÕES E POSSÍVEIS PROPOSTAS DO DIREITO COMPARADO PARA A REVITALIZAÇÃO...
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O que se pretende, portanto, é afastar completamente a Justiça Eleitoral e o


Tribunal Superior Eleitoral, como sua representação máxima, do uso discricionário e
desregrado de suas funções e prerrogativas. Para tanto, faz-se necessária a completa
compreensão dos porquês da formatação histórica que levou às suas presentes funções,
tal como se pretendeu expor nesta breve exposição.

Referências
BARRETO, Álvaro Augusto de Borba. A Justiça Eleitoral brasileira: modelo de governança eleitoral. Paraná
Eleitoral, v. 4, n. 2, p. 189-216, 2015.
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Anuario Iberoamericano
de Justicia Constitucional, Madrid, n. 13, p. 17-32.
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e política: uma relação difícil. Lua Nova, São Paulo, n. 61, p. 5-24, 2004.
CARVALHO, Alexandre Douglas Z. de. Montesquieu e a releitura da separação de poderes no Estado
contemporâneo: elementos para uma abordagem crítica. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador,
n. 42, p. 1-19, abr./jun. 2015.
COSTA, Tailaine Cristina. Justiça Eleitoral e sua competência normativa. Paraná Eleitoral, v. 2, p. 99-114, 2013.
EZQUIAGA GANUZAS, Francisco Javier. Justicia, justicia electoral y democracia. Vniversitas, Bogotá, n. 112,
p. 9-33, jul./dic. 2006.
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 13. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017.
JORGE, Flávio Cheim; ABELHA, Marcelo Rodrigues; LIBERATO, Ludgero. Curso de direito eleitoral. Salvador:
JusPodivm, 2016.
MARCHETTI, Vitor. Governança eleitoral: o modelo brasileiro de Justiça Eleitoral. DADOS – Revista de Ciências
Sociais, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, p. 865-893, 2008.
OLIVEIRA, Daniel Carvalho. 80 anos de Justiça Eleitoral: perspectivas históricas e desafios democráticos
futuros. Paraná Eleitoral, v. 1, n. 1, p. 11-23.
SALGADO, Eneida D. Tijolo por tijolo em um desenho (quase) lógico: vinte anos do projeto democrático brasileiro.
237 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná,
Curitiba, 2005.
SANTOLAYA, Pablo. A administração eleitoral espanhola. A&C – Revista de Direito Administrativo &
Constitucional, Belo Horizonte, ano 12, n. 48, p. 41-64, abr./jun. 2012.
SILVA, João Carlos Jarochinski. Análise histórica das Constituições brasileiras. Ponto e Vírgula, n. 10, p. 217-
244, 2011.
TURIZO, Jorge M.; CABALLERO, Roberto P. Activismo judicial y su efecto difuminador en la división y
equilibrio de poderes. Justicia, Barranquilla, n. 27, p. 30-41, jun. 2015.
VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista Direito GV, v. 4, n. 2, p. 441-464, jul./dez. 2008.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

FÉLIX JÚNIOR, Waldir Franco. Justiça Eleitoral brasileira: histórico, funções e possíveis propostas do
direito comparado para a revitalização do modelo de organismo eleitoral. In: FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz
Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura (Coord.); PECCININ, Luiz Eduardo (Org.). Direito
Constitucional Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 251-263. (Tratado de Direito Eleitoral, v. 1.)
ISBN 978-85-450-0496-7.

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PÁGINA EM BRANCO

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CAPÍTULO 2

NORMATIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES: A JUSTIÇA


ELEITORAL DETÉM FUNÇÕES LEGISLATIVAS?

ELAINE HARZHEIM MACEDO

2.1 Introdução
O presente trabalho parte de uma indagação objetiva e até certo ponto simples,
mas nem por isso deixa de revelar uma profunda inconsistência do nosso sistema de
divisão de poderes e, consequentemente, da distribuição de funções especialmente
quando se está a falar do processo eleitoral: a Justiça Eleitoral detém funções legislativas?
Não é de hoje a preocupação nutrida pelo tema,1 cuja importância só fez recru­
descer, porquanto os tempos difíceis que a democracia brasileira vivencia cada vez mais
põem em cheque as instituições e os poderes de Estado, com subsequentes escândalos de
corrupção, instauração de processos rumorosos e que se tornam objeto da grande mídia
nacional e estrangeira, como o “Mensalão”, “Lava Jato” e outros tantos; o processo de
impeachment da primeira presidente mulher eleita no país; processos criminais e prisão ou
ameaça de prisão daqueles que até então estavam na condução do país nos mais elevados
cargos republicanos; o uso e por vezes abuso da garantia constitucional da imunidade
parlamentar, com possível desvirtuamento de sua maior finalidade que é a tutela da
república e da democracia, não comportando favorecimentos pessoais; o frequente risco
a que os direitos fundamentais políticos estão sujeitos por excessos dos que detêm o
poder público, são apenas alguns dos inúmeros exemplos de fatos e ocorrências sociais,
políticas e culturais que alimentam a evolução do conflito político-eleitoral.
Mas por que a relevância do tema exposto neste estudo e, em certa medida,
seu reenfrentamento? Sem abdicar das respostas pretéritas – aferir a legitimidade do
poder outorgado bem como as escolhas de tal outorga e ser ou não o Poder Legislativo

1
Nesse diapasão, produção conjunta com o então jovem talento, hoje advogado renomado, Rafael Morgental
Soares, sob o título A criação do direito pela Justiça Eleitoral: um estudo sobre o seu poder normativo (MACEDO;
FREITAS, 2015).

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
266 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

o único senhor das normas eleitorais (MACEDO; SOARES, 2015, p. 47-48) – agrega-se
o debate, cada vez mais contemporâneo, da crescente intervenção judicial nos conflitos
eleitorais, ganhando novos espaços inclusive fora do período eleitoral e o novo modelo
de processo, produzindo igualmente um novo modelo de jurisdição, instituído pelo
Código de Processo Civil de 2015.
Explica-se. Tradicionalmente, a sazonalidade das atividades da Justiça Eleitoral
considerando a periodicidade das eleições, que há cerca de trinta anos vêm acontecendo
bianualmente com regularidade, dirigia o foco das atenções para o direito eleitoral
exclusivamente no período eleitoral stricto sensu.2 Não é mais assim. Seja pelo turbilhão
de eventos políticos, eleitorais ou com reflexos sobre as eleições, pelas mudanças na
legislação ampliando a atividade eleitoral dos partidos e seus pré-candidatos antes
mesmo das convenções, regulamentando a chamada pré-campanha (Lei nº 13.165/2015,
que introduziu o art. 36-A na Lei nº 9.504/1997), pela cada vez mais frequente criação de
novos partidos políticos e eventual migração de mandatários de cargos eletivos, pela
constante judicialização da política, a exemplo do recente episódio da provocação de
candidaturas avulsas, que levou ao STF reconhecer, em sede de recurso extraordinário,
a repercussão geral na questão constitucional, embora ainda não tenha ocorrido o
julgamento do mérito,3 o fato é que a intervenção do Tribunal Superior Eleitoral – e não
só ele – no âmbito regulamentador ou normativo das eleições tende e de fato aumenta
frente a este cenário tumultuado a exemplo do que ocorreu no apagar das luzes do
ano de 2017, quando o TSE aprovou nada mais que 10 (dez) resoluções tratando das
eleições de 2018,4 quando, ao fim e ao cabo, apenas duas leis no curso de 2017 foram
aprovadas com reflexos para as eleições gerais de 2018 (leis nºs 13.487 e 13.488) além de
uma emenda constitucional (EC nº 97), da qual alguns de seus dispositivos sequer serão
por ora aplicados, porquanto prevista sua incidência para eleições futuras.
Só por tais motivos o pensar e repensar o tema representa questão de ordem
para os estudiosos do direito eleitoral, na medida em que é nesta seara que os direitos
fundamentais políticos e a própria democracia serão discutidos e tutelados, sempre
presente a significativa mobilidade do poder regulador que envolve as eleições, com
reflexos diretos na atividade jurisdicional, que tanto se dá na seara legislativa com
reformas eleitorais como nas resoluções expedidas pelo tribunal eleitoral, afirmando-se
subsequentes novas orientações ainda que por vezes para velhos problemas. No Brasil
é possível afirmar que cada eleição passa a se revestir de uma forma jurídica senão
distinta da anterior, pelo menos com nuanças diferentes. Ainda que haja fatos novos – a
exemplo, mais recentemente, a utilização das redes sociais nas campanhas preliminares e

2
Período entre as convenções partidárias, registro de candidaturas, campanha eleitoral e realização do pleito, em
apertada síntese.
3
O Plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu a aplicação de repercussão geral na discussão sobre a
possibilidade de candidatos sem filiação partidária participarem de eleições (TEIXEIRA, 2017).
4
“O Plenário do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aprovou, na sessão extraordinária administrativa desta
segunda-feira (18) [leia-se, dezembro de 2017], dez resoluções sobre as regras das Eleições Gerais de 2018.
Os temas das resoluções aprovadas são os seguintes: calendário eleitoral das Eleições de 2018; atos preparatórios
para a eleição; auditoria e fiscalização para as eleições; cronograma operacional do cadastro eleitoral para as
eleições; pesquisas eleitorais; escolha e registro de candidatos; propaganda eleitoral, uso e geração do horário
gratuito e condutas ilícitas em campanha eleitoral; representações, reclamações e pedidos de direito de resposta;
arrecadação e gastos de recursos por partidos políticos e candidatos e prestação de contas; e modelos de lacres
de segurança para urnas e envelopes” (TSE..., 2017).

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ELAINE HARZHEIM MACEDO
NORMATIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES: A JUSTIÇA ELEITORAL DETÉM FUNÇÕES LEGISLATIVAS?
267

definitivas – a exigir também novos enfrentamentos, a onda regulamentadora se espraia


às vezes até de forma devassadora.
Se, por um lado, a motivação desse processo regulamentador e/ou normativo é
oferecer um mínimo de segurança jurídica, de outro, produz indiscutivelmente con­
clusões interpretativas por força da função hermenêutica ínsita à essência do direito
como ciência social aplicada, nem sempre coincidentes entre si, realimentando o debate,
o conflito, e a irrenunciável intervenção judicial frente aos casos concretos.
Por outro lado, o próprio modelo de jurisdição e a função do Poder Judiciário têm
sido, nos últimos anos, objeto de profunda discussão, resultando, mais precisamente no
caso pátrio, na edição de um novo Código de Processo Civil, a Lei nº 13.105/2015, que ao
contrário do seu antecessor, o Código de 1973, longe está de ser um estatuto voltado a
regulamentar o processo civil subjetivo individual, ganhando proporções outras não só
ao garantir os métodos integrativos de solução consensual de conflitos – tema de menor
repercussão no caso do conflito eleitoral – como norma fundamental do processo, mas
também ao instituir um modelo de jurisdição que se aproveita, para dizer o mínimo,
da função normativa ao efeito de atender ao objetivo constitucional de pacificação
social. Seja pelo procedimento do incidente de resolução de demandas repetitivas ou
do incidente de assunção de competência, agregando as vias constitucionais como o
controle concentrado da constitucionalidade, súmula vinculante ou repercussão geral
do recurso extraordinário, seja pela técnica de julgamento dos recursos extraordinário e
especial repetitivos, estabelece o novo estatuto um sistema cujos pronunciamentos não
são mera composições de conflitos, mas essencialmente configuram orientações com
cunho normativo a serem observadas, de forma vinculante, pelos juízos inferiores tanto
para os processos em andamento como para os futuros, isto é, com eficácia erga omnes
e atemporal, qualificando-se por uma feição coletiva e normativa.
Também no conflito eleitoral serve-se o sistema de um processo que mais se
aproxima do coletivo, pois ainda que possam ser identificadas partes específicas no litígio
instaurado, seu resultado implacavelmente se dará sobre toda a sociedade, porque trata,
ao fim e ao cabo, da representação política e do resultado obtido nas urnas.
Em apertada síntese, vive-se, no cenário brasileiro, um novo modelo de Poder
Judiciário e de jurisdição, ao qual a Justiça Eleitoral não só não está imune,5 como ainda
pode até ser citada como precursora desse novo papel, a exemplo de suas instruções e/
ou resoluções, que também estabelecem orientações de eficácia erga omnes e, enquanto
vigentes, atemporais.

2.2 As tradicionais e as nem tão tradicionais funções da Justiça Eleitoral


Ainda que nada de novo valesse a pena aqui referir, apenas para manter a ordem
lógica do pensamento e da exposição do texto, não custa lembrar que a Justiça Eleitoral,
quando criada, nos idos de 1932, não fora pensada para atuar como um órgão julgador,
embora não se tratasse de hipótese descartada. Cediço que o grande objetivo estava na
administração das eleições, evitando-se a institucionalização das fraudes e corrupções
eleitorais, que tanto macularam os pleitos das primeiras décadas da república.

5
Lembrando o disposto no art. 15 do CPC/2015: “na ausência de normas que regulem processos eleitorais,
trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente”.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
268 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Suas funções, em princípio restritas à administração e controle do processo


eleitoral, voltando-se às candidaturas, aos eleitores, à captação de votos e à apuração
do resultado (processo esse que tradicionalmente se encerrava com a diplomação),
anteviam uma (tênue) atuação no campo jurisdicional. Entre os princípios fundamentais,
referendados pela Subcomissão Legislativa em sua exposição do texto produzido e que
daria ensejo ao primeiro Código Eleitoral, destacava-se: (i) as causas que possam fazer perder
o direito eleitoral, ou seu exercício, são reduzidas ao mínimo; (ii) qualificação de eleitores,
instrução e decisão de contendas eleitorais são atribuídas à jurisdição de juízes e tribunais
especiais, com as garantias inerentes ao Poder Judiciário (CABRAL, 2004). Os demais
princípios voltavam-se à consagração do poder político como sendo poder que emana
do povo e que deverá ser conferido por meio de eleição; participação do cidadão como
membro da soberania da nação, sendo eleitor e elegível; inscrição no registro cívico (leia-
se, inscrição eleitoral) obrigatória; voto secreto; representação proporcional nos órgãos
políticos coletivos; aplicação desses princípios, como garantias, às corporações de caráter
eletivo. De sorte que no elenco de 8 (oito) princípios fundamentais, 2 (dois) deixavam
antever uma atividade de cunho jurisdicional,6 ainda que a preocupação determinante
fosse a de limitar a judicialização, não ao ponto de aniquilar o poder a ser exercido
pela Justiça Eleitoral, mas reduzindo ao mínimo as causas que discutissem o direito e
o exercício eleitoral. Era, em apertada síntese, a consagração da vontade popular pelo
voto que geria o processo eleitoral de então e seus respectivos resultados. Decidido nas
urnas, decidido estava.
Para exemplificar, o recurso contra expedição de diploma – considerado pela
doutrina a mais vetusta das ações eleitorais (ZILIO, 2014, p. 489) – só veio a ser
contemplado no Código Eleitoral de 1950, através de seu art. 170, em enumeração
taxativa (CARVALHO NETO, [s.d.]), configurando uma das ações voltadas à cassação
do candidato, sobrepondo-se, no caso, a decisão judicial à escolha popular, daí porque
seu cabimento – alterado nas legislações eleitorais subsequentes – em casos taxativos e
restritivos e seu curto espaço temporal para ajuizamento.
De sorte que, efetivamente, o papel mais significativo atribuído à Justiça Eleitoral
era – e em certa medida ainda o é – de natureza administrativa/executiva (esta última
expressão manejada tão somente para manter uma afinidade com a clássica distinção dos
poderes), não se confundindo, por óbvio com a sua administração interna e institucional.
Instituir e zelar pelo cadastro dos eleitores, partidos políticos, seções eleitorais, serviços
na captação de votos e sua apuração (MACEDO; SOARES, 2015, p. 54), entre outros,
sempre foi a interface pela qual a Justiça Eleitoral se fez conhecer e afirmar ao longo
da história da república brasileira, configurando uma extensão ou desdobramento da
ideia que cumpre ao Executivo a administração da res publica, aqui compreendida como
a base política da democracia, isto é o processo eleitoral. Por opção histórica atribui-se
ao Poder Judiciário a administração da res electa.
Mas já nas suas origens o poder jurisdicional – neste espaço compreendido, para
efeitos pedagógicos, como atuação soberana na composição ou solução de conflitos

6
É preciso compreender que, à época, o próprio conceito de jurisdição ainda estava em ebulição, sem embargo
de pensar-se, em terras brasileiras, a organização dos poderes à luz da tripartição de poderes com origem mais
remota em Aristóteles e mais recente em Montesquieu e no modelo de Estado liberal cunhado pela Revolução
Francesa.

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ELAINE HARZHEIM MACEDO
NORMATIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES: A JUSTIÇA ELEITORAL DETÉM FUNÇÕES LEGISLATIVAS?
269

eleitorais, a exigir, constitucionalmente, um processo democrático, dialógico, garantidor


do contraditório e da ampla defesa – era, no máximo, antevisto, ainda que nem de perto
se pudesse imaginar a dimensão que viria alcançar, especialmente a partir da Constituição
de 1988 e da consagração dos direitos políticos como direitos fundamentais.
Nesse fio, o próprio art. 5º do Código de 1932 dispunha: “é instituída a Justiça
Eleitoral, com funções contenciosas e administrativas” (grifos nossos). No âmbito da
contenciosidade (em outras palavras, poder jurisdicional), uma parcimônia nas hipóteses
reguladas, para não dizer de franciscana previsão, ressalvada a atuação nos processos
criminais. Não havia, por exemplo, a contemplação de uma ação eleitoral típica. Quando
muito, a contemplação de recursos, conforme art. 103: “Dos atos, resoluções ou despachos
dos juízes eleitorais caberá recurso, dentro de cinco dias, para o Tribunal Regional” e a
sua previsão, bem como do habeas corpus,7 entre as competências dos órgãos eleitorais.
Em suma, funções administrativas, tendo por objeto o processo eleitoral, e alguma
atuação no âmbito jurisdicional, mais voltado a resolver os processos criminais, com
tipos penais elencados, era o perfil originário da Justiça Eleitoral, predominando no
resultado final a vontade popular manifestada pelo voto. Dizendo com outras palavras,
a Justiça Eleitoral, como órgão eleitoral, não se mostrava interventiva, limitando-se a
cuidar restritamente das candidaturas e do pleito.
Mas já na sua gênese apontava o sistema para outra função, qual seja, a de
produzir normas regulamentadoras. Nesse fio, o art. 14, responsável pela definição das
atribuições do Tribunal Superior Eleitoral, estabeleceu, em seu item 4: “fixar normas
uniformes para a aplicação das leis e regulamentos eleitorais, expedindo instruções que
entenda necessárias”.8 Nascia, nesse momento, o que a doutrina passou a denominar
função regulamentadora e/ou normatizadora da Justiça Eleitoral.
Se o poder jurisdicional eleitoral, que aqui não é objeto específico de estudo,
ganhou ao longo das últimas décadas dimensões inimagináveis para os teóricos do
Direito Eleitoral dos anos trinta, com a significativa previsão e complexidade das ações
eleitorais que foram se sobrepondo ao longo dos anos ao ordenamento jurídico de
regência, acompanhando o movimento eleitoral e político do Brasil, diferente não foi
com a função regulamentadora, cuja tendência ao longo das décadas é de crescimento,
como adiante se verá.
Já foi dito (MACEDO; SOARES, 2015, p. 55) e repete-se agora, não há um consenso
no uso das expressões instruções e resoluções, o mesmo valendo para os termos função
ou poder, regulamentador ou normatizador, por vezes sendo usados como sinônimos, por
vezes com particularidades específicas, a distingui-los.9

7
“Art. 14. São atribuições do Tribunal Superior: [...] 5) julgar, em última instância, os recursos interpostos das
decisões dos Tribunais Regionais; 6) conceder originariamente habeas-corpus, sempre que proceda de Tribunal
Regional a coação alegada. Já no art. 23, que cuidava das atribuições dos Tribunais Regionais, encontravam-se
as seguintes disposições: 5) decidir, em primeira instancia, os processos eleitorais; 6) processar e julgar os crimes
eleitorais; 7) julgar, em segunda instancia, os recursos interpostos das decisões dos juízes eleitorais”.
8
Curiosamente, mesmo após Constituição de 1988, a partir de legislação infraconstitucional represtinada pela
nova Carta, esta manteve essa proposta original e até ampliou o espectro de funções a serem exercidas por essa
justiça especializada, agregando-lhe funções consultivas.
9
De registrar a equivocidade dos termos – o que é um lugar comum no direito, na medida em que se trata de
ciência hermenêutica, abre discussões infindáveis, o que o presente trabalho não contempla enfrentar. Nesse
caminho, o próprio conceito de norma encontra fundamentos os mais diversos, esclarecendo-se ao leitor,
contudo, que, neste espaço de discussão, será utilizado o conceito de norma a partir de Alf Ross, como sinônimo
de regras jurídicas válidas a impor um agir do modo indicado, correspondendo ao “direito válido” (ROSS, 1994).

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270 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Por primeiro, poder e função não são necessariamente sinônimos. Em apertada


síntese poder é deliberação, é ação, é mando, ganhando, por óbvio, diversas nuanças.
A expressão poder quando utilizada em razão do exercício da soberania de uma nação
vincula-se aos poderes instituídos e, para o exercício deste poder os órgãos e agentes
mandatários são dotados de funções. Aliás, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de
Mello (2005, p. 25), “função pública, no Estado Democrático de Direito, é a atividade
exercida no cumprimento do dever de alcançar o interesse público, mediante o uso de
poderes instrumentalmente necessários conferidos pela ordem jurídica”, e que se destaca
a intimidade entre as duas expressões. Neste trabalho, por isso mesmo, poder e função
são utilizados indistintamente, vinculando-se ao dogma do art. 2º da Constituição,
atribuindo aos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário o exercício da soberania
popular de forma independente e harmônica, ao efeito de se discutir, nesse universo, a
atuação da Justiça Eleitoral.
Quanto às expressões resoluções e instruções, o Regimento Interno do TSE, conforme
art. 25, que regula o procedimento das decisões e julgamento pelo colegiado, dispõe:

[...] §1º Os acórdãos e as resoluções de caráter administrativo e contencioso-administrativo


serão assinados pelo relator ou pelo ministro efetivo ou substituto a quem couber a sua
lavratura, registrando-se o nome do presidente da sessão; as resoluções normativas serão
assinadas por todos os ministros que participaram da sessão de julgamento (parágrafo
introduzido pela Res. n. 23.172/2009). [...]
§3º Os feitos serão numerados, e as decisões serão lavradas sob o título de acórdão,
reservando-se o termo resolução àquelas decisões decorrentes do poder regulamentar do
Tribunal e nas hipóteses em que o Plenário assim o determinar, por proposta do relator
(parágrafo introduzido pela Res. n. 23.308/2010).

A partir dessas disposições, o termo resolução afasta, pelo menos em princípio,


o termo instrução normativa, que ficou reservado para decisões que digam com a admi­
nistração interna da instituição. Por isso, adota-se a expressão resolução para referir-se
aos atos normativos editados pelo Tribunal Superior Eleitoral.
Por derradeiro, mas não menos importante, cabe distinguir, como antes já o
fizemos, o poder regulamentador do poder normatizador, até porque não se antevê razões
para mudar o posicionamento, reproduzindo o respectivo texto, a partir da premissa
de atos normativos primários ou secundários:

A Justiça Eleitoral produz regulamentos com o objetivo de instrumentalizar a aplicação da


legislação eleitoral. O manejo do poder regulamentar não pode ir ao encontro às definições
legais, mas apenas definir os meios pelos quais a legislação deve ser cumprida. Trata-se de
poder infralegal, porque decorrente da própria legislação eleitoral que o prevê.

E mais adiante:

Eventualmente, seja por incluir sua jurisprudência, seja por inovar em relação ao que o
legislador previu (ou não previu no caso de omissão), o TSE avança e produz atos norma­
tivos primários, que visivelmente escapam ao poder regulamentar, configurando autêntico
poder normativo, tema específico deste trabalho. (MACEDO; SOARES, 2015)

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ELAINE HARZHEIM MACEDO
NORMATIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES: A JUSTIÇA ELEITORAL DETÉM FUNÇÕES LEGISLATIVAS?
271

Superados esses entraves linguísticos, cumpre avaliar com mais acuidade o poder
regulamentador/normativo da Justiça Eleitoral, do qual se afirmou, sem sombra de
dúvidas, submeter-se a uma tendência de crescimento, de ampliação de sua ocorrência.
A última resolução expedida no ano de 2017, em 18 de dezembro, levou o nú­
mero de 23.556 e trata do cronograma operacional do cadastro de eleitores para as
eleições de 2018. Voltada às eleições, é fato, mas de nítido caráter administrativo. Tem-
se notícia de que a resolução que levou o número 1, portanto a primeira pelo menos
depois da reestruturação da Justiça Eleitoral, data de 7.6.1945, dispondo sobre o início
do alistamento eleitoral e sobre a instalação dos Tribunais Regionais Eleitorais. Em 72
(setenta e dois) anos, houve, numa conta aritmética, uma média de 327/328 resoluções/
ano (de acordo com site do TSE). Por certo que muitas, quiçá a maioria, voltadas à própria
administração da instituição, a representar o que Eugênio Raul Zaffaroni expressou
como função de autogoverno, na sua clássica definição das funções do Poder Judiciário
(1995), com nítido caráter administrativo. Tantas outras, qualificando-se por sua natureza
regulamentadora, limitando-se a especificar e pontuar disposições legais que, por vezes,
mostram-se insuficientes para dar a necessária segurança ao processo eleitoral. De sorte
que o volume de atos resolutivos, por si só, não representa preocupação maior.
Contudo, a história das resoluções nos mostra casos típicos de atuação normativa,10
criando a resolução normas primárias e atuando no vazio da legislação, escapando à
mera regulamentação para caracterizarem-se como legiferantes.
Estabelecer, em outro viés, um limite entre a função meramente regulamentadora
e a normativa longe está de ser um trabalho fácil e, até, de consenso entre os intérpretes,
mostrando-se por vezes como uma fronteira fácil de ser rompida.
No mesmo caminho, se, de um lado, a constitucionalização do ato normativo,
quando atua no vazio da lei, de outro, a sua aderência à lei, limitando-se a regulamentá-la
dentro de seus limites, atendem ao plano formal de validade do ato (ALMEIDA NETO,
2014, p. 101-109), não menos relevante é o plano da legitimação do conteúdo de tais
normas editadas pela Justiça Eleitoral, indispensável elemento a ajustar o ato normativo
ao ideal democrático.
As dificuldades, porém, não param por aí. Até por ser conhecido o difícil jogo
político no Congresso Nacional quanto à edição de leis que regem o processo eleitoral,
pelo notório interesse próprio dos legisladores, não há como subtrair do Poder Judiciário,
mais precisamente da Justiça Eleitoral, essa função que por vezes complementa ou
preenche os vazios e as inconsistências provocadas pelo próprio Legislativo. Nítido
campo minado, que cabe à doutrina e ao intérprete eleitoralista apontar os acertos e
desacertos, de modo a obter-se um equilíbrio e um mínimo de segurança jurídica para
o enfrentamento de todos os aspectos que cercam o processo eleitoral.
É neste universo tumultuado que a função normativa da Justiça Eleitoral cruza
seu caminho com o novo Código de Processo Civil, isso porque o estatuto processual
de 2015 vem contribuindo com a redefinição da atividade jurisdicional, instituindo uma
função normativa que lhe era, no mínimo, até então estranha, o que adiante se verá.

10
Apenas para exemplificar, a limitação do número de vereadores, em 2004; no mesmo ano, a quitação eleitoral com
pagamento dos débitos como exigência de elegibilidade; a verticalização das coligações em 2006; a fidelidade
partidária, em 2007; a propaganda eleitoral na internet a partir de 2004 até 2009, quando sobreveio a primeira
legislação sobre o tema; o efeito condenatório nas ações de prestação de contas, em 2014.

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272 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

2.3 As novas funções do Poder Judiciário versus Justiça Eleitoral


Há um novo cenário no mundo jurídico pátrio propício a estabelecer um diálogo
com o tema objeto deste estudo, a função legiferante da Justiça Eleitoral, antes quase
que atuando, entre as instituições judiciais, isoladamente nesse mister, porquanto os
atos regulamentadores expedidos pelos tribunais, de regra, jamais tiveram o alcance
das resoluções eleitorais, limitando-se a expedir regimentos internos (CLÈVE, 1993, p.
81) ou outros, de menor hierarquia, como provimentos ou resoluções mais voltadas às
atividades cartorárias.
O Código de Processo Civil de 2015, somado a regras constitucionais que palmi­
lharam este caminho antecipadamente, construiu um sistema no qual prepondera a
função normativa da atividade dos tribunais. Está se falando do instituto de precedentes,
que recebeu do estatuto processual um tratamento sistemático, especialmente por seus
arts. 926 e 927, bem como pela ampliação dos casos submetidos à ação de reclamação,
conforme arts. 988 e seguintes.
Hermes Zaneti Jr. (2015, p. 76-77), abordando a temática da vinculação dos
precedentes, expõe com clareza, a partir da premissa de que o processo não é mera técnica
a serviço de um sistema de direitos, representando, antes de tudo, um fenômeno de
poder, a ponto de desmistificar a teoria das fontes do direito, conclui que os precedentes
jurisprudenciais, presente a Constituição de 1988, atendem a um ideal democrático e
pluralista, servindo à democracia como ordem isonômica, não mais se justificando, como
defendido às últimas instâncias na tradição da civil law, ser a lei a única fonte legítima
e democrática do direito, criticando expressamente que “a teoria das fontes, na qual
predomina a lei, está fortemente ligada à soberania do legislador e ao paleojuspositivismo
legalista”.
Render-se à ideia de que também o Poder Judiciário nas suas atuações jurisdi­
cionais cria o direito é um passo importante para melhor compreender a sua função
normativa. A função interpretativa é profundamente criadora, podendo descambar
numa complementariedade do texto, dando uma nova textura (ou sentido) à norma
como uma nova capa, ou, ainda, indo além dela, atribuindo-lhe uma extensão até então
inexistente, sequer prevista ou almejada.
Na atividade hermenêutica já há um forte componente de construção, de criação
do direito, independentemente de sua aplicação subjetiva ou não, isso é, direcionado
às partes do litígio, ou de eficácia erga omnes, aproximando-se, no ponto, com a eficácia
da lei, cuja essência sempre é erga omnes. No primeiro caso, a aceitação é quase pacífica,
resolvendo-se, quando muito, eventual discordância pelo sistema recursal e nele
se esgotando. No segundo, abre-se um novo horizonte, realizando-se por diversas
vias distintas: o processo (ainda subjetivo, embora não individual) coletivo, talvez o
instrumento mais tradicional no direito processual brasileiro com tais características,
mas mesmo assim de origem recente, com suas raízes no século XX; o processo objetivo
que visa ao controle concentrado de constitucionalidade dos atos normativos; a súmula
vinculante; a repercussão geral do recurso extraordinário; e, mais hodiernamente, o
sistema de precedentes do Código de Processo Civil de 2015. No caso do direito eleitoral,
mais dramático, o poder de expedir resoluções regulamentadoras ou normatizadoras,
em que a função normativa agrega não só quanto ao conteúdo, mas também quanto à
forma, feição legiferante.

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ELAINE HARZHEIM MACEDO
NORMATIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES: A JUSTIÇA ELEITORAL DETÉM FUNÇÕES LEGISLATIVAS?
273

Independentemente de sistemas de outros países, no Brasil, a teoria dos chamados


precedentes ganha características próprias, voltada essencialmente para o que o art. 926
do CPC/2015 institui como um valor a ser perseguido pelos tribunais: a uniformização
e estabilidade de sua jurisprudência. Não necessariamente atuando no vazio da norma,
parte desta para lhe dar contornos e extensão específicos.
Nos institutos processuais sistematizados pelo Código de Processo, parte-se da lei
para decidir determinado caso (sentença) e segue, nos casos previstos (leia-se, quando
presentes os requisitos de numerosidade de demandas e risco de ofensa à isonomia,
à segurança jurídica, ao princípio da previsibilidade das decisões judiciais), caminho
próprio até a expedição do enunciado normativo, com a fixação de uma tese jurídica, de
regra pelos tribunais superiores, produzindo uma orientação a ser respeitada, qualificada
como precedente a ser observado para os demais casos similares. É um iter circular: da
lei ao precedente, este, por sua vez, dando sentido ao texto, qualificando-se como um
enunciado normativo pronunciado pelo Judiciário, de caráter vinculante. Certamente que
tal processo, profundamente criativo, submete-se a pressupostos a serem observados,
sob pena de ferimento do enunciado editado pela ilegitimidade do pronunciamento.
Como destaca Luiz Guilherme Marinoni (2015, p. 63), a experiência brasileira frente
à “imprescindibilidade de as Cortes Supremas exercerem função de Corte de Precedentes
é recente”, afastando-se destarte do modelo centenário do sistema estadunidense que há
muito contempla a regra do stare decisis, como precedente vinculante às cortes inferiores,
a partir de sua ratio decidendi. Por se tratar de uma prática nova nas fronteiras brasileiras,
o autor reconhece que até seja natural se discutir da necessidade de se perquirir sobre
a ratio decidendi, convivendo-se ainda com decisões plurais, embora critique duramente
a permanência dessa prática frente ao novo sistema.
Cuida-se, portanto, de uma inconsistência ainda não superada pelos tribunais e
doutrina pátrios, cujo aprofundamento escapa aos limites deste trabalho, importando
aqui destacar que os rumos atuais ainda se direcionam no sentido de atribuir eficácia
de precedente ao resultado, como forma de fugir à eventual abertura da discussão do
precedente pelos tribunais e juízos locais, o que também parece não ser o caminho mais
adequado.
De qualquer sorte, o art. 927 do CPC/2015, complementando a norma instituída
pelo dispositivo antecedente, estabelece processualmente um rol de decisões colegiadas
aptas a instituir o precedente vinculante, seja para os processos em curso, seja para os
processos futuros, a exemplo do que dispõem os art. 332 do mesmo estatuto autorizando
o julgamento de improcedência liminar do pedido, a ser proferido pelo juiz de primeiro
grau, em casos tais. Enunciado com vinculação erga omnes e com projeção temporal
para o futuro, reveste-se de função normativa: o exigir do destinatário este ou aquele
comportamento frente à determinada premissa fática.
Remanesce, porém, discutir se a orientação obrigatória respalda a lei ou inova
no seu conteúdo, a exemplo do que acontece com as resoluções emanadas do Tribunal
Superior Eleitoral. A resposta, ainda que hipotética nesse primeiro cenário de observação,
aponta tanto por uma como por outra possibilidade, até pela inevitabilidade do resultado
do trabalho hermenêutico. Interpretar não é repetir o objeto interpretado, é, sim, um
processo construtivo, criativo, deixando o intérprete a sua marca no resultado final.
E este processo agregador é, por excelência, tendo por premissa o disposto no art. 2º da
Constituição republicana, tarefa do Poder Judiciário.

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274 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Vivemos, pois, uma época de profundas mudanças quanto à tão defendida


tripartição para alguns, distinção para outros, dos poderes que compõem a ordem
política do país. Seja porque a própria Constituição estabelece a independência e a har­
monia entre os poderes em igual patamar, seja por força do intenso processo cultural
da judicialização da política, o Judiciário vem sendo provocado insistentemente a atuar
além de sua tradicional e milenar resolução de conflitos e respostas precisam ser dadas.
Quanto à ponte entre o processo da Justiça comum, estadual ou federal, e o pro­
cesso jurisdicional da Justiça Eleitoral, sob o viés do art. 15 do Código de 2015, é indis­
cutível que a Resolução nº 23.478, de 10.5.2016, representou iniciativa meritória, traçando
as primeiras orientações quanto às inovações processuais, embora tenha deixado flancos
em aberto, por vezes pecando por excessos, em outras por omissão ou até vagueza de
disposições. No que diz com o sistema de precedentes, limitou-se a dizer, em seu art. 20,11
que não se aplica ao processo judicial eleitoral a técnica de julgamentos repetitivos,
técnica essa exclusivamente prevista para os recursos extraordinários (que não atingem
o TSE) e os especiais (esses, sim, da competência do tribunal por força do disposto no
art. 121, §4º, da Constituição da República e no Código Eleitoral em seu art. 276, inc. I).
Cediço, destarte, que a técnica de julgamento de recursos repetitivos sequer
representa a hierarquia maior no rol dos precedentes, afastando, por exemplo, o
cabimento da ação de reclamação, porquanto o art. 988, em seu §5º, inc. III, estabelece a
inadmissibilidade da reclamação proposta para garantir a observância de acórdão em
sede de recursos extraordinário ou especial enquanto não esgotadas as vias recursais
das instâncias ordinárias.
A rigor, a mais alta escala nos precedentes sistematizados pelo Código de 2015
diz ou com os emanados dos processos de controle concentrado de constitucionalidade
e de súmulas vinculantes (com origem na própria Constituição, portanto) ou com os
incidentes de resolução de demanda repetitiva ou de assunção de competência. Sobre
esses, a resolução comentada nada dispôs. Fê-lo bem em relação aos precedentes
constitucionais, pena de macular-se pela inconstitucionalidade caso afrontasse os efeitos
vinculantes constitucionais. Omitiu-se, porém, quanto aos demais, com origem infralegal,
mas nem por isso menos relevantes.
Com acerto, Oscar Valente Cardoso (2015) defende a aplicação do IRDR nos
processos eleitorais, a saber:

A criação do IRDR nos Tribunais Regionais Eleitorais decorre da incidência supletiva do


novo CPC, para preencher a lacuna existente no Código Eleitoral e nas leis processuais
eleitorais especiais. Trata-se, como visto, de incidente processual inédito no processo cível
brasileiro, que pretende assegurar a isonomia e a segurança jurídica no Judiciário. Conforme
referido no tópico anterior, a competência para instaurar, processar e julgar o IRDR gera
controvérsia doutrinária e não é respondida satisfatoriamente pelo novo CPC. Porém,
não há limitação exclusiva aos Tribunais de Justiça dos Estados e aos Tribunais Regionais
Federais pela simples utilização das expressões “Estado” e “Região” por dispositivos do
Código. Ao inverso, o IRDR pode ser utilizado no Judiciário Eleitoral, Trabalhista e até
mesmo no sistema recursal dos Juizados Especiais Cíveis, Estaduais e Federais.

11
“Art. 20. A sistemática dos recursos repetitivos prevista nos arts. 1.035 a 1.042 do Novo Código de Processo
Civil não se aplica aos feitos que versem ou possam ter reflexo sobre inelegibilidade, registro de candidatura,
diplomação e resultado ou anulação de eleições”.

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ELAINE HARZHEIM MACEDO
NORMATIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES: A JUSTIÇA ELEITORAL DETÉM FUNÇÕES LEGISLATIVAS?
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Prossegue defendo a conveniência da adoção do incidente, cuja vocação para


fixação de tese jurídica daria maior uniformização, estabilidade e integridade nas decisões
eleitorais, tão sujeitas às oscilações que os mandatos temporários de seus membros
julgadores estão sujeitos, concluindo, ainda:

[...] além disso, a tese resolvida em um processo concentrado, com o contraditório e a


publicidade ampliados, garantindo a participação dos interessados, tende a ter maior
qualidade e a resolver de forma mais ampla a questão, em comparação com as decisões
proferidas nos processos individuais.

Seguindo esta linha, não se pode olvidar que o incidente de resolução de demandas
repetitivas, na forma como concebido pelo Código de 2015, é, ao lado dos instrumentos
constitucionais voltados à estabilização das decisões judiciais sobre determinada
temática, um processo de abstração dos conflitos ao efeito de o Judiciário imprimir,
de forma vinculante e erga omnes, a tese jurídica firmada em tais espaços processuais.
Abstração, vinculação, eficácia erga omnes e preceito normativo são características
próprias do poder normativo.
De sorte que, ao contrário do que possa parecer a partir de algumas discussões
doutrinárias, independentemente do mérito de suas ponderações,12 caminha-se para a
ampliação do poder normativo atribuído aos tribunais, de cujo cenário a Justiça Eleitoral,
como dito alhures, é protagonista e até vanguardista, reforçando-se ainda mais a sua
função normativa.
Dizendo com outras palavras, ao lado da edição de resoluções normativas
(vinculação forte) e das súmulas editadas pelo próprio tribunal eleitoral (vinculação
fraca), a (defendida) adoção de incidentes de resolução de demandas repetitivas,
estabelecendo um diálogo entre as normas do processo civil e o processo judicial eleitoral
que vai além da experiência pretérita, e as eventuais decisões oriundas do Supremo
Tribunal Federal com eficácia de precedentes, forçoso concluir o fortalecimento da função
normativa da Justiça Eleitoral, fenômeno jurídico que se reflete diretamente no âmbito
dos direitos políticos fundamentais e da legitimação da democracia.
Apenas para não deixar in albis, a maior diferença entre a edição de resoluções
e a instauração de um IRDR em matéria eleitoral é que neste, ao contrário daquelas, a
participação dos destinatários na discussão da tese jurídica é respeitada, legitimando
o resultado final. Mas ambos os instrumentos produzem enunciados normativos e
vinculantes, desafiando o dogma da separação de poderes.

2.4 Juízo legislativo e o grau de discricionariedade nas respostas dadas


pela lei ao processo eleitoral ou a opção de não legislar
Por certo não é de se desprestigiar o princípio da legalidade, elevado à garantia
dos direitos fundamentais, a partir do art. 5º, inc. II, da Constituição. Mas também

12
Por todos, Eneida Desiree Salgado (2015, p. 252), que sentencia, com todas as palavras: “como se afirmou, a
atuação da Justiça Eleitoral na expedição de resoluções é inconstitucional. Sem previsão expressa na Constituição
e em face de uma função atípica, não se pode considerar a possibilidade de elaboração de normas, ainda que
secundárias, pelo Poder Judiciário”.

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276 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

não se olvida que o princípio da legalidade convive com outras garantias de idêntica
hierarquia. Exemplo maior vem do próprio texto constitucional, quando no mesmo
dispositivo, inc. LXXI, contempla o mandado de injunção, ação constitucional voltada
para garantir o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas
inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, presente o pressuposto de falta de
norma regulamentadora, ou seja, da mora legislativa a impedir tal exercício. A hipó­
tese, que é de exceção, reconhece-se, encontra amparo na própria Constituição, a legi­
timar plenamente a intervenção do Judiciário editando solução normativa para o caso
concreto, não servindo de fundamento para o exercício da função normativa exercida
pelos tribunais.
A lei não é plena. A lei pode ser lacunosa, contraditória, obscura, incompleta,
dando margem a interpretações: até aí, nenhuma novidade. O sistema responde com
os princípios de direito, com a analogia, com os costumes. Mas, mais grave, pode não
haver lei, embora haja direitos a serem tutelados, abrindo-se, nesse caso, o sistema em
busca de uma resposta.
Também o processo legislativo se submete às contingências culturais, mas a
legitimação maior de seu produto – a lei – decorre exatamente de sua produção em um
espaço político, em que os legisladores representam – ou devem representar – as diversas
vozes da sociedade, encontrando seu fundamento maior no axioma a vontade popular,
representada especialmente pelo voto, em que maiorias e minorias se digladiam entre
si até que, ao fim e ao cabo, um consenso é formado.
Não há dúvida de que esse modelo, útil para o desenvolvimento do Estado
liberal, sustentado filosoficamente pelo positivismo jurídico, também já se deteriorou,
mostrando-se anacrônico. A crise do positivismo e da consequente crença que na lei se
encontra o direito não é particularidade da história brasileira. Lembrando as lições de
Luis Fernando Barzotto (2007, p. 133), valendo-se inclusive de Norberto Bobbio:

Pode-se dizer que uma as razões do fracasso do projeto positivista tratado neste trabalho,
foi a tentativa de propor um conceito unidimensional do direito, tentando reduzi-lo à
esfera normativa. Já se tornou um patrimônio do pensamento jurídico universal a idéia
de que o direito é um fenômeno complexo, que envolve não somente normas, mas fatos e
valores, e, portanto, não somente a validade, mas também a justiça e a eficácia, ‘concorrem
à formação da noção de direito’ e ‘quem quer compreender a experiência jurídica nos seus
vários aspectos, deve levar em conta que essa é aquela parte da experiência humana cujos
elementos constitutivos são ideais de justiça a realizar, instituições normativas para realiza-
los, ações e reações dos homens, face àqueles ideais e a estas instituições’. A intromissão
de elementos fáticos e valorativos nas construções positivistas mostra, a contrario sensu, a
verdade dessa tese.

Como superar esse aspecto contingencial, ínsito aos preceitos normativos e ao


processo legislativo, despidos esses de uma “positividade instantânea”, como ensina
o autor referido, na compreensão do fenômeno jurídico? Se a pergunta é válida para
qual­quer área do direito, mais ainda para o processo eleitoral, pois, ao fim e ao cabo, é
por ele que será outorgado o poder de legislar, exercido pelos agentes eleitos através da
figura jurí­dica do mandato, conduzindo o futuro do Estado de Direito, como igualmente
ocorre com os mandatários do Poder Executivo.

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ELAINE HARZHEIM MACEDO
NORMATIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES: A JUSTIÇA ELEITORAL DETÉM FUNÇÕES LEGISLATIVAS?
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Não se nega a relevância do processo eleitoral receber o devido tratamento


normativo ao efeito de validar e legitimar o resultado final, isto é, a escolha dos repre­
entantes do povo. Por outro lado, se em certa medida a interpretação judicial dos textos
legislativos não encontra resistências na reconhecida função do Judiciário de aplicação
da lei ao caso concreto, o fato é que remanesce outro dilema: não a lacuna da lei –
reconhecida e superada tanto pela doutrina como pela própria lei –, mas a inexistência
da lei, que em matéria eleitoral nem sempre é exceção.
Aqui, necessariamente, adentra-se no poder discricionário da atuação legislativa,
em que, por vezes, não legislar é uma opção e não uma frustração de enfrentar temas
polêmicos e de difícil arranjo entre correntes extremamente contraditórias e inconciliáveis,
cujos interesses próprios dos legisladores e dos partidos a que integram – como
destinatários das leis eleitorais – também entram em cena, acirrando o debate legislativo.
Não há respostas que possam bem responder a esse questionamento. A pergunta
que deve ser formulada, quiçá, é distinta: não exercendo, ainda que volitivamente, o
poder de legislar, estará o Poder Legislativo decidindo? E tal decisão deve ser observada?
Sob a ótica positivista, a resposta se mostra simples: sim! Mas na medida em que se
reconhece que o fenômeno jurídico não se exaure na lei, ultrapassando o direito tal limite
para se qualificar também por tudo que acontece no cotidiano do humano, compondo-se
de fatos e valores, por certo o espaço não ocupado pelo legislador, deliberativamente
seja por opção discricionária, seja pelo fracasso de administrar o conflito legislativo,
encontrará quem o ocupe. No caso, a tendência contemporânea tem sido o Judiciário,
provocado ou não, a ocupar tais espaços.
Nesse momento a Justiça Eleitoral afasta-se profundamente do perfil da atividade
jurisdicional, que opera para o passado quando provocada a compor conflitos, ao
contrário da atividade legislativa, que opera para o futuro. O conflito, insiste-se, está no
passado, já ocorreu, precisa ser composto observados os limites da lei, sem embargo da
criativa atividade interpretativa. Quando, porém, o vazio legislativo enseja situações,
no mínimo de riscos ou de insegurança jurídica13 para o processo eleitoral, clama-se
por uma atuação que projete o futuro, regulamentando tais situações, quiçá evitando-
se futuros conflitos e sua vocação para eternizarem-se nos meandros procedimentais.
Eleições e outorga de mandatos exigem resultados imediatos. E resultados imediatos,
ainda que hipoteticamente, só a norma pode produzir, não a sentença.
Aqui vale abrir uma discussão específica: os atos normativos expedidos pela Justiça
Eleitoral através de resoluções – descartando-se eventual provocação de uniformização
de entendimentos manifestados previamente, em sede de processos decididos, até porque
se tratam de espaços distintos de criação do direito – se alimentam da mesma energia
ou força que a lei emanada pelo Poder Legislativo? A resposta negativa se impõe, tanto
no aspecto formal como material.
As resoluções são expedidas de regra em caráter temporário, voltando-se
especificamente para a eleição em curso, o que não impede, é claro, de se perpetuarem

13
Toma-se como exemplo a preocupação presente no que diz com as fakes news que poderão influenciar o processo
eleitoral de 2018, objeto não só do discurso de posse do Ministro Luis Fux, mas também da primeira reunião
de seu mandato como presidente daquele tribunal com os presidentes dos tribunais regionais eleitorais, tendo
pontualmente referido “notícias falsas, fake news, derretem candidaturas legítimas. Uma campanha limpa se
faz com a divulgação de virtudes de um candidato sobre o outro, e não com a difusão de atributos negativos
pessoais que atingem irresponsavelmente uma candidatura” (LEI..., 2018).

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
278 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

no tempo, não por função inerente, mas por motivos contingenciais. A tanto se afirma
por força do disposto na Lei nº 9.504/97:

Art. 105. Até o dia 5 de março do ano da eleição, o Tribunal Superior Eleitoral, atendendo
ao caráter regulamentar e sem restringir direitos ou estabelecer sanções distintas das
previstas nesta Lei, poderá expedir todas as instruções necessárias para sua fiel execução,
ouvidos, previamente, em audiência pública, os delegados ou representantes dos partidos
políticos. [...]
§3º Serão aplicáveis ao pleito eleitoral imediatamente seguinte apenas as resoluções
publicadas até a data referida no caput.

A redação dada ao art. 105 da Lei das Eleições imprime às resoluções uma função
de regulamentação em tese voltada às especificidades do pleito que se segue, daí porque
sua edição se dar, como limite máximo para sua incidência nas eleições subsequentes,
até um prazo médio de 7 (sete) meses antecedente ao pleito vindouro, tenha ou não
havido modificações legislativas no período. Contudo, sabe-se que não é assim que
funciona, estendendo-se suas disposições a um futuro temporalmente imprevisível,
podendo ou não vir a ser modificada por futura resolução ou ainda por lei que disponha
sobre a mesma matéria. Enquanto isso não ocorre, continuará vigendo e produzindo
seus efeitos.14
De qualquer sorte, o próprio sistema normativo não lhe confere dignidade
legiferante, seja porque limita seu campo de atuação ao dispor que “sem restringir
direitos ou estabelecer sanções distintas das previstas” na Lei Eleitoral, seja porque, dada
sua esperada função meramente regulamentadora, atribui-lhe o prazo de 7 (sete) meses
de antecipação ao pleito e não o prazo de 1 (um) ano, conforme art. 16 da Constituição,
que atende ao princípio da anualidade imposto às leis eleitorais para que tenham plena
aplicação ao processo eleitoral imediato.
Sua fragilidade está também nos limites de sua vigência enquanto lei específica
não vier, seja para confirmar o seu texto, seja para contrariar seus dispositivos, perdendo
vigência em qualquer uma das duas hipóteses. Sobrevindo a lei, a resolução não mais
se impõe, nem como reforço de fundamentação. Basta para tanto que a lei que a suceda
tenha tratado da matéria por ela regulamentada. É certo que uma lei pode ser revogada
por outra lei, mas os respectivos processos legislativos são absolutamente idênticos,
de igual hierarquia, seguindo os mesmos procedimentos, ao efeito de expressar e/ou
provocar a revogação.
Não é o que acontece com uma resolução, cujo conteúdo normativo se vê afastado
do ordenamento jurídico pela simples edição de norma legal que lhe seja posterior,
dispensado qualquer comando revogatório, tácito ou expresso. A lei se sobrepõe, no caso,
à norma contida pela resolução por si só, independentemente de qualquer advertência
nesse sentido.
Não é por outra razão que, por vezes, entre lei velha e lei nova se instaure o
(aparente) conflito temporal de normas, regido, por sua vez, por princípios e dispositivos
legais. Incidentes tais seriam incompatíveis entre uma resolução e uma lei nova, sempre
prevalecendo esta última.

14
Exemplo disso é a Resolução nº 22.610/2007, que tratou da fidelidade partidária e da titularidade do mandato
obtido nas urnas, só vindo a perder seu objeto quando do advento da Lei nº 13.165, de 29.9.2015.

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ELAINE HARZHEIM MACEDO
NORMATIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES: A JUSTIÇA ELEITORAL DETÉM FUNÇÕES LEGISLATIVAS?
279

Mas o fato é que enquanto o Legislativo não ocupar o seu espaço decisional,
prevalecerão, regendo os casos concretos que o processo eleitoral produz, os preceitos
normativos impostos pela resolução. Agrega-se a este fenômeno a circunstância de que,
em princípio, os processos contenciosos que envolvem determinada eleição tendem a
se resolver no interstício temporal desta eleição, com a qualificação da indiscutibilidade
da coisa julgada, de modo que eventual lei posterior – aí pela garantia constitucional
da tutela da segurança jurídica assegurada pelo art. 5º, inc. XXXVI, da Constituição
republicana – não retroagirá seus efeitos aos processos já julgados, ressalvada, por óbvio,
a hipótese de ação rescisória, de limitada previsão no direito eleitoral.
A maior crítica, porém, ao poder normativo da Justiça Eleitoral a ser considerada
é a concentração no exercício do poder, provocando uma espécie de poder endógeno.
O mesmo colegiado, o pleno do TSE – responsável pela edição da resolução que
pressupõe obviamente tomada de decisões em ambientes e por agentes que não
atendem aos requisitos de representação democrática, mais afeitos aos parlamentos
(SALGADO, 2015, p. 249) –, é o que também julgará os processos – em grau recursal
ou em competência originária – constituídos a partir de conflitos eleitorais frente à
regulamentação produzida, dando a última palavra sobre sua aplicação ou não ao caso
concreto, solidificando-se inclusive essa decisão pela indiscutibilidade da coisa julgada,
constitucionalmente legitimada. De sorte que as funções normativa e jurisdicional se
sobrepõem, exercidas pelos mesmos personagens num círculo autofágico.
Cumpre nesses casos indagar: qual o grau de previsibilidade de que quem editou
a norma contra ela de se posicionar quando chamado a invalidá-la ou pelo menos afastar
sua incidência no caso concreto? Lições do passado nos mostram que a ditadura, seja
ela do Executivo, Legislativo ou do Judiciário, é perniciosa e incompatível com o Estado
Democrático de Direito, lembrando, por todos, Rui Barbosa, que assim se expressou: “a
pior ditadura é a do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer”.
A situação se agudiza na medida em que limitados se mostram os caminhos para
o Supremo Tribunal Federal, esgotando-se, no mais das vezes, a decisão no âmbito do
Tribunal Superior Eleitoral, até por conta de que o processo eleitoral deve se esgotar
no âmbito temporal da eleição que lhe deu causa, sob pena de absoluta inefetivi­
dade de suas decisões, exigência que o Supremo não encontra aptidão para atender.
A eter­nização dos feitos que a multiplicação de recursos extraordinários – entre outros
instru­mentos processuais – provocaria em casos tais implica trocar seis por meia dúzia,
mos­trando outra faceta nefasta do sistema, em prejuízo do exercício democrático dos
direitos políticos.
De um modo ou de outro, ao Supremo Tribunal Federal, nesse retrato de distri­
buição de funções judiciais e normativas, deve ficar reservada sua função de controle de
constitucionalidade das leis e, mais precisamente, das resoluções eleitorais, restringindo-
se ao máximo sua atuação jurisdicional via julgamento de casos concretos. Significa dizer
que não cabe ao Supremo a mera função revisional ínsita ao sistema recursal, o que a
abertura dos recursos extraordinários provocaria.
O fato é que o poder normativo só alcançou patamares antes sequer pensados
porque paralelamente se ampliou o poder jurisdicional, criando-se, num primeiro
momento, via processo legislativo, inúmeras ações eleitorais com força de indeferir
ou cassar o registro, o diploma e o mandato do candidato, intervindo diretamente no
resultado das urnas. Sofisticado sistema de tipos infracionais os mais variados e de

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
280 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

ações perquirindo condutas e cominando sanções eleitorais foram sendo agregados ao


ordenamento jurídico, seja no âmbito do registro, da campanha eleitoral, da prestação
de contas, das condutas vedadas, de controle de poder político, econômico ou de abuso
nas mídias de informações, envolvendo os partidos e os candidatos, cuja normatização
passou a ser exigência consequencial, até por força da segurança jurídica.
Mais uma vez, o processo circular se fez presente e, o que é pior, em ritmo
acelerado conflitando, por vezes, com o devido e indispensável debate jurídico, político
e até filosófico sobre temas de tamanha relevância.
A partir dessa premissa, caminho inverso poderia ser pensado, restringindo ao
máximo a intervenção judicial da Justiça Eleitoral no processo eleitoral, revigorando,
sim, suas funções administrativas na condução do pleito, mas reduzindo – como já foi no
passado – sua função jurisdicional ao efeito de discutir as escolhas populares advindas
das urnas a partir de determinados comportamentos eleitorais.
Seria, na verdade, um caminho revolucionário e exigiria uma revisão do art. 14
da Constituição republicana, mas que teria o vigor de devolver ao povo – e não a seus
mandatários constitucionais – a decisão final sobre quem e como seus governantes
seriam investidos no poder, conformando a autodeterminação da cidadania, talvez o
estágio mais avançado que uma sociedade possa alcançar. Por certo, tema a exigir espaço
próprio de investigação doutrinária, aqui comparecendo mais como uma provocação
do que uma afirmação.
Talvez mais próximo, mas nem por isso menos difícil, seria limitar a intervenção
recursal do Tribunal Superior Eleitoral em processos submetidos a julgamento e cujas
decisões tivessem por fundamento normas exclusivamente instituídas pelas resoluções,
outorgando aos tribunais locais a interpretação e aplicação dessas normas aos casos
concretos, descentralizando o poder judicial.15 A proposta, polêmica certamente, vem
ao encontro da limitação da atuação dos tribunais superiores que, constitucionalmente,
não gozam de função revisora, mas sim de estabilização do ordenamento jurídico,
constitucional ou infraconstitucional.
Por derradeiro, repensar o sistema processual eleitoral, adequando as
peculiaridades do conflito eleitoral, que não se resume a mero conflito individual,
valendo-se de instrumentos regulados pelo Processo Civil de 2015, com vistas à unidade
do direito a ser aplicado, e do processo coletivo, pode se mostrar útil ao combate à
indesejável concentração de poder, garantindo-se, em casos tais, o devido processo legal,
dogma do Estado Democrático de Direito.

2.5 Considerações finais


Contando com uma experiência de mais de oitenta anos, a Justiça Eleitoral
permanece aberta a sua rediscussão. Quanto mais cresce sua importância e sua presença
no processo eleitoral, mais se impõe o debate político e jurídico frente aos seus múltiplos
papéis na tutela dos direitos políticos fundamentais e da democracia representativa.

15
Esse sistema seria mais compatível com as eleições municipais, nas quais o TSE só é provocado via recurso
especial eleitoral. Já nas eleições gerais, em que o tribunal também atua como órgão revisor da decisão ad quem,
sua adoção seria limitada, para dizer o mínimo.

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ELAINE HARZHEIM MACEDO
NORMATIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES: A JUSTIÇA ELEITORAL DETÉM FUNÇÕES LEGISLATIVAS?
281

Rever o conceito e a extensão dos conflitos eleitorais e do respectivo processo


jurisdicional, com forte conteúdo de coletividade e normatividade, é tema que se
confunde e se imbrica, em certa medida, com o poder normativo atribuído ao Tribunal
Superior Eleitoral e exercido pontualmente através de resoluções que emanam preceitos
normativos genéricos, erga omnes e vinculantes. Sem embargo de não serem formalmente
reconhecidos como atos legislativos, adquirem, na prática, nítida função legiferante,
produzindo nefasta concentração de poder, em especial porque quem edita tais normas
é também quem decide, por último, os conflitos que sob sua vigência se instalam,
aplicando-as como fundamento de suas decisões.
Como criar sistema de freios e contrapesos entre as resoluções normativas e sua
incidência sobre o conflito, através dos processos jurisdicionais, autorizando que o
próprio sistema se autocontrole, é o maior desafio a ser perquirido.
Restaurar o domínio da cidadania, em temas eleitorais, com diminuição de inter­
venção do Estado, aqui compreendido no seu sentido lato; reduzir instâncias judiciais,
valorando o poder da terra; transpor as funções normativas de eficácia vinculante e
erga omnes para processos judiciais que resguardem a cláusula do devido processo legal
representam apenas janelas que se abrem para um novo horizonte, que não pode ser
sonegado aos que pensam o direito eleitoral.

Referências
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BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. v. 1.
BARZOTTO, Luis Fernando. O positivismo jurídico contemporâneo: uma introdução a Kelsen, Ross e Hart.
2. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
CABRAL, João C. da Rocha. Código Eleitoral da República dos Estados Unidos do Brasil (Decreto nº 21.076, de
fevereiro de 1932). Ed. especial. Brasília: TSE, Secretaria de Documentação e Informações, 2004.
CARDOSO, Oscar Valente. O incidente de resolução de demandas repetitivas na Justiça Eleitoral. Revista
Resenha Eleitoral, v. 19, n. 1, 2015. Disponível em: <http://www.tre-sc.jus.br/site/resenha-eleitoral/revista-
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CARVALHO NETO, Tarcísio Vieira. Recurso Contra expedição de diploma. [s.d.]. Disponível em: <http://ibrade.
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CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo no Estado contemporâneo e na Constituição de
1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.
LEI da Ficha Limpa e combate às fake news serão pilares da gestão do ministro Luiz Fux. TSE, 6 fev. 2018.
Disponível em: <http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2018/Fevereiro/lei-da-ficha-limpa-e-combate-as-
fake-news-serao-pilares-da-gestao-do-ministro-luiz-fux>. Acesso em: 8 fev. 2018.
MACEDO, Elaine Harzheim; SOARES, Rafael Morgental. A criação do direito pela Justiça Eleitoral: um estudo
sobre o seu poder normativo. In: MACEDO, Elaine Harzheim; FREITAS, Juliana Rodrigues (Coord.). Jurisdição
eleitoral e direitos políticos fundamentais. Rio de Janeiro; São Paulo; Belém: Forense; Método; Cesupa, 2015.
MARINONI, Luiz Guilherme. Julgamento nas cortes supremas: precedente e decisão do recurso diante do novo
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ROSS, Alf. Sobre el derecho y la justicia. Tradução de de Genaro Carró. Buenos Aires: Eudeba, 1994.
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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
282 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

TEIXEIRA, Matheus. Supremo reconhece repercussão geral em recurso sobre candidatura avulsa. Conjur,
5 out. 2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-out-05/stf-reconhece-repercussao-geral-recurso-
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TSE aprova 10 resoluções sobre regras das Eleições Gerais de 2018. TSE, 18 dez. 2017. Disponível em: <http://
www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2017/Dezembro/tse-aprova-10-resolucoes-sobre-regras-das-eleicoes-
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ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Poder Judiciário: crise, acertos e desacertos. Tradução de de Juarez Tavares. São
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ZANETI JR., Hermes. O valor vinculante dos precedentes. Salvador: JusPodivm, 2015.
ZILIO, Rodrigo López. Direito eleitoral. 5. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2014.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

MACEDO, Elaine Harzheim. Normatização das eleições: a Justiça Eleitoral detém funções legislativas?
In: FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura (Coord.); PECCININ,
Luiz Eduardo (Org.). Direito Constitucional Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 265-282. (Tratado
de Direito Eleitoral, v. 1.) ISBN 978-85-450-0496-7.

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CAPÍTULO 3

DIREITO JUDICIAL E JUSTIÇA ELEITORAL:


A JUDICIALIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES NO BRASIL

EDUARDO MEIRA ZAULI

No âmbito das democracias contemporâneas, a problemática da ampliação do


controle normativo do Poder Judiciário vem colocando em questão o princípio clássico
da separação dos poderes e chamando a atenção para o exercício, por parte de juízes, de
um protagonismo político a partir de instituições públicas cujos quadros são recrutados
por meio de procedimentos distintos daqueles de tipo eleitoral de que se utilizam as
democracias para a composição dos poderes Legislativo e Executivo (CITTADINO 2002;
SANTOS; MARQUES; PEDROSO, 1996).
Sob determinada ótica esse protagonismo político, também designado pela
expressão judicialização da política,1 vai de encontro ao princípio da soberania popular
exercida por meio da eleição dos representantes populares em que se assentam as de­
mo­cracias. Isso ocorre em função da emergência de uma hermenêutica constitucional
que, liberta dos grilhões da intenção original do legislador constitucional, promove
uma ruptura com uma hermenêutica tradicional fundamentada em uma interpretação
restritiva dos textos constitucionais. Portanto, tem-se o campo aberto para a negação de
um limite democrático-republicano tradicional ao Poder Judiciário: o de intérprete fiel
da intenção do legislador constitucional legitimado pela eleição popular.
Assim, interpretação judiciária das leis e criatividade dos juízes deixam de ser
consideradas antitéticas. Em vez disso, a interpretação judiciária do direito legisla­
tivo redunda na formulação de um direito judicial que é expressão de uma crescente

1
O fenômeno da judicialização da política envolve tanto a extensão das áreas de atuação do Poder Judiciário, quanto
a adoção de procedimentos de inspiração processual e de parâmetros jurisprudenciais por parte de outros atores
políticos (TATE; VALLINDER, 1995).

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
284 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

criatividade jurisprudencial nas democracias contemporâneas. Nas palavras de Mauro


Cappelletti (1993, p. 20):

Quando se diz – como faz o “Chief Justice” Barwick, para citar apenas exemplo recente –
que a expansão do direito legislativo no estado moderno estendida a muitíssimos domínios
antes ignorados pela lei, acarretou e ainda está acarretando consigo a paralela expansão do
direito judiciário, subentende-se obviamente a negação da clara antítese entre interpretação
judiciária da lei e criatividade dos juízes. Encontra-se implícito, em outras palavras, o
reconhecimento de que na interpretação judiciária do direito legislativo está ínsito certo
grau de criatividade.2

Um dos aspectos do referido fenômeno da judicialização da política é a judi­


cialização da competição eleitoral que é, no caso brasileiro, fruto da inserção institucional
da Justiça Eleitoral em nossos processos eleitorais. De fato, nos últimos anos o Tribunal
Superior Eleitoral (TSE) protagonizou a tomada de um conjunto de decisões que
produziram alterações importantes nas regras que regulam a competição eleitoral no
Brasil. Refiro-me à verticalização das coligações partidárias (2002); à limitação do número
de vereadores (2004); à redefinição dos critérios de repasse dos recursos do fundo
partidário aos partidos políticos e à regulamentação da perda de mandatos eletivos
(2007); e à decisão pela validade da Lei da Ficha Limpa para as eleições de 2010.
Embora não seja propriamente um fenômeno novo no mundo da common law, a
autonomização dos juízes frente ao Poder Legislativo também em sistemas de civil law
contribui para certa aproximação entre aquelas duas famílias de sistemas jurídicos cujas
diferenças já não são tão marcantes hoje quanto foram no passado.
Seja como for, a compreensão do protagonismo judicial em muitos dos sistemas
democráticos ocidentais contemporâneos nos remete às memoráveis análises históricas
elaboradas por Van Caenegem acerca das disputas entre diferentes forças políticas
personificadas em juízes, legisladores e professores pelo controle do direito em diferentes
países europeus:

Diversi Paesi europei hanno visto il controllo del diritto passare attraverso varie mani, ossia
quelle del potere giudiziario, legislativo, o delle scuole.Ciò non significa, naturalmente,
che vi furono periodi o Paesi in cui Il diritto venne controllato esclusivamente da uma
sola di queste forze: è sempre esistito um case law, cosi come uma legislazione ed opere
di argomento giuridico. [...] Qui bisognerebbe cercare di scoprire quali forze concrete si
stessero muovendo per la legislazione e la codificazione in ben determinati momenti della
storia, e avendo di mira quali precisi scopi sociali. (VAN CAENEGEM, 1991, p. 61-63)

2
Registre-se que nos marcos do constitucionalismo democrático opera-se uma redefinição das relações entre os
poderes do Estado e tem lugar uma soberania complexa que mescla diferentes formas de representação popular
na qual encontram lugar de destaque as instituições judiciais. Nesse contexto, a hermenêutica constitucional
adequada a uma sociedade aberta é aquela que envolve uma pluralidade de atores que participam da interpretação
constitucional. “No processo de interpretação constitucional estão potencialmente envolvidos todos os órgãos
estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível se estabelecer um elenco
fechado ou fixado com numerus causus de intérpretes da constituição” (HÄBERLE, 1997, p. 13). Assim, em vez
de um viés antidemocrático, o protagonismo do Poder Judiciário representa uma componente fundamental
de um processo de interpretação constitucional que, fundado na tópica, dá origem a um método concretista
de interpretação de uma constituição aberta definida pelos ideais de abertura sistêmica e pluralidade social
(BONAVIDES, 2000).

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EDUARDO MEIRA ZAULI
DIREITO JUDICIAL E JUSTIÇA ELEITORAL: A JUDICIALIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES NO BRASIL
285

Aplicada ao Brasil tal tipo de análise, percebe-se que nos marcos do regime
democrático vigente observam-se episódios em que o juiz/Poder Judiciário sobrepõe-se
ao legislador/Poder Legislativo na tomada de decisões voltadas para a regulamentação
dos processos eleitorais, exibindo uma postura proativa característica de uma concepção
particular de ativismo judicial:3 aquela segundo a qual incorre em ativismo judicial o
juiz que, diante da necessidade de interpretar a norma jurídica para poder aplicá-la,
cria direito novo. Nesse sentido é que deve ser entendida, no contexto da jurisdição
constitucional, a afirmação de um dos atuais membros do Supremo Tribunal Federal
de que

[...] o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de inter­
pretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em
situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política
e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva.
A idéia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do
Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no
espaço de atuação dos outros dois Poderes. (BARROSO, 2009, p. 6)

Na cena brasileira atual compreende-se que tal concepção de ativismo judicial


reveste-se de uma conotação negativa, já que associada a uma suposta violação do
princípio da separação dos poderes em virtude da não observância dos limites das
atribuições do Poder Judiciário vis-à-vis o Poder Legislativo. Entretanto, não se deve
esquecer aquilo que há de problemático em tal abordagem, já que não há consenso
na teoria constitucional contemporânea acerca do que seria o legítimo exercício das
funções inerentes ao Poder Judiciário. Além disso, ativismo judicial é uma expressão
verdadeiramente polissêmica, algo que comporta significados muito distintos em
diferentes contextos.
Atendo-nos à jurisdição constitucional, nos sistemas democráticos contemporâneos
o cerne das controvérsias acerca do papel a ser desempenhado pelo Poder Judiciário
remete à tradicional separação entre as correntes formalista e substancialista, ainda
que no interior de cada uma dessas correntes verifique-se uma grande diversidade de
posições de seus respectivos representantes.
Por formalismo entende-se a posição de inspiração procedimental segundo a qual
não cabe ao Poder Judiciário vis-à-vis o Poder Legislativo decidir acerca de questões nas
quais estejam envolvidos valores substantivos. Particularmente nas circunstâncias em
que a sociedade se encontra dividida acerca de questões morais a palavra final deveria
ser sempre aquela proveniente do Poder Legislativo. Caberia ao Poder Judiciário
tão somente pronunciar-se sobre as regras procedimentais a serem observadas por
ocasião das deliberações no âmbito do Poder Legislativo tendo em vista o respeito aos
pressupostos formais de uma deliberação democrática e a consequente proteção do
sistema democrático (ELY, 1980).
Já por substancialismo entende-se a posição de inspiração material daqueles
que reconhecem legitimidade de uma atuação jurisdicional de controle dos atos do
Poder Legislativo em favor da garantia e promoção de valores substantivos presentes

3
A propósito do caráter polissêmico do conceito de ativismo judicial, veja-se Kmiec (2004).

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
286 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

na Constituição, estejam esses valores presentes no texto constitucional sob a forma de


regras ou princípios (DWORKIN, 1986).
Quanto à polissemia do termo “ativismo judicial”, Kmiec (2004) registra nada
menos que a existência de cinco significados distintos:
1) aquilo que podemos chamar de ativismo judicial contramajoritário e que se
manifesta em sede de controle de constitucionalidade de decisões provenientes
dos poderes Executivo e Legislativo (striking down arguably constitutional actions
of other branches);
2) ativismo como não aplicação de precedentes judiciais. Algo que ocorre quando
é proferida uma decisão judicial ignorando ou desconsiderando uma decisão
judicial anterior (ignoring precedent);
3) ativismo como criação judicial do direito (judicial legislation);
4) ativismo como desvio com relação aos cânones de interpretação aceitos
(departures from accepted interpretive methodology);
5) ativismo como julgamento orientado pelo resultado da decisão judicial (result-
oriented judging).
O que nos leva à sua advertência final:

Today, a charge of “judicial activism” standing alone means little or nothing because the
term has acquired so many distinct and even contradictory meanings. Nevertheless, when
explained carefully, the term can be a starting point for meaningful conversation about the
judicial craft, an opportunity to ask the subsidiary questions that go beyond the superficial.
This Comment is an invitation to do just that. (KMIEC, 2004, p. 1477)

II

Segundo Ackerman (2009, p. 65), “O primeiro grande tema do constitucionalismo


moderno é a democracia; o segundo é a sua limitação”. Este é o sentido maior da doutrina
da separação dos poderes do Estado no contexto das democracias contemporâneas.
Ainda que o princípio da separação dos poderes não tenha a mesma relevância de
outrora, a tradicional problemática dos controles recíprocos nas relações entre os poderes
permanece (FERRAZ, 1994).
No que diz respeito às questões eleitorais, a separação de poderes é importante
para a defesa de valores e direitos que estão na origem da democracia. Assim, a integri­
dade do processo eleitoral deve ser protegida por meio de arranjos institucionais que
desempenham a função de “reforço da representação” (ELY, 1980) e estão voltados para
a proteção de certos direitos fundamentais:

Após vencer uma eleição, a maioria legislativa pode visivelmente procurar isolar-se de
novos testes eleitorais – por meio da suspensão de eleições, da restrição da liberdade de
expressão, ou da manipulação das leis eleitorais de modo a afetar o poder das regiões de
eleitores não leais. (ACKERMAN, 2009, p. 99-100)

O método democrático de constituição de governos em sistemas democráticos


envolve a realização de eleições que sejam ao mesmo tempo competitivas e consideradas

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EDUARDO MEIRA ZAULI
DIREITO JUDICIAL E JUSTIÇA ELEITORAL: A JUDICIALIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES NO BRASIL
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confiáveis pelos diferentes atores políticos. Não por acaso, competitividade e


confiabilidade são dois aspectos fundamentais das eleições em sistemas verdadeiramente
democráticos que estiveram presentes, em graus variados, nas transições do autoritarismo
para a democracia nos processos de democratização do final do século XX.

As eleições são a maneira pela qual a democracia opera. Na terceira onda foram também
uma maneira de enfraquecer e acabar com os regimes autoritários. Foram um veículo da
democratização, bem como sua meta. A democratização foi realizada por governantes
autoritários que, por uma razão ou outra, arriscaram-se a promover eleições, e por grupos
oposicionistas que fizeram pressão em favor das eleições e delas participaram. A lição da
terceira onda é que as eleições não são apenas a vida da democracia; são também a morte
da ditadura. (HUNTINGTON, 1994, p. 174)

Um aspecto fundamental das disputas eleitorais em sistemas democráticos diz


respeito à capacidade do Estado de regular a competição eleitoral de maneira a garantir
a igualdade de chances aos diversos participantes dos processos eleitorais. Isso é crucial
do ponto de vista de se imunizar um sistema democrático contra a possibilidade de
insurgência da minoria com relação à maioria e de se garantir sua livre submissão às
decisões majoritárias. Evidentemente isso exige a adoção e o respeito às regras que
preservem as perspectivas da minoria de hoje de tornar-se maioria no dia de amanhã.
Assim, a adoção do princípio da igualdade de chances é condição para que a
minoria renuncie ao direito de resistência, tornando possível a afirmação inconteste de
um sistema de exercício legal do poder.

El Estado legislativo parlamentario de hoy, basado em la dominación de las mayorías


del momento, solo puede entregar el monopólio del ejercicio legal del poder al partido
momentaneámente mayoritario, y solo puede exigir a la minoria que renuncie al derecho
de resistência mientras permanezca efecttivamente abierta a todos la igualdad de chance
para la obtención de la maioria y mientras presente visos de verdad este presupuesto de
su principio de justicia. (SCHMITT, 1971, p. 47)

O que está em jogo é o postulado constitucional da isonomia como fundamento


do direito de igualdade de chances nas disputas eleitorais; a afirmação da igualdade de
chances como princípio constitucional que opera como um direito fundamental de todos
aqueles que participam das disputas eleitorais. Portanto, a afirmação da igualdade de
chances como princípio constitucional constitui uma expressão jurídica da neutralidade
do Estado em relação aos diferentes concorrentes em uma disputa eleitoral, tendo-se aqui
um princípio derivado de preceitos constitucionais que consagram o Estado Democrático
de Direito contemporâneo.
Ora, no âmbito das democracias contemporâneas há uma grande diversidade
de arranjos institucionais voltados para a preocupação com a integridade do processo
eleitoral. Tais arranjos têm sido captados na literatura de ciência política através do uso
da expressão “governança eleitoral”, que procura designar o conjunto de regras e ins­
ti­tui­ções que definem a competição político-eleitoral e que operam em três diferentes
níveis: 1) a formulação das regras (rule making); 2) a aplicação das regras (rule aplication);
e 3) adju­dicação das regras (rule adjucation) (MOZAFFAR; SCHEDLER, 2002, p. 7).

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
288 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Evidentemente que a governança eleitoral não garante boas eleições, isso por causa do
complexo conjunto de variáveis sociais, econômicas e políticas que pode afetar o processo, a
integridade e os resultados de eleições democráticas. Porém, boas eleições são impossíveis
sem uma efetiva governança eleitoral. (MOZAFFAR; SCHEDLER, 2002, p. 6)

Em se tratando de assegurar proteção institucional à integridade daqueles


procedimentos eleitorais sem os quais não seria possível a criação e manutenção de
sistemas políticos democráticos nas sociedades contemporâneas, devemos nos preocupar
em criar condições que nos permitam responder afirmativamente às seguintes indagações:
1) A estrutura legal permite a constituição de um organismo eleitoral independente
e imparcial?
2) A estrutura legal pressupõe e permite que o organismo eleitoral opere de ma­
neira imparcial e transparente?
3) A estrutura legal protege os membros do organismo eleitoral da destituição
arbitrária de suas funções?
4) A estrutura legal assegura a responsabilização, os poderes, as funções e as
responsabilidades do organismo eleitoral nos vários níveis em que se realizam
as eleições e institucionaliza as relações entre aqueles níveis?
5) A estrutura legal define adequadamente as relações entre o organismo eleitoral
e seus controladores externos?
6) A estrutura legal assegura um guia claro para as atividades do organismo
eleitoral e permite sua execução de modo eficiente?
7) A estrutura legal dispõe de mecanismos adequados que permitam a revisão
das decisões do organismo eleitoral?
8) A estrutura legal garante ao organismo eleitoral tempo suficiente para organizar
adequadamente as eleições?
9) A estrutura legal garante ao organismo eleitoral os recursos necessários para
desempenhar suas funções e arcar com suas responsabilidades? (IDEA, 2007,
p. 49).
Dadas as características institucionais de cada um dos modelos de governança
eleitoral utilizados nos sistemas democráticos contemporâneos, é patente o quanto a
escolha de um ou outro daqueles modelos leva à formulação de respostas que produzem
a ocorrência de diversos trade offs institucionais decorrentes do que pode ser considerado
como vantagens e desvantagens de cada um daqueles modelos do ponto de vista de
uma resposta afirmativa a cada uma daquelas indagações.
De acordo com os estudos realizados sob os auspícios do Institute for Democracy
and Electoral Assistance (IDEA), no Brasil tem-se um exemplo do chamado modelo
independente de administração das eleições (the independent model of electoral management),
no qual um ramo do Poder Judiciário brasileiro, a Justiça Eleitoral, exerce as prerrogativas
relacionadas com a aplicação das regras e com o julgamento de controvérsias de cunho
eleitoral.

The Independent Model of electoral management exists in those countries where


elections are organized and managed by an EMB [electoral management body] which is
institutionally independent and autonomous from the executive branch of government,
and which has and manages its own budget. Under the Independent Model, an EMB is
not accountable to a government ministry or department. It may be accountable to the

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EDUARDO MEIRA ZAULI
DIREITO JUDICIAL E JUSTIÇA ELEITORAL: A JUDICIALIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES NO BRASIL
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legislature, the judiciary, or the head of state. EMBs under the Independent Model may
enjoy varying degrees of financial autonomy and accountability, as well as varying levels of
performance accountability. They are composed of members who are outside the executive
while in EMB office. (IDEA, 2007, p. 7)

Com relação ao modelo independente, suas vantagens envolvem:


1) a criação de um ambiente favorável ao desenvolvimento de uma identidade
para o organismo eleitoral e sua profissionalização;
2) menor probabilidade de que esteja sujeito a restrições relativas a quem pode
envolver-se com a administração das eleições;
3) melhor planejamento e maior institucionalização das tarefas relacionadas às
eleições executadas por um organismo eleitoral independente;
4) o organismo eleitoral dispõe de controle sobre seus fundos e sobre a imple­
mentação de suas atividades;
5) a administração eleitoral tende a ser submetida a um controle unificado;
6) a legitimação do organismo eleitoral aumenta na medida em que é considerado
imparcial e não sujeito ao controle de forças políticas.
Por outro lado, suas desvantagens decorrem de:
1) o organismo eleitoral poder ser isolado da política e do processo decisório
sobre eleições;
2) o organismo eleitoral poder não dispor da influência necessária para obter os
recursos necessários à condução dos processos eleitorais;
3) a rotatividade dos membros do organismo eleitoral poder reduzir a experiência
de seus quadros e enfraquecer sua memória institucional;
4) o organismo eleitoral poder não dispor das habilidades ou experiências neces­
sárias para atuar em ambientes burocráticos e corporativos;
5) O organismo eleitoral poder ter custos mais elevados em virtude da dificuldade
de contar com o auxílio das estruturas governamentais na implementação das
eleições (IDEA, 2007, p .21).

III

São conhecidas as deficiências dos processos eleitorais no Brasil ao longo de todo


o amplo período histórico que antecede a criação da Justiça Eleitoral em 1932. Com
relação ao Império vale registrar o juízo emitido por Victor Nunes Leal:

Apesar das sucessivas reformas, as eleições no Império sempre deixaram muito a desejar.
Para julgá-las em conjunto, basta observar a feição peculiar do nosso parlamentarismo,
com a rotação dos partidos dependendo predominantemente, quando não exclusivamente,
do critério pessoal do Monarca. Na frase de Martinho Campos, “o direito de eleger
representantes da nação”, no reinado de D. Pedro II, era “a melhor e mais pensada atribuição
do poder moderador”. Nabuco de Araújo resumiu essa situação com rara felicidade no
seu repetidíssimo sorites: “O Poder Moderador pode chamar quem quiser para organizar
Ministérios; esta pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria”.
(LEAL, 1948, p. 163)

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290 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Quanto à prática eleitoral durante a República Velha, Victor Nunes Leal (1948,
p. 167) faz coro à avaliação negativa proferida por Assis Brasil por ocasião de sua
participação na Assembleia Constituinte de 1933, transcrita a seguir:

Não é verdade que, no regime que botamos abaixo com a Revolução, ninguém tinha
a certeza de se poder alistar eleitor. Ninguém. Creio que nem o próprio Presidente da
República. Ele mesmo não tinha certeza, porque, se raramente alguns votaram, havia o
preconceito de que o Presidente da República desprezava essa coisa tão insignificante,
como seja o depositar uma cédula na urna.
E peço perdão a algum que tenha feito exceção. Ninguém, pois, tinha certeza de se fazer
qualificar, como a de votar. Nem demoro esperar resposta, porque já sei que tem de ser o
silêncio. Por quê? Razões seria ocioso as estar dando. Votando, ninguém tinha a certeza de
que lhe fosse contado o voto. Os votos eram manifestados em urnas, mais urnas funerárias
do que representantes da soberania nacional; urnas que eram imediatamente abertas,
quebradas, arrombadas de qualquer forma e os próprios politiqueiros que faziam a eleição
se encarregavam de processá-la a bico de pena, etc. Ponhamos uma reticência… Uma
vez contado o voto, ninguém tinha segurança de que seu eleito havia de ser reconhecido
através de uma apuração feita dentro desta Casa e por ordem, muitas vezes, superior. É
a verdade. (ASSIS BRASIL, 1933)

O atual modelo de governança eleitoral utilizado no Brasil surgiu como parte


das mudanças institucionais realizadas no Brasil na esteira da Revolução de 1930. Com
relação às eleições, tratou-se então de restringir a participação dos poderes Legislativo
e Executivo na organização e execução dos procedimentos eleitorais através da criação
da Justiça Eleitoral.4 A partir de então, entre outras funções, o alistamento eleitoral, a
apuração dos votos e a diplomação dos eleitos tornaram-se prerrogativa dessa nova
instituição que, com a Constituição de 1934 tornou-se parte do Poder Judiciário brasileiro.5

O movimento de 30 tinha entre suas bandeiras a moralização das eleições, sumariada no


binômio cunhado por Assis Brasil, “representação e justiça”. Para isso parecia impres­
cindível afastar os poderes executivo e legislativo da administração e do controle do
processo eleitoral, e retirar das Câmaras Legislativas a prerrogativa da verificação dos
mandatos. Através dessas práticas a máquina majoritária assegurava sua perpetuação,
manipulando todas as etapas do processo eleitoral, e chegando mesmo a decapitar
mandatos oposicionistas que porventura houvessem conseguido vencer os obstáculos
próprios a cada fase do processo eleitoral. De fato, o novo Código Eleitoral, de fevereiro de
1932, além de alargar as franquias, com o voto feminino e a redução da exigência para 18
anos de idade para o alistamento como eleitor, criou uma instituição judiciária, formalmente
independente dos poderes políticos, com a finalidade de dar garantia ao voto – a Justiça
Eleitoral. (SADEK, 1995, p. 30)

4
A Justiça Eleitoral foi criada no Brasil em 24.2.1932 pelo Decreto nº 21.076/1932 (1º Código Eleitoral brasileiro).
O texto da Constituição de 1934, em seu art. 63, determinava que os juízes e tribunais eleitorais eram parte do
Poder Judiciário.
5
Durante o Período Colonial registra-se a participação da magistratura (juízes ordinários e juízes de fora) nos
processos eleitorais nas fases de qualificação dos eleitores, apuração dos votos e proclamação dos resultados.
No Império, a participação da magistratura ocorre por meio dos juízes de paz, juízes municipais e juízes de
direito. Já na 1ª República a magistratura se faz presente nos processos eleitorais nas figuras dos juízes estaduais
e federais.

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DIREITO JUDICIAL E JUSTIÇA ELEITORAL: A JUDICIALIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES NO BRASIL
291

Ainda que não tenha eliminado de vez todo e qualquer desvirtuamento dos
processos eleitorais, a atribuição à Justiça Eleitoral de poderes antes a cargo de outros
atores contribuiu para a melhoria dos índices de confiança nos resultados das eleições.

A despeito dos excessos e defraudações que podem ter ocorrido neste ou naquele lugar,
os depoimentos mais numerosos são favoráveis à experiência das leis eleitorais de 32 e 35.
Bastaria que tivessem vedado o reconhecimento às próprias câmaras para que cessassem as
mais graves acusações pelo falseamento da nossa representação política. (LEAL, 1948, p. 170)

Com relação ao período mais recente, registre-se o papel desempenhado pela


Justiça Eleitoral durante o processo de transição do autoritarismo para a democracia
nos anos 1980. Em primeiro lugar, as resoluções nºs 12.017 (27.11.84) – que derrubou o
princípio da fidelidade partidária na votação no âmbito do Colégio Eleitoral que elegeria
o primeiro presidente civil depois do ciclo de governos militares que se iniciou em 1964
– e 12.028 (4.12.84) – que indeferiu um pedido do situacionista Partido Democrático
Social (PDS) de arquivamento pelo Tribunal de cópia da ata da reunião de seu Diretório
Nacional, na qual fora estabelecida diretriz quanto à obrigatoriedade do voto, pelos
membros do Colégio Eleitoral, no candidato escolhido pela convenção nacional do
partido – tornaram possível o voto de representantes do PDS no candidato oposicionista
à Presidência da República, Tancredo Neves.
Outro episódio marcante ocorreu cinco anos depois, por ocasião da disputa
eleitoral pela Presidência da República em 1989. A apenas quinze dias da realização das
eleições, o Partido Municipalista Brasileiro (PMB) requereu o registro da candidatura
de Silvio Santos à Presidência. Em julgamento ocorrido em 9.11.89 o Tribunal Superior
Eleitoral (TSE) declarou extintos os efeitos do registro provisório do PMB, o que lhe
impossibilitaria de indicar candidatos às eleições. Adicionalmente, acompanhou parecer
da Procuradoria-Geral Eleitoral e indeferiu a candidatura de Silvio Santos em virtude
de sua condição de dirigente de fato de uma empresa concessionária de serviço público
nos seis meses anteriores ao pleito (SADEK, 1990; 1995).
Assim, segundo Taylor:

Não é exagero afirmar que a Justiça Eleitoral foi uma das instituições mais relevantes em
termos de providenciar as garantias necessárias para uma transição estável, tanto nas
eleições indiretas de 1985, quanto nas primeiras eleições diretas de 1989, episódio no qual
a instituição foi diretamente responsável pela implementação e o julgamento dos critérios
para o registro de novos partidos políticos e candidatos aos diversos níveis de governo.
(TAYLOR, 2006, p. 147)

Segundo o art. 118 da Constituição de 1988, são órgãos da Justiça Eleitoral o TSE,
os tribunais regionais eleitorais (TREs), os juízes eleitorais e as juntas eleitorais.6 Com

6
Segundo o TSE, a Junta Eleitoral é um órgão colegiado provisório “[...] constituído por dois ou quatro cidadãos
e um juiz de direito, seu presidente, que nomeará quantos escrutinadores e auxiliares forem necessários para
atender à boa marcha dos trabalhos. Os nomes das pessoas indicadas para compor as juntas são publicados
em tempo hábil para que qualquer partido político possa, em petição fundamento, impugnar as indicações.
Compete à junta eleitoral, que deve ser nomeada pelo TRE, sessenta dias antes das eleições, apurar, no prazo
de dez dias, as eleições realizadas nas zonas eleitorais sob a sua jurisdição, expedir os boletins de apuração e
diplomar os eleitos para cargos municipais” (BRASIL, 2010b).

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292 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

a exceção das juntas eleitorais, todos os demais órgãos da Justiça Eleitoral exibem um
perfil especializado. No padrão institucional brasileiro de governança eleitoral o TSE,
última instância decisória da Justiça Eleitoral no Brasil, é uma instituição independente
e autônoma com relação aos poderes Executivo e Legislativo cujas decisões encontram-
se sob a jurisdição do Supremo Tribunal Federal (STF), o órgão de cúpula do Poder
Judiciário brasileiro.7
O TSE, instituição responsável pela administração dos processos eleitorais no
Brasil, é composto por sete membros: três juízes eleitos entre os membros do STF; dois
juízes eleitos entre os membros do Superior Tribunal de Justiça (STJ); e dois juízes
nomeados pelo presidente da República a partir de uma lista de seis advogados indicados
pelo STF.8 Perante o TSE atua ainda o procurador-geral eleitoral, representante do
Ministério Público Eleitoral.9
Os TREs também são compostos por sete membros: dois desembargadores do
Tribunal de Justiça do estado em cuja capital esteja situado o TRE e dois juízes de direito
estaduais selecionados pelo Tribunal de Justiça; dois juízes escolhidos entre advogados
pelo Tribunal de Justiça e nomeados pelo presidente da República; e um juiz federal
escolhido pelo Tribunal Regional Federal com jurisdição sobre o estado em cuja capital
estiver situado o TRE. Cada TRE é composto ainda por um procurador regional eleitoral,
representante do Ministério Público Eleitoral.
Já os juízes eleitorais (1 por zona eleitoral) são selecionados pelo TRE entre os
juízes estaduais. Todos os juízes de tribunais eleitorais servem por um período mínimo
de dois anos e máximo de dois biênios consecutivos.
Tais regras consagram, formalmente, a participação de dois poderes (Executivo
e Judiciário) no recrutamento dos membros do TSE e dos TREs, alijando o Poder
Legislativo de qualquer participação consagrada constitucionalmente na composição
da Justiça Eleitoral.10

IV

Sendo parte do conjunto de regras e instituições que organizam a competição


eleitoral no Brasil, o instituto da consulta aos tribunais eleitorais é um aspecto de nosso
modelo de governança eleitoral que se tem mostrado particularmente relevante para a
ocorrência e o entendimento da judicialização das disputas eleitorais no Brasil.

7
Nos termos da Constituição de 1988, “São irrecorríveis as decisões do Tribunal Superior Eleitoral, salvo as que
contrariarem esta Constituição e as denegatórias de ‘habeas-corpus’ ou mandado de segurança” (CR, art. 121,
§3º) (BRASIL, 1988).
8
A independência e autonomia do TSE perante o Poder Executivo não sofrem quaisquer relativizações decorrentes
da prerrogativa presidencial de nomeação de dois de seus membros.
9
Apesar da grande ascendência do STF sobre o TSE, já que três dos ministros do TSE têm origem no STF e
dois deles são nomeados pelo presidente da República a partir de indicações do STF, as relações entre os dois
tribunais está longe de confirmar a tese de que o TSE não passa de um órgão do STF para matérias eleitorais.
Um exemplo de tal avaliação pode ser encontrado na divergência entre os dois tribunais acerca da validade da
Lei Complementar nº 135/10 (Lei da Ficha Limpa) nas eleições gerais de 2010. Enquanto o TSE, por cinco votos a
dois, entendeu que a referida lei seria aplicável àquelas eleições; o STF decidiu por seis votos contra cinco que a
Lei da Ficha Limpa só poderia ser aplicada a partir das eleições de 2012.
10
Cf. Constituição da República, arts. 118 a 121 (BRASIL, 1988).

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EDUARDO MEIRA ZAULI
DIREITO JUDICIAL E JUSTIÇA ELEITORAL: A JUDICIALIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES NO BRASIL
293

A propósito, entre as competências do TSE elencadas pelo Código Eleitoral11 está


aquela competência privativa prevista em seu art. 23, inc. XII: “responder, sobre matéria
eleitoral, às consultas que lhe forem feitas em tese por autoridade com jurisdição federal
ou órgão nacional de partido político”.12
Nos termos do Glossário eleitoral brasileiro, entende-se a consulta como um “Tipo
de processo em que o Tribunal Superior Eleitoral e os tribunais regionais eleitorais res­
pondem a questionamentos formulados em tese por pessoas legitimadas sobre matéria
eleitoral” (BRASIL, [s.d.]). Assim, enquanto tais e diferentemente das ações judiciais
(com a exceção das ações diretas de inconstitucionalidade e das ações declaratórias de
constitucionalidade), as consultas dispensam a existência e a identificação das partes
de um litígio.
As respostas formuladas pelo TSE às consultas que lhes são dirigidas materializam-
se através de instruções que informam as resoluções daquele tribunal, sendo parte,
portanto, das prerrogativas de natureza normativa daquele órgão relativas à organização
dos processos eleitorais.13
Um aspecto importante da atuação recente da Justiça Eleitoral brasileira diz
respeito à reinterpretação de determinados dispositivos constitucionais relacionados à
dinâmica eleitoral, configurando-se aquilo que se denomina de mutação constitucional.14
A propósito, recorde-se duas ocasiões em que a Justiça Eleitoral produziu alterações
nas regras eleitorais a partir de processos de reinterpretação do texto constitucional em
resposta a consultas dirigidas ao TSE: em 2001, por ocasião da verticalização das alianças
eleitorais; e em 2007, quando a Justiça Eleitoral firmou um novo entendimento acerca
da titularidade dos mandatos eletivos e da fidelidade partidária.

11
O Código Eleitoral de 1965 foi recepcionado pela Constituição de 1988 como lei de natureza complementar de
maneira a atender ao disposto no art. 121 do texto constitucional: “Lei complementar disporá sobre a organização
e a competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais” (CR, art. 121) (BRASIL, 1988).
12
Na íntegra: “Art. 23 - Compete, ainda, privativamente, ao Tribunal Superior: I - elaborar o seu regimento interno;
II - organizar a sua Secretaria e a Corregedoria Geral, propondo ao Congresso Nacional a criação ou extinção
dos cargos administrativos e a fixação dos respectivos vencimentos, provendo-os na forma da lei; III - conceder
aos seus membros licença e férias assim como afastamento do exercício dos cargos efetivos; IV - aprovar o afas-
tamento do exercício dos cargos efetivos dos juízes dos Tribunais Regionais Eleitorais; V - propor a criação de
Tribunal Regional na sede de qualquer dos Territórios; VI - propor ao Poder Legislativo o aumento do número
dos juízes de qualquer Tribunal Eleitoral, indicando a forma desse aumento; VII - fixar as datas para as eleições
de Presidente e Vice-Presidente da República, senadores e deputados federais, quando não o tiverem sido por
lei: VIII - aprovar a divisão dos Estados em zonas eleitorais ou a criação de novas zonas; IX - expedir as instruções
que julgar convenientes à execução deste Código; X - fixar a diária do Corregedor Geral, dos Corregedores Re-
gionais e auxiliares em diligência fora da sede; XI - enviar ao Presidente da República a lista tríplice organizada
pelos Tribunais de Justiça nos termos do Art. 25; XII - responder, sobre matéria eleitoral, às consultas que lhe
forem feitas em tese por autoridade com jurisdição federal ou órgão nacional de partido político; XIII - autorizar
a contagem dos votos pelas mesas receptoras nos Estados em que essa providência for solicitada pelo Tribunal
Regional respectivo; XIV - requisitar a força federal necessária ao cumprimento da lei, de suas próprias decisões
ou das decisões dos Tribunais Regionais que o solicitarem, e para garantir a votação e a apuração; XV - organizar
e divulgar a Súmula de sua jurisprudência; XVI - requisitar funcionários da União e do Distrito Federal quando
o exigir o acúmulo ocasional do serviço de sua Secretaria; XVII - publicar um boletim eleitoral; XVIII - tomar
quaisquer outras providências que julgar convenientes à execução da legislação eleitoral” (BRASIL, 1965).
13
Uma instrução consiste em um “Ato normativo editado pelo Tribunal, sob a forma de resolução, para regu­
lamentar e orientar a execução da legislação eleitoral e partidária. Designa também a classe do processo em que
tal ato é expedido”. Por resolução entende-se o “Título sob o qual são lavradas as decisões do Tribunal de caráter
administrativo, contencioso-administrativo ou normativo” (BRASIL, [s.d.]).
14
Por mutações constitucionais entende-se “[...] as alterações semânticas dos preceitos da Constituição, em
decorrência de modificações no prisma histórico-social ou fático-axiológico em que se concretiza a sua aplicação
[...]” (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 130).

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294 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Nestas consultas, é patente o papel político dos juízes eleitorais quando o TSE exerce
uma competência análoga à função de policy review em larga medida desempenhada por
tribunais constitucionais no exercício do controle de constitucionalidade. Tendo em vista
diferenciar tal atividade de produção de normas daquela desempenhada pelos membros
do Poder Legislativo, pode-se qualificar as resoluções do TSE como de caráter quase-
legislativo, assegurando-se aos juízes eleitorais um campo de escolhas significativo.
Aqui, aplicam-se as considerações de Michele Taruffo sobre a atividade judicial:

En esta actividad de interpretación, el juez lleva a cabo una función que es muy creativa
porque no se trata solamente de descifrar lo que la norma dice desde un punto de vista
literal, sino de atribuirle, una y otra vez, significados diferentes y variables en los que se
reflejan valores morales, necesidades sociales, criterios de justicia de los que el juez es
portador al realizar su función. El aspecto creativo de esta función es particularmente
evidente en los casos – que son cada vez más frecuentes – en los que las normas se formula
en términos precisos y rigurosos pero incluyen términos vagos, conceptos indeterminados
o cláusulas generales. De hecho, en estos casos, el legislador delega al juez el poder y la
carga de decidir la policy que el propio legislador no ha querido o no ha podido elegir
al crear la norma. En dichos casos se habla de supletoriedad del legislador por parte
del juez, precisamente para subrayar que el juez debe formular decisiones políticas que
corresponderían al legislador si este hubiera sido capaz de realizar adecuadamente su
función institucional. Tenemos, pues, que son muchos los aspectos por los que el juez que
interpreta el derecho desempeña directamente un papel de decisor político.
[...] En esta operación el juez dispone de un poder discrecional muy amplio. No se trata de
un poder arbitrario porque la decisión debe ser racionalizada y controlable y debe seguir
cânones hermenéuticos y estándares valorativos que el juez debe identificar y enunciar. Sin
embargo, es claro que el campo de elección política (en sentido amplio) de las decisiones
que el juez lleva a cabo es muy amplio y diversificado. (TARUFFO, 2005, p. 27-28)

Com relação à verticalização das alianças partidárias, em agosto de 2001 os


deputados federais Miro Teixeira, José Roberto Batochio, Fernando Coruja e Pompeu
de Mattos (PDT) questionaram o TSE acerca da interpretação do caput do art. 6º da Lei
Federal nº 9.504/97 que tem a seguinte redação:

É facultado aos partidos políticos, dentro da mesma circunscrição, celebrar coligações para
eleição majoritária, proporcional, ou para ambas, podendo, neste último caso, formar-se
mais de uma coligação para a eleição proporcional dentre os partidos que integram a
coligação para o pleito majoritário.

Para tanto, formularam a Consulta nº 715 perante o TSE:

Pode um determinado partido político (partido A) celebrar coligação, para eleição de


Presidente da República, com alguns outros partidos (partido B, C e D) e, ao mesmo
tempo, celebrar coligação com terceiros partidos (E, F e G, que também possuem candidato
à Presidência da República), visando à eleição de Governador de Estado da Federação?

Tal consulta foi respondida negativamente pelo Tribunal por meio da Resolução
nº 21.002/2002:

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EDUARDO MEIRA ZAULI
DIREITO JUDICIAL E JUSTIÇA ELEITORAL: A JUDICIALIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES NO BRASIL
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Os partidos políticos que ajustarem coligação para eleição de presidente da República


não poderão formar coligações para eleição de governador de estado ou Distrito Federal,
senador, deputado federal e deputado estadual ou distrital com outros partidos políticos
que tenham, isoladamente ou em aliança diversa, lançado candidato à eleição presidencial
(Revista de Jurisprudência do TSE, Volume 13, Tomo 2, p. 389).

Segundo o TSE, o art. 6º da Lei nº 9.504/97 determinaria que os partidos políticos


que realizassem coligação para eleição de Presidente da República estariam proibidos de
formar coligações outras para a eleição de governadores de estado, senador, deputado
federal, deputado estadual e deputado distrital, coligações essas que não repetissem
a coligação formada para a eleição presidencial, em virtude do caráter nacional dos
partidos políticos. O fundamento constitucional de tal decisão foi uma interpretação
do art. 17, inc. I, da Constituição de 1988:

Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados
a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais
da pessoa humana e observados os seguintes preceitos:
I - caráter nacional; [...].

Posteriormente, em 2002 o TSE proferiu uma segunda decisão permitindo que o


partido que não lançar um candidato próprio à Presidência nem apoiar um candidato
de outra legenda pode se coligar com qualquer outro partido nos estados, mas não pode
compor com dois partidos que são adversários na eleição presidencial.
Portanto a partir de uma consulta, o TSE estabeleceu como regra eleitoral aquilo
que veio a ser chamado de verticalização das coligações eleitorais. Ou seja, uma nova
interpretação do texto constitucional projeta-se na interpretação do art. 6º da Lei
nº 9.504/97, definindo-se a obrigatoriedade dos partidos de se coligarem nos estados
seguindo a aliança feita para a eleição de presidente da República.15
Com relação à titularidade dos mandatos eletivos e à fidelidade partidária, em
março de 2007, o Partido da Frente Liberal (atualmente Democratas) formulou em tese
ao TSE a Consulta nº 1.398/DF nos seguintes termos:

Considerando o teor do art. 108 da Lei nº 4.737/65 (Código Eleitoral), que estabelece que a
eleição dos candidatos a cargos proporcionais é resultado do quociente eleitoral apurado
entre os diversos partidos e coligações envolvidas no certame democrático. Considerando
que é condição constitucional de elegibilidade a filiação partidária, posta para indicar ao
eleitor o vínculo político e ideológico dos candidatos. Considerando ainda que, também
o cálculo das médias, é decorrente do resultado dos votos válidos atribuídos aos partidos
e coligações.
INDAGA-SE:
Os partidos e coligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral
proporcional, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do
candidato eleito por um partido para outra legenda?

15
Tal decisão do TSE motivou a aprovação da Emenda Constitucional nº 52, de 8.3.2006, alterando o §1º do art. 17
da Constituição que passou a ter a seguinte redação: “§1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para
definir sua estrutura interna, organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de
suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual,
distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária”.

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296 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Respondendo a essa consulta, o TSE, em 27.3.2007, por seis votos a um, formulou
a Resolução nº 22.526 decidindo que as vagas parlamentares obtidas pelo sistema
proporcional (vereadores, deputados estaduais, distritais e federais) pertencem aos
partidos políticos ou às coligações e não aos candidatos eleitos. Desse modo, o partido
político interessado pode pedir, perante a Justiça Eleitoral, a decretação da perda de
cargo eletivo em decorrência de desfiliação partidária sem justa causa.16
O relator da matéria no TSE, Ministro César Asfor Rocha, justificou assim o seu
voto:

Ao meu sentir, o mandato parlamentar pertence, realmente, ao Partido Político, pois é à


sua legenda que são atribuídos os votos dos eleitores, devendo-se entender como indevida
e mesmo ilegítima, a afirmação de que o mandato pertence ao eleito, inclusive porque
toda a condução ideológica, estratégica, propagandística e financeira é encargo do Partido
Político, sob a vigilância da Justiça Eleitoral, à qual deve prestar contas (ar. 17, III, da CF).
(BRASIL, 2007c)

O ministro concluiu, então: “Os partidos políticos e as coligações conservam o


direito à vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando houver pedido de
cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para
outra legenda” (BRASIL, 2007c). Segundo o relator:

É da maior relevância assinalar que os Partidos Políticos têm no Brasil o status de entidade
constitucional (Art. 17 da CF), de forma que se pode falar [...] que as modernas democracias
de certa forma secundarizam, em benefício dos Partidos Políticos, a participação popular
direta. (BRASIL, 2007c)

O ministro relator ainda fez referência à importância dos votos no partido/


coligação para que o candidato alcance o coeficiente eleitoral e às estatísticas de migração
partidária para justificar sua posição.
De acordo com o ministro em questão, o vínculo partidário é a identidade política
do candidato. Candidato e candidatura não existem fora do partido político: “Não há
dúvida nenhuma, quer no plano jurídico, quer no plano prático, que o vínculo de um
candidato ao partido pelo qual se registra e disputa uma eleição é o mais forte, se não
o único elemento de sua identidade política” (BRASIL, 2007c).
Alguns meses depois de emitida a resposta à Consulta nº 1.398/DF, o Plenário
do TSE decidiu por meio da Resolução nº 22.563, de 1º.8.2007, em resposta à Consulta
nº 1.423/DF relatada pelo Ministro José Augusto Delgado, que a troca de partido, ainda
que para outro da mesma coligação, implica a perda de mandato do parlamentar.
Em outubro de 2007 o TSE publicou a Resolução de nº 22.600, em resposta à
Consulta nº 1.407 formulada pelo Deputado Federal Nilson Mourão (PT/AC) e que teve
como relator o Ministro Carlos Ayres Britto. Tal resolução explicitava que o Plenário
do TSE decidira, por unanimidade, que a fidelidade partidária também valeria para
os cargos majoritários – prefeitos, governadores, presidente da República e senadores.

16
A troca de partido motivada por “justa causa” deve ser comprovada pelo parlamentar e se aplica em quatro
casos: incorporação ou fusão do partido; criação de novo partido; mudança substancial ou desvio reiterado do
programa partidário e grave discriminação pessoal.

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EDUARDO MEIRA ZAULI
DIREITO JUDICIAL E JUSTIÇA ELEITORAL: A JUDICIALIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES NO BRASIL
297

De acordo com o voto do ministro relator da matéria, Carlos Ayres Britto:

[...] a essa função de sujeito processual ativo que é ínsita aos partidos políticos, a Constituição
ajuntou a de intermediário entre o corpo de eleitores de uma dada circunscrição e todo
e qualquer candidato a cargo de representação popular. O partido enquanto necessária
ponte. Elo imprescindível na corrente que vai do eleitor ao eleito. É como está no inciso
V do §3º do art. 14, que torna ‘a filiação partidária’ uma das explícitas “condições de
legibilidade, na forma da lei”.
Ora bem, a essa obrigatoriedade de filiação partidária só pode corresponder à proibição
de candidatura avulsa. Candidatura zumbi, ou exclusivamente pessoal, pois a intercalação
partidária se faz em caráter absoluto ou sem a menor exceção. O que revela a inserção
dos partidos políticos na compostura e no funcionamento do sistema representativo, na
medida em que somente eles é que podem selecionar e emprestar suas legendas para todo
e qualquer candidato a posto político-eletivo.
[...] Ninguém chega ao poder estatal de caráter eletivo-popular sem a formal participação
de uma dada agremiação política. O que traduz a formação de um vínculo necessário entre
os partidos políticos e o nosso regime representativo. (BRASIL, 2007d)

Ainda em outubro de 2007 o STF ratificou aquelas resoluções do TSE. Diante da


recusa do presidente da Câmara dos Deputados, Deputado Arlindo Chinaglia (PT),
em declarar vagos os cargos ocupados pelos que tinham mudado de legenda depois da
Resolução nº 1.398 do TSE, PSDB, DEM e PPS ajuizaram mandados de segurança no
STF pedindo que essa corte confirmasse o entendimento do TSE acerca dos mandatos
parlamentares.
Assim, as duas resoluções do TSE acerca do instituto da fidelidade parti­dária
apoiam-se em interpretações de diferentes dispositivos do texto constitucional,
configurando-se também aqui o processo de constitucionalização do Código Eleitoral
semelhante àquele verificado por ocasião da decisão acerca da verticalização das
coligações eleitorais.
Noutras circunstâncias, a introdução de inovações nas regras eleitorais pela Justiça
Eleitoral ocorre independentemente de quaisquer reinterpretações constitucionais,
ou seja, outra fonte explicativa do papel saliente desempenhado pela Justiça Eleitoral
reside em seu poder normativo sobre os processos eleitorais no exame da validade de
normas produzidas pelo Poder Legislativo. É o caso do reconhecimento da validade da
Lei Complementar nº 135/2010, a Lei da Ficha Limpa.
Em 18.5.2010 foi protocolada pelo Senador Arthur Virgílio (PSDB) junto ao TSE
consulta (Consulta nº 1120-26.2010.6.00.0000) nos seguintes termos: “Uma lei eleitoral
que disponha sobre inelegibilidades e que tenha a sua entrada em vigor antes do prazo
de 5 de julho, poderá ser efetivamente aplicada para as eleições gerais de 2010?”.17
Tratava-se de saber se uma lei complementar sobre inelegibilidades publicada no
Diário Oficial da União no dia 7.6.2010 violaria o art. 16 da Constituição de 1988:

A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se
aplicando à eleição que ocorra até 1 (um) ano da data de sua vigência. (BRASIL, 1988, art. 16)

17
A Lei nº 9.504, de 30.9.1997 (Lei das Eleições) estabelece em seu art. 11 que “Os partidos e coligações solicitarão
à Justiça Eleitoral o registro de seus candidatos até as dezenove horas do dia 5 de julho do ano em que se
realizarem as eleições” (BRASIL, 1997).

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298 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Com base nas concepções de processo eleitoral presentes em obras de dois juristas
citados em seu relatório18 e em um voto proferido pelo Ministro Cezar Peluso na ADI
nº 3.685/DF, o Ministro Relator Hamilton Carvalhido entendeu:

No caso em tela a lei foi publicada antes das convenções partidárias, circunstância que
não afetaria o andamento da eleição vindoura, mantendo-se a segurança jurídica entre os
partidos, candidatos e eleitores.
Diante dessas considerações, se a lei entrar em vigor antes das convenções partidárias, não
há falar em alteração no processo eleitoral. (BRASIL, 2010b)

Em seguida o ministro relator mencionou doutrinadores e precedentes judiciais


para estabelecer uma distinção entre processo eleitoral e norma eleitoral material:

O que distingue fundamentalmente direito material e direito processual é que este cuida
das relações dos sujeitos processuais, da posição de cada um deles no processo, da forma
de se proceder aos atos deste – sem nada dizer quanto ao bem da vida que é objeto do
interesse primário das pessoas (o que entra na órbita do direito substancial). (CINTRA;
GRINOVER; DINAMARCO, 2005, p. 42)

A propósito da distinção entre os aspectos instrumentais e substantivos do direito


eleitoral, o ministro relator citou trechos de voto proferido pelo Ministro Moreira Alves
nos autos da ADIN nº 354/1990.

O que é certo é que processo eleitoral é expressão que não abarca, por mais amplo que seja
o sentido que se lhe dê, todo o direito eleitoral, mas apenas o conjunto de atos que estão
diretamente ligados às eleições. [...]
A meu ver, e desde que processo eleitoral não se confunde com direito eleitoral, parte que
é dele, deve-se entender aquela expressão não como abrangente de todas as normas que
possam refletir-se direta ou indiretamente na série de atos necessários ao funcionamento
das eleições por meio do sufrágio universal – o que constitui o conteúdo do direito eleitoral
–, mas, sim, das normas instrumentais diretamente ligadas às eleições [...]
Note-se, porém, que são apenas as normas instrumentais relativas às eleições, e não as
normas materiais que a elas de alguma forma se prendam.
Se a Constituição pretendesse chegar a tanto não teria usado da expressão mais restrita
que é “processo eleitoral”. (BRASIL, 2010b)

Mencionou ainda o voto do ministro relator da Consulta nº 111.73, Luiz Octávio


Gallotti, consubstanciado na Resolução nº 16.551 de 31.5.1990, no sentido de que
“o estabelecimento, por lei complementar, de outros casos de inelegibilidade, além dos

18
“[...] inicia-se o processo eleitoral com a escolha pelos partidos políticos dos seus pré-candidatos. Deve-se
entender por processo eleitoral os atos que se refletem, ou de alguma forma se projetam no pleito eleitoral,
abrangendo as coligações, convenções, registro de candidatos, propaganda política eleitoral, votação, apuração
e diplomação” (RAMAYANA, 2009. p. 45). “[...] o processo eleitoral desenrola-se em três fases: ‘(1) apresentação
das candidaturas; (2) organização e realização do escrutínio; (3) contencioso eleitoral’. A primeira delas
‘compreende os atos e operações de designação de candidatos em cada partido, do seu registro no órgão da
Justiça Eleitoral competente e da propaganda eleitoral que se destina a tornar conhecidos o pensamento, o
programa e os objetivos dos candidatos’” (SILVA, 2000, p. 381).

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DIREITO JUDICIAL E JUSTIÇA ELEITORAL: A JUDICIALIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES NO BRASIL
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diretamente previstos na Constituição, é exigido pelo art. 14, §9º, desta e não configura
alteração do processo eleitoral, vedada pelo art. 16 da mesma Carta”.19
Assim, concluiu o ministro relator Hamilton Carvalhido que “[...] as inovações
trazidas pela Lei Complementar nº 135/2010 têm a natureza de norma eleitoral material
e em nada se identificam com as do processo eleitoral, deixando de incidir, destarte, o
óbice esposado no dispositivo constitucional” (BRASIL, 2010b).
Ao final de seu voto o ministro relator apontou para o que se pode considerar o
aspecto garantidor da Lei Complementar nº 135/2010.

Trata-se de norma restritiva de direitos fundamentais a do artigo 14, §9º da Constituição


Federal, não visando apenas assegurar a normalidade e a legitimidade das eleições contra
a influência do poder econômico ou o abuso do exercício da função, cargo ou emprego na
administração direta ou indireta, mas também proteger a probidade administrativa para
o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato.
Vida pregressa, no sistema de direito positivo vigente, abrange antecedentes sociais e
penais, sendo, por isso mesmo, de consideração necessária a presunção de não culpabilidade
insculpida no artigo 5º, inciso LVII, também da Constituição Federal, enquanto diz com o
alcance da norma constante do artigo 14, §9º da Lei Fundamental.
A garantia da presunção de não culpabilidade protege, como direito fundamental, o
universo de direitos do cidadão, e a norma do artigo 14, §9º, da Constituição Federal
restringe o direito fundamental à elegibilidade, em obséquio da probidade administrativa
para o exercício do mandato, em função da vida pregressa do candidato.
A regra política visa acima de tudo ao futuro, função eminentemente protetiva ou, em
melhor termo, cautelar, alcançando restritivamente também a meu ver, por isso mesmo,
a garantia da presunção da não culpabilidade, impondo-se a ponderação de valores para
o estabelecimento dos limites resultantes à norma de inelegibilidade.
Fê-lo o legislador, ao editar a Lei Complementar nº 135/2010, com o menor sacrifício
possível da presunção de não culpabilidade, ao ponderar os valores protegidos, dando
eficácia apenas aos antecedentes já consolidados em julgamento colegiado, sujeitando-os,
ainda, à suspensão cautelar, quanto à inelegibilidade. (BRASIL, 2010b)

Assim, ao ratificar a aprovação a Lei da Ficha Limpa pelo Congresso Nacional, o


TSE, ainda que tenha ratificado uma decisão majoritária do Poder Legislativo de editar
aquela lei complementar, sancionou a alteração das regras eleitorais a serem aplicadas
já nas eleições de 2010.

Ao longo das páginas precedentes procurei demonstrar o modo pelo qual o TSE
atuou no sentido de promover alterações nas regras eleitorais brasileiras quando decidiu
pela verticalização das alianças eleitorais; acerca da titularidade dos mandatos eletivos
e da fidelidade partidária; e pela validade da aplicação da Lei da Ficha Limpa para as
eleições de 2010.

19
Consulta nº 11.173 – Resolução nº 16.551 de 31.5.1990. Rel. Min. Luiz Otávio P. E. Albuquerque Gallotti.

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300 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Ainda que apenas a decisão relativa à verticalização das alianças eleitorais tenha
suscitado uma reação do Congresso Nacional no sentido da aprovação de uma emenda
constitucional (Emenda nº 52, de 8.3.2006) contrariando a decisão do TSE, aquelas três
iniciativas do Tribunal abordadas anteriormente somadas a outras como a definição
do número de vereadores nos municípios brasileiros (Resolução nº 21.702 de 2.4.2004)
e a redefinição dos critérios de repasse dos recursos do fundo partidário aos partidos
políticos (2007) vêm suscitando discussões acerca da posição institucional da Justiça
Eleitoral no sistema democrático brasileiro.20
Como visto antes, o pano de fundo destas discussões é o modelo de governança
eleitoral adotado no Brasil que atribui à Justiça Eleitoral prerrogativas jurisdicionais
sobre todos os processos eleitorais na democracia brasileira. Exatamente por isso o
espectro de um governo dos juízes tem contribuído para a ocorrência de manifestações
contrárias à manutenção do atual modelo de governança eleitoral.
Tal modelo de governança eleitoral assenta-se no pressuposto de que cabe à
Justiça Eleitoral a defesa da integridade dos processos eleitorais no âmbito de nosso
Estado Democrático de Direito. E a defesa dessa integridade significa, em nossa ordem
constitucional, a defesa da igualdade de chances entre os participantes dos processos
eleitorais.
Em certa medida, algo semelhante à crítica ao poder de revisão judicial vem ocor­
rendo com relação à participação da Justiça Eleitoral nos processos eleitorais no Brasil. De
fato, a jurisdição constitucional tem sido objeto de um amplo questionamento acerca de
sua legitimidade em sistemas democráticos desde a “invenção” da revisão judicial pela
Suprema Corte norte-americana no célebre Marbury v. Madison (1803). Desde então,
o estatuto da justiça constitucional nos sistemas democráticos contemporâneos vem
sendo alvo de considerações e julgamentos diversos diante daquilo que Alexander Bickel
(1962) de forma lapidar definiu como “a dificuldade contramajoritária”: no contexto de
sistemas democráticos representativos, por que submeter ao controle judicial decisões
proferidas por representantes populares eleitos? Em se tratando de um modelo de
governança eleitoral no qual a Justiça Eleitoral é responsável tanto pela aplicação das
regras eleitorais quanto pelo julgamento de controvérsias de cunho eleitoral, alguns
críticos perguntam se não estaria a Justiça Eleitoral, através de suas decisões, usurpando
funções de natureza legislativa ao regulamentar os processos eleitorais e julgar com base
em seus próprios regulamentos controvérsias de natureza eleitoral.
Note-se que a questão da legitimidade das instituições judiciais é particularmente
importante em sistemas políticos democráticos nos quais a separação de poderes está
associada à atribuição ao Poder Judiciário de algum poder de revisão de decisões
proferidas em âmbito parlamentar. Na falta de uma legitimação democrática proveniente
da manifestação direta dos cidadãos-eleitores busca-se nas instituições judiciais algo

20
Por meio da Emenda Constitucional nº 58 de 23.9.2009, o Congresso Nacional alterou o inc. IV do art. 29 da
Constituição aumentando o número de vereadores nos municípios brasileiros. Quanto aos recursos do Fundo
Partidário, depois da Resolução nº 22.506 de 6.2.2007, na qual o TSE promoveu uma distribuição mais igualitária
de recursos entre os partidos políticos, foi aprovada a Lei nº 11.459 alterando a Lei Orgânica dos Partidos
(Lei nº 9.096, de 19.9.1995), estabelecendo: “5% (cinco por cento) do total do Fundo Partidário serão destacados
para entrega, em partes iguais, a todos os partidos que tenham seus estatutos registrados no Tribunal Superior
Eleitoral e 95% (noventa e cinco por cento) do total do Fundo Partidário serão distribuídos a eles na proporção
dos votos obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados” (Lei nº 11.459, art. 41-A).

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EDUARDO MEIRA ZAULI
DIREITO JUDICIAL E JUSTIÇA ELEITORAL: A JUDICIALIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES NO BRASIL
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que lhes credenciem como agentes decisórios. Sob essa ótica, o déficit democrático das
instituições judiciais poderia ser compensado pelo caráter fundamentado de suas deci­
sões proferidas em um ambiente institucional deliberativo (FEREJOHN; PASQUINO,
2009).
Tal questionamento da legitimidade do controle jurisdicional das eleições no Brasil
permite que se indague a respeito de eventuais condições institucionais da democracia
brasileira que pudessem operar como justificativas para a adoção de um modelo de
governança eleitoral que assegura ao ramo eleitoral do Poder Judiciário a prerrogativa
de até mesmo contrariar decisões majoritárias produzidas em âmbito legislativo.
Sugiro que se proceda de acordo com o proposto por Waldron (2006) em sua
crítica ao judicial review. Fixadas algumas condições indispensáveis ao funcionamento
adequado de um sistema democrático, qualquer violação daquelas condições pode
ensejar uma reflexão acerca da plausibilidade do judicial review. Transposto para o objeto
de análise nesse artigo, o argumento assumiria a seguinte forma: qualquer violação das
condições institucionais indispensáveis à garantia da integridade dos processos eleitorais
poderia, sob certas condições, legitimar o modelo de governança eleitoral adotado na
democracia brasileira.
Segundo Waldron (2006, p. 1360):

We are to imagine a society with (1) democratic institutions in reasonably good working
order, including a representative legislature elected on the basis of universal adult
suffrage; (2) a set of judicial institutions, again in reasonably good order, set up on a
nonrepresentative basis to hear individual lawsuits, settle disputes, and uphold the rule of
law; (3) a commitment on the part of most members of the society and most of its officials
to the idea of individual and minority rights; and (4) persisting, substantial, and good faith
disagreement about rights (i.e., about what the commitment to rights actually amounts
to and what its implications are) among the members of the society who are committed
to the idea of rights.

Atente-se para a perspectiva de que o caráter condicional da transposição do argu­


mento de Waldron para o exame da posição institucional da Justiça Eleitoral brasileira
implica que estejamos atentos para a possibilidade de que o modelo de governança
eleitoral adotado no Brasil pode não se constituir em solução adequada para a correção
de eventuais falhas em nossas instituições legislativas e para a compensação de um
eventual déficit em nosso compromisso com a ideia de que os direitos devem ser levados
a sério. É a conclusão à qual chegaríamos caso verificássemos que a instituição da Justiça
Eleitoral é tão corrupta e preconceituosa quanto o Poder Legislativo.
Enfim, devemos nos perguntar a respeito das vantagens comparativas de uma
instituição como a Justiça Eleitoral, especialmente frente ao parlamento, na produção
das normas que regulam as disputas eleitorais. Estariam nossos juízes eleitorais melhor
preparados para fazê-lo? Fariam parte de um ambiente institucional mais adequado à
tomada de decisões envolvendo controvérsias de direitos? O futuro da Justiça Eleitoral
no Brasil e seu grau de legitimidade dependerão inevitavelmente das respostas que
formularmos para as questões anteriores.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
302 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Referências
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EDUARDO MEIRA ZAULI
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Direito Eleitoral, v. 1.) ISBN 978-85-450-0496-7.

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CAPÍTULO 4

A FORMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA ELEITORAL:


NECESSIDADE DE REFLEXÃO E COERÊNCIA

ADRIANA SOARES ALCÂNTARA

4.1 Introdução
A aplicação do direito eleitoral não é tarefa fácil: aqueles que decidem enveredar
por tais caminhos se deparam com uma diversidade de normas que objetivam a cada
pleito disciplinar o maior número de condutas que, potencialmente, atentem contra a
liberdade do voto, a lisura das eleições e o Estado Democrático de Direito.
Essa busca incessante por regulamentação abarca todos os procedimentos que
fazem parte do processo eleitoral: o alistamento de eleitores, as convenções partidárias,
o registro de candidatos, as impugnações às candidaturas, as propagandas eleitorais,
a campanha eleitoral, as prestações de contas, a substituição de candidatos, a eleição,
a diplomação.
As muitas condutas, de irregularidade apurável, mudam a cada pleito e dão ensejo
a outras normas, que exigirão novas interpretações. Sempre haverá novos entendimentos
e julgados, que se sedimentarão ou não; é a constante evolução do direito eleitoral.
O presente trabalho busca fazer uma análise da importância que a jurisprudência
exerce na aplicação do direito eleitoral, sendo uma das suas principais fontes e se
servindo como espelho da Corte Superior Eleitoral e, por que não dizer, dos Tribunais
Regionais Eleitorais, parecendo dar alento à incontestável subjetividade presente na
legislação eleitoral, aos conceitos vagos que clamam por definições ou se adequam ao
caso apreciado e ao caráter provisório que parece dar a feição das normas eleitorais.
Para seguir na pretendida análise, apresenta-se este artigo com um estudo acerca
das fontes do direito eleitoral, sua classificação e a importância da jurisprudência na
construção dos entendimentos jurídicos. Abre-se um tópico para dissertar sobre o caráter
subsidiário na Justiça Eleitoral em que se toma de empréstimo de servidores a normas
numa manutenção de caráter permanentemente provisório, por mais contraditório que
o sentido das palavras possa ter.

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306 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Ilustra-se a teoria com um caso concreto cuja análise considera-se importante


na evolução do pensamento eleitoral pois quebrou um entendimento repetido juris­
prudencialmente durante anos por Tribunais Eleitorais e pelo próprio Tribunal Superior
Eleitoral acerca da impossibilidade de se considerar a existência de litispendência entre
as ações de impugnação de mandato eletivo (AIME) e as ações de investigação judicial
eleitoral (AIJE). Trata-se, pois, do Recurso Especial Eleitoral nº 3-48.2013.6.12.0036 que,
julgado em 12.11.2015 no Tribunal Superior Eleitoral, pelo Ministro Henrique Neves da
Silva, traz uma contribuição sem medidas para a racionalização dos processos eleitorais.
Faz-se uma comparação entre esse julgado e dois outros da relatoria da Ministra Maria
Thereza de Assis Moura: um acolhendo a tese do Ministro Henrique Neves e outro a
refutando, de maneira fundamentada.

4.2 As fontes do direito eleitoral


Quando falamos em fontes do direito é impossível não lembrar das disciplinas
introdutórias do curso de direito que sempre nos remetiam aos vários sentidos da palavra
fonte. Salvo Venosa (2011, p. 10) afirma que a expressão fontes possui o sentido histórico
ou de diferentes maneiras de realização do direito e o aspecto de fonte criadora, sendo
que este último seria o sentido que nos interessaria, no estudo feito pelo direito civil.
Para o autor,

É necessário distinguir as fontes diretas, ou seja, as que de per si possuem força suficiente
para gerar a regra jurídica, as quais podem ser denominadas, segundo a doutrina
tradicional, fontes imediatas ou primárias. Ao lado dessas, há as denominadas fontes
mediatas ou secundárias, as que não tem a força das primeiras, mas esclarecem os espíritos
dos aplicadores da lei e servem de precioso substrato para a compreensão e aplicação
global do Direito.

Diz o civilista que nas fontes primárias estariam a lei e os costumes e nas fontes
secundárias estariam a doutrina, a jurisprudência, a analogia, os princípios gerais de
direito e a equidade.
Lopez Zilio (2014, p. 19) resume as fontes do direito eleitoral em doutrina, juris­
prudência e leis e enumera estas por grau de importância, como sendo a Constituição,
as leis ordinárias e complementar e as resoluções do Tribunal Superior Eleitoral.
Gomes (2015, p. 24-25) classifica as fontes em materiais e formais. Para ele,

Fonte material são os múltiplos fatores que influenciam o legislador em seu trabalho de
criar normas jurídicas. Tais fatores podem compreender diversas tendências psicológicas,
fenômenos e dados presentes no ambiente social, envolvendo pesquisas de ordem histórica,
econômica, religiosa, axiológica, moral, política, psicológica, sociológica, entre outras.

As fontes formais, para o autor, “são os veículos ou meios em que os juízos jurídicos
são fundamentados”. Dividem-se em fontes estatais e não estatais tendo em vista o
meio de onde emanam, conforme advenham de processos legislativos, constitucionais
ou infraconstitucionais, para o primeiro caso ou, no segundo caso, de princípios não
positivados.

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ADRIANA SOARES ALCÂNTARA
A FORMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA ELEITORAL: NECESSIDADE DE REFLEXÃO E COERÊNCIA
307

Para Gomes (2015, p. 24), “a lei não decorre da atividade impessoal, harmônica e
coerente de um legislador justo e onipresente, como pretendiam os positivistas clássicos,
mas antes, é fruto de uma bem articulada composição de interesses”.
Para Fávila Ribeiro (1996, p. 15), a Constituição Federal é a fonte suprema da qual
promanam a ordem jurídica estatal, a repartição das competências e o tracejo das linhas
fundamentais do sistema eleitoral. A existência de legislação complementar justifica-
se, para o autor, para que o estatuto constitucional não perca o seu caráter sintético e
adquira uma extensão maior do que o necessário. Em suas palavras, “as fontes não se
isolam como elementos de exclusivo vínculo com o Direito Eleitoral, em virtude da
indilacerável unidade da ordem jurídica em que está integrado. Mas não deixa de contar
com elementos próprios que refletem as suas condições peculiares”.
O eleitoralista cearense divide as fontes de direito eleitoral em próprias e
subsidiárias. As primeiras seriam o Código Eleitoral de 15.7.1965 e a Lei Orgânica dos
Partidos Políticos, de 19.9.1995. As fontes subsidiárias seriam os Códigos de Processo
Penal, Civil e de Processo Civil, as resoluções do Tribunal Superior Eleitoral, os estatutos
dos partidos políticos e a jurisprudência.
Acrescentam-se às fontes próprias enumeradas, a Lei Eleitoral (Lei nº 9.504,
de 30.9.1997), a Lei Complementar nº 64, de 18.5.1990 e, ainda, uma variedade de leis
ordinárias que auxiliam na interpretação e aplicação do direito eleitoral.
Não há, pois, unanimidade quanto à classificação das fontes do direito eleitoral,
mas é inconteste que estejam entre elas a Constituição Federal, o Código Eleitoral, as leis
ordinárias e a lei complementar, a jurisprudência e as resoluções do Tribunal Superior
Eleitoral.
As leis ordinárias entram no universo normativo eleitoral com o objetivo de
suprir as falhas de um Código Eleitoral ultrapassado que teima em resistir às agruras do
tempo. Datado de 1965, traz traços de uma ideologia fruto do regime militar e conceitos
que não mais se aplicam. Muitos dos procedimentos ali disciplinados já não existem,
como exemplo, os atinentes à votação que perderam lugar para toda a aparelhagem que
recebe, contabiliza e totaliza os votos.
A Lei nº 9.504 de 30.9.1997 veio com a intenção de ser única, mas já sofreu remendos
de tantas outras, que trouxeram previsões de condutas ilícitas, como a Lei nº 9.840 de
1999 ou ainda delimitaram responsabilidades para os partidos políticos, trazendo regras
inclusive para a participação feminina, como a Lei nº 12.034 de 2006.
Outras normas trouxeram profundas alterações para a realização das propagandas
eleitorais, financiamento e prestação de contas das receitas e despesas de campanhas
eleitorais como a Lei nº 11.300 de 2006. Vieram alterações nos anos de 1999, 2002, 2003,
2006, 2009, 2010, 2013, 2014, 2015 e agora em outubro de 2017, sob o argumento de mais
uma pseudorreforma política, mais duas leis de nº 13.487 e nº 13.488 foram editadas,
alterando as leis nº 9.504/97 e nº 9.096/95 e também o Código Eleitoral. As duas leis
recentes extinguiram a propaganda partidária no rádio e na televisão, suprimindo direitos
já conquistados pelos partidos políticos, alguns processos com decisões transitadas em
julgado para o primeiro semestre de 2018 (ano das próximas eleições gerais) e alteraram
a Lei nº 13.165 de 2015 que se intitulava Minirreforma Eleitoral de 2015.
É a reforma da reforma do ordenamento político eleitoral. Por fim, ainda em
outubro de 2017 surgiu a Emenda Constitucional nº 97 que trouxe alterações impor­
tantíssimas no universo eleitoral, tais como a vedação de formação de coligações

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
308 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

partidárias para as eleições proporcionais e o estabelecimento de novas regras para o


acesso dos partidos políticos ao fundo partidário e ao tempo de propaganda gratuita no
rádio e na televisão, e de mais autonomia para os partidos políticos no que diz respeito,
por exemplo, à provisoriedade de seus órgãos.
A Lei Complementar nº 64/90 ou Lei das Inelegibilidades traz regras de
desincompatibilização e as possibilidades para a impugnação de registro de candidatura,
bem como o rito utilizado da denominada ação de investigação judicial eleitoral (AIJE)
interposta por abuso de poder econômico ou político ou ainda utilização indevida de
veículos ou meios de comunicação em prol de algum candidato e partido político.
As resoluções do Tribunal Superior Eleitoral, por sua vez, com a força de lei ordi­
nária que possuem, consoante o julgado no Recurso nº 1.943-RS1 do Tribunal Superior
Eleitoral de 24.4.1952, são utilizadas de forma obrigatória quando da aplicação do
direito eleitoral.
Consoante o previsto no art. 25, §3º do Regimento Interno do TSE, “o termo
resolução é reservado àquelas decisões decorrentes do poder regulamentar do Tribunal
e nas hipóteses em que o Plenário assim o determinar, por proposta do Relator”. As
reso­luções do Tribunal Superior Eleitoral, além das que veiculam instruções para cada
pleito, versam sobre alistamento eleitoral, perda do cargo político por infidelidade,
sistemas de gerenciamento de dados partidários e de coletas de apoiamentos, requisição
de servidores, recolhimento de multas eleitorais, criação, extinção e fusão de partidos
políticos, distribuição de fundo partidário, abertura do comércio no dia da eleição, entre
tantas outras. Sempre há uma resolução que caiba no assunto, por vezes mais de uma
para a mesma matéria.
Para Castro (2016, p. 21), as resoluções da Corte Superior possuem grande impor­
tância para o operador do direito eleitoral, para os partidos políticos e para os candi­
datos por que consolidam a legislação em vigor, agrupando-a por assunto. Têm caráter
orientador, pois traduzem o pensamento da mais alta Corte Eleitoral.
O resultado desta liberdade em expedir instruções convenientes à execução do
Código Eleitoral, consoante previsão estabelecida no art. 23, IX, da Lei nº 4.737/65, é a
produção constante de grande quantidade de resoluções que trazem patente confusão
aos aplicadores do direito eleitoral. Exemplo dessa complexa relação entre um Código
defasado e a legislação excessiva é o que acontece com as prestações de contas de
exercício financeiro dos partidos políticos, que atualmente são regidas por três resoluções,
cuja aplicação depende do exercício a que se referem. Explico: as prestações de contas
referentes aos exercícios financeiros anteriores ao ano de 2015 são examinadas pela
Resolução nº 21.841/2014; as prestações de contas relativas ao exercício financeiro de 2015
pela Resolução nº 23.432/2014 e as relativas ao exercício financeiro de 2016 e seguintes
serão examinadas pela Resolução nº 23.464/2015.
A complexa tramitação das prestações de contas nos Tribunais Regionais Eleitorais
permite que hoje tramitem processos referentes a exercícios diversos, regidos por
normas várias que alteram de modo substancial a sua tramitação e o próprio julgamento.

1
“Ementa: As Resoluções do TSE, facultadas nos arts. 12, d e t, e 196, do Código, tem forca de lei geral e a ofensa
a sua letra expressa motiva recurso especial, nos termos do art. 167 do Código. Dado provimento ao interposto
contra o registro, por ilegalidade da convenção que escolheu os candidatos, não pode a escolha renovar-se, pois
acarretaria subversão de princípios”.

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ADRIANA SOARES ALCÂNTARA
A FORMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA ELEITORAL: NECESSIDADE DE REFLEXÃO E COERÊNCIA
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Como exemplo, cito o art. 65 da Resolução nº 23.464/2015,2 que, em seu caput, avisa que
as prestações de contas referentes aos exercícios anteriores ao ano de 2016 não serão
atingidas em seu mérito pela resolução. Logo em seguida, no §1º do art. 65, se estabelece
que as disposições processuais oriundas da norma em comento serão aplicadas aos
processos que tratem de prestações de contas relativas aos exercícios de 2009 e seguintes.

4.3 A subsidiariedade no direito eleitoral


Inobstante a importância da Justiça Eleitoral na construção e, por que não dizer, na
manutenção do Estado Democrático de Direito, por mais antiquada que a expressão possa
parecer, salta aos olhos a sua natureza emprestada. Desde os servidores que trabalham
nos cartórios eleitorais e na sede dos tribunais à legislação utilizada pelos operadores
do direito eleitoral, sempre há algo que se empresta, num processo que parece ir mais
além do que a simples subsidiariedade.
Não se tem um quadro próprio de juízes e promotores eleitorais. São sempre
magistrados e promotores que atuam na Justiça Comum e que se revezam de modo
sofrível entre as atividades de comarcas distantes e as funções eleitorais em zonas
diversas. Por períodos determinados as autoridades desempenham as funções eleitorais
reservando, muitas vezes, um dia na semana e apenas um dia, para determinada zona
eleitoral, numa atividade hercúlea que o rezoneamento recentemente iniciado pela
Corte Superior, através da Resolução nº 23.520 de 1.6.2017, não conseguirá amenizar.
A gratificação eleitoral, de natureza pró labore e caráter remuneratório por subsí­
dio3 dos juízes e membros dos tribunais regionais eleitorais significa que as funções
exercidas nas zonas eleitorais e nas cortes eleitorais, classificadas, respectivamente,
como gratificações mensais e de presença, traduzem um acréscimo financeiro em
contraprestação às atividades dos juízes e, na mesma toada, dos promotores de justiça.
É paga, num e noutro caso, mensalmente, e possui, em sua essência, uma provisoriedade
que impede que os juízes e promotores se dediquem ao estudo da matéria eleitoral.
O rodízio bienal e, mais, o reduzido número de juízes e promotores, inobstante as
argumentações em contrário, trazem uma alternância de nocividade patente ao processo
eleitoral.
A composição dos tribunais regionais eleitorais e do Tribunal Superior Eleitoral
também traz o empréstimo em sua essência. Os regionais possuem desembargadores
e juízes do Tribunal de Justiça e da Justiça Federal, além de advogados nomeados
pelo presidente da República; o Tribunal Superior Eleitoral possui em sua composição
ministros do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, além dos
advogados de notável saber jurídico nomeados pelo presidente da República após
a indicação do Supremo Tribunal Federal. O Ministério Público Eleitoral atua com
promotores de justiça e procuradores da República.
Os cartórios eleitorais, por sua vez, sempre funcionaram com servidores empres­
tados de órgãos públicos. Nas zonas eleitorais do interior, em sua maioria, são advindos
da prefeitura. Os concursos não dão conta de prover os cartórios eleitorais de servidores

2
Res. nº 23.464 de 17.12.2015 – regulamenta o disposto no Título III da Lei nº 9.096, de 19.9.1995 – Das Finanças e
Contabilidade dos Partidos.
3
PA nº 87-88.2016.6.00.0000. Rel. Min. Henrique Neves, j. 27.9.2016.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
310 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

efetivos e os requisitados, que prestam serviço indispensável, se eternizam nas funções


eleitorais. Há zonas eleitorais nas quais o único servidor não possui formação jurídica e
se vê obrigado a movimentar todos os processos eleitorais que por lá tramitam, alguns
de natureza complexa, como as ações de investigações judiciais eleitorais, ações de
impugnação de mandato eletivo e mandados de segurança.
Com relação à aplicação do direito eleitoral, um assunto que sempre causou confu­
são entre os operadores e estudiosos da matéria eleitoral foi o empréstimo – também
chamado de subsidiariedade, de outros códigos, tais como o de Código de Processo
Civil, o de Processo Penal e o de Direito Penal.
O processo eleitoral se resolve com noções do Código de Processo Civil desde
que a legislação eleitoral e as instruções do Tribunal Superior Eleitoral nada disponham
sobre a matéria que se examina. A Resolução nº 23.478/2016,4 em seu art. 2º prescreve
que “a aplicação das regras do Novo Código de Processo Civil tem caráter supletivo
e subsidiário em relação aos feitos que tramitam na Justiça Eleitoral, desde que haja
compatibilidade sistêmica”.
O art. 15 do Novo Código de Processo Civil prevê o caráter subsidiário da legislação
processual aos feitos eleitorais, ratificando o que antes era repetido na jurisprudência
eleitoral.
Marinoni (2015, p. 113) diz que a disciplina do processo civil tem caráter geral ou,
nas suas palavras, “transetorial”. O direito eleitoral, por sua vez, tem em sua aplicação
um universo multidisciplinar, em que conceitos, noções e ilações são retiradas de uma
gama de disciplinas existentes no ordenamento jurídico.
Os atos processuais eleitorais pedem um regramento que inexiste na legislação
eleitoral, no que diz respeito às cartas de ordem, às realizações de audiência, aos
depoimentos e interrogatórios, à conexão e litispendência, alterações e fixação de
competência, à suspeição e ao impedimento, ao litisconsórcio, aos pressupostos
processuais, às condições da ação, entre tantos outros elementos.
A Resolução do TSE nº 23.478/2016 justifica, pois, a subsidiariedade do CPC em
razão da especialidade da matéria, exclui os feitos eleitorais da contagem do prazo
somente em dias úteis, estabelece o prazo de três dias para interposição dos recursos
que não tenham prazo especial e ventila a possibilidade de a autoridade judiciária
determinar a busca e apreensão de autos não devolvidos.

4.4 A jurisprudência como fonte de direito eleitoral


Para Soares (2012, p. 34-35) a jurisprudência é fonte formal e estatal do direito.
Formal porque veicula, “em seus condutos institucionais, o complexo de dados econô­
micos, políticos e ideológicos que se afiguram como fontes materiais do direito”. O caráter
estatal adviria do fato de ser produzida pelo Poder Judiciário. Depois de dissertar sobre
a importância da jurisprudência nos sistemas de origem anglo-saxônica ou de inspiração
romano-germânica, afirma:

4
A Res. nº 23.478 de 10.5.2016 estabelece diretrizes gerais para a aplicação da Lei nº 13.105, de 16.3.2015 – Novo
Código de Processo Civil –, no âmbito da Justiça Eleitoral.

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ADRIANA SOARES ALCÂNTARA
A FORMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA ELEITORAL: NECESSIDADE DE REFLEXÃO E COERÊNCIA
311

Não há, pois, como negar que a jurisprudência seja, inclusive, fonte imediata e direta
do direito, mesmo nos sistemas romanísticos. Primeiro porque veicula a interpretação e
aplicação da norma positiva, dando-lhe inteligência e precisando o alcance do direito em
tese; segundo, porque aplica os princípios gerais, a equidade, a analogia, na falta de uma
norma específica e explícita; e, por último, porque tem uma força construtiva e preservativa
da uniformidade dos julgados e da unidade do direito.

Ressalta Soares (2012) que a jurisprudência pode representar – dependendo da


técnica utilizada na interpretação, um aspecto estabilizador ou renovador e atualizador
da ordem jurídica. Definindo antes o que seriam as correntes subjetivista e objetivista
de interpretação, afirma que a hermenêutica jurídica contemporânea há de combinar a
segurança com o impulso de transformação, em que o objetivismo realçaria o papel do
intérprete na exteriorização dos significados da ordem jurídica.
A Justiça Eleitoral, na sua atividade fiscalizatória e punitiva define, por meio
da jurisprudência, questões tidas como essenciais para o direito eleitoral. A sua força
normativa é ratificada nas próprias resoluções que se formam a partir dos julgamentos
dos casos concretos na Corte Superior. A Resolução nº 3.119,5 de 27.2.2003 prescreve
que “as resoluções da Justiça Eleitoral, originadas das consultas formuladas aos seus
tribunais, possuem força normativa, servindo à aplicação do disposto no art. 21, §1º,
do RISTF”.
Com a utilização de julgados dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Tribunal
Superior Eleitoral, se fixam entendimentos que, uma vez sedimentados e diante de
constante reiteração, são inseridos em resoluções que tratam de determinadas matérias.
Surgem os precedentes, definidos pela repetição, importância e abrangência da
matéria e, assim, temas como analfabetismo, domicílio eleitoral, fixação de prazos para
interposição de ações, decadência e formação de litisconsórcio são decididos com a
repetição de jurisprudência. Esta reiteração a faz ser chamada de pacífica ou dominante.
Ressalta-se que os termos pacífica ou dominante dizem respeito a uma pretendida
uniformização que não significa, segundo Wambier (2012, p. 13), a uniformidade de
certo e determinado entendimento para sempre; e que estabilidade não significa imuta­
bilidade. Para a autora, “a uniformidade deve acontecer depois de um período de
sau­dável desuniformidade, e gerar estabilidade”. Ressalta depois, “que uma das mais
relevantes funções do direito é a de justamente, gerar previsibilidade”.
O direito eleitoral vive em constante mudança por que tem a obrigação de acom­
panhar as alterações no comportamento dos indivíduos no exercício de uma das tarefas
mais antigas e complexas que a humanidade já se defrontou: a de fazer política. Não
que se resuma à feitura de eleições, mas fazer política nos remete à representação que
passa necessariamente pela escolha de um nome entre muitos.
Observa-se que a matéria examinada no direito eleitoral diz respeito à própria exis­
tên­cia do regime representativo no nosso país. Para Manin, Przeworski e Stokes (1999):

a alegação que conecta a democracia e a representação é que na democracia os governos


são representativos porque são eleitos: se as eleições são concorridas livremente, se a
participação é ampla, e se os cidadãos desfrutam das liberdades políticas, então os governos
agirão em favor dos interesses da população.

5
Acórdão nº 3.119. Rel. Min. Raphael de Barros Monteiro, j. 27.2.2003.

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312 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

As eleições, portanto, operacionalizam o instituto da representação política no


nosso sistema e tornam possível a escolha daqueles que se propõe a gerenciar, fiscalizar
e distribuir bens e serviços públicos. As outras formas de participação, previstas na
Constituição Federal, não fazem parte do nosso cotidiano, ou se fazem, carecem de força.
Observa-se, pois, no fazer eleição e a cada pleito realizado, o surgimento de novas
regras, novas possibilidades, novos enquadramentos de condutas e de procedimentos
que operacionalizam o processo eleitoral. A propaganda partidária é um bom exemplo
dessa mudança constante no comportamento eleitoral: a cada pleito novas possibilidades
de propaganda surgem confirmando que é impossível a previsão de todas as condutas.
Citam-se os outdoors que, permitidos a princípio, com sorteio de locais de maior
visibilidade, foram vedados com a edição da Lei nº 11.300 de 2006. Com a proibição
os candidatos passaram a pintar longas extensões de muros e novas expressões foram
criadas, tais como “efeito visual de outdoor” ou “efeito análogo a outdoor”, que exigiam
uma carga de subjetividade para condenação. A jurisprudência vai se acomodando às
condutas praticadas no decorrer dos processos eleitorais.
Escolhi, entre muitos julgados, os recursos especiais nºs 3-48.2013.6.12.036, de
relatoria do Ministro Henrique Neves da Silva, e 621-19.2012.6.24.0060, de relatoria do
Ministro Gilmar Mendes, ambos julgados em 12.11.2015. Ainda os recursos especiais
nºs 5-44.2013.6.17.0144 e 317-43.2012.6.17.0083, da relatoria da Ministra Maria Thereza
de Assis Moura, julgados, respectivamente, em 7 e 19.4.2016. Os julgados citados
traduzem a divergência de entendimento do Tribunal Superior Eleitoral em relação
ao acolhimento do instituto da litispendência em matéria eleitoral e, em razão de sua
importância, refletem diretamente nos julgados das Cortes Regionais quando da análise
das ações eleitorais que procuram apurar a prática de abuso de poder econômico pelos
candidatos a cargos eletivos.
De posse de uma variedade de ações com procedimentos e resultados diferentes,
os concorrentes a cargos eletivos, partidos políticos e representantes do Ministério
Público Eleitoral, ajuízam todas elas que, muitas vezes, tramitam em algum momento
do processo eleitoral, de forma concomitante.
As ações de impugnação de mandato eletivo (AIME), de investigação judicial
elei­toral (AIJE), os recursos contra expedição de diploma (RCED) e as representações
fundadas no art. 30-A da Lei nº 9.504/97, objetivam apurar condutas que ameacem de
alguma forma a lisura do processo eleitoral. O que ainda hoje ocorre é a interposição de
todas elas por autores diversos contra as mesmas partes, com idênticos pedido e causa de
pedir, em que algum detalhe é mencionado como diferencial a justificar a multiplicidade
das ações e fazer valer o direito pleiteado.
Pois bem, no primeiro recurso, oriundo do Mato Grosso do Sul (REspe nº 3-48),
o Tribunal Regional extinguiu sem resolução de mérito a AIME interposta contra um
vereador eleito no município de Campo Grande. o recurso especial foi interposto pelo
Diretório Municipal do Partido Trabalhista do Brasil (PT do B) em Campo Grande, com
fundamento na extinção referida que, por sua vez, foi motivada pela litispendência
entre a ação de impugnação e uma representação anterior. Concluiu aquele Regional,
na ementa proferida:

Considerando que os fatos da exordial são exatamente os mesmos versados em repre­


sentação eleitoral distribuída anteriormente à demanda originária do recurso, tendo a

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ADRIANA SOARES ALCÂNTARA
A FORMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA ELEITORAL: NECESSIDADE DE REFLEXÃO E COERÊNCIA
313

mesma causa de pedir (fundada no mesmo inquérito policial, com as mesmas imputações –
captação ilícita de sufrágio e abuso de poder econômico), assim como o mesmo pedido
(aplicação de multa, cassação de diploma que, pelo período decorrido, converteu-se em
cassação de mandato eletivo e decretação de inelegibilidade) é de se reconhecer a figura da
litispendência, nos termos em que disposto no art. 301, §§1º, 2º e 3º do Código de Processo
Civil, não havendo ainda trânsito em julgado da outra demanda.

Aplicou o TRE/MS o Código de Processo Civil de 1973, vigente à época, utilizando-


se do instituto da litispendência e afirmando que esta não estaria afastada em razão do
nome das ações eleitorais e da diferença entre os demandantes. No Tribunal Superior
Eleitoral, a Procuradoria-Geral Eleitoral opinou pelo provimento do recurso.
A ação de impugnação de mandato eletivo é uma das ações eleitorais que objetivam
apurar e punir a prática de abuso de poder durante a campanha. Sua existência e cabi­
mento estão previstas no art. 14, §10º da Constituição Federal desde que instruída com
provas de abuso de poder econômico, corrupção ou fraude. A previsão constitucional
faz a referida ação – consoante o entendimento firmado no Recurso Especial Eleitoral
nº 11-75.2014.6.20.0033,6 ocupar uma preferred position. O julgado, traz em sua ementa:

A ação de impugnação de mandato eletivo, sob o prisma formal, encontra-se positivada


no Título II, dedicado aos Direitos e Garantias Fundamentais, ex vi do art. 14, §§10 e 11
da CRFB, à semelhança dos demais remédios constitucionais (e.g., habeas corpus, habeas
data, mandado de segurança, mandado de injunção e ação popular), desenho institucional
que atrai todo o regime jurídico das garantias constitucionais.

Para o Ministro Luiz Fux:

[...] a importância da AIME, examinada pelo viés material salta aos olhos por ser a única
ação eleitoral que conta com lastro constitucional para retirar um agente político investido
no mandato pelo batismo das urnas, de ordem a mitigar, em consequência, o cânone da
soberania popular.

Coexiste, pois, a AIME no ambiente processual eleitoral com mais outras três
ações, já nominadas: a AIJE, a representação prevista no art. 30-A da Lei nº 9.504/97 e
o RCED. No caso do Mato Grosso do Sul foram interpostas duas ações por partes dis­
tintas (Ministério Público Eleitoral e partido político), em que os pedidos se repetem e
as imputações são as mesmas, extraídas de um mesmo conjunto probatório. O TRE/MS
entendeu ainda pela completa identidade entre os fatos.
Em seu voto, no Recurso Especial Eleitoral nº 3-48, o Ministro Henrique Neves
entendeu que as razões suscitadas pelo recorrente, então afastado do cargo, repetiam
o entendimento firmado pela Corte Superior por vários anos e vários julgados, a saber,
aquele que diz da impossibilidade de litispendência entre as ações eleitorais, ainda
que fundadas nos mesmos fatos, pois tratam-se de ações com causa de pedir próprias
e consequências diversas.

6
REspe nº 11-75.2014.6.20.0033 – Classe 32 – Baraúna/Rio Grande do Norte. Rel. Min. Luiz Fux, j. 25.5.2017.

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314 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Trago algumas ementas nesse sentido que têm sido repetidas incontáveis vezes:

RCED - Recurso Contra Expedição de Diploma nº 696 - Goiânia/GO - Acórdão de 04/02/2010


Relator Min. Enrique Ricardo Lewandowski
Ementa: RECURSO CONTRA EXPEDIÇÃO DE DIPLOMA. ELEIÇÕES 2006. CAPTAÇÃO
ILÍCITA DE SUFRÁGIO. PRELIMINAR DE LITISPENDÊNCIA. AFASTAMENTO.
OFERECIMENTO DE SERVIÇOS DE FRETES GRATUITOS A ELEITORES EM COMITÊ
ELEITORAL DE CANDIDATO.
I - Não há litispendência entre as ações eleitorais, ainda que fundadas nos mesmos fatos, por serem
ações autônomas, com causa de pedir própria e consequências distintas, o que impede que o julgamento
favorável ou desfavorável de alguma delas tenha influência sobre as outras. Precedentes do TSE.
II - O oferecimento de serviço gratuito de mudança para eleitores em período eleitoral, por
intermédio de comitê de candidato, configura captação ilícita de sufrágio.
III - Nas hipóteses de captação de sufrágio é desnecessária a análise da potencialidade da
conduta para influir nas eleições.
IV - Recurso provido.
Decisão: O Tribunal, por unanimidade, rejeitou a preliminar de litispendência e proveu o
Recurso, nos termos do voto do Relator.

AgR-AI - Agravo Regimental em Agravo de Instrumento nº 337991 - limoeiro do norte/


CE - Acórdão de 02/06/2011
Relator Min. Arnaldo Versiani Leite Soares
Ementa: Ações eleitorais. Litispendência.
- Não há litispendência entre a ação de impugnação de mandato eletivo e a ação de investigação
judicial eleitoral, porquanto constituem instrumentos processuais autônomos com causas de pedir
próprias e consequências distintas.
Agravo regimental não provido.

AgR-AI - Agravo Regimental em Agravo de Instrumento nº 1000173 - Alvares Machado/


SP Acórdão de 14/11/2013
Relator Min. José Antonio Dias Toffoli
Ementa: AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE INVES­
TIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ABUSO DE PODER ECONÔMICO. CAPTAÇÃO
ILÍCITA DE SUFRÁGIO. CONDUTA VEDADA A AGENTE PÚBLICO. FUNDAMENTO
DA DECISÃO AGRAVADA NÃO INFIRMADO. REITERAÇÃO DOS ARGUMENTOS
EXPENDIDOS NO RECURSO ESPECIAL. A AUTONOMIA DAS AÇÕES ELEITORAIS
IMPEDE A FORMAÇÃO DE LITISPENDÊNCIA E COISA JULGADA ENTRE SI.
REEXAME DE FATOS E PROVAS. NÃO PROVIMENTO.
1. O fundamento principal da decisão agravada, pertinente à incidência da Súmula nº 182
do STJ, não foi especificamente infirmado nas razões do regimental.
2. Apesar de ventilados no regimental, os fundamentos da decisão proferida em juízo
primeiro de admissibilidade não foram infirmados no agravo de instrumento.
3. Ademais, a decisão que inadmitiu o especial merece ser mantida por seus próprios fundamentos,
notadamente no que se refere à autonomia das ações eleitorais que impede a formação de litispendência
e coisa julgada entre si, bem como no tocante à necessidade de reexame de fatos e provas, inviável
em sede extraordinária (Súmula nº 279 do STF).
4. Agravo regimental desprovido.
Decisão: O Tribunal, por unanimidade, desproveu o agravo regimental.

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A FORMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA ELEITORAL: NECESSIDADE DE REFLEXÃO E COERÊNCIA
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AI - Agravo Regimental em Agravo de Instrumento nº 66985 - CAMPO VERDE - MT


Acórdão de 11/10/2016
Relatora Min. Rosa Maria Weber Candiota Da Rosa
Ementa: AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO NO RECURSO ESPECIAL ELEITORAL.
AGRAVO MANEJADO EM 23.5.2016. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL.
ABUSO DO PODER POLÍTICO. CARACTERIZAÇÃO. AUSÊNCIA. LITISPENDÊNCIA.
DISTRIBUIÇÃO BENS. VEICULAÇÃO PUBLICIDADE INSTITUCIONAL. PERÍODO
VEDADO. COMPROVAÇÃO. GRAVIDADE. NÃO PROVIMENTO.
1. Ausente litispendência entre ações eleitorais com consequências jurídicas distintas. A representação
por conduta vedada busca a cassação do diploma e a aplicação de multa; já a ação de investigação
judicial eleitoral, objetiva, além da cassação de registro ou diploma, a declaração de inelegibilidade
do investigado. Precedentes.
2. Assentado pelo Tribunal de origem que as condutas praticadas - distribuição gratuita
de ingressos a beneficiários do programa Bolsa-Família em ano eleitoral e divulgação de
propaganda institucional, em período vedado - afetaram a normalidade e a legitimidade
das eleições, a demonstrar gravidade apta a atrair a aplicação da sanção de inelegibilidade,
nos termos do inciso XIV do art. 22 da Lei Complementar nº 64/90.
Agravo regimental a que se nega provimento.

O Ministro Henrique Neves afirma que o entendimento que vem sendo repetido
pelo Tribunal Superior Eleitoral fundamenta-se na teoria da tríplice identidade (tria
eadem) positivada no art. 301, §2º do CPC, hoje constante no art. 337, §2º do Novo Código
de Processo Civil.7
Defende, o ministro, que a multiplicidade de ações na Justiça Eleitoral que em
princípio têm o mesmo objetivo prático é tema que merece ser revisitado oportunamente
pela Corte Superior. Refere-se, o senhor ministro, ao julgamento de dois recursos
ordinários veiculados em uma AIME e uma AIJE, em 2014, nos quais não se ventilava a
litispendência, mas foi feita a reunião dos dois processos que foram julgados na mesma
ocasião8 com a análise e afastamento de preliminar de nulidade em razão da conexão.
Era o anúncio da mudança.
O reconhecimento da litispendência impediria, como impediu no caso concreto, a
análise do mérito processual. A decisão seguiu o Código de Processo Civil, que, frise-se,
é utilizado de forma subsidiária ao processo eleitoral, a saber, na falta de regramento
eleitoral. Questiona o ministro relator, entretanto, a necessidade de se procurar a
identidade do pedido, da causa de pedir e das partes, o que, mesmo existente, afastaria,
em razão da jurisprudência consolidada pelo Tribunal Superior Eleitoral, o instituto da
litispendência em matéria eleitoral.
O presente acórdão é por demais esclarecedor e, se não firma de todo um novo
posicionamento, dada a votação não unânime, induz a uma necessária reflexão. Diz o
relator que a teoria da tríplice identidade é insuficiente para a solução de todos pro­
blemas alusivos à identificação e à semelhança das ações, como no caso das partes
autoras diferentes ou ainda no caso da existência de partes iguais, causa de pedir

7
“Art. 337. Incumbe ao réu, antes de discutir o mérito, alegar: [...] VI - Litispendência; [...]. §1º Verifica-se a
litispendência ou a coisa julgada quando se reproduz ação anteriormente ajuizada. §2º Uma ação é idêntica a outra
quando possui as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido. §3º Há litispendência quando se repete ação que
está em curso. §4º Há coisa julgada quando se repete ação que já foi decidida por decisão transitada em julgado”.
8
RO nº 9-80.2011.6.14.0000 de Belém-PA. Rel. Min. Henrique Neves da Silva, j. 1.4.2014.

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316 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

idêntica e pedidos diversos no seu aspecto imediato, mas idênticos quanto ao bem da
vida pretendido.
Ora, as duas premissas são facilmente exemplificáveis pois ocorrem comumente
na Justiça Eleitoral: no primeiro caso, temos o exemplo de dois autores que interpõem
duas ações iguais contra o mesmo candidato. É a coisa mais comum de acontecer.
Moti­vados pela vitória nas eleições, candidatos e coligações ajuízam ações da mesma
natureza contra seus adversários. O Ministério Público, no exercício de suas funções,
também interpõe uma ação. As imputações se repetem e o Poder Judiciário passa a fazer
parte da campanha, como importante ator, já que suas decisões podem influenciar a
intenção do voto.
No desespero das urnas, pesam na diversidade das interposições a escolha do
advogado, uma testemunha que poderia ser mais convincente e até o tempo que a ação
poderia levar para ser julgada. E aí, neste caso, ressurge aquela questão suscitada lá atrás
acerca da temporariedade dos que aplicam o direito eleitoral. Não tanto no primeiro
grau, por que hoje as ações já se julgam na instância comum com mais celeridade e os
juízes eleitorais, no calor da concorrência, conseguem juntar fatos e extrair conclusões
que, por vezes ultrapassam a força dos autos. Diga-se da mudança, nas composições
dos Tribunais Regionais Eleitorais, e da possibilidade real de um ou vários processos
contra o mesmo candidato, em que se tem a mesma causa de pedir e o mesmo pedido,
serem distribuídos para relatores diferentes.
Ressalta-se a novidade trazida pelo art. 96-B da Lei nº 9.504/97, incluído que foi
pela Lei nº 13.165/2015 e que traz em sua redação que “serão reunidas para julgamento
comum as ações eleitorais propostas por partes diversas sobre o mesmo fato, sendo
competente para apreciá-las o juiz ou relator que tiver recebido a primeira”. Entretanto,
a alteração não resolve a variedade de ações que se prestam, muitas vezes à medição de
forças entre candidatos de um mesmo município, abarrotando a Justiça Eleitoral que
se torna instrumento de campanha, sobretudo dos candidatos mais abastados, que têm
condições financeiras para contratar bancas de advogados famosos e de renome.
Pois entendeu o Ministro Henrique Neves que seria o caso de se fazer o cotejamento
das ações, analisando-se o critério da “relação jurídica base” sem que a identificação dos
três elementos (pedido, causa de pedir e partes) fosse um critério excludente. Citou, no
seu voto, os processualistas Fredie Didier e Luiz Guilherme Marinoni para dizer que,
entre os elementos utilizados para firmar a litispendência, a causa de pedir deveria
prevalecer, pois esta, “entre os elementos da ação, é a que constitui o ponto tangencial
mais direto entre o processo e o direito material”. Seria, pois, a ligação entre os fatos
narrados na demanda e a norma que se pretende ver aplicada.
Marinoni (2015, p. 338), com relação à causa de pedir, afirma que o direito brasileiro
adota a teoria da substanciação segundo a qual interessa a descrição do contexto fático
em que as partes se encontram envolvidas. É entendimento que hoje não mais se diz
unânime e faz com que alguns autores defendam que haja um sopesamento entre as
teorias da substanciação e da individuação no sentido de delimitar a abrangência da
causa de pedir.
Molin Domit (2015, p. 64) defende:

Para a determinação da causa petendi, importam sim os fatos – isso é óbvio e elementar.
Mas importa a sua qualificação jurídica, tanto mais quando esse enquadramento se mostrar

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ADRIANA SOARES ALCÂNTARA
A FORMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA ELEITORAL: NECESSIDADE DE REFLEXÃO E COERÊNCIA
317

essencial para identificar, de forma precisa, a situação jurídica material para a qual se pede
a tutela no processo, de modo a distingui-la de toda e qualquer outra situação correlata –
sem prejuízo de que haja dedução de mais de uma dessas situações substanciais. É impres­
cindível, para isso, levar em conta as peculiaridades da situação jurídica deduzida em juízo.

No recurso especial em análise, são citados alguns julgados nos quais procura
demonstrar, o ministro relator, que os Tribunais vêm, implicitamente, adotando a teoria
da “relação jurídica base”. Reconhece, no caso, a mera reprodução de fatos, uma vez que
em todos os feitos, “conquanto os pedidos imediatos possam ser diferentes – cassação do
registro, cassação do diploma ou cassação do mandato – a consequência jurídica intentada
pela parte é rigorosamente a mesma: impedir que o réu exerça a representação popular”.
Justificar-se-ia, consoante o entendimento do julgador da Corte Superior, a
coexistência de ações, por relevante e necessário, em outra época, a saber, no final do
século passado, quando as ações tinham prazo certo para julgamento. E completa:

[...] de acordo com a atual redação do inciso XIV do art. 22 da Lei Complementar nº 64/90
o julgamento da ação de investigação judicial eleitoral após a diplomação é capaz de, em
termos práticos, afastar o candidato do exercício do mandato para o qual foi eleito, em
face da cassação do seu diploma.
Portanto, o ajuizamento da ação de impugnação de mandato eletivo para tratar de fatos
que já foram ou já estão sendo examinados em ação de investigação judicial eleitoral
anteriormente ajuizada não é mais essencial para que se chegue ao afastamento do candidato
eleito, como era necessário antes das alterações introduzidas pela LC 135, de 2010.

Este argumento afasta, de modo inteligente, ao tempo que requer dedicação no


estudo da matéria, toda a jurisprudência que reiteradamente refuta o instituto da litis­
pendência e vem sendo constantemente repetida nos julgados eleitorais.
Ressalta o Ministro Henrique Neves que as ações eleitorais em exame no recurso
oriundo do Mato Grosso do Sul possuem um único objetivo mediato: o de afastar o
candidato eleito. É opinião ratificada pela doutrina nacional já que Castro (2016, p. 477)
diz, com a lucidez que lhe é peculiar, que o fundamento jurídico de cada uma das ações
eleitorais é diverso por que a legislação eleitoral padece de efetiva sistematização. Para
ele, o desvalor social manifestado na ação de impugnação de mandato eletivo e na ação
de investigação judicial eleitoral é absolutamente o mesmo.

E o resultado final, previsto em ambas as disposições, é também absolutamente o mesmo,


porque o candidato condenado será cassado na Representação do art. 41-A ou terá o
mandato desconstituído na AIME do art. 14, §10, o que determina seja ele impedido de
assumir o mandato ou apeado do cargo eletivo conquistado à base do ilícito mencionado,
a depender apenas do momento em que a decisão for proferida.

Interessante destacar que no mesmo dia em que fora julgado o Recurso Especial
Eleitoral nº 3-48.2013.6.12.0036, no qual se reconhecera, por maioria de votos, a litis­
pendência entre uma AIME e uma AIJE, outro REspe, o de nº 621-19.2012.6.24.0060
de Santa Catarina, foi apreciado pelo Ministro Gilmar Mendes. Limitou-se o ministro
a repetir que “na linha de jurisprudência deste Tribunal, inexiste litispendência entre
AIME e AIJE”. A afirmativa é seguida pelo termo precedente, que na opinião do Ministro

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318 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Gilmar Mendes “já seria suficiente para acolher a preliminar”. Apesar da afirmativa,
avisa o ministro, em seu voto, que tecerá considerações adicionais e passa a examinar
a matéria discutida nos autos.
Entendeu o ministro que embora o Tribunal de Santa Catarina já tivesse se pronun­
ciado sobre o programa social que previa a doação da madeira e que não estaria, por isso,
configurado o abuso do poder econômico nem a captação ilícita de sufrágio, não haveria
impedimento para uma nova apreciação da conduta. No caso em exame a investigação
judicial apurava a entrega de uma carga de macadame e a AIME fundava-se em abuso
de poder econômico em razão da entrega de várias cargas da madeira.
Esse passeio entre julgados retrata a necessidade de melhor reflexão na análise
de matérias importantes em vez de apenas repetir de forma automática as ementas ou
os trechos de votos.
O precedente, no entender de Didier (2015, p. 441) “é a decisão judicial tomada
à luz de um caso concreto, cujo elemento normativo pode servir como diretriz para
o julgamento posterior de casos análogos”. A sua existência, portanto, não significa
eternização de um entendimento ou ainda que aquela questão não mereça ser repensada.
Os outros dois recursos especiais eleitorais são da relatoria da Ministra Maria
­Thereza de Assis Moura e expõem duas análises interessantes. Ambos se referem ao mes-
mo município pernambucano e às mesmas partes. O primeiro, de nº 5-44.2013.6.17.0144,
traz a extinção de uma AIME sem julgamento de mérito, em razão do reconhe­ci­mento da
litispendência entre duas outras ações julgadas pelo Tribunal Regional de Pernambuco.
Este, examinando os embargos interpostos, em outra ocasião, já decidira que “a iden­
tidade de partes, a despeito das várias ações em trâmite envolvendo os mesmos fatos
não poderia ser analisada de forma absoluta”. A afirmação se serve como argumento
para afastar a alegação de casuísmo discutida pelos embargantes, em razão de omissão
no enfrentamento da mudança jurisprudencial.
Observa-se assim a importância que a jurisprudência ocupa no universo das
decisões judiciais. A sua construção exige tempo, estudo, cuidado, comparações, respeito
à legislação vigente e coerência.
Os embargos interpostos no TRE de Pernambuco, no caso do REspe nº 5-44,
veiculam a alegação de que aquele Regional deveria ter enfrentado a alteração de
jurisprudência, definindo se os princípios constitucionais da segurança jurídica e ante­
rioridade eleitoral alcançavam apenas o legislador ou também a Justiça Eleitoral e
eventuais impulsos de viradas jurisprudenciais súbitas. A argumentação não é de todo
absurda, antes demonstra a irresignação de quem foi surpreendido com uma decisão
diferente de todas as que vinham sendo proferidas antes.
A ministra afirmou em seu voto que a diversidade de partes entre as ações não
impedia o reconhecimento de litispendência. Afastou, in casu, a ofensa aos princípios da
segurança jurídica, da anterioridade eleitoral, do devido processo legal e da isonomia,
bem como da indevida mudança de jurisprudência consolidada após a realização da
eleição. Relatou em seu voto a evolução do entendimento da Corte, com relação à
aceitação de litispendência. Citou o Acórdão nº 31.539/AC,9 no qual o Ministro Gilmar
Mendes ventila a hipótese da “eventual litispendência entre AIJE e RCED”. Em seguida,

9
RCED nº 0000315-39.2011.6.00.0000 – Agravo Regimental em Recurso Contra Expedição de Diploma nº 31539 –
Rio Branco/AC. Acórdão de 25.8.2015. Rel. Min. Gilmar Ferreira Mendes.

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A FORMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA ELEITORAL: NECESSIDADE DE REFLEXÃO E COERÊNCIA
319

citou como precedente, o REspe nº 3-48 do Ministro Henrique Neves, “cuja robustez
merece encômios”.
Concluiu a Ministra Maria Thereza de Assis Moura, no REspe nº 5-44, que as
causas de pedir da ação veiculada já haviam sido analisadas anteriormente em processos
outros e não havia fatos ou provas inéditas. A litispendência foi reconhecida.
No segundo recurso oriundo de Pernambuco, o de nº 317-43, há uma argumentação
diferente: a de que aquele Tribunal não havia se manifestado em relação à diferença
das causas de pedir constantes em cinco investigações judiciais, sendo que uma delas
trazia a apuração da gravidade dos ilícitos em conjunto, a saber, o chamado “conjunto
da obra”. A litispendência foi afastada em razão da diversidade das causas de pedir.
Ressalta a ministra que os três processos de Pernambuco distribuídos para sua
relatoria trouxeram premissas diferentes nos acórdãos, “uma vez que foram julgados
pelo Regional em momentos diferentes”, assertiva que confirma mais uma vez os
malefícios da provisoriedade tão presente na essência da Justiça Eleitoral. Repare-se que
momentos diferentes traduzem pensamentos diferentes e o que apresenta o presente
trabalho diz menos em relação ao reconhecimento da litispendência e/ou continência
nas ações eleitorais, matéria bem discutida por Pereira (2016) do que sobre a utilização
responsável de jurisprudências pelos aplicadores do direito eleitoral.

4.5 Conclusão
Não se olvida que a uniformidade dos entendimentos e mesmo a sua positivação,
resultante da reiteração nos julgados, deixam transparecer certa previsibilidade durante
determinado período. Nesse interregno o entendimento é absorvido pelos jurisdicionados
e se sabe, em nome da segurança jurídica, qual o posicionamento adotado pelas diversas
instâncias em que tramita o processo eleitoral. É a previsibilidade.
Pergunta-se, todavia, até que ponto essa segurança jurídica traduzida pela previ­
sibilidade deve ser preservada no direito eleitoral cujas normas têm por obrigação
acompanhar as mudanças que são sempre impactantes no ambiente eleitoral, no qual
disputas políticas dão o tom do momento.
A importância assumida pela Justiça Eleitoral e pelo Direito Eleitoral passa
pela credibilidade nos julgamentos e pela coerência entre os julgados e sobretudo pela
disposição para mudar o que mesmo sedimentado carece – a partir de um dado momento,
de alteração para que seja eficaz. Ressalta-se, por oportuno, que as alterações advindas de
novos posicionamentos carecem de reflexão, estudo, comparação, para que os julgados
que formarão novos precedentes também tragam em sua repetição a marca da coerência.
O juiz ou o colegiado podem e devem afastar-se da literalidade das leis em razão
da necessidade fundamentada, em respeito aos princípios da economia processual, da
celeridade no processo eleitoral, mas de olho na segurança jurídica que, por sua vez,
amordaça a arbitrariedade.
Wambier (2012, p. 14) fala em criatividade judicial e ativismo judicial e afirma:

Ambas as expressões serão empregadas para significar o afastamento do juiz de padrões


estabelecidos, em precedentes ou em leis escritas, tal como vinham sendo compreendidos
antes, ou da procura, em padrões decisórios menos nítidos, de soluções para situações
empíricas “novas”, afastamento este vocacionado a significar evolução do direito. Por

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
320 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

evolução do direito, quero significar incremento de sua função de servir à sociedade, o


que supõe que esteja adaptado às suas reais necessidades, segundo certo grau elevado de
consenso.

A autora, em seguida, chama a atenção para algo que ela denomina “ambientes
de decisão”, os quais ela define como “situações de direito material que serão objetos de
decisões jurisdicionais”. Se os ambientes são rígidos não há lugar para criatividade e aí
ela usa dos direitos tributário e civil para exemplificar, respectivamente, os ambientes
decisionais rígido e frouxo.
Indaga-se se o direito eleitoral seria um ambiente decisional frouxo, no qual a
criatividade tem morada sempre. A riqueza de detalhes que se extraiu da análise de
apenas quatro recursos especiais julgados na Corte Superior acerca de matéria que
vinha sendo repetida há tempos sob o abrigo da jurisprudência pacífica e dominante
dá a resposta.
A cada leitura no texto dos votos proferidos tem-se o aprimoramento da com­
preensão acerca do que se discutiu: a litispendência entre ações eleitorais. As conclusões
extraídas são de repetição necessária desde que bem explicadas e comparadas a cada
caso concreto. Assim, deve ser utilizada a jurisprudência, sem que o elemento sorte seja
um diferencial.
Estudar o direito eleitoral, portanto, significa apreender e relativizar conceitos,
exercer a necessária subjetividade exigida pelo Tribunal Superior Eleitoral e, porque
não dizer, utilizar os julgados certos que compõem a jurisprudência certa, lembrando
sempre que existem julgados para todos os gostos.
O respeito aos precedentes é essencial para a uniformização da jurisprudência,
mas é necessário que haja, para a sua utilização, um estudo detalhado entre o paradigma
e o novo caso e, em determinadas hipóteses, o uso de técnicas de superação que podem
significar a evolução do direito aplicado.

Referências
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ADRIANA SOARES ALCÂNTARA
A FORMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA ELEITORAL: NECESSIDADE DE REFLEXÃO E COERÊNCIA
321

PRZEWORSKI, Adam; STOKES, Susan C. Democracy, accountability and representation. Cambridge. Cambridge
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

ALCÂNTARA, Adriana Soares. A formação da jurisprudência eleitoral: necessidade de reflexão e


coerência. In: FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura (Coord.);
PECCININ, Luiz Eduardo (Org.). Direito Constitucional Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 305-321.
(Tratado de Direito Eleitoral, v. 1.) ISBN 978-85-450-0496-7.

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CAPÍTULO 5

PODER REGULAMENTAR E TSE: FONTE DO


DIREITO ELEITORAL INCONSTITUCIONAL E
EXERCÍCIO ABUSIVO DESSE PODER NORMANTE

RUY SAMUEL ESPÍNDOLA

O poder regulamentar do TSE está positivado no Código Eleitoral de 1965 e


na Lei nº 9.504/97 e não na Constituição da República.1 A Constituição de 1988 não o

1
O Código Eleitoral foi instituído pela Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965. Nos seguintes artigos nele se positivou
o que tem se entendido como poder regulamentar do TSE: “Art. 21. Os Tribunais e juízes inferiores devem dar
imediato cumprimento às decisões, mandados, instruções e outros atos emanados do Tribunal Superior Eleitoral. [...].
Art. 23. Compete, ainda, privativamente, ao Tribunal Superior, [...] IX - expedir as instruções que julgar convenientes
à execução deste Código; [...] XVIII - tomar quaisquer outras providências que julgar convenientes à execução da legislação
eleitoral”.
Interessante observar que em 29.9.2009 houve alteração legislativa no Código Eleitoral, em que se aludiu,
expressamente, ao exercício deste poder regulamentar pelo TSE: “Art. 233-A. Aos eleitores em trânsito no
território nacional é igualmente assegurado o direito de voto nas eleições para Presidente e Vice-Presidente da
República, em urnas especialmente instaladas nas capitais dos Estados e na forma regulamentada pelo Tribunal
Superior Eleitoral. (Incluído pela Lei nº 12.034, de 2009)”. O art. 61 da Lei Orgânica dos Partidos Políticos (Lei
nº 9.096/95) referenda a mesma tese: “O Tribunal Superior Eleitoral expedirá instruções para a fiel execução
desta Lei”.
A corroborar nossa afirmação o escólio de Paulo José M. Lacerda, Renato César Carneiro e Valter Félix da
Silva: “O título genérico ‘Instruções’, regras que explicitam a legislação eleitoral, normalmente editadas
através de Resoluções, com nítido caráter vinculativo e força de regra geral, materializa o poder regulamentar
atribuído ao Tribunal Superior Eleitoral, sendo de grande utilidade, posto que interpreta, não só os dispositivos
do Código Eleitoral, mas também as leis eleitorais esparsas, o que facilita o seu entendimento e aplicabilidade.
[...]. A atividade regulamentar é característica da função administrativa da Justiça Eleitoral, através da qual o
Tribunal Superior Eleitoral expede Instruções, que são atos normativos de caráter abstrato, com a função de
explicitar a lei eleitoral, a exemplo do regulamento expedido pelo Poder Executivo. [...] A função regulamentar
da Justiça Eleitoral apresenta-se através das Instruções Normativas Eleitorais, que são editadas através de
Resoluções. As Instruções Eleitorais são atos normativos editados por força da própria lei eleitoral e decorrem
do poder regulamentar do Tribunal Superior Eleitoral. [...] Sendo as Instruções do Tribunal Superior Eleitoral a
materialização do poder regulamentar dessa justiça especializada, assemelhando-se aos Decretos emanados do
Poder Executivo, através do qual o Presidente da República exerce a mesma função de regulamentar as leis, elas
não ‘traduzem emanação da função legislativa, mas verdadeira atividade administrativa de caráter normativo’”
(LACERDA, Paulo J. M.; CARNEIRO, Renato César; SILVA, Valter Félix da. Poder normativo da Justiça Eleitoral.
João Pessoa: Sal da Terra, 2004. p. 37; 49; 55).

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
324 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

recepcionou.2 O poder regulamentar do presidente vem nela previsto.3 Assim como o


do CNJ.4
A Lei nº 9.504/97, alterada em 29.9.2009 (pela Lei nº 12.034), em seu art. 105, foi
mais além, ao fixar o que a Constituição da República não conferiu ao TSE:

Art. 105. Até o dia 5 de março do ano da eleição, o Tribunal Superior Eleitoral, atendendo ao
caráter regulamentar e sem restringir direitos ou estabelecer sanções distintas das previstas nesta
Lei, poderá expedir todas as instruções necessárias para sua fiel execução, ouvidos, previamente,
em audiência pública, os delegados ou representantes dos partidos políticos. (Redação dada pela
Lei nº 12.034, de 2009).

Tal dispositivo, embora contrário à Constituição, expressa o ânimo jurídico de


estabelecer limites ao poder regulamentar do TSE,5 para que esse órgão do Judiciário
se contenha nos limites próprios dessa atividade normativa, que é dar fiel execução às
leis, sem alterá-la ao sabor das conveniências da autoridade com poder normante.6 Mas
além desse ânimo, a lei eleitoral impôs duas questões, que afetam o tema deste ensaio:
não poderá o TSE, com as instruções regulamentares, restringir direitos (como o de
candidatura etc.), e deverá ouvir, previamente, em audiência pública, os delegados e
representantes dos partidos políticos.7

Igualmente, Eneida Desirre Salgado: “A elaboração das ‘instruções’ para o fiel cumprimento da legislação
eleitoral pelo Tribunal Superior Eleitoral fundamenta-se em dispositivos infraconstitucionais: no parágrafo
único do artigo 1º e no inciso IX do artigo 23 do Código Eleitoral, no artigo 61 da Lei dos Partidos Políticos (Lei
9.096/95) e no artigo 105 da Lei das Eleições (Lei 9.504/97)” (SALGADO, Eneida Desirre. Princípios constitucionais
estruturantes do direito eleitoral. 345 f. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba,
2010. p. 302).
2
Vide rol de dispositivos constitucionais que não o trataram, sequer reflexamente, constante dos arts. 118 a 121 da
CF.
3
Constituição da República de 1988: “Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: [...]. IV -
sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução; [...]”.
4
“Art. 103-B. O Conselho Nacional de Justiça compõe-se de 15 (quinze) membros com mandato de 2 (dois) anos,
admitida 1 (uma) recondução, sendo: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 61, de 2009) [...] §4º
Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento
dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo
Estatuto da Magistratura: I - zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da
Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências;
II - zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos
administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou
fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência
do Tribunal de Contas da União”.
5
Com muita propriedade, sobre esse dispositivo, critica Eneida Desirre Salgado: “Os legisladores se deram
conta dessa interferência indevida e, por meio de uma norma jurídica, estabeleceram, de maneira acaciana e
conceitualmente equivocada, que a competência do Tribunal Superior Eleitoral para editar instruções tem caráter
regulamentar e não pode restringir direitos ou estabelecer sanções não previstas em lei. E foi além: impôs a
participação dos partidos” (SALGADO, Eneida Desirre. Princípios constitucionais estruturantes do direito eleitoral.
345 f. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2010. p. 314. Grifos nossos).
6
Ver Eneida Desirre Salgado “[...] caso se conceba, erroneamente, a competência regulamentar da Justiça Eleitoral
como válida, deve-se reconhecer-se os limites estritos deste poder. A competência regulamentar é uma espécie de
poder normativo, mas vinculada, no ordenamento jurídico brasileiro, à edição de normas secundárias para a
execução direta de uma lei específica. Seu fundamento formal deriva da Constituição e seu alcance não atinge
a regulamentação direta das normas constitucionais – competência, por excelência, do Poder Legislativo”
(SALGADO, Eneida Desirre. Princípios constitucionais estruturantes do direito eleitoral. 345 f. Tese (Doutorado em
Direito) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2010. p. 302. Grifos nossos).
7
Os partidos, através de seus representantes, não foram ouvidos sobre o tema, já que há 18 legendas a procurar
a Presidência da Suprema Corte Eleitoral para demover o TSE de levar adiante este excesso normativo, como
noticiado pela grande imprensa, em 15.3.12.

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RUY SAMUEL ESPÍNDOLA
PODER REGULAMENTAR E TSE: FONTE DO DIREITO ELEITORAL INCONSTITUCIONAL E EXERCÍCIO ABUSIVO DESSE PODER NORMANTE
325

Não obstante a regra da Lei nº 9.504/97, a base do poder regulamentar para o


TSE é inconstitucional, pois não encontra chão na vigente ordem constitucional.8 E a Lei
nº 9.504/97 não poderia ter ido além do quanto fixado na Constituição. O art. 105 dessa
lei, conferido pela Lei nº 12.034/09, é inconstitucional, pois o poder regulamentar é
poder sob reserva de constituição e não pode ser conferido aos órgãos constitucionais
pelo alvedrio do legislador ordinário.
Já tivemos oportunidade de sublinhar tal ideia em trabalho que tratou da separação
de poderes e princípio da legalidade, temas iluminantes da compreensão do poder regulamentar
entre nós:

Essa concepção está presente na teoria constitucional contemporânea, no constituciona­lis­


mo hodierno, e, principalmente, nas constituições atuais, como a brasileira de 1988 (artigo
2º). Nela, a separação de poderes é objeto de reserva de Constituição, ou seja, o que cabe na matéria
atinente ao princípio da separação deve estar tratado diretamente, expressa e/ou implicitamente,
no texto constitucional.
Essa reserva de constituição se justificaria, entre tantas razões, por exigência de regulação
firme, segura e estável das relações e controles recíprocos entre os órgãos de poder,
especialmente entre o Legislativo e o Governo, aqui entendido como Executivo, sem
descurar-se do Judiciário. Essa exigência político-jurídica revela-se no ideário que afirma
que é na Constituição que as linhas mestras e toda a matéria pertinente ao tema separação
de poderes se exaure, especialmente no que toca às competências/atribuições dos órgãos de
poder, não só em relação às suas tarefas e missões constitucionais relativamente à sociedade,
mas, especialmente, nas suas relações entre si e nas suas relações intra-poderes, ou melhor:
no que toca ao relacionamento entre os poderes legislativo, executivo e judiciário, tudo deve estar
positivado através de regras jurídicas contidas e exauridas no texto constitucional.
Segundo Hans Kelsen a matéria referente à separação de poderes, suas funções, seus agentes,
suas prerrogativas, seus procedimentos mínimos de atuação, deve ser objeto de reserva de
constituição, pois tratá-la em legislação ordinária é permitir que as relações entre poderes,
que devem ser regradas estavelmente, possam ser alteradas por maiorias parlamentares
circunstanciais, o que implicaria grande instabilidade nas relações institucionais entre
os Poderes do Estado (Teoria Geral do Direito e do Estado, São Paulo, Martins Fontes,
1990). Assim não fosse o jogo do poder não teria regras claras, precisas, garantidoras de
calculabilidade e segurança jurídicas (Noberto Bobbio, “Governo dos Homens ou Governo
das Leis”, O Futuro da Democracia – uma defesa das regras do jogo, 4 ed, Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 1989, p. 151/171).
Nesse víeis, o que estivesse seguro hoje, através regra positiva, facilmente seria alterado
amanhã, quando forças políticas circunstantes pudessem mudar, ordinariamente, o cenário
estabelecido pelo Direito.9

8
Vale destacar, outra vez, as lições de Eneida Desirre Salgado: “a atuação da Justiça Eleitoral na expedição de
resoluções é inconstitucional. Sem previsão expressa na Constituição e em face de uma função atípica, não
se pode considerar a possibilidade de elaboração de normas, ainda que secundárias, pelo Poder Judiciário.
[...] A Justiça Eleitoral não está entre os órgãos competentes para a expedição de atos normativos segundo a
Constituição. Logo, a elaboração de resoluções não tem respaldo constitucional. Não obstante, essa questão
não se coloca, seja pela doutrina, seja pela jurisprudência. O que se pode admitir é a expedição de instruções,
compreendidas adequadamente – que se destinem apenas à atuação administrativa da Justiça Eleitoral, sem
possibilidade de seus efeitos atingirem os particulares” (SALGADO, Eneida Desirre. Princípios constitucionais
estruturantes do direito eleitoral. 345 f. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba,
2010. p. 301-302).
9
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Separação de poderes, legalidade administrativa e anuência legislativa para aquisição
de imóvel por doação. Revista Interesse Público, Porto Alegre, n. 34, p. 235-265, 2005.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
326 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Razões históricas, de conveniência política, pragmáticas, “de bom senso”, de


“natureza das coisas” (jusnaturalistas), não podem validar perante nosso direito positivo
o poder regulamentar do TSE.10 Todavia, além de a base deste poder ser inconstitucional
para o TSE,11 o seu exercício por esta Corte tem sido inconstitucional, muitas vezes.12

10
Essas razões extrajurídicas foram sumariadas por Paulo José M. Lacerda, Renato César Carneiro e Valter Félix
da Silva: “o poder regulamentar do TSE se justificaria, como exceção ao poder regulamentar do presidente,
pois essa autoridade tem interesse político-partidário no resultado eleitoral. [...] Também o ‘bom senso’
e a ‘natureza das coisas’, ‘na prática’, afirmam que o TSE deva continuar a exercer poder regulamentar. [...]
Ainda, tal poder seria ‘inerente e peculiar às tarefas administrativa e judicial da Justiça Eleitoral’ [...]. Razões
históricas e até pragmáticas justificariam a função regulamentar da Justiça Eleitoral [...]. Suprimido esse poder
da justiça eleitoral, o processo eleitoral seria prejudicado, entregue a lerdeza do Legislativo. [...] Ainda como
razão pragmática, se alega que como é próprio ao Executivo regulamentar as leis ordinárias, ao Poder Judiciário
caberia regulamentar as leis eleitorais” (LACERDA, Paulo J. M.; CARNEIRO, Renato César; SILVA, Valter Félix
da. Poder normativo da Justiça Eleitoral. João Pessoa: Sal da Terra, 2004. p. 18; 44-45).
Cabe enfatizar: nenhuma dessas razões, verdadeira e validamente, se ambientam no direito positivo brasileiro; elas não
podem receber o aceite da doutrina especializada ou o referendo de exegeses do Judiciário que estejam fundadas
em razões jurídico-constitucionais positivas; fundadas em reflexão séria e comprometida com os direitos das
pessoas e com os limites dos poderes de estado; fundadas em bases argumentativas jusfundamentais (Robert
Alexy); fundadas sobre a inteligência hodierna do que se convencionou chamar de Estado Democrático de
Direito.
11
Como referenda o tratadista brasileiro do poder regulamentar, tendo em conta a ordem constitucional antecedente
que fora mais complacente, em suas normativas, com atos normativos sem elaboração e debates congressuais
parlamentares, Diógenes Gasparini: “No que diz respeito à competência, só os chefes dos Poderes Executivos,
em nosso sistema, podem editar regulamentos. É, portanto, uma atribuição privativa. [...] O regulamento é
ato privativo e indelegável dos chefes dos Poderes Executivo da União, dos Estados e dos Municípios. Nulo
é o regulamento expedido por outro órgão, agente ou pessoa” (GASPARINI, Diógenes. Poder regulamentar. 2. ed. São
Paulo: RT, 1982. p. 9; 159).
12
Rememoremos exemplo emblemático ocorrido durante a eleição de 2008 – e que nos fez, na qualidade de
advogado, aduzir tema de inconstitucionalidade perante a Justiça Eleitoral. Para os fins deste ensaio readaptamos
os argumentos advocatícios outrora deduzidos em processo judicial: “Inconstitucionalidade material do inciso X,
do artigo 1º, da Resolução-TSE n. 22.623/07 - Violação a regras e a princípios que compõem a disciplina
constitucional da legalidade (artigos 1º, caput, 5º, II, XXXIX, c/c 84, IV, da Constituição da República) – Instituição
de obrigação de registrar informação quanto ao número de registro da empresa responsável pela pesquisa
eleitoral no Conselho Regional de Estatística – Positivação não por lei emanada do Congresso Nacional e sim
por mera resolução expedida pelo TSE – Malferimento do princípio da reserva legal em matéria sancionadora
eleitoral”.
O inc. X não tem previsão no art. 33 da Lei nº 9.504/97. Não está referido em qualquer dispositivo da Lei
nº 9.504/97 ou em qualquer outra lei eleitoral. Tal dispositivo tribunalício é inconstitucional, pois não se assentou
na lei, mas no puro arbítrio normante do TSE. Esse regulamento/resolução, introduziu incabível regra de obrigação
de prestar informações à Justiça Eleitoral, com sanção de multa pecuniária de 50.000 a 100.000 UFIRs, afrontando
o princípio constitucional da legalidade (arts. 1º, 5º, II, c/c 84, IV, CF). Essa crítica se aplica, em todos os seus argumentos,
à previsão novidadeira de que a rejeição de contas em 2010 não poderá ensejar quitação eleitoral a ser dada para a eleição
de 2012. Lembramos, ainda, que impedir registro de candidatura é, em termos teóricos e pragmáticos, gerar
inelegibilidade (ver SOARES, Adriano da Costa. Instituições de direito eleitoral. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2008. p. 3; 60).
Outro exemplo de atuação inconstitucional do TSE, em matéria regulamentar (ou normativa), é lembrado por
Eneida Desirre Salgado: “O artigo 6º da Lei das Eleições (Lei 9.504/97) trata da possibilidade das coligações.
A interpretação tomada na eleição de 1998 foi afastada em 2002 por uma consulta ao Tribunal Superior
Eleitoral (consulta 715). A partir dessa nova interpretação, dada em 26 de fevereiro de 2006, as coligações que
se realizaram neste ano tiveram que obedecer à ‘verticalização das coligações’. Essa ‘interpretação’ do Tribunal
Superior Eleitoral foi afastada pela Emenda Constitucional 52, de 08 de março de 2006. Essa decisão legislativa,
que alcançou consenso qualificado nas duas casas, em duas votações, previa sua aplicação nas eleições de 2006.
O Supremo Tribunal Federal, no entanto, paradoxalmente, declarou inconstitucional esse dispositivo em ação
direta de inconstitucionalidade (3685-8). A emenda teve que esperar o prazo do artigo 16 da Constituição.
A resolução foi aplicada imediatamente. Joel José Cândido sublinha que a menos de quatro meses da realização
das convenções já havia tratativas em curso sobre candidatos e vices, bem como pesquisas de intenção de voto
a respeito de nomes já cogitados. Houve prejuízo do processo eleitoral com a modificação do entendimento
do Tribunal Superior Eleitoral. Mais do que isso. Como aponta Monica Herman Salem Caggiano, a imposição
de verticalização fere a autonomia partidária e é matéria reservada à lei e não ao regulamento” (SALGADO,
Eneida Desirre. Princípios constitucionais estruturantes do direito eleitoral. 345 f. Tese (Doutorado em Direito) –
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2010. p. 309).

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RUY SAMUEL ESPÍNDOLA
PODER REGULAMENTAR E TSE: FONTE DO DIREITO ELEITORAL INCONSTITUCIONAL E EXERCÍCIO ABUSIVO DESSE PODER NORMANTE
327

Tomamos como exemplo, caso antigo, já superado, mais que mostra quão
abusivo tem sido esse poder: o caso da regra instituída por “ato de interpretação”, com
reflexos para aqueles candidatos que tiveram contas rejeitadas nos pleitos municipais
de 2010, e que iriam postular mandatos de vereador ou prefeito nas eleições de 2012.
Falamos da “interpretação normativa” que o TSE “inseriu”, repetindo-se,13 na Resolução
nº 22.715/2008, art. 41, §3º.14
O TSE, nesse caso de normação regulamentar, por 4 votos a 3, agiu como se não
houvesse diferença entre positivação de uma regra, pelo poder constitucionalmente
instituído para produzi-la (o Congresso Nacional), e o ato de interpretação e aplicação
dela pelo poder judicial (Justiça Eleitoral). Agiu como se não houvesse um limite para
o intérprete no ato de interpretar o enunciado linguístico do dispositivo e o produto do
resultado desta interpretação: a norma jurídica válida. No caso, transbordou dos limites
interpretativos do §7º, do art. 11 da Lei Ordinária nº 9.504/97,15 que fala da apresentação
de contas e quitação eleitoral. Assim agindo, este Tribunal Superior, ilegitimamente,
“reescreveu” o dispositivo legal, como se legislador fosse.16 Alterou a normativa
positivada pelo legislador eleitoral, em usurpação de sua competência e em afronta
aos direitos políticos dos cidadãos (tanto dos eleitores, quanto de futuros candidatos).17

13
“Novamente”, pois já debatido no TSE, durante o pleito de 2008, com a introdução formal da criticada regra.
Todavia, repelido pelo próprio Tribunal Superior, por entendê-la desbordante do texto legal. Agora volta à
tona regra/exegese que se entendia sepultada por que incompatível com missão regulamentar... por certo, que ao
reboque de moralismo eleitoral!
14
“Art. 41. A decisão que julgar as contas dos candidatos eleitos será publicada em até 8 dias antes da diplomação
(Lei nº 9.504/97, art. 30, §1º). §1º Desaprovadas as contas, o juízo eleitoral remeterá cópia de todo o processo ao
Ministério Público Eleitoral para os fins previstos no art. 22 da Lei Complementar nº 64/90 (Lei nº 9.504/97, art.
22, §4º). [...]. §3º Sem prejuízo do disposto no §1º, a decisão que desaprovar as contas de candidato implicará o
impedimento de obter a certidão de quitação eleitoral durante o curso do mandato ao qual concorreu”.
15
“Art. 11. Os partidos e coligações solicitarão à Justiça Eleitoral o registro de seus candidatos até as dezenove
horas do dia 5 de julho do ano em que se realizarem as eleições. [...]. §7º A certidão de quitação eleitoral abrangerá
exclusivamente a plenitude do gozo dos direitos políticos, o regular exercício do voto, o atendimento a convocações
da Justiça Eleitoral para auxiliar os trabalhos relativos ao pleito, a inexistência de multas aplicadas, em caráter
definitivo, pela Justiça Eleitoral e não remitidas, e a apresentação de contas de campanha eleitoral. (Incluído pela Lei
nº 12.034, de 2009)”.
16
E nesse sentido calha a crítica jurídica defluente deste precedente do STF: “Lei 6.683/1979, a chamada ‘lei de
anistia’. [...] princípio democrático e princípio repu­blicano: não violação. [...] No Estado Democrático de Direito, o
Poder Judiciário não está autorizado a alterar, a dar outra redação, diversa da nele contemplada, a texto normativo. Pode, a
partir dele, produzir distintas normas. Mas nem mesmo o STF está autorizado a reescrever leis de anistia. Revisão de lei
de anistia, se mudanças do tempo e da sociedade a impuserem, haverá – ou não – de ser feita pelo Poder Legislativo,
não pelo Poder Judiciário” (STF, Plenário. ADPF nº 153. Rel. Min. Eros Grau, j. 29.4.2010. DJe, 6 ago. 2010. Grifos
nossos).
17
Citando José Delgado, Paulo José M. Lacerda, Renato César Carneiro e Valter Félix da Silva: “o regulamento
eleitoral, quando expedido, deve se submeter às limitações legais que sobre ele, normalmente, recaem, pelo
que não deve, em nenhuma hipótese, alcançar a integridade de qualquer direito ou garantia fundamental do cidadão,
nem diminuir ou aumentar os limites dos direitos subjetivos constituídos pela lei eleitoral” (LACERDA, Paulo J. M.;
CARNEIRO, Renato César; SILVA, Valter Félix da. Poder normativo da Justiça Eleitoral. João Pessoa: Sal da Terra,
2004. p. 85).
Essa também é a opinião da eleitoralista Eneida Desirre Salgado: “De qualquer forma, os regulamentos não
podem, sob pena de inconstitucionalidade, alterar ou substituir leis. Não podem criar direitos ou obrigações.
Não podem restringir nem ultrapassar a lei. E os regulamentos de execução estão essencialmente limitados
pela lei que os fundamenta. Não se podem admitir regulamentos emanados do Poder Judiciário em matéria
eleitoral. Menos ainda a possibilidade de regulamentos autônomos em face do princípio constitucional da estrita
legalidade. [...] A atuação do Tribunal Superior Eleitoral em matéria de resoluções, se admitida (inobstante sua
inconstitucionalidade), deve se subordinar à noção de função regulamentar de maneira estrita: aquela em que
não há espaço para discricionariedade qualquer, mas apenas se deve desdobrar, especificar o que a lei determina
de modo genérico. Dessa forma, as resoluções eleitorais devem se restringir a esclarecer datas, competências e

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
328 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

E isso lhe é vedado pela ordem constitucional vigente.18 Feriu o chamado princípio do
congelamento hierárquico, tão bem explicado por J. J. Gomes Canotilho.19
O entendimento do TSE, no caso da negativa de conferir quitação eleitoral a
quem teve contas rejeitadas na eleição de 2010, fere os princípios da legalidade e o da
separação de poderes, e o princípio da segurança jurídica, corolário dos dois últimos – já
se sabe que 21.000 pessoas serão afetadas, retroativamente, como esclareceu a Ministra
Nancy Andrighi.
O poder que produz a norma não pode aplicá-la, em julgamentos, em casos
concretos. Só o STF pode fazê-lo, no caso de súmulas vinculantes, por autorização consti­
tucional expressa.20 O princípio constitucional estruturante da separação de poderes foi
violado,21 assim como o princípio geral da legalidade (que no caso é de reserva quali­
ficada, pois reclamaria lei complementar),22 23 no caso da regra da resolução em crítica.

procedimentos para a eleição específica que será disputada, facilitando a compreensão da legislação eleitoral.
Apenas isso. [...] As resoluções do Tribunal Superior Eleitoral, se afastada sua inconstitucionalidade absoluta,
somente podem ter a natureza jurídica de regulamentos de execução, destinados a facilitar a execução da lei,
precisando o conteúdo dos seus conceitos e determinando os procedimentos a serem tomados pela Justiça
Eleitoral em sua função administrativa. Não inovam a ordem jurídica, não podem operar contra a lei, para
além da lei, são completamente subordinados à lei: ‘Qualquer de suas disposições que contrarie dispositivo
de lei a que o mesmo [o regulamento de execução] se refere, ou de qualquer outra lei, não pode ter aplicação’”.
(SALGADO, Eneida Desirre. Princípios constitucionais estruturantes do direito eleitoral. 345 f. Tese (Doutorado em
Direito) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2010. p. 302-303; 305).
18
Cf. Paulo José M. Lacerda, Renato César Carneiro e Valter Félix da Silva: “[...] a função normativa da Justiça Eleitoral
é atividade normativa secundária, porquanto expressa através das Instruções Normativas, que não estão elencadas
como atos normativos primários, previstos no art. 59 da Constituição Federal, não possuindo o poder de inovar a
ordem jurídica. [...] Pinto Ferreira: ‘As Instruções do Tribunal Superior Eleitoral devem concordar com o texto
legal, para que tenham eficácia’. [...] a Corte Eleitoral não pode, por ocasião do exercício dessa competência, puramente
regulamentar, alterar o texto da lei” (LACERDA, Paulo J. M.; CARNEIRO, Renato César; SILVA, Valter Félix da.
Poder normativo da Justiça Eleitoral. João Pessoa: Sal da Terra, 2004. p. 80; 82).
19
Eneida Desirre Salgado, citando Canotilho, explica este princípio: “José Joaquim Gomes Canotilho assim explica
o princípio do congelamento do grau hierárquico: ‘Quando uma matéria tiver sido regulada por acto legislativo,
o grau hierárquico desta regulamentação fica congelado, e só um outro acto legislativo poderá incidir sobre a
mesma matéria, interpretando, alterando, revogando ou integrando a lei anterior’ (CANOTILHO, José Joaquim
Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. cit., p. 780-781)” (SALGADO, Eneida Desirre.
Princípios constitucionais estruturantes do direito eleitoral. 345 f. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade
Federal do Paraná, Curitiba, 2010. p. 307, nota 1213).
20
“Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços
dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua
publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração
pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento,
na forma estabelecida em lei. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (Vide Lei nº 11.417, de
2006). §1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais
haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave
insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. §2º Sem prejuízo do que vier
a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que
podem propor a ação direta de inconstitucionalidade. §3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar
a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a
procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com
ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso”.
21
“Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
22
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: [...]. II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei; [...].”
23
Sobre esses três princípios (separação de poderes, legalidade administrativa e segurança jurídica) vejam
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Princípios constitucionais e atividade jurídico-administrativa. Anotações em torno

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RUY SAMUEL ESPÍNDOLA
PODER REGULAMENTAR E TSE: FONTE DO DIREITO ELEITORAL INCONSTITUCIONAL E EXERCÍCIO ABUSIVO DESSE PODER NORMANTE
329

Esse poder regulamentar do TSE deve ser suprimido, por revogação, em reforma
do Código Eleitoral e da legislação eleitoral.
Por outro lado, em termos pragmáticos, a consequência da regra criada por
resolução interpretativa (a que nega quitação eleitoral aos que tiverem as contas
rejeitadas) era, às avessas do direito, criação de nova hipótese de inelegibilidade, me­
diante resolução do TSE e não por lei complementar concretizante do §9º do art. 14, da
CF.24 25 Assim, o TSE agredia os direitos fundamentais de candidatura dos cidadãos, pois
criara situação jurídica não prevista em lei complementar, restritiva do status activus.
O fichalimpismo majoritário do TSE é contra constitutione e contra legem.26 E no caso
em comento namora um aspecto do fascismo:27 aquele que desrespeita a democracia
representativa e os direitos fundamentais com alto clamor popular. Se o TSE insistisse

de questões contemporâneas. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3138, fev. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/
revista/texto/20988>. Acesso em: 3 fev. 2012. E do mesmo autor Separação de poderes, legalidade administrativa
e anuência legislativa para aquisição de imóvel por doação. Revista Interesse Público, Porto Alegre, n. 34, p. 235-
265, 2005.
24
“Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual
para todos, e, nos termos da lei, mediante: [...] §9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade
e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício
de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a
influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou
indireta. (Redação dada pela Emenda Constitucional de Revisão nº 4, de 1994)”.
25
Essa opinião é também a do maior dos eleitoralista, Adriano da Costa Soares, manifestada em seu afamado
blog: “[...] me impressiona [...] a discussão sobre a inelegibilidade (isso mesmo, chamemos as coisas pelo nome)
cominada pela rejeição de contas, representada pela negativa de certidão de quitação eleitoral, mesmo em
expressa e desabrida ofensa à Lei 9.504/97, com a redação que lhe foi dada pela Lei nº 11.300/2006, conforme
notícia veiculada no site do Tribunal Superior Eleitoral: ‘Ao apresentar seu voto-vista na sessão desta noite,
a ministra Nancy Andrighi defendeu a exigência não apenas da apresentação das contas, como ocorreu nas
Eleições 2010, mas também da sua aprovação pela Justiça Eleitoral para fins de obter a certidão de quitação
eleitoral. A certidão de quitação eleitoral é documento necessário para obtenção do registro de candidatura, sem
o qual o candidato não pode concorrer. De acordo com a ministra, não se pode considerar quite com a Justiça
Eleitoral o candidato que tiver suas contas reprovadas. [...] ‘O candidato que foi negligente e não observou
os ditames legais não pode ter o mesmo tratamento daquele zeloso que cumpriu com seus deveres. Assim, a
aprovação das contas não pode ter a mesma conseqüência da desaprovação’, disse Nancy Andrighi ao reafirmar
que quem teve contas rejeitadas não está quite com a Justiça Eleitoral. [...] Ela destacou ainda que existem mais
de 21 mil candidatos que tiveram contas reprovadas e que se encaixam nessa situação. [...] Por essas razões, a
ministra sugeriu a inclusão de um dispositivo na resolução para se adequar ao novo entendimento. O dispositivo
a ser incluído já estava previsto na Resolução 22.715/2008 (artigo 41, parágrafo 3º) e prevê que ‘a decisão que
desaprovar as contas de candidato implicará o impedimento de obter a certidão de quitação eleitoral’. [...]’ Já tive
oportunidade de escrever sobre esse tema no blog. O que me espanta, nessa quadra, é que os votos vencedores
da decisão simplesmente, sem pejo, criaram uma espécie de ‘direito achado na rua’. Substituindo as razões do
legislador, sobrepuseram-lhe as razões políticas do julgador, aplicando o ‘eu acho’ judicial, que vale mais do que
a norma positivada. O ‘eu acho judicial’ termina sendo uma abolição da segurança jurídica, de um lado, e um abuso do
poder regulamentar do Tribunal Superior Eleitoral, de outro lado, que apenas poderia editar resoluções regulamentares nos
limites precisos. [...] Apesar do abuso de poder regulamentar – que às mancheias fica evidenciado nessa decisão do TSE –,
impressiona o apelo à insegurança jurídica que ela suscita” (SOARES, Adriano da Costa. Quitação eleitoral e
hipermoralização do direito: na era do “fichalimpismo”. Blog de Adriano da Costa Soares, 2 mar. 2012. Disponível
em: <http://adrianosoaresdacosta.blogspot.com.br/search/label/fichalimpismo>. Acesso em: 22 abr. 2012. Grifos
nossos).
26
A expressão foi cunhada por Adriano da Costa Soares em Quitação eleitoral e hipermoralização do direito: na era
do “fichalimpismo”. Blog de Adriano da Costa Soares, 2 mar. 2012. Disponível em: <http://adrianosoaresdacosta.
blogspot.com.br/search/label/fichalimpismo>. Acesso em: 22 abr. 2012.
27
A intertextualidade dessa colocação pressupõe as seguintes leituras: BOBBIO, Norberto. Ensayos sobre el fascismo.
Tradução de Luis Rossi. Buenos Aires: Bernal, Universidad Nacional de Quilmes, 2006; e MANN, Michael.
Fascistas. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2008.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
330 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

nesse abuso inconstitucional,28 deveriam as 18 legendas partidárias que recorreram à


Corte suspender a resolução,29 por excesso de poder regulamentar,30 com base no art. 49,
V, da Constituição.31 Ou seja, esses partidos políticos, através do Congresso Nacional,
deveriam, caso fosse necessário, impugnar esse excesso inconstitucional da mais alta
corte eleitoral do país.
A um primeiro olhar pode-se aduzir que a suspensividade prevista no dispositivo
constitucional, como poder atribuído ao Congresso Nacional, abarcaria apenas o poder
regulamentar do Poder Executivo, excluso o exercido por outros poderes da República.
Pensamos que tal interpretação não seja a mais adequada, por que quando da edição
da Constituição de 1988, somente o Executivo detinha o poder regulamentar. Emenda
constitucional o estendeu ao CNJ, sem que o conteúdo tutelar do dispositivo V, do
art. 49, fosse atualizado em sua redação. Todavia a mudança da letra da Constituição,
relati­vamente ao CNJ, transformou a forma de se compreender o inc. V, do art. 49. Ou
seja, operou-se mutação na competência tutelar: qualquer poder regulamentar, exercido
por qualquer autoridade autorizada a fazê-lo, pode sofrer a suspensão do art. 49, inc. V,
desde que desborde dos limites constitucionais de seu exercício. Trata-se de mutação
consti­tucional operada no conteúdo normativo dos poderes de suspensividade de ato
regula­mentar desbordante da Constituição.
Assim, seria preciso uma resposta da democracia representativa aos excessos
da autocracia judicial.32 Esse excesso do TSE é apenas um dos aspectos de uma guerra
silenciosa sendo travada entre os poderes da República. Há um levante dos sem manda­
to político contra os com mandato político. Há muitos agentes políticos sem mandato

28
No sentido exposto, calha lembrar precedente do STF: “O princípio da reserva de lei atua como expressiva
limitação constitucional ao poder do Estado, cuja competência regulamentar, por tal razão, não se reveste de
suficiente idoneidade jurídica que lhe permita restringir direitos ou criar obrigações. Nenhum ato regulamentar
pode criar obrigações ou restringir direitos, sob pena de incidir em domínio constitucional­mente reservado ao âmbito de
atuação material da lei em sentido formal. O abuso de poder regulamentar, especialmente nos casos em que o Estado
atua contra legem ou praeter legem, não só expõe o ato transgressor ao controle jurisdicional, mas viabiliza,
até mesmo, tal a gravidade desse comportamento governamental, o exercício, pelo Congresso Nacional, da
competência extraordinária que lhe confere o art. 49, V, da CF e que lhe permite ‘sustar os atos normativos do
Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar [...]’. Doutrina. Precedentes (RE 318.873‑AgR/SC, Rel.
Min. Celso de Mello, v.g.)” (STF, Plenário. AC nº 1.033‑AgR‑QO, Rel. Min. Celso de Mello, j. 25.5.2006. DJ, 16 jun.
2006. Grifos nossos).
29
Cf. GUERREIRO, Gabriela. Partidos pedem que TSE reveja decisão sobre contas. Midia Jur, 15 mar. 2012.
Disponível em: <http://www.midiajur.com.br/conteudo.php?sid=235&cid=2627>. Acesso em: 22 abr. 2012:
“Partidos pedem que TSE reveja decisão sobre contas – Corte decidiu que rejeição de contas é motivo para não expedição de
quitação eleitoral – Representantes de 18 partidos vão pedir ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) que reconsidere
a decisão de proibir, nas eleições municipais deste ano, candidaturas de políticos que tiveram as contas da
campanha eleitoral de 2010 rejeitadas”.
30
Da lição imorredoura do grande Geraldo Ataliba, retiramos o seguinte excerto: “É próprio da lei o criar, extinguir
ou modificar normativamente direitos, de modo inauguralmente inovador. Só o órgão legislativo, no nosso
sistema, tem competência para modificar, no plano normativo, a ordem jurídica. Só os órgãos representativos
podem instaurar ou suprimir direitos ou situações genéricas e abstratas. ‘Onde se estabelecem, alteram ou
extinguem direitos, não há regulamentos – há abuso de poder regulamentar, invasão de competência legislativa’ (Celso
Antonio Bandeira de Mello...)” (ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
p. 147. Grifos nossos).
31
“Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: [...] V - sustar os atos normativos do Poder
Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”.
32
Sobre o conceito de democracia representativa, ver ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Democracia participativa:
autoconvocação de referendos e plebiscitos pela população. Análise do caso brasileiro. Jus Navigandi, Teresina,
ano 17, n. 3153, fev. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21124>. Acesso em: 18 fev. 2012.

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RUY SAMUEL ESPÍNDOLA
PODER REGULAMENTAR E TSE: FONTE DO DIREITO ELEITORAL INCONSTITUCIONAL E EXERCÍCIO ABUSIVO DESSE PODER NORMANTE
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querendo se adonar de parcela da representação que só cabe aos eleitos pelo voto
popular e com respaldo popular. Não podemos aceitar o elitismo de Platão, com “juízes
filósofos” que dirão ao povo quem deve e como se deve governar. Isso cabe ao povo
escolher e dizer! Esse é o espaço da democracia representativa. O caminho majoritário
escolhido pelo TSE, se tivesse sido mantido, no caso das contas eleitorais rejeitadas em
2010, levar-nos-ia ao atalho da autocracia judiciária.
Essa “guerra” ainda não percebida pelos mandatários políticos tem como alvo o
flanco do mandato político, da representação, do direito de escolha livre e independente,
pelo eleitor, de seus representantes. Nesse processo bélico inconfesso, não tem havido
contenção em se atacar, sem medidas, o direito político fundamental de candidatura, a
outra face da pedra angular da democracia representativa.
Que nunca fique sem resposta institucional legítima, pelos exercentes de mandato
eletivo, ataques deste jaez à liberdade fundamental de candidaturas. O TSE, com aquela
já superada medida inconstitucional majoritária (4 x 3), deu demonstração de agravo à
democracia representativa e aos direitos políticos.
O TSE, com o abusivo exercício de seu poder regulamentar no caso, inaugurou
nova desavença com disposições constitucionais insofismáveis e com a clara letra da
lei eleitoral ordinária.
A era Robespierre na jurisprudência eleitoral brasileira,33 com certeza, aplaude tais
medidas. Todavia, a razão e o direito devem combatê-las dentro das quadras da legalidade
e da constitucionalidade. Moralidade sem legalidade e sem constitucionalidade é puro
arbítrio judicial. No ponto, ataque à democracia e aos direitos políticos fundamentais.
Essa medida do TSE fora fichalimpista. E há no fichalimpismo um processo cres­
cente de marginalização dos políticos e de demonização da política representativa.34
Há um processo inconfesso de infantilização do eleitor e de sua capacidade de escolha.

33
A alusão a Robespierre pressupõe a leitura de textos que analisam a intolerância que desencadeou esse singular
personagem da revolução francesa sobre as pessoas que não se alinharam ao seu pensamento político. Remete ao
seu radicalismo moral – como um marco desse evento histórico – que derramou muito sangue, sem devido processo
legal, dos adversários de suas concepções moralistas sobre a composição e funcionamento da sociedade e os
direitos de seus indivíduos. Para tal, servimo-nos de SUZINI, Marie-Laure. Elogio da corrupção: os incorruptíveis
e seus corruptos. Tradução de Procópio Abreu. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2010 e SCHAMA, Simon.
Cidadãos – Uma crônica da Revolução Francesa. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras,
1989.
34
Tivemos a oportunidade de escrever textos críticos sobre o ideário ficha limpa e o moralismo que o sustenta, com
aportes críticos à Lei Complementar nº 135/10 e em defesa dos direitos políticos fundamentais de candidatura e
voto. Concordamos com a crítica de Adriano Soares e entendemos que o termo fichalimpismo é adequado como
expressão de reflexão crítica. Assim, para a eventual consulta do atento leitor: ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. STF,
insegurança jurídica e eleições em 2012: até quando o embate entre moralistas e constitucionalistas em torno da lei
ficha limpa? Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2827, 29 mar. 2011. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/
texto/18790>. Acesso em: 2 maio 2011; ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. A Lei Ficha Limpa em revista e os empates no
STF: liberdades políticas em questão e o dilema entre o politicamente correto e o constitucionalmente sustentável.
Revista Interesse Público, Porto Alegre, ano XIII, n. 69, p. 93-108, set./out. 2011; ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Lei
Ficha Limpa estadual e limites constitucionais de sua produção legislativa. Análise da inacessibilidade a cargos
em comissão por condenados por improbidade administrativa sem trânsito em julgado: o caso da lei catarinense.
Revista Brasileira de Direito Eleitoral – RBDE, Belo Horizonte, ano 3, n. 5, jul./dez. 2011; ESPÍNDOLA, Ruy Samuel.
Constituição é seguro critério de julgamento [título original: Moralistas versus Constitucionalistas – o caso
Roriz, no STF]. Revista Consultor Jurídico, 26 set. 2010. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2010-set-26/
moralidade-constitucional-nao-constitui-direito-fundamental>. Acesso em: 18 fev. 2012.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
332 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Há um excessivo moralismo eleitoral,35 36 pernicioso para a democracia constitucional


e seu regime de direitos.37

35
A noção crítica de moralismo eleitoral, mote titular deste ensaio, tem sido desenvolvida pelo eleitoralista Adriano
da Costa Soares. O seu blog está repleto de excertos elucidativos. Seguem exemplos: “Já há algum tempo tenho
chamado a atenção para o que denominei de ‘moralismo eleitoral’, um fenômeno perigoso que tem invadido a
cidadela da jurisprudência eleitoral. [...]. O moralismo eleitoral transforma todos os debates jurídicos eleitorais em
debates morais e – o que é tanto pior! – sempre no compromisso de interditar o mais que possível que os políticos
sejam... políticos. Há sempre um sentimento embutido nessa lógica: entrou na política, bandido é. E, na ânsia
de higienização da política, deseja-se acabar com os políticos, o que nada mais é do que selar o fim da própria
democracia. E, nessa concepção de mundo, esqueceram de um pequeno detalhe: o expurgo a ser feito deveria
ser através do voto, salvo em casos extremos de crimes adrede positivados. Mais, em uma era da entronização
acrítica do ‘fichalimpismo’, o moralismo eleitoral reina absoluto, sem compromisso nenhum com o direito positivo
vigente. É a justiça de mão própria togada, armada do direito achado na rua. [...]”(SOARES, Adriano da Costa.
Quitação eleitoral e hipermoralização do direito: na era do “fichalimpismo”. Blog de Adriano da Costa Soares,
2 mar. 2012. Disponível em: <http://adrianosoaresdacosta.blogspot.com.br/search/label/fichalimpismo>. Acesso
em: 22 abr. 2012. Grifos nossos).
Os
seguintes e elucidativos trechos de sua doutrina foram retirados de outros posts do mesmo blog: “Trata-se
de uma marcha insana de muitos em defesa do moralismo eleitoral, para a instauração de uma democracia sem
votos, sem eleitor. Uma visão ingênua, casuística, em certo sentido reacionária. É a tentativa de construção de
uma democracia tutelada, ao fim e ao cabo, de uma democracia sem previsibilidade, em que a segurança jurídica
é um mal a ser combatido, em que as garantias individuais não passam de um estorvo pequeno burguês”;
“É isso, afinal, do que se trata: o moralismo eleitoral não respeita a Constituição Federal nem o ordenamento jurídico.
Em nome da ética na política, às favas com os escrúpulos [...]”; “Tenho combatido o que passei a denominar
de moralismo eleitoral, ou seja, a adulteração da interpretação das normas jurídicas eleitorais pela aplicação de
critérios acentuadamente morais, muitas vezes em aberta divergência com o próprio ordenamento jurídico posto.
Em nome de princípios defendidos por determinadas minorias (ou mesmo maiorias, pouco importa) afasta-se
a aplicação de determinada norma jurídica positivada, recriando antidemocraticamente o próprio ordenamento
jurídico, sem observar os meios próprios para tanto. [...]. Esse fenômeno crescente de, a partir de uma leitura
principiológica da Constituição, enfraquecimento da própria positividade das normas infraconstitucionais ao
ponto limite de deixarem elas de ser vinculativas para o aplicador, passou a ser sentido de modo alarmante na
leitura que vem se fazendo de relevantes questões eleitorais [...]”; “[...] moralismo eleitoral parte normalmente
de uma compreensão equivocada da teoria da inelegibilidade, que se põe a serviço de um certo justiçamento
antidemocrático, ainda que movido pelas melhores intenções. Não há dúvidas que é necessário depurarmos as
nossas instituições, porém essa é uma tarefa complexa, que não se esgota em medidas irrefletidas, movidas por
um certo voluntarismo, que de tanto simplificar os problemas apenas cria novos problemas”; “Ora, em uma
democracia, quem deve afastar o mau político é o eleitor pelo voto. O critério de definição? Cabe ao eleitor
definir. Porém, essa minoria não acredita na democracia, não acredita no eleitor: prefere, então, criar critérios
de exclusão previamente. Antidemocraticamente. [...]. Ah, mas o eleitor é analfabeto, dirão alguns. Ah, mas o
eleitor vende o voto, dirão outros. Certo, então proibamos o pobre e o analfabeto de votar. Quem terá coragem
de abertamente defender essa tese absurda? Ninguém, por evidente. Então, fingem defender a democracia,
quando na verdade pretendem é criar, às avessas, uma espécie de sufrágio censitário. O eleitor vai votar, é certo,
mas em uma lista antes já submetida a um processo de higienização ideológica. A isso chamo de moralismo eleitoral, essa
forma fundamentalista de aplicação de uma certa moral ao processo eletivo”; “Mas o hipermoralismo eleitoral não quer saber
o que é juridicamente sustentável ou não; interessa a sua sanha macartista, ainda que a Constituição seja desrespeitada.
Este é o ponto: estamos sempre criando atalhos para sustentar essas normas inconstitucionais, mas com apelo popular,
conferindo, assim, ao ordenamento jurídico um tratamento bizarro, sem pé nem cabeça, alimentando a insegurança jurídica.
É disso que se trata. A mim me parece que não podemos negociar a aplicação adequada da Constituição; devem-
se evitar soluções casuísticas que, ao final, se voltarão contra a própria sociedade”.
36
Vale lembrar Gilberto Amado, que nos dá elementos para a crítica deste moralismo eleitoral: “Convém não
esquecer que em política a idéia de perfeição é uma idéia criminosa que deve ser combatida como um dos
maiores males que podem afligir os povos. O que se deve procurar é um justo equilíbrio, o menor mal entre
os males, pois os homens não encontraram ainda o meio de realizar, na coexistência social, o paraíso terrestre”
(AMADO, Gilberto. Eleição e representação apud SALGADO, Eneida Desirre. Princípios constitucionais estruturantes
do direito eleitoral. 345 f. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2010. p. 313,
nota 1238).
37
Sobre a ideia de democracia e seus profundos vínculos normativo-constitucionais, vide ESPÍNDOLA, Ruy
Samuel. A Constituição como garantia da democracia. O papel dos princípios constitucionais. Jus Navigandi,
Teresina, ano 17, n. 3146, fev. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21059>. Acesso em: 11 fev.
2012.

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RUY SAMUEL ESPÍNDOLA
PODER REGULAMENTAR E TSE: FONTE DO DIREITO ELEITORAL INCONSTITUCIONAL E EXERCÍCIO ABUSIVO DESSE PODER NORMANTE
333

A era Robespierre no direito eleitoral precisa de resposta de quem pode acionar


os mecanismos institucionais para fazer valer o Estado Democrático de Direito e seus
princípios basilares.
Se o TSE não tivesse revogado o seu excesso, o Congresso deveria tê-lo suspendido,
a bem da democracia constitucional e dos direitos políticos fundamentais de candidatura
e de voto.
E se até 5.7.2012 não tivesse ocorrido a revogação ou a suspensão daquele arre­
medo de regra regulamentar – Res. nº 22.715/08, art. 41, §3º –, as defesas judiciais das
candidaturas deveriam arguir, incidenter tantum, nos processos de registro, o descompasso
da resolução tanto com a Lei nº 9.507/97, quanto com a Constituição, demonstrando a
sua ilegalidade, e, sobretudo, a sua inconstitucionalidade.
Ou seja, deveriam acionar, nos processos judiciais eleitorais, os controles de legali­
dade e de constitucionalidade, para que a magistratura eleitoral negasse aplicação ao
dispositivo da dita resolução, ou por controle de legalidade, ou por controle de consti­
tu­cionalidade.
Pois não é válido para uma mera resolução do TSE inovar a disciplina normativa
estabelecida pelo legislador ordinário, com afronta à Constituição da República e à Lei
nº 9.504/97. A prerrogativa de inovar a ordem jurídico-material eleitoral cinge-se ao
Congresso Nacional, com a sanção do presidente da República, como estabelecem as
normas constitucionais de competência legislativa e as pertinentes ao processo legislativo
federal (arts. 22, I, 44, 48, caput, 84, IV, primeira parte, da CR).
Assim, qualquer partido político, entre os 18 reclamantes, poderia ajuizar ação
direta de inconstitucionalidade junto ao STF para barrar a inconstitucionalidade
denunciada neste ensaio, que apontou o exercício inconstitucional e excessivo de poder
regulamentar pelo TSE. E a causa de pedir primeira da ADI sequer precisaria ser a
desavença entre a resolução do Tribunal Superior e o texto da Lei nº 9.504/97,38 mas,
sobretudo, o desacordo entre o ilegítimo poder regulamentar do TSE e o seu descompasso
com a ordem constitucional vigente.39

38
O que poderia atrair a censura do STF para o exercício de ADI sobre regulamento excessivo à lei:
“CONSTITUCIONAL [...]. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PRELIMINARES DE [...].
IMPOSSIBILIDADE DE CONTROLE CONCENTRADO DE DECRETO REGULAMENTAR REJEITADAS.
[...]. PARCIAL PROCEDÊNCIA. [...]. III - Rejeição da alegação de impossibilidade de controle concentrado de
decreto regulamentar, posto não se tratar de mero antagonismo entre ato infralegal, de um lado, e lei em sentido
formal, de outro. A controvérsia enfrentada diz respeito ao ato administrativo normativo editado em perfeita
consonância com a lei regulamentada, mas que, assim como ela, supostamente estaria a atentar contra o texto
constitucional” (ADI nº 2.549-DF. Rel. Min. Ricardo Lewandowski). Corroborando essa afirmativa vai a doutrina
de Paulo José M. Lacerda, Renato César Carneiro e Valter Félix da Silva (Poder normativo da Justiça Eleitoral. João
Pessoa: Sal da Terra, 2004. p. 74).
39
Assim, mais uma vez, o ensinamento de Paulo José M. Lacerda, Renato César Carneiro e Valter Félix da Silva:
“As Resoluções dos Tribunais Eleitorais podem ser alvo do controle de constitucionalidade, pois se enquadram
no conceito de ato normativo descrito no art. 102, I, ‘a’, da Constituição Federal. [...]. Sendo assim, compete ao
Supremo Tribunal Federal o controle concentrado de constitucionalidade das leis e atos normativos federais,
incluindo-se neste rol as resoluções advindas do tribunal Superior Eleitoral, na forma de Instruções Normativas.
Noutro aspecto, cabe a qualquer Juiz ou Tribunal Eleitoral exercer o controle difuso desses atos, via incidente
de inconstitucionalidade [...]” (LACERDA, Paulo J. M.; CARNEIRO, Renato César; SILVA, Valter Félix da. Poder
normativo da Justiça Eleitoral. João Pessoa: Sal da Terra, 2004. p. 71-72).

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
334 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

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RUY SAMUEL ESPÍNDOLA
PODER REGULAMENTAR E TSE: FONTE DO DIREITO ELEITORAL INCONSTITUCIONAL E EXERCÍCIO ABUSIVO DESSE PODER NORMANTE
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SCHAMA, Simon. Cidadãos – Uma crônica da Revolução Francesa. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo:
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SOARES, Adriano da Costa. Instituições de direito eleitoral. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
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SUZINI, Marie-Laure. Elogio da corrupção: os incorruptíveis e seus corruptos. Tradução de Procópio Abreu.
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Poder regulamentar e TSE: fonte do direito eleitoral inconstitucional e exercício
abusivo desse poder normante. In: FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de
Moura (Coord.); PECCININ, Luiz Eduardo (Org.). Direito Constitucional Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum,
2018. p. 323-335. (Tratado de Direito Eleitoral, v. 1.) ISBN 978-85-450-0496-7.

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PARTE IV

PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES
DO DIREITO ELEITORAL

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CAPÍTULO 1

O PERCURSO ENTRE REGRAS E PRINCÍPIOS

BRUNO MENESES LORENZETTO

1.1 Introdução
As comunidades são organizadas por um conjunto de signos linguísticos que
procuram, com maior ou menor sucesso, indicar quais condutas devem ser adotadas
pelas pessoas. Vive-se, sem dúvida, em meios permeados por alta densidade de obras
lin­guís­ticas que mandam, proíbem ou permitem determinados comportamentos. Parcela
expressiva de tais construções é derivada de normas jurídicas, de modo que o direito
acaba por ocupar espaço decisivo e manifesto das experiências normativas dos indi­
víduos.1 Isso conduz, inexoravelmente, à busca pelo entendimento de tais inferências,
as quais definem o modo de vida das pessoas em sociedade.
Por isso, refletir a respeito do papel ocupado pelas normas nos ordenamentos
normativos complexos não é uma atividade de pouca relevância. A depender da forma
como é compreendida a composição conceitual, com suas respectivas implicações, de
cada ente normativo, chega-se também a definições da estrutura e função do Estado,
de como as normas devem ser obedecidas pelas pessoas e do modo de funcionamento
da interpretação e aplicação dos direitos.
Uma teoria que defenda uma concepção de direito como apenas um conjunto de
proibições,2 inevitavelmente, recai em problemas a respeito do papel desempenhado
pelo Estado e pelo próprio direito, eis que, mesmo em um modelo de Estado reduzido,
das proibições que venham a ser estabelecidas, inevitavelmente surgirão – ainda que
de forma implícita – permissões para não adotar a conduta proibida. Adverte-se que

1
“Podemos dizer desde já, mesmo em termos ainda genéricos, que o direito constitui uma parte notável, e talvez
também a mais visível, da nossa experiência normativa. E por isso, um dos primeiros resultados do estudo do
direito é o de nos tornar conscientes da importância do ‘normativo’ na nossa existência individual e social”
(BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Bauru: Edipro, 2005. p. 24).
2
Norberto Bobbio trata tal concepção como problemática (BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Bauru:
Edipro, 2005. p. 111).

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340 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

tais modelos são contrafáticos, pois, até o momento, as pessoas se organizam dispondo
simultaneamente de diferentes ações deonticamente modalizadas e de suas derivações.
Uma vez conhecidas tais implicações iniciais, pode-se seguir o caminho das
conceituações categóricas formadas na teoria da norma jurídica, no caso, o percurso entre
regras e princípios. Assim, a proposta do presente artigo se limita a uma explanação não
exaustiva da relação entre as tais espécies normativas e os reflexos que estas concepções
acabam por gerar na forma de entendimento do fenômeno jurídico em sentido mais
amplo.

1.2 Norma como gênero e o problema da sanção


Um ponto de partida importante para a análise do percurso entre regras e prin­
cípios está na superação da definição do ordenamento jurídico como uma simples reunião
de normas. Esta acepção passou a ser invertida. São classificadas, com isso, como normas
jurídicas aquelas que integram um ordenamento jurídico,3 elas precisam preencher
determinado número de requisitos formais e materiais para que possam ser avaliadas
como componentes de um sistema normativo. Referida distinção é relevante, eis que
a necessidade de um mínimo de coerência intrassistêmica do ordenamento modifica
a ordem de precedência entre normas e ordenamento. Ainda, a existência das normas
e a definição dos critérios de seu pertencimento a um sistema normativo habilitam a
distinção entre ordenamentos jurídicos e outros tipos de ordenamentos normativos
como a moral, fator determinante para a teoria juspositivista.4
Considerando o conceito de normas jurídicas – definidas como atos linguísticos
que possuem a finalidade de influenciar as condutas humanas –, entende-se como a
proposta de conceituação mais adequada aquela que trata as regras e os princípios como
espécies do gênero mais amplo “normas”.5 Ainda, é sempre conveniente a lembrança de
que os dispositivos linguísticos não devem ser confundidos com as normas, aqueles são o
objeto da intepretação,6 enquanto as normas são o resultado da interpretação dos sentidos
de textos normativos. Disso decorre tanto a desnecessidade da correspondência entre
normas e dispositivos, quanto a separação entre prescrições e enunciados. As prescrições
correspondem a uma função linguística e conferem sentido para os enunciados, enquanto
os enunciados não necessariamente manifestam uma ação deonticamente modalizada
ou mesmo uma sanção.
Qual a relevância de tal assertiva? Primeiro, ela permite a melhor análise da
relação entre o texto e norma, pois não há uma vinculação necessária entre ambos,
de modo que pode haver norma sem dispositivo, bem como texto sem um sentido

3
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: Editora UNB, 1999. p. 30.
4
“Aqui tomaremos o Positivismo Jurídico com o significado da afirmação simples de que não é em sentido algum
uma verdade necessária que as leis reproduzam ou satisfaçam certas exigências da moral, embora de facto o
tenham frequentemente feito” (HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2007. p. 202).
5
TROPER, Michel. A filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 83-84. No mesmo sentido ver: SILVA,
Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Revista Latino-Americana de
Estudos Constitucionais, v. 1, 2003. p. 607.
6
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros,
2004. p. 22.

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BRUNO MENESES LORENZETTO
O PERCURSO ENTRE REGRAS E PRINCÍPIOS
341

normativo, ou, ainda, com várias significações possíveis. Segundo, levanta importante
questionamento sobre a própria possibilidade de uma descrição neutra independente da
atividade interpretativa, como anota Humberto Ávila, não há um significado intrínseco
independente de interpretação, nem o significado se incorpora ao conteúdo das palavras,7
como se fosse possível prescindir da dimensão pragmática da atividade linguística, o que
obsta, portanto, a consideração de que a ciência do direito se limita a descrever normas,8
eis que esta congloba, necessariamente, uma atividade interpretativa.
Assim, a discussão a respeito da categoria mais ampla das “normas”, dentro da
qual são observadas as subespécies “regras” e “princípios”, conecta-se com a discussão
a respeito de qual teoria do direito é utilizada para compreender o próprio fenômeno
jurídico. Analisa-se, no caso, o juspositivismo e seus eventuais avanços e limitações,
mesmo porque não há uma posição monolítica por parte dos diferentes autores que
esposam esta teoria sobre a compreensão das normas.
Um mito a respeito do juspositivismo está na sua identificação como doutrina
contrária à moral ou que refuta a possibilidade de a moral ser utilizada como elemento
que leva à criação de normas. Não há qualquer problema, desde o ponto de vista
juspositivista, na correspondência entre valores morais e normas jurídicas. O inverso,
contudo, não é suficiente para que uma norma jurídica venha a deixar de pertencer ao
seu respectivo ordenamento jurídico. Tal assertiva é defendida pelo jusnaturalismo.
A questão é que, para os juspositivistas, a norma independente de sua conformação
com valores morais.9
Logo, a proximidade substantiva que venha a ocorrer entre princípios morais
e jurídicos não é suficiente para conferir natureza moral para estes. Os princípios são
espécies do gênero “norma”, mesmo que venham a assumir um grau mais elevado
de vagueza e generalidade. O fato de serem positivados (escritos) ou não, implícitos
ou explícitos, é fator que também pode ser observado em regras.10 A compreensão da
existência de princípios expressos e não expressos como parte do ordenamento jurídico
é facilitada com o entendimento da dissociação entre texto e norma, princípios não
expressos podem ser o objeto da interpretação, como explica Norberto Bobbio: “[...] são
princípios, ou normas generalíssimas, formuladas pelo intérprete, que busca colher,
comparando normas aparentemente diversas entre si, aquilo a que comumente se chama
o espírito do sistema”.11
A inclusão dos princípios como espécie pertencente ao gênero “normas” jurídicas
precisou, não obstante, que certas concepções a respeito das normas fossem aprimoradas.
Da premissa de que todo discurso normativo possui um caráter coercitivo,12 fez-se

7
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros,
2004. p. 23.
8
“Os positivistas jurídicos acreditam que as proposições de Direito são, na verdade, inteiramente descritivas: são
trechos da história. Uma proposição jurídica, a seu ver, somente é verdadeira caso tenha ocorrido algum evento
de natureza legislativa do tipo citado; caso contrário, não é” (DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio.
São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 218).
9
TROPER, Michel. A filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 95.
10
“A palavra princípios leva a engano, tanto que é velha questão entre os juristas se os princípios gerais são normas.
Para mim não há dúvida: os princípios gerais são normas como todas as outras” (BOBBIO, Norberto. Teoria do
ordenamento jurídico. Brasília: Editora UNB, 1999. p. 158)
11
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: Editora UNB, 1999. p. 159.
12
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Teoria da norma jurídica: ensaio de pragmática da comunicação normativa. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2016. p. 64.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
342 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

necessário um avanço, para reconhecer que nem todas as normas possuem a previsão de
uma sanção. A premissa de que todas as normas jurídicas, para assim serem consideradas,
deveriam prever uma sanção, conseguiria cobrir parcela limitada de um ordenamento
jurídico complexo, como exemplo, determinadas regras do direito penal, contudo, seria
insuficiente para explicar outras espécies normativas.
No entendimento de Hans Kelsen, uma norma para ser interpretada objetivamente
como jurídica tem de estatuir um ato de coação ou estar vinculada com uma norma que o
estabeleça. As normas com previsão de sanção são chamadas “normas independentes”.13
Classificadas como “não autônomas” são as normas que pertencem ao ordenamento
jurídico e estão conectadas com normas que preveem atos coercitivos, mas não estatuem,
elas próprias, qualquer tipo de sanção. Certas normas constitucionais podem ser, a título
de exemplo, observadas como pertencentes a esta definição.14
Como explica Tercio Sampaio Ferraz Jr., Kelsen confunde as relações que são
estabelecidas entre as normas em um sistema com as conexões existentes entre elas,
ao mesmo tempo em que sustenta a limitada concepção de que a sanção confere a
“causalidade genética do direito”,15 ou seja, a condição originária do fenômeno jurídico
se daria pela sanção, posição que o reaproxima da problemática da distinção entre
uma norma jurídica e a ordem de um bandido, pois ambas possuem sanções como
resposta à não adequação da conduta daqueles a quem são endereçados os imperativos.
Ademais, Ferraz Jr. recorda que a recurso último de Kelsen para explicar o fundamento
de validade da ordem jurídica, sua Grundnorm,16 não possui qualquer tipo de sanção,
e também confunde as formas de relação, a sistemática e de conexão,17 deixando uma
lacuna teórica sobre a fonte da validade (e da legitimidade) do direito.
Em outro sentido, deve-se reconhecer que, de fato, há normas que preveem
sanções, porém, tal formulação é incompleta para abranger a complexidade de um or­de­
namento jurídico. Há ao menos dois problemas em tal concepção de normas. O pri­­meiro
está em tratar todas as outras normas do ordenamento jurídico que não dispo­nham de

13
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 56.
14
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 57. “O esforço de mostrar que as leis que
conferem direitos são ‘realmente’ apenas estipulações condicionais de sanções a serem impostas a uma pessoa
que, em última análise, está sob uma obrigação legal, caracteriza boa parte da obra de Kelsen” (HART, Herbert
L. A. Ensaios sobre teoria do direito e filosofia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p. 66).
15
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Teoria da norma jurídica: ensaio de pragmática da comunicação normativa. 5. ed.
São Paulo: Atlas, 2016. p. 64. A mesma confusão pode ser observada aqui: “La norma es jurídica sólo en cuanto
que la actuación en contrario, la antinormatividad, pone en movimiento la coacción, y precisamente una coacción
externa organizada. La norma jurídica es una norma coactivamente equipada. La coacción externa organizada
consiste en el doblegamiento de la voluntad del transgresor por medios externos, aplicados por personas
autorizadas para ello. Por tanto, la norma jurídica se caracteriza por la específica naturaleza de las consecuencias
del comportamiento antinormativo, por la clase de efectos que produce su infracción” (NAWIASKY, Hans. Teoría
general del derecho. Granada: Comares, 2002. p. 10-11).
16
“Como já notamos, a norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é, em face desta,
uma norma superior. [...] Como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por
uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. A sua validade já não
pode ser derivada de uma norma mais elevada, o fundamento da sua validade já não pode ser posto em questão.
Uma tal norma, pressuposta como a mais elevada, será aqui designada como norma fundamental (Grundnorm)”
(KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 217).
17
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Teoria da norma jurídica: ensaio de pragmática da comunicação normativa. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2016. p. 64.

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BRUNO MENESES LORENZETTO
O PERCURSO ENTRE REGRAS E PRINCÍPIOS
343

sanções como “não autônomas” ou imperfeitas,18 de maneira tal que regras que conferem
poder para a formulação de contratos entre particulares se tornam “fragmentos das
verdadeiras leis completas”.19 Além do necessário questionamento, que decorre de tal
exemplo: quais seriam as pessoas que deveriam adotar certas condutas, sob pena de
sanção, nesta hipótese?
O segundo problema está na própria concepção de sanção adotada pela teoria
em discussão. Trata-se, de acordo com Ferraz Jr., de perspectiva liberal do século XIX,
a qual compreendia o direito como o conjunto de comandos que proíbem ou obrigam
determinadas condutas, que apregoava limites nas liberdades apenas nas hipóteses em
que o comportamento de um viesse a limitar a liberdade alheia.20
No que tange à fonte de legitimidade das normas jurídicas, o juspositivismo de
Kelsen e Hart definiram o ordenamento jurídico como um sistema fechado de regras,
que poderia ser compreendido, descrito, de forma independente da moral, com isso,
sublinham Menelick Netto e Guilherme Scotti, as teorias juspositivistas abriram mão de
tradições éticas como suporte para a legitimidade das normas jurídicas e reduziram o
direito a uma história institucional independente de qualquer princípio suprapositivo.21
Nesse aspecto, o fundamento das normas se apresenta como estritamente
procedimental, trata apenas da origem das normas, qual seja, uma norma superior auto­
rizativa da criação de normas inferiores, o que leva a formar um sistema normativo
escalonado,22 enquanto a questão atinente ao conteúdo das normas é delegado para

18
Nos termos de John Austin: “Remotely and indirectly, indeed, permissive laws are often or always imperative.
For the parties released from duties are restored to liberties or rights: and duties answering those rights are,
therefore, created or revived. [...] An imperfect law (with the sense wherein the term is used by the Roman
jurists) is a law which wants a sanction, and which, therefore, is not binding. A law declaring that certain acts
are crimes, but annexing no punishment to the commission of acts of the class, is the simples and most obvious
example” (AUSTIN, John. The province of jurisprudence determined. London: John Murray, 1832. p. 23-24).
19
HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. p. 45.
20
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas,
2001. p. 118. Veja-se a concepção de Austin: “Taken with the largest signification which can be given to the term
properly, laws are species of commands. But the term is improperly applied to various objects which have nothing
of the imperative character: to objects which are not commands; and which, therefore, are not laws, properly so
called” (AUSTIN, John. The province of jurisprudence determined. London: John Murray, 1832. p. 21). As críticas
a tal teoria foram explanadas por Mikhail Antonov: “Curiously enough, it is the legal positivists such as Hans
Kelsen who by their relentless criticism of the command theories stripped theses theories of scientific value in
the eyes of, at least, many German lawyers. In a series of this pre-war works and especially in the first edition
of his Pure Theory of Law (1934) Kelsen has demonstrated that law is constantly reinterpreted and therefore
reformulated at every stage of its application; and from this standpoint the law-creation is at the same time the
law-application. In this view, the ‘Gesetz ist Gesetz’ principle should be understood as an ideological tool, suited
to the naïve ideals of the Enlightenment and having nothing to do with the machinery of real legal orders”
(ANTONOV, Mikhail. The legal conceptions of Hans Kelsen and Eugen Ehrlich: weighting human rights and
sovereignty. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, v. 20, n. 20, 2016. p. 43).
21
CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do direito: a
produtividade das tensões principiológicas e a superação do sistema de regras. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
p. 46.
22
“Para Kelsen, o fundamento de validade da norma se encontra em outra norma: esta é a relação entre supra
e infraordenação. Tem-se, com isso, um sistema hierárquico de normas centralizado pelo Estado. A unidade
do sistema é garantida pela relação entre as normas superiores e inferiores, a qual leva até a norma última, a
norma fundamental: o fundamento supremo da validade do ordenamento jurídico que constitui sua unidade.
A norma fundamental é pressuposta, enquanto a Constituição ocupa o posto mais elevado do sistema normativo”
(LORENZETTO, Bruno Meneses. Os caminhos do constitucionalismo para a democracia. Belo Horizonte: Arraes,
2017. p. 183).

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344 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

outros âmbitos, como a política e a moral.23 Porém, uma vez que se reconhece a textura
aberta da linguagem,24 a tentativa de regular todas as condutas humanas por meio de
regras abstratas se mostra como um naufrágio inevitável, devendo o sistema jurídico
lidar com a indeterminação em face da necessária atividade decisional.25

1.3 Regra(s) e princípios


As indeterminações derivadas da construção de regras jurídicas, para Hart, não
escolhem tradição jurídica específica, ou melhor, haveria um “contraste ingênuo” entre
precedentes e legislação neste plano, eis que as incertezas da comunicação de exemplos
dotados de autoridade, bem como da comunicação através da linguagem geral dotada de
autoridade, precisam enfrentar os limites linguísticos próprios da natureza da linguagem
a respeito da orientação que a esta são capazes de fornecer.26
Não importa qual tradição venha a ser adotada para a comunicação de padrões de
conduta, common law ou civil law, precedentes ou legislação, nos termos de Hart, mesmo
que tais padrões possam atuar com facilidade na maior parte dos casos, inevitavelmente
eles irão se revelar “indeterminados em certo ponto em que a sua aplicação esteja em
questão”,27 em razão da sua textura aberta.28 Além disso, a textura aberta significa que há
“áreas de conduta em que muitas coisas devem ser deixadas para serem desenvolvidas
pelos tribunais”,29 os quais teriam o papel de definir entre os interesses conflitantes e, em
razão das circunstâncias dadas, o equilíbrio destes, que variam de peso, de caso para caso.
A abertura semântica, como se nota, não poderia ser diferente no que diz respeito
ao próprio termo norma, igualmente no que cinge às disputas sobre sua determinação
e extensão. A partir de um dado teórico insuficiente, qual seja, a compreensão de que
as normas genuínas seriam apenas aquelas que viessem a dispor um tipo de sanção,

23
CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do direito: a
produtividade das tensões principiológicas e a superação do sistema de regras. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
p. 47.
24
Austin já afirmava: “Like most of the leading terms in the sciences of jurisprudence and morals, the term law
is extremely ambiguous” (AUSTIN, John. The province of jurisprudence determined. London: John Murray, 1832.
p. 21).
25
CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do direito: a
produtividade das tensões principiológicas e a superação do sistema de regras. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
p. 48.
26
HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. p. 139.
27
HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. p. 141.
28
“O reconhecimento do precedente como um critério de validade jurídica significa diferentes coisas em diferentes
sistemas e no mesmo sistema em períodos diferentes. As descrições da ‘teoria’ inglesa dos precedentes são,
em certos pontos, ainda altamente controvertidas: na verdade, mesmo os termos-chave usado na teoria, ‘ratio
decidendi’, ‘factos materiais’, ‘interpretação’, têm uma penumbra própria da incerteza. Não apresentaremos
nenhuma descrição geral nova, mas tentaremos apenas caracterizar de forma breve, como fizemos no caso da
lei, a área de textura aberta e a atividade judicial criadora dentro dela” (HART, Herbert L. A. O conceito de direito.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. p. 147).
29
HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. p. 148. “É a doutrina da
imprecisão e da textura aberta das regras jurídicas, qualidades das regras que resultam do fato de que as regras
são estruturadas e enunciadas em linguagem natural ordinária pelo uso de palavras e frases gerais como ‘veículo’,
‘semáforo’, ‘fabricante’, ‘matar’, ‘intenção’, e assim por diante. Para tais termos, existe um ‘núcleo de certeza’,
isto é, exemplos claros de coisas, pessoas, atos e intenções que, sem dúvida alguma, se encaixam perfeitamente
no sentido do termo em questão. Mas há também uma ‘penumbra de dúvida’, um espectro de periferia ou casos-
limite que não são abrangidos com clareza ou sem ambiguidades pelo termo usado” (MACCORMICK, Neil.
H. L. A. Hart. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p. 169).

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BRUNO MENESES LORENZETTO
O PERCURSO ENTRE REGRAS E PRINCÍPIOS
345

transformando as leis em ordens condicionais para que funcionários apliquem sanções,30


chega-se à percepção de que ela não conseguia corresponder de maneira apropriada
aos delineamentos do Estado Social de Direito,31 o qual se propõe a ir além da simples
dimensão negativa ou mínima da atuação estatal.32
Em razão da plurissignificação da palavra norma, assim como o seu uso efetivo
em diferentes contextos, percebe-se a necessidade de argumentos no sentido de sua
expansão semântica, não sendo adequada sua redução apenas a comandos. Tome-se
como referência o exemplo clássico das regras de um jogo, a ação de jogar determinado
jogo é dependente de um conjunto de regras, que não necessariamente possuem sentido
prescritivo.33 Um segundo exemplo trata das regras técnicas, como um manual de
instruções, elas estabelecem um “ter que”, mas disso não decorre uma sanção, apenas
a frustração de algum objetivo que se pretendia realizar.34 Não há sanção, positiva ou
negativa, para alguém que não coloca pilhas no controle remoto da televisão, ele apenas
não funciona.
Apesar dos vários sentidos que podem ser derivados do vocábulo norma, as
normas jurídicas passaram a ser comumente identificadas a partir de duas funções,
normas “prescritivas” ou primárias e normas “constitutivas” ou secundárias.35 Adrian
Sgarbi enfatiza que há expressiva conexão entre as normas primárias e secundárias pois,
enquanto as primárias correlacionam um fato a uma conduta ou a uma consequência,36
as constitutivas possuem propriedades institucionais. Neil MacCormick entende que a
qualidade sistêmica do direito pode ser evidenciada no fato de que regras primárias de
obrigação podem ser complementadas por regras secundárias, as quais estão relacionadas
de maneira lógica com as primárias.37

30
“Todas elas assumem a forma: ‘Se algo do tipo X for praticado, for omitido ou suceder, então aplique-se a sanção
do tipo X’” (HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. p. 44).
31
SGARBI, Adrian. Teoria do direito: primeiras lições. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 113.
32
Como explicado por Marcos Maliska e Adriana Schier: “O Estado, por certo, existe para a realização daquilo que
está definido na Constituição. A razão de sua existência encontra-se na promoção do bem-estar social. Como
escreve Creveld, o Estado surgiu e se desenvolveu para fazer a guerra. No entanto, essa trajetória se alterou
entre a primeira e a segunda metade do Século XX. O Estado hoje se justifica pela promoção de bem-estar que ele
propicia aos seus cidadãos” (MALISKA, Marcos Augusto; SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Entre o pesado
Estado autárquico e o indiferente Estado mínimo. Reflexões sobre o Estado constitucional cooperativo a partir
de um caso concreto. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, v. 20, n. 20, 2016. p. 165).
33
“Em síntese, muitos são os “núcleos significativos” do vocábulo “norma”; e não é porque eles encontram
convergência na notação gráfica ou palavra ‘norma’ que todos esses núcleos significativos devam ser entendidos
como ‘prescrição’. Fazer isso é o mesmo que dizer que ‘um pedaço de camisa’ (manga da camisa), determinado
‘verbo’ (verbo mangar) e ‘fruta’ (manga rosa) são uma e mesma coisa já que a notação é igual: são, apenas,
‘homônimas’” (SGARBI, Adrian. Teoria do direito: primeiras lições. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 119).
34
SGARBI, Adrian. Teoria do direito: primeiras lições. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 117.
35
“[...] enquanto regras primárias dizem respeito às acções que os indivíduos devem ou não fazer, essas regras
secundárias respeitam todas às próprias regras primárias. Especificam os modos pelos quais as regras primárias
podem ser determinadas de forma concludente, ou ser criadas, eliminadas e alteradas [...]” (HART, Herbert
L. A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. p. 104).
36
“As prescrições são, assim, ‘razões para atuar’, pois guiam o comportamento dos indivíduos afirmando o que
deve ser feito. Quando uma norma jurídica estatui o comportamento que é devido com ela pretende-se firmar
uma exclusiva razão para agir do destinatário: o direito age, dessa forma, como um redutor de opções do
indivíduo em suas variadas possibilidades de comportar-se porque sua presença implica comportamentos não-
opcionais com respeito a certo universo de ações possíveis” (SGARBI, Adrian. Teoria do direito: primeiras lições.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 123).
37
“Dessa forma, estabelece-se uma rede de inter-relações entre as várias regras por meio da qual a totalidade pode
ser vista como um único ‘sistema de Direito’. Segue-se, portanto, a corajosa declaração de Hart de ter descoberto
a ‘chave para a ciência do Direito’” (MACCORMICK, Neil. H. L. A. Hart. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p. 141).

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
346 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Uma vez que a norma jurídica já não mais pode ser confundida com outras normas
em sentido amplo, a concepção a respeito delas conecta-se com o próprio objetivo do
direito de direcionar condutas humanas, de modo que, sob tal perspectiva, o direito se
torna uma “técnica de racionalização do agir em coletividade”.38 Contudo, esta definição
pode levar a uma redução de complexidade e a problemas na definição do próprio direito,
eis que fugiria de tal caracterização uma série de outros elementos fundamentais dos
ordenamentos jurídicos.
Como se pode perceber, a questão, que suscita paradoxos, está tanto em criar uma
definição de norma que não consiga corresponder adequadamente às espécies existentes
no ordenamento jurídico, porém, de igual modo, em atribuir pouca importância, por
exemplo, a regras que conferem poderes jurídicos39 ou a regras que identificam a validade
do próprio direito, chamadas por Hart de regras de reconhecimento, cujo papel seria
o de estabelecer critérios pelos quais a validade das outras regras do sistema pode ser
apreciada.40
Nesse tópico, parece difícil discordar de Hart em sua identificação de outros
tipos de regras para além daquelas estritamente de cunho sancionador.41 Isso ocorre em
razão da abertura do espectro explicativo que sua teoria fornece para tratar das outras
espécies normativas. De fato, parcela do direito é composta por regras penais, porém,
desconsiderando momentaneamente os princípios que regem este ramo do direito, como
ignorar as regras que dizem respeito à criação, eliminação, modificação e aplicação das
chamadas regras primárias? Pontue-se que a questão não é de equívoco teórico – as
teorias do direito continuam a estabelecer um papel significativo para a coerção racional
a ser realizada pelo Estado e sua função na determinação de condutas humanas –, mas
de insuficiência ou limitação explanatória. Como aplicar uma regra que determina a
aplicação de uma sanção se ela é inconstitucional? Como aplicar uma regra que prevê
uma conduta sendo que pode haver outra que determina conduta inversa (antinomia)?
Como pensar em um conjunto de liberdades asseguradas pelo Estado? Seria possível
garantir direitos fundamentais apenas a partir de regras primárias? Ao que nos parece,
a teoria de Hart possibilita que tais questionamentos tenham uma solução mais acabada
do que suas predecessoras.
Ao avançar na questão das normas secundárias, deve-se reconhecer que estas
destinam-se à organização do funcionamento institucional do ordenamento jurídico,
porém, de modo mediato, acabam por regular condutas humanas.42 Basta pensar no
exemplo das interpretações que os tribunais fazem de determinadas regras ou no
exercício do controle de constitucionalidade.

38
SGARBI, Adrian. Teoria do direito: primeiras lições. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 139.
39
“Segundo Hart, o problema do modelo de John Austin (e que vale igualmente para Hobbes-Bentham-Jhering-
Kelsen) está na pouca importância atribuída às normas que conferem poderes jurídicos” (SGARBI, Adrian. Teoria
do direito: primeiras lições. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 145).
40
HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. p. 117.
41
Cabe a explicação de que Hart, em sua obra, O conceito de direito, fala sobre regras primárias e secundárias e não
adota o gênero “norma”, endossado pelo presente texto. Na continuação do artigo, a posição de Hart sobre a
questão dos princípios será objeto de discussão.
42
“Portanto, nem todas as normas que formam o conjunto normativo jurídico possuem a função linguística
de direcionar condutas. Mas, ainda que não cumpram a função de prescrever condutas, tais normas são
imprescindíveis para o próprio funcionamento da ordem jurídica” (SGARBI, Adrian. Teoria do direito: primeiras
lições. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 147).

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BRUNO MENESES LORENZETTO
O PERCURSO ENTRE REGRAS E PRINCÍPIOS
347

Há um importante direcionamento teórico quando se abandona parcialmente


o aspecto coercitivo como determinante da norma jurídica. A partir de Hart, inde­
pendentemente da sanção, as normas pertencem ao ordenamento jurídico em razão da
regra de reconhecimento, pelo fato de preencherem os requisitos normativos necessários
de compatibilidade com o ordenamento jurídico, definidos por outras normas jurídicas.43
Deste modo, na companhia de normas primárias coexistem normas secundárias,
que cumprem funções de mudança, adjudicação e reconhecimento. As normas que tratam
da mudança resolvem o problema da imobilidade do direito, pois conferem poderes
e definem procedimentos de atualização do ordenamento, como usualmente se faz
referência a conjuntos normativos que estabelecem o poder de legislar. As normas de
adjudicação conferem eficiência ao ordenamento, ao determinar o seu funcionamento e
o modo de aplicação das normas primárias e definir competências para julgar. As nor­
mas de reconhecimento, por sua vez, estabilizam o próprio sistema normativo, eis que
definem critérios de pertencimento ao conjunto.44
Com isso, na teoria de Hart, o problema da legitimidade das fontes do direito
passa a ser explicado por meio da regra de reconhecimento. Regras que estabelecem
o código binário direito e não direito, pertencentes ao próprio sistema que definiriam
autoridades institucionais e seus poderes. Assim, a legitimidade se pauta por sua pro­
cedência, e não nas razões presentes em sua dimensão substantiva, ou seja, em seu
conteúdo.45 A regra de reconhecimento de Hart não recai no problema da Grundnorm
de Kelsen, ela não está fundada em outra regra jurídica hipotética,46 depende do seu
reconhecimento pela sociedade e se apresenta como uma questão de fato, pois existe como
uma “prática complexa, mas normalmente concordante, dos tribunais, dos funcionários e
dos particulares ao identificarem o direito por referência a certos critérios”,47 ou seja, trata-
se de uma forma de vida, aceita pelos participantes do jogo de linguagem em questão.

43
“Hart refutava a opinião de Austin de que a autoridade jurídica era um fato puramente físico de comando e
obediência habituais. Afirmava que os verdadeiros fundamentos do direito encontram-se na aceitação, por parte
da comunidade como um todo, de uma regra-mestra fundamental (que ele chamou de ‘regra de reconhecimento’)
que atribui a pessoas ou grupos específicos a autoridade de criar leis” (DWORKIN, Ronald. O império do direito.
São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 42).
44
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas,
2001. p. 122. “A regra de reconhecimento provê critérios para determinar a validade de outras normas do sistema
jurídico e impõe aos juízes o dever de executar essas normas. Os juízes assumem o ponto de vista interno com
relação à regra de reconhecimento, o que significa que a consideram ‘um padrão comum, público de decisão
judicial correta’. Em conformidade com a visão de Hart da normatividade do Direito, os juízes, portanto,
colocam-se sob a obrigação social de fazer vigorar as normas válidas do sistema. A existência de um sistema
jurídico também requer, dos cidadãos em geral, um nível mínimo de aquiescência às normas válidas, e, embora
os cidadãos possam compartilhar o ponto de vista interno, eles não precisam fazê-lo; na maior parte das vezes,
é suficiente que obedeçam às normas e não importa se o fazem por medo, inércia ou por algum outro motivo”
(PERY, Stephen R. Interpretação e metodologia na teoria jurídica. In: MARMOR, Andrei. Direito e interpretação:
ensaios de filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 161-162).
45
CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do direito: a produ­
ti­vidade das tensões principiológicas e a superação do sistema de regras. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 46-47.
46
“Hart é perfeitamente claro ao dizer que, para cada sistema jurídico completamente maduro, há uma ‘regra
fundamental de reconhecimento’ que é ‘fundamental’ neste sentido: não é, em si, validada por qualquer norma
ou regra superior, nem mesmo por uma ‘norma fundamental’ pressuposta juridicamente do tipo contemplado
por Kelsen. Não é, em si, chamada significativamente de ‘válida’ ou ‘inválida’. Sua existência como regra é
constituída simples e unicamente pelo fato de que ‘a partir do ponto de vista interno’ é ‘aceita’ (espontaneamente
aceita), pelo menos pelos juízes e por outras autoridades superiores que exercem poderes dentro do sistema”
(MACCORMICK, Neil. H. L. A. Hart. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p. 148-149).
47
HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. p. 121.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
348 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Não obstante, apesar de a teoria de Hart ter realizado significativo desenvolvimento


para a compreensão do fenômeno jurídico, Ronald Dworkin decidiu lançar aquilo que
ele chamou de “um ataque geral contra o positivismo”,48 indicando a teoria de Hart
como alvo. Para Dworkin, o juspositivismo não teria capacidade para solucionar
adequadamente os chamados “casos difíceis”,49 casos em que as regras seriam precárias
pois os conceitos em disputa dizem respeito a outros tipos de padrões como princípio
e políticas.50
Sob as lentes de Dworkin, o positivismo é um modelo para um sistema de regras,
que ignoraria os papéis exercidos por outras espécies normativas que não as regras. Logo,
seria necessário incluir na gramática da teoria do direito os princípios, que são definidos
como “um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma
situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência
de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade”.51 Para ilustrar sua
proposta, o caso Riggs v. Palmer (1889) foi exposto, com ênfase na maneira pela qual o
tribunal de Nova York tomou a decisão a respeito da possibilidade de um herdeiro que
tinha assassinado seu avô com o intuito de herdar o que estava previsto em testamento.52
Com a prevalência do princípio de que “ninguém será permitido lucrar com sua própria
fraude”,53 o assassino acabou por não receber sua herança.
O caso discutido por Dworkin abria caminho para a sua defesa de que, ao contrário
do juspositivismo – com seu modelo de regras e com a atribuição de amplos poderes
discricionários ao juiz para a formulação de decisões –,54 mesmo nos casos difíceis, uma
resposta certa deveria ser buscada no direito em vigor,55 por meio de um princípio a ser
aplicado para o caso em análise.

48
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 35.
49
“Os casos difíceis se apresentam, para qualquer juiz, quando sua análise preliminar não fizer prevalecer uma
entre duas ou mais interpretações de uma lei ou de um julgado. Ele então deve fazer uma escolha entre as
interpretações aceitáveis, perguntando-se qual delas apresenta em sua melhor luz, do ponto de vista da
moral política, a estrutura das instituições e decisões da comunidade – suas normas públicas como um todo”
(DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 306).
50
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 36. “Dworkin parte de un caso
al que, de acuerdo con la terminología tradicional, llama ‘difícil’. Tal caso está tipificado por el hecho de que
ninguna disposición proporciona una respuesta clara al mismo, no es posible reconocer la intención de la ley,
y los precedentes judiciales, al igual que otros materiales de interpretación, apuntan en diferentes direcciones
(‘tiran en ambas direcciones’). Como ejemplo, Dworkin utiliza el caso en donde un empleado de X corta por
accidente una línea de electricidad que conduce a una fábrica de Y y, con ello, daña a Y” (AARNIO, Aulis.
Lo racional como razonable: un tratado sobre la justificación jurídica. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales,
1991. p. 213).
51
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 36.
52
“Todos os juízes da mais alta cortes de Nova York concordavam que suas decisões deveriam ser tomadas de
acordo com o direito. Nenhum deles negava que se a lei sucessória, devidamente interpretada, desse a herança
a Elmer, eles deveriam ordenar ao inventariante do espólio que assim procedesse. Nenhum deles dizia que,
naquele caso, a lei deveria ser alterada no interesse da justiça. Divergiam quanto à solução correta do caso,
mas sua divergência – pelo menos assim nos parece com abse na leitura dos pareceres que redigiram – dizia
respeito à verdadeira natureza do direito, àquilo que determina a legislação quando devidamente interpretada”
(DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 21).
53
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 37.
54
“Tanto em Kelsen quanto em Hart, contudo, a saída termina por ser decisionista. A própria Ciência do Direito,
como fica patente na obra revista de Kelsen, pode apenas indicar, mas não assegurar qualquer moldura de
interpretações que vincule as autoridades competentes para decidir – capazes de realizar interpretações autênticas,
pois impositivas –, cujas decisões podem assim ter fundamentos extrajurídicos [...]” (CARVALHO NETTO,
Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do direito: a produtividade das tensões
principiológicas e a superação do sistema de regras. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 52).
55
TROPER, Michel. A filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 93.

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BRUNO MENESES LORENZETTO
O PERCURSO ENTRE REGRAS E PRINCÍPIOS
349

O problema da discricionariedade estaria no fato de que, em tais circunstâncias,


seria conferido o poder para o juiz “criar direito” no caso concreto. Hart define os casos
difíceis como aqueles em que as regras fornecem a solução para o conflito, de modo
que uma magistrada pode formular sua decisão de modo discricionário. O problema da
discricionariedade se estabelece no fato de esta permitir a criação e aplicação retroativa de
regras, mesmo que uma magistrada venha a argumentar no sentido de estar defendendo
a segurança jurídica ou estar aplicando um direito preexistente.56
Nos casos difíceis, argumenta Hart, ocorre uma relativa indeterminação, na qual
a autoridade deve exercer poder discricionário para solucionar a questão. Logo, não
seria possível chegar a uma resposta correta para o caso,57 mais de uma solução poderia
encontrar argumentos favoráveis quando os casos discutidos são respaldados por
conceitos situados em uma área cinzenta de significação. A crítica a tal percepção se coloca
no sentido da aproximação, ou não distinção, entre as atividades de uma magistrada e
de uma legisladora, as quais ganhariam contornos mais nítidos nas situações de casos
difíceis. A partir dessa situação, com a discricionariedade ocorreria o nivelamento de
lógicas subjacentes que são diversas, conduzindo a uma confusão entre argumentos de
política e argumentos de princípio,58 os quais poderiam vir a ser empregados no processo
decisório segundo o entendimento de cada autoridade com poder de interpretar e fixar
o sentido do direito.
Isso considerado, admitida a possibilidade de os juízes decidirem com fundamento
em argumento políticos, concede-se a abertura para decisões que reflitam não as normas
estabelecidas no ordenamento jurídico, mas convicções pessoais dos magistrados sobre
economia e política sem que estas possuam respaldo, por exemplo, na própria Consti­
tuição. A solução para tal problema estaria, segundo Dworkin, na percepção da atividade
jurisdicional como a atuação dentro de um “fórum de princípios”,59 de maneira que,
mesmo diante dos casos difíceis, a argumentação das autoridades com poder decisório
precisa ser necessariamente baseada em princípios e não em argumentos políticos.60
Os limites teóricos do juspositivismo evidenciam-se, ademais, com a articulação
do ordenamento jurídico como uma reunião de regras, pois, mesmo na perspectiva

56
CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do direito: a
produtividade das tensões principiológicas e a superação do sistema de regras. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
p. 53.
57
HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. p. 144-145.
58
“Os primeiros referem à persecução de objetivos e bens coletivos considerados relevantes para o bem-estar de
toda a comunidade, passíveis de transações e compromissos, enquanto os segundos fundamentam decisões
que resguardam direitos de indivíduos ou grupos, possuindo assim um papel de garantia contramajoritária”
(CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do direito: a
produtividade das tensões principiológicas e a superação do sistema de regras. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
p. 54-55). Ver: DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 35.
59
“Minha visão é que o Tribunal deve tomar decisões de princípio, não de política – decisões sobre que direitos
as pessoas têm sob nosso sistema constitucional, não decisões sobre como se promove melhor o bem-estar geral
–, e que deve tomar essas decisões elaborando e aplicando a teoria substantiva da representação, extraída do
princípio básico de que o governo deve tratar as pessoas como iguais” (DWORKIN, Ronald. Uma questão de
princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 101).
60
CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do direito: a
produtividade das tensões principiológicas e a superação do sistema de regras. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
p. 57. “Mas para o Professor Dworkin, um juiz que assim adentre a área que ele chama de política (policy),
distinta dos princípios que determinam direitos individuais, pisa em terreno proibido, reservado aos legisladores
eleitos” (HART, Herbert L. A. Ensaios sobre teoria do direito e filosofia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p. 158).

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
350 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

de Hart, não restava adequadamente explicado o papel dos princípios, cuja estrutura
indeterminada em abstrato, ainda que determinável nos casos concretos, se faz presente
nos ordenamentos pós-convencionais e demanda construções interpretativas das pessoas,
como no caso dos direitos fundamentais.61
Com isso, Dworkin rejeita expressamente a tese de que a finalidade do direito
seria a de orientar condutas por meio de normas gerais publicizadas, em outro sentido,
a função elementar do direito estaria pautada na atividade de adjudicação orientada
por princípios.62 Assim, o direito deixaria de ser um conjunto fechado de normas,
para assumir a feição de um conjunto aberto de regras e princípios, com uma função
de moralidade em seu cerne, de modo que as razões jurídicas se tornam princípios
obrigatórios destinados precipuamente para magistrados.63
A distinção entre princípio e regras, para Dworkin, é de natureza lógica. Em casos
específicos, tanto os princípios como as regras “apontam para decisões particulares
acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas”,64 mas seriam diferentes no
que tange à natureza da orientação ofertadas.
As regras seriam aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada, como no funcionamento
de regras de um jogo de beisebol. Um batedor que tenha errado três bolas deve ser
eliminado. Não seria possível que um juiz decidisse, com base em uma regra de beisebol,
que um batedor poderia ficar depois de ter errado três bolas. Uma regra pode, por
óbvio, dispor exceções, porém, a maneira correta de enunciar esta deveria considerar
as hipóteses de exceção.65
Os princípios, de outra sorte, “não apresentam consequências jurídicas que se
seguem automaticamente quando as condições são dadas”,66 assim, o princípio que
norteou o caso Riggs v. Palmer, de que ninguém pode ser beneficiado de seus crimes,
não estabelece, antecipadamente, as condições que irão determinar sua aplicação. Pelo
contrário, alerta Dworkin, o princípio enuncia uma razão que é capaz de conduzir
o argumento em determinado sentido, porém, necessita de um caso específico a ser
aplicado.67

61
CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do direito: a
produtividade das tensões principiológicas e a superação do sistema de regras. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
p. 59.
62
PERY, Stephen R. Interpretação e metodologia na teoria jurídica. In: MARMOR, Andrei. Direito e interpretação:
ensaios de filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 195.
63
PERY, Stephen R. Interpretação e metodologia na teoria jurídica. In: MARMOR, Andrei. Direito e interpretação:
ensaios de filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 195.
64
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 39.
65
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 40.
66
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 40. “A perspectiva decisionista
a que chega o positivismo em face da reconhecida indeterminação das regras é rechaçada assim pelo caráter
normativo dos princípios jurídicos que, embora muito gerais e abstratos, exigem do intérprete densificação, com
especial atenção à história institucional e à sistematicidade do conjunto de princípios reciprocamente vinculados
do Direito” (CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do
direito: a produtividade das tensões principiológicas e a superação do sistema de regras. Belo Horizonte: Fórum,
2011. p. 60).
67
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 41. É bastante ilustrativa a
exposição que Dworkin faz do posicionamento do Juiz Earl no caso Elmer: “O juiz Earl não se apoiou apenas
em seu princípio sobre a intenção do legislador; sua teoria da legislação continha outro princípio relevante. Ele
afirmava que na interpretação das leis a partir dos textos não se deveria ignorar o contexto histórico, mas levar-se
em conta os antecedentes daquilo que denominava de princípios gerais do direito: ou seja, que os juízes deveriam
interpretar uma lei de modo a poderem ajustá-la o máximo possível aos princípios de justiça pressupostos em

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BRUNO MENESES LORENZETTO
O PERCURSO ENTRE REGRAS E PRINCÍPIOS
351

Outro aspecto distintivo dos princípios está em sua dimensão do peso ou


importância. Tal conceito pode ser entendido em análise paralela ao de regras. As regras
podem ser questionadas a respeito de sua validade, ao passo que, na colisão entre prin­
cípios, tal aspecto não ingressa nas razões em disputa.68 No caso concreto, irá prevalecer
o princípio de maior peso ou importância, considerando a força relativa de cada um,69
porém, o princípio que eventualmente não tenha prevalência poderá vir a ser utilizado
como razão decisiva em outro caso.
As regras, por seu turno, não apresentam dimensão de peso ou importância
como o dos princípios. Para Dworkin, existe a hipótese de se dizer que uma regra é
mais importante que a outra por ela desempenhar um papel maior na regulação de um
comportamento, mas não “enquanto parte do mesmo sistema de regras”.70 Por isso, nas
situações de conflito entre regras, umas delas não poderá mais ser considerada válida,
e isso não deve ser confundido com as exceções previstas pela própria regra.71 Ainda,
a decisão sobre qual das regras deverá prevalecer na situação de colisão (antinomia)
ocorre com o recurso a razões que vão além das próprias regras, de modo que cada
sistema jurídico pode adotar critérios para a solução das antinomias e estabelecer quais
critérios irão prevalecer perante os outros, por exemplo, uma regra de grau hierárquico
superior prevalece sobre uma de status inferior, a regra mais recente ou a regra especial
perante a geral.

1.4 Considerações finais


A teoria do direito define a distinção das espécies de normas entre regras e
princípios. Por ter como ponto de partida a discussão a respeito da própria maneira de
compreensão das premissas fundamentais do direito, esta distinção acaba por refletir as
concepções do direito no que diz respeito à forma de sua interpretação, seu fundamento
de validade e a solução de casos por sua aplicação.
A proposta de Dworkin a respeito do papel ocupado pelos princípios nos casos
difíceis, assim como o lugar central que a Constituição ocupa nos ordenamentos jurídicos,
com destaque para os direitos fundamentais e sua abertura semântica no plano abstrato,
são dois fortes argumentos a respeito da necessidade da distinção entre princípios e
regras.
Isso ocorre em razão da insuficiência explicativa das regras, mesmo considerando
a distinção entre primárias e secundárias, no que diz respeito, por exemplo, à liberdade
de expressão, o direito de propriedade, o direito fundamental à saúde, entre outros
presentes expressamente nas constituições modernas. Não obstante, não se faz necessária

outras partes do direito. Ele apresentou duas razões. Primeiro, é a razoável admitir que os legisladores têm uma
intenção genérica e difusa de respeitar os princípios tradicionais da justiça, a menos que indiquem claramente o
contrário. Segundo, tendo em vista que uma lei faz parte de um sistema compreensivo mais vasto, o direito como
um todo, deve ser interpretada de modo a conferir, em princípio, maior coerência a esse sistema” (DWORKIN,
Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 24-25).
68
SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Revista Latino-
Americana de Estudos Constitucionais, v. 1, 2003. p. 610.
69
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 43.
70
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 43.
71
Uma coisa é a formação de uma antinomia, outra, distinta, é a regra prever expressamente situações em que sua
aplicação não ocorre.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
352 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

a positivação do princípio para que ele venha a ser reconhecido como cogente no
ordenamento jurídico. Esta foi a conclusão de Dworkin a partir de sua interpretação do
caso Riggs vs. Palmer, uma importante contribuição a partir da qual foi possível explicitar
certos limites teóricos do juspositivismo.72
O debate, como restou observado, se coloca a respeito da extensão do poder
discricionário que pode vir a ser conferido para os juízes na interpretação dos casos
difíceis. Não há mais espaço, por isso, para os argumentos no sentido de que os juízes
nunca exerceram qualquer papel significativo no momento da aplicação do direito.
Basta considerar que não é possível tolher por completo as autoridades responsáveis
pela aplicação do direito de sua função hermenêutica com fulcro nas construções
normativas advindas do legislativo. Estas, inevitavelmente, serão objeto de interpretação
no momento de sua definição como norma.
A abertura que os chamados “princípios gerais do direito” conferiam para
solucionar lacunas no ordenamento foi objeto de radical transformação. Estas categorias
eram vias de escape em tempos em que o legislador buscava, sob a égide da vontade
de completude, dar resposta para todos os problemas que viessem a surgir no plano
normativo. Pois bem, os “princípios gerais” deixaram de ocupar o papel subalterno
no ordenamento para assumir a posição de categorias normativas norteadoras que
não podem mais ser afastadas no momento da construção das razões jurídicas. Posto
o lugar destacado que as constituições passaram a conferir para os princípios, não se
fala mais em “princípios gerais do direito”, mas, sim, em princípios constitucionais e
na constitucionalização de todos os ramos do direito.
No plano dos princípios é possível a classificação, de um lado, dos princípios
explícitos, ou seja, aqueles que foram formulados de maneira expressa em dado texto
normativo,73 e princípios implícitos, carentes de positivação, em outros termos, sem
disposição expressa em textos normativos.74 Conhecida a distinção entre texto e norma,
os princípios implícitos são resultado da interpretação de argumentos constantes
em enunciados legislativos do ordenamento jurídico, em normas constitucionais ou
infraconstitucionais, de modo que, mesmo que não possuam uma disposição específica,
faz-se possível a remissão a textos explícitos que lhe conferem suporte semântico.75

72
Hart formulou respostas para as críticas de Dworkin, ver em especial o pós-escrito do livro O conceito de
direito: “Durante muito tempo, a mais conhecida das críticas de Dworkin a este livro foi a de que ele apresenta,
erradamente, o direito como consistindo apenas em regras de ‘tudo-ou-nada’, e ignora uma espécie diferente
de padrão jurídico, a saber os princípios jurídicos, que desempenham um papel importante e distintivo no
raciocínio jurídico e no julgamento. [...] Concordo, neste momento, que constitui um defeito deste livro a
circunstância de os princípios apenas serem abordados de passagem. [...] Não vejo razões nem para aceitar este
contraste nítido entre princípios jurídicos e regras jurídicas, nem o ponto de vista de que, se uma regra válida
for aplicável a um caso dado, deve, diferentemente de um princípio, determinar sempre o resultado do caso. [...]
Por isso, uma regra que seja superada, em concorrência com uma rega mais importante num caso dado, pode, tal
como um princípio, sobreviver, para determinar o resultado em outros casos, em que seja julgada como sendo
mais importante do que outra regra concorrente” (HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2007. p. 321-324).
73
GUASTINI, Riccardo. Das fontes às normas. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 191.
74
“Os princípios não expressos são fruto de integração do direito à obra dos operadores do direito. Esses princípios
são deduzidos pelos intérpretes, ora de normas singulares, ora de conjuntos mais ou menos amplos de normas,
ora do ordenamento jurídico no seu conjunto” (GUASTINI, Riccardo. Das fontes às normas. São Paulo: Quartier
Latin, 2005. p. 193).
75
SGARBI, Adrian. Teoria do direito: primeiras lições. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 233. Nos termos de
Hart, Dworkin: “A exemplo de Pound, ele rejeita a ideia de que o sistema jurídico consista apenas de suas

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BRUNO MENESES LORENZETTO
O PERCURSO ENTRE REGRAS E PRINCÍPIOS
353

Assim, como os princípios implícitos são resultado da intepretação de materiais jurídicos


resultantes de casos concretos, há controvérsia sobre a forma de obtenção destes.
De uma parte, estes são vistos como o resultado de deduções, enquanto que, de outro
lado, afirma-se que a obtenção dos princípios implícitos escapa a qualquer critério lógico
e é resultado da construção argumentativa decisória de cada intérprete.
Por fim, na quadra contemporânea da discussão sobre a distinção entre princípios
e regras, duas posições se extremam. De um lado, entende-se que existem características
específicas aos princípios, de modo que estes podem ser distintos das regras de maneira
nítida. De outro, defende-se que algumas características estão presentes nos princípios
de modo mais saliente do que nas regras, porém, não seria possível traçar uma linha
divisória muito forte entre regras e princípios em razão de as espécies normativas
compartilharem características basilares.76

Referências
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Constitucionales, 1991.
ANTONOV, Mikhail. The legal conceptions of Hans Kelsen and Eugen Ehrlich: weighting human rights and
sovereignty. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, v. 20, n. 20, 2016.
AUSTIN, John. The province of jurisprudence determined. London: John Murray, 1832.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros,
2004.
BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Bauru: Edipro, 2005.
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: Editora UNB, 1999.
CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do direito: a
produtividade das tensões principiológicas e a superação do sistema de regras. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed. São Paulo:
Atlas, 2001.
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Teoria da norma jurídica: ensaio de pragmática da comunicação normativa.
5. ed. São Paulo: Atlas, 2016.
GUASTINI, Riccardo. Das fontes às normas. São Paulo: Quartier Latin, 2005.

regras de autoridade explícita e enfatiza a importância de princípios implícitos não formulados; e, a exemplo
de Llewellyn, ele rejeita a ideia, que atribui à teoria do direito positivista, de que o juiz deva, quando as regras
explícitas se mostrarem indeterminadas, deixar de lado os livros jurídicos e começar a legislar segunda sua
moralidade pessoal ou sua concepção de bem social e de justiça” (HART, Herbert L. A. Ensaios sobre teoria do
direito e filosofia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p. 154).
76
“Num certo sentido, é óbvio que também os princípios são normas, ou seja, enunciados do discurso prescritivo,
dirigidos a orientação do comportamento (em algumas circunstâncias, a tese contrária foi sustentada com o
único objetivo de negar que certos princípios expressos tivessem valor vinculante para os órgãos de aplicação).
Todavia, os princípios constituem, no gênero das normas jurídicas, uma espécie particular cujos traços
característicos não é fácil individualizar com precisão: não é absolutamente claro, em outras palavras, quais
propriedades deva ter uma norma para merecer o nome de ‘princípio’” (GUASTINI, Riccardo. Das fontes às
normas. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 186).

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
354 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

HART, Herbert L. A. Ensaios sobre teoria do direito e filosofia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
LORENZETTO, Bruno Meneses. Os caminhos do constitucionalismo para a democracia. Belo Horizonte: Arraes, 2017.
MACCORMICK, Neil. H. L. A. Hart. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
MALISKA, Marcos Augusto; SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Entre o pesado Estado autárquico e o
indiferente Estado mínimo. Reflexões sobre o Estado constitucional cooperativo a partir de um caso concreto.
Revista Direitos Fundamentais & Democracia, v. 20, n. 20, 2016.
NAWIASKY, Hans. Teoría general del derecho. Granada: Comares, 2002.
PERY, Stephen R. Interpretação e metodologia na teoria jurídica. In: MARMOR, Andrei. Direito e interpretação:
ensaios de filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
SGARBI, Adrian. Teoria do direito: primeiras lições. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
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TROPER, Michel. A filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

LORENZETTO, Bruno Meneses. O percurso entre regras e princípios. In: FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz
Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura (Coord.); PECCININ, Luiz Eduardo (Org.). Direito
Constitucional Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 339-354. (Tratado de Direito Eleitoral, v. 1.)
ISBN 978-85-450-0496-7.

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CAPÍTULO 2

IGUALITARISMO ELEITORAL: POR UMA FORÇA


DE EFEITO ÓTIMA AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE
DE OPORTUNIDADES NAS COMPETIÇÕES ELEITORAIS

MARCELO ROSENO DE OLIVEIRA

2.1 Introdução
Um dos eixos em que opera a governança eleitoral, assim entendida como o
conjunto de atividades que criam e mantêm a estrutura institucional em que se desen­
volvem as eleições, é o da definição das “regras do jogo” (rule making). De fato, o
estabelecimento de um marco regulatório é rigorosamente necessário para impor limites
à atuação dos competidores, buscando garantir que as disputas ocorram num campo
de jogo nivelado, no qual prevaleça o equilíbrio, desencorajando abusos e transgressões
que possam comprometer a própria legitimidade das eleições, cumprindo-se, assim, um
dos principais escopos da ratio essendi do direito eleitoral.
A só existência de normas, porém, não é garantia de equidade na disputa, uma
vez que se reclamará a sua efetiva aplicação no campo da administração eleitoral (rule
application), sem embargo da possibilidade de manejo da via contenciosa para sancionar
os desvios (rule adjudication), constituindo-se, então, a partir desses três campos, a electoral
governance.
No Brasil, para além da peculiaridade de duas dessas tarefas estarem concentradas
nas mãos da Justiça Eleitoral – face à cumulação de atribuições para administrar o pleito
e exercer o contencioso –, chegando, com certa frequência, a exercer mesmo as três (ainda
quando sua competência normativa se circunscreve à feição meramente regulamentar),
parece forçoso reconhecer uma outra característica do nosso modelo de governança:
ao mesmo tempo em que as regras do jogo são pródigas quanto à tipificação de ilícitos
(tanto assim que é difícil identificar algum fato comprometedor da lisura das eleições
que já não esteja assim valorado e apto a desencadear punições e, no limite, a própria
invalidação das disputas), acabam por acomodar, elas próprias, diversas situações de
tratamento desigual entre os contendores, institucionalizando o desequilíbrio.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
356 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Constata-se, a partir de tal perspectiva, que alguns dos fatores comprometedores do


nivelamento das competições eleitorais não podem ser identificados, aprioristicamente,
como fundados em práticas ilícitas e, nessa qualidade, passíveis de repressão pela via
contenciosa, mas antes decorrem das próprias opções do legislador.
Está-se, assim, diante de uma análise cujo ponto central não se situa no desempenho
dos órgãos de controle quanto ao combate de ilícitos que comprometem a legitimidade
das eleições, mas antes em situações de desequilíbrio entre partidos e candidatos que
são geradas pelo próprio marco regulatório das disputas. Não se trata, com efeito, de
como os juízes deverão aplicar as regras, mas delas mesmas e dos seus limites.
Volta-se, portanto, para um exame do arcabouço normativo aplicável às
competições eleitorais – especialmente o direito ordinário –, confrontado com os
princípios da Constituição. Não pretende analisar o papel do contencioso eleitoral no
Brasil, uma vez que o foco é outro, que o antecede e o conforma.
Demonstram a relevância de tal abordagem científica, a título exemplificativo,
fatores como: o desenho institucional do modelo de financiamento das campanhas,
com a admissão de aporte de recursos privados (incluídos os do próprio candidato),
cujos limites incidem sobre bases flexíveis; os parâmetros utilizados para a fixação do
teto de gastos eleitorais; os critérios acentuadamente desiguais – e, a partir da Emenda
Constitucional nº 97/2017, até mesmo excludentes – de rateio do Fundo Partidário, bem
como do acesso ao rádio e à TV; e a marcante quebra da neutralidade governamental, em
especial no contexto da reeleição dos chefes do Poder Executivo. Todos eles compõem
um quadro de rigoroso desnível nas contendas, decorrente de parâmetros normativos
pouco resistidos pelos envolvidos nas disputas e pelo Poder Judiciário, uma vez que se
os toma como algo institucionalizado, inerente à própria competição.
Não é só, contudo. Mais do que produzir e conviver com as iniquidades, a atuação
estatal tem contribuído para agravá-las, na medida em que, diante da existência de
prestações públicas que influenciam diretamente a visibilidade dos agentes políticos
envolvidos nas contendas, destina-as mediante critérios legislativos iníquos e, por isso,
questionáveis, face ao alto potencial de se revelarem contrários à Constituição.
Tais disparidades erguem-se sob a égide de um ordenamento constitucional no
qual é perfeitamente possível identificar – à luz de princípios como os da democracia,
isonomia, pluralismo político e legitimidade das eleições, e como decorrência deles –, a
exigência de igualdade de oportunidades nas competições eleitorais, cuja conformação
reclama, num ambiente concorrencial, a atuação do Estado para o fim de impor limites
a candidatos e partidos, mas também para compensar as desigualdades, realizando
ações positivas, de modo a evitar que alguns fatores distantes dos ideais democrático e
republicano possam ser decisivos para os resultados.
Nesse âmbito, considerado o fato de que os partidos são titulares de direitos polí­
ticos, os quais envolvem prestações estatais consubstanciadas em subsídios públicos
que interferem no contexto das disputas, este artigo destaca os critérios atualmente
adotados para a distribuição de tais bens, demonstrando que não se revelam eficazes para
a ação que se cobra do Estado no sentido de compensar ou de desativar as influências
ilegítimas nos pleitos.
Examina-se se o tratamento igualitário, dispensado a todos os competidores,
seria suficiente para atender ao princípio da igualdade de oportunidades, ou, se, ao
con­trário, o trato proporcional à representatividade partidária seria adequado, não

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MARCELO ROSENO DE OLIVEIRA
IGUALITARISMO ELEITORAL: POR UMA FORÇA DE EFEITO ÓTIMA AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE DE OPORTUNIDADES NAS COMPETIÇÕES ELEITORAIS
357

necessariamente para o fim de garantir maior participação aos partidos considerados


“grandes”, perpetuando iniquidades, mas, ao contrário, para que as maiores porções,
segundo um princípio de igualdade material, fossem, de modo inverso, destinadas aos
“pequenos”.
Para tanto, são analisados os contornos filosóficos e jurídicos do princípio da
igualdade de oportunidades nas competições eleitorais. Sob os influxos do liberalismo
igualitário e do aporte teórico de John Rawls, destaca-se o valor equitativo das liberdades
políticas e os seus reflexos no acesso aos postos de governo.

2.2 Os direitos políticos prestacionais na ordem jurídica brasileira


Alguns direitos políticos assumem função marcantemente prestacional na ordem
constitucional brasileira, como são os casos dos investimentos públicos no financiamento
das atividades dos partidos (incluídas as campanhas eleitorais), e do acesso a eles
assegurado a meios de comunicação, como o rádio e a TV.
Eles têm, segundo Sarlet (2015, p. 183), caráter de “direitos prestacionais típicos”
por envolverem uma prestação fática a cargo do Estado, expressa pela distribuição de
dinheiro público – direta ou indiretamente – para financiar a atividade político-partidária,
aí incluída a direcionada às disputas eleitorais.

2.2.1 O financiamento público das atividades político-partidárias


O regime jurídico-constitucional dos partidos políticos, embora previsto em
capítulo apartado, integra o conjunto dos direitos políticos, “[...] em especial a liberdade
de criação e de associação partidária, essencial à concepção de democracia representativa
e partidária que é predominante na Constituição” (SARLET; MARINONI; MITIDIERO,
2013, p. 663), sendo eles próprios titulares de direitos fundamentais, como aponta
Canotilho (2003, p. 316), ao indicar que se lhes reconhece um direito fundamental de
participação política e se institui em favor deles “[...] quase um monopólio partidário
da representação política”.
Entre esses direitos, destaca-se o de recebimento de subvenções estatais em
dinheiro, as quais encontram previsão expressa no art. 17, §3º, da Constituição Federal
(alterado pela Emenda Constitucional nº 97/2017), estando reguladas pela Lei nº 9.096,
de 19.9.1995 (Lei dos Partidos Políticos – LPP), nos arts. 38 e seguintes.
O investimento de recursos públicos está previsto no art. 38, inc. IV, da LPP, que
estabelece, entre as fontes de receita do Fundo Especial de Assistência Financeira aos
Partidos Políticos (Fundo Partidário), as “[...] dotações orçamentárias da União em valor
nunca inferior, cada ano, ao número de eleitores inscritos em 31 de dezembro do ano
anterior ao da proposta orçamentária, multiplicados por trinta e cinco centavos de real,
em valores de agosto de 1995”.
O fornecimento de subsídios públicos diretos para financiar as atividades parti­
dárias, entre as quais a participação em campanhas eleitorais, conforme aponta estudo
comparativo realizado por Marenco (2010, p. 825), é o modelo mais frequente no mundo,
e segue, de modo predominante, para fins de distribuição, um critério de performance
eleitoral, não obstante alguns prevejam a distribuição igualitária.

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358 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

A adoção, no Brasil, de mecanismos de financiamento público, conforme aponta


Zovatto (2003, p. 99), segue uma tradição da América Latina em contemplar as subvenções
estatais como uma forma de evitar ou reduzir a influência de grupos de interesses
especiais, ajudando a criar condições mais equitativas para todos os atores durante as
disputas eleitorais, além de proporcionar uma maior transparência quanto às finanças
dos partidos, num esforço para reduzir a corrupção.
Reconhece-se, como premissa da percepção de subsídios públicos, que os partidos
desempenham um papel decisivo no sistema de democracia representativa, e, nessa
condição, devem receber recursos estatais para financiar seu funcionamento e atividades
eleitorais. Ainda que sejam associações privadas, desempenham função de relevância
pública e, desse modo, são destinatários de prestações públicas.
De acordo com a disciplina da LPP, as receitas do Fundo Partidário são compostas,
ainda, pelo recolhimento de multas aplicadas pela Justiça Eleitoral, doações de pessoas
físicas (uma vez que as oriundas de pessoas jurídicas foram reconhecidas como
incompatíveis com a ordem constitucional, nos termos da decisão proferida pelo Supremo
Tribunal Federal na ADI nº 4.650/DF, j. 17.9.2015), e, ainda, outros recursos financeiros
que venham a ser destinados por lei, em caráter permanente ou eventual.
Ainda que haja a previsão de que o Fundo Partidário seja formado por outras
receitas, como multas e doações, a sua principal fonte de abastecimento decorre do
aporte de recursos da União, o qual, como visto, toma por base o número de eleitores
registrados junto à Justiça Eleitoral ao final do ano anterior ao da proposta.
Segundo dados coletados junto à página eletrônica do Tribunal Superior Eleitoral,
o eleitorado nacional alcançou, em dezembro de 2017, o número de 146.470.266 (cento e
quarenta e seis milhões, quatrocentos e setenta mil, duzentos e sessenta e seis) cidadãos,
o que, segundo o parâmetro legal antes reportado e sem a aplicação de qualquer índice
de correção monetária, ensejaria um repasse de recursos da União ao Fundo Partidário
de aproximadamente R$51 milhões, considerado o valor per capita de R$0,35 (trinta e
cinco centavos).
A proposta orçamentária do Poder Executivo, no final de 2017, contemplou, porém,
a previsão de um repasse na ordem de R$888,7 milhões para o Fundo Partidário durante
o exercício de 2018, muito superior ao resultante do parâmetro legal estabelecido, o que
findou aprovado nos termos da Lei nº 13.587, de 2.1.2018 (Lei Orçamentária Anual –
LOA/2018).
Como se vê, os valores repassados ao Fundo Partidário tornam-no uma fonte de
receita bastante considerável para os partidos políticos, o que deve ser examinado à luz
dos critérios atualmente em vigor para o rateio dos recursos, previstos no art. 41-A, da
Lei dos Partidos Políticos, que estabelece:

Art. 41-A. Do total do Fundo Partidário:


I - 5% (cinco por cento) serão destacados para entrega, em partes iguais, a todos os partidos
que atendam aos requisitos constitucionais de acesso aos recursos do Fundo Partidário; e
II - 95% (noventa e cinco por cento) serão distribuídos aos partidos na proporção dos votos
obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados.

Consigna-se que a participação no rateio estará interditada, a partir do início de


2019 (legislatura seguinte às eleições de 2018), aos partidos que não superarem a cláusula
de barreira estabelecida pela Emenda Constitucional nº 97/2017, a qual, de partida,

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MARCELO ROSENO DE OLIVEIRA
IGUALITARISMO ELEITORAL: POR UMA FORÇA DE EFEITO ÓTIMA AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE DE OPORTUNIDADES NAS COMPETIÇÕES ELEITORAIS
359

estabelece que somente farão jus às verbas do Fundo as agremiações que “obtiverem,
nas eleições para a Câmara dos Deputados, no mínimo, 1,5% (um e meio por cento) dos
votos válidos, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação, com
um mínimo de 1% (um por cento) dos votos válidos em cada uma delas”; ou “tiverem
elegido pelo menos nove Deputados Federais distribuídos em pelo menos um terço das
unidades da Federação”.1
O aporte de recursos públicos no Fundo Partidário, como se vê, representa
inegavelmente uma manifestação de direitos políticos de caráter prestacional, envolvendo
uma ação estatal positiva no sentido de resguardar que as agremiações, em seu papel
mediador entre o povo e o Estado, possam desempenhar regularmente suas atribuições.
Na percepção de Guedes (2013, p. 1677), além de assegurar transparência aos recursos
recebidos, o direito ao Fundo Partidário – ao possibilitar que cada organização financie
suas próprias atividades, sem precisar depender de doações de pessoas jurídicas privadas
ou de pessoas físicas – diminui a pressão política sobre as agremiações e possibilita a
promoção do debate democrático de ideias.
Cabe destacar que os recursos do Fundo Partidário têm destinação vinculada e
devem ser empregados na manutenção da atividade partidária e nas disputas eleitorais.
Não se trata, portanto, de subvenção voltada especificamente para custear a participação
em eleições. Além disso, alguns critérios legais têm procurado direcionar gastos para o
atingimento de objetivos especiais, de interesse coletivo, como é o caso da previsão de
percentual a ser destinado a estimular a participação política feminina.
Além do Fundo Partidário, uma nova modalidade de financiamento público foi
instituída, desta feita destinada, exclusivamente, a custear as despesas dos partidos
durante as campanhas eleitorais, e será utilizada pela primeira vez nas eleições de 2018.
Trata-se do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), disciplinado pelas
leis nºs 13.487 e 13.488, ambas de 6.10.2017.
De acordo com a previsão legal, o FEFC será constituído a partir de dotações
orçamentárias da União em ano eleitoral, cujo valor será fixado pelo Tribunal Superior
Eleitoral, com base em parâmetros definidos em lei,2 além de 30% (trinta por cento) dos
recursos destinados às emendas de bancada de execução obrigatória no orçamento.
Para 2018, a Lei Orçamentária Anual previu repasses da União na ordem de
R$1,716 bilhão para o Fundo Especial de Financiamento de Campanha. A referida verba,
de acordo com os critérios fixados pela Lei nº 13.488/2017, será rateada do seguinte modo:

Art. 16-D. Os recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), para


o primeiro turno das eleições, serão distribuídos entre os partidos políticos, obedecidos
os seguintes critérios:
I - 2% (dois por cento), divididos igualitariamente entre todos os partidos com estatutos
registrados no Tribunal Superior Eleitoral;

1
A cláusula de barreira será elevada gradualmente até as eleições de 2030, alcançando, então, o limite de 3% (três
por cento) ou um mínimo de 15 (quinze) deputados federais, na legislatura que se seguir. Até lá, será de 2% (dois
por cento) ou um mínimo de 11 (onze) deputados, na legislatura posterior às eleições de 2022; e de 2,5% (dois e
meio por cento) ou 13 (treze) deputados federais, na legislatura posterior às eleições de 2026.
2
De acordo com o art. 3º, da Lei nº 13.487/2017, o valor a ser definido pelo TSE “será equivalente à somatória da
compensação fiscal que as emissoras comerciais de rádio e televisão receberam pela divulgação da propaganda
partidária efetuada no ano da publicação desta Lei e no ano imediatamente anterior, atualizada monetariamente,
a cada eleição, pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), da Fundação Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), ou por índice que o substituir”.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
360 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

II - 35% (trinta e cinco por cento), divididos entre os partidos que tenham pelo menos um
representante na Câmara dos Deputados, na proporção do percentual de votos por eles
obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados;
III - 48% (quarenta e oito por cento), divididos entre os partidos, na proporção do número
de representantes na Câmara dos Deputados, consideradas as legendas dos titulares;
IV - 15% (quinze por cento), divididos entre os partidos, na proporção do número de
repre­sentantes no Senado Federal, consideradas as legendas dos titulares.

Como se vê, à semelhança do Fundo Partidário, o FEFC adota critério de rateio


fundado no desempenho eleitoral, agregando-lhe, ainda, a representatividade parla­
mentar, estabelecendo que apenas 2% (dois por cento) do valor total será dividido de
modo igualitário.

2.2.2 O acesso gratuito ao rádio e à TV


Além do aporte de recursos públicos através do Fundo Partidário e do Fundo
Especial de Financiamento de Campanha, considerados subsídios diretos responsáveis
por injetar dinheiro estatal nas finanças dos partidos políticos, destinados ora a custear
as despesas ordinárias, ora a fazer frente aos gastos de campanha eleitoral, os partidos
políticos também fazem jus aos denominados subsídios indiretos, entre os quais o
principal é o acesso gratuito ao rádio e à TV, expressamente previsto no art. 17, §3º, da
Constituição Federal.
Dito acesso era franqueado aos partidos políticos, até 1º.1.2018, para a divulgação
de mensagens de duas naturezas: a) a primeira, relacionada à propagação dos programas
e atividades das agremiações (sem conteúdo eleitoral), regulada na LPP, denominada
de propaganda partidária; b) e a segunda, destinada à captação de votos e que antecede
imediatamente à realização de eleições, disciplinada na Lei nº 9.504, de 30.9.1997 (Lei
das Eleições – LE): a chamada propaganda eleitoral.
Com a edição da Lei nº 13.487, de 6.10.2017, a propaganda partidária no rádio e
na TV foi extinta, com efeitos a partir de 1º.1.2018, de modo que o direito de antena dos
partidos passou a estar restrito ao período eleitoral, mais propriamente ao lapso de 35
(trinta e cinco) dias que antecede a antevéspera da eleição (LE, art. 47).
Os partidos políticos encontram vedação expressa à realização de propaganda
paga no rádio e na TV, conforme previsão do art. 44, da LE:

Art. 44. A propaganda eleitoral no rádio e na televisão restringe-se ao horário gratuito


definido nesta Lei, vedada a veiculação de propaganda paga.

Embora se trate de acesso gratuito ao rádio e à TV, ele tem essa natureza apenas
para os partidos, na medida em que não estão jungidos a realizar desembolsos para
veicular os programas. Já as emissoras têm direito a compensações fiscais em razão do
que deixam de arrecadar com a comercialização de espaço publicitário por força da
apresentação da propaganda eleitoral, conforme expressa previsão do art. 99, da LE:

Art. 99. As emissoras de rádio e televisão terão direito a compensação fiscal pela cedência
do horário gratuito previsto nesta Lei.

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MARCELO ROSENO DE OLIVEIRA
IGUALITARISMO ELEITORAL: POR UMA FORÇA DE EFEITO ÓTIMA AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE DE OPORTUNIDADES NAS COMPETIÇÕES ELEITORAIS
361

A compensação fiscal está autorizada em relação ao Imposto de Renda da Pessoa


Jurídica e alcança apenas o tempo que seria efetivamente utilizado pela emissora com
a comercialização de publicidade, fixando o art. 99, §1º, inc. II, da LE, que não poderá
ser superior a 25% (vinte e cinco por cento) do total destinado aos programas em bloco.
Segundo dados apurados pela Organização não Governamental (ONG) Contas
Abertas, entre 2002 e 2014, a União deixou de arrecadar R$5,2 bilhões, em valores
correntes, por força das referidas deduções fiscais, o que bem demonstra que se trata de
investimento público relevante no campo do financiamento estatal da atividade política
(DUTRA, 2014).
Cabe destacar, ainda, que o fim da propaganda partidária foi determinado como
modo de viabilizar a criação do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, havendo
indicação de que a “economia” do Poder Executivo em razão das compensações fiscais
autorizadas às emissoras chegaria à cifra aproximada de R$400 milhões (CHAGAS,
2018), valor que será destinado ao financiamento público das campanhas eleitorais no
pleito de 2018.
Além do horário eleitoral gratuito, os debates rotineiramente promovidos por
emissoras de televisão costumam atrair grande atenção do eleitorado na reta final
das disputas majoritárias para o Poder Executivo, sendo comum que, a depender das
circunstâncias, candidatos apostem neles as suas fichas na consolidação de lideranças
anunciadas nas pesquisas, ou as tentativas de “virada” na última hora.3
Estabeleceu-se, a partir da Lei nº 13.165/2015, um novo critério de rateio do acesso
ao rádio e à TV, tal como previsto no art. 47, §2º, da LE, que contempla a divisão de apenas
10% (dez por cento) do tempo igualitariamente entre todos os partidos e coligações
que tenham lançado candidatos, enquanto 90% serão distribuídos proporcionalmente
ao número de representantes na Câmara dos Deputados, ressalvando-se, quanto a
essa fração, que será considerado, no caso de coligação para as eleições majoritárias, o
resultado da soma dos deputados federais dos seis maiores partidos que a integrem.
Constata-se, sem maiores dificuldades, que a manifesta prevalência de partidos
com maior densidade eleitoral, em detrimento de partidos menores ou recém-criados,
já perceptível desde a entrada em vigor da Lei nº 9.504/97, vem se acentuando ao longo
dos anos.
Embora a lógica do rateio proporcional ao número de deputados do partido e/ou
coligação prevaleça no primeiro turno das disputas majoritárias que seguem o sistema de
dois turnos, no segundo há previsão expressa de distribuição em partes iguais, conforme
dispõe o art. 49, §2º, da LE.

2.3 O valor equitativo das liberdades políticas


Já na formulação original de A theory of justice, John Rawls (1971) destacava que,
na sociedade democrática bem ordenada (que respeita os princípios de justiça), deve
vigorar o princípio de igual participação política, que exige que todos os cidadãos tenham

3
A participação nos debates, a partir da entrada em vigor da Lei nº 13.488/2017 (que alterou o art. 46, da LE),
somente está assegurada a candidatos dos partidos com representação no Congresso Nacional, de, no mínimo,
cinco parlamentares.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
362 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

um mesmo direito a tomar parte e a determinar o resultado do processo constitucional


por meio do qual se estabelecem as leis que terão que obedecer.
A igualdade de participação política assume um papel central na construção
de Rawls (1971), pois “[...] a justiça como equidade começa com a ideia de que, se os
princípios de justiça são necessários e vantajosos para todos, devem ser elaborados do
ponto de vista de uma situação inicial de igualdade bem definida, onde cada pessoa
esteja justamente representada”. Essa seria, inclusive, uma projeção da ideia da posição
original para a constituição, como sistema supremo de regras sociais para elaboração
das regras.
Rawls aponta que o respeito ao princípio da igual participação exige, sob o ponto
de vista do eleitor, a observância de que cada voto tenha o mesmo valor para determinar
o resultado das eleições. Além disso, todos devem ter igualdade no acesso ao poder
público, ainda que em sentido formal: “[...] all citizens are to have an equal access, at
least in the formal sense, to public office” (RAWLS, 1971, p. 196).
Exige-se, também, o respeito ao valor justo das liberdades políticas, a reclamar
que os partidos políticos sejam independentes dos interesses econômicos privados,
assegurando-se a eles recursos suficientes para tomar parte nas disputas. Isso seria
necessário para evitar que as desigualdades no sistema socioeconômico venham a minar
a igualdade política, assegurando-se, ao contrário, que haja uma competição leal pelo
poder político. Rawls, neste ponto, admite a possibilidade de que o rateio das subvenções
considere o desempenho eleitoral das respectivas agremiações:

[...] political parties are to be made independent from private economic interests by
allotting them sufficient tax revenues to play their part in the constitutional scheme. (Their
subventions might, for example, be based by some rule on the number of votes received
in the last several elections, and the like.). (RAWLS, 1971, p. 198)4

A Constituição deveria, assim, dar os passos necessários para aumentar o valor


dos direitos de participação para todos os membros da sociedade, de modo que, si­
milarmente dotados e motivados, tenham a mesma oportunidade de ocupar os postos
de autoridade e influenciar o processo político (“[...] a fair opportunity to take part in
and to influence the political process”), independentemente de sua classe econômica
e social (“[...] those similarly endowed and motivated should have roughly the same
chance of attaining positions of political authority irrespective of their economic and
social class”) (RAWLS, 1971).
Rawls adverte que, do contrário, as liberdades políticas perdem muito de seu
valor quando aqueles que têm maiores recursos privados podem usar suas vantagens
para controlar o curso do debate público, cobrando-se que sejam dados “passos com­
pensadores” para evitar as desigualdades: “Compensating steps must, then, be taken
to preserve the fair value for all of the equal political liberties” (RAWLS, 1971, p. 198).
Como se vê, ao tratar das liberdades políticas (e de seu valor equitativo), Rawls
se preocupa em formular uma construção teórica que refute a crítica costumeira de que

4
Tradução livre: “[...] partidos políticos devem ser independentes dos interesses econômicos privados,
assegurando-se a eles recursos suficientes para tomar parte no esquema constitucional. (As subvenções, por
exemplo, podem se basear em alguma norma sobre o número de votos conseguidos em eleições passadas)”.

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MARCELO ROSENO DE OLIVEIRA
IGUALITARISMO ELEITORAL: POR UMA FORÇA DE EFEITO ÓTIMA AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE DE OPORTUNIDADES NAS COMPETIÇÕES ELEITORAIS
363

as liberdades iguais, no Estado Democrático moderno, seriam meramente formais. O


autor ilustra tal objeção indicando que, para alguns, os direitos e liberdades básicas dos
cidadãos são, de fato, iguais: todos têm o direito de voto, de concorrer a cargos políticos
e de se filiar a partidos políticos, todavia

as desigualdades sociais e econômicas nas instituições de fundo são comumente tão


grandes que aqueles que dispõem de maior riqueza e melhores posições sociais geralmente
controlam a vida política e promulgam legislações e políticas sociais que promovam seus
interesses. (RAWLS, 2003, p. 210)

Para discutir a questão, Rawls apresenta a ideia de que seria possível distinguir
a liberdade e o seu valor, de modo que, ainda que as liberdades sejam as mesmas para
todos (o que dispensaria qualquer compensação), o seu valor não é idêntico, uma vez
que fatores como renda e riqueza poderiam influenciar a consecução de seus fins.
Embora afirme não ser seu propósito indicar a melhor maneira de realizar esse
valor equitativo, recorda que algumas medidas que já estariam sendo tomadas assu­
miriam esse viés, envolvendo aspectos como:

[...] o uso de fundos públicos para eleições e restrições às contribuições de campanhas, a


garantia de um acesso equitativo aos meios de comunicação, e algumas regulamentações
da liberdade de expressão e de imprensa (mas não restrições que afetem o conteúdo da
expressão). (RAWLS, 2003, p. 212)

Rawls destaca, ainda, o que considera as duas características da garantia do valor


equitativo das liberdades políticas:

(a) Primeiro, isso assegura para cada cidadão o acesso equitativo e praticamente igual ao
uso de recursos públicos concebidos para servir a um propósito político definido, qual
seja, o recurso público especificado pelas regras e procedimentos constitucionais que
governam o processo político e controlam o acesso a posições de autoridade política. Essas
regras e procedimentos têm de constituir um processo equitativo, elaborado, na medida
do possível, para produzir uma legislação justa. As reivindicações válidas de cada cidadão
são mantidas dentro de certos limites padrão pela ideia de um acesso equitativo e igual
ao processo político enquanto recurso público.
(b) Em segundo lugar, esses recursos públicos têm um espaço limitado, por assim dizer.
Sem a garantia do valor equitativo das liberdades políticas, aqueles que dispõem de mais
meios poderiam se juntar e excluir aqueles com menos meios. Presume-se que o princípio
da diferença não seja suficiente para impedir isso. O espaço limitado do fórum político
público permite, digamos, que a utilidade das liberdades políticas esteja muito mais sujeita
à posição social e meios econômicos dos cidadãos que a utilidade de outras liberdades
básicas. É por isso que acrescentamos a exigência do valor equitativo às liberdades políticas.

Ao tratar do tema na obra Liberalismo político (Political liberalism), originalmente


editada em 1993, Rawls tem a nítida preocupação em esclarecer o posicionamento das
liberdades políticas em relação às demais liberdades básicas, notadamente a de expressão,
o que era justificado diante de decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos da América
em relação a medidas legislativas que restringiam contribuições eleitorais e gastos de
campanha. Em pelo menos dois precedentes: Bucley vs. Valeo; e First National Bank, as

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364 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

medidas foram tidas pelo Tribunal como violadoras da 1ª Emenda à Constituição, uma
vez que restringiriam indevidamente a liberdade de expressão, entendimento que foi
fortemente criticado por Rawls.
Rawls passa, então, a alinhar as condições necessárias para que sejam opostas
restrições ao valor equitativo das liberdades políticas sem que tal importe em violar
a liberdade de expressão. Começa, assim, por recordar que liberdades fundamentais
formam uma família, cujos membros têm de se ajustar uns aos outros, e é esse conjunto
que tem prioridade, e não uma única liberdade isolada, “[...] mesmo que, em termos
práticos, uma ou mais das liberdades fundamentais possam ser absolutas em certas
circunstâncias” (RAWLS, 2011, p. 422), de modo que não se deveria, em nome da
preservação da liberdade de expressão, sacrificar a consecução do valor equitativo das
liberdades políticas, como sinalizam os precedentes da Suprema Corte.
Em seguida, passa a examinar a maneira pela qual a expressão política pode ser
regulada com a finalidade de preservar o valor equitativo das liberdades políticas, tendo
em vista medidas como o financiamento público de campanhas, limites de contribuição
etc., apontando que restrições são compatíveis desde que satisfeitas três condições: 1) não
haja restrições ao conteúdo do discurso; 2) não imponham um ônus excessivo aos vários
grupos políticos, afetando-os, portanto, da mesma maneira; e 3) as várias regulações
da expressão política devem ser racionalmente definidas, ou seja, devem se apresentar
como necessárias e as menos restritivas possíveis, de modo que “[...] deixam de ser
razoáveis, uma vez que alternativas consideravelmente menos restritivas e igualmente
efetivas sejam conhecidas e estejam disponíveis” (RAWLS, 2011, p. 424).
Quanto à primeira, Rawls (2011, p. 424) afirma que as regulações não podem
favorecer nenhuma doutrina política em detrimento de outras. Devem se apresentar,
portanto, como “[...] regras de ordem para eleições, e são necessárias para estabelecer
um procedimento político justo, pelo qual o valor equitativo das liberdades políticas
iguais seja mantido”.
A segunda condição é que os arranjos instituídos não devem impor um ônus
excessivo aos vários grupos políticos da sociedade. Rawls reconhece que definir, por
si só, o que seria um ônus excessivo já se apresenta como ponto de controvérsia. De
qualquer modo, acredita que a aferição deve ser feita tendo por base o modo como as
restrições adotadas podem afetar o valor equitativo das liberdades políticas, afirmando
que a proibição de grandes contribuições de pessoas ou empresas privadas a candidatos
políticos, por exemplo, não é um ônus excessivo a pessoas e grupos abastados:

Uma proibição desse tipo pode ser necessária para que cidadãos igualmente talentosos
e motivados em termos políticos tenham uma oportunidade aproximadamente igual
de exercer influências nas políticas governamentais e de chegar a postos de autoridade,
independentemente de sua classe social e econômica. É exatamente essa igualdade que
define o valor equitativo das liberdades políticas. (RAWLS, 2011, p. 424)

Rawls examina o posicionamento da Corte no precedente Buckley vs. Valeo, de


1976, e no que ele considera “seu desdobramento”, o caso First National Bank vs. Bellottti,
de 1978, afirmando que “[...] são profundamente desalentadores”. No primeiro caso,
a Corte declarou inconstitucionais vários limites a despesas impostos pela Election Act
Amendment, de 1974. Os limites aplicavam-se a gastos: a) em benefício de candidatos

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IGUALITARISMO ELEITORAL: POR UMA FORÇA DE EFEITO ÓTIMA AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE DE OPORTUNIDADES NAS COMPETIÇÕES ELEITORAIS
365

individuais; b) feitos pelos candidatos com recursos próprios e; c) totais no curso de uma
campanha: “A Suprema Corte afirmou que a Primeira Emenda não pode tolerar essas
disposições, uma vez que impõem restrições diretas e substanciais à expressão política”.
No caso First National Bank, por 5 a 4, a Corte invalidou uma lei criminal do Estado
de Massachusetts que proibia gastos de bancos e empresas com o objetivo de influenciar
o resultado dos votos em proposições submetidas a referendo, a menos que essas
proposições afetassem materialmente a propriedade, os negócios ou ativos de empresa.
Rawls anota que, ao proferir o julgamento em Buckley, a Corte considera dois
interesses declarados da lei: a) limitar os custos crescentes das campanhas políticas;
e b) equalizar a capacidade relativa dos cidadãos de afetar o resultado das eleições,
sendo que especialmente o último está diretamente relacionado ao valor equitativo das
liberdades políticas.
A Corte, contudo, de acordo com Rawls (2011, p. 427), não consegue reconhecer
a questão essencial, a de que o valor equitativo das liberdades políticas é necessário
para um procedimento político justo, e que é preciso assegurá-lo para “[...] evitar que
aqueles que possuem mais propriedades e riqueza – e maior capacidade de organização,
associada à posse desses recursos – controlem o processo eleitoral em benefício próprio”.
Nenhum dos valores citados pela Corte, segundo Rawls, entre os quais assegurar
a disseminação ampla de informação de fontes diversas e opostas e garantir a troca
irrestrita de ideias, com o objetivo de promover as mudanças políticas e sociais desejadas
pelo povo, envolve a questão fundamental do valor equitativo das liberdades políticas.
Como resultado, Rawls (2011, p. 427) afirma que se impulsiona a visão de que a
democracia é uma espécie de competição regulada entre as classes econômicas e os grupos
de interesses, “[...] na qual é apropriado que os resultados dependam da capacidade
e da disposição de cada um dos participantes de empregar seus recursos financeiros e
habilidades, reconhecidamente muito desiguais, para fazer valer seus desejos”.
Vita (2007, p. 212) destaca que a tentativa de Rawls de defender o valor equitativo
das liberdades políticas seria necessária para evitar que aqueles que dispõem de mais
recursos econômicos e maior capacidade organizacional tenham também uma maior
capacidade de influenciar os resultados políticos, que, desse modo, “[...] passam a
corresponder, em particular, às preferências dos chamados ‘grandes eleitores’”:

Muitas vezes se argumenta que disposições desse tipo não conseguiriam impedir a
influência do poder econômico sobre as decisões políticas. De fato, não. Mas o financiamento
público aos partidos (junto com a propaganda política gratuita nos meios de comunicação
de massa) garante condições minimamente equitativas de expressão e competição políticas
para aqueles que não contam com o apoio dos “grandes eleitores”. Ademais, é preciso
considerar que esse patamar mínimo de equidade política reduziria significativamente o
retorno marginal que os financiadores privados poderiam esperar de cada real empregado
para influenciar os resultados políticos – sem falar no custo adicional que seria imposto
pela ilegalidade. (VITA, 2007, p. 212)

Embora Rawls (2011, p. 429), conforme destacado, critique a posição da Suprema


Corte nos precedentes citados, revela ceticismo quanto à eficiência dos mecanismos
legislativos adotados para restringir os gastos de campanha, afirmando que muito
possivelmente teriam sido ineficientes, mas, de qualquer modo, revelavam uma “tentativa

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aceitável” de alcançar o objetivo de um sistema equitativo de representação “[...] no qual


todos os cidadãos poderiam ter uma voz mais plena e efetiva”.
Nessa linha, arremata recordando que as consequências do livre jogo do processo
eleitoral só são aceitáveis se as exigências da justiça básica forem satisfeitas e que isso
deve ser reconhecido publicamente, pois, do contrário, os cidadãos tendem a ficar “[...]
ressentidos, cínicos e apáticos” (RAWLS, 2011, p. 429). Esse tipo de sistema é fundamental,
porque a proteção adequada de outros direitos fundamentais depende dele. E sentencia:
“Não basta a igualdade formal”.

2.4 A compensação das desigualdades no campo das disputas eleitorais


A construção doutrinária de Rawls influencia nitidamente a formulação do que
se tem denominado nos tempos atuais de princípio da igualdade de oportunidades nas
competições eleitorais, cujo delineamento encontra especial impulso teórico na obra do
jurista espanhol Óscar Sánchez Muñoz (2007), destacando-se a tarefa da atuação estatal
para buscar desativar fatores que devem ser inválidos nas disputas eleitorais, inclusive
mediante ações afirmativas que possam resguardar a equidade.
É possível constatar que a construção do perfil do princípio da igualdade de
oportunidades nas competições eleitorais na obra de Sánchez Muñoz recebe uma
influência marcante do pensamento de Rawls, a qual é, inclusive, expressamente admitida
em determinada passagem de sua principal obra:

La concepción tradicional del Derecho electoral como un conjunto de garantías puramente


formales, está dando paso a una concepción basada en las garantías de justicia, lealtad o
limpieza (fairness) de la competición electoral. Esta terminologia proviene del Derecho
anglosajón donde los vocablos fair y fairness poseen siempre un matiz de garantía material
o sustantiva, frente a la mera garantia formal. Parece indudable que estos términos
sugieren razonamientos muy próximos a los que sustentan la visión sobre la igualdad de
oportunidades que se defiende en este trabajo. (SÁNCHEZ MUÑOZ, 2007, p. 30)

O autor espanhol recorda que Rawls se limita a indicar “algunos de los instru­
mentos possibles” para que se assegure a igualdade de oportunidades nas competições
eleitorais, ainda assim ressaltando que os pôr em prática poderia exigir alguns ajustes
entre as liberdades básicas (SÁNCHEZ MUÑOZ, 2007).
Rawls (2003, p. 212) afirma que um dos objetivos desse ajuste, em caso de conflitos
entre liberdades básicas, é “dar a legisladores e partidos políticos independência em
relação a grandes concentrações de poder econômico e social privado numa democracia
de propriedade privada, e em relação ao controle governamental e ao poder burocrático
num regime socialista liberal”.
É evidente que o delineamento do conteúdo atual do princípio da igualdade
de oportunidades nas competições eleitorais rejeita a igualdade sob o ponto de vista
meramente formal, aludindo à necessidade de que a interferência dos organismos
eleitorais procure resguardar um ambiente de igualdade substancial, seja através da
não discriminação, seja mediante ações positivas para desativar fatores irrelevantes
nas competições.
É certo que Sánchez Muñoz, a partir da observação da ordem jurídica espanhola,
rejeita uma igualdade absoluta no trato entre os partidos políticos, a qual eventualmente

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MARCELO ROSENO DE OLIVEIRA
IGUALITARISMO ELEITORAL: POR UMA FORÇA DE EFEITO ÓTIMA AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE DE OPORTUNIDADES NAS COMPETIÇÕES ELEITORAIS
367

ignorasse a representatividade de cada um. Contrapõe-se a essa possibilidade sob


o argumento de que se se tratasse igualmente todos os partidos, fossem os que têm
um grande apoio eleitoral ou os que o tenham mais escasso, se estaria privilegiando
injustificadamente os cidadãos que tenham escolhido participar politicamente através
dos pequenos partidos, posição da qual se discorda neste artigo, especialmente à luz
da observação da ordem constitucional brasileira.
Ainda assim, aponta que a dimensão positiva do princípio da igualdade de
oportunidades assume a feição de um mandado de otimização da visibilidade perante
o eleitorado das distintas alternativas políticas envolvidas na disputa: “mandato que se
articula a través de prestaciones públicas dirigidas a compensar el desequilibrio fáctico
existente entre los competidores electorales” (SÁNCHEZ MUÑOZ, 2007, p. 274), o que
demonstra que o conteúdo do princípio caminha no sentido de resguardar o nivelamento
do campo de jogo, sob pena de que a equidade da disputa seja irremediavelmente
comprometida.
Como se observa do delineamento do princípio da igualdade de oportunidades nas
competições eleitorais, uma das faces em que se manifesta, dita positiva, é exatamente a
de buscar otimizar a visibilidade perante o eleitorado das diferentes alternativas políticas
que disputam os postos de governo.
Para além da mera fixação de limites aos competidores (dimensão negativa),
o princípio envolve uma ação estatal no sentido de compensar as desigualdades,
invocando, neste campo, a influência da economia política de John Roemer.
De acordo com Roemer (1998, p. 23), duas concepções de igualdade de oportu­
nidades predominam hoje nas democracias ocidentais: uma, a afirmar que a sociedade
deve fazer tudo a seu alcance para nivelar o campo de jogo (level the playing field) entre
indivíduos que disputam posições, especialmente durante o período de formação, de
modo a permitir que todos aqueles com potenciais relevantes possam eventualmente
ser admitidos entre os candidatos; e a outra, por ele identificada como princípio da não
discriminação, que preceitua que na competição por posições na sociedade, todas as
pessoas que possuem atributos relevantes para o desempenho das funções do posto
em disputa devem ser incluídas no rol de candidatos elegíveis e que a possibilidade de
uma delas vir a ocupá-lo deve ser julgada apenas com respeito a essas características
relevantes.5
As duas concepções até aqui reportadas serviram de inspiração para o desenvol­
vimento dos atuais contornos do princípio da igualdade de oportunidades aplicado às
competições eleitorais. Propugna-se, com efeito, que nas competições para conquistar
os votos dos eleitores os candidatos possam ser escolhidos, exclusivamente, a partir de
atributos válidos para ocupar os postos eletivos, sem a influência, portanto, de fatores
inválidos (assim valorados pelo legislador), como o abuso do poder econômico, político

5
No original: “Two conceptions of equality of opportunity are prevalent today in Western democracies. The first
says that society should do what it can to “level the playing field” among individuals who compete for positions
or, more generally, that it level the playing field among individuals during their periods of formation, so that
all those with relevant potential will eventually be admissible to pools of candidates competing for positions.
The second conception, which I call the nondiscrimination principle, states that, in the competition for positions
in society, all individuals who possess the attributes relevant for the performance of the duties of the position
in question be included in the pool of eligible candidates, and that an individual’s possible occupancy of the
position be judged only with respect to those relevant atributes”.

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368 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

ou midiático; além de serem vistas como necessárias as subvenções estatais para nivelar
o campo da disputa, permitindo aos menos dotados dos meios necessários para ocupar
os postos, que possam competir em condições mínimas de equilíbrio.
A segunda concepção é que justifica, com efeito, que subvenções públicas sejam
destinadas a partidos e candidatos para o financiamento de atividades ordinárias das
agremiações, bem como para custear gastos das campanhas eleitorais. Os critérios de
distribuição, contudo, concentram alta capacidade para servir como um fator de forte
desigualação, frustrando-se o propósito inicialmente traçado.
E tal se dá, notadamente, porque a proposta de nivelar o campo de jogo deve
envolver, diante de players que se acham em situações de desequilíbrio, a distribuição
de recursos de modo a permitir aos que se acham em situação de desvantagem (ou aos
mais “desfavorecidos”, como aponta Rawls) a percepção de insumos maiores.
Também a aludir a essa dupla dimensão, Sartori (2007, p. 211) afirma que a igual­
dade de oportunidades envolve o igual acesso aos cargos públicos em razão do mérito
(capacidade, virtude e inteligência), o que decorre da inspiração do liberalismo e está
relacionado a condições formais de disputa, abrangendo aspectos procedimentais, mas
não se resume a isso, na medida em que se deve garantir, também, pontos de partida
iguais, ou seja, condições materiais que resguardem a equidade:

Iguales puntos de partida quiere decir: los que toman la salida deben estar en condiciones
iguales. El igual acceso elimina obstáculos; los arranques iguales son puntos de partida que
hay que fabricar. [...] Los puntos de partida iguales se basan en condiciones y circunstancias
materiales. El acceso igual es prohibición de discriminación. Los puntos de partida iguales
en cambio se ayudan (como veremos) de discriminaciones. (SARTORI, 2007)

Neste ponto, cabe estar atento para a advertência de Sánchez Muñoz (2013, p. 169)
no sentido de que se a democracia significa, essencialmente, igualdade no exercício do
poder político, podem ser admitidas limitações às liberdades dos sujeitos que participam
do processo eleitoral para assegurar a posição de todos os cidadãos, seja no momento
de emitir o voto, seja na hora de aspirar a mandatos eletivos:

Siendo la influencia del dinero el principal obstáculo o la principal amenaza para que esa
igualdad sea efectiva, dicha influencia debe ser contrarrestada a través de diferentes medidas
que garanticen lo que los anglosajones han llamado “un campo de juego equilibrado” (a
level playing field) entre los contendientes electorales, impidiendo que aquellos que gocen
de una ventaja fáctica en el plano financiero, la trasladen a la competición electoral.

O tratamento isonômico a competidores que já partem para a disputa em condições


desiguais serve, tão somente, para perpetuar a falta de equidade. É necessário reconhecer,
com efeito, a necessidade de uma ação pública de compensação, de modo a garantir aos
menos dotados dos atributos relevantes que sejam beneficiados, quando do rateio de
insumos proporcionados pelo Estado, com “a maior fatia do bolo”.
O atual formato de distribuição de subsídios públicos para o financiamento da
atividade política no Brasil, quando em conta direitos políticos com típica natureza
prestacional, como são os casos do aporte de dinheiro público no Fundo Partidário,
no Fundo Especial de Financiamento de Campanha, e no custeio do direito de antena,
conforme já demonstrado, privilegiam um tratamento que agrava as iniquidades, na

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MARCELO ROSENO DE OLIVEIRA
IGUALITARISMO ELEITORAL: POR UMA FORÇA DE EFEITO ÓTIMA AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE DE OPORTUNIDADES NAS COMPETIÇÕES ELEITORAIS
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medida em que se distancia de uma distribuição igualitária, adotando critérios como o


sucesso eleitoral ou a representatividade parlamentar.
Ocorre que, havendo agentes que já partem na condição de menos favorecidos
(embora, ontologicamente, não houvesse razão para tanto, pois se presume que todos
atendem à mesma qualificação estabelecida em lei para que figurem com beneficiários
das prestações), a distribuição deveria conferir a eles as maiores parcelas, uma vez que
até mesmo a mera distribuição de frações iguais não serviria ao propósito de nivelar a
disputa. Cabe lembrar com Rawls que, nesse campo, a mera igualdade formal não basta.
Caso se pudesse idealizar uma gradação nos modelos de destinação dos insumos
públicos para o financiamento das atividades políticas, tomando como critério aqueles
que mais atenderiam ao propósito de equilibrar a disputa, seria apropriado imaginar que
deveria figurar em primeiro lugar um modelo segundo o qual a distribuição identificasse
os desequilíbrios, destinando aos que estão em situação de maior desvantagem as maiores
parcelas a serem distribuídas, procurando garantir a igualdade.
Em segundo lugar, como uma solução intermediária, estaria alinhada uma
distribuição igual de insumos, que, como visto, perpetuaria iniquidades, na medida
em que ignora que há jogadores em situação de desvantagem. Em último lugar, como
o modelo que menos garante uma distribuição justa de insumos, estaria aquele que
adotasse como critério o sucesso eleitoral em disputas anteriores, na medida em que
agrava as diferenças ao destinar as maiores fatias aos que já estão em situação de
vantagem, estabelecendo um esquema circular no qual todos estão fadados a manter as
suas posições, uma vez que se toma como excepcional a possibilidade de que os menos
favorecidos possam deixar essa condição.
Como se depreende do que até aqui alinhado, a legislação brasileira, quando diante
da tarefa de estabelecer critérios para a destinação de direitos políticos prestacionais, tais
como o rateio do Fundo Partidário, do FEFC e o acesso gratuito ao rádio e à TV, toma
por base o que se há denominado, inclusive no âmbito da jurisprudência do STF, como
“significação” de cada partido, conferindo tratamento proporcional ao sucesso eleitoral
obtido nas últimas eleições ou à representatividade parlamentar.
No caso do rateio do Fundo Partidário, o critério de discrímen adotado é o nú­
mero de votos obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados, ou seja,
o desempenho eleitoral da respectiva agremiação, considerada apenas uma eleição e,
ainda assim, para somente um cargo. Enquanto que, para o rateio do horário eleitoral
gratuito, o critério é parcialmente diverso, qual seja: o número de representantes naquela
Casa Legislativa.6
Os parâmetros em vigor, como se vê, não tomam como suficiente para o rateio o
fato de estarem as agremiações regularmente constituídas, com os estatutos registrados
no Tribunal Superior Eleitoral e aptas a disputar eleições, o que caminharia no sentido
de uma equalização plena, que destinasse a todas o mesmo tratamento. Considera, ao
revés, que, entre eles, há diferença em termos de legitimidade política.

6
Embora o número de cadeiras a serem ocupadas na Câmara dependa, como é óbvio, do número de votos obtidos,
as regras do sistema proporcional conduzem a uma situação em que não é possível estabelecer uma correlação
exata entre essas duas variáveis, bastando considerar os casos de partidos que não logram ocupar cadeiras no
Parlamento Federal, mesmo tendo obtido votos na respectiva eleição. Além disso, a distribuição das cadeiras
considera, até 2018, a formação de coligações, a qual, todavia, não é utilizada para fins de distribuição do Fundo
Partidário, que toma por base o desempenho individual de cada agremiação no último pleito.

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370 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Tal argumentação, porém, é questionável quando confrontada com o fato de que


a Constituição, ao reservar ao legislador a tarefa de estabelecer as condições em que se
daria o acesso dos partidos às cotas do Fundo Partidário e ao rádio e à TV, não concedeu,
por certo, delegação que permitisse uma regulação que desconsiderasse os princípios que
orientam o exercício dos direitos políticos na ordem constitucional brasileira, os quais
primam pela igualdade de chances, paridade de armas e oportunidades equitativas de
visibilidade das distintas alternativas perante o eleitorado.
Tais princípios, ao contrário, extraíveis do próprio texto da Constituição e da ordem
internacional a que submetido o Estado brasileiro, orientam solução diametralmente
oposta, na perspectiva de resguardar a igualdade de condições quanto ao acesso às
funções públicas.
Constata-se, nessa linha, que a adoção de uma regra que privilegiasse a igualdade
formal, destinando a todos os partidos o mesmo tratamento, ainda que não seja a
constitucionalmente mais adequada, seria compatível com a ordem constitucional, já
estando, inclusive, contemplada na própria Lei das Eleições, ao regular a distribuição
do horário eleitoral gratuito nas disputas em segundo turno dos pleitos para escolher
os chefes do Poder Executivo.
Cumpre ter presente que a justificativa para o rateio igualitário, somente nessa fase,
não parece encontrar fundamento apenas no fato de que ambos os candidatos registraram
desempenho eleitoral satisfatório no primeiro turno, mas antes, e principalmente, na
necessidade de garantir que gozem de paridade de armas em momento anterior à decisão
final do eleitor. A questão que se levanta, porém, é se a igualdade de oportunidades
estará resguardada, nos termos exigidos pela ordem constitucional, diante da previsão
de que seja observada apenas em uma parte da disputa, e não em sua integralidade. E
a resposta é desenganadamente negativa.
É certo que a igualdade de rateio privilegia a amplitude do debate no segundo
turno entre as alternativas com maior densidade eleitoral, todavia não se vislumbra
razão plausível para que se restrinja a cláusula a um dos momentos da disputa, enquanto
naquele que o antecede e o condiciona, impere uma distribuição rigorosamente iníqua,
na qual coligações integradas por vários partidos, formando verdadeiros conglomerados
políticos, têm a real possibilidade de monopolizar a propaganda, frustrando o debate
plural e o acesso dos eleitores a conhecer as distintas alternativas eleitorais.
A opção do legislador, no caso, é claramente questionável e passível de ser
reconhecida como incompatível com a ordem constitucional, na medida em que, na
prática, faz justiça pela metade, excluindo as disputas em primeiro turno, bem assim
as demais submetidas ao sistema proporcional, do alcance de um tratamento equânime
entre as candidaturas.
A defesa de um trato isonômico, que considere como critério para a destinação das
prestações tão somente o fato de os partidos estarem registrados, em funcionamento e
aptos a disputar eleições, não tem encontrado maior eco, contudo, no Supremo Tribunal
Federal – não obstante tenha figurado como posição minoritária no julgamento da ADI
nº 4.430/DF –, tampouco na doutrina brasileira.
Cumpre recordar, neste tocante, a contribuição de Mezzaroba (2004, p. 284), que
toma por base a possibilidade de o legislador estabelecer parâmetros para a destinação
das prestações e o fazer, aparentemente, sem maiores amarras. Ainda que reconheça
que os critérios adotados pela LPP “[...] acabam fortalecendo ainda mais as grandes

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legendas, em detrimento das pequenas que se encontram em processo de consolidação”,


e os repute, por isso, “protecionistas”, reclamando a necessidade de que se destine a
partidos e candidatos um tratamento menos desigual, o autor não acolhe a defesa de
uma regra de igualdade formal, tomando como válido tratar os destinatários de modo
proporcional às suas respectivas condições:

A conclusão a que se chega é que, com a utilização desses critérios, profundamente prote­
cionistas, desconsiderou-se o princípio do pluralismo político, que se apresenta como um
dos principais fundamentos constitucionais da República Federativa do Brasil (art. 1º, V), ou
mesmo o princípio da igualdade de oportunidade, apontado anteriormente por Canotilho.
Naturalmente que a legislação deve – e tem a obrigação de – estabelecer critérios propor­
cionais para a distribuição dos recursos do fundo partidário e para o acesso dos Partidos ao
rádio e à televisão. Para tanto, estrutura e projeção política de cada agremiação partidária
se apresentam como pressupostos básicos. O que não pode ocorrer é a legislação instituir
mecanismos que na prática não surtam qualquer efeito para as legendas que estão em
processo de consolidação, como é o caso da Lei nº 9.096/95.

Como se vê, nem mesmo os apelos de que a fixação de “critérios protecionistas”


ofende os princípios do pluralismo político e da igualdade de oportunidades foram
sufi­cientes para que o autor se distanciasse de um juízo de proporcionalidade, o qual,
na prática, refuta a possibilidade de assegurar a igualdade formal.
O argumento elaborado por Mezzaroba (2004) encontra nítida inspiração em
Canotilho (2003, p. 319), para quem a liberdade partidária é inseparável da garantia da
igualdade, ou seja, o reconhecimento jurídico a todos os partidos de iguais possibilidades
de desenvolvimento e participação na formação da vontade popular:

Seria, por ex., inconstitucional estabelecer regimes jurídicos diferentes para os diversos
partidos (uns como corporações de direito público, outros como associações privadas) ou
reconhecer papel dirigente a um partido. A liberdade partidária e a igualdade de opor­
tunidades no desenvolvimento da actividade política são duas dimensões da liberdade
partidária: proibição de ingerência positiva e de ingerência negativa dos poderes públicos
na fundação, existência ou desenvolvimento dos partidos. Mais difícil é determinar e
delimitar concretamente a igualdade de oportunidades (Chancengleichheit). Por um lado,
os partidos são, de facto, desiguais quanto à inserção política, à implantação eleitoral e
popular, à capacidade de mobilização, à organização e recursos materiais. Por outro lado,
a igualdade de oportunidades reconduz-se, em geral, a uma igualdade jurídica e não a
uma “égalité des conditions”, a uma igualdade equitativa. Os princípios da igualdade e da
liberdade de concorrência partidária pressupõem a ‘abertura’ do processo político através
da “paridade de tratamento”, da “tolerância” e “neutralidade” das entidades públicas e
da “relatividade” dos valores políticos (cfr. art. 116,º/3).

Embora o autor português destaque a dificuldade em determinar e delimitar, de


modo concreto, a igualdade de oportunidades,7 a incidência dos princípios constitu­
cionais vigorantes no campo dos direitos políticos facilita sensivelmente a tarefa do

7
A mesma dificuldade para o estabelecimento de critérios de acesso aos direitos políticos (prestacionais), à
luz do princípio da igualdade de oportunidades, é destacada por Sánchez Muñoz (2007, p. 88), formulando
indagações como: “[...] lo que nos plantea el doble problema de la definición de los criterios de acesso a dicho

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legislador, de modo que suas opções devem ser compatíveis com os valores extraídos
da Constituição. Sem embargo disso, caso as opções do legislador se revelem contrárias
ao que assegura a ordem constitucional, restará ao Poder Judiciário expungir do sistema
as normas com ele incompatíveis.
Ainda no âmbito da doutrina nacional, cabe pontificar que, mesmo sem fechar
questão quanto à possibilidade de que as desigualdades do modelo atual possam ser
supe­radas mediante uma distribuição igualitária de cotas do Fundo Partidário, ou
quanto à (in)constitucionalidade do atual critério de distribuição (que considera o nú­
mero de votos obtidos na última eleição para a Câmara dos Deputados – art. 41-A, da Lei
nº 9.096/95), Salgado (2010, p. 213) defende um tratamento equânime, na medida em que:

[...] resta inconcebível que a distribuição do financiamento público – no caso brasileiro,


das cotas do fundo partidário – seja realizada de maneira a permitir uma acentuação das
diferentes capacidades econômicas das agremiações partidárias. Seria ainda mais grave
para a democracia pluralista brasileira a adoção do financiamento público exclusivo com
critérios excludentes – ou exterminadores – de divisão.

Já quanto aos critérios para o acesso dos partidos ao rádio e à TV, a autora faz
referência ao antagonismo das posições sustentadas por Bernardo Diniz de Ayala e
Óscar Sánchez Muñoz: aquele a propugnar, quando em exame a ordem constitucional
portuguesa, uma divisão equitativa do tempo de propaganda eleitoral, uma vez que a
representatividade não poderia servir de critério para a eleição seguinte; e este a defender
que a legislação eleitoral não pode tratar de maneira absolutamente igual partidos com
representatividade distinta, sob pena de conceder tratamento privilegiado aos cidadãos
que decidiram por agremiações menores.
Ressalta, no entanto, que, para Sánchez Muñoz, essas cotas de visibilidade não
podem servir para beneficiar os partidos que já contam com cadeiras no Parlamento e
para inviabilizar as agremiações menores (SALGADO, 2010, p. 198).
Balizada por tal dissenso, Salgado sustenta que, no Brasil, a “[...] divisão do
tempo do direito de antena faz parte da esfera de decisão política do legislador”. Anota,
porém, que a liberdade de conformação não é absoluta, uma vez que as diretrizes estão
colocadas e servem de balizas para a verificação da adequação das escolhas legislativas:

A liberdade de expressão exige o meio para a sua realização, com o acesso aos meios de
comunicação e a liberdade de propaganda. O acesso ao direito de antena deve ser o mais
amplo e igualitário possível, para permitir que o direito cumpra suas funções em relação à
democracia e ao Direito: instigar o pluralismo, impor o cumprimento da função pública e
dos órgãos de comunicação social e garantir eleições verdadeiramente democráticas, pois
“[n]ão há voto livre sem opinião esclarecida; não se concebe liberdade de escolha sem consciência
das alternativas”. (SALGADO, 2010, p. 198)

reparto (?qué competidores van a tener derecho a las prestaciones?) y de la definición de los criterios del próprio
reparto (?cuánto le va corresponder a cada uno?). La cuestión es: ?Igualdad de oportunidades significa que
todos los competidores deben acceder al reparto y que los recursos disponibles han de repartirse por igual entre
los distintos competidores? y, de no ser así, ?cuáles han de ser los criterios admisibles para estabelecer uma
diferenciación entre los potenciales beneficiarios?”.

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Tal posicionamento merece ser confrontado, ante o fato de que, como visto, o
princípio constitucional da igualdade na disputa, considerado pela própria autora
como estruturante do direito eleitoral na Constituição Federal de 1988, deve funcionar
como um claro limite para a atuação do legislador infraconstitucional, a ponto de que
não possa adotar validamente outra opção que não a de regulamentar a divisão de
modo a destinar parcelas idênticas a todos os competidores, ou, quando não, para que
o tratamento desigual seja levado a efeito numa perspectiva emancipatória, destinando
as maiores “fatias do bolo” aos que se encontram em situação de desvantagem.
Ao propugnar o tratamento igualitário, todavia ressalvando a contingência do
“possível”, Salgado caminha no sentido admitir a viabilidade de que o legislador, em
ado­tando critérios como a representatividade parlamentar ou o número de votos obtidos
pelos respectivos partidos, fixe balizas que perpetuam o quadro de desigualdade entre
os competidores.
É preciso ir mais fundo, porém. O princípio da igualdade de oportunidades nas
competições eleitorais manifesta-se, na atualidade, essencialmente, em duas vertentes,
quais sejam: a amplitude do acesso à competição; e a igualdade de armas ou de meios
a serem empregados pelos competidores, durante as campanhas eleitorais.
Com efeito, a igualdade de acesso às funções públicas em perspectiva meramente
formal já não é suficiente para assegurar disputas livres e autênticas, que cobram igual­
dade de condições materiais, reclamando, portanto, ações estatais para coibir abusos,
mas também para compensar situações de desequilíbrio.
Nessa linha, cumpre ter presente que embora o tratamento equânime a todos os
candidatos e partidos seja considerado, nesta pesquisa, como compatível com a ordem
constitucional, não indica que seja o mais adequado sob a perspectiva de garantir a
“máxima efetividade” da Constituição, princípio da hermenêutica constitucional que, nas
palavras de Coelho (2007, p. 107), “[...] veicula um apelo aos realizadores da Constituição
para que em toda situação hermenêutica, sobretudo em sede de direitos fundamentais,
procurem densificar tais direitos, cujas normas, naturalmente abertas, são predispostas
a interpretações expansivas”.
A força normativa da Constituição, conforme Souza Neto e Sarmento (2014,
p. 442), prescreve que seja preferida a interpretação que lhe confira maior efetividade,
ou que assegure uma “força de efeito ótima” (Hesse):

Se determinada norma constitucional se abre a diversas interpretações, cabe ao intérprete


optar pela que produza mais efeitos práticos concretos. Sempre que possível, o intérprete
deve evitar classificar os preceitos constitucionais por meio de conceitos que esvaziam a
sua normatividade, como os de norma de eficácia limitada ou norma programática.

Faz-se necessário, portanto, interpretar as normas de direitos fundamentais, como


as de que se cuida no campo dos direitos políticos prestacionais, com a finalidade de
lhes otimizar a eficácia, buscando garantir que produzam o máximo de efeitos práticos
concretos.
Nessa linha é que se tem como perfeitamente admissível e, mais do que isso, reco­
mendável para o fim de assegurar a máxima efetividade da Constituição, que a destinação
das prestações estatais vá além da igualdade formal, conferindo tratamento proporcional
à condição de cada um dos partidos, todavia para assegurar mais oportunidades àqueles

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em processo de formação ou consolidação, destinando-lhes chances efetivas de acesso


à competição.
Diante de critérios que se apresentam, atualmente, como flagrantemente iníquos,
estimulando um ciclo vicioso, mediante o qual os grandes partidos restam cada vez mais
fortalecidos, enquanto os menores estão fadados a jamais deixar tal condição, não se
duvida que um critério de igualdade formal, assegurando a todos o mesmo tratamento,
seria compatível com a ordem constitucional, representando, ademais, um real e efetivo
avanço para a garantia de tratamento equânime e isonomia de visibilidade entre as
candidaturas.
Caso fossem asseguradas parcelas idênticas no rateio do Fundo Partidário, do FEFC
e no direito de antena a todos os partidos registrados e aptos a disputar eleições, seria
possível afirmar, ainda que à primeira vista, que o sistema estaria a garantir igualdade
de chances, muito embora num estágio que se pode qualificar como intermediário, à
luz de uma escala que pretendesse aferir o índice de garantia de tratamento equitativo
das candidaturas num sistema político determinado.
Um aprofundamento do tema revela, porém, que a compensação das desigual­
dades, tal como o exige a aplicação do princípio da igualdade de oportunidades – e os
demais correlatos nos quais encontra fundamento, como os princípios democrático e
do pluralismo político, ou mesmo os que dele dimanam, como o da legitimidade das
eleições –, cobra que se admita, como ponto de partida, o reconhecimento de que há
dispa­ridades entre alternativas políticas consolidadas e aquelas ainda em formação, de
modo que, segundo um postulado de justiça distributiva, se exige que haja destinação
de tratamentos díspares, todavia para favorecer aqueles que estão em situação de
desvantagem.
Para tanto, um fator positivo de discrímen seria a destinação de parcelas em valores
inversamente proporcionais ao tempo de existência do partido, de modo que fossem
destinadas maiores frações de insumos às siglas mais jovens, recentemente criadas, de
modo a possibilitar que alcançassem maior expressão junto ao eleitorado.
Nesse âmbito, por força de todos os argumentos delineados acerca da necessidade
de que sociedades democráticas encontrem fundamento em princípios de justiça que
contemplam valor equitativo de liberdades políticas e igualdade de chances quanto ao
acesso aos postos de governo, é imperioso reconhecer, como decorrência do princípio
da diferença, de que trata Rawls, que as discriminações somente serão admitidas se
voltadas a beneficiar os que são menos favorecidos.
À defesa de tal argumento se poderá opor, certamente, que se revelaria inviável
diante de um sistema partidário fragmentado, como ocorre com o brasileiro, que conta
com 35 (trinta e cinco) agremiações registradas e aptas a disputar eleições. Tal objeção
perde força, contudo, diante da constatação de que se está a defender, neste trabalho, um
desenho institucional no âmbito de uma teoria normativa e não prescritiva. Descreve-se
uma visão no campo do dever-ser, de modo a indicar qual seria a solução mais adequada
com a ordem constitucional.
Tal, porém, não é suficiente para que se fuja ao enfrentamento da questão, daí
porque parece perfeitamente possível idealizar, de lege ferenda, a necessidade de que a
adoção de critério de igualdade formal (que se pode denominar como intermediário), ou
de igualdade material – voltado a distinguir com maiores parcelas as agremiações em
situação de desvantagem, e que pode ser identificado como ótimo –, seja acompanhada

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MARCELO ROSENO DE OLIVEIRA
IGUALITARISMO ELEITORAL: POR UMA FORÇA DE EFEITO ÓTIMA AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE DE OPORTUNIDADES NAS COMPETIÇÕES ELEITORAIS
375

de uma revisão dos critérios para a criação de partidos políticos, uma vez que podem
ser qualificados, atualmente, como preponderantemente burocráticos.
Em suma, se se pode opor que um tratamento igualitário, como o que ora se
propugna, se mostraria inviável em razão do grande número de partidos atualmente
em funcionamento no Brasil, ou mesmo que tal solução traria, como efeito reflexo, um
estímulo à proliferação de legendas novas e sem apelo popular, é plenamente possível
contra-argumentar no sentido de que as mudanças legislativas necessárias à transição
do atual modelo para uma perspectiva igualitária contemple, de igual, o estabelecimento
de critérios mais rigorosos para a criação de novas legendas.
Não se revela compatível com a ordem constitucional, porém, em razão do
já demonstrado, que se pretenda estabelecer o discrímen com base em critérios não
contemplados pela Constituição e que conflitam com a sua principiologia.

2.5 Conclusão
Propugna-se, por meio desta pesquisa, que a igualdade de oportunidades nas
competições eleitorais é um princípio constitucional no Brasil, incumbindo ao Estado
promover ações negativas e positivas que aniquilem os efeitos de fatores ilegítimos nas
disputas e que compensem as desigualdades, razão pela qual se mostram contrários à
ordem constitucional os critérios que conduzem a uma destinação desigual de prestações
estatais aos competidores, salvo quando tenham o propósito de favorecer aqueles que
estão em situação de desvantagem.
Defende-se, diante do caráter prestacional dos direitos políticos e dos contornos
jurídicos do princípio da igualdade de oportunidades, que a destinação equitativa
das parcelas a serem distribuídas seria uma solução compatível com a Constituição
(igualdade formal), sem embargo de reputar que aquela que estabeleça tratamentos
díspares para favorecer os que estão em situação de desvantagem, de modo a compensar
desigualdades, se apresentaria como a constitucionalmente mais adequada, tendo como
propósito nivelar o campo de jogo, conferindo ao princípio uma força de efeito ótima,
atingindo o limite máximo de sua concretização.
Sustenta-se, ainda, que as normas atualmente em vigor que se distanciam de tal
princípio, destinando as maiores parcelas para partidos que alcançaram melhor resul­
tado eleitoral ou que gozam de maior representatividade no Poder Legislativo, violam
a Constituição, sendo tal ofensa sanável pela via da jurisdição constitucional.
Trata-se, em suma, e sob os influxos dos paradigmas da justiça distributiva, de
uma tese igualitária aplicada ao campo das eleições, reconhecida a centralidade do
elemento político-representativo para o acesso democrático aos postos de governo, de
modo a assegurar a igualdade de chances, o que pressupõe, diante do reconhecimento
de que alguns estão em situação de desvantagem, um tratamento desigual, todavia
voltado a beneficiar os menos dotados dos recursos que influenciam decisivamente o
cenário eleitoral.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
376 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Referências
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

OLIVEIRA, Marcelo Roseno de. Igualitarismo eleitoral: por uma força de efeito ótima ao princípio
da igualdade de oportunidades nas competições eleitorais. In: FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz Fernando
Casagrande; AGRA, Walber de Moura (Coord.); PECCININ, Luiz Eduardo (Org.). Direito Constitucional
Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 355-376. (Tratado de Direito Eleitoral, v. 1.) ISBN 978-85-450-
0496-7.

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CAPÍTULO 3

O PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO


NO DIREITO ELEITORAL

ALINE OSORIO

3.1 Introdução
A liberdade de expressão é um dos mais relevantes – porém mais negligenciados –
princípios do direito eleitoral.1 Não é possível falar em eleições livres ou em democracia
sem um ambiente que permita e favoreça a manifestação e circulação de ideias. Não
por outro motivo, é praticamente unânime na jurisprudência nacional e internacional
que o mais relevante propósito da liberdade de expressão é permitir a discussão de
questões político-eleitorais. O Supremo Tribunal Federal já assentou que “é precisamente
em período eleitoral que a sociedade civil em geral e os eleitores em particular mais
necessitam da liberdade de imprensa”.2 Para a Suprema Corte norte-americana, a
liberdade de expressão tem sua “mais plena e urgente aplicação nas campanhas para
cargos políticos”.3 A Corte Interamericana de Direitos Humanos, por sua vez, considera
que “é indispensável que se proteja e garanta o exercício da liberdade de expressão
no debate político que precede as eleições”.4 Já segundo a Corte Europeia de Direitos
Humanos “as eleições livres e a liberdade de expressão, particularmente a liberdade de
debate político, formam juntas o cimento de qualquer sistema democrático”.5
A despeito disso, censura e restrições indevidas às liberdades comunicativas
proliferam-se na legislação, em atos da Administração Pública e, sobretudo, em decisões

1
O presente artigo tem por base a obra Direito eleitoral e liberdade de expressão, de minha autoria, publicado pela
Editora Fórum em 2017.
2
Supremo Tribunal Federal. ADI nº 4.451-MC-Ref. Rel. Min. Ayres Britto, j. 2.9.2010.
3
Suprema Corte dos EUA, Eu v. San Francisco Democratic Comm, 489 U.S. 214, 223 (1989); e Monitor Patriot Co.
v. Roy, 401 U.S. 265, 272 (1971).
4
Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Ricardo Canese v. Paraguay, j. 31.8.2004.
5
Corte Europeia de Direitos Humanos, Caso Mathieu-Mohin y Clerfayt v. Belgica, j. 2.3.1987.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
378 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

judiciais. A cada período eleitoral, o Judiciário é inundado por ações judiciais movidas por
políticos para retirar dos meios de comunicação quaisquer críticas, notícias desfavoráveis
e denúncias de corrupção. E parte substancial desses pedidos é deferida. Há diversos
exemplos. Em Palmas (TO), policiais militares armados com fuzis tentaram impedir a
distribuição de revista que trazia uma reportagem prejudicial ao então governador que
disputava a reeleição.6 Em Cáceres (MT), um site jornalístico foi proibido de publicar
quaisquer matérias sobre as eleições no município durante todo o pleito.7 Uma juíza
eleitoral do Rio de Janeiro (RJ) determinou a retirada de vídeos de conhecido canal
de humor, os quais faziam menção jocosa a um candidato ao governo do estado.8
Em Curitiba (PR), um candidato ao governo do estado obteve liminares para proibir a
divulgação dos resultados de pesquisas eleitorais legítimas.9 Apenas em 2014, políticos
ajuizaram mais de 400 ações para abafar notícias negativas para suas imagens.10 E o
próprio Tribunal Superior Eleitoral, descontente com o baixo nível dos debates, proibiu
a utilização do horário gratuito para veicular ofensas ou acusações entre os candidatos,
resultando no banimento de informações verídicas, como denúncias de corrupção.11
De acordo com levantamento feito pela Abraji, nas eleições de 2016, foram deferidos
55% dos pedidos judiciais feitos por políticos para censurar conteúdos.12
As eleições evidenciam, assim, a persistência de uma cultura de desprezo pela
liberdade de expressão, que se manifesta especialmente nos casos em que a livre
circulação de informações e opiniões é mais importante: nas eleições. Seu efeito direto
e imediato é a sonegação de informações fundamentais à participação das pessoas na
vida pública, à escolha dos governantes e à fiscalização da sua atuação, seja porque tais
informações são diretamente censuradas, seja porque a ameaça das condenações judiciais
promove o chamado chilling effect (ou efeito “inibidor” ou “silenciador” do discurso),13
dissuadindo jornalistas a publicarem pelo medo da sanção. Sem surpresa, o Brasil ocupa
a desonrosa 103ª posição entre 180 países no ranking sobre a liberdade de imprensa de
2017,14 e tem sua imprensa classificada apenas como “parcialmente livre”, em razão das

6
MAGRO, Maira. Polícia militar do Tocantins tenta impedir revista Veja de circular. Knight Center for Journalism
in the Americas, 27 set. 2010. Disponível em: <https://knightcenter.utexas.edu/pt-br/blog/policia-militar-do-
tocantins-tenta-impedir-revista-veja-de-circular>. Acesso em: 20 jul. 2015.
7
TRE/MT. AIJE nº 301-94.2012.6.11.006. Rel. Juiz Eleitoral Geraldo Fernandes Fidelis Neto, j. 31.8.2012.
8
TRE/RJ. Protocolo nº 158.287/2014. Coord. Fiscalização da Propaganda Eleitoral Juíza Daniela Barbosa
Assumpção de Souza.
9
MAGRO, Maira. Liminares barram publicação de pesquisas eleitorais no Paraná. Knight Center for Journalism
in the Americas, 26 set. 2010. Disponível em: <https://knightcenter.utexas.edu/pt-br/blog/liminares-barram-
publicacao-de-pesquisas-eleitorais-no-parana>. Acesso em: 20 jul. 2015.
10
AÇÕES contra a imprensa devem aumentar em 2016, dizem especialistas. Ctrl+X – Abraji, 7 abr. 2016. Disponível
em: <http://www.ctrlx.org.br/noticia/acoes-judiciais-contra-a-imprensa-devem-aumentar-em-2016-afirmam-
especialistas>. Acesso em: 11 nov. 2017.
11
TSE. Rp nº 1.658. Rel. Min. Admar Gonzaga, j. 17.10.2015.
12
QUEM tenta esconder informações no Brasil? Ctrl+X – Abraji, 31 out. 2017. Disponível em: <http://www.ctrlx.org.
br/noticia/quem-tenta-esconder-informacoes-no-brasil>. Acesso em: 11 nov. 2017.
13
FARBER, Daniel A. The first amendment. 2. ed. New York: The Foundation Press, 2003. p. 79-102; FISS, Owen M.
A ironia da liberdade de expressão: Estado, regulação e diversidade na esfera pública. Rio de Janeiro: Renovar, 2005;
SUNSTEIN, Cass R. Democracy and the problem of free speech. New York: The Free Press, 1993.
14
CLASSIFICAÇÃO – Os dados da classificação da liberdade de imprensa 2017. Repórteres sem Fronteiras.
Disponível em: <https://rsf.org/pt/classificacao_dados>. Acesso em: 11 nov. 2017.

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ALINE OSORIO
O PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO DIREITO ELEITORAL
379

frequentes ordens judiciais determinando a censura ou a condenação cível e criminal


de jornalistas, em razão de críticas a políticos e a outras autoridades.15 16
Ao contrário do que se poderia supor, esse cenário não decorre da ausência de
proteção constitucional da liberdade de expressão, mas especialmente da persistência, no
país, de uma cultura profundamente autoritária e desigualitária. Como se verá, o direito
eleitoral no Brasil permanece especialmente marcado por uma concepção autoritária,
com­prometida, não com os ideais democráticos da Carta de 1988, mas com a asfixia da
liberdade de expressão e da liberdade política que marcou os períodos ditatoriais no
Brasil. E, aqui, ainda não fomos capazes de compreender os direitos a partir de uma lógica
universal e igualitária: em grande medida, a proteção de direitos continua a depender
da posição social ocupada por cada pessoa.17 É por isso que, por exemplo, candidatos,
políticos e autoridades em geral, supostamente pessoas “superiores” na estrutura social,
gozam, na prática, de uma proteção mais robusta de suas reputações, ainda que isso
signifique abafar o debate público e impedir a divulgação de informações verídicas.
É, portanto, necessário e urgente repensar o papel da liberdade de expressão na
vida política do país e, mais especificamente, no direito eleitoral. Esse é o objetivo do
presente artigo. Para tanto, ele está estruturado em dois capítulos. O capítulo 1 apresenta
um marco teórico da liberdade de expressão capaz de traçar os contornos desse direito
e de formular parâmetros uniformes e coerentes para o equacionamento dos conflitos
com outros direitos fundamentais. Já o capítulo 2 é dedicado a discutir a importância do
princípio da liberdade de expressão no direito eleitoral, a partir da análise do catálogo de
princípios constitucionais eleitorais, bem como das aplicações práticas da liberdade de
expressão nesse ramo do direito, com destaque para o caso da propaganda antecipada.

3.2 Um novo marco teórico para a liberdade de expressão


3.2.1 Por que a liberdade de expressão deve ser tão protegida?
A Constituição de 1988 prevê um robusto sistema de proteção da liberdade de
expressão, conferindo-lhe tratamento privilegiado no contexto de redemocratização
do país, após o fim da ditadura militar. Nessa linha, a Carta de 1988 consagrou uma
multiplicidade de direitos e liberdades fundamentais, em especial a liberdade de
expressão stricto sensu, a liberdade de informação e a liberdade de imprensa, com objetos,
conteúdos e âmbitos de aplicação distintos, mas que podem ser agrupados na cláusula
geral “liberdade de expressão”.18

15
Conforme dados da organização Freedom House divulgados no relatório Freedom of the Press 2017 (FREEDOM
of the Press 2017. Freedom House. Disponível em: <https://freedomhouse.org/report/freedom-press/2017/brazil>.
Acesso em: 11 nov. 2017).
16
Em outro exemplo, em 2013, o Brasil foi o 3º colocado no ranking divulgado pelo Google relativo às solicitações
de remoção de conteúdos por tribunais e agências governamentais, perdendo apenas para os EUA e a Turquia
(SOLICITAÇÕES governamentais de remoção de conteúdo. Google. Disponível em: <http://www.google.com/
transparencyreport/removals/government/countries/>. Acesso em: 20 jul. 2015).
17
SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. 2. ed. Belo Horizonte:
Fórum, 2016.
18
A liberdade de expressão stricto sensu é o direito de externar e difundir todas as formas de manifestação do
pensamento, incluindo ideias, criações, opiniões, sentimentos. Já a liberdade de informação corresponde ao direito
de transmissão e comunicação de fatos, incluindo o direito de acesso à informação, o direito de informar, e o
direito de ser informado. Por fim, a liberdade de imprensa compreende o direito de todos os meios de comunicação

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
380 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

No art. 5º, assegurou as liberdades de manifestação do pensamento (inc. IV), de


consciência e de crença (inc. VI), e, ainda, de expressão da atividade intelectual, artística,
científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (inc. IX). Garantiu,
também, o amplo acesso à informação (incs. XIV e XXXIII) e o direito de resposta (inc. V).
Já no art. 220, inserido no capítulo destinado à comunicação social, a Constituição dispôs
que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer
forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição observado o disposto nesta
Constituição” (caput). Além disso, previu que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa
constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo
de comunicação social” (§1º). Por fim, estabeleceu ser “vedada toda e qualquer censura
de natureza política, ideológica e artística” (§2º) e que “os meios de comunicação social
não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”, de modo
a assegurar a liberdade e o pluralismo da imprensa (§5º).
A extensão da proteção assegurada à liberdade de expressão e o lugar privilegiado
que ocupa na nossa Constituição decorrem das funções desempenhadas por esse direito
em um Estado democrático. Há diversas teorias (complementares, e não mutuamente
exclusivas) sobre os interesses e valores constitucionais que são promovidos pela garantia
da liberdade de expressão, dando origem à ideia da sua multifuncionalidade.19 É possível
apontar três funções ou fundamentos principais: (i) a realização da democracia, (ii) a
busca da verdade, e (iii) a garantia da dignidade humana.
Em primeiro lugar, é incontestável que a garantia da democracia constitui um dos
mais importantes objetivos da liberdade de expressão, senão o mais importante. O ar­
gu­mento deriva da ideia básica de que, em um regime democrático, é imprescindível
garantir plena liberdade para que todos os grupos e indivíduos possam expor e ter
acesso a opiniões e pontos de vista sobre temas de interesse público e, assim, permitir
a formação da vontade coletiva e a tomada das decisões políticas, em especial por meio
do voto. O livre fluxo de ideias é compreendido como um meio para o autogoverno
democrático,20 garantindo que os cidadãos possam definir os rumos da coletividade, na
medida em que tal fluxo viabiliza o amplo debate sobre os assuntos públicos, o controle
e a fiscalização do poder.
O discurso político em sentido estrito está, sem dúvida, inserido no núcleo
essencial do direito à liberdade de expressão. No entanto, o fundamento democrático
da liberdade de expressão deve justificar uma proteção muito mais ampla do que a da

social (e não só dos meios impressos) de exteriorizarem quaisquer ideias, opiniões e manifestações (no exercício
da liberdade de expressão em sentido estrito), assim como de divulgar e transmitir os fatos e acontecimentos
(no exercício da liberdade de informação). Cf. MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade de expressão.
Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social. Coimbra: Coimbra Editora, 2002; BARROSO,
Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de ponderação.
Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. Revista de Direito Privado,
v. 18, p. 105-143, 2004; BINENBOJM, Gustavo. Humor, política e jurisdição constitucional. In: SARMENTO,
Daniel (Ed.). Jurisdição constitucional e política. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 701-728; FARIAS, Edilsom Pereira
de. Liberdade de expressão e comunicação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 83-89; CHEQUER, Cláudio.
A liberdade de expressão como direito fundamental preferencial prima facie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 16.
19
V. SCHAUER, Frederick. Free speech: a philosophical enquiry. Cambridge University Press, 1982. p. 15-72; EUA,
Suprema Corte, voto do Juiz Brandeis no Caso Whitney v. California, 274 U.S. 357 (1927); CARBONELL, Miguel.
La libertad de expresión en materia electoral. México: Tribunal Electoral del Poder Judicial de la Federación, 2008.
20
MEIKLEJOHN, Alexander. Free speech and its relation to self-government. New York: Harper Brothers Publishers,
1948. p. 10-11.

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ALINE OSORIO
O PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO DIREITO ELEITORAL
381

mera discussão de assuntos relativos ao governo e aos governantes. Afinal, o autogoverno


democrático pressupõe a possibilidade de os cidadãos tomarem decisões que afetem
a sua vida em geral e de terem acesso a uma multiplicidade de manifestações, como
as artísticas, literárias, religiosas e científicas, que lhes permitam desenvolver as suas
capacidades e contribuir para a sua participação na vida pública.
Em matéria eleitoral, a função democrática da liberdade de expressão deve espe­
cialmente: (i) justificar a proteção de manifestações de conteúdo político que ocorram
tanto durante o pleito, quanto fora dos períodos eleitorais; (ii) estimular a inclusão de
todos os indivíduos e grupos da sociedade, majoritários e minoritários, nos fóruns de
discussão e decisão política, formais e informais, para que suas necessidades, interesses
e opiniões possam se manifestar nas decisões políticas; e (iii) favorecer a expressão dos
pontos de vista mais variados. Todas essas são exigências da democracia.
Em uma segunda perspectiva, a livre discussão e contraposição de ideias seria
um instrumento para a obtenção da verdade e para o desenvolvimento do conhecimento.21
De acordo com essa concepção, toda intervenção estatal no sentido de silenciar uma
opinião, ainda que falsa ou incorreta, deve ser vista com desconfiança, pois é na colisão
com opiniões erradas que a verdade pode se impor. O argumento da busca da verdade
pode ser entendido a partir da metáfora do “mercado de ideias” (marketplace of ideas),
formulada pelo Ex-Juiz da Suprema Corte norte-americana Oliver Wendell Holmes: “o
melhor teste para a verdade é o poder do pensamento de se fazer aceito na competição
do mercado”.22 Segundo essa concepção, a livre competição de ideias (free trade of
ideas) favorece o componente informacional do debate público e permite a tomada das
melhores decisões.
Muito embora a metáfora do mercado de ideias adquira relevo na tutela da liber­
dade de expressão, ela possui algumas falhas. Primeiro, a existência de uma “verdade
universal” é hoje uma ideia ultrapassada.23 Pessoas com diferentes visões de mundo,
ideologias, crenças e religiões tendem a encontrar verdades diversas, e mesmo opostas.
Segundo, não há verdadeira liberdade plena no confronto de ideias, em razão da
profunda desigualdade socioeconômica entre os participantes do debate.24 Terceiro, nem
sempre a verdade será capaz de prevalecer sobre mentiras, pelo menos no curto prazo.25
A despeito de seus problemas, a concepção da busca da verdade ainda tem utilidades
para a fundamentação da liberdade de expressão. Como aponta Jónatas Machado, ela
apresenta um duplo efeito positivo:26 de um lado, estimula o diálogo e a crítica por parte da

21
MILTON, John. Aeropagítica: discurso pela liberdade de imprensa ao Parlamento da Inglaterra. Rio de Janeiro:
Topbooks, 1999; MILL, John Stuart. Sôbre a liberdade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942.
22
Livre tradução de trecho extraído do voto divergente do Juiz Oliver Wendell Holmes, no julgamento do caso
Abrams v. United States (250 US 616, 1919). No original, “the best test of truth is the power of the thought to get
itself accepted in the competition of the market”.
23
MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade de expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no
sistema social. Coimbra: Coimbra Editora, 2002. p. 239.
24
FISS, Owen M. Free speech and social structure. Iowa Law Review, v. 71, n. p. 1405, 1985; MACHADO, Jónatas
Eduardo Mendes. Liberdade de expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social. Coimbra:
Coimbra Editora, 2002.
25
BAKER, Edwin. Human liberty and freedom of speech. New York: Oxford University Press, 1989.
26
MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade de expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no
sistema social. Coimbra: Coimbra Editora, 2002. p. 239.

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382 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

comunidade, tendo como base o pluralismo informativo; de outro, promove uma política
de desconfiança em relação a tentativas do governo de impor uma verdade oficial.27
Em matéria eleitoral, a função de busca da verdade também tem diversas
aplicações.28 O estímulo à criação de um “mercado livre de ideias” permite que os
cida­dãos tenham acesso a uma multiplicidade de informações sobre os candidatos e
partidos, suas propostas, trajetória e reputação, favorecendo a ampla discussão pública
em torno das opções eleitorais e possibilitando a tomada de decisão de voto, sem inter­
ferên­cias estatais. Além disso, esse fundamento filosófico aponta o perigo de conceder
ao governo a possibilidade de dizer o que é verdade e o que é falso no debate eleitoral,
recomendando que o julgamento dos melhores e piores argumentos seja feito pelos
indivíduos no debate público.
O terceiro fundamento da liberdade de expressão é a dignidade humana. A pos­
sibilidade de os indivíduos exprimirem suas ideias e visões de mundo, preferências
e interesses é uma emanação da dignidade.29 Aqui, a liberdade de expressão assume
o caráter de um valor indispensável à realização existencial do homem e ao livre
desenvolvimento da sua personalidade. Expressar-se e ter acesso às mais diversas formas
de expressão é, afinal, essencial à “vida boa”, à escolha das ideias, sentimentos e crenças
que irão inspirar a existência de cada um. Essa perspectiva enfatiza que a expressão
tem um alto valor para a liberdade e para a autonomia individual.30 O fundamento da
dignidade humana implica a necessidade de proteger não apenas o discurso político
em sentido estrito, mas diversos outros tipos de expressões, como a religião, a arte,
a literatura e as ciências. E mais, a partir do reconhecimento da autonomia moral
das pessoas, essa concepção exige a proteção não só dos discursos e ideias neutros,
inofensivos, positivos ou majoritários sobre esses temas, mas, sobretudo, daqueles que
sejam perigosos, ofensivos, negativos ou minoritários.
Em matéria eleitoral, o fundamento substantivo da liberdade de expressão é muito
relevante, na medida em que atesta a autonomia moral dos cidadãos, repelindo arranjos
paternalistas ou autoritários, e revela a necessidade de que lhes seja garantida ampla
possibilidade de se exprimirem livremente, para que possam projetar seus ideais de
vida para o campo político-eleitoral.31 Parece claro que as ideologias políticas e filiações
partidárias podem fazer parte de conceitos de autorrealização individual, de modo que as
pessoas devem poder exercer suas liberdades comunicativas para defender o triunfo de
suas visões e posições político-partidárias, e a derrocada daquelas que lhes sejam opostas.
Além dessas três funções principais da liberdade de expressão, algumas outras
vêm sendo invocadas, como: (iv) a garantia de todos os demais direitos fundamentais,
(v) a preservação do patrimônio cultural e científico da sociedade, e (vi) a desconfiança
histórica nos governos.

27
MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade de expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no
sistema social. Coimbra: Coimbra Editora, 2002. p. 239.
28
CARBONELL, Miguel. La libertad de expresión en materia electoral. México: Tribunal Electoral del Poder Judicial de
la Federación, 2008.
29
SARMENTO, Daniel. A liberdade de expressão e o problema do “hate speech”. In: SARMENTO, Daniel. Livres e
iguais: estudos de direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 242.
30
FARIAS, Edilsom. Liberdade de expressão e comunicação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 66.
31
CARBONELL, Miguel. La libertad de expresión en materia electoral. México: Tribunal Electoral del Poder Judicial de
la Federación, 2008. p. 22.

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ALINE OSORIO
O PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO DIREITO ELEITORAL
383

3.2.2 Como proteger a liberdade de expressão? A posição preferencial


da liberdade de expressão e suas consequências
Todas as múltiplas funções mencionadas acima concorrem para justificar a
atribuição de um peso mais robusto – uma posição preferencial – para a liberdade de
expressão no sistema constitucional brasileiro, conferindo-lhe uma proteção reforçada
contra restrições.
A doutrina da posição preferencial das liberdades comunicativas foi inicialmente
desenvolvida na jurisprudência norte-americana.32 Nos Estados Unidos, a proteção à
liberdade de expressão encontra fundamento na Primeira Emenda à Constituição, que
dispõe que “O Congresso não editará leis [...] cerceando a liberdade de expressão ou
de imprensa”. Embora redigida em termos peremptórios, a Primeira Emenda jamais
foi interpretada de modo absoluto, admitindo restrições, ainda que excepcionalmente.
Tal caráter excepcional das limitações à liberdade de expressão está refletido justamente
no conceito de “posição preferencial”.
O termo específico “posição preferencial” (preferred position) foi cunhado no caso
Jones v. Opelika, julgado em 1942, quando o Justice Harlan Stone reconheceu o status
privilegiado das liberdades expressivas.33 Segundo ele, “a Constituição, por força da
Primeira e da Décima Quarta Emendas, colocou essas liberdades em uma posição
preferencial”.34 Todavia, para boa parte dos estudiosos sobre o tema, a origem dessa
doutrina foi plantada alguns anos antes na famosa Nota de Rodapé nº 4, inserida no voto
proferido pelo Justice Stone, no caso United States v. Carolene Products Co., julgado
em 1938,35 36 que sugeriu, de forma genérica, a aplicação mais restrita da presunção
de constitucionalidade de normas que impusessem limitações a alguns direitos
fundamentais, permitindo-se, assim, um controle mais rigoroso (strict scrutiny) dessas
normas.37
Após a criação da expressão pelo Juiz Stone no caso Jones v. Opelika, a doutrina
da posição preferencial somente foi aceita pela maioria da Suprema Corte dos EUA

32
No original: “Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise
thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and
to petition the Government for a redress of grievances”.
33
EUA, Suprema Corte, Caso Jones v. Opelika, 316 U.S. 584 (1942).
34
No original: “The First Amendment is not confined to safeguarding freedom of speech and freedom of religion
against discriminatory attempts to wipe them out. On the contrary, the Constitution, by virtue of the First and
the Fourteenth Amendments, has put those freedoms in a preferred position” (Caso Jones v. Opelika, 316 U.S.
584, 608 (1942) [opinião dissidente, adotada em, 319 U.S. 103 (1943)]).
35
V. MCKAY, Robert B. The preference for freedom. New York University Law Review, v. 34, p. 1182, 1959; PRITCHETT,
Herman. Preferred freedoms doctrine. In: HALL, Kermit L.; ELY, James W.; GROSSMAN, Joel B. (Ed.). The Oxford
Companion to the Supreme Court of the United States. Oxford: Oxford University Press, 2005; SCHREIBER, Simone.
Liberdade de expressão: justificativa teórica e a doutrina da posição preferencial no ordenamento jurídico. In:
BARROSO, Luís Roberto (Ed.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. São Paulo: Renovar, 2007;
TAVEIRA, Christiano de Oliveira. Democracia e pluralismo na esfera comunicativa: uma proposta de reformulação
do papel do Estado na garantia da liberdade de expressão. Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. Disponível em: <http://dominiopublico.mec.gov.br>. Acesso em: 20 jul. 2015.
36
EUA, Suprema Corte, Caso United States v. Carolene Products Co., 304 U.S. 144 (1938).
37
No original: “There may be narrower scope for operation of the presumption of constitutionality when
legislation appears on its face to be within a specific prohibition of the Constitution, such as those of the first ten
amendments, which are deemed equally specific when held to be embraced within the Fourteenth”.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
384 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

em Murdock v. Commonwealth Of Pennsylvania,38 e ganhou corpo e foi articulada


efetivamente como um princípio constitucional mais tarde, em Thomas v. Collins, de 1945.39
Neste último julgado, a Corte sustentou, na linha do voto do Justice Rutledge, que “a
tarefa de traçar uma linha divisória entre a liberdade do indivíduo e o poder do Estado é
mais delicada do que o usual quando a presunção sustentando a legislação é ponderada
com a posição preferencial das liberdades asseguradas pela Primeira Emenda”. Por
isso, “restrições a essas liberdades garantidas pela Primeira Emenda somente podem
ser justificadas por um perigo claro e iminente ao bem-estar público”.40 Portanto, nos
EUA, a doutrina da posição preferencial das liberdades comunicativas se fundamenta
na ideia, muito bem traduzida neste mesmo voto, de que “essa prioridade confere a
tais liberdades uma santidade e uma posição que não admitem intrusões dúbias. [...]
Apenas os abusos mais graves, que coloquem em risco interesses supremos, dão espaço
a limitações admissíveis”.41
Após sua elaboração pelo direito norte-americano, a proteção preferencial das
liberdades de expressão, imprensa e informação vem sendo reconhecida por tribunais
internacionais e pela jurisprudência constitucional comparada. A título exemplificativo, a
doutrina é adotada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, pela Corte Europeia
de Direitos Humanos e pelas Cortes Constitucionais da Espanha, da Colômbia, do México
e do Brasil, ainda que assuma coloridos distintos em cada um dos diferentes sistemas.
Formaram-se basicamente duas linhas de reconhecimento da posição preferencial. 42
A primeira e mais ampla é aquela idealizada no sistema norte-americano, que atribui
genericamente ao direito à liberdade de expressão uma posição de privilégio que o
torna menos suscetível a restrições estatais. Já a segunda concepção, mais restritiva,
confere uma proteção preferencial apenas a determinadas categorias de discurso que
sejam intimamente relacionadas ao exercício do autogoverno democrático: (i) o discurso
político e o debate sobre assuntos de interesse público, (ii) o discurso sobre funcionários
públicos no exercício de suas funções ou sobre candidatos a exercer cargos públicos,
e (iii) o discurso que expressa um elemento essencial da identidade ou da dignidade
pessoais.43 Ela é adotada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

38
Após a criação da expressão pelo Juiz Stone no caso Jones v. Opelika, a doutrina da posição preferencial somente
foi aceita pela maioria da Suprema Corte dos EUA em Murdock v. Pennsylvania (EUA, Suprema Corte, Caso
Murdock v. Pennsylvania, 319 U.S. 105 (1943)).
39
EUA, Suprema Corte, Caso Thomas v. Collins, 323 U.S. 516 (1945).
40
Livre tradução. No original: “2. The task of drawing the line between the freedom of the individual and the
power of the State is more delicate than usual where the presumption supporting legislation is balanced by the
preferred position of the freedoms secured by the First Amendment. 3. Restriction of the liberties guaranteed by
the First Amendment can be justified only by clear and present danger to the public welfare”.
41
Livre tradução. No original: “That priority gives these liberties a sanctity and a sanction not permitting
dubious intrusions [...] For these reasons any attempt to restrict those liberties must be justified by clear public
interest, threatened not doubtfully or remotely, but by clear and present danger. [...]. Only the gravest abuses,
endangering paramount interests, give occasion for permissible limitation. It is therefore in our tradition to
allow the widest room for discussion, the narrowest range for its restriction [...]”.
42
SCHREIBER, Simone. Liberdade de expressão: justificativa teórica e a doutrina da posição preferencial no
ordenamento jurídico. In: BARROSO, Luís Roberto (Ed.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil.
São Paulo: Renovar, 2007. p. 236-237.
43
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão.
Marco jurídico interamericano sobre el derecho a la libertad de expresión, 30 dez. 2009.

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ALINE OSORIO
O PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO DIREITO ELEITORAL
385

No Brasil, a posição preferencial da liberdade de expressão foi acolhida na


doutrina44 e na jurisprudência45 de acordo com uma concepção mais ampla. No Supremo
Tribunal Federal, o voto proferido pelo Ministro Ayres Britto na ADPF nº 130 é um dos
mais ilustrativos dessa posição. Nas suas palavras, “a Constituição brasileira se posiciona
diante de bens jurídicos de personalidade para, de imediato, cravar uma primazia ou
precedência: a das liberdades de pensamento e de expressão lato sensu”.46 No mesmo
sentido, o Ministro Luiz Fux defendeu, em seu voto na ADPF nº 187, em que se permitiu
a realização da “marcha da maconha”, que “a liberdade de expressão [...] merece proteção
qualificada, de modo que, quando da ponderação com outros princípios constitucionais,
possua uma dimensão de peso prima facie maior”.47 Idêntica posição foi adotada pelo
STF, no emblemático julgamento da ADI nº 4.815, que declarou inconstitucionais os
dispositivos do Código Civil que previam a necessidade de autorização para a publicação
de biografias. No caso, o Ministro Luís Roberto Barroso observou que a Constituição de
1988 reconheceu uma prioridade prima facie da liberdade de expressão, na colisão com
outros interesses juridicamente tutelados, inclusive com os direitos da personalidade.48
No entanto, não basta reconhecer que as liberdades comunicativas possuem uma
posição privilegiada, é preciso desenvolver instrumentos para afirmar e assegurar essa
preferência. No Brasil, porém, ainda há pouco desenvolvimento teórico e jurisprudencial
sobre o que tal “posição preferencial” efetivamente significa e quais as suas consequências
práticas.49 Quando muito, tem-se afirmado que esta posição confere à liberdade de
expressão uma vantagem no processo de ponderação.50 Ocorre que a mera proclamação
retórica do lugar privilegiado que a liberdade de expressão ocupa no ordenamento
jurídico interno e de sua maior dimensão de peso no processo ponderativo não têm sido
capazes de assegurar o respeito às liberdades comunicativas em decisões de juízes e
tribunais, na legislação e nos atos do Poder Público. É sintomático dessa falta de eficácia
o fato de que os direitos à honra e à boa reputação dos políticos e autoridades públicas
têm quase sempre triunfado em casos de colisão com a liberdade de crítica e de debate
político, justificando a censura de informações, elevadas indenizações por danos morais
e até condenações criminais.
É preciso, então, desenvolver, de forma mais aprofundada, o significado da
doutrina da posição preferencial da liberdade de expressão. Em primeiro lugar, é preciso

44
Por todos, veja-se: BARROSO, Luís Roberto. Liberdade de expressão versus direitos da personalidade. Colisão
de direitos fundamentais e critérios de ponderação. In: BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional.
Rio de Janeiro: Renovar, 2005. t. III; FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos. A honra, a intimidade, a vida
privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
2008; SCHREIBER, Simone. Liberdade de expressão: justificativa teórica e a doutrina da posição preferencial no
ordenamento jurídico. In: BARROSO, Luís Roberto (Ed.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil.
São Paulo: Renovar, 2007; e CHEQUER, Cláudio. A liberdade de expressão como direito fundamental preferencial prima
facie (análise crítica e proposta de revisão do padrão jurisprudencial brasileiro). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
45
V. ARE nº 719.618. Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 7.11.2012; Rcl nº 18.687 MC. Rel. Min. Luís Roberto Barroso, j.
27.9.2014; RE nº 685.493. Rel. Min. Marco Aurélio; j. 20.11.2014; Pet. nº 3.486. Rel. Min. Celso de Mello, j. 22.8.2005.
46
STF. ADPF nº 130. Rel. Min. Carlos Britto, j. 30.4.2009.
47
STF. ADPF nº 187. Rel. Min. Celso de Mello, j. 15.6.2011.
48
STF. ADI nº 4.815. Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 10.6.2015.
49
Veja-se, a propósito, SARMENTO, Daniel. Liberdades comunicativas e “direito ao esquecimento” na ordem constitucional
brasileira. Parecer. Disponível em: <www.migalhas.com.br/arquivos/2015/2/art20150213-09.pdf>. Acesso em: 20
jul. 2015.
50
CHEQUER, Cláudio. A liberdade de expressão como direito fundamental preferencial prima facie (análise crítica e
proposta de revisão do padrão jurisprudencial brasileiro). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
386 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

enfatizar que o reconhecimento de posições de preferência prima facie51 não confere à


liberdade de expressão um caráter absoluto. A liberdade de expressão, como qualquer
outro direito fundamental, submete-se a restrições que decorrem da necessidade de
harmonizá-la com outros valores e direitos constitucionalmente tutelados. Nesse sentido,
ainda que a liberdade de expressão adquira uma “dimensão de peso” maior, as colisões
permanecem sendo arbitradas segundo a técnica da ponderação de interesses e as regras
da proporcionalidade. Sua posição preferencial deverá, porém, servir de guia para o
intérprete, exigindo, em todo caso, a preservação, na maior medida possível, da garantia
do livre fluxo de informações exigido pela democracia.
Assentada essa premissa, a grande questão passa a ser como garantir que a liber­
dade de expressão seja efetivamente protegida de forma preferencial e mais rigorosa. A
partir dos parâmetros desenvolvidos no direito constitucional comparado e no direito
internacional dos direitos humanos,52 defendo que a posição preferencial deve envolver
o estabelecimento de três consequências.53
A primeira consequência envolve o reconhecimento de uma presunção de primazia da
liberdade de expressão nas hipóteses de colisão com outros bens, direitos e valores constitucionais.54
Isso significa que, no processo de balanceamento dos direitos em jogo, o conflito deve
se resolver, em princípio, em favor da liberdade de expressão.55 A posição preferencial
deverá, assim, servir de guia para o intérprete, exigindo a preservação das liberdades
expressivas na maior medida possível.
A segunda consequência é a presunção de proibição da censura. A proibição de
divulgação de uma ideia, informação ou manifestação expressiva – seja por meio de
uma decisão administrativa, legislativa, judicial ou mesmo privada, seja de forma
direta ou indireta – representa a intervenção mais extrema na esfera de proteção deste
direito, uma vez que implica a sua total supressão. Por isso, qualquer ato, regulação ou
decisão estatal que constitua censura prévia representará, em regra absolutamente geral,
violação à liberdade de expressão. Esta presunção não ignora o risco de que o exercício
da liberdade de expressão configure um abuso e produza danos injustos. No entanto,
ela estabelece a primazia quase absoluta à imputação de responsabilidades ulteriores
pelo exercício abusivo da liberdade de expressão. Isso inclui diversos mecanismos de
sanção e reparação a posteriori, como o direito de resposta, a retificação, a retratação, a

51
CHEQUER, Cláudio. A liberdade de expressão como direito fundamental preferencial prima facie (análise crítica e
proposta de revisão do padrão jurisprudencial brasileiro). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
52
A respeito, cf. Colômbia, Corte Constitucional, Sentença T-391/07, de 22.5.2007 e outras que serviram de fun-
damento para a sistematização dos parâmetros: C-010 de 2000, C-650 de 2003, SU-1721 de 2000, SU-1723 de
2000, SU-056 de 1995, T-104 de 1996, T-505 de 2000, T-637 de 2001, T-235A de 2002, T-1319 de 2001. O Tribunal
Constitucional colombiano, na Sentença T-391/07, extraiu da posição preferencial da liberdade de expressão
quatro presunções, três ônus e uma exigência de margem de tolerância dos poderes públicos, na avaliação dos
riscos sociais decorrentes do exercício desta liberdade. Em síntese, ela estabelece as presunções de (i) inclusão
prima facie de todas as manifestações no âmbito deste direito; (ii) primazia da liberdade de expressão, em casos
de colisão com outros princípios; (iii) inconstitucionalidade das medidas restritivas desta liberdade; (iv) vedação
à censura.
53
Tais consequências foram reconhecidas no voto proferido pelo Min. Luís Roberto Barroso na ADI nº 4.815 (Rel.
Min. Cármen Lúcia, j. 10.6.2015).
54
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.
55
MARTEL, Letícia de Campos Velho. Hierarquização de direitos fundamentais: a doutrina da posição preferencial
na jurisprudência da Suprema Corte norte-americana. Revista Sequência, n. 48, jul. 2004. p. 100.

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ALINE OSORIO
O PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO DIREITO ELEITORAL
387

responsabilização civil e (como ultima ratio) até a responsabilização penal – este remédio
criminal deve, em regra, estar proscrito no caso de discursos especialmente protegidos,
como aqueles relativos a temas político-eleitorais e a candidatos, políticos e funcionários
públicos em geral. Apenas em casos extremos, excepcionalíssimos e quase teóricos é
que se poderia cogitar de restrições prévias e censura.
A terceira e última consequência se refere à suspeição de todas as medidas legislativas,
administrativas, judiciais e privadas que limitem a liberdade de expressão. Tal presunção
submete as restrições à liberdade de expressão a um controle mais rigoroso, no qual
se proceda a uma espécie de inversão – ou, no mínimo, mitigação – da presunção de
constitucionalidade das normas restritivas e se atribua um ônus argumentativo espe­
cial­mente elevado para que se possa justificá-las. Nesse particular, a posição preferencial
permite que o Poder Judiciário adote uma postura mais ativa para proteger o livre fluxo
de ideias e informações, sobretudo quando expressarem pontos de vista minoritários e
críticas ao governo, aos ocupantes de cargos públicos e aos candidatos a esses cargos.

3.2.3 Quando é possível restringir a liberdade de expressão?


Cabe, ainda, examinar as hipóteses e condições de restrição da liberdade de
expressão, nos casos em que seja necessário conciliar a proteção das liberdades comuni­
cativas com outros interesses e direitos constitucionalmente tutelados que venham a
entrar em rota de colisão. Antes, porém, é preciso identificar o conceito e a substância
do direito.
A liberdade de expressão é de titularidade universal, sendo detida por toda e
qualquer pessoa, em condições de igualdade e sem qualquer discriminação, e é de titula­
ridade complexa ou bidirecional, eis que envolve tanto os interesses privados do emissor,
quanto dos receptores da comunicação. Quando alguém se expressa, não são apenas
os seus direitos individuais que estão em jogo, mas também interesses individuais,
públicos e coletivos dos receptores do discurso. A liberdade de expressão tem, assim, uma
dupla dimensão individual e coletiva.56 A dimensão individual consiste no direito de cada
pessoa de expressar seus pensamentos, ideias e vontades e de disseminar informações.
Já a dimensão coletiva ou social se refere ao direito da sociedade de ter acesso aos
pensamentos, ideias e vontades alheios e de buscar e receber qualquer informação.
Ultrapassada a questão da titularidade, deve-se delimitar o conteúdo do direito
à liberdade de expressão lato sensu. Há, em verdade, uma presunção de que todas as
formas de expressão estariam incluídas no âmbito de proteção do direito constitucional,
independentemente de seu conteúdo. Conferem-se, assim, os contornos mais amplos
possíveis à sua esfera de proteção, de modo a garantir que o Estado seja efetivamente
neutro em relação ao debate público, não excluindo, em princípio, pessoas, grupos ou
ideias da esfera pública.57

56
Corte IDH, La Colegiación Obligatoria de Periodistas. Opinión Consultiva OC-5/85, j. 13.11.1985.
57
CIDH. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Una agenda hemisférica para la defensa de la libertad de
expresión, 2010. Disponível em: <http://www.oas.org/es/cidh/expresion/docs/cd/sistema_ interamericano_de_
derechos_humanos/index_AHDLE.html>. Acesso em: 20 jul. 2015.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
388 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Em relação à forma, a liberdade de expressão deve incluir a linguagem conven­


cional, oral e escrita,58 mas também imagens, manifestações artísticas e até mesmo
condutas, que serão expressivas ou simbólicas quando praticadas com a intenção de
transmitir uma mensagem, crítica ou opinião.59 Em relação aos tipos de expressão
protegidos, as liberdades comunicativas incluem a expressão de ideias, pensamentos,
opiniões, juízos de valor, informações, e quaisquer outros. E não só são tuteladas as
manifestações majoritárias, socialmente aceitas, inofensivas ou neutras, mas também
aquelas minoritárias, contrárias às crenças estabelecidas, ofensivas e negativas. Em
relação às espécies de conteúdo, a liberdade de expressão abrange todos os diferentes
discursos humanos, os políticos, culturais, artísticos, religiosos, acadêmicos, científicos,
comerciais, entre outros. Muito embora todos sejam objeto de proteção, há algumas
categorias de discurso especialmente protegidas. Entre elas, é unânime que a expressão
de conteúdo político é aquela que deve receber o maior nível de proteção.
O “discurso político” tem merecido um tratamento especial e mais rigoroso em
boa parte dos países do ocidente, mesmo naqueles que não conferem à liberdade de
expressão uma posição preferencial, como na Alemanha,60 em razão de sua íntima relação
com a democracia. O conceito compreende não apenas a comunicação no âmbito eleitoral,
mas toda forma de debate e intercâmbio de ideias necessária à formação da opinião
pública sobre temas relacionados à vida política do país. Em síntese, deve envolver (i) os
discursos políticos, eleitorais e demais assuntos de interesse público, e (ii) os comentários
sobre candidatos a cargos públicos, agentes públicos, outras autoridades, o Estado e
suas instituições. Tal proteção especial se reflete na existência de um menor âmbito de
proteção da honra, da reputação e da privacidade de agentes públicos e candidatos
a cargos públicos, em comparação com os demais indivíduos. Isto é, os funcionários
públicos devem ter uma “pele mais espessa” (thick-skinned) para tolerar críticas.
Candidatos a cargos políticos e figuras políticas, quando decidem ingressar na
vida pública, sabem de antemão que isso significa necessariamente a submissão ao escru­
tínio público. Assim, devem se sujeitar ao debate e às críticas a respeito de suas figuras,
trajetória e forma como exerceram ou exercem seus cargos, sejam eles veiculados pelos
meios de comunicação, pelos seus oponentes ou pelos próprios cidadãos. Igualmente, os
funcionários públicos, que ascendem a seus cargos de forma voluntária, têm plena ciência
de que, pela natureza de suas funções, precisam se submeter à análise da população e da
imprensa e aos julgamentos e críticas sobre a forma como desempenham as suas ativi-
dades, de modo a assegurar a transparência, a responsabilidade e o controle do exercício
funcional.61 Isso, é claro, não significa que tais sujeitos não tenham direito à proteção de
sua honra ou reputação, quando forem objeto de ataques injustos e graves. Porém, tal
proteção deverá ser limitada e sempre proporcional aos danos efetivamente causados,
de modo a evitar o efeito de censura ou inibição do debate público (chilling effect).62

58
Cf. STONE, Adrienne. The comparative constitutional law of freedom of expression. In: SAJÓ, András;
ROSENFELD, Michel (Ed.). The Oxford Handbook of Comparative Constitutional Law. Oxford: Oxford University
Press, 2012.
59
V. BARENDT, Eric. Freedom of speech. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 2005. p. 79.
60
BARENDT, Eric. Freedom of speech. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 2005. p. 155-156.
61
Conselho da Europa, Declaração sobre a Liberdade de Debate Político na Mídia, adotada pelo Conselho de
Ministros, em 12.2.2004.
62
FISS, Owen M. A ironia da liberdade de expressão: Estado, regulação e diversidade na esfera pública. Rio de Janeiro:
Renovar, 2000; SUNSTEIN, Cass R. Democracy and the problem of free speech. New York: The Free Press, 1993.

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ALINE OSORIO
O PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO DIREITO ELEITORAL
389

A tutela mais robusta dos discursos sobre temas de interesse público e sobre os
agentes estatais, ainda que sejam ofensivos, contenham incorreções e eventualmente
causem danos a alguma reputação, representa uma garantia institucional da democra­
cia, encorajando, e não reprimindo, a deliberação. Afinal, os regimes democráticos são
justamente aqueles em que os cidadãos encontram condições para discutir e questionar
as decisões capazes de afetar a sua vida, bem como os agentes que sejam responsáveis
por tomá-las.63
Apesar do reconhecimento desse vasto conteúdo e de sua posição preferencial, a
liberdade de expressão, como qualquer outro direito fundamental, submete-se a limites
que decorrem da necessidade de harmonizá-la, em caso de conflito, com outros valores e
direitos constitucionalmente tutelados. Muito embora o texto da Constituição de 1988 não
traga um elenco de hipóteses de restrição, reconhece-se que a validade constitucional de
qualquer limitação estará condicionada à observância de determinados limites formais e
materiais, denominados pela doutrina de “limites dos limites” e, no direito internacional,
de “teste tripartite”.64 Entre eles, é possível destacar: (i) o respeito ao princípio da reserva
legal, (ii) o princípio da legitimidade, e (iii) a observância do princípio da proporcionalidade.
Em primeiro lugar, as restrições à liberdade de expressão submetem-se à reserva
de lei formal, exigindo-se aprovação pelo Poder Legislativo competente. Diante da
gravidade da decisão de restringir esse direito fundamental, somente os representantes
eleitos poderão tomá-la, em atenção ao princípio democrático.65 Além disso, a restrição
deve estar prevista de forma clara, geral, taxativa e não retroativa na lei, como uma
exigência do Estado de Direito. Normas excessivamente vagas, ambíguas e abertas
prejudicam a segurança jurídica e podem violar a liberdade de expressão, sobretudo
quando conferirem a autoridades uma margem muito larga de atuação discricionária
para impor a censura prévia ou sanções desproporcionais àqueles que se expressam.66
Em segundo lugar, tais restrições devem ter como objetivo a tutela de objetivos
constitucionalmente legítimos. Em outras palavras, devem estar direcionadas a proteger
outros interesses e valores, que, por sua importância na ordem constitucional, possam
vir a justificar a limitação da liberdade de expressão.
Em terceiro lugar, as medidas restritivas devem observar o princípio da proporcio­
nalidade em sua tríplice dimensão. Devem ser adequadas ao cumprimento das finalidades
que as fundamentam, o que engloba analisar se os objetivos constitucionais invocados
são realmente protegidos pela medida. Devem ser necessárias à promoção dessas
finalidades, de modo que inexistam outras medidas igualmente idôneas a tais fins que
sejam menos gravosas. Devem, por fim, ser proporcionais em sentido estrito, de modo
que, em um processo ponderativo, verifique-se que tais medidas restritivas produzem
maiores benefícios para os bens jurídicos tutelados em relação aos custos decorrentes
da restrição da liberdade de expressão.

63
V. CIDH. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Una Agenda Hemisférica para la Defensa de la Libertad
de Expresión, 25 fev. 2009.
64
A respeito, cf.: SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia.
São Paulo: Malheiros, 2009; PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais. Rio
de Janeiro: Renovar, 2006.
65
SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
66
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão.
Marco jurídico interamericano sobre el derecho a la libertad de expresión, 30 dez. 2009. p. 23-24.

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390 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Nessa última parte do teste, a ponderação entre os objetivos em conflito deve


considerar tanto a posição preferencial que ostentam as liberdades comunicativas no
sistema constitucional brasileiro, quanto, se for o caso, a especial proteção que merecem
os discursos políticos. Isso significa, em primeiro lugar, o dever de considerar a presunção
de primazia da liberdade de expressão, o escrutínio estrito das medidas restritivas,
justificando a inversão da presunção de constitucionalidade e a presunção de vedação à
censura. E, em segundo lugar, a necessidade de maior rigor no teste de proporcionalidade
quando estiverem em jogo discursos relativos a temas político-eleitorais e a candidatos,
políticos e funcionários públicos em geral. Nessas hipóteses, o processo de ponderação
deve considerar também o princípio democrático, que exige o debate mais amplo possível
sobre os assuntos relacionados à coisa pública e a pessoas responsáveis por sua gestão,
de modo a garantir o controle pelo cidadão.67
E mais: mesmo quando o exercício da liberdade de expressão for abusivo, os
remédios devem ser a posteriori, com preferência pelo direito de resposta/retificação,
e, somente quando este for insuficiente, a responsabilidade civil, sempre em valores
moderados e estritamente proporcionais. De outro lado, tal proteção diferenciada deve
proscrever o emprego de sanções penais (salvo talvez em casos muito excepcionais,
como discursos de ódio), já que o efeito silenciador do discurso crítico e da atividade
jornalística e da imprensa é inerente à criminalização. Na dúvida, deve sempre prevalecer
a liberdade de expressão.

3.3 A importância da liberdade de expressão no direito eleitoral


3.3.1 Constitucionalização do direito eleitoral e os princípios
constitucionais eleitorais
O direito eleitoral constitui um campo particularmente importante de incidência
da liberdade de expressão. Durante períodos eleitorais, a importância da liberdade de
expressão é amplificada. Partidos e candidatos devem prestar contas de suas ações pas­
sadas e expor suas opiniões, propostas e programas futuros. Os meios de comunicação
devem funcionar como canais de disseminação de informações, críticas e pontos de
vista variados. Os cidadãos precisam de plena liberdade não só para acessarem tais
informações, mas para manifestarem livremente as suas próprias ideias, críticas e pontos
de vista na arena pública. Nesse processo, é necessário que todas as questões de interesse
público – incluindo, é claro, a capacidade e a idoneidade dos candidatos e a qualidade
de suas propostas – sejam abertas e intensamente discutidas e questionadas.
Em regimes representativos, o voto e a liberdade de expressão configuram dois
importantes instrumentos de legitimação da democracia. É preciso, assim, que o direito
eleitoral, ramo do direito público que se dedica ao estudo do conjunto de normas – as
regras do jogo – que regulam a eleição dos órgãos representativos, seja capaz de assegurar
um processo eleitoral livre, competitivo e justo, com ampla garantia da liberdade de
expressão.

67
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão.
Marco jurídico interamericano sobre el derecho a la libertad de expresión, 30 dez. 2009.

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ALINE OSORIO
O PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO DIREITO ELEITORAL
391

No Brasil, porém, parcela significativa da legislação eleitoral, das decisões da


Justiça Eleitoral e dos atos administrativos relacionados às campanhas políticas tolhem,
de forma injustificada, o exercício desse direito fundamental. Isso revela que o direito
eleitoral ainda não foi constitucionalizado, tendo se estruturado sem suficiente irradiação
dos valores e normas constitucionais, em especial da liberdade de expressão. Uma das
principais causas desse déficit de constitucionalização é a ausência de sistematização
consistente dos princípios substantivos norteadores do direito eleitoral e de seus
respectivos conteúdos. Isso tem dificultado o equacionamento de conflitos entre
valores e interesses em jogo (e.g., direito à honra de políticos v. liberdade de expressão).
Assim, o primeiro passo para a filtragem constitucional do direito eleitoral é justamente
a identificação dos princípios constitucionais eleitorais, bem como a análise da relação
que estabelecem com a garantia da livre expressão
Muito embora a Constituição não tenha trazido um catálogo expresso de princípios
eleitorais e não haja consenso sobre o tema na doutrina e na jurisprudência, é possível
extrair da Carta de 1988 quatro princípios constitucionais eleitorais: (i) a igualdade
política entre os cidadãos; (ii) a igualdade de oportunidades ou paridade de armas aos
candidatos e partidos; (iii) a legitimidade do processo eleitoral, e (iv) a liberdade de
expressão político-eleitoral. Estas diretrizes serão chamadas de princípios constitucionais
eleitorais.
A igualdade política entre os cidadãos está consagrada no art. 14 da Carta de 1988,
que prevê que o voto deve ter “valor igual para todos”. Ela decorre diretamente dos
princípios democrático, representativo, republicano e da soberania popular. Na verdade,
a igualdade política é uma condição de possibilidade do autogoverno popular. O prin­
cípio parte do pressuposto, moralmente incontestável, de que as pessoas têm igual valor
intrínseco, de que nenhum ser humano é essencialmente superior aos demais e, assim, de
que se deve, em princípio, conferir igual consideração e respeito aos interesses de todos.68
Nesse sentido, a igualdade política exige que o Estado considere seus membros como
pessoas autônomas, capazes de se autodeterminar e de tomar suas próprias decisões, e
iguais, ostentando o mesmo peso nas decisões sobre o destino da polis. O princípio tem
dois conteúdos básicos: (i) a igualdade de valor do voto, mandado dirigido às instituições
eleitorais, que devem garantir a maior extensão do sufrágio e a maior equidade possível
quanto ao peso atribuído a cada voto na distribuição dos mandatos, e (i) a igualdade de
possibilidade de participação, relacionada à liberdade de expressão, que pressupõe que todos
possuam iguais oportunidades para participar dos processos de deliberação coletiva e
para influenciar o resultado do pleito.69
No reverso da moeda da igualdade de influência dos cidadãos encontra-se o
princípio da igualdade de oportunidades, também denominado princípio da igualdade de
chances, da “paridade de armas” ou da isonomia entre os candidatos e partidos políticos.
Ele se inspira na ideia de que qualquer jogo, inclusive o democrático, somente pode ser
jogado se os competidores estiverem em condições de igualdade, não se podendo admitir
que ganhadores e perdedores estejam definidos antes do início da partida. O princípio é
deduzido dos princípios democrático, representativo, republicano, do pluralismo político

68
DAHL, Robert A. On political equality. New Haven: Yale University Press, 2006. p. 4.
69
STILL, Jonathan W. Political equality and election systems. Ethics, v. 91, n. 3, p. 375-394, 1991.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
392 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

e da própria soberania popular. A igualdade de oportunidades compõe-se também


de dois conteúdos: (i) da igualdade de acesso à competição eleitoral, de modo a assegurar
que todas as ideias políticas presentes na sociedade possam participar da disputa por
cargos políticos, e (ii) da igualdade de oportunidades de visibilidade junto ao eleitorado, que
exige a garantia da ampla liberdade de expressão e a contenção do abuso dos poderes
econômico, midiático e político, de modo que haja uma real competitividade na disputa.70
O terceiro princípio constitucional eleitoral é a legitimidade do processo eleitoral. É
preciso garantir um processo eleitoral legítimo, dotado de lisura, higidez e credibilidade
pública, em que, de um lado, o eleitor tenha plena liberdade para realizar suas opções
de voto, e, de outro, impeçam-se fraudes, manipulações e outros constrangimentos que
alterem o resultado do pleito. Com isso, busca-se assegurar a realização da democracia
e dos princípios representativo, republicano e da soberania popular, impedindo-se o
comprometimento da autonomia dos eleitores e o falseamento da vontade popular.
A legitimidade está intrinsicamente ligada com a própria justiça das eleições. O princípio
é especialmente relevante no país diante da história política brasileira, marcada pelos
“vícios crônicos da fraude, da corrupção e da violência”.71 A legitimidade do pleito
abrange dois conteúdos: (i) a autenticidade do voto, obtida por meio da garantia de que os
cidadãos sejam livres e independentes para formular seus julgamentos e para expressar
nas urnas suas conclusões e convicções, sem vícios na formação e na declaração de
vontade do eleitor, e, ainda, (ii) a veracidade do escrutínio, que impõe que o resultado
final das eleições espelhe a vontade popular depositada nas urnas e não seja falseado
ou fraudado.72
Finalmente, a liberdade de expressão político-eleitoral constitui o quarto princípio
constitucional eleitoral. Como visto, ela decorre dos princípios democrático,
representativo, do pluralismo e da soberania popular, e visa assegurar que os candidatos,
partidos e cidadãos em geral possam expor e ter acesso a informações e opiniões sobre
temas de interesse público e, assim, permitir a tomada das decisões políticas e eleitorais.
Trata-se, como já se disse, de um princípio amplamente menosprezado no direito
eleitoral.
No entanto, a liberdade de expressão é tão essencial no processo eleitoral que
compõe o conteúdo de todos os demais princípios substantivos estruturantes do direito
eleitoral. Ela integra o princípio da igualdade política entre os cidadãos, tendo em vista
que este pressupõe que os indivíduos tenham iguais oportunidades de participar dos
processos de deliberação coletiva e de tentar influenciar o resultado eleitoral. A liberdade
de expressão também conforma o sentido do princípio da igualdade de oportunidades
entre candidatos e partidos, na medida em que este requer que se assegure a igualdade de
oportunidades de visibilidade de todas as correntes políticas junto ao eleitorado. Ainda,
ela está no núcleo do princípio da legitimidade do pleito, pois só há autenticidade do voto
quando os cidadãos são livres e independentes para formularem seus julgamentos e
expressá-los nas urnas, sem quaisquer constrangimentos indevidos.

70
SÁNCHEZ MUÑOZ, Oscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones electorales. Madrid: Centro de
Estudios Políticos y Constitucionales, 2007.
71
RIBEIRO, Fávila. O direito eleitoral e a soberania popular. Themis, Fortaleza, v. 3, n. 1, p. 297-321, 2000.
72
SALGADO, Eneida Desirée. Princípios constitucionais eleitorais. Belo Horizonte: Fórum, 2010,

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ALINE OSORIO
O PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO DIREITO ELEITORAL
393

Desse princípio, é possível extrair, em síntese, alguns contornos básicos, já


explorados no capítulo anterior. Em primeiro lugar, a liberdade de expressão deve ser
garantida sob três perspectivas: (i) a dos candidatos e partidos, (ii) a dos eleitores e
cidadãos em geral, e (iii) a dos meios de comunicação em sentido amplo e outros fóruns
de discussão política. Em segundo lugar, a proteção à liberdade de expressão não deve ficar
confinada ao período eleitoral, devendo abranger, ainda que com graus diferenciados de
proteção, também as manifestações expressivas fora desses períodos. Em terceiro lugar, a
liberdade de expressão deve proteger, em princípio, todas as mensagens, tanto em seu
conteúdo, como no tom em que são veiculadas, de modo a abranger não só manifestações,
opiniões e ideias majoritárias, socialmente aceitas, elogiosas, concordantes ou neutras,
mas também aquelas minoritárias, contrárias às crenças estabelecidas, discordantes,
críticas, incômodas, ofensivas ou negativas. E isso ainda quando forem proferidas em
tom feroz, exaltado ou emocionado.

3.3.2 A liberdade de expressão e suas aplicações no direito eleitoral


O princípio da liberdade de expressão é ubíquo no direito eleitoral. Ele está
presente em toda a disciplina da propaganda política, gênero que inclui73 a propaganda
partidária (arts. 45 a 49, LPP), a propaganda intrapartidária (art. 36, §1º, LE), e a propaganda
eleitoral (entre outros, arts. 36 a 57-I, LE). Mas não só. A liberdade de expressão político-
eleitoral está também implicada no direito de resposta (art. 58, LE), na realização e na
divulgação de pesquisas de intenção de voto (art. 33, LE), e na publicidade institucional
dos poderes públicos (art. 73, VI, “b”, LE). Ela permeia, ainda, tanto a cobertura dos meios
de comunicação sobre as eleições, os candidatos e os partidos, quanto as manifestações
da cidadania a esse respeito, nas ruas e nas redes sociais. É possível identificar um
componente de liberdade de expressão político-eleitoral até mesmo no financiamento
de campanhas e na regulação dos gastos eleitorais e partidários (arts. 38 a 43, LPP, e
arts. 17-A e 23 a 27, LE).
A ubiquidade da liberdade de expressão no processo eleitoral, é claro, não a
torna um direito absoluto. Parece evidente que ainda que a expressão seja protegida
preferencialmente no âmbito do processo eleitoral, esse direito fundamental poderá
ser regulado, seja para promover uma maior equalização de forças entre candidatos e
partidos, seja para evitar interferências indevidas no processo de deliberação coletiva e
no próprio resultado do pleito. O problema no direito eleitoral brasileiro, porém, não
tem sido a necessidade de limitar a liberdade de expressão. Pelo contrário, a restrição
às liberdades comunicativas tem sido a regra absolutamente geral no processo eleitoral.
É necessário, então, realizar uma releitura de boa parte da regulamentação das
eleições, incluindo as regras sobre propaganda política, divulgação de pesquisas elei­
torais, participação política da cidadania, acesso aos meios de comunicação, gastos
eleitorais e financiamento de campanha, com o objetivo de restaurar a devida importância

73
As três espécies são enumeradas por Joel José Cândido (Direito eleitoral brasileiro. 15. ed. São Paulo: Edipro, 2012.
p. 177). Já José Jairo Gomes, além de desenvolver tais espécies de propagada, adiciona a publicidade institucional
como uma quarta espécie de propaganda política (Direito eleitoral. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 387 e ss.).

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
394 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

da liberdade de expressão. Infelizmente, essa tarefa não cabe no escopo deste artigo.74
No entanto, vale indicar alguns exemplos de limitações ilegítimas à liberdade de ex­
pressão no direito eleitoral brasileiro e analisar, em seguida, um desses casos de forma
mais detida: a vedação à propaganda antecipada.
Um primeiro exemplo é a vedação peremptória a quaisquer propagandas ofen­
sivas à honra e manifestações capazes de degradar, ridicularizar, caluniar, difamar
ou injuriar candidatos (art. 53, §1º, LE e art. 243, IX, CE). Tal proibição de propaganda
negativa transforma a Justiça Eleitoral em um moderador do conteúdo, do padrão
de civilidade e do tom do debate político-eleitoral, podendo definir, a partir de uma
avaliação subjetiva e casuística, quais críticas – emitidas por candidatos, veículos de
comunicação e cidadãos – são aceitáveis e quais “desbordam dos limites da liberdade
de expressão”, causando danos aos direitos da personalidade dos candidatos. Trata-se,
assim, de uma inconstitucional restrição à liberdade de expressão. Ao contrário do que
dispõem as normas em vigor, a propaganda negativa – mesmo que degrade, ridicularize
ou seja ofensiva à honra de candidato – não pode configurar, por si, uma propagan­da
ir­re­gular e vedada. De um lado, quanto ao seu conteúdo, a irregularidade da propagan­da
negativa somente pode ser reconhecida em casos graves, extremos e excepcionais, em que
esteja em jogo, de fato, um dano injusto e ilegítimo à reputação – jamais o incômodo ou
aborrecimento causado pela crítica. Isso ocorreria, por exemplo, em caso de divulgação
de informações falsas ou de discursos racistas e de ódio com o deliberado intuito de
prejudicar um candidato. De outro lado, quanto ao seu emissor, as críticas emitidas por
candidatos, partidos e veículos de comunicação em geral devem poder ser qualificadas
como propaganda negativa irregular, mas não aquelas emitidas por eleitores, sem
ligação direta com candidatos de fato. Deve-se, portanto, conferir interpretação conforme
a Constituição aos arts. 243, X, 324, 325, 326 do Código Eleitoral, bem como dos arts.
53, §§1º e 2º, e 58 da Lei nº 9.504/1997, impondo-se que a qualificação da propaganda
negativa como irregular pressuponha um processo ponderativo que considere a posição
preferencial da liberdade de expressão e a especial proteção conferida aos discursos
que digam respeito a temas político-eleitorais e a candidatos, políticos e funcionários
públicos em geral.
Um segundo exemplo de norma restritiva à liberdade de expressão é o art. 242
do Código Eleitoral, editado em plena ditadura militar, que dispõe que a propaganda
não deverá “empregar meios publicitários destinados a criar, artificialmente, na opinião
pública, estados mentais, emocionais ou passionais”. O dispositivo do Código Eleitoral
parece, porém, ignorar que buscar criar estados mentais, emocionais ou passionais é
da própria essência da propaganda. Tentativas de excluir as emoções da política são
impraticáveis. Desse modo, uma interpretação literal do art. 242 levaria à proibição de
toda e qualquer propaganda eleitoral. Assim, este dispositivo deve ser considerado como
não recepcionado pela nova ordem constitucional. Em todos os seus sentidos possíveis,
o art. 242 não é capaz de promover nenhum interesse constitucional relevante: não
protege a igualdade política entre cidadãos, a paridade de armas entre candidatos, a
legitimidade do processo eleitoral ou a liberdade de expressão, servindo, ao contrário,
à censura e ao silenciamento de críticas políticas durante o processo eleitoral.

74
Para releitura mais ampla da legislação eleitoral à luz da liberdade de expressão, confira-se: OSORIO, Aline.
Direito eleitoral e liberdade de expressão. Belo Horizonte: Fórum, 2017.

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ALINE OSORIO
O PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO DIREITO ELEITORAL
395

Um terceiro exemplo é o conjunto de normas excessivamente restritivas às


campanhas de rua e de corpo a corpo. Nas campanhas, os candidatos não podem veicular
propaganda em outdoor. Não podem envelopar veículos com propaganda eleitoral.
Não podem distribuir adesivos com dimensão superior a 50 x 40 cm. Não podem se valer
do telemarketing. Não podem fazer propaganda que prejudique a estética urbana. Não
podem distribuir camisetas ou bonés de apoio a suas campanhas. Não podem expor
propaganda em bens públicos (como as praças e postes), mesmo em faixas, cavaletes
ou bonecos. Não podem colocar propaganda eleitoral em bens de propriedade privada
a que a população geral tem acesso, como cinemas, lojas e clubes. Mesmo nos bens
particulares, não podem pintar muros ou fixar propaganda que exceda 0,5 m2. Todas essas
limitações e proibições a espécies de propaganda e atividades de campanha previstas
na legislação eleitoral foram introduzidas com o suposto objetivo de reduzir o custo
das campanhas. No entanto, parece claro que elas são muito gravosas à liberdade de
expressão política dos competidores, já que impedem que os candidatos selecionem os
meios que entendem mais efetivos para transmitir as suas mensagens e propagandas
aos eleitores. Por outro lado, tais medidas são totalmente ineficazes para a restrição dos
custos de campanha e para a promoção da paridade de armas entre os competidores.
Isso porque a proibição de gasto em determinada espécie de propaganda ou evento
de campanha, como showmícios ou envelopamento de veículos, apenas promove a
transferência do uso dos recursos para outras espécies de propaganda ou eventos de
campanha. Com o dinheiro da contratação de artistas, o candidato poderá, por exemplo,
veicular mais anúncios em jornais e revistas. Não há nenhum incentivo real para que os
candidatos e partidos invistam menos em suas campanhas e nenhuma restrição para que
candidatos e partidos mais abastados possam despender grandes quantias de dinheiro,
em posição de vantagem em relação aos demais concorrentes.
Um último exemplo é a proibição de propaganda antecipada, que será analisada
mais detidamente a seguir.

3.3.3 A liberdade de expressão e a proibição da propaganda antecipada


De acordo com a legislação, a propaganda eleitoral veiculada fora do prazo legal
é considerada irregular. No regime da Lei das Eleições, a proibição de propaganda
antecipada (também chamada de prematura ou extemporânea) ganha contornos admi­
nistrativos, sujeitando o seu responsável e também o seu beneficiário, caso se comprove
o seu conhecimento, à multa, cujo valor varia de R$5 mil a R$25 mil ou ao custo da
propaganda, se este for maior (art. 36, §3º, LE).75
A vedação de propaganda eleitoral antecipada tem origem no art. 240 do Código
Eleitoral, que previa, em sua redação original, que a “[a] propaganda de candidatos
a cargos eletivos somente é permitida após a respectiva escolha pela convenção”.76
O dispositivo foi aprovado pelo Congresso Nacional sob a égide do Ato Institucional

75
LE, art. 36, §3º: “A violação do disposto neste artigo sujeitará o responsável pela divulgação da propaganda e,
quando comprovado o seu prévio conhecimento, o beneficiário à multa no valor de R$5.000,00 (cinco mil reais)
a R$25.000,00 (vinte e cinco mil reais), ou ao equivalente ao custo da propaganda, se este for maior”.
76
A minirreforma eleitoral de 2015 alterou a redação do art. 240 do Código Eleitoral, que passou a prever que
“A propaganda de candidatos a cargos eletivos somente é permitida após o dia 15 de agosto do ano da eleição”.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
396 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

nº 1/1964, com o objetivo, não de garantir a igualdade de oportunidades entre os


competidores (aliás, sequer competição real havia), mas, nas palavras de Alberto Rollo,
de “subordinar o candidato aos ditames de seu partido, impedindo-o de projetar-se
como candidato, criando um fato consumado que o partido não poderia descartar”.77
Em uma democracia, porém, a vedação à propaganda veiculada antecipadamente
deve encontrar fundamento constitucional legítimo. Pois bem. É possível entender
que o estabelecimento de um limite temporal às campanhas tem como fundamento
o princípio da igualdade de oportunidades entre partidos e candidatos, e que busca
realizar três objetivos principais: (i) garantir a todos os competidores um mesmo prazo
para realizarem as atividades de captação de voto; (ii) mitigar o efeito da assimetria de
recursos econômicos na viabilidade das campanhas, combatendo a influência do poder
econômico sobre os resultados dos pleitos; e (iii) impedir que determinados competidores
extraiam vantagens indevidas de seus cargos ou do acesso à mídia para iniciar a disputa
eleitoral mais cedo.
Fixadas essas premissas, é preciso definir, claramente, o que é propaganda
antecipada. Isso porque as atividades de proselitismo são uma constante na vida dos
políticos e dos partidos. Assim, não se pode, a pretexto de garantir a igualdade de
oportunidades na disputa, sufocar a atividade política e a liberdade de expressão desses
atores em períodos não eleitorais. Impedir que os políticos possam se apresentar e buscar
obter visibilidade junto ao público fora dos períodos eleitorais, apresentando suas ideias,
objetivos, trajetória e formação, constitui violação não somente à liberdade de expressão,
mas também à igualdade de chances, já que confere vantagem a detentores de cargos
políticos e outras figuras públicas e celebridades, que, em razão de suas atividades,
mantêm-se constantemente no centro das atenções da mídia e da população.
A Lei das Eleições não trouxe, porém, um conceito definitivo. Ao invés disso
fixou, no art. 36-A, um elenco meramente exemplificativo de atos e ações que não
caracterizam propaganda eleitoral antecipada e, no art. 36-B, uma hipótese em que ela
restará caracterizada (a convocação, pelos chefes de poder, de redes de radiodifusão para
divulgação de atos que denotem propaganda política ou ataques a partidos políticos e
seus filiados ou instituições). O elenco de condutas permitidas no período pré-eleitoral
já sofreu diversas alterações, que gradualmente ampliaram a garantia da liberdade de
expressão dos candidatos, partidos e dos próprios cidadãos nesse período. O art. 36-A
foi incluído na Lei das Eleições pela Lei nº 12.034/2009, quando tinha hipóteses bem
limitadas. Só não eram consideradas propaganda eleitoral antecipada: (i) “a participação
de filiados a partidos políticos ou de pré-candidatos em entrevistas, programas, encontros
ou debates no rádio, na televisão e na internet, inclusive com a exposição de plataformas
e projetos políticos, desde que não haja pedido de votos, observado pelas emissoras de
rádio e de televisão o dever de conferir tratamento isonômico” (inc. I); (ii) “a realização
de encontros, seminários ou congressos, em ambiente fechado e a expensas dos partidos
políticos, para tratar da organização dos processos eleitorais, planos de governos ou
alianças partidárias visando às eleições” (inc. II); (iii) “a realização de prévias partidárias
e sua divulgação pelos instrumentos de comunicação intrapartidária” (inc. III); e (iv) “a
divulgação de atos de parlamentares e debates legislativos, desde que não se mencione

77
ROLLO, Alberto. Princípios de direito eleitoral: pars conditio e segurança jurídica. In: ROLLO, Alberto et al.
Propaganda eleitoral: teoria e prática. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 31-43.

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ALINE OSORIO
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a possível candidatura, ou se faça pedido de votos ou de apoio eleitoral” (inc. IV).


Posteriormente, sua redação foi alterada pela Lei nº 12.891/2013, que liberalizou o con­
teúdo das ações admitidas durante o período pré-eleitoral. Já em 2015, a Lei nº 13.165 –
aplicada pela primeira vez às eleições de 2016 – trouxe modificações mais radicais. Entre
outras alterações, o caput e o §2º do art. 36-A da Lei das Eleições passaram a prever
que, como regra geral, não configuram propaganda eleitoral antecipada, desde que não
envolvam pedido explícito de voto: a menção à pretensa candidatura; a exaltação das
qualidades pessoais dos pré-candidatos; o pedido de apoio político; e a divulgação da
pré-candidatura, das ações políticas desenvolvidas e das que se pretende desenvolver.
Finalmente, a minirreforma de 2017, introduzida pela Lei nº 13.488, de 6 de outubro,
passou a definir que campanha de arrecadação prévia de recursos na modalidade de
financiamento coletivo também não configura propaganda antecipada (inc. VII)
Tais dispositivos trazem, é certo, muitas pistas para a adequada conceituação de
propaganda eleitoral, mas a tarefa permanece inacabada. A inexistência de uma definição
exata tem dado margem a abusos tanto na veiculação de propagandas em desacordo
com a legislação por candidatos de fato, quanto no controle da propaganda antecipada
pela Justiça Eleitoral, que, muitas vezes, assume contornos artificiais e casuísticos.
Até muito recentemente, o Tribunal Superior Eleitoral entendia como ato de
propaganda eleitoral “aquele que leva ao conhecimento geral, ainda que de forma
dissimulada, a candidatura, mesmo que apenas postulada, e a ação política que se
pretende desenvolver ou razões que induzam a concluir que o beneficiário é o mais apto
ao exercício de função pública”. Todavia, essa definição de propaganda eleitoral parece
se confundir com a própria essência da política, restringindo desproporcionalmente as
liberdades comunicativas desses atores. Afinal, em todos os momentos é justamente
isso que políticos e partidos buscam: demonstrar que possuem méritos, propostas e
projetos que possam conquistar a simpatia do cidadão e permitir que, algum dia, eles
sejam sufragados pelo voto popular, conquistando os cargos almejados.78 Tais critérios
permitiram, por exemplo, que um pré-candidato, que postou em seu Orkut a mensagem
“disputei eleição para deputado federal... E agora vou tentar vereador em 2008”, fosse
multado pelo TRE-MG em R$21 mil por propaganda antecipada.79 Veja-se que não há
qualquer pedido de votos, promoção de qualidades pessoais ou divulgação de projetos,
mas apenas menção ao fato de que o sujeito tentará se eleger nas próximas eleições.
Além disso, a mensagem foi veiculada em rede social, na internet, de forma gratuita, e,
logo, sem oferecer qualquer prejuízo à paridade de armas.
Encorajar eventuais pré-candidatos a disfarçarem as suas posições políticas e
projetos para não configurar propaganda antecipada, porém, além de ser demagógico,
colidente com a ideia de um debate robusto, desinibido e aberto sobre os fatores de
escolha dos representantes. Por isso mesmo, a própria legislação aplicável autoriza, fora
do período eleitoral, “a exposição de plataformas e projetos políticos”, “a divulgação
de atos de parlamentares e debates legislativos”, “a manifestação e o posicionamento

78
NEVES FILHO, Carlos. Propaganda eleitoral e o princípio da liberdade da propaganda política. Belo Horizonte: Fórum,
2012. p. 54.
79
Cf. CANDIDATO é multado por propaganda antecipada no Orkut. Revista Consultor Jurídico, 2 jun. 2008.
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2008-jun-02/candidato_multado_propaganda_antecipada_orkut>.
Acesso em: 20 jul. 2015.

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pessoal sobre questões políticas” e a “promoção pessoal”. Não à toa, a minirreforma


eleitoral de 2015 buscou evidenciar que salvo pedido explícito de voto, não configuram
propaganda eleitoral antecipada “a menção a pretensa candidatura” e “a exaltação das
qualidades pessoais dos pré-candidatos”.
O que caracterizaria, então, a propaganda eleitoral extemporânea, distinguindo-a
das demais espécies de propaganda admitidas? Eu proponho dois parâmetros. O pri­
meiro e importante critério é justamente o expresso pedido de votos para si ou contra
possível adversário, estabelecendo uma relação direta com o pleito vindouro. Trata-se
de um critério objetivo, que pode ser traduzido pelo uso, pelo possível candidato, de
determinadas “palavras mágicas”, como “vote em”, “vote contra”, “apoie”, “derrote”,
“eleja” ou quaisquer variações que levem uma pessoa razoável a concluir que o emissor
esteja defendendo publicamente a sua vitória ou a derrota de um eventual concorrente na
próxima eleição, em analogia à categoria de express advocacy empregada no contexto das
campanhas norte-americanas.80 Nesses casos, é evidente que o pré-candidato “queimou
a largada”, iniciando sua campanha antes do tempo. Logo, não há dúvida a respeito da
caracterização de propaganda antecipada.
O segundo critério, a ser utilizado quando não há postulação explícita de voto,
é o potencial efetivo da mensagem para desequilibrar a disputa, o que deve ser aferido
não apenas pelo conteúdo da propaganda, mas especialmente a partir da consideração
de elementos como o meio de comunicação ou veículo utilizado, os custos incorridos
para a veiculação, o alcance e a repetição da mensagem, a possibilidade de outros pré-
candidatos divulgarem mensagem semelhante, em igualdade de condições, o emissor,
a data da sua divulgação e o tempo de permanência, entre outras circunstâncias. Por
exemplo, parece claro que os meios de comunicação ou veículos utilizados importam
(e.g., se a propaganda é veiculada na TV ou no rádio, na imprensa, na internet, em
outdoor, por panfletos, adesivos, ou pessoalmente, no corpo a corpo). A divulgação de
mensagens na internet, por exemplo, é, em regra, livre e realizada a um custo baixíssimo.
Além disso, todos os demais políticos e competidores poderão se valer do mesmo
veículo, divulgando mensagens sobre seus posicionamentos, projetos e qualidades, em
igualdade de condições.
Também o emissor da mensagem deve ser levado em conta na análise da regu­
la­ridade da propaganda. Para a proteção da igualdade, é necessário, por exemplo,
adotar um escrutínio mais rigoroso no caso de políticos que estão no exercício de man­
datos eletivos – sobretudo aqueles que são notórios pré-candidatos –, já que estes se
encontram em uma posição natural de privilégio e de destaque na competição. Se estes,
em inaugurações de obras, entrevistas ou publicidade institucional de atos estatais,
fizerem menção ao pleito ou acenarem para a necessidade de continuação do governo,
deve-se “acender uma luz vermelha”. Por outro lado, se apenas tratarem de assuntos
político-comunitários, prestarem contas ou exaltarem os atos de governo, responderem
a críticas e derem satisfação aos eleitores de suas escolhas, não se poderá cercear tais
manifestações, sob pena de grave violação à liberdade de expressão.

80
Sobre o tema, cf. TELLES, Olivia Raposo da Silva. Direito eleitoral comparado: Brasil, Estados Unidos, França. São
Paulo: Saraiva, 2009; LEVY, Richard E. Defining express advocacy for purposes of campaign finance reporting
and disclosure laws. Kansas Journal of Law & Public Policy, v. 8, n. p. 90, 1999.

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O PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO DIREITO ELEITORAL
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Além do caso dos detentores de mandatos eletivos, também se deve dispensar


especial atenção à propriedade dos meios de comunicação para a configuração
da propaganda irregular. Na hipótese de manifestações favoráveis divulgadas
ostensivamente nos meios de comunicação ou na imprensa, se o proprietário do veículo
for parente, pessoa ligada ou o próprio pré-candidato beneficiado, há forte presunção
de desvirtuamento, sobretudo naquelas cidades pequenas, em que há concentração dos
meios de comunicação nas mãos de um grupo político ou oligarquia local.
Situação diversa se dá quando o emissor da mensagem for um cidadão comum,
que não seja diretamente ligado a nenhum pré-candidato ou partido – ou mesmo um
grupo da sociedade civil desvinculado de partido político. Nesse caso, por óbvio, não
se aplica o primeiro critério – a vedação ao pedido explícito de voto antes do início
da campanha. Como se viu, tal critério deriva da necessidade de garantir a todos os
competidores um mesmo prazo para realizarem (eles próprios ou pessoas vinculadas a
eles) as atividades de captação de voto. Assim, não faz sentido estender essa exigência
aos eleitores que estarão fora da disputa eleitoral.
Com mais razão, quando não houver pedido de voto, os cidadãos comuns não
devem se sujeitar às limitações temporais da Lei nº 9.504/1997 para defender suas
posições políticas e eleitorais na esfera pública, manifestando-se contra ou a favor de
determinado candidato. Nesses casos, se a mensagem não for veiculada com abuso
de poder econômico, político ou midiático (e.g., um empresário que empregou R$1
milhão para promover determinada candidatura) e não houver qualquer prova de que o
cidadão tenha sido aliciado por pré-candidato ou partido, jamais poderá se caracterizar
a propaganda antecipada (como agora dispõe de forma correta o inc. V do art. 36-A da
Lei nº 9.504/1997, com redação dada pela minirreforma de 2015). Aqui, estará em jogo
tanto a liberdade de expressão como a própria igualdade política entre os cidadãos, que,
como visto, tem como conteúdo básico a igualdade de possibilidade de participação, a
qual pressupõe que todos devem possuir iguais oportunidades para tomar parte dos
processos de deliberação coletiva.
A vedação à propaganda antecipada somente tem sentido, portanto, quando
estiver em jogo o efetivo embaraço ao princípio da igualdade de oportunidades entre
os candidatos. De um lado, nenhum pré-candidato pode fazer um pedido expresso
de votos antes do início da campanha. Caso o faça, estará configurada a propaganda
antecipada, pois apenas com o início do período de campanha é dada a largada oficial
para as tentativas de obter o apoio do eleitorado por meio do voto. De outro lado, ainda
quando não houver pedido expresso de votos, é possível que dada mensagem configure
propaganda extemporânea. Porém, nesse caso, é necessário comprovar o efetivo prejuízo
à paridade de armas na disputa, por meio de elementos como o veículo utilizado, os
custos envolvidos, a reiteração da mensagem e o emissor. Quando a mensagem não
puder promover um desequilíbrio na competição eleitoral, especialmente na divulgação
de posições políticas dos filiados a partidos e pré-candidatos na internet e nas redes
sociais, ou quando se tratar de manifestação espontânea da cidadania, a atuação da
Justiça Eleitoral configurará grave violação à liberdade de expressão.
Os parâmetros propostos acima para a configuração de propaganda eleitoral
antecipada estão alinhados com a nova redação do art. 36-A dada pela minirreforma
de 2015 e são capazes de ampliar as possibilidades de exposição de ideias e plataformas
por candidatos de fato e partidos antes do início oficial das campanhas, sem, contudo,

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serem permissivos com condutas que, de fato, desequilibrem a disputa e configurem


abuso de poder. Essa concepção mais ampliada da liberdade de expressão dos candidatos
e partidos no período pré-eleitoral poderá contrabalancear as diversas restrições à
liberdade de expressão político-eleitoral também promovidas pela Lei nº 13.165/2015,
como exemplo, a redução da duração das campanhas eleitorais (de 90 para 45 dias) e a
redução do período de propaganda eleitoral gratuita na TV e no rádio (de 45 para 35 dias).
Após o 1º turno das eleições de 2016, o Tribunal Superior Eleitoral se pronunciou
pela primeira vez sobre a definição da propaganda eleitoral antecipada após as alterações
promovidas pela minirreforma de 2015. No REspe nº 51-24 (Rel. Min. Luiz Fux,
j. 18.10.2016), o recorrente, pré-candidato à prefeitura de município de Minas Gerais,
publicou no Facebook sua foto e a mensagem “PSB/MG – O melhor para sua cidade é
40!”. O Tribunal Regional Eleitoral entendeu pela caracterização da propaganda eleitoral
extemporânea, ainda que sem o pedido expresso de votos (para a TRE mineiro, foi
“quase pedido expresso”). O TSE, porém, reformou a decisão. O Relator Min. Luiz Fux,
na linha dos parâmetros que defendo, reconheceu que se a mensagem veiculada não
envolver, no caso concreto, pedido explícito de voto nem ato atentatório à isonomia, à
higidez do pleito e à moralidade, constituirá expressão legítima. Veja-se, nessa linha,
trecho da ementa do voto:

A propaganda eleitoral extemporânea consubstancia, para assim ser caracterizada, ato


atentatório à isonomia de chances, à higidez do pleito e à moralidade que devem presidir
a competição eleitoral, de maneira que, não ocorrendo in concrecto qualquer ultraje a essa
axiologia subjacente, a mensagem veiculada encerrará livre e legítima forma de exteriorizar
seu pensamento dentro dos limites tolerados pelas regras do jogo democrático.
O limite temporal às propagandas eleitorais encontra lastro no princípio da igualdade de
oportunidades entre partidos e candidatos, de forma a maximizar três objetivos principais:
(i) assegurar a todos os competidores um mesmo prazo para realizarem as atividades de
captação de voto, (ii) mitigar o efeito da (inobjetável) assimetria de recursos econômicos na
viabilidade das campanhas, no afã de combater a plutocratização sobre os resultados dos
pleitos; e (iii) impedir que determinados competidores extraiam vantagens indevidas de
seus cargos ou de seu acesso aos grandes veículos de mídia, antecipando, em consequência,
a disputa eleitoral (OSORIO, Aline. Direito Eleitoral e Liberdade de Expressão. Belo
Horizonte: Fórum, 2016, p. 127-128 - prelo).
A menção à pretensa candidatura e a exaltação das qualidades pessoais dos pré-candidatos,
nos termos da redação conferida ao art. 36-A pela Lei n° 13.165/2015, não configuram
propaganda extemporânea, desde que não envolvam pedido explícito de voto.

Essa decisão representou importante avanço na proteção à liberdade de expressão


no período pré-eleitoral. Porém, a insegurança quanto aos contornos da propaganda
antecipada ainda persiste. Recentemente, o Tribunal Superior Eleitoral começou a julgar
uma representação do Ministério Público Eleitoral contra o Deputado Jair Bolsonaro
por vídeos divulgados na internet que mencionam sua possível candidatura ao cargo
de presidente da República em 2018, sem qualquer pedido explícito de voto. O Relator
Ministro Napoleão Nunes Maia votou pela improcedência da ação. No entanto, houve
pedido de vista e a sinalização de que ainda é necessário fixar os parâmetros que irão
nortear o entendimento do Tribunal sobre a caracterização de propaganda extemporânea
para as eleições de 2018.

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ALINE OSORIO
O PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO DIREITO ELEITORAL
401

3.4 Conclusão
O presente artigo buscou lançar um novo olhar para o princípio da liberdade
de expressão no direito eleitoral, a partir da identificação dos seus conteúdos, de sua
interação com os demais princípios em jogo no direito eleitoral e de limitações inde­vidas
presentes na legislação eleitoral. Ao final da leitura, espero ter conseguido ao menos
demonstrar a importância de se levar a liberdade de expressão a sério no processo
eleitoral e as consequências negativas que advêm de sua excessiva restrição. Fato é que
a democracia pouco ou nada significaria sem a garantia básica das liberdades comuni­
cativas, sem a possibilidade de discutir e criticar livremente assuntos de interesse público,
as decisões políticas, o governo e os governantes. É preciso, portanto, apostar no debate
público e na participação ampla da cidadania e dos demais atores no processo eleitoral
como caminho para superar nossa persistente cultura censória e o atual descrédito do
sistema representativo no país.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

OSORIO, Aline. O princípio da liberdade de expressão no direito eleitoral. In: FUX, Luiz; PEREIRA,
Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura (Coord.); PECCININ, Luiz Eduardo (Org.). Direito
Constitucional Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 377-401. (Tratado de Direito Eleitoral, v. 1.)
ISBN 978-85-450-0496-7.

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CAPÍTULO 4

A PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA COMO VETOR DA


(I)MORALIDADE NA POLÍTICA: DE PRINCÍPIO À
REGRA, NO ABISMO QUE SEPARA O DEVER SER DO SER

JULIANA RODRIGUES FREITAS

PAULO VICTOR AZEVEDO CARVALHO

4.1 Reflexões introdutórias


O estudo da problemática principiológica nos ordenamentos jurídicos situa-se
como de extrema relevância na condição de tema de uma investigação científica. A partir
do período do pós-guerra, os princípios alçaram-se ao status de normas constitucionais,
tornando-se núcleo intangível do novo marco normativo-institucional representado na
era pós-positivista, com a concepção do Estado Democrático de Direito.
A constitucionalização de princípios é um fenômeno identificado nas experiências
democráticas mais recentes, especialmente naquelas que experimentaram um período
considerável de repressão, supressão e restrição de direitos, como a democracia brasileira.
Após a superação da ditatura em vários países da América Latina, e especificamente no
Brasil, a incorporação de princípios que limitassem as ingerências do Estado em relação
às liberdades e aos direitos de primeira ordem dos indivíduos representou, por essência,
a transição para um paradigma que surgia com o Estado Democrático de Direito.1
Esse novo paradigma trouxe à tona alguns questionamentos relacionados à
juris­dição constitucional, visto que, quando o sistema jurídico incorporou maior carga
valorativa, a nova ordem normativa apresentou não apenas problema de competência,
consi­derando inexistirem respostas certas ou únicas para cada caso, bem como a própria
dificul­dade, muitas vezes, de se perceber uma única possibilidade de alcançar uma
solução justa para dirimir os conflitos sociais (ALEXY, 2012).

1
Acerca da transição paradigmática mencionada cf. Santos (1990).

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404 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Com o amparo na preocupação de Alexy, resta evidente que a atuação de um


tribunal constitucional, na condição de intérprete das normas e princípios decorrentes
da Carta Constitucional, pode, por vezes, deturpar o seu intento originário e incidir em
efetiva usurpação de competências, ferindo um dos princípios mais caros aos sistemas
democráticos como concebidos na contemporaneidade, qual seja, o da separação dos
poderes.
Mostra-se evidente que a fundamentação hermenêutica utilizada por magistrados
que compõem um tribunal constitucional seria crucial para a constatação de uma possível
interferência no plano da legitimidade política.
Ao tribunal constitucional, no exercício do controle jurisdicional de constitucio­
nalidade de normas, compete manter a integridade do ordenamento jurídico, a partir
da prevalência da constituição rígida sobre as demais normas que integram o sistema
numa estrutura escalonada e hierarquizada (KELSEN, 2000), impedindo qualquer cisão
ou rompimento dessa ordem em virtude da permanência de uma lei violadora da base
constitucional, composta que é por regras e princípios.
Esse parece ser o ponto crucial da discussão a ser desenvolvida neste esboço: o
protagonismo assumido pelo Supremo Tribunal Federal e a contumaz utilização de
uma hermenêutica jurídica no plano da justiça constitucional, a partir de uma suposta
fundamentação principiológica para dirimir aspectos referentes à matéria eleitoral,
resvalando, na prática, em violação de preceitos estabelecidos pela própria Constituição
Federal.
E não diferente foi o que restou demonstrado quando, sob os argumentos de
moralização da política no nosso país, com o fito de atender aos clamores sociais e dar
um retorno ao backlash que nos cegava, “legitimamos” decisões constitucionais, mesmo
quando em dissonância aos nossos valores reconhecidos em nível constitucional.
E ainda sob o deleite da moralização, transformamo-nos em seres raivosos, ávidos por
justiça – qualquer que fosse, ainda que injusta – de tal forma que remontamos ao estado
de natureza hobbesiano, no qual o homem – lobo do próprio homem – era (e é) incapaz
de reconhecer-se no próximo, ser humano titular de direitos fundamentais e essenciais
para a efetivação do Estado Democrático de Direito, como assim o são os direitos que se
traduzem em normas-princípios, como o da presunção da inocência, e em normas-regras,
como as que preveem as causas de inelegibilidades, restritivas dos direitos políticos.
E no embalo dessa saga, muitas vezes, a justiça constitucional minimiza a sua
importância como garantidora da unidade e coesão normativa, substituindo-se ao
legislador ao redimensionar, ao seu bel prazer, o que é regra e o que é princípio estru­
turante das relações jurídico-eleitorais, desde que alcance o seu objetivo – qualquer
que seja – sob a subserviência dos que a aclamam; e em descompasso consigo mesma –
a justiça – e com a democracia, fragiliza o seu papel contramajoritário no sistema
constitucional.

4.2 De uma perspectiva teórica...


Antes de adentrar, contudo, especificamente na atuação do Supremo Tribunal
Federal, no exercício de suas competências e em possíveis violações à Constituição, é
necessário estabelecer diretrizes básicas para a compreensão do tema.

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JULIANA RODRIGUES FREITAS, PAULO VICTOR AZEVEDO CARVALHO
A PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA COMO VETOR DA (I)MORALIDADE NA POLÍTICA: DE PRINCÍPIO À REGRA, NO ABISMO QUE SEPARA O DEVER SER DO SER
405

É certo que cabe à justiça constitucional analisar as regras e os princípios de


um ordenamento frente ao confronto jurídico que lhe seja apresentado. Centremo-nos
especificamente nos princípios: deve o juízo constitucional, numa ponderação de valores
insertos nas normas-princípios que integram a base de determinado sistema jurídico,
garantir a higidez da estrutura sobre a qual se assenta o Estado de Direito:

Os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível
dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Os princípios são, por conseguinte,
mandamentos de optimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus
variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das
possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. (ALEXY, 2012, p. 90)

A perspectiva trazida por Robert Alexy acerca da importância das normas-


princípios permite inferir que a sua aplicação no caso concreto seja condicionada,
admitindo-se a necessidade de conjugações, no plano fático ou jurídico, considerando
o caráter gradativo de satisfação da aplicação dessas normas.
Diferente das regras, a estrutura nuclear ponderável de um princípio flexível
implica dificuldade em tê-lo como norteador jurídico, em virtude da amplitude discri­
cional gerada quando invocado para dirimir os conflitos jurídicos, como novamente
aludido por Alexy (2012, p. 104):

Nesse sentido, eles não contêm um mandamento definitivo, mas apenas prima facie. Da
relevância de um princípio em um determinado caso não decorre que o resultado seja
aquilo que o princípio exige para esse caso. Princípios representam razões que podem
ser afastadas por razões antagônicas. A forma pela qual deve ser determinada a relação
entre razão e a contrarrazão não é algo determinado pelo próprio princípio. Os princípios,
portanto, não dispõem da extensão de seu conteúdo em face dos princípios colidentes e
das possibilidades fáticas.

Compreende-se, assim, existir uma carga argumentativa atrelada ao princípio, ou


aos princípios, que estejam sob discussão em um caso concreto; e é nessa perspectiva
lógica que se centra o nosso enfrentamento: o caráter fluido das normas-princípios,
notadamente as que foram incorporadas no ordenamento jurídico em nível constitucional.
A natureza abstrata dos princípios coloca em questão um debate que há muito é
objeto das ciências jurídico-constitucionais, qual seja: a quem cabe definir o alcance dos
princípios diante do caso concreto?
O limiar dessa atuação parece ser tênue e a dificuldade em objetivar o debate é
inegável!
Canotilho (2016, p. 1160) lança a questão acerca dos princípios ao mencionar o
seu caráter vago e indeterminado, ressaltando que sua exequibilidade carece daquilo
que denomina como mediações concretizadoras, as quais não afirmam ou designam de
quem seria a responsabilidade, porquanto se do legislador ou se do juiz; funcionando,
porém, como standards (DWORKIN, 2011, p. 280), que juridicamente vinculam o exercício
da justiça e constituem-se como tipos de normas, tal qual as regras.
Dentro desse universo principiológico que compõe a estrutura normativa do
recém-estabelecido paradigma democrático de direito no qual está inserido o Estado

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
406 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

brasileiro, o princípio da moralidade desponta em razão da inquietude provocada pela


sua utilização como fundamento técnico-jurídico das decisões proferidas pelo Judiciário.
De antemão, é preciso estabelecer o contexto em que surge a moralidade, seja como
vetor das relações jurídico-eleitorais, moldando a atuação dos candidatos e eleitores e
toda a complexidade do processo eleitoral, seja como diretriz na construção de uma
estrutura administrativa compatível com os valores democráticos que se restauram a
partir de um novo marco constitucional.
A dicotomia entre moral e direito se prolonga por um vasto caminho percorrido
pelos mais distintos autores, que traduzem perspectivas, das mais plurais, concernentes
a esses dois vieses.
Coube a Immanuel Kant, ao final do século XVIII, distinguir e sistematizar a teoria
do direito e a teoria das virtudes; e, talvez, a sua principal contribuição no plano da moral
tenha sido conceituar e introduzir o conceito de imperativo categórico (KANT, 2000) para
se referir às obrigações decorrentes de um plano interno ao indivíduo, que consiste em
uma incondicionalidade e exige uma atuação pautada na simples necessidade do agir.
De certo, momentos históricos posteriores, durante os quais discutiu-se a
necessidade de uma análise pura do direito (KELSEN, 2000), dissociada de todo e
qualquer elemento externo – sobretudo, quanto ao plano moral – foram fundamentais
para enriquecer o debate. Contudo, indicar as diretrizes, o contexto, a origem e os fatores
que remeteram à superação desse modelo não constitui o escopo desta investigação.
O que desejamos estabelecer aqui, no entanto, é a forma através da qual a moral
adentrou o domínio jurídico-eleitoral. A necessidade de aproximação desses dois ele­
mentos é fulcral para a normatividade atual, na medida em que implica a concretização
de um fim para a norma. Quer dizer, o regramento, em si, não é legítimo em essência,
senão quando dotado de um objetivo, uma razão. É nesse sentido que Emerson Garcia
(2002, p. 161) leciona:

A presença da moral sempre se fará sentir na regra de direito, quer seja quando toma a
própria forma desta, ou mesmo quando forneça o colorido da realidade social que haverá
de ser regida pela norma de conduta, permitindo a sua integração e a consecução do tão
sonhado ideal de justiça. Em que pese inexistir uma superposição total entre a regra de
direito e a regra moral, em essência, não há uma diferença de domínio, de natureza e de
fim entre elas; nem pode existir, porque o direito deve realizar a justiça, e a ideia de justo
é uma ideia moral.

Portanto, é certo que a conjunção do plano moral à perspectiva jurídica e impositiva


das regras consiste numa reação mutualística, de coexistência. Ao passo que a moral
traz a ideia de alcance do fim, do objetivo a ser atendido pela norma; o regramento, por
sua vez, fornece a imposição e a ameaça de sanção que compele à observância daquilo
o que a perspectiva moral estabelece.
É imperioso consignar que a aproximação entre moral e direito intui o resguardo a
um ideal de proteção não só de interesses individuais, característicos da esfera protetiva
dos direitos, mas também de interesses coletivos. E, portanto, é a partir dessa perspectiva
coletiva que há de se ter a necessidade de reconhecer um direito, como instrumento de
efetivação do ideal de justiça. Nesse sentido, Habermas (1997, p. 140-141) demonstra a
relação de mutualidade e superação de hierarquia:

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JULIANA RODRIGUES FREITAS, PAULO VICTOR AZEVEDO CARVALHO
A PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA COMO VETOR DA (I)MORALIDADE NA POLÍTICA: DE PRINCÍPIO À REGRA, NO ABISMO QUE SEPARA O DEVER SER DO SER
407

Esta intuição não é de todo falsa, pois uma ordem jurídica só pode ser legítima, quando
não contrariar princípios morais. Através dos componentes de legitimidade da validade
jurídica, o direito adquire uma relação com a moral. Entretanto, essa relação não deve
levar-nos a subordinar o direito à moral, no sentido de uma hierarquia de norma. A ideia
de que existe uma hierarquia de leis faz parte do mundo pré-moderno do direito. A moral
autônoma e o direito positivo, que depende de fundamentação, encontram-se numa relação
de complementação recíproca.

Instituído pelo constituinte originário na Constituição brasileira de 1988, entre


outros, o princípio da moralidade,2 fora relacionado a uma atuação da Administração
Pública, visando que todos os componentes do modelo federativo, na figura de seus
agentes, estivessem vinculados a um dever de observância que os compelisse a praticar
a atividade pública atendendo à sua finalidade maior.
Portanto, quando couber ao Judiciário dirimir conflitos respaldados na morali­
dade, é condição sine qua non que haja cautela e prudência na constatação do bem jurídico
que se quer proteger a partir do reconhecimento da moralidade como fundamento
axiológico. É o que Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 120) nos apresenta nos
seguintes termos:

Marcio Cammarosano, em monografia de indiscutível valor, sustenta que o princípio da


moralidade não é uma remissão à moral comum, mas está reportado aos valores morais
albergados nas normas jurídicas. Quanto a nós, também entendendo que não é qualquer
ofensa à moral social que se considerará idônea para dizer-se ofensiva ao princípio jurídico
da moralidade administrativa, entendemos que este será havido como transgredido quando
houver violação a uma norma de moral social que traga consigo menosprezo a um bem
juridicamente valorado.

É perceptível, portanto, que o próprio doutrinador menciona a necessidade de ater-


se a um bem juridicamente relevante – indistintamente se no âmbito da Administração
Pública ou no da seara eleitoral –, não sendo prudente alargar a moralidade ao bel prazer
de quem analisa a possível violação ou obediência ao princípio. Cumpre que se observe
o princípio da moralidade sob uma perspectiva que atenda ao seu principal objetivo,
sem que para isso sejam violados os demais preceitos estruturantes do ordenamento.
Nesse espectro, centra-se a problemática já mencionada em torno da justiça cons­
titucional. Certamente a questão do ativismo judicial e do protagonismo do Judiciário
é das temáticas as mais recorrentes tratadas do universo jurídico. Ante as lacunas ou
contradições normativas deve o tribunal constitucional, notadamente, não só proteger
a Constituição nos seus mais diversos aspectos, como garantir que seus preceitos sejam
resguardados, ainda que, para tanto, inove o ordenamento jurídico, ao interpretá-lo
atribuindo conotações normativas até então não previstas pelo legislador.
Ocorre que, não raramente, dentro da perspectiva brasileira, deparamo-nos com
situações nas quais o posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal extrapola

2
A previsão do princípio decorre do texto constitucional, desde a previsão originária do constituinte, cuja redação
normativa, hoje com os termos definidos pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998, contém o seguinte teor:
“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência [...]” (CF/88) (grifos nossos).

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408 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

as atribuições que lhe foram concedidas, e a título de proteger a moral preceituada na


Constituição Federal, fere outros princípios, tão ou mais caros, e igualmente basilares
para a sustentação do Estado Democrático de Direito.
A atual conjuntura política constitui um fator de contribuição para esse tipo de
ingerência perceptível nas manifestações desse órgão, que acumula as atribuições típicas
de uma corte constitucional, no exercício do controle jurisdicional de constitucionalidade
de normas, e as de órgão de cúpula do Poder Judiciário, com competências originárias
e recursais definidas em nível constitucional.
Os atuais casos políticos de corrupção envolvendo a má utilização da máquina
pública, os conchavos políticos e o esfacelamento das instituições do ordenamento
permitiram que o STF surgisse como um verdadeiro paladino da justiça, cuja missão –
que não lhe fora concedida constitucionalmente, diga-se – tornou-se a de restaurar os
padrões éticos, corrompidos nas várias instâncias do poder.
Não há a ilusão de que o comportamento de uma corte constitucional se
desvencilhe por completo do plano político e se restrinja à lógica jurídico-positivista de
ater-se e “guardar” a norma. Adotar um posicionamento nesse sentido compreenderia
verdadeiro retrocesso a um paradigma já superado. Um tribunal constitucional, decerto,
enfrentará constantemente questões de cunho político que, por vezes, testarão os limites
de sua própria competência, e esse parece ser o desafio aqui apresentado, afinal, para além
de ser um documento norteador de todo o sistema jurídico, situando-se como a norma
de mais alta hierarquia no sistema jurídico brasileiro, a Constituição também é expressão
política, por excelência, representando os anseios e aspirações sociais reconhecidamente
legítimos, e defendidos, pelo constituinte originário.
Seguindo essa perspectiva, Fernando Alves Correia discorre acerca da carga
política acrescida na fundamentação dos juristas que compõem o mencionado órgão e os
“efeitos políticos de grande alcance” ocasionados em decorrência dessa atuação. Vejamos:

É, neste sentido, que o Tribunal Constitucional é mesmo considerado como um “órgão


essen­cial da regulação política e do jogo democrático”, obrigando as maiorias que se
sucedem a colocar de lado as políticas extremistas, a limitar suas ambições partidárias e a
en­quadrar as suas reformas legislativas no âmbito da ordem constitucional existente. Ou,
ainda, como um “órgão de conformação política”, que assume “uma dimensão normativo-
cons­ti­tu­tiva do compromisso pluralístico plasmado na Constituição”. (CORREIA, 2016,
p. 356)

No que compete ao comportamento do tribunal constitucional, não há discordância


em relação ao que expõe Fernando Correia em coibir as radicalidades características
do pluralismo democrático, que, certamente, encontram guarida nos posicionamentos
fervorosos do plano político e ideológico, se ainda houver ideologia que se sustente ante
a atual conjuntura política. A crítica reside no modo como se dá tal atuação...

4.3 ...para o abismo que separa o dever ser do ser


A Constituição Federal, com a redação conferida pelo constituinte originário ao
texto da norma contida no art. 14, §9º, delegou ao legislador infraconstitucional a tarefa
de estabelecer outros casos de inelegibilidade não previstos em nível constitucional e os

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A PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA COMO VETOR DA (I)MORALIDADE NA POLÍTICA: DE PRINCÍPIO À REGRA, NO ABISMO QUE SEPARA O DEVER SER DO SER
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respectivos prazos de sua cessação, a fim de proteger a normalidade e a legitimidade


das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função,
cargo ou emprego na Administração direta ou indireta.
A moralidade, como fundamento axiológico basilar da relação jurídico-eleitoral,
seja no que toca aos candidatos, como requisito necessário para legitimar o exercício
da capacidade eleitoral passiva – ou o direito de ser eleito como representante popular
–, como em relação ao processo eleitoral adotado para a definição dos mandatários do
poder político, foi introduzida no ordenamento jurídico-constitucional, apenas a partir
da redação dada pela Emenda Constitucional Revisional (ECR) nº 4, de 1994, ao art. 14,
§9º,3 segundo a qual a definição de outros casos de inelegibilidade por lei complementar
teria por finalidade proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício de
mandato considerada a vida pregressa do candidato, além das já previstas normalidade e
legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício
de função, cargo ou emprego na Administração direta ou indireta.
Assim, ao princípio da moralidade, desde a ECR nº 4/1994, foi reconhecido o status
de parâmetro de legitimidade constitucional a nortear não apenas os órgãos políticos,
na definição de políticas públicas na seara eleitoral, bem como a Justiça Eleitoral, no
exercício do seu vasto rol de atribuições, para além daquela judicante, tais como: a
administrativa, a fiscalizadora e a normativa; e o próprio Supremo Tribunal Federal,
guardião e intérprete por excelência que é do texto normativo-constitucional.
Diante desse novo contexto jurídico, surgiram indagações no tocante à
aplicabilidade da moralidade como princípio norteador das relações jurídico-eleitorais,
tendo em vista a sua previsão como axioma a ser observado para a restrição dos direitos
políticos, reconhecidamente fundamentais no ordenamento jurídico pátrio; e que,
em razão disso, as situações impeditivas do exercício da capacidade eleitoral passiva
deveriam constar numerus clausus no texto constitucional, o que não ocorreu.
Assim, ao editar o verbete da Súmula nº 13,4 o Tribunal Superior Eleitoral reco­
nheceu a eficácia limitada da moralidade, como princípio norteador das relações jurídico-
eleitorais, e a consequente não autoaplicabilidade do §9º, do art. 14, CF/88, com a redação
que lhe foi dada pelo constituinte revisional, a partir do seu texto de 1994;5 exigindo-se,
então, a regulamentação em nível infraconstitucional da norma constitucional admitida
como de eficácia mediata.
A despeito de não ter regulamentado as causas geradoras de inelegibilidades, nos
termos do art. 14, §9º, CF/88, o constituinte autorizou o legislador infraconstitucional para
que assim o fizesse, desde antes da ECR nº 4/94, como demonstra a Lei Complementar
nº 64/90, ao estabelecer nos termos do dispositivo constitucional tais restrições políticas.
Com a entrada em vigor da emenda constitucional revisional de 1994 e a con­
se­quente previsão da moralidade como princípio norteador do processo eleitoral, a
Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) ajuizou perante o Supremo Tribunal

3
O texto originário da norma contida no art. 14, §9º, trazia a seguinte redação: “Art. 14. [...] §9º Lei complementar
estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a normalidade e
legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou
emprego na administração direta ou indireta”.
4
Publicada no Diário de Justiça de 28, 29 e 30.10.1996.
5
Decisões que serviram de referências para o Tribunal Superior Eleitoral: Ac.-TSE, de 6.8.1994, no RO nº 12.107;
Ac.-TSE, de 6.8.1994, no RO nº 12.081; Ac.-TSE, de 4.8.1994, no RO nº 12.082.

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410 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Federal uma arguição de descumprimento de preceito fundamental, a ADPF nº 144,6


que, julgada sob a relatoria do Ministro Celso de Mello, em 6.8.2008, teve como objetivo
analisar os argumentos pela não recepção de algumas normas da Lei Complementar
nº 64/90, como as contidas no art. 1º, I, alíneas “d” e “e”,7 em relação à exigência do
trânsito em julgado de representação considerada procedente pela Justiça Eleitoral, em
processo de apuração de abuso de poder econômico ou político, ou daqueles condenados
criminalmente pela prática de crime contra a economia popular, a fé pública, entre outros.
O Supremo Tribunal Federal, por maioria dos votos, vencidos os ministros Carlos
Ayres Britto e Joaquim Barbosa, julgou, no mérito, improcedente a ADPF nº 144, nos
termos do voto do relator, o qual foi desenvolvido no sentido de reconhecer que a
Constituição brasileira, promulgada em 1988, foi elaborada para reger uma socie­dade
fundada em bases democráticas, como manifestação e valoração oposta ao do absolu­
tismo do Estado e à força opressiva do poder, considerado o contexto histórico que
justificou a ruptura com paradigmas autocráticos do passado e que baniu, por isso
mesmo, no plano das liberdades públicas, qualquer ensaio autoritário de uma inaceitável
hermenêutica de submissão, em face da posição daqueles que presumem a culpabilidade
do réu, ainda que para fins extrapenais.
Ainda em seu voto, o Relator Celso de Mello admitiu que a consagração consti­
tu­cional da presunção da inocência como direito fundamental de qualquer pessoa
há de viabilizar, sob a perspectiva da liberdade, uma hermenêutica essencialmente
eman­cipatória dos direitos básicos da pessoa humana, cuja prerrogativa de ser sempre
consi­derada inocente, para todos e quaisquer efeitos, deve atuar, até o superveniente
transito em julgado da condenação judicial, como uma cláusula de insuperável bloqueio
à impo­sição prematura de quaisquer medidas que afetem ou restrinjam, seja no domínio
civil seja no âmbito político, a esfera jurídica das pessoas em geral.
Enfim, houve o entendimento majoritário acerca da presunção da inocência como
não estando restrita ao campo do direito penal e processual penal, visto que também
irradia os seus efeitos, sempre em favor de pessoas, contra o abuso de poder e a prepo­
tência do Estado, projetando-os para esferas processuais não criminais, em ordem a
impedir, entre outras graves consequências no plano jurídico – ressalvada a excepcio­
nalidade de hipóteses previstas na própria Constituição – que se formulem, precipi­
tadamente, contra qualquer cidadão, juízos morais fundados em situações juridicamente
ainda não definidas, ou, então, que se imponham restrições a direitos não obstante
inexistente condenação transitada em julgado.
No exercício da jurisdição constitucional, portanto, coube – e cabe – aos juízes
constatarem se os limites traçados pela Carta Constitucional foram respeitados pelo
legis­lador ordinário ao formular as disposições normativas infraconstitucionais, pois,

6
STF, Plenário. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 144. Rel. Min. Celso de Mello,
j. 6.8.2008. Informativo, n. 514.
7
Art. 1º, I, Lei Complementar nº 64/90: “d) os que tenham contra sua pessoa representação julgada procedente
pela Justiça Eleitoral, transitada em julgado, em processo de apuração de abuso do poder econômico ou político,
para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem 3 (três) anos
seguintes; e) os que forem condenados criminalmente, com sentença transitada em julgado, pela prática de crime
contra a economia popular, a fé pública, a administração pública, o patrimônio público, o mercado financeiro,
pelo tráfico de entorpecentes e por crimes eleitorais, pelo prazo de 3 (três) anos, após o cumprimento da pena;
[...]”.

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JULIANA RODRIGUES FREITAS, PAULO VICTOR AZEVEDO CARVALHO
A PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA COMO VETOR DA (I)MORALIDADE NA POLÍTICA: DE PRINCÍPIO À REGRA, NO ABISMO QUE SEPARA O DEVER SER DO SER
411

no mais das vezes, a realidade que se apresenta é a de que o conteúdo das normas
publicadas representa a vontade de um segmento da sociedade, como a de um grupo
político ou econômico, por exemplo, e não a daqueles que compõem o núcleo majoritário
do contexto social, sobre quem incidirão, de fato, as deliberações definidas pelo legislador
como políticas públicas.
Dessa forma, as decisões proferidas pelos juízes constitucionais são, na verdade,
medidas de defesa dos anseios e aspirações públicas, reconhecidos pelo constituinte
originário como legítimos condutores da normatização do texto constitucional, os
quais podem ser desrespeitados durante o exercício das funções políticas – legislativa
e executiva –, quando os representantes populares se aliam em prol da defesa dos inte­
resses de determinada casta, preterindo os que deveriam ser objeto de sua defesa: os
interesses sociais.
Critérios, então, devem ser observados para que se evite a partidarização e a seg­
mentação nas decisões da justiça constitucional, e parece-nos inegável que, para além
da deferência judicial em relação à produção legislativa (FERRERES COMELLA, 1997,
p. 160), existem limites que devem ser observados no exercício da função judicante,
acompanhando o entendimento de Dworkin (2011, p. 282), que identifica as distintas
naturezas das matérias objeto de apreciação judicial: se sensíveis ou insensíveis à escolha
– interferência – judicial.
No que atine ao objeto da apreciação pelo Supremo Tribunal Federal em sede da
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 144, a justiça constitucional
brasileira deparou-se com matéria sensível à sua escolha (DWORKIN, 2011, p. 282),
consi­de­rando que o questionamento acerca da (não) recepção de algumas normas
contidas na Lei Complementar nº 64/90 situou-se no âmbito da discussão da presunção
da inocência, como princípio norteador e estruturante do Estado Democrático de Direito
brasileiro, assim concebido desde a Constituição Federal de 1988.
A despeito de ter sido reconhecida como compatível ao texto constitucional pelos
ministros do Supremo Tribunal Federal, a LC nº 64/90 foi substancialmente modificada
pela LC nº 135/2010,8 introduzida no ordenamento jurídico sob o manto do discurso da
moralização da política no nosso país, e num (des)compasso normativo previu vários
casos de inelegibilidades decorrentes de decisões judiciais não transitadas em julgado.
Assim, a lei conhecida como “Ficha Limpa” definiu distintas situações que seriam
alcançadas pela inelegibilidade de 8 (oito) anos em virtude de condenação proferida em
segunda instância, não transitada em julgado.
Sob outra perspectiva: apesar de autorizado pelo constituinte revisional, para
atender ao imperativo de moralizar a política, o legislador infraconstitucional previu
taxa­tivamente em normas-regras situações restritivas dos direitos políticos fundamentais,
transgredindo uma norma-princípio constitucional norteadora do plexo normativo
estruturante do ordenamento jurídico pátrio, que é a presunção da inocência.
Princípio transgredido, sistema fissurado! Situação ideal para a justiça constitu­
cional entrar em ação...

8
No julgamento do Recurso Extraordinário nº 633.703, sob a relatoria do Ministro Gilmar Mendes, o Supremo
Tribunal Federal decidiu, por maioria de votos, afastar a aplicação da Lei Complementar nº 135/10 da disputa
eleitoral de 2010, a teor do que determina o art. 16 da Constituição Federal, ao prever que: “A lei que alterar o
processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano
da data de sua vigência”.

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412 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Diante desse panorama é que foram ajuizadas duas ações declaratórias de


constitucionalidade, ADCs nºs 29 e 30, e uma ação direta de inconstitucionalidade gené­
rica, ADI nº 4.578,9 perante o Supremo Tribunal Federal com a finalidade de promo­ver
o debate acerca da (in)constitucionalidade de diversas normas contidas na Lei Com­ple­
mentar nº 135/2010, entre as quais, aquelas relacionadas às condenações em segunda
instância que implicavam inelegibilidade.
Engendrando uma linha de raciocínio que, de acordo com a teoria de Dworkin
(2000), sequer poderia admitir a interferência judicial, o Supremo Tribunal Federal
respaldou em elemento político discussão, por essência, jurídica, ao reconhecer que
“[...] a própria legitimidade democrática da Constituição e da jurisdição constitucional
depende, em alguma medida, de sua responsividade à opinião popular”, não cabendo
“desconsiderar a existência de um descompasso entre a sua jurisprudência e a hoje
fortíssima opinião popular a respeito do tema ‘ficha limpa’”.10
Sob essa perspectiva, o STF evidenciou que sua maior preocupação era dar guarida
ao backlash que contagiou – ou contaminou – todos, sociedade e instituições, no intuito
de moralizar e punir a qualquer preço... ainda que o valor a ser pago fosse muito alto,
claro, para a sociedade, amargada pela restrição dos direitos que tanto custaram para
serem reconhecidos num rol vasto e expressivo, como os direitos fundamentais!
Tornou-se, então, razoável a “expectativa da inelegibilidade e o uso indiscriminado
da presunção constitucional da inocência (ou a não culpabilidade, como se preferir)
no que diz respeito à esfera penal e processual penal”. Houve a necessidade premente
de rever o que fora reconhecido quatro anos antes, e reexaminar a percepção de
que decorreria da cláusula constitucional do Estado Democrático de Direito “uma
interpretação da presunção de inocência que estenda sua aplicação para além do âmbito
penal e processual penal”. Afinal, surgiu um imperativo, de fato, “um overruling dos
precedentes relativos à matéria da presunção de inocência” vis-à-vis inelegibilidades,
para reconhecer a legitimidade da previsão legal de hipóteses de inelegibilidades
decorrentes de condenações não definitivas, porque reconduzir a presunção de inocência
aos efeitos próprios da condenação criminal se presta a impedir que se aniquile a
teleologia do art. 14, §9º, da Carta Política, de modo que, “sem danos à presunção de
inocência, seja preservada a validade de norma cujo conteúdo, como acima visto, é
adequado a um constitucionalismo democrático”.11
Num redimensionamento sistêmico, o Supremo Tribunal Constitucional, intér­
prete em potencial da norma maior do ordenamento jurídico brasileiro, não passou a
considerar a moralidade como vetor das relações jurídico-eleitorais, visto que já constava,
ainda que intrinsecamente nos fundamentos da decisão proferida em sede da ADPF
nº 144; porém, admitindo a necessidade de moralizar a política para atender a um
clamor social, realinhou a sua percepção, sem justificar de forma juridicamente razoável
essa mudança de entendimento, e transformou o princípio da presunção da inocência,

9
STF, Plenário. Ações declaratórias de constitucionalidade nºs 29 e 30 e Ação Direta de Inconstitucionalidade
nº 4.578. Rel. Min. Luiz Fux, j. conjunto 16.2.2012. DJe, n. 127, 29 jun. 2012.
10
STF, Plenário. Ações declaratórias de constitucionalidade nºs 29 e 30 e Ação Direta de Inconstitucionalidade
nº 4.578. Rel. Min. Luiz Fux, j. conjunto 16.2.2012. DJe, n. 127, 29 jun. 2012. p. 14.
11
Excertos retirados do voto do Ministro Relator Luiz Fux (STF, Plenário. Ações declaratórias de constitucionalidade
nºs 29 e 30 e Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.578. Rel. Min. Luiz Fux, j. conjunto 16.2.2012. DJe, n. 127,
29 jun. 2012. p. 7-15).

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JULIANA RODRIGUES FREITAS, PAULO VICTOR AZEVEDO CARVALHO
A PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA COMO VETOR DA (I)MORALIDADE NA POLÍTICA: DE PRINCÍPIO À REGRA, NO ABISMO QUE SEPARA O DEVER SER DO SER
413

norma com carga axiológica, numa regra em conflito com as inelegibilidades previstas
nos diplomas infraconstitucionais, fissurando o sistema democrático-constitucional.

4.4 Reflexões conclusivas


Quando se discute a mudança de um paradigma interpretativo adotado pelo
Judiciário, alguns questionamentos surgem e, desde já, consideramos que não deve
existir qualquer impedimento para que um órgão judicial modifique a sua interpretação
sobre determinada norma e, com isso, inicie um novo processo de normatização
jurisprudencial.
O alcance da justiça nas relações ocorre a partir da aplicação das normas
integrantes de um plexo jurídico, e que por serem fruto das ciências sociais, estão em
constante “movimento”, seguindo a toada das sucessivas reviravoltas das situações
fáticas que se apresentam diuturnamente.
Sob esse olhar, dois aspectos devem, entretanto, ser observados: inicialmente,
os juízes devem estar plenamente submetidos à Constituição, de modo que nela
identifiquem os limites para a sua atuação, bem como, em nome da segurança jurídica
e da justiça, adotando a coesão sistêmica como referência, o distanciamento da justiça
constitucional – e de qualquer outro juiz ou órgão do Judiciário – das suas próprias
decisões, impõe o dever de motivação do novo critério interpretativo adotado.
O que não se pode admitir é que sejam realizadas mudanças inadvertidas pelo
órgão julgador, fruto de voluntarismo e de conveniências ocasionais, e sem razões
jurídicas objetivas, previstas no sistema democrático-constitucional.
Não menosprezemos o fato de que essa função interpretativa atribuída à justiça
constitucional se converte em fonte de critérios aplicáveis a uma generalidade de
situações, não apenas no âmbito dos órgãos que exercem essa função, como também
nas demais esferas do Judiciário e da Administração Pública, como uma forma de se
garantir a igualdade na aplicação da lei (LÓPEZ GUERRA, 1998, p. 1-4), um dos princípios
norteadores do nosso Estado Democrático de Direito.
Assim, a mudança de paradigma deve representar uma escolha implícita de
razões (OLLERO, 2005, p. 20-22), fundamentadas jurídica e objetivamente, de modo
que à lei possam ser atribuídas interpretações distintas, desde que não respaldadas na
arbi­tra­riedade ou subjetivismo do seu aplicador.
O reconhecimento institucionalizado de que o clamor social e a pressão popular
foram essenciais para justificar a mudança do paradigma estabelecido há menos de
5 (cinco) anos pela mesma Corte, diante das mesmas referências normativas – frise-se:
normas-princípios da presunção da inocência e moralidade e normas-regras definidoras
de causas de inelegibilidades – o que demonstra, de forma inequívoca e inconteste, que
o fundamento embasador do decisum foi, na verdade, a voz circunstancial de grupos
que se lançaram à frente da justiça, traduzida num imponente e persuasivo backlash,
que se substituíram à técnica normativo-constitucional, a qual, essa sim, deveria servir
de parâmetro para definir o livre convencimento dos juízes constitucionais.
E, para respaldar juridicamente o verdadeiro senso motivador da atuação da jus­
tiça constitucional, num redimensionamento normativo e (des)construção do sistema
jurídico, o princípio da presunção da inocência do Estado garantista tornou-se o princípio
da não culpabilidade, típico do Estado punitivista.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
414 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Como são estruturantes do Estado Democrático de Direito, os princípios devem


permanecer íntegros, ainda que não preponderem todos, indistintamente, como
fundamentos norteadores da interpretação judicial, mas jamais podem entrar em colapso,
fissurando a ordem constitucional-democrática, e olvidar o fim da moralidade, como
axioma fundamental a ser observado durante o processo eleitoral, para substituí-lo
pela moralização da política, a qualquer custo – e fundamento –, ainda que sem fim, e
como meio, para restringir e limitar direitos fundamentais essenciais para a efetivação
da democracia ao custo daquele que mais é afetado por esse reverso: o povo!

Referências
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OLLERO, Andrés. Igualdad en la aplicación de la ley y precedente judicial. Madri: Centro de Estudios Políticos y
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SANTOS, Boaventura Sousa. O Estado e o direito na transição pós-moderna: para um novo senso comum
sobre Poder e Direito. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 30, jun. 1990. Disponível em: <http://www.
boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Estado_Direito_Transicao_Pos-Moderna_RCCS30.PDF>. Acesso
em: 12 nov. 2017.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

FREITAS, Juliana Rodrigues; CARVALHO, Paulo Victor Azevedo. A presunção da inocência como vetor
da (i)moralidade na política: de princípio à regra, no abismo que separa o dever ser do ser. In: FUX, Luiz;
PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura (Coord.); PECCININ, Luiz Eduardo
(Org.). Direito Constitucional Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 403-414. (Tratado de Direito Eleitoral,
v. 1.) ISBN 978-85-450-0496-7.

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CAPÍTULO 5

MANDATO, AUTONOMIA PARTIDÁRIA E


REPRESENTATIVIDADE POLÍTICA

FERNANDO GUSTAVO KNOERR

Embora contemporaneamente associadas aos modelos democráticos de Estado,


as eleições são verdadeiramente um fenômeno republicano, originadas do crescimento
da densidade demográfica e da gradativa complexidade do interesse público ao longo
da história, de forma a não permitir que cada indivíduo manifeste de forma direta e
pessoal sua vontade a cada vez que um ato de governo deve ser praticado.
Jean-Jacques Rousseau foi previdente nesse sentido, ao frisar que a democracia
direta somente é possível em pequenos Estados, quando então seria cogitável a implan­
tação do mandato imperativo, hipótese em que o mandatário recebe o encargo de
patrocinar a vontade de seu eleitorado, permanecendo no cumprimento do mandato
enquanto se mostra fiel a esta função. O mandato imperativo rosseauniano caracteriza-se,
portanto, por não ter prazo certo, sendo sempre provisório e submetendo o mandatário
a um severo controle de seu exercício, voltado à aferição da fidelidade à vontade do
eleitorado.
À teoria rousseauniana faz contraponto a de John Locke, instituindo o mandato
livre ao permitir que o mandatário, uma vez eleito, se torne representante não apenas de
seus eleitores, mas de toda a nação, liberando-se do encargo que lhe seria imposto pelo
dever de obediência à vontade de seu grupo de eleitores. Nesse caso, a provisoriedade
do mandato imperativo é suplantada pela temporariedade, instituindo o mandato com
prazo certo e destituído do controle imposto pela vinculação à vontade do eleitorado.
Ao contrário, no mandato livre o mandatário é cercado de prerrogativas (prerrogativas
parlamentares) que lhe permitem de forma autônoma definir e expressar a vontade da
coletividade, ainda que contrária à vontade exclusiva de seu grupo de eleitores.
Não há como negar que, concebida pelo teórico maior do parlamentarismo e da
monarquia constitucional inglesa, a teoria lockiana do mandato livre adequa-se de forma
perfeita ao modelo republicano, pois ao instituir o mandato com prazo certo permite
a alternância de mandatários e patrocina a isonomia formal que sustenta a república

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
416 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

na medida em que reconhece a todos os cidadãos, por igual, a possibilidade de serem


também mandatários políticos.
Nesse compasso, articula-se a necessidade de que cada cidadão se faça repre­
sentar através de mandatários políticos, relegando a democracia direta a um espaço
absolutamente excepcional, a ser exercida por instrumentos de uso bastante esporádico,
tais como o plebiscito, o referendo, a iniciativa popular de lei e a legitimação ativa para
a propositura de ação popular.
A ciência política toma de empréstimo a figura do contrato de mandato do ius
civile romano e o adapta ao modelo republicano pois, do mesmo modo que no instituto
civilista, o mandatário deve agir conforme a vontade expressa ou presumida do
mandante, também no mandato político o mandante (sociedade civil), que é o titular da
soberania, escolhe representantes para que exerçam o mandato conforme os desígnios
da coletividade, destacando que o mandatário, restrito a essa condição, não é titular
do poder que lhe é entregue, mas mero exercente, encontrando-se nessa vertebração o
grande limite republicano que não permite o exercício do poder em favor pessoal, mas
sempre no interesse da comunidade.
Há república, portanto, quando quem exerce o poder não é dele titular. Titular é
o povo, cabendo aos mandatários agir de acordo com sua (do povo) vontade expressa
ou presumida.
Esta é a constituição da república, na terminologia de Jean Bodin, definida pela
separação entre titularidade e exercício do poder e também pela disciplina das relações
que se estabelecem entre esses dois fatores, tal como ocorre com as eleições.
A República brasileira encontra lastro já na parte inicial de sua Constituição,
lendo-se no art. 1º, parágrafo único, que “Todo o poder emana do povo, que o exerce
por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
É possível, no entanto, existir eleição sem que haja de fato democracia, nos casos
em que o direcionamento da vontade do eleitorado promove o tolhimento da liberdade
de escolha, culminando no resultado eleitoral adredemente planejado. Nesses casos há
eleição, pode até haver república, mas não uma democracia.
A democracia real se estabelece nas situações em que a sociedade civil tem
acesso à ampla informação sobre os candidatos, as eleições e a importância do voto.
Há democracia real quando o eleitor vai às urnas plenamente ciente da importância de
votar e de bem votar, reunindo para isso condições de conhecer com razoável nível de
informação os candidatos, com suas virtudes e defeitos.
A democracia real ampara-se por isso na ampla liberdade de informação, reunindo
as prerrogativas cidadãs de informar (aqui incluída a liberdade de imprensa), e de se
informar, aparelhadas pela proteção contra a informação abusiva ou disfuncional.
É por essa razão que a propaganda eleitoral atende a um só tempo a direitos e
deveres correlatos, pois é direito dos candidatos, pleiteantes de mandatos políticos,
informar ao eleitorado quem são, como vivem, o que fazem e o que pretendem fazer
acaso alçados à condição de mandatários, sujeitando-se deste modo aos endossos, mas
também à crítica do eleitorado e de seus concorrentes políticos.
A propaganda eleitoral também atende dessa forma ao direito do eleitorado de
se informar sobre os candidatos, aprimorando qualitativamente a escolha nas urnas
para imprimir um grau maior de legitimidade aos eleitos e reduzir o déficit de repre­
sentatividade.

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FERNANDO GUSTAVO KNOERR
MANDATO, AUTONOMIA PARTIDÁRIA E REPRESENTATIVIDADE POLÍTICA
417

Devem ser vistas, por isso, com preocupação as tendências da legislação eleitoral
brasileira em restringir sempre e cada vez mais os meios de propaganda eleitoral,
pois tolhem do eleitorado a condição de bem eleger, favorecendo a continuidade no
mandato daqueles que, por já terem mandato, gozam de mídia natural e, sendo assim
mais presentes na memória popular, alcançam de um modo muito mais fácil um novo
mandato. Favorecem o continuísmo político e dificultam a renovação.
Na mesma cadência em que o interesse público ganha variadas nuances e assume
um grau de complexidade cada vez maior, passa a ter importância a reunião de cidadãos
que comungam dos mesmos objetivos na vida em sociedade e assim se direcionam de
forma absolutamente natural à formação de grupos voltados à defesa e à realização
desses objetivos.
Nasceram assim facções, impulsionadas pelo vigor na defesa do interesse do
grupo de seus integrantes, agindo de forma nem sempre legítima.
Essa partição do interesse coletivo e da própria coletividade recebe com o passar
do tempo traços institucionalizantes. As facções se organizam, ganham estrutura e
disciplina, fazendo surgir os partidos políticos.
Os grupos políticos, é evidente, são manifestações espontâneas da sociedade
civil, e assim devem ser tutelados para que permaneça hígida a participação cidadã na
gestão do Estado.
Há que se evitar a todo custo a tendência sempre presente de fagocitação dos
partidos políticos pelo Estado, pois embora sejam instituições fundamentais às demo­
cracias contemporâneas, são próximos mas não devem ser incluídos na estrutura estatal,
pois se forem transformados em engrenagens dessa estrutura perderão a autonomia
que lhes permite de forma aberta a definição de seus propósitos e meios de atuação,
esvaziando a função maior que lhes é reservada no ambiente democrático: o patrocínio
das diferenças.
As diferenças podem ser incômodas, mas são essenciais ao ambiente democrático,
afinal a democracia é o regime de convivência organizada das diferenças.
Chega-se assim diretamente ao cerne das mazelas próprias de todo regime
demo­crático articulado em partidos políticos, pois a democracia pede a aceitação da
diferença, o respeito à opinião distinta, livremente formada e expressada, devendo
reservar o mesmo espaço a cada postura distinta, para que fique aberta a possibilidade
de confronto dialético capaz de encontrar, não a verdade nem a certeza, mas o consenso,
pois “la maniére dont l’AUTRE est construit exige le recours à quelques fondementes
de l’interdiscursivité”.1
As verdades são muito mais perigosas para a democracia do que as incertezas,
pois esta se torna “impossível se um ator se identifica com a racionalidade universal e
reduz os outros à defesa de sua identidade particular”, como sublinha Alain Tourraine.2

1
ROSSI, Adeloir. “Démocrates” électoralistes et le sommeil du Leviathan: en exercice d’analyse du discours politique.
Curitiba: HD Livros, 1995. p. 28.
2
TOURAINE, Alain. Que es la democracia? Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica de Argentina, 1995. p. 201.
No mesmo sentido segue ainda Kelsen, para quem: “A democracia julga da mesma maneira a vontade política
de cada um, assim como respeita igualmente cada credo político, cada opinião política cuja expressão, aliás, é
a vontade política. Por isso a democracia dá a cada convicção política a mesma possibilidade de exprimir-se
e de buscar conquistar o ânimo dos homens através da livre concorrência. Por isso, o procedimento dialético
adotado pela assembléia popular ou pelo parlamento na criação das normas, procedimento esse que se

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
418 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

A democracia, no que lhe é mais característico, pode ser definida como o exercício
dialético da busca do consenso, sendo claro que “Nenhum homem honesto está auto­
rizado a supor que uma diretriz seja melhor do que outra; tudo o que pode dizer é que
acredita que uma é melhor”,3 como afirma Sir Ivor Jennings.
A eliminação das diferenças de propósitos (programas) e o atrofiamento da
possibilidade de disputa democrática, e até mesmo de oposição governamental, eliminam
na raiz o que a democracia tem de mais saudável.
Embora o instituto do mandato tenha se destacado como elemento fulcral da
democracia, sua concepção originada na modernidade não pressupôs a existência de
partidos políticos.
Ao revés, a defesa de interesses de classe, a ser individualmente desempenhada
pelos titulares dos mandatos, longe estava de cumprir o papel reservado ao mandato.
A democracia contraindicava as facções.
Contudo, a democracia representativa não teria condições de evoluir organiza­
damente, mormente a partir da universalização do sufrágio, sem contar com os partidos
políticos, que passam a desempenhar a função de intermediação na relação eleitor-eleito.4
Esta então biparte-se na relação eleitor-partido (apresentando ao eleitor o elenco dos
elegíveis e recepcionando a vontade manifestada pelo eleitor) e na relação partido-eleito
(o partido enforma as pretensões dos eleitores, comunicando-as aos eleitos segundo
sua linha de atuação). Os partidos compartimentalizaram – daí o nome “partido” –5 a
vontade da nação, expressando-a pelas vias institucionais perante o Estado.
Como observa Norberto Bobbio, os partidos têm permitido “multiplicar a quan­
tidade dos eleitores sem que seja necessário multiplicar proporcionalmente o número
dos eleitos”,5 simplificando o sistema de representação.
Ao simplificá-lo também o alterou, na medida em que perdeu espaço o rígido
policiamento da base eleitoral sobre o titular de um mandato imperativo, pois o controle
sobre o exercício do mandato foi transladado para o partido, ao qual se reconhece
competência punitiva, que é manifestada ao sabor das conveniências da política
intrapartidária, o que faz com que a democracia das massas não mais seja autenticamente

desenvolve através de discursos e réplicas foi oportunamente reconhecido como democrático. O domínio da
maioria, característico da democracia, distingue-se de qualquer outro tipo de domicílio não só porque, segundo
a sua ausência mais íntima, pressupõe por definição uma oposição – a minoria – mas também porque reconhece
politicamente tal oposição e a protege com os direitos e liberdades fundamentais. Mas, quanto mais forte for a
minoria, mais a política da democracia se tornará uma política de compromisso, assim como nada caracteriza
melhor a filosofia relativista do que a sua tendência à conciliação entre dois pontos de vista opostos que tal
filosofia não pode aceitar inteiramente e sem reservas nem negar de modo absoluto. A relatividade do valor,
proclamada por determinada confissão política, a impossibilidade de reivindicar um valor absoluto para um
programa político, para um ideal político – por mais que estejamos dispostos ao sacrifício para nosso triunfo e
pessoalmente convictos dele – obriga imperiosamente a rejeitar o absolutismo político, quer se trate de uma casta
de sacerdotes, de nobres ou de guerreiros, quer se trate de uma classe ou de um grupo privilegiado qualquer.
Todo aquele que, na vontade e na ação políticas, puder invocar uma inspiração divina, uma luz supranatural,
também poderá ter o direito de ficar surdo à voz dos homens e fazer prevalecer a própria vontade como vontade
do bem absoluto, mesmo contra um mundo de adversários incrédulos e cegos. Por esse motivo, a palavra de
ordem de ordem da monarquia cristã por graça divina podia ser ‘autoridade’ mas não ‘maioria’, palavra de
ordem esta que se tornou a meta daqueles que defendem a liberdade intelectual, a ciência liberta das crenças
em dogmas e milagres, fundada na razão humana e na dúvida da crítica, e que, politicamente, defendem a
democracia” (KELSEN, Hans. A democracia. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 105).
3
JENNINGS, Sir Ivor. A constituição britânica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981. p. 23.
4
AMORTH, Antonio et al. I partiti politici nello stato democratico. Roma: Studim, 1959. p. 5.
5
BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade. 7. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 45.

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FERNANDO GUSTAVO KNOERR
MANDATO, AUTONOMIA PARTIDÁRIA E REPRESENTATIVIDADE POLÍTICA
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“a ‘cracia’ (sic) das massas, mas a ‘cracia’ dos grupos mais ou menos organizados em que
a massa, devido à sua natureza informe, se articula, e ao articular-se expressa interesses
particulares”.6
Muito já se tentou, a partir da modernidade, governar sem partidos. O contato
direto dos governantes com a massa através dos meios de comunicação permitiu dis­
pensar organismos políticos intermediários; a expressão das opiniões, bem como a
formação do escol, resultaria da vida normal dos organismos corporativos profissionais,
culturais ou morais, assim como da prática da Administração Pública, nomeadamente
da administração local.
O regime sem partidos não excluiria a formação de correntes de opinião e a sua
expressão através do sufrágio, o que ocorreria apenas mediante um corporativismo
integral (apreensível idealmente), no qual seria possível evitar a organização de
associações de âmbito nacional, pelo menos ocasionais, para apoio de candidatos às
funções políticas.
Os partidos políticos surgem na história como consequência natural da frag­
mentação de interesses no seio de uma sociedade democrática. Neste corporativismo
democrático encontra-se o gérmen da fenomenologia partidária, de modo que os partidos
“constituem o instrumento principal pelo qual se realiza a democracia”.7
Mas um partido político não se define apenas a partir da reunião de certo número
de indivíduos que comungam do mesmo ideário,8 ou que têm os mesmos objetivos,
conceituando-se principalmente como instrumento de exercício da participação política
da contemporaneidade.9
Demonstra Daniel-Louis Seiler:

as ciências sociais, recorreram bem cedo ao vocábulo “partidário”. Assim, tradutores de


Aristóteles usaram-no para designar os grupos sociais que se opunham a Atenas. Assim,
os especialistas da Roma antiga empregaram os conceitos “partido plebeu” e “partido
patrício”; assim, o célebre De Viris Illustribus Romae, delícia ou pesadelo de gerações de
estudantes, quando tratam dos conflitos políticos que marcaram o declínio da República,
não hesitam em recorrer às palavras “partidos políticos”. Do mesmo modo os medievalistas
e os modernistas utilizam o termo “partido” para designar os Armagnacs e os Bourguignons,
os Guelfos e os Gibelinos, os campos que se enfrentaram por ocasião da Guerra das Rosas,
ou ainda os Ligueurs e os Huguenotes. Sem falar das grandes revoluções dos séculos XVII
e XVIII – a inglesa, a americana e a francesa, que viram oporem-se facções a que a maior
parte dos historiadores chama “partidos”.10

6
BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade. 7. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 292-293.
7
CASSESE, Sabino; PEREZ, Rita. Manuale di diritto pubblico. Roma: La Nuova Italia Scientifica, 1995. p. 169.
8
E nessa linha os definem Edmund Burke, como “um conjunto organizado de homens unidos para trabalhar em
comum pelo interesse nacional, conforme o princípio particular com o qual se puseram em acordo” (GANZIN,
Michel. La pensee politique d’Edmund Burke. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1972. p. 67).
No mesmo sentido, Benjamin Constant: “Uma reunião de homens que professam a mesma doutrina política”
(CONSTANT, Benjamin. Mémoires sur les cent jours en forme de lettres. Paris: Chez Béchet Fils Librairie, 1820. p. 82).
9
Seguindo a senda, assim os conceituam Hans Kelsen, para quem “os partidos são formações que agrupam
homens de mesma opinião para lhes garantir uma influência verdadeira sobre a gestão dos negócios políticos”
(KELSEN, Hans. A democracia. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 146). Conferir também Raymond Aron:
“os partidos políticos são agrupamentos voluntários que pretendem, em nome de uma certa concepção de
interesse comum e de sociedade, assumir, sozinhos ou em coalizão as funções do governo” (ARON, Raymond.
Estudos políticos. 2. ed. Brasília: Edunb, 1985. p. 357).
10
SEILER, op. cit., p. 10.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
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Ao longo da história, é impossível enumerar todas as causas que dão surgimento


aos partidos políticos, pois são múltiplas. Qualquer listagem deve ser analisada de forma
ponderada, pois será sempre limitadamente exemplificativa. Entre estas, contudo, pode-
se assinalar a ocorrência de um fato histórico que marcou uma radical ruptura com toda a
estrutura política anterior, como ocorreu com os grandes partidos tradicionais ingleses (os
Tories – antecedente do Partido Conservador – e Whigs – antecedente do Partido Liberal
– fortalecidos após a Revolução Gloriosa) e americanos (após a Guerra da Secessão).11
Como arremata José Afonso da Silva, os partidos políticos “são entidades históricas”.12
Numa classificação arbitrária, Daniel-Louis Seiler13 refere a primeira fase da
his­tória dos partidos políticos como o período normativo, iniciado com as revoluções
inglesas (principalmente a Revolução Gloriosa de 1688/1689), ultimando-se sob as
consequências da onda revolucionária comunista de 1848, quando surgem os pensadores
da social-democracia alemã.
Dois traços significativos marcam este período: 1) a tentativa de definir o sentido
do termo “partido”, ou como elemento de união em torno de um ideal ou ainda como
elemento de partição, de repartição e representação setorizada dos interesses sociais;
2) a definição de partido em relação ao seu grau de institucionalização, bem como ao
grau de integração com a sociedade civil (quanto mais partidos, mais representados
estariam os interesses de toda a sociedade). Destacam-se, neste período, como ilustres
teóricos, Bolingbroke, Madison, Hume, Burke, Benjamin Constant e Bluntschli.
A segunda fase é a dos founding-fathers,14 marcada pelo esforço de dar ao discurso
político, mormente ao fenômeno dos partidos, foros de cientificidade. Salta em evidência,
nesta fase, a herança da obra de Max Weber,15 seja em função da forte ascendência de sua
teorização sobre a social-democracia alemã, seja ainda porque seu discurso sociológico
calhava, à fiveleta, a este esforço de amoldamento científico do que na época se produziu
sobre política.16
A terceira fase atribui a qualidade de divisor de águas ao clássico Les partis politiques
de Maurice Duverger,17 por dispor, segundo Daniel-Louis Seiler,

11
Como assinala Samuel E. Finer, esta é a razão da permanência de um sistema prevalentemente bipartidário,
seja na Inglaterra, seja nos Estados Unidos: “primeiro, como o sistema britânico, o sistema americano é também
bipartidário. Existem ‘terceiros’ partdos, como por exemplo, o partido Liberal Americano e o Partido Socialista
Americano, mas atualmente eles não têm grande importância. E no passado, quando surgiu um terceiro partido
como disputante potencialmente importante, como foi o caso dos populistas em 1892, foi ele rapidamente
absorvido por um ou outro dos partidos tradicionais – os democratas absorveram os populistas em 1896 ao
indicar Bryan pra a presidência, operando uma guinada para a esquerda. A razão da permanência de um padrão
bipartidário é principalmente o resultado de dois fatores, um sociológico e outro relativo à mecânica eleitoral.
Quando ao primeiro, cerca de três quartos dos americanos votam segundo a tradição histórica local no que respeita
às eleições locais, estaduais e para o Congresso (mas não, ultimamente, quanto à presidência da república) essa
tendência é mais marcante nos onze estados do Sul, que formavam a antiga Confederação. Ali, a tradição é ‘vota
como fizeste a guerra’, isto é, no partido Democrata. Outras áreas eleitorais tradicionais, juntamente com hábitos
eleitorais tradicionais, são republicanas empedernidas, por motivos históricos semelhantes” (FINER, Samuel
E. Governo comparado. Brasília: Edunb, 1981. p. 209).
12
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 357.
13
SEILER, op. cit., p. 12.
14
Pais-fundadores, numa tradução forçadamente literal para atender à necessidade de aludir em conjunto os
primeiros grandes teóricos dos partidos políticos.
15
DIGGINS, John Patrick. Max Weber: a política e o espírito da tragédia. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 277.
16
SEILER, op. cit., p. 13.
17
DUVERGER, Maurice. Les partis politiques. Paris: Librairie Armand Colin, 1951. p. 30.

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FERNANDO GUSTAVO KNOERR
MANDATO, AUTONOMIA PARTIDÁRIA E REPRESENTATIVIDADE POLÍTICA
421

de uma síntese de tudo que se pode saber sobre o fenômeno partidário nos anos de 1.950. Se
as informações, de caráter fatual, que ele dá sobre os partidos envelheceram, dois elementos,
em compensação permanecem intangíveis. Um sustenta-se na apresentação de uma teoria
da origem e multiplicação dos partidos, em análise operada através de uma abordagem
institucionalista. Relaciona o fenômeno partidário com a dinâmica das instituições e ainda
fornece material para muitos trabalhos. O outro reside na edificação de uma tipologia dos
partidos baseado na natureza de sua organização.18

É um divisor de águas porque a quarta etapa centra-se na discussão do que deixara


Duverger, experimentando-se uma multiplicação de teorias fortemente influenciadas
pela década de ouro norte-americana (the golden sixties), condensadas nas obras de Robert
A. Dahl (1966) e de Lipset e Rokkan (1967). Além destas, evidencia-se neste período a
riqueza da análise dos sistemas de partidos levada a efeito por Giovanni Sartori (1976).
Outras vezes, e isto já é mais comum nos Partidos de Massa, são interesses de
classe, como sucede com os partidos trabalhistas e os partidos agrários (de sem-terra
ou de ruralistas).19
Por fim uma ideologia ou uma crença pode determinar uma associação política: é
o caso dos partidos comunistas, socialistas, democrata-cristãos, católicos, monárquicos
(nos regimes republicanos).
Há casos, no entanto, em que partidos são criados para ter efêmera duração,
quando se dedicam tão somente a apoiar determinada personalidade ou a permitir
certas alterações políticas.
De consenso, contudo, é que, na linha da doutrina gnoseológica utilitarista de
David Hume, os atos de criação e manutenção de um partido político sempre evidenciam
a busca da satisfação de algum interesse. Este interesse, contudo, poderá ser de fato o
social, traduzido pela busca de um “bem comum”, o oligárquico ou o individual.
É nesse preciso sentido que, muito antes de falar em partidos, David Hume
trata de facções, como substrato fático da segmentação de interesses, característica da
democracia representativa.
Deste modo, conquanto seja inegável a presença de certo caráter altruísta na
criação e sustentação de alguns partidos políticos,

[...] tem de reconhecer-se que a ambição de ocupar o poder é uma característica essencial
do político. A prática freqüente de negar isso, e de atribuir a característica aos adversários
como um ferrete, é provavelmente a manifestação de uma tendência secular dos regimes
anteriores à revolução, para reclamar uma legitimidade carismática que é negada aos
concorrentes.20

Donde se extrai que o altruísmo não é característico da criação de um partido


político. Sem certa dose de interesse pessoal, egoístico na medida em que é excludente
dos demais, este jamais existiria.

18
SEILER, op. cit., p. 13.
19
BERL, Emmanuel. La politique et les partis. Paris: Édtions Rieder, 1932. p. 87.
20
MOREIRA, Adriano. Ciência política. Coimbra: Almedina, 1992. p. 171.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
422 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Não há partido voltado exclusivamente ao atendimento do interesse do todo social,


com total renúncia do seu ou do interesse pessoal de seus integrantes. Esta hipótese é
apenas imaginável como modelo, mas irrealizável.
Há, em síntese, doses maiores ou menores deste altruísmo,21 conjugado ao seu
oposto. Jamais se encontrará, contudo, apenas este fator. O contrário ocorre com o fator
egoístico. Sir Ivor Jennings é categórico ao afirmar que “como todas as instituições
políticas, os partidos políticos desenvolvem-se sob a influência de diferentes pessoas
para satisfazer circunstâncias”.22
Ou, ainda, John Stuart-Mill, no exato sentido em que empregamos o termo:

quando falamos de uma assembléia, ou mesmo de um indivíduo, como um princípio


determinante de suas ações, a questão de saber qual seria este interesse aos olhos de um
observador imparcial é uma das partes menos importantes da discussão. Como observa
Coleridge, é o homem que faz o motivo, não o motivo que faz o homem. O que interesse
ao homem fazer ou deixar de fazer depende mais da espécie de homem que ele é do que
de circunstâncias externas. Se também quiser saber quais são praticamente os interesses
de um homem terá que saber quais são os seus sentimentos e pensamentos normais. Todas
as pessoas têm dois tipos de interesses: interesses com os quais se preocupam e interesses
com os quais não se preocupam. Todas as pessoas têm interesses egoístas e não-egoístas,
e uma pessoa egocêntrica terá se acostumado a se preocupar com os primeiros e não com
os segundos.23

Este egoísmo, presente em maior ou menor grau, decorre do fato de o político


buscar o poder por julgar-se mais capaz do que seus concorrentes na realização do
interesse público, embora seja de se admitir que também ocorrem casos em que se
pretende o poder para abertamente usá-lo no atendimento a interesses pessoais ou
setoriais, que serão mais fácil ou plenamente realizados se o exercício do poder for
alcançado.24
“Não se deve pensar”, como ressalva Sir Ivor Jennings, “que os membros sem
interesses pessoais não possam produzir emendas úteis. Apesar da preparação completa
que quase todo projeto de lei recebe nos Departamentos governamentais, toda legislação,
por causa de seu caráter geral, tende a produzir anomalias”.25

21
Este altruísmo e este egoísmo, no sentido em que emprego tais termos, são ricamente explicados pelo texto do
Abade Sieyés, quando assevera: “Assinalemos no coração dos homens três espécies de interesses: 1º) aquele pelo
qual os cidadãos se reúnem: apresenta a medida exata do interesse comum; 2º) aquele pelo qual um indivíduo se
liga somente a alguns outros: é o interesse do corpo; e, finalmente, 3º) aquele em que cada um se isola pensando
unicamente em si: é o interesse pessoal. O interesse pelo qual um homem concorda com todos os seus associados
é evidentemente o objeto da vontade de todo e o da assembléia comum. Ali, a influência do interesse pessoal deve
ser nula. E é isso também o que acontece; sua diversidade é seu verdadeiro remédio. A grande dificuldade vem
do interesse pelo qual um cidadão está ligado somente com alguns outros. Daí se originam projetos perigosos
para a comunidade e se formam os inimigos públicos mais temíveis. A histórica está cheia dessa triste verdade”
(SIEYÉS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa: o que é o terceiro estado. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
1997. p. 116). Sendo de se perceber que na primeira hipótese há a enunciação do conteúdo do que foi referido
como egoísmo, e os dois seguintes como altruísmo.
22
JENNINGS, Sir Ivor. A constituição britânica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981. p. 26.
23
STUART-MILL, op. cit., p. 66.
24
MOREIRA, Adriano. Ciência política. Coimbra: Almedina, 1992. p. 172.
25
JENNINGS, Sir Ivor. A constituição britânica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981. p. 60.

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FERNANDO GUSTAVO KNOERR
MANDATO, AUTONOMIA PARTIDÁRIA E REPRESENTATIVIDADE POLÍTICA
423

Como assinala Karl Deutsch, definindo este egoísmo em maior grau:

outros partidos, assim como muitos políticos autônomos, são, sobretudo, orientados pelo
sentido do poder. Seus propósitos, professados sob a forma de afirmações e de plataformas
políticas, diferem freqüentemente daqueles que na realidade possuem. Pouco importa a
estes partidos que leis e que políticas são aprovadas, desde que sejam eles a implementá-las.
Se um indivíduo politicamente orientado, antes de pensar em ser presidente, tencionasse
ser justo, o seu partido orientado pelo sentido do poder teria de mudar muitos de seus
programas políticos, e até, discretamente, os seus princípios, a fim de poder conseguir a
eleição ou permanecer no poder.26

Desta breve constatação desponta o elemento teleológico da figuração do partido


político, qual seja: a busca do poder, com técnicas e processos definidos por nuances
mais ou menos egoísticas.
Assim, o partido é uma organização governada de dentro para fora, sendo
instrumento de realização da vontade formada por quem o integra, embora sofra o
controle externo na medida em que se vê cobrado a seguir suas propostas de governo
e sua coerência ideológica.
O partido político é uma associação de caráter permanente congregadora de
indivíduos que buscam, mediante uma ação concertada junto da opinião pública, obter
o exercício do poder pelas vias institucionais. O partido incorpora “A lógica do projeto
fundado na perenidade – pelo menos numa certa perenidade – das escolhas políticas,
remete à dimensão ideológica do fenômeno partidário, ou, de maneira mais sociológica,
à das famílias políticas”.27
Embora tenha outras funções, como adiante se verá, os objetivos principais do
partido político apenas podem ser realizados quando obtido de fato o exercício do poder,
quando o partido lograr ocupar os cargos-chave da estrutura estatal com seus integrantes.
Nessa linha, são instituições que se colocam entre o indivíduo e o poder público
ao servirem de canal de fluência das pretensões titularizadas por indivíduos ou
grupos, diante do aparato estatal, sendo indispensáveis à caracterização da democracia
representativa.28
Portanto, não há, a partir da modernidade, democracia sem partidos.29 Não é por
outra razão que também Hans Kelsen trata os partidos políticos como instituições que,

26
DEUTSCH, Karl. Política e governo. 2. ed. Brasília: Edunb, 1988. p. 88.
27
SEILER, op. cit., p. 37.
28
Inegavelmente, há certa semelhança entre esta função de intermediação com aquela desempenhada pelo
Parlamento, na definição dos corpos intermediários do Barão de Montesquieu.
29
Nesse sentido, Daniel-Louis Seiler é categórico: “nenhuma democracia funciona sem partidos políticos.
Não existe no mundo de hoje nenhuma democracia representativa que não se funde na competição entre os
partidos. A experiência de democracia direta, tal qual a Suíça conhece, não reduziu os partidos que souberam
tirar proveito das ocasiões de mobilização que lhes oferecem os procedimentos referendários. Muitas vocações
partidárias nasceram dos comitês ad hoc constituídos por ocasião de referendos ou iniciativas: na Suíça, a
Aliança dos independentes, os ecologistas ou o partido suíço dos automobilistas encontraram aí suas origens.
Os projetos que concebem modelos de democracias que passariam sem o concurso dos partidos permaneceram,
até o presente, no estágio da utopia. Assim ocorre em todos os planos de sistemas fundados na autogestão ou
nos de democracia conselheiral. Nos locais onde se tentou sua aplicação, a experiência mudou rapidamente,
transformando-se ora num longo pesadelo, a exemplo dos países do leste, ora num episódio delirante como
os de Mackno na Ucrânia de 1.920 ou de Durruti durante a guerra da Espanha. Nos dois casos viu-se o furor
democrático matar a democracia. Em compensação, assim que um partido autoritário começa um movimento

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424 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

colocadas entre o indivíduo e o poder público, constituem-se no único canal pelo qual
o titular faz a entrega do exercício do poder.30
Nos diretos, o interesse dos indivíduos ou do grupo é diretamente manifestado
pelo partido, este surgido antes mesmo de qualquer institucionalização do grupo.
O grupo é gestado em meio à própria existência do partido.
Já nos indiretos, o indivíduo tem seus interesses imediatamente defendidos pelo
grupo, e o grupo transfere esta tutela aos partidos. O grupo, neste caso, precede em
existência o partido. É indireto o partido, portanto, porque sua função de canalização
de pretensões individuais é antes de tudo intermediada pelo grupo social.
Para Daniel-Louis Seiler “os partidos políticos constituem a condição sine qua non
do funcionamento do regime representativo”,31 são filhos da democracia e do sufrágio
universal.
A democracia representativa, em síntese, é o regime de governo exclusivo dos
partidos políticos. Como decorrência imediata desta conclusão, a procedimentalização
própria da democracia transplanta-se para a estrutura partidária, acrescendo ao conceito
de partido político o traço marcante da institucionalização, pois

a partir do momento em que foram transformados em instrumentos eficazes da opinião


pública, criando condições para que as tendências preponderantes no estado exerçam
influência sobre o governo, os partidos políticos transformaram-se no veículo natural de
representação política.32

Por essa razão, se os representantes do povo não mais podem ser escolhidos
a não ser a partir dos quadros de partidos, impõe-se considerar que há de fato uma
proximidade significativa entre o Estado Democrático e o que se pode nominar Estado
de Partidos, na razão direta de que a inexistência, ou a inefetividade deles, impede
radicalmente a possibilidade de sobrevivência de um modelo de democracia. A demo­
cracia representativa moderna tende para uma partitocracia.
De todo modo, se as eleições são um instituto republicano, os partidos políticos
são um fenômeno democrático. No entanto – e é o que sempre exige a democracia real
– da mesma forma que ao cidadão deve ser resguardada a genuína liberdade de escolha
responsável de seus mandatários, também aos partidos políticos deve-se tutelar um
espaço de autonomia para identificação e defesa de seus propósitos.
Trata-se da autonomia partidária, não confundida com soberania, pois se esta é, na
definição clássica de Jean Bodin, o poder que não reconhece superiores, sendo portanto
livre de amarras formais (mas não dos limites impostos por seu contexto histórico), a
autonomia é, por sua vez, um poder sempre limitado.
A Constituição brasileira, nesse particular, é bastante didática ao delimitar a au­
to­nomia partidária no texto do art. 17 ao poliedro formado pelo respeito à soberania

de democratização, as organizações protopartidárias proliferam. É uma lei que não sofre alguma exceção. Mais
ainda, como uma homenagem que o vício rende à virtude, pelo fato de muitos regimes autoritários esforçarem-
se por manter, até mesmo por organizar, o simulacro do pluripartidarismo” (SEILER, op. cit., p. 29).
30
KELSEN, Hans. A democracia. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 139 em diante.
31
SEILER, op. cit., p. 06.
32
MACABU, Adilson Vieira. A formação do poder: os partidos políticos: o eleitorado: a representação. Revista de
Ciência Política, v. 7, n. 3, jul./set. 1973. p. 83.

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MANDATO, AUTONOMIA PARTIDÁRIA E REPRESENTATIVIDADE POLÍTICA
425

nacional, ao regime democrático, ao pluripartidarismo, aos direitos fundamentais da


pessoa humana e também à imposição de

I - caráter nacional;
II - proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo estrangeiros
ou de subordinação a estes;
III - prestação de contas à Justiça Eleitoral;
IV - funcionamento parlamentar de acordo com a lei.

Observados esses limites, agindo portanto dentro da autonomia que lhes é res­
guardada, os partidos políticos encontram amplo espaço para definição de sua estrutura
e, principalmente, de seus propósitos programáticos, pois o resgate de sua origem nas
facções encaminha a conclusão de que os partidos políticos surgiram e existem para
tornar reais seus programas.
É certo que a realização do programa partidário apenas se mostra efetiva e viável
quando o partido logra alçar seus integrantes ao exercício do poder.
Surge assim a definição essencial do partido político como agremiação de origem
espontânea na sociedade civil, e por isso de ordem privada, que tem por objetivo eleger
seus filiados como meio de implantar seu programa de governo.
Há que se analisar cum granum salis o objetivo essencial de qualquer partido polí­
tico, que é o de eleger seus filiados, pois se esta é a principal forma pela qual o partido
reúne condições de implantar seu programa de governo, este não pode ser seu único
objetivo.
Este elemento teleológico que diferencia os partidos políticos de qualquer outra
associação de direito privado não pode ser priorizado a ponto de fazer com que o partido
apenas tenha função nos períodos eleitorais.
Partindo da classificação que já se tornou usual entre partidos eleitorais e partidos
de estrutura, a suplantação destes por aqueles reduz a função dos partidos políticos a
meras agremiações de candidatos, que se veem premidos a formalizar a filiação partidária
porque devem cumprir um requisito de elegibilidade nos estados em que, com o Brasil,
não se admite candidatura avulsa, mas nem sempre porque são familiarizados com os
propósitos programáticos do partido.
Nesses casos, a alavanca eleitoral que o partido pode fornecer ao candidato para
viabilizar sua eleição tem na escolha da filiação partidária peso muito maior do que o
programa do partido.
As democracias contemporâneas exigem dos partidos políticos a manutenção de
uma estrutura permanente, vocacionada ao cumprimento de uma função muito maior
e mais permanente, impondo-lhes um papel absolutamente relevante na satisfação do
interesse público, sendo-lhes reconhecida a função de mobilizar a sociedade civil (e não
apenas seus filiados) em torno de aspectos relevantes do interesse público, de colaborar
na pesquisa e na educação política (art. 44, IV, V e VI da Lei nº 9.096/95), através de
institutos próprios, mantidos para este fim, e também a legitimação ativa para provocar
o controle direto de constitucionalidade, a exemplo do que ocorre no Brasil em razão
do previsto pelo art. 103, VIII, da Constituição.
Mais recentemente foi atribuída aos partidos políticos até mesmo a função de
patrocinar a igualdade de gêneros, sendo-lhes vedado preencher o número de vagas

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426 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

de candidatos em número que extrapole o mínimo de 30% (trinta por cento) para cada
sexo, estabelecendo não apenas uma exigência meramente formal, mas buscando a
efetiva participação feminina (ainda em menor escala) nos pleitos eleitorais.
No entanto, de elementos essenciais ao funcionamento eficaz dos modelos
democráticos, a disfunção dos partidos políticos pode colocar em risco a própria
democracia, pois como ocorre com qualquer grupamento humano, os partidos políticos
também são estruturas tendencialmente oligárquicas, inclinados à concentração de poder
nas mãos dos poucos integrantes da cúpula partidária.
Esta tendência de oligarquização partidária é ainda mais acentuada nos sistemas
eleitorais de lista fechada, em que a vontade dos líderes partidários assume papel
determinante no apontamento dos que integrarão a lista de candidatos.
Sendo fundamentais à participação democrática no patrocínio de diferentes
programas e interesses, os partidos políticos devem ser internamente democráticos,
repelindo a condução de seus propósitos de acordo com os desígnios estritamente
pessoais de quem os dirige, mas atentando para a fidelidade ao programa partidário
definido pelo interesse comum dos filiados.
O que coloca, portanto, em risco o modelo democrático não é o maior ou menor
número de partidos políticos, não sendo equivocado cogitar que um número maior
de partidos permite maior representação de interesses cada vez mais específicos e
localizados, garantindo maior diversidade na convivência democrática.
O que instabiliza a democracia, podendo transformar o remédio em veneno, é a
infidelidade partidária, entendida não apenas no raso conceito de que ao mandatário
é vedado desligar-se do partido pelo qual se elegeu, sob pena de perda de mandato.
A mais grave infidelidade partidária é a infidelidade dos filiados ao programa partidário.
Esta infidelidade não guarda uma relação necessária com o número de filiados
do partido. Grandes partidos podem ser fiéis ou infiéis ao seu programa como também
podem sê-lo os pequenos.
Esvazia-se por isso a razão de ser da cláusula de barreira reinstituída pela Emenda
Constitucional nº 97 ao alterar a redação original do art. 17, §3º, da Constituição Federal,
limitando a percepção dos recursos do fundo partidário e o acesso ao tempo gratuito de
propaganda em rádio e televisão aos partidos políticos que, alternativamente

I - obtiverem, nas eleições para a Câmara dos Deputados, no mínimo, 3% (três por cento)
dos votos válidos, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação, com
um mínimo de 2% (dois por cento) dos votos válidos em cada uma delas; ou
II - tiverem elegido pelo menos quinze Deputados Federais distribuídos em pelo menos
um terço das unidades da Federação.

A cláusula de barreira foi instituída pelo regime de exceção militar na Constituição


de 1967 (art. 149, VII), exigindo que o partido político, para manter-se partido, alcançasse
pelo menos

dez por cento do eleitorado que haja votado na última eleição geral para a Câmara dos
Deputados, distribuídos em dois terços dos Estados, com o mínimo de sete por cento em
cada um deles, bem assim dez por cento de Deputados, em, pelo menos, um terço dos
Estados, e dez por cento de Senadores.

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FERNANDO GUSTAVO KNOERR
MANDATO, AUTONOMIA PARTIDÁRIA E REPRESENTATIVIDADE POLÍTICA
427

Embora com percentuais reduzidos, a cláusula de barreira foi mantida pela


Emenda Constitucional nº 1/69, com “exigência de cinco por cento do eleitorado que haja
votado na última eleição geral para a Câmara dos Deputados, distribuídos, pelo menos,
em sete Estados, com o mínimo de sete por cento em cada um deles” (art. 152, VII).
Na Alemanha, o limite foi fixado originalmente em 5%, sendo adotados por
outros países parâmetros variáveis, que vão desde 1% em Israel (aumentado em 1992
para 1,5%), passando por 4% na Espanha, 3% na Argentina e até 10%, nas eleições de
1983 e 1991 da Turquia, ou acima de 15% como interpoladamente o fez a Grécia, no uso
da chamada “proporcionalidade reforçada”.
No Brasil, a Carta de 1967, além de proibir coligações partidárias (art. 149, VIII),
exigia, para que pudesse existir partido político (art. 149, VII), o apoio de

dez por cento do eleitorado que haja votado na última eleição geral para a Câmara dos
Deputados, distribuídos em dois terços dos Estados, com o mínimo de sete por cento
em cada um deles, bem assim dez por cento de deputados em pelo menos um terço dos
Estados, e dez por cento de senadores.

Essas marcas foram reduzidas pela Emenda Constitucional nº 1/69, para “cinco por
cento do eleitorado que haja votado na última eleição geral para a Câmara dos Deputados,
distribuídos em pelo menos sete Estados, com o mínimo de sete por cento em cada um
deles” (art. 152, VII). A Emenda nº 11, de 1978, as diminuiu para “5% do eleitorado que
haja votado na última eleição geral para a Câmara dos Deputados, distribuídos, pelo
menos, por nove Estados, com mínimo de 3% em cada um deles”.
Em nível infraconstitucional, o Decreto-Lei nº 8.835, de 24.1.1946, art. 5º, com o
Código Eleitoral de 1950 (Lei nº 1.164, de 24.7.1950) – cujo art. 148, em seu parágrafo
único, mandava cancelar o registro de partido que não conseguisse eleger ao menos um
re­presentante para o Congresso Nacional, ou que não obtivesse ao menos 50 mil votos –
e também com a Emenda Constitucional nº 11/85, que vedou representação ao partido
com votação inferior a 5% do eleitorado, distribuído, pelo menos, por nove estados, com
o mínimo de 3% em cada um deles.
Na redação original, a CF de 1988 não previu cláusula de exclusão,33 e tampouco
a Lei Orgânica dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096, de 19.9.1995), que se limitou a gizar
no art. 13 as condições de funcionamento parlamentar do partido.34

33
E nem a admite, segundo dicção do Supremo Tribunal Federal, em decisão assim ementada: “Partidos políticos.
Indicação de candidatos. Pressupostos. Inconstitucionalidade. Exsurgem conflitantes com a Constituição Federal
os preceitos dos parágrafos 1º e 2º do artigo 5º da Lei n. 8713/93, no que vincularam a indicação de candidatos
a presidente e vice-presidente da República, Governador, Vice-Governador e Senador a certo desempenho do
partido no pleito que a antecedeu e, portanto, dados fáticos conhecidos. A Carta de 1988 não repetiu a restrição
contida no artigo 152 da pretérita, reconhecendo, assim, a representação dos diversos segmentos sociais,
inclusive os que se formam dentre as minorias” (STF, Tribunal Pleno. ADIN nº 958-RJ. Rel. Min. Marco Aurélio,
j. 11.5.94. Diário de Justiça da União, 25 ago. 1995, p. 26021, Ementário v. 01797-01, p. 00077).
34
O entendimento esposado pelo STF segue no sentido de afirmar a constitucionalidade deste dispositivo, como
assentado na decisão assim ementada: “Medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade. Suspeição
de Ministro da Corte: descabimento. Partidos políticos. Lei n. 9096, de 19 de novembro de 1995. Argüição de
inconstitucionalidade do art. 13 e das expressões a ele referidas no inciso II do art. 41, no caput dos arts. 48
e 49 e ainda no inciso II do art. 57, todos da Lei n. 9096/95. 1. Manifestação de Ministro desta Corte, de lege
ferenda, acerca de aperfeiçoamento do processo eleitoral, não enseja declaração de suspeição. Descabimento de
sua argüição em sede de controle concentrado. Não conhecimento. 2. O artigo 13 da Lei n. 9.096, de 19 de
novembro de 1995, que exclui do funcionamento parlamentar o partido político que em cada eleição para a

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
428 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

A priori, não há como se dizer se a cláusula de exclusão será mais ou menos


eficaz em função tão somente do percentual em que foi fixada. Outros fatores devem
ser considerados, tais como os atinentes aos índices de abstenção e à obrigatoriedade do
voto, pois, em países em que estes índices sejam baixos e o voto seja obrigatório, uma
cláusula de 5% pode ser considerada extremamente alta, podendo, de outro lado, ser
considerada completamente ineficaz nos casos em que o voto seja facultativo e sejam
registrados altos índices de abstenção.
Na história constitucional brasileira, a cláusula de barreira destaca-se como
marca de regime antidemocrático, não sendo outra a razão pela qual o Supremo
Tribunal Federal a repeliu na decisão proferida na ADI nº 1.351-3/DF, concluindo pela
inconstitucionalidade do art. 13 da Lei nº 9.096/95, quando prevê os critérios definidos
do funcionamento parlamentar. Merece destaque trecho do voto do Ministro Eros Grau:

A lei, de modo oblíquo, reduz a representatividade dos deputados eleitos por determinados
partidos, como que cassando não apenas parcela de seus deveres de representação, mas
ainda – o que é mais grave – parcela dos direitos políticos dos cidadãos e das cidadãs
que os elegeram. Para ela, o voto direto a que respeita o art. 14 da Constituição do Brasil
não tem valor igual para todos. Uma lei com sabor de totalitarismo. Bem ao gosto dos
que apoiaram a cassação de mandatos e de registro de partido político; bem ao gosto dos
que, ao tempo da ditadura, contra ela não assumiram nenhum gesto senão o de apontar
com o dedo. Não apenas silenciaram, delataram... Uma lei tão adversa à totalidade que
a Constituição é, tão adversa a esta totalidade que o mesmo partido político pelo qual
poderá ter sido eleito o Chefe do Poder Executivo será, sob a incidência de suas regras,
menos representativo do que os demais partidos no âmbito interno do Parlamento.
Múltipla e desabridamente inconstitucional, essa lei afronta o princípio da igualdade de
chances ou oportunidades, corolário do princípio da igualdade. Pois é evidente que seria
inútil assegurar-se a igualdade de condições na disputa eleitoral se não se assegurasse a
igualdade de condições no exercício de seus mandatos pelos eleitos.35

Fato é que a EC nº 97/17 reintroduziu a cláusula de barreira, a ser implantada


de forma progressiva, culminando na exigência de que, a partir das eleições de 2030,

Somente terão direito a recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão,
na forma da lei, os partidos políticos que alternativamente:

Câmara dos Deputados, não obtenha o apoio de no mínimo cinco por cento dos votos válidos distribuídos
em, pelo menos, um terço dos Estados, com um mínimo de dois por cento do total de cada um deles, não
ofende o princípio consagrado no artigo 17, seus incisos e parágrafos, da Constituição Federal. 3. Os parâmetros
traçados pelos dispositivos impugnados constituem-se em mecanismos de proteção para a própria convivência
partidária, não podendo a abstração da igualdade chegar ao ponto do estabelecimento de verdadeira balbúrdia
na realização democrática do processo eleitoral. 4. Os limites legais impostos e definidos nas normas atacadas
não estão no conceito do artigo 13 da Lei nº 9096/95, mas sim no do próprio artigo 17, seus incisos e parágrafos,
da Constituição Federal, sobretudo ao assentar o inciso IV desse artigo, que o funcionamento parlamentar ficará
condicionado ao que disciplinar a lei. 5. A norma contida no artigo 13 da Lei nº 9.096/95 não é atentatória ao
princípio da igualdade; qualquer partido, grande ou pequeno, desde que habilitado perante a Justiça Eleitoral,
pode participar da disputa eleitoral, em igualdade de condições, ressalvados o rateio dos recursos do fundo
partidário e a utilização do horário gratuito de rádio e televisão – o chamado ‘direito de antena’ –, ressalvas
essas que o comando constitucional inscrito no artigo 17, §3º, também reserva à legislação ordinária a sua
regulamentação. 6. Pedido de medida liminar indeferido” (STF, Tribunal Pleno. ADIMC nº 1.354-DF. Rel. Min.
Maurício Corrêa, j. 7.2.96. Diário de Justiça da União, 25 maio 2001, p. 00009, Ementário v. 02032-01, p. 00197).
35
STF. ADI nº 1.351-3/DF. Rel. Min. Marco Aurélio. Requerente: Partido Comunista do Brasil – PC do B e outros.
Requeridos: Presidente da República e Congresso Nacional.

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FERNANDO GUSTAVO KNOERR
MANDATO, AUTONOMIA PARTIDÁRIA E REPRESENTATIVIDADE POLÍTICA
429

I - obtiverem, nas eleições para a Câmara dos Deputados, no mínimo, 3% (três por cento)
dos votos válidos, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação, com
um mínimo de 2% (dois por cento) dos votos válidos em cada uma delas; ou
II - tiverem elegido pelo menos quinze Deputados Federais distribuídos em pelo menos
um terço das unidades da Federação.

Até 2030, será aplicada a escala segundo a qual nas eleições de 2018 somente terão
direito a recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma
da lei, os partidos políticos que alternativamente

a) obtiverem, nas eleições para a Câmara dos Deputados, no mínimo, 1,5% (um e meio por
cento) dos votos válidos, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação,
com um mínimo de 1% (um por cento) dos votos válidos em cada uma delas; ou
b) tiverem elegido pelo menos nove Deputados Federais distribuídos em pelo menos um
terço das unidades da Federação.

Nas eleições de 2022, os que

a) obtiverem, nas eleições para a Câmara dos Deputados, no mínimo, 2% (dois por cento)
dos votos válidos, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação, com
um mínimo de 1% (um por cento) dos votos válidos em cada uma delas; ou
b) tiverem elegido pelo menos onze Deputados Federais distribuídos em pelo menos um
terço das unidades da Federação.

E, na legislatura seguinte às eleições de 2026, os que

a) obtiverem, nas eleições para a Câmara dos Deputados, no mínimo, 2,5% (dois e meio por
cento) dos votos válidos, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação,
com um mínimo de 1,5% (um e meio por cento) dos votos válidos em cada uma delas; ou
b) tiverem elegido pelo menos treze Deputados Federais distribuídos em pelo menos um
terço das unidades da Federação.

Fica a pergunta que não quer calar: o STF manterá a mesma posição já adotada
em casos anteriores, declarando a inconstitucionalidade da cláusula de barreira?
Outro ponto sensível na busca do fino equilíbrio entre autonomia e coerência
partidária surge na busca de harmonizar o comportamento do partido em todo o território
nacional, na busca da plena efetividade do previsto pelo art. 17, I, da CF, quando exige
dos partidos políticos ação em caráter nacional e, desta forma, não lhes impõe a obrigação
de se fazerem presentes em todos os estados e municípios, o que sequer seria razoável
ou financeiramente possível, mas os obriga a atuar em prol do interesse nacional, de
modo a não patrocinar o sectarismo regional.
No intuito de imprimir uniformidade à ação nacional dos partidos políticos,
foi introduzido o instituto da verticalização através da Resolução do TSE nº 20.993/02,
editada a pretexto de interpretar o art. 6º da Lei nº 9.504/97, interessando o disposto
pelo art. 4º, §1º:

Art. 4º É facultado aos partidos políticos, dentro da mesma circunscrição, celebrar coligações
para eleição majoritária, para proporcional, ou para ambas, podendo, neste último caso,

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
430 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

formar-se mais de uma coligação para a eleição proporcional entre os partidos políticos
que integram a coligação para o pleito majoritário.
§1º Os partidos políticos que lançarem, isoladamente ou em coligação, candidato à eleição
de presidente da República não poderão formar coligações para eleição de governador/a
de Estado ou do Distrito Federal, senador/a, deputado/a federal e deputado/a estadual
ou distrital com partido político que tenha, isoladamente ou em aliança diversa, lançado
candidato/a à eleição presidencial.

A busca da coerência partidária em plano nacional foi, contudo, eliminada pela


promulgação da Emenda Constitucional nº 52, que, revogando o contido na resolução,
deu ao art. 17, §1º, da CF a seguinte redação:

§1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna,
organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas
coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito
nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de
disciplina e fidelidade partidária.

Outro instituto que se fazia presente nas cartas do regime militar era a proibi­ção
de coligações, lida nos arts. 149, VIII, da Constituição de 1967, e 152, VII, da Emenda
Constitucional nº 1/69. Retorna agora, de forma parcial, na redação conferida pela EC nº
97/17 ao art. 17, §1º, proibindo a formação de coligações para as eleições proporcionais.
Essas vicissitudes, em idas e vindas entre institutos da ciência política e do direito
eleitoral, adotando ou descartando, por exemplo, a cláusula de barreira, endossando ou
repudiando a formação de coligações, apenas para as eleições proporcionais ou também
nas majoritárias, verticalizando-as ou não, demonstram não apenas a instabilidade do
modelo político brasileiro, experimental e empirista, com a criação de novas regras a
cada nova eleição, mas também a falta de costume democrático e a completa ausência
de consciência sobre a razão e a importância dos partidos políticos e seus programas.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

KNOERR, Fernando Gustavo. Mandato, autonomia partidária e representatividade política. In: FUX,
Luiz; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura (Coord.); PECCININ, Luiz
Eduardo (Org.). Direito Constitucional Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 415-430. (Tratado de
Direito Eleitoral, v. 1.) ISBN 978-85-450-0496-7.

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CAPÍTULO 6

A CRIAÇÃO DO DIREITO PELA JUSTIÇA ELEITORAL


E O PRINCÍPIO DA ANUALIDADE

ANDERSON SANT’ANA PEDRA

6.1 Introdução
A partir da concepção da força normativa da Constituição surge o ativismo judicial.
Tal comportamento está associado a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário
na concretização dos valores e fins constitucionais1 interferindo, inclusive, no espaço
de atuação política dos outros dois órgãos constitucionais de soberania2 com legitimidade
democrática ótima – o Legislativo e o Executivo. Atua então o Judiciário como um órgão
que também exerce uma parcela da competência de “criação do direito” com a edição
de enunciados normativos gerando uma tensão entre a esfera política e a esfera jurídica.
Assim, importante analisar se a Justiça Eleitoral,3 ao editar enunciados normativos
que substancialmente “criam o direito”, pois caracterizados com a generalidade e com
a abstração – função normativa, também deveria observar o princípio da anualidade
(anterioridade) eleitoral previsto no art. 16 da Constituição brasileira de 1988 (CRFB).4

1
BARROSO, Luís Roberto. O novo direito constitucional brasileiro: contribuições para a construção teórica e prática
da jurisdição constitucional no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 245-246. Ativismo judicial é uma expressão
cunhada nos Estados Unidos e que foi empregada, sobretudo, como rótulo para qualificar a atuação da Suprema
Corte durante os anos em que foi presidida por Earl Warrem, entre 1954 e 1969. Ao longo desse período inúmeras
práticas políticas nos Estados Unidos foram alteradas sem qualquer ato do Congresso ou do presidente, mas por
uma jurisprudência progressista em matérias de direitos fundamentais (BARROSO, Luís Roberto. O novo direito
constitucional brasileiro: contribuições para a construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil.
Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 244-245).
2
PEDRA, Anderson Sant’Ana. Por uma “separação de poderes” à brasileira: Constituição de 1988 e a teoria
tripartide de Montesquieu – uma conta que não fecha. Revista Interesse Público – IP, Belo Horizonte, ano 15, n. 78,
p. 117-141, mar./abr. 2013. Passim.
3
Neste artigo a expressão “Justiça Eleitoral” irá compreender a atuação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do
Supremo Tribunal Federal (STF) no exercício da função normativa, apesar de conhecermos o elenco trazido no art.
118 da CRFB quanto aos órgãos que integram a Justiça Eleitoral.
4
“Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando
à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência” (com redação dada pela Emenda Constitucional
nº 4/1993).

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
432 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

O problema a ser investigado é se as interpretações dadas pela Justiça Eleitoral


aos enunciados normativos constitucionais ou aos atos normativos primários, (art. 59 da
CRFB) exteriorizadas e estratificadas por meio de enunciados normativos com eficácia
erga omnes, podem, ou não, ser editadas e aplicadas sem observar o prazo fixado pelo
art. 16 da CRFB.
A Justiça Eleitoral tem uma competência normativa sui generis, notadamente
naquilo que foi atribuído ao TSE – editar resoluções a fim de “regulamentar” o disposto
na legislação,5 6 e responder às consultas que lhe forem formuladas em tese,7 sem olvidar
da possibilidade de edição de súmula vinculante8 e de outras decisões definitivas de
mérito do STF em sede de controle concentrado de constitucionalidade,9 que além da
eficácia erga omnes possui também efeito vinculante.
Tal contexto adquire maior importância e destaque quando a Justiça Eleitoral
busca imprimir eficácia a princípios constitucionais de (inerente) textura aberta e con­
cede interpretação que inova no ordenamento jurídico, ou seja, algumas decisões da
Justiça Eleitoral podem ocorrer a partir de uma interpretação que substancialmente
“cria o direito”, como nos casos em que se extrai novas normas de enunciados normativos
cons­ti­tucionais abertos (principiológicos).
Exemplo dessa “criação do direito” pela Justiça Eleitoral foi a interpretação dada
pelo TSE para a formação das alianças partidárias, impondo a “verticalização” a poucos
meses das eleições de 2002,10 numa clara “mutação constitucional”.11
Outro exemplo de “criação do direito” pelo TSE a partir de uma (re)interpretação
constitucional acerca dos partidos políticos foi a que reconheceu a “fidelidade partidária”
para que os partidos e as coligações partidárias conservassem o direito à vaga obtida
pelas eleições proporcionais.12

5
“Art. 1º Este código contém normas destinadas a assegurar a organização e o exercício de direitos políticos
precipuamente os de votar e ser votado. Parágrafo único. O Tribunal Superior Eleitoral expedirá instruções para
sua fiel execução” (Código Eleitoral – Lei nº 4.737/1965).
6
“Art. 105. Até o dia 5 de março do ano da eleição, o Tribunal Superior Eleitoral, atendendo ao caráter regula­
mentar e sem restringir direitos ou estabelecer sanções distintas das previstas nesta Lei, poderá expedir todas
as instru­ções necessárias para sua fiel execução, ouvidos, previamente, em audiência pública, os delegados
ou re­pre­sentantes dos partidos políticos” (Lei das Eleições – Lei nº 9.504/1997, com redação dada pela Lei
nº 12.034/2009).
7
“Art. 23. Compete, ainda, privativamente, ao Tribunal Superior: [...] XII – responder, sobre matéria eleitoral,
às consultas que lhe forem feitas em tese por autoridade com jurisdição federal ou órgão nacional de partido
político; [...]” (Código Eleitoral – Lei nº 4.737/1965).
8
“Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços
dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua
publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à
administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua
revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei” (CRFB, incluído pela EC nº 45/2004).
9
“Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
[...] §2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de
inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito
vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas
esferas federal, estadual e municipal” (CRFB, incluído pela EC nº 45/2004).
10
A verticalização surgiu com a Consulta nº 715 do TSE, que originou a Resolução nº 21.002/2002. Posteriormente tal
temática foi tratada pela Emenda Constitucional nº 52/2006 que também gerou discussão quanto à aplicabilidade
para as eleições de 2006.
11
No mesmo sentido: PEDRA, Adriano Sant’Ana. Mutação constitucional: interpretação evolutiva da Constituição
na democracia constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 153-155.
12
A “fidelidade partidária” surgiu com a Consulta TSE nº 1.398/2007 e foi tratada pela Resolução TSE nº 22.610/2007.
Atualmente a matéria está tratada no art. 22-A da Lei nº 9.096/1995 que foi incluído pela Lei nº 13.165/2015. Tal
matéria ainda teve uma norma temporária trazida pela Emenda Constitucional nº 91/2016.

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ANDERSON SANT’ANA PEDRA
A CRIAÇÃO DO DIREITO PELA JUSTIÇA ELEITORAL E O PRINCÍPIO DA ANUALIDADE
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Diante dessa possibilidade de “criação do direito” pela Justiça Eleitoral, necessário


analisar a (in)aplicação da norma que emana do art. 16 da CRFB, já que a ela objetiva
significar o princípio da segurança jurídica e a estabilidade do regime democrático no
processo eleitoral.

6.2 Segurança jurídica como finalidade do Estado


Vivemos em tempos de insegurança. No entanto, a segurança continua sendo não
apenas um objetivo, mas uma necessidade cada vez mais intensa dos homens. Discursos,
propostas, avisos sobre segurança, não provam senão o quanto de insegurança domina
nossos medos, receios e anseios.13 O Estado tem a sua razão de existir na necessidade de
realização permanente de certos fins essenciais da coletividade política. Mas para que
existe o Estado? Quais são os valores gerais a realizar pelo Estado?
Pois bem, o poder estatal deve manifestar-se, desde logo, e primariamente, como
norma jurídica, isto é, como preceitos gerais, uniformes, que assegurem estabilidade,
ordem e justiça nas relações humanas e na comunidade social.14
Caetano coloca a segurança como finalidade primeira do Estado, destacando
que a segurança não é só a organização da força posta ao serviço de interesses vitais: “é
também, por um lado, a garantia da estabilidade dos bens e, por outro, a da duração das
normas e da irrevogabilidade das decisões do Poder que importem justos interesses a
respeitar, quer dizer, a certeza”.15
Conforme bem salienta Recaséns Siches, o direito não surgiu na vida humana por
desejo de se render culto ou homenagem à ideia de justiça, mas sim para preencher uma
ineludível urgência de segurança e certeza na vida social – o direito é, assim, segurança.16
Na verdade, a segurança jurídica é valor que qualifica o direito, tanto que Vigo,
traz que a segurança jurídica não é um valor substantivo do direito, senão um valor
adjetivo.17
Perez Luño registra que “a segurança constitui um desejo arraigado na vida
anímica do homem, que sente horror ante a insegurança de sua existência, ante a
imprevisibilidade e a incerteza a que está submetido”.18
A ideia da separação de poderes como uma garantia da liberdade abre caminho,
de outra banda, para o princípio da legalidade, peça essencial de um Estado de Direito que
vê na submissão do poder estatal ao direito a melhor proteção contra o arbítrio, estabe­
lecendo dessa forma um “governo do direito e não um governo de homens” (government
of law and not a government of men).
Ao lado de ser uma garantia do indivíduo (art. 5º, inc. II da CRFB), o princípio da
legalidade também tem o propósito de alcançar segurança jurídica, pois as leis fixam e

13
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes (Org.). Constituição e segurança jurídica: direito adquirido, ato jurídico perfeito e
coisa julgada. Estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 9.
14
TEIXEIRA, José Horácio Meirelles. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 572.
15
CAETANO, Marcello. Manual de ciência política e direito constitucional. 6. ed. rev. e ampl. Coimbra: Almedina,
2003. p. 145. t. I. Junta-se à segurança as seguintes outras finalidades: justiça e bem-estar (CAETANO, Marcello.
Manual de ciência política e direito constitucional. 6. ed. rev. e ampl. Coimbra: Almedina, 2003. p. 145; 147. t. I).
16
RECASÉNS SICHES, Luis. Tratado general de filosofia del derecho. 3. ed. México: Porrua, 1965. p. 220-221.
17
VIGO, Rodolfo Luis. Los principios jurídicos: perspectiva jurisprudencial. Buenos Aires: Depalma, 2000. p. 59.
18
PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. La segurida juridica. 2. ed. Barcelona: Arie AS, 1994. p. 24.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
434 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

sustentam, de forma relativamente duradoura, os alicerces jurídicos em que se fixam


as relações sociais, assim o princípio da legalidade pode ser considerado também uma
garantia institucional de estabilidade das relações jurídicas e sociais.
Afirma-se que há segurança jurídica quando o sistema normativo foi regular­mente
estabelecido mediante enunciados normativos que por todos podem ser conhecidos e
que se aplicam a condutas posteriores, e que tais enunciados tenham sido ditados por
quem tem competência.

6.2.1 A incerteza no direito


A segurança jurídica não é buscada em uma dimensão absoluta face as limitações
inerentes ao homem, bem como a sua própria falibilidade.
É sabido que transcende os limites da capacidade do homem (legislador) prever
e elaborar todas as normas abstratas que regularão as condutas dos integrantes de
determinada sociedade.
Essa circunstância justifica a limitação da produção legislativa, bem como a conse­
quente existência de lacunas (omissão legislativa).
Além da omissão legislativa, tem-se também a existência de diplomas normativos
fartos de ambiguidades, incongruências e termos vagos, imprecisos ou obscuros.
Registra-se, contudo, que a utilização de enunciados normativos vagos, imprecisos
ou abertos permite que as normas que deles se extraem possam ser moldadas de acordo
com os valores de determinada sociedade, o que possibilita a atualização da norma
sem a necessária alteração do texto (enunciado) normativo – interpretação evolutiva.19
Não se pode também olvidar de que o desejo de segurança jurídica se contrapõe
a outros desejos de igual modo inerentes ao homem, quais sejam o desejo de evolução e
de aperfeiçoamento, de encontrar soluções rápidas para anseios antigos, urgindo então a
necessidade de o Judiciário também colaborar nessa “criação do direito”, atuando como
elemento integrador e complementar do enunciado (texto) normativo.
Indiscutível que a CRFB e as leis possuem termos vagos, imprecisos,
indeterminados, contudo, importa analisar se a Justiça Eleitoral ao aclarar tais textos,
suprindo ou acrescendo sentidos semânticos com eficácia erga omnes, deve, ou não,
observar o princípio da anualidade eleitoral de modo a homenagear o princípio da
segurança jurídica.

6.3 Princípio da anualidade eleitoral


6.3.1 Conceito, importância e objetivo
O princípio da anualidade (ou anterioridade) eleitoral está no art. 16 da Consti­
tuição brasileira de 1988 que prescreve que “[a] lei que alterar o processo eleitoral entrará
em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano
da data de sua vigência”.

19
O enunciado normativo contém elasticidade para corresponder às diferentes exigências que variam no tempo, e
pode produzir efeitos mesmo quando se alterarem os fatos e valores em razão dos quais surgiu, pois o enunciado
permanece em evolução, respondendo a novas necessidades, a novos problemas oriundos da mutação dos
tempos, aduzindo significações novas que o seu elaborador não poderia ter pressentido.

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ANDERSON SANT’ANA PEDRA
A CRIAÇÃO DO DIREITO PELA JUSTIÇA ELEITORAL E O PRINCÍPIO DA ANUALIDADE
435

A importância de tal princípio deve ser destacada inclusive a partir do ponto de


vista topográfico, já que o art. 16 encontra-se encartado no Título II da CRFB que cuida
“dos direitos e das garantias fundamentais”, ou seja, está-se tratando de um princípio
eleitoral que se presta, na essência, para tutelar o direito fundamental à democracia, e
uma democracia adjetivada pela estabilidade do e no processo eleitoral, daí a importância
desse princípio.
Mello destaca que tal princípio possui o escopo de evitar manobras que possam
beneficiar algum segmento e prejudicar qualquer dos envolvidos na disputa, impondo
“projeção no tempo de qualquer diploma legal que altere o processo eleitoral”.20
Na senda do que foi tratado no item anterior, o princípio da anualidade eleitoral
é um desdobramento do princípio da segurança jurídica, na qualidade de princípio
da confiança, adaptado à seara eleitoral a fim de promover a estabilidade do processo
eleitoral, apresentando-se como “medida saneadora e aperfeiçoadora do nosso processo
eleitoral”21 e da própria democracia.
A finalidade do princípio da anualidade eleitoral é impedir que sejam introduzidos
novos enunciados normativos que possam produzir alterações casuísticas no processo
eleitoral, de modo que possam desequilibrar a participação dos partidos políticos e
dos respectivos candidatos, influenciando no resultado das eleições,22 ou até mesmo
que “pretendam privilegiar determinados grupos políticos”.23 Enfim, o que almeja o
dispositivo é evitar a utilização abusiva ou casuística da legislação como mecanismo
de manipulação e de deformação do processo eleitoral.
Na ADI nº 3.345/DF restou ementado:

A norma consubstanciada no art. 16 da Constituição da República, que consagra o postulado


da anterioridade eleitoral (cujo precípuo destinatário é o Poder Legislativo), vincula-se,
em seu sentido teleológico, à finalidade ético-jurídica de obstar a deformação do processo
eleitoral mediante modificações que, casuisticamente introduzidas pelo Parlamento,
culminem por romper a necessária igualdade de participação dos que nele atuam como
protagonistas relevantes (partidos políticos e candidatos), vulnerando-lhes, com inovações,
abruptamente estabelecidas, a garantia básica de igual competitividade que deve sempre
prevalecer nas disputas eleitorais. Precedentes.24

Silva acentua que a “ratio legis está precisamente em evitar a alteração da regra do
jogo depois que o processo eleitoral tenha sido desencadeado – o que se dá, em geral,
dentro de um ano antes do pleito”.25
Pelo princípio da anualidade (anterioridade) eleitoral busca-se garantir a preser­
vação das regras do jogo eleitoral no entretempo que se entendeu salutar para manter
estável o processo eleitoral, sem surpresas nas regras que possam descalibrar o processo,

20
MELLO, Marco Aurélio. Comentários aos arts. 14 ao 16. In: AGRA, Walber de Moura; BONAVIDES, Paulo;
MIRANDA, Jorge (Coord.) Comentários à Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2009. p. 508.
21
BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 597. v. 2.
22
AGRA, Walber de Moura; VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Elementos de direito eleitoral. 2. ed. São Paulo: Saraiva,
2010. p. 68.
23
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada. São Paulo: Atlas, 2002. p. 592.
24
STF, Pleno. ADI nº 3.345/DF. Rel. Min. Celso de Mello, j. 25.8.2005. DJe, 19 ago. 2010. No mesmo sentido: STF,
Pleno. ADI nº 353/DF-MC. Rel. Min. Celso de Mello, j. 5.9.1990. DJ, 12 fev. 1993. p. 1.450.
25
SILVA, José Afonso da. Comentários contextual à Constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 234.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
436 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

comprometendo a igualdade de oportunidades e a segurança jurídica da democracia


representativa, afinal, tal regime político não tolera criações normativas casuísticas que
coloquem em xeque a harmonia do processo eleitoral.
Essa segurança jurídica deve evitar, inclusive, as chamadas “viragens jurispru­
denciais na interpretação dos preceitos constitucionais que dizem respeito aos direitos
políticos e ao processo eleitoral”, até porque, como será tratado, mudanças na juris­pru­
dência eleitoral têm efeitos normativos diretos sobre os pleitos eleitorais, com sérias
repercussões sobre os direitos fundamentais dos cidadãos (eleitores e candidatos) e
partidos políticos”,26 configurando-se o princípio da segurança jurídica numa acepção
de confiança à regra do jogo eleitoral, servindo o art. 16 da CRFB como uma espécie de
contenção à aplicabilidade de qualquer norma abstrata, genérica, inclusive aquelas
contidas em decisões da Justiça Eleitoral e que pretendam ser aplicadas imediatamente.

6.3.2 Espécie de direito fundamental


Os direitos políticos constituem o poder que os cidadãos ativos têm de participar
direta ou indiretamente das decisões do seu Estado. Os direitos políticos são direitos
públicos subjetivos que investem o indivíduo no status activae civitatis, constituídos de
instrumentos que objetivam disciplinar as formas de atuação da soberania popular,
permitindo o exercício da liberdade de participação nos negócios políticos do Estado.27
Em síntese, Tavares afirma que direito político “é o conjunto de normas que disciplinam
a intervenção, direta ou indireta, no poder”.28
Os direitos políticos estão consagrados como espécie de direitos humanos, possuindo,
inclusive, abrigo na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José
da Costa Rica).
Na lição de Pimenta Bueno, direitos políticos são:

prerrogativas, atributos, faculdades, ou poder de intervenção dos cidadãos ativos no


governo de seu país, intervenção direta ou indireta, mais ou menos ampla, segundo a
intensidade do gozo desses direitos. São o Jus Civitatis, os direitos cívicos, que se referem
ao Poder Público, que autorizam o cidadão ativo a participar na formação ou exercício da
autoridade nacional, a exercer o direito de vontade ou eleitor, o direito de deputado ou
senador, a ocupar cargos políticos e a manifestar suas opiniões sobre o governo do Estado.29

Na Constituição brasileira de 1988 os direitos políticos estão elencados no Capítulo


IV do Título II – “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, ou seja, os direitos políticos
na ordem constitucional brasileira são uma espécie de direito fundamental, decorrente,
como já visto, da segurança jurídica. Inconteste então tratar o princípio da anualidade
eleitoral como um direito humano-fundamental, sendo tal princípio uma garantia da
segurança jurídica e do devido processo legal eleitoral (art. 5º, caput e inc. LIV).

26
STF, Pleno. RE nº 637.485/RJ. Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 1º.8.2012. DJe, 20 maio 2013.
27
PEDRA, Anderson Sant’Ana; PEDRA, Adriano, Sant’Ana. A inelegibilidade como consequência da rejeição
das contas. In: AGRA, Walber de Moura; COÊLHO, Marcus Vinícius. Direito eleitoral e democracia: desafios e
perspectivas. Brasília: OAB/Conselho Federal, 2010. p. 10.
28
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 682.
29
BUENO, Pimenta. Direito público brasileiro e análise da Constituição do império. Rio de Janeiro: Nova Edição, 1958.
p. 459.

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ANDERSON SANT’ANA PEDRA
A CRIAÇÃO DO DIREITO PELA JUSTIÇA ELEITORAL E O PRINCÍPIO DA ANUALIDADE
437

O Min. Celso de Mello em seu voto na ADI nº 3.345/DF consignou que o princípio
da anualidade eleitoral representa verdadeira “garantia individual do cidadão-eleitor”,
assistindo-o com o “necessário grau de segurança e de certeza jurídicas contra alterações
abruptas das regras inerentes à disputa eleitoral”.30
Já na ADI nº 3.685/DF e no RE nº 633.703/MG, o STF consignou que o princípio da
anualidade eleitoral é fundamento da igualdade e da defesa das minorias, cuja participação
no processo político não deveria ficar submetida ao alvedrio das forças majoritárias.
Entendeu ainda o STF que o princípio da anualidade eleitoral insculpido no art. 16
da CRFB “representa garantia individual do cidadão-eleitor”, trazendo “elementos
que o caracterizam como uma garantia fundamental oponível até mesmo à atividade
do legislador constituinte derivado”, considerando-o como cláusula pétrea, afinal,
“estabelecem as garantias fundamentais para a efetividade dos direitos políticos”.31
Como bem assinala Vale, o “caráter fundamental dessa norma constitucional
[art. 16] para o sistema do direito eleitoral torna-a um princípio vinculante para toda a
atividade estatal, seja legislativa, executiva ou judicial”.32

6.3.3 Força normativa da Constituição


Entendido o princípio da anualidade eleitoral como espécie de direito fundamental,
calha agora analisar a força normativa que emana desse princípio.
O direito constitucional é também direito positivo. Nesse sentido, fala-se na
“Consti­tuição como norma”,33 na “força normativa da Constituição”34 e na Constituição
como fonte imediata de direito, devendo como tal ser reconhecida e utilizada para a
solução dos problemas que se apresentarem na sociedade, além de indispensável instru­
mento interpretativo e integrativo para todo o ordenamento jurídico.
Força normativa da Constituição ou normatividade da Constituição são expressões que
significam que a Constituição é uma lei vinculativa dotada de efetividade e aplicabili­dade.
A força normativa da Constituição visa exprimir, muito simplesmente, que a Constituição,
sendo uma lei, como lei deve ser aplicada. Afasta-se assim a tese generalizante aceita
nos fins do século XIX e nas primeiras décadas do século XX que atribuía à Constituição
um “valor declaratório”, “uma natureza de simples direção política”; um caráter pro­
gramático despido de força jurídica.35 Uma importante mudança de paradigma ao longo
do século XX foi, sem dúvida, a atribuição à norma constitucional do status de norma
jurídica.

30
STF, Pleno. ADI nº 3.345/DF. Rel. Min. Celso de Mello, j. 25.8.2005. DJe, 19 ago. 2010.
31
STF, Pleno. ADI nº 3.685/DF. Rel. Min. Ellen Gracie, j. 22.3.2006. DJ, 10 ago. 2009. p. 19; STF, Pleno. RE nº 633.703/
MG. Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 23.3.2011. DJe, 17 nov. 2011. No mesmo sentido: PEDRA, Adriano Sant’Ana.
Mutação constitucional: interpretação evolutiva da Constituição na democracia constitucional. 3. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 157-158.
32
VALE, André Rufino do. A garantia fundamental da anterioridade eleitoral: algumas reflexões em torno da
interpretação do art. 16 da Constituição. Revista Brasileira de Direito Eleitoral – RBDE, Belo Horizonte, ano 3, n. 4,
p. 11-38, jan./jun. 2011. p. 16.
33
GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional. 4. ed. Madrid: Civitas,
2006. p. 69-100.
34
HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris, 1991.
35
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2000.
p. 1115.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
438 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

A eficácia de uma Constituição dependerá não só da sua fidelidade aos valores


sociais e políticos consagrados pela sociedade, mas também – e principalmente – de uma
correta interpretação daquilo que o texto constitucional prescreve, sendo importante
então aqui provocar novamente: qual seria a abrangência da expressão lei no art. 16 da
CRFB? Estaria aí compreendido o exercício da função normativa pela Justiça Eleitoral?
Häberle bem destaca que “[o] Estado constitucional pretende que seus textos
sejam realizados, que se cumpram ‘socialmente’; ‘reivindica’ a realidade para si: sua
‘normatividade’ deve converter-se em ‘normalidade’”.36
Já Müller menciona que, como critério de aferição da interpretação da Constituição,
a força normativa da Constituição, ou seja, na solução de problemas de direito constitucional,
deve-se dar preferência aos pontos de vista que “promovam sob os respectivos
pressupostos a eficácia ótima da Constituição normativa”.37
A Constituição é norma que repercute sobre o direito ordinário, sem reciprocidade.
Projeta influência sobre os demais modelos jurídicos, mas não é influenciada por estes,
ou seja, as normas infraconstitucionais devem ser interpretadas a partir da Constituição,
com base nela, mas não o contrário, pois nunca o mundo da infraconstitucionalidade
poderá superar a força normativa que emerge da norma constitucional,38 assim, são as
normas que emanam do art. 16 da CRFB que devem irradiar sobre toda a ordem jurídica:
leis, emendas constitucionais, resoluções e instruções do TSE, súmulas vinculantes e
demais decisões do STF com eficácia erga omnes, e não o contrário!

6.3.4 Extensão da expressão “processo eleitoral”


A expressão “processo eleitoral” trazida pelo art. 16 da CRFB provoca inúmeras
controvérsias, podendo significar, a um só tempo, o exercício da relação processual,39
o complexo de atos relativo à realização as eleições representando todo o processo, ou até
mesmo representando uma ou algumas dessas fases.40
Entendemos que a expressão “processo eleitoral” trazida pelo art. 16 da CRFB
deve ser compreendida em sua acepção mais larga, englobando qualquer ato norma­
tivo que possa influenciar uma eleição para a escolha de agentes políticos, estando aí
compreendidos: o alistamento, a filiação partidária, a fixação de domicílio eleitoral,
as con­venções partidárias, as coligações, a apresentação de candidaturas com as

36
HÄBERLE, Peter. El Estado constitucional. Tradução de Héctor Fix-Fierro. Buenos Aires: Astrea, 2007. p. 230.
37
MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho de direito constitucional. 2. ed. rev. Tradução de Peter Naumann. São
Paulo: Max Limonad, 2000. p. 87.
38
PEDRA, Anderson Sant’Ana. O controle da proporcionalidade dos atos legislativos: a hermenêutica constitucional
como instrumento. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 182-183.
39
Na ADI nº 354/DF (STF, Pleno. Rel. Min. Octavio Galloti, j. 24.09.1990. DJ, 22 jun. 2001. p. 23), o Supremo entendeu
que a expressão “processo eleitoral” teria um significado “adjetivo”, posteriormente o Supremo entendeu que
a expressão “processo eleitoral” teria uma concepção mais alargada, compreendendo as fase “pré-eleitoral”,
“eleitoral” e “pós-eleitoral” (STF, Pleno. ADI nº 3.345/DF. Rel. Min. Celso de Mello, j. 25.8.2005. DJe, 19 ago. 2010;
STF, Pleno. ADI nº 3.685/DF. Rel. Min. Ellen Gracie, j. 22.3.2006. DJ, 10 ago. 2009. p. 19 e STF, Pleno. ADI nº 3.741/
DF. Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 6.8.2006. DJ, 23 fev. 2007. p. 16).
40
Para uma leitura complementar sobre a delimitação conceitual de “processo eleitoral”, recomenda-se a excelente
abordagem realizada por: JORGE, Flávio Cheim; LIBERATO, Ludgero; RODRIGUES, Marcelo Abelha. Curso
de direito eleitoral. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2017. p. 263-268; e também: VALE, André Rufino do. A garantia
fundamental da anterioridade eleitoral: algumas reflexões em torno da interpretação do art. 16 da Constituição.
Revista Brasileira de Direito Eleitoral – RBDE, Belo Horizonte, ano 3, n. 4, p. 11-38, jan./jun. 2011.

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ANDERSON SANT’ANA PEDRA
A CRIAÇÃO DO DIREITO PELA JUSTIÇA ELEITORAL E O PRINCÍPIO DA ANUALIDADE
439

situações de (in)elegibilidade,41 o registro, o sistema de votação, a organização das


seções eleitorais, a organização e realização do escrutínio, a apuração,42 a totalização,
os cálculos dos coeficientes eleitorais, a proclamação do resultado, a diplomação e até
mesmo o contencioso eleitoral.43
Não diferente, o Tribunal Superior Eleitoral entendeu que o processo eleitoral
consiste num conjunto de atos abrangendo a preparação e a realização das eleições,
incluindo a apuração dos votos e a diplomação dos eleitos.44
Para Cheim Jorge, Liberato e Rodrigues, a expressão “processo eleitoral” contida
no art. 16 da CRFB “foi tomada no sentido jurídico material [...], como, por exemplo,
o alistamento eleitoral, a filiação partidária, a convenção partidária o registro de
candidatura etc.”.45
O dispositivo constitucional não fez qualquer distinção sobre o conteúdo da
lei – se substantivo ou adjetivo – a expressão utilizada é genérica, alcançando qualquer
espécie normativa que afete um pleito eleitoral desde a sua fase de preparação, ainda
que intrapartidária.
Gomes assim definiu “processo eleitoral”:

Em sentido amplo, significa a complexa relação que se instaura entre candidatos, parti­
dos políticos, coligações, Justiça Eleitoral, Ministério Público e cidadãos com vistas à
concretização do sacrossanto direito de sufrágio e escolha dos ocupantes dos cargos
público-eletivos em disputa. O procedimento, aqui, reflete o intricado caminho que se
percorre para a realização das eleições, desde a realização das convenções pelas agremiações
políticas até a diplomação dos eleitos. Em geral, quando se fala em processo eleitoral, é a
este sentido que se quer aludir.46

41
Grande discussão teve a eficácia da Lei Complementar nº 135/2010 (“Lei da Ficha Limpa”) para as eleições
de 2010. Entenderam o TSE (Pleno. RO nº 64.580/PA. Rel. Min. Arnaldo Versiani, 1º.9.2010) e o STF (Pleno.
RE nº 631.102/PA. Rel. Min. Joaquim Barbosa. DJe, 17 jun. 2011) que as hipóteses de inelegibilidade incidem
imediatamente por tratar de direito material e não de “processo eleitoral”. Registra-se que a votação no STF
restou empatada em razão da composição da Corte que estava apenas com 10 ministros (Min. Eros Grau havia
se aposentado) e foi aplicada por analogia o art. 205, parágrafo único do Regimento Interno do STF para manter
a decisão impugnada proferida pelo TSE. Posteriormente o STF entendeu pela “inaplicabilidade das hipóteses
de inelegibilidade às eleições de 2010 e anteriores, bem como para os mandatos em curso, à luz do disposto
no art. 16 da Constituição” (STF, Pleno. ADC nº 30/DF e ADI nº 4.578/AC. Rel. Min. Luiz Fux. DJe, 28 jun. 2012
(julgamento conjunto)).
42
Em sentido contrário: na ADI nº 354/DF (STF, Pleno. Rel. Min. Octavio Galloti, j. 24.9.1990. DJ, 22 jun. 2001. p. 23),
decidiu-se que “não infringe o art. 16 da Constituição brasileira de 1988 (texto original) a cláusula de vigência
imediata constante do art. 2º da Lei nº 8.037, de 25 de maio de 1990, que introduziu na legislação eleitoral normas
relativas à apuração de votos”.
43
Cf. nesse sentido: COSTA, Tito. Recursos em matéria eleitoral. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992.
p. 23-24; RIBEIRO, Fávila. Comentários à Constituição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1988. 2. v. p. 273; GOMES, José
Jairo. Direito eleitoral. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 173; SILVA, José Afonso da. Comentários contextual à
Constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 234.
44
PROCESSO eleitoral. In: BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Thesaurus. 6. ed. Brasília: Secretaria de
Documentação e Informação, 2006. p. 196. Cf. no mesmo sentido: AGRA, Walber de Moura; VELLOSO, Carlos
Mário da Silva. Elementos de direito eleitoral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 343.
45
JORGE, Flávio Cheim; LIBERATO, Ludgero; RODRIGUES, Marcelo Abelha. Curso de direito eleitoral. 2. ed.
Salvador: JusPodivm, 2017. p. 45. Para os autores o princípio da anualidade incide sobre o processo eleitoral, mas
não sobre o direito processual civil e penal eleitoral, porque em relação às normas de direito processual, a lei nova
incide de forma imediata (JORGE, Flávio Cheim; LIBERATO, Ludgero; RODRIGUES, Marcelo Abelha. Curso de
direito eleitoral. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2017. p. 45).
46
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 172.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
440 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Na ADI nº 3.741/DF o STF decidiu que somente se cogita afronta ao princípio da


anualidade eleitoral quando da alteração legislativa no “processo eleitoral” ocorrer: i)
o rompimento da igualdade de participação dos partidos políticos e dos respectivos
candidatos no processo eleitoral; ii) a criação de deformação que afete a normalidade
das eleições; iii) a introdução de fator de perturbação do pleito; ou iv) a promoção de
alteração motivada por propósito casuístico.47

6.3.5 Validade, vigência e eficácia da norma processual eleitoral


Primeiramente cumpre registrar que o estudo da análise da norma jurídica no
tempo não é algo simples, inclusive em razão de utilização de significados diferentes
aos institutos que envolvem a temática.
Para Reale, a validade de um enunciado normativo pode ser vista sob três aspectos:
o da validade formal ou técnico-jurídica (vigência), o da validade social (eficácia ou
efetividade) e o da validade ética (fundamento). Afirma ainda o autor que, na terminologia
brasileira, vigência equivale à validade técnico-formal, enquanto que os juristas de língua
espanhola empregam aquele termo como sinônimo de eficácia.48
A análise da validade formal de uma lei é a verificação de se ela cumpriu todos os
requisitos que precedem a sua edição a fim de gerar uma melhor estabilização da ordem
jurídica. Como pressuposto da validade se tem a existência da lei.49
A norma que emana do art. 16 da CRFB diz respeito à eficácia da nova lei que
altera o processo eleitoral, pois determina que sua aplicação apenas ocorrerá nas eleições
que transcorrerem após um ano de sua vigência.
Eficácia é um conceito que diverge de vigência, pois a eficácia “é o poder da norma
jurídica de produzir efeito, em maior ou menor grau; concerne à possibilidade de
aplicação da norma, e não propriamente a sua efetividade”.50
Para o que aqui interessa, tomaremos como eficácia a aptidão da norma para
produzir efeitos no plano da concreção jurídica, no mundo dos fatos. A norma pode
ser eficaz porque está sendo observada por todos de forma espontânea, ou porque é
aplicada por quem de direito.51
O entretempo verificado entre a “publicação da lei” e a sua “efetiva entrada em
vigor”, recebe, em linguagem jurídica, a denominação de vacatio legis,52 sendo que esse
intervalo temporal se justifica por dupla razão: i) porque permite que o novel enun­
ciado normativo seja mais e melhor conhecido; e ii) proporciona às autoridades estatais
incumbidas de aplicar as normas que dali emanam e aos cidadãos que por elas serão
atingidos a possibilidade de se prepararem e/ou adequarem para a sua incidência.

47
STF, Pleno. ADI nº 3.741/DF. Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 6.8.2006. DJ, 23 fev. 2007. p. 16.
48
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. 9 tir. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 105.
49
Direito vigente é o enunciado normativo promulgado e publicado de acordo com o procedimento estabelecido pela
ordem jurídica, para entrar em vigor em momento determinado. A vigência é a exigibilidade do comportamento
(modal de conduta) prescrito pela lei.
50
FERREIRA, Pinto. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 23.
51
Cf. Nesse sentido: MACHADO, Hugo Brito. Vigência e eficácia da lei. Revista dos Tribunais, São Paulo, jul. 1991;
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 1018.
52
RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 325.

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ANDERSON SANT’ANA PEDRA
A CRIAÇÃO DO DIREITO PELA JUSTIÇA ELEITORAL E O PRINCÍPIO DA ANUALIDADE
441

O art. 16 da CRFB não prevê uma hipótese de vacatio legis53 propriamente dita,54
isso porque o dispositivo constitucional prescreve que a lei que disciplinar o processo
eleitoral entrará em vigor imediatamente, apenas não será aplicada à eleição que ocorrer
até um ano da data da sua vigência.
De acordo com o dispositivo constitucional, a lei que alterar o processo eleitoral
entrará em vigor na data da sua publicação, mas não terá eficácia na eleição que vier a
ocorrer até um ano de sua vigência. Tratar-se-á de uma lei vigente, mas não eficaz, sem
aplicabilidade, pois o art. 16 da CRFB exerce uma ação paralisante, um congelamento
sobre a eficácia da norma, projetando no tempo a eficácia de qualquer ato normativo
que inove o processo eleitoral.

6.4 Criação do direito pela Justiça Eleitoral


6.4.1 Considerações iniciais
O presente artigo está a analisar as interpretações realizadas pela Justiça Eleitoral
sobre a ordem jurídica posta e exteriorizadas por meio de enunciados normativos com
eficácia erga omnes à luz do princípio da anualidade eleitoral.
Como já dito, a Justiça Eleitoral tem uma competência normativa sui generis,
notadamente naquilo que foi atribuído ao TSE – editar resoluções e responder a consultas,
além da competência decisória do STF com eficácia erga omnes e efeito vinculante.
A priori, tais decisões da Justiça Eleitoral deveriam ser secudum legem ou praeter
legem e jamais contra legem, tendo inclusive o art. 105, caput, da Lei das Eleições prescrito
que os atos normativos editados pelo TSE deverão atender “ao caráter regulamentar e
sem restringir direitos ou estabelecer sanções distintas das previstas nesta lei”, devendo
expedi-los apenas para fiel execução da lei.
Contudo, quiçá na intenção de decidir de acordo com o enunciado normativo
citado anteriormente, mas interpretando conceitos jurídicos indeterminados, a Justiça
Eleitoral acaba por inovar no ordenamento jurídico escudada no movediço fundamento
da “constitucionalização do direito” que muitas das vezes é utilizado como um salvo
conduto para as decisões do Judiciário brasileiro.
Pois bem, as decisões da Justiça Eleitoral com eficácia erga omnes não têm natureza
jurisdicional,55 sendo ato normativo em tese, sem efeitos concretos que, substancialmente,

53
Anotam Agra e Velloso: “Vacatio legis é o período que vai da publicação até a possibilidade de produção dos
efeitos de determinada lei. Quando houver omissão, no diploma legal, da data para a produção de efeitos, nos
limites do território nacional, o art. 1º, caput, da Lei de Introdução do Código Civil fala em um prazo de 45 dias.
Para a lei eleitoral não existe vacatio legis, entrando em vigor na data em que foi publicada. É o único caso expresso
na Constituição Federal de lei que começa a vigorar imediatamente, na data de sua publicação” (AGRA, Walber
de Moura; VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Elementos de direito eleitoral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 68).
54
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada. São Paulo: Atlas, 2002. p. 592.
55
No REspe nº 20.680/PR, de 27.11.2012 o TSE entendeu que a resposta dada em consulta em matéria eleitoral
“não tem natureza jurisdicional”, sendo “ato normativo em tese sem efeitos concretos por se tratar de orientação
sem força executiva com referência a situação jurídica de qualquer pessoa em particular”. No mesmo sentido:
STF, Pleno. RMS nº 21.185/DF. Rel. Min. Moreira Alves, DJ, 22 fev. 1991. p. 1259; TSE, Pleno. AgR-MS nº 3.710/
DF. Rel. Min. Carlos Eduardo Caputo Bastos. DJ, 16 jun. 2008. p. 27; STF, Pleno. MS nº 26.604/DF. Rel. Min.
Cármen Lúcia. DJe, 2 out. 2008: “3. Resposta do TSE a consulta eleitoral não tem natureza jurisdicional nem efeito
vinculante. [...]”. Em sentido contrário entendendo que as “Resoluções [...] do TSE, em respostas a consultas, [...]
não possuem a natureza de atos normativos, nem caráter vinculativo” (STF, Pleno. ADI nº 1.805/DF MC. Rel.
Min. Néri da Silveira, j. 26.3.1998. DJ, 14 nov. 2003. p. 11).

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
442 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

podem “criar o direito”, inovando na ordem jurídica, mesmo que com o volúvel
argumento de “estar apenas” interpretando normas principiológicas ou conceitos
jurídicos indeterminados já prescritos na lei stricto sensu ou na Constituição.
Não diferente de nenhuma outra matéria, a produção legislativa eleitoral
reali­zada pelo Congresso Nacional “deixa sempre uma substanciosa margem de
complementariedade afeta ao poder regulamentar do Tribunal Superior Eleitoral”,56
que, além de exercer a necessária autolimitação, deve também observar as normas
principiológicas que emanam da Constituição em razão da sua força normativa, inclusive,
o princípio da anualidade eleitoral.
Essa produção legislativa pelo TSE pode ocorrer por meio das resoluções ou
instruções que se classificam como: i) definitivas ou permanentes: quando editam normas
aplicáveis a todas as eleições; e ii) temporárias ou específicas: quando editam normas
aplicáveis a determinada eleição.
A doutrina considera, acertadamente, tais decisões da Justiça Eleitoral como
“atos [que] apresentam força de lei, embora não possam contrariá-la”, classificando-as
como fonte formal estatal do direito eleitoral, as quais todos devem seguir – princípio da
generalidade.57
Juntam-se às regulamentações do TSE as súmulas vinculantes58 e as decisões em
sede de controle de constitucionalidade pelo STF – todas com eficácia erga omnes que
se apresentam, substancialmente, como fonte de direito, estando aí a Justiça Eleitoral
exercendo uma função normativa e não sua tradicional função jurisdicional.
As fontes do direito, para a teoria kelseniana, devem ser identificadas pelas normas
do próprio ordenamento jurídico (as normas sobre produção do direito).
F. Callejón leciona que o essencial na caracterização de uma fonte do direito está
em determinar se o enunciado normativo tem capacidade para gerar eficácia erga omnes,
ou seja, capacidade para alcançar todos os sujeitos de um ordenamento jurídico –59 que
é o caso das decisões da Justiça Eleitoral aqui enteladas.
A eficácia erga omnes é própria das leis e dos atos normativos em geral. Assim, a
generalidade e a abstração constituem apanágio dos enunciados normativos com eficácia
erga omnes.
O direito não mais se identifica exclusivamente com a lei, não se podendo assim
pretender restringir o caráter geral, impessoal e obrigatório apenas à lei.60
Negar a eficácia erga omnes de determinadas decisões da Justiça Eleitoral e seus
efeitos práticos na ordem jurídica sob o argumento de que a contenção eficacial trazida
pelo art. 16 da CRFB se restringiria apenas à “lei” é reduzir o conceito de lei à lei formal,
elaborado pelo Legislativo – isso é inadmissível, pois ofende frontalmente a concepção
da segurança jurídica.

56
RAMAYANA, Marcos. Direito eleitoral. 12. ed. Niterói: Impetus, 2011. p. 132.
57
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 18.
58
Súmula Vinculante nº 18: “A dissolução da sociedade ou do vínculo conjugal, no curso do mandato, não afasta a
inelegibilidade prevista no §7º do artigo 14 da Constituição Federal”.
59
BALAGUER CALLEJÓN, Francisco. Fuentes de derecho: I. Principios del ordenamiento constitucional. Madrid:
Tecnos, 1991. p. 65.
60
PEDRA, Anderson Sant’Ana. A jurisdição constitucional e a criação do direito na atualidade: condições e limites. Belo
Horizonte: Fórum, 2017. p. 138.

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ANDERSON SANT’ANA PEDRA
A CRIAÇÃO DO DIREITO PELA JUSTIÇA ELEITORAL E O PRINCÍPIO DA ANUALIDADE
443

As decisões do Judiciário, incluindo aí as da Justiça Eleitoral, também podem se


apresentar como normas de produção jurídica (função normativa), ou seja, decisões que
produzem o direito ou que interpretam as normas que produzem o direito; razão pela
qual devem também observar o princípio da anualidade eleitoral.

6.4.2 Função interpretativa da Justiça Eleitoral


Não se deve esquecer que o exercício da função interpretativa é constante na atuação
da Justiça Eleitoral, já que no exercício de suas atribuições é imprescindível a definição
interpretativa dos enunciados normativos constitucionais e legais postos em análise.
Trata-se de abordagem que gera divergência de entendimento: i) a Justiça Eleitoral
tem legitimidade para atualizar o texto normativo (constitucional ou legal) mediante
interpretação; e ii) falece tal legitimidade à Justiça Eleitoral, já que seus integrantes não
são representantes eleitos pela maioria.
À margem dessa discussão, a função interpretativa que aqui se está a tratar não
é aquela contida em toda e qualquer decisão judicial que “cria o direito”, no caso em
concreto, já que, conforme já balizado, está-se aqui a enfrentar a “função legislativa”
exercida pela Justiça Eleitoral que edita enunciados normativos genéricos e abstratos
(resoluções, súmulas vinculantes ou teses de repercussão geral) com eficácia erga omnes.
Feitas essas considerações, deve-se destacar para o que interessa no presente
artigo que quando a Justiça Eleitoral concretiza conceitos fluidos e/ou polissêmicos da
Constituição ou da legislação, atua, nesse sentido, politicamente, havendo aí, inques­
tio­navelmente, uma boa carga de criação de direito, consoante destaca Schneider:
“Conhe­cimento metodológico mais recentes indicam, ademais, a ideia, todavia posta
em dúvida, de que entre interpretação e aperfeiçoamento do direito, entre aplicação e
criação do direito, não existem diferenças de princípio, mas uma comunicação fluida”.61
Cappelletti também afirma que “não existe clara oposição entre interpretação e
criação do direito”.62
A função interpretativa, em maior ou menor intensidade, será sempre utilizada pela
Justiça Eleitoral, haja vista que o exercício de sua competência requer a prévia análise
dos enunciados normativos que compõem a ordem jurídica eleitoral, exigindo assim a
interpretação necessária a fim de se alcançar a precisa definição da norma que se extrai
dos enunciados normativos, afinal, norma e enunciado normativo (ou texto normativo) não
se confundem.63

61
SCHNEIDER, Hans-Peter. Democracia y Constitución. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991. p. 199.
62
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris, 1999. p. 23. Afirma ainda o autor: “O verdadeiro problema, portanto não é o da clara oposição,
na realidade inexistente, entre os conceitos de interpretação e criação do direito. O verdadeiro problema é outro,
ou seja, o do grau de criatividade e dos modos, limites e aceitabilidade da criação do direito por obra dos tribunais
judiciários” (CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999. p. 21).
63
O enunciado normativo corresponde ao conjunto de palavras, de signos linguísticos que, devidamente
concatenados, formam um dispositivo legal ou constitucional. Já a norma corresponde ao comando que se extrai
do(s) enunciado(s) normativo(s). Uma norma pode ser fundamentada em um ou mais enunciados normativos
trazidos pelo ordenamento jurídico, e não deste ou daquele enunciado normativo de forma específica. Nesse
sentido: LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 1997. p. 270; GUASTINI, Riccardo. Das fontes às normas. Tradução de Edison Bini. São Paulo:
Quartier Latin, 2005. p. 24-25.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
444 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

6.4.3 Estado constitucional e função legislativa


A relação entre a clássica doutrina da separação de poderes e a Constituição, no
final do século XIX, transcorria sem maiores atritos. Contudo, no decorrer do século XX,
com a ampliação do conteúdo e da eficácia da Constituição, notadamente em razão da
força normativa da Constituição (cf. item 3.3), as relações entre a Constituição e a lei, o
Judiciário e o Legislativo, forçaram uma revisitação da doutrina da separação de poderes
e a da sua interface com a Constituição.64
O Judiciário, incluindo-se aí a Justiça Eleitoral, vem ao longo do tempo colacio­
nando novas funções além da de simplesmente dizer o direito no caso concreto, exercendo
também uma “função legislativa”, editando verdadeiros enunciados normativos com
eficácia erga omnes.
Esse comportamento do Judiciário já era destacado por Kelsen que, por influência
da common law anglo-americana, admitiu que os precedentes judiciais seriam uma espécie
de legislação política dos Tribunais Superiores, asseverando inclusive que tais decisões
poderiam se configurar em normas gerais, já que “a decisão judicial cria o chamado
precedente judicial, quer dizer: quando a decisão judicial do caso concreto é vinculante
para a decisão de casos idênticos”.65
Assentadas tais premissas, é momento de analisar a função legislativa e o seu
exercício pelos órgãos estatais.
Em todas as sociedades políticas a problemática foi e é colocada em torno da
com­petência para ditar comandos gerais e abstratos (função legislativa lato sensu) e a
cláusula da separação de poderes.
É neste panorama que cabe agora verificar o que caracteriza a “função legislativa”
para então analisar se algumas das funções exercidas pela Justiça Eleitoral (TSE ou STF)
possuem, ou não, tais características. Antes, contudo, importa aqui fazer um brevíssimo
retrospecto quanto à ideia de lei e de função legislativa.
A função legislativa consiste evidentemente na criação das leis, mas o conteúdo
dessa função dependerá da concepção que se faz de lei. Assim, é necessário trazer duas
concepções ou definições do que venha a ser lei.
A lei, então, pode ser objeto de uma definição material: chamar-se-á lei todo
enunciado cujo conteúdo apresenta como características a generalidade e a obriga­
toriedade, ou, então, a lei poderá ser objeto de uma definição formal (ou orgânica):
chamar-se-á lei todo enunciado que foi posto por determinada forma, por exemplo,
pelo Legislativo.66
Essa tentativa de concepção do que vem a ser lei e função legislativa se mostra
ineficiente, já que o Estado produz enunciados normativos que materialmente se equi­
valem às leis, e não são leis, e por outra percepção o Legislativo também produz outros
atos que não são leis.

64
Cf. a respeito: PEDRA, Anderson Sant’Ana. Por uma “separação de poderes” à brasileira: Constituição de 1988 e
a teoria tripartide de Montesquieu – uma conta que não fecha. Revista Interesse Público – IP, Belo Horizonte, ano
15, n. 78, p. 117-141, mar./abr. 2013.
65
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
p. 277-278.
66
PEDRA, Anderson Sant’Ana. A jurisdição constitucional e a criação do direito na atualidade: condições e limites. Belo
Horizonte: Fórum, 2017. p. 83.

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ANDERSON SANT’ANA PEDRA
A CRIAÇÃO DO DIREITO PELA JUSTIÇA ELEITORAL E O PRINCÍPIO DA ANUALIDADE
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A ideia de lei e, por conseguinte, de função legislativa, foi concebida na época do


Estado legalista de Direito em que a lei representava a vontade geral ou a razão,67 trazendo
a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, em seu art. 6º que “[a] lei é
a expressão da vontade geral. [...]”. Talvez seja essa a justificativa pelo apego tão forte à
expressão lei e, por consectário, à expressão legislativa, valendo registrar, ainda, que lei
e democracia são institutos com íntima conexão, vez que se considera que é por meio da
primeira que a segunda se manifesta.
A identificação da “vontade geral” com o Legislativo trouxe como consequência
a centralização do poder político neste órgão, reduzindo todo o fenômeno jurídico às
leis editadas pelo legislador, as quais deveriam ser aplicadas corretamente pelos demais
agentes estatais, inclusive pelos juízes que deveriam atuar meramente como la bouche
qui prononce les paroles de la loi (“a boca que pronuncia as palavras da lei”).
O império da lei constituiu, durante um bom tempo, forte óbice à implementação
de controle de constitucionalidade, bem como o exercício de qualquer função pelo
Judiciário que não a julgar – “dizer o direito” no caso concreto.
Com a passagem do Estado legalista para o Estado constitucional ocorreu uma
alteração no eixo do poder com a expansão da Justiça Constitucional. Tal passagem
pressupõe a afirmação do caráter normativo da Constituição, que passou a integrar
um plano de juridicidade superior e vinculante para todos os órgãos constitucionais de
soberania, inclusive o Legislativo, passando então a Constituição a ter um significado
essencial para a limitação do poder do legislador, afinal, este também poderia se
apresentar como um inimigo da liberdade.68
Com a lei perdendo seu caráter sagrado e com as “intensas mudanças experi­
mentadas pelo Estado no último século [que] contribuíram sobremaneira para o avanço
das assim denominadas crises da lei, do direito e do parlamento”, ocorreu um “fenômeno
comum a todo o ocidente: a descentralização da função legiferante.69
Como bem anota Moncada, após a “crise da lei”, a “lei parlamentar” deixou de ser
o centro da ordem jurídica, passando os demais poderes a serem beneficiados por amplas
capacidades normativas que deslocam o peso da produção legislativa a seu favor.70

6.4.4 Função normativa da Justiça Eleitoral


Feito esse brevíssimo retrospecto, tem-se atualmente a Justiça Eleitoral (TSE e
STF) exercendo inquestionavelmente também uma função legislativa (lato sensu) eleitoral
nesse novo constitucionalismo, que aqui intitulamos de função normativa.

67
ROUSSEAU, J. J. Do contrato social. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
68
PEDRA, Anderson Sant’Ana. A jurisdição constitucional e a criação do direito na atualidade: condições e limites. Belo
Horizonte: Fórum, 2017. p. 86. Cf. ainda: CAPPELLETTI, Mauro. Repudiando Montesquieu? A expansão e a
legitimidade da “justiça constitucional”. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 99, n. 366, p. 127-150, mar./abr. 2003.
p. 138.
69
CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000. p. 51; 53. Outros fatores que contribuíram para a crise do parlamento, além da dificuldade
de se precisar a “vontade geral”, foram a “emergência da sociedade técnica” e a “inflação legislativa”. Registra
ainda Clève que ocorre a “descentralização da função legislativa quando o Judiciário, por força de autorização
do parlamento ou de previsão constitucional, elabora normas jurídicas” (CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade
legislativa do Poder Executivo. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 52-61; 84).
70
MONCADA, Luís S. Cabral de. Ensaio sobre a lei. Coimbra: Coimbra Editora, 2002. p. 95-96.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
446 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Apontando os traços mais significativos desse novo constitucionalismo, lecionam


Mendes, Coelho e Branco:

Como conseqüência da supremacia e da aplicabilidade direta e imediata dos preceitos


constitucionais, tem-se a segunda característica desse novo constitucionalismo – mais
juízes do que legisladores –, a sinalizar para o reconhecimento dos julgadores como legítimos
criadores do direito, e não como simples reveladores de uma suposta e indefinível vontade
da lei ou do legislador, que enquanto tais, obviamente não resolveriam os problemas
suscitados pela convivência humana.71

Contudo, calha analisar se a expressão “função legislativa” pode ser empregada


quando outro órgão, que não o Legislativo, edita enunciados normativos gerais (genera­
lidade pelo destinatário – em oposição à individualidade) e abstratos (em oposição ao
concreto), ou seja, com eficácia erga omnes.
Deve-se perscrutar ainda qual(is) o(s) limite(s) conceituais da expressão “função
legislativa” a fim de saber no exercício de quais funções a atuação da Justiça Eleitoral
se confundirá, ou não, com a do legislador.
Essa distinção é importante, pois a função legislativa e a lei sempre foram estudadas
muito de perto, alguns afirmando que a função legislativa stricto sensu seria exercida
por meio de lei e a função legislativa que não fosse por meio de lei seria uma função
legislativa lato sensu.
Nesse sentido, Moncada observa que “a teoria da legislação tem a lei como objecto
principal de estudo”,72 e que a generalidade e a abstração sempre permaneceram como
critério material da lei.73
Caetano define a função legislativa como “a actividade pela qual o Estado cria o
seu Direito positivo, mediante a imposição de regras gerais de conduta social”.74
Observe que o professor lusitano não afirma que a função legislativa é a atividade
do Parlamento ou do Legislativo, mas sim do “Estado” que tem por objeto direto e ime­
diato estatuir enunciados normativos gerais e impessoais.
De forma semelhante, Llorente assinala que a expressão “criação do Direito”
“equivale ao estabelecimento de normas jurídicas, isto é, de preceitos dotados de eficácia
erga omnes”.75
Kelsen pontua que a “diferença entre função jurisdicional e função legislativa consiste,
antes de mais nada, em que esta cria normas gerais, enquanto aquela cria unicamente
normas individuais”.76

71
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito
constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 120.
72
MONCADA, Luís S. Cabral de. Contributo para uma teoria da legislação. In: MONCADA, Luís S. Cabral de.
Estudos de direito público. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. p. 251.
73
MONCADA, Luís S. Cabral de. Ensaio sobre a lei. Coimbra: Coimbra Editora, 2002. p. 83.
74
CAETANO, Marcello. Manual de ciência política e direito constitucional. 6. ed. rev. e ampl. Coimbra: Almedina,
2003. p. 158. t. I.
75
LLORENTE, Francisco Rubio. La forma del poder: estudios sobre la Constitución. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1993. p. 497.
76
KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. Tradução de Alexandre Krug, Eduardo Brandão e Maria Ermantina
Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 151.

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ANDERSON SANT’ANA PEDRA
A CRIAÇÃO DO DIREITO PELA JUSTIÇA ELEITORAL E O PRINCÍPIO DA ANUALIDADE
447

Para Bittencourt, a “interpretação é parte do processo legislativo”, já que quando


“a lei é omissa, ou silencia, o intérprete, ao suprir-lhe as lacunas, não está propriamente
‘interpretando’, mas, em verdade, outra coisa não faz senão legislar”.77
Pode-se afirmar, então, que muito embora o ato típico da função legislativa seja a
lei, a definição de função legislativa não se prende a esta espécie, sendo mais ampla ao
compreender a criação de enunciados normativos abstratos e gerais que objetivam a
regulamentação de determinadas relações e que vinculam os demais órgãos estatais e a
sociedade como um todo, desde que firmadas por quem detém competência decorrente
de previsão constitucional.
Deve-se consignar que o Supremo Tribunal Federal brasileiro, apesar de exercer
a função legislativa lato sensu, afirma que ao Judiciário não cabe o exercício da função
legislativa.
Tem-se então que a função estatal aqui tratada compreende a atividade da Justiça
Eleitoral que inova o ordenamento jurídico, ou seja, que traz nova norma jurídica a partir,
até mesmo, de um antigo enunciado normativo –78 função normativa.
Não se nega que o ato típico produzido pela função legislativa é a lei. Contudo,
qualquer órgão estatal que possuir competência para produzir enunciados normativos
abstratos e genéricos, e que devem ser observados pelos demais órgãos estatais e pela
sociedade, estará no exercício da função legislativa lato sensu, mas que aqui será tratado
como função normativa.
Frise-se que se deixará à margem da análise deste estudo a ideia de que toda
decisão judicial “cria o direito” no caso em concreto (“lei” para o caso em concreto),
afinal, é possível afirmar que a norma jurídica é norma interpretada e que, nesse sentido,
a atividade jurisdicional seria sempre normativa, na sua dimensão hermenêutica.
Para o que aqui interessa, a função legislativa lato sensu (ou função normativa) exer­
cida pela Justiça Eleitoral que ora se enfoca é aquela genérica e abstrata que se corpo­ri­fica
com a elaboração de enunciados normativos com alcance erga omnes (normação positiva),
em decorrência da exegese dos enunciados normativos (constitucionais ou legais).
Nesse sentido, inclusive, ementou o STF:

Não se pode deixar de considerar o peculiar caráter normativo dos atos judiciais ema­
nados do Tribunal Superior Eleitoral, que regem todo o processo eleitoral. Mudanças na
jurisprudência eleitoral, portanto, têm efeitos normativos diretos sobre os pleitos eleitorais,
com sérias repercussões sobre os direitos fundamentais dos cidadãos (eleitores e candidatos)
e partidos políticos.79

77
BITTENCOURT. C. A. Lúcio. A interpretação como parte integrante do processo legislativo. Revista Forense Co-
memorativa – 100 anos, Rio de Janeiro, t. 1, p. 55-68, 2005. p. 61; 67. Continua o autor: “Não se argumente que o
intér­prete não cria a lei, porque a sua opinião está presa a um preceito, do qual dimana e a cujo espírito se deve
limitar e circunscrever. A isso objetaremos que também o legislador não cria o direito, mas apenas o fotografa
na rea­lidade social, para colocar-lhe a moldura da lei” (BITTENCOURT. C. A. Lúcio. A interpretação como parte
inte­grante do processo legislativo. Revista Forense Comemorativa – 100 anos, Rio de Janeiro, t. 1, p. 55-68, 2005. p. 67).
78
O enunciado normativo corresponde ao conjunto de palavras, de signos linguísticos que, devidamente
concatenados, formam um dispositivo legal ou constitucional. Já a norma corresponde ao comando que se extrai
do(s) enunciado(s) normativo(s). Uma norma pode ser fundamentada em um ou mais enunciados normativos
trazidos pelo ordenamento jurídico, e não deste ou daquele enunciado normativo de forma específica. Nesse
sentido: LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 1997. p. 270; GUASTINI, Riccardo. Das fontes às normas. Tradução de Edison Bini. São Paulo:
Quartier Latin, 2005. p. 24-25.
79
STF, Pleno. RE nº 637.485/RJ. Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 1º.8.2012. DJe, 20 maio 2013.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
448 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Registra-se que a diferença entre a função legislativa implementada pelo Legislativo


e pelo constituinte derivado e a função normativa realizada pela Justiça Eleitoral é a de
que aqueles produzem enunciados normativos para regular a vida em sociedade com
uma maior liberdade de atuação; enquanto a Justiça Eleitoral, quando exerce a função
normativa, está objetivando exclusivamente defender e efetivar a Constituição – este
deve ser o motivo-finalidade do exercício da função normativa pela Justiça Eleitoral,
diferente do Legislativo e do constituinte derivado, cuja função de legislar não possui
por finalidade exclusiva efetivar ou defender a Constituição.
Tem-se então a utilização da expressão “função normativa” a fim de abranger
todas as situações em que a Justiça Eleitoral vier a atuar emanando normas gerais e
abstratas com eficácia erga omnes.
Não se adota a expressão “legislador positivo” ou “função legislativa lato sensu”,
pois as decisões e os atos normativos da Justiça Eleitoral podem transcender em muito
a competência do “simples legislador”. A utilização de qualquer rótulo com a expressão
“legislador positivo” ou “função legislativa” poderia contaminar e/ou aprisionar a
competência de normação positiva atribuída à Justiça Eleitoral.

6.5 Considerações finais


De uma vez por todas: a lei não é mais a única e exclusiva fonte do direito e, assim,
não é mais o Legislativo o órgão constitucional de soberania detentor do monopólio da
produção normativa (“criação do direito”) caracterizada pela generalidade e abstração.
Não se está aqui a negar que o Legislativo é o órgão, estrutural e funcionalmente,
mais adequado (conforme a evolução e as vicissitudes políticas) para o exercício da função
legislativa, afinal, seu papel funda-se, simultaneamente na ideia: i) (democrática) de que
a lei, dirigida a todo o povo, deve ser votada pelos seus representantes eleitos; ii) (liberal)
do debate e do compromisso, em que, se a racionalidade ao cabo não consegue prevalecer,
pelo menos é posta à clara luz e iii) (pluralista) de que uma assembleia representativa de
opiniões e interesses diversos é mais apta para tomar as grandes deliberações (legislativas
e também políticas) do que qualquer outro órgão constitucional de soberania.80
Contudo, não se pode negar o exercício da função normativa pela Justiça Eleitoral
na edição de verdadeiros enunciados normativos gerais e abstratos que, por consectário
lógico, possuem eficácia erga omnes.
Tem-se então que o princípio da anualidade (anterioridade) eleitoral trazido pelo
art. 16 da CRFB deve espraiar sua norma não apenas para atingir a produção legislativa
advinda do parlamento (legislação infraconstitucional ou de emendas constitucionais),81
mas também a “criação do direito” realizada pela Justiça Eleitoral por meio da função
normativa realizada pelo TSE ou pelo STF.
Nesse sentido, inclusive, vem se posicionando o STF em sede de repercussão geral
com a seguinte tese: “as decisões do Tribunal Superior Eleitoral que, no curso do pleito
eleitoral ou logo após o seu encerramento, impliquem mudança de jurisprudência, não

80
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. p. 155. t. 5.
81
STF, Pleno. ADI nº 3.685/DF. Rel. Min. Ellen Gracie, j. 22.3.2006. DJ, 10 ago. 2009. p. 19 e STF, Pleno. ADI nº 4.307/
DF. Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 11.4.2013. DJe, 30 set. 2013.

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ANDERSON SANT’ANA PEDRA
A CRIAÇÃO DO DIREITO PELA JUSTIÇA ELEITORAL E O PRINCÍPIO DA ANUALIDADE
449

têm aplicabilidade imediata ao caso concreto e somente terão eficácia sobre outros casos
no pleito eleitoral posterior”.82
Em sede de decisão monocrática, o Min. Celso de Mello consignou que a incidência
da cláusula de anterioridade eleitoral (art. 16 da CRFB) “condiciona, no plano da eficácia
temporal, a própria aplicabilidade e exequibilidade de atos legislativos e de decisões do
poder judiciário cujo conteúdo possa refletir-se sobre o processo eleitoral”.83
Por fim, registra-se que o entendimento de que é possível a edição de normas
gerais e abstratas pela Justiça Eleitoral, sem observância do princípio da anualidade quando
estas retiram seu fundamento de validade diretamente da Constituição brasileira de 1988
ou quando consubstanciam entendimentos já manifestados pelo STF,84 não se mostra
adequado ao princípio da segurança jurídica e desconsidera o princípio da anualidade
como direito político-fundamental e do seu propósito ético-moralizador na qualidade de
princípio da confiança, colocando em risco o próprio regime democrático, afinal, decisões
casuísticas que possam influenciar as eleições podem também advir da Justiça Eleitoral.

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82
STF, Pleno. RE nº 637.485/RJ. Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 1º.8.2012. DJe, 20 maio 2013. Registra-se que o caso em
julgamento estava alterando jurisprudência longamente adotada.
83
STF, Decisão Monocrática. ARE nº 768.043/DF. Rel. Min. Celso de Mello, j. 28.11.2016. DJe, 1º dez. 2016.
84
“O Tribunal Superior Eleitoral, expondo-se à eficácia irradiante dos motivos determinantes que fundamentaram
o julgamento plenário do RE 197.917/SP, submeteu-se, na elaboração da Resolução nº 21.702/2004, ao princípio
da força normativa da Constituição, que representa diretriz relevante no processo de interpretação concretizante
do texto constitucional. - O TSE, ao assim proceder, adotou solução, que, legitimada pelo postulado da força
normativa da Constituição, destinava-se a prevenir e a neutralizar situações que poderiam comprometer
a correta composição das Câmaras Municipais brasileiras, considerada a existência, na matéria, de grave
controvérsia jurídica resultante do ajuizamento, pelo Ministério Público, de inúmeras ações civis públicas em
que se questionava a interpretação da cláusula de proporcionalidade inscrita no inciso IV do art. 29 da Lei
Fundamental da República” (STF, Pleno. ADI nº 3.345/DF. Rel. Min. Celso de Mello, j. 25.8.2005. DJe, 19 ago.
2010).

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PEDRA, Anderson Sant’Ana. A criação do direito pela Justiça Eleitoral e o princípio da anualidade. In:
FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura (Coord.); PECCININ, Luiz
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CAPÍTULO 7

PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ESTRITA


NA SEARA ELEITORAL

PEDRO HENRIQUE GALLOTTI KENICKE

ANA CAROLINA DE CAMARGO CLÈVE

O princípio da legalidade estrita deve ser observado – em regra – por todo o Estado
Democrático de Direito, haja vista ser seu pressuposto fundamental. Não há estabilidade
democrática quando se relega o direito posto. Vive-se o império da lei, e não o império
dos homens; não por outra razão, direitos e obrigações devem estar sempre previstos
em lei para que se evitem arbitrariedades, especialmente quando advindas do Estado
ou do grupo político que circunstancialmente detém o poder. O princípio da legalidade,
portanto, situa o agir estatal no âmbito do direito, exigindo que qualquer manifestação
do Estado esteja condicionada à prévia autorização legislativa.1
Na seara eleitoral, assim como em qualquer outro ramo pertinente ao direito
público, deve haver a observância da estrita legalidade para que o Estado – por inter­
médio da Justiça Eleitoral – possa atuar e, por vezes, interferir no processo democrático.
O respeito à legalidade torna-se ainda mais relevante quando admitimos que o
regime jurídico de direito eleitoral é intensamente permeado por atos normativos, ou
regulamentares, secundários, que decorrem de lei. Por outro lado, é interessante notar
que quando pensamos no princípio da legalidade sob a perspectiva do cidadão – eleitor
ou candidato – como destinatário da norma eleitoral, a compreensão desse princípio deve
se dar a partir da ampla liberdade; isto é, a liberdade deve ser entendida como premissa
para o enfrentamento do jogo democrático. No campo do direito eleitoral tratamos
sobretudo da liberdade de expressão e seus corolários (liberdade de informação e de
imprensa), tendo em vista que só se atinge a qualidade democrática por intermédio do
debate, da crítica, e da mais abrangente possibilidade de circulação de ideias e propostas.

1
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2014. p. 100.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
454 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

No tocante ao poder regulamentar da Justiça Eleitoral, que, como dissemos, é


bastante marcante no agir dessa estrutura estatal em razão de seu peculiar e complexo rol
de atribuições e competências, é de ressaltar que este – o chamado poder regulamentar –
manifesta-se principalmente para fins de organização e administração das eleições a
cada dois anos, de modo a tornar a legislação eleitoral mais detalhada e facilitada com
o objetivo de conferir melhores condições de efetivo cumprimento dos atos normativo
emanados pelo Parlamento por parte de todos os envolvidos no processo eleitoral. Desse
modo, se é certo que, antes de tudo, o princípio da legalidade deve necessariamente
ser observado – até porque, repisa-se, trata-se de pressuposto do Estado de Direito –, é
preciso reconhecer, também, que as regulamentações editadas pela Justiça Eleitoral –
desde que estejam exatamente nos limites da lei – devem ser atendidas com a mesma
intensidade observada no cumprimento dos regulamentos do Poder Executivo.
Por último, vale destacar que essas regulamentações ainda são mais legítimas
quando passam a ser constituídas a partir do mecanismo das audiências públicas, nos
moldes como foram organizadas para as eleições gerais de 2018. Será em contato com a
sociedade, a par das deliberações do povo, que a Justiça Eleitoral conseguirá observar,
simultaneamente, o princípio da legalidade e a necessidade de administrar as regras
do jogo democrático.

7.1 O princípio da legalidade e a matéria eleitoral


É sempre bom lembrar que a liberdade do cidadão, ainda que não se trate de
um direito fundamental absoluto, deve ser pautada como regra geral.2 Isso porque,
na dúvida, prevalecerá a liberdade, pois as restrições e as proibições são exceções que
devem, no Estado Democrático de Direito, por isso mesmo, serem veiculadas por lei.
No âmbito do direito eleitoral, essa faceta do princípio da legalidade – que diz
respeito à permissão para se fazer tudo o que não contar com proibição legal – está
ligada, especialmente, à liberdade de expressão –3 que, inclusive, é um dos princípios
informadores do direito eleitoral e, por essa razão, conforme bem lembram o Ministro
Fux e o Professor Carlos Eduardo Frazão “ostenta uma posição preferencial (preferred
position) no ordenamento constitucional, em geral, e no direito eleitoral, em particular”.4
Assim, a regra deve ser a mínima intervenção do Judiciário no que se refere à livre
circulação de ideias, a qual – frisa-se – é inerente à dialética do processo político. Não
por outro motivo é que, neste ponto, convém lembrar que quando se está em questão
a caracterização ou não de propaganda antecipada (ou extemporânea), deve-se partir
da premissa de que a regra deve ser a da mais ampla liberdade de expressão. A Justiça
Eleitoral, portanto, apenas terá legitimidade para intervir nas hipóteses de abuso e
quando presentes – inequivocamente – todos os requisitos hábeis a fazer configurar

2
BUENO, Jose Antonio Pimenta. Direito publicobrazileiro e analyse da Constituição do Imperio. Rio de Janeiro:
Typografia Imp. e Const. De J. Villeneuve & C., 1857. p. 382.
3
No presente trabalho, abordamos a liberdade de expressão em sentido amplo, compreendendo a liberdade de
manifestação do pensamento (liberdade em sentido estrito), de informação e de imprensa (FUX, Luiz; FRAZÃO,
Carlos Eduardo. Novos paradigmas do direito eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 116-117).
4
FUX, Luiz; FRAZÃO, Carlos Eduardo. Novos paradigmas do direito eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 116-
117.

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PEDRO HENRIQUE GALLOTTI KENICKE, ANA CAROLINA DE CAMARGO CLÈVE
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ESTRITA NA SEARA ELEITORAL
455

determinada conduta como propaganda antecipada (menção à futura candidatura,


exaltação pessoal e pedido explícito de voto).
Veja-se que o princípio da legalidade é fundamental para o Estado de Direito, uma
vez que “toda sua atividade fica sujeita à ‘lei’, entendida como expressão da vontade
geral”.5 Ele significa o respeito e a submissão à lei ou mesmo a atuação conforme as balizas
arquitetadas pelo legislador, a configurar, em última instância, respeito às deliberações
e votações do Parlamento quando este exerce sua função típica. No sentido impresso no
art. 5º, II, da Constituição, portanto, o Poder Público não pode exigir, nem impor qualquer
ação ou abstenção senão em virtude de lei. A exigência do Legislador Constituinte foi
a de que o princípio da legalidade estrita garante ao particular, de acordo com Celso
Ribeiro Bastos, proteção a eventuais desmandos do Poder Executivo e mesmo do Poder
Judiciário.6 Na seara eleitoral não é diferente.
Entretanto, lembra José Afonso da Silva que o princípio da legalidade desenhado
na Constituição “vincula-se a uma reserva genérica ao Poder Legislativo que não exclui
atuação secundária de outros Poderes”.7 Daí porque embora a lei, no sentido de lei
formal, seja o único ato normativo a criar direitos e obrigações, onde se encontre “os
elementos essenciais da providência impositiva”, é bem possível a edição de atos que
regulem os elementos do veiculado pela lei.8
Segundo Walber de Moura Agra, cabe à Justiça Eleitoral “resguardar a democracia
e o Estado Democrático, efetivando a soberania popular, a cidadania e o pluralismo
político”.9 E, para tanto, a Justiça Eleitoral desempenha funções administrativas,
normativas, consultivas e jurisdicionais. Em sua faceta normativa ou, preferivelmente,
regulamentar, a Justiça Eleitoral edita instruções, por meio de resoluções – que não
se confundem com as espécies legislativas do art. 59, da Constituição –, que veiculam
esclarecimentos ou detalhes referentes ao processo eleitoral estabelecido por lei específica
para determinada eleição.
Entretanto, cabe lembrar que toda a matéria eleitoral, por força da Constituição
Federal de 1988, deve ser fundamentada e veiculada em lei formal. É o que o art. 16 do
Texto Fundamental exige a partir da aplicação do princípio da reserva de lei,10 que não se
confunde com o princípio da legalidade, pois “consiste em estatuir que a regulamentação
de determinadas matérias há de fazer-se necessariamente por lei formal”. Em síntese,
“quando a Constituição reserva conteúdo específico, caso a caso, à lei, encontramo-nos
diante do princípio da reserva legal”.11
Esse, por exemplo, é o entendimento de Clèmerson Merlin Clève, para quem
os direitos políticos e eleitorais têm tratamento exclusivo na edição de lei a partir da
discussão política e ampliada no Congresso Nacional.12 A amplitude que possa ser
observada nas respostas nos regulamentos da Justiça Eleitoral, a serem veiculadas por

5
SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 82.
6
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.
7
SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 82.
8
SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 83.
9
AGRA, Walber de Moura. Manual prático de direito eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 27.
10
“Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à
eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”.
11
SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 83.
12
CLÈVE, Clèmerson Merlin. Medidas provisórias. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 59.

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456 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

resoluções (ou “instruções”, como quer o art. 23, IX, do Código Eleitoral)13 do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE), é decorrência das deliberações do Parlamento com sentido
de aplicação da lei ao caso concreto, mas pode vir a receber incursões democráticas,
que não sejam contrárias à base legal, a partir do mecanismo das audiências públicas,
como se verá adiante. Diante disso, não se pode afirmar que no âmbito da Justiça
Eleitoral haja verdadeira criação normativa da matéria eleitoral. De acordo com a lição
de Eneida Desiree Salgado, “as normas eleitorais, que estabelecem as regras do jogo da
disputa democrática, não podem ser elaboradas em gabinetes ou salas de sessões. Sua
fundamentação pública e sua construção democrática são essenciais para legitimidade
de suas imposições e restrições”.14
Destarte, tem-se que os regulamentos sempre devem estar adstritos aos limites
da legalidade imposta pelos parlamentares. Esse é o real atendimento ao princípio da
legalidade estrita. E é esse elemento que torna particular a aplicação do princípio no
âmbito eleitoral, haja vista a dinâmica constante e atualizada desse órgão da jurisdição
na garantia da aplicação da lei ao caso concreto.

7.2 Sobre o poder regulamentar do Tribunal Superior Eleitoral


O poder regulamentar efetivado pelo Tribunal Superior Eleitoral não pode ser
comparável aos moldes preconizados pelo Conselho Nacional de Justiça, por exemplo.
Neste há previsão constitucional específica para que o referido conselho de controle do
Poder Judiciário possa efetivar seu poder de polícia sobre os demais órgãos do Judiciário
abaixo do Supremo Tribunal Federal. Naquele, a visão está muito mais calcada na
permissão legal, ou infraconstitucional, que o Código Eleitoral (Lei nº 4.737/1965), a Lei
das Eleições (Lei nº 9.504/1997) e a Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096/1995) veiculam
do que no Texto Constitucional.
Esse é o entendimento de José Jairo Gomes, para quem “apesar de a Constituição
não prever essa função [regulamentar]” a norma legal a prevê, especialmente o Código
Eleitoral que foi recepcionado com força de lei complementar. Ainda segundo Gomes,
as instruções e outras deliberações de caráter regulamentar do Tribunal Superior
Eleitoral são veiculadas por resolução: “ato normativo emanado pelo órgão colegiado
para regulamentar matéria de sua competência”.15 Daí porque, para José Jairo Gomes, a

13
“Art. 23. Compete, ainda, privativamente, ao Tribunal Superior, [...] IX - expedir as instruções que julgar
convenientes à execução deste Código. E, também, as previsões da Lei das Eleições (Art. 105. Até o dia 5 de março
do ano da eleição, o Tribunal Superior Eleitoral, atendendo ao caráter regulamentar e sem restringir direitos ou
estabelecer sanções distintas das previstas nesta Lei, poderá expedir todas as instruções necessárias para sua fiel
execução, ouvidos, previamente, em audiência pública, os delegados ou representantes dos partidos políticos)
e da Lei dos Partidos Políticos (Art. 61. O Tribunal Superior Eleitoral expedirá instruções para a fiel execução
desta Lei)”.
14
SALGADO, Eneida Desiree. Princípios constitucionais eleitorais. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 231. Também
é o que entende Sivanildo de Araújo Dantas em Direito eleitoral: teoria e prática do procedimento das eleições
brasileiras. Curitiba: Juruá, 2009. p. 219. Para José Afonso da Silva, a matéria eleitoral veiculada por lei que altera
o processo eleitoral, no dizer do art. 16, da Constituição, seria: “Os atos desse processo são a apresentação de
candidaturas, seu registro, o sistema de votos (cédulas ou urnas eletrônicas), organização das seções eleitorais,
organização e realização do escrutínio e o contencioso eleitoral. Em síntese, a lei que dispuser sobre essa matéria
está alterando o processo eleitoral” (SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. São Paulo:
Malheiros, 2005. p. 347).
15
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 882-83.

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PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ESTRITA NA SEARA ELEITORAL
457

resolução apresentaria natureza de “ato-regra”, isto é, ato normativo que “cria situações
gerais, abstratas e impessoais, modificáveis pela vontade do órgão que a produziu”,
conforme lição de Celso Antônio Bandeira de Mello.16
Contudo, o próprio Bandeira de Mello insiste em afirmar que quando o art. 5º,
II, da Constituição preceitua que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer
algo senão em virtude de lei”, está a se falar de “‘lei’, e não de ‘decreto’, ‘regulamento’,
‘portaria’, ‘resolução’ ou quejandos”. Ou seja, a Constituição Federal exige a lei

para que o Poder Público possa impor obrigações aos administrados. É que a Constituição
brasileira, seguindo tradição já antiga, firmada por suas antecedentes republicanas, não
quis tolerar que o Executivo, valendo-se de regulamento, pudesse por si mesmo, interferir
com a liberdade ou a propriedade das pessoas.17

O que se aplica igualmente, e principalmente, para o Poder Judiciário, à luz do


teor do art. 37, da Constituição: “A administração pública direta e indireta de qualquer
dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos
princípios de legalidade [...]”. Isto é, não pode a Justiça Eleitoral se imiscuir em questões
criativas para além dos limites impostos pela lei, uma vez que, de acordo com Francisco
Cavalcanti Pontes de Miranda,

onde se estabelecem, alteram ou extinguem direitos, não há regulamentos – há abuso do


poder regulamentar, invasão de competência legislativa. O regulamento não é mais do que
o auxiliar das leis, auxiliar que sói pretender, não raro, o lugar delas, mas sem que possa,
com tal desenvoltura, justificar-se e lograr que o elevem à categoria de lei.18

No mesmo sentido, Clèmerson Merlin Clève, Lenio Luiz Streck e Ingo Wolfgang
Sarlet afirmam:

Leis têm caráter geral, porque regulam situações em abstrato; atos regulamentares
(resoluções, decretos, etc.) destinam-se a concreções e individualizações. Uma resolução
não pode estar na mesma hierarquia de uma lei, pela simples razão de que a lei emana do
poder legislativo, essência da democracia representativa, enquanto os atos regulamentares
ficam restritos a matérias com menor amplitude normativa.19

Ainda, Clèmerson Clève recorda que a Constituição de 1967 previa competência à


Justiça Eleitoral para estabelecer a data das eleições quando a lei fosse omissa, ou mesmo
para dispor sobre a divisão eleitoral do país.20 Sobre a Constituição de 1988, ele reforça

16
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 83.
17
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 338-
339.
18
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1 de 1969. 2. ed.
São Paulo: RT, 1970. p. 314. t. III.
19
CLÈVE, Clèmerson Merlin; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz. Os limites constitucionais das
resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
Revista da ESMECS, v. 12, n. 18, p. 17-26, 2005.
20
CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do poder executivo. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
p. 63.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
458 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

que não foi reproduzido qualquer desses dispositivos, mas que recepcionou o Código
Eleitoral com força de lei complementar, a preencher o mandamento do art. 121, da
Constituição,21 que, como já referido, permite à Justiça Eleitoral editar atos normativos
em assunto eleitoral, mas sempre subordinados à lei.
Daí que, para Manuel Carlos de Almeida Neto:

os regulamentos eleitorais só podem ser expedidos segundo a lei (secundumlegem) ou para


suprimir alguma lacuna normativa (praeterlegem). Fora dessas balizas, quando a Justiça
Eleitoral inova em matéria legislativa ou contraria dispositivo legal (contra legem), por meio
de resolução, ela desborda da competência regulamentar, estando, por conseguinte, sujeita
ao controle de legalidade ou constitucionalidade do ato.22

Convém também citar a seguinte passagem da obra de Clèmerson Clève, na qual


o jurista salienta que “a justiça eleitoral [...] aplica, igualmente, a legislação eleitoral
de ofício (a administração das eleições)”, isto é, exercendo a atividade administrativa
através das instruções que “não passam de particular manifestação do poder normativo
secundário exercido pela Administração,” o que resulta em competência regulamentar
que sempre manifestar-se-á “de modo subordinado e secundário em relação à lei”.23
Guilherme de Salles Gonçalves vai além e afirma existir não uma função atípica
de regulamentação, mas uma “dupla função típica à Justiça Eleitoral”, que diferencia
a Justiça Eleitoral dos demais órgãos do Poder Judiciário, pois “no exercício da sua
competência funcional de regulação do processo eleitoral, a Justiça Eleitoral exerce,
tipicamente, duas funções típicas: a administrativa/executiva e a jurisdicional”.24
Afinal, quando a Justiça Eleitoral organiza as eleições, registra eleitores e emite
títulos eleitorais, ou quando exerce o poder de polícia quanto à propaganda eleitoral,25
ou mesmo quando expede instruções, por meio das suas resoluções, para regulamentar
a aplicação da lei formulada pelo Congresso Nacional, o órgão atua tipicamente como
administrador, tanto eleitoral quanto funcionalmente.26 27 28

21
“Art. 121. Lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das
juntas eleitorais”.
22
ALMEIDA NETO, Manoel Carlos. Direito eleitoral regulador. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 219-220.
23
CLÈVE, Clèmerson Merlin. Temas de direito constitucional. 2. ed., atual. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2014.
24
GONÇALVES, Guilherme de Salles; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; STRAPAZZON, Carlos Luiz. Direito
eleitoral contemporâneo. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 217-218.
25
“[...] Propaganda. Bem de uso comum. [...] 1. Ao impor limites à propaganda eleitoral, o TSE atua no âmbito
de sua competência. Nessa linha, o art. 14 da Resolução/TSE nº 21.610/2004 possui força normativa, autorizada
pelo Código Eleitoral em seu art. 23, incisos IX e XVIII” (EDclREspe nº 25.676. Rel. Min. José Delgado.
Ac. de 24.8.2006).
26
CLÈVE, Ana Carolina de Camargo. Política pública de incentivo à participação feminina na política: a Justiça
Eleitoral como partícipe do processo de inclusão. Revista Ballot, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 82-102, set./dez. 2015.
27
Conforme classificação de Clèmerson Merlin Clève em Notas sobre a Justiça Eleitoral. In: CLÈVE, Clèmerson
Merlin. Temas de direito constitucional. 2. ed., atual. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 208-217; 219.
28
“Designação de juízes auxiliares. Art. 96, §3º, da Lei 9.504/97. Critérios. Definição. Tribunais Regionais Eleitorais.
Autonomia. Embora não haja óbice para a nomeação de juízes federais para atuarem como juízes auxiliares,
(art. 96, §3º, da Lei 9.504/97), o balizamento constitucional e legal sobre os critérios de designação não autoriza
o Tribunal Superior Eleitoral a definir a classe de origem dos ocupantes dessas funções eleitorais, sob pena de
contrariar o princípio da separação de poderes e ferir a autonomia dos Tribunais Regionais Eleitorais” (PA
nº 59.896. Rel. Min. Nancy Andrighi. Ac. de 12.5.2011).

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PEDRO HENRIQUE GALLOTTI KENICKE, ANA CAROLINA DE CAMARGO CLÈVE
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ESTRITA NA SEARA ELEITORAL
459

Nesse sentido, essa função é comparável ao que é a atribuição do presidente


da República.29 Nos termos da Constituição, compete privativamente ao presidente
editar regulamentos de execução ou de organização (art. 84, IV e VI, da Constituição).
Analogamente, é por meio das suas instruções/resoluções que a Justiça Eleitoral deve
emitir regulamentos de execução ou de organização das eleições. Ambos, no entanto,
presidente da República e Justiça Eleitoral, são proibidos de inovar na ordem jurídica.30
Há quem exponha, contudo, a inconstitucionalidade do exercício de tal função
sem amparo na Constituição. Eneida Desiree Salgado afirma contundentemente que a
atuação regulamentar da Justiça Eleitoral é inconstitucional quando expede resoluções,
porque não existe nenhuma previsão expressa na Constituição. Além disso, a matéria
eleitoral está adstrita a um princípio de reserva parlamentar, ou seja, ao princípio da
legalidade estrita.31 Quando muito, se permitida, a Justiça Eleitoral utilizaria da sua
função atípica regulamentar para elaborar seu regimento interno, podendo até mesmo
criar recursos e outros meios processuais que não estão previstos na lei processual.32
Mas a autora flexibiliza o pensamento ao constatar que a existência da previsão
infraconstitucional das instruções deve ser compreendida a partir da mera “atuação
admi­nistrativa da Justiça Eleitoral”, sem que seus efeitos atinjam os particulares. De
modo tal que somente poderiam ter eficácia sobre os órgãos da Administração Pública.33
Portanto, para a sua doutrina, “o princípio da legalidade, chave do sistema jurídico
brasi­leiro, impõe um conceito de regulamento que não ultrapasse a medida que lhe dá
funda­mento”.34 Daí porque, para Eneida Salgado, a função regulamentar do Tribunal
Superior Eleitoral deve ser estrita: “aquela em que não há espaço para discricionariedade
qualquer, mas apenas se deve desdobrar, especificar o que a lei determina de modo
genérico. [...]”. As resoluções do TSE, por conseguinte, disporiam somente sobre datas,
procedimentos, e competências para a eleição singular a que aquelas instruções estão a
regular, para facilitar a aplicação da legislação eleitoral.35
Para Torquato Jardim, essas disposições contribuem para que seja afastada a
lacuna legal ou a ocorrência de circunstância que não possa ser resolvida pela criação
legislativa.36 No mesmo sentido entende Paulo José Lacerda, pois é conveniente manter a
função regulamentar quando é evidenciada, dia após dia, “a célere evolução do processo
tecnológico, que não permite, com o mesmo dinamismo, uma solução pelo legislador,
dada a morosidade e formalidade do processo legislativo”.37

29
GONÇALVES, Guilherme de Salles; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; STRAPAZZON, Carlos Luiz. Direito
eleitoral contemporâneo. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 219. Ver também os escritos de Olivar Coneglian: “Assim
como cabe ao Poder Executivo a regulamentação das leis ordinárias, ao Poder Judiciário cabe, como Poder
Executivo das eleições, regulamentar as leis eleitorais” (CONEGLIAN, Olivar. Radiografia da Lei das Eleições.
Curitiba: Juruá, 1998. p. 39).
30
CLÈVE, Ana Carolina de Camargo. Política pública de incentivo à participação feminina na política: a Justiça
Eleitoral como partícipe do processo de inclusão. Revista Ballot, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 82-102, set./dez. 2015.
31
SALGADO, Eneida Desiree. Princípios constitucionais eleitorais. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 232 e 233. Ver
também: COÊLHO, Marcus Vinicius Furtado. Direito eleitoral, direito processual eleitoral e direito penal eleitoral.
4. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 77.
32
CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do poder executivo. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 81.
33
SALGADO, Eneida Desiree. Princípios constitucionais eleitorais. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 234.
34
SALGADO, Eneida Desiree. Princípios constitucionais eleitorais. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 236.
35
SALGADO, Eneida Desiree. Princípios constitucionais eleitorais. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 237.
36
JARDIM, Torquato Lorena. Direito eleitoral positivo. 2. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 1998. p. 46.
37
LACERDA, Paulo José M.; CARNEIRO, Renato César; SILVA, Valter Félix. O poder normativo da Justiça Eleitoral.
João Pessoa: Sal da Terra, 2004. p. 52.

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460 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Também Luiz Fux e Carlos Eduardo Frazão sustentam que o Tribunal Superior
Eleitoral, em sua função regulamentar, é um dos intérpretes legítimos e autênticos da
legislação infraconstitucional à luz da Constituição. Por isso, a Justiça Eleitoral teria o
“privilégio de, observando estes movimentos realizados pelos demais atores [intérpretes
da sociedade], ponderar as diversas razões antes expostas para, ao final proferir sua
decisão”.38
Assim, essencialmente, constata-se que seria impossível a edição de instruções,
via resoluções da Justiça Eleitoral, que regulamentassem matéria não prevista em lei.
Esse é o pressuposto primordial a ser seguido para que o Estado Democrático de Direito
seja operacionalizado nas regras do jogo eleitoral. Mas anote-se a ressalva de que não
é prescindível a regulamentação para atender à dinâmica das eleições e as evoluções
tecnológicas nelas envolvidas.
Enfim, as resoluções, ao veicular instruções, seriam regulamentos de execução
que, em suma, “não podem assumir o papel que a Constituição reservou à lei. São
atos normativos sujeitos à lei e dela dependentes”,39 mas que, ao mesmo tempo, têm
emprestado às leis que regulam o processo eleitoral a maneira de compatibilizar o sistema
normativo40 ao mundo da vida.

7.3 Reconhecimento jurisprudencial do poder regulamentar


É claro o reconhecimento jurisprudencial do poder regulamentar da Justiça
Eleitoral no Tribunal Superior Eleitoral,41 embora, claro, com reconhecimentos explícitos
de que o poder regulamentar tem limites à legalidade estrita.42 Ocorre que, a despeito
do reconhecimento de que tal poder deve ser exercido de acordo com limites formais e
materiais, a atuação do Judiciário, por vezes, tem efetivamente ultrapassado o balizamento
imposto pelo princípio da legalidade estrita como discorremos anteriormente.
O problema é que essa modalidade de ativismo judicial – calcada no abuso do
poder regulamentar por parte da Justiça Eleitoral –, inexoravelmente acaba prejudicando

38
FUX, Luiz; FRAZÃO, Carlos Eduardo. Novos paradigmas do direito eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 250.
39
CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do poder executivo. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
p. 313.
40
Resolução TSE nº 12.867. Rel. Min. Oscar Corrêa. DJU, 25 mar. 1987. p. 4.885.
41
“[...] A teor do Código Eleitoral (art. 23, IX), o TSE tem competência para baixar instruções regulamentando
normas legais de Direito Eleitoral” (Ac. nº 25.112. Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, 19.12.2005).
42
“Nas condutas vedadas previstas nos arts. 73 a 78 da Lei das Eleições imperam os princípios da tipicidade e da
legalidade estrita, devendo a conduta corresponder exatamente ao tipo previsto na lei” (REspe nº 626-30/DF.
Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura. DJe, 4 fev. 2016); “Na linha da jurisprudência do Tribunal Superior
Eleitoral, as regras alusivas às causas de inelegibilidade são de legalidade estrita, sendo vedada a interpretação
extensiva para alcançar situações não contempladas pela norma” (TSE. AgR-RO nº 39.477. Rel. Min. Gilmar
Ferreira Mendes. DJe, 17 ago. 2015). E no Tribunal Regional Eleitoral do Paraná: “ELEIÇÕES 2016. FILIAÇÃO
PARTIDÁRIA. INCLUSÃO EM LISTA ESPECIAL. INDEFERIMENTO DO PEDIDO. ILEGITIMIDADE ATIVA DO
PARTIDO POLÍTICO. JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA. MITIGAÇÃO DA LEGALIDADE ESTRITA. REQUISITOS
DO ART. 19, §2º, DA LEI nº 9.096/1995. SUPERAÇÃO DO VÍCIO FORMAL. DECURSO DA DATA LIMITE
PARA INCLUSÃO DO ELEITOR. PROVIMENTO Nº 9 - CGE. PROCESSAMENTO JÁ OCORRIDO. INCLUSÃO
NA PRÓXIMA LISTA DO PARTIDO. EFEITOS RETROATIVOS À DATA DO PEDIDO, PROTOCOLIZADO
EM 02/06/2016. REGULARIDADE DA FILIAÇÃO PARTIDÁRIA. MATÉRIA AFETA AO REGISTRO DE
CANDIDATURA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. [...] 4. O reconhecimento da validade de filiação
partidária extrapola a matéria a ser conhecida no procedimento de lista especial, devendo ser comprovada por
ocasião do pedido de registro de candidatura, nos termos do art. 11, §1º, inciso III, da Lei nº 9.504/1997” (Recurso
Eleitoral nº 2.560, Acórdão nº 50.846. Rel. Adalberto Jorge Xisto Pereira, 11.8.2016. DJ, 17 ago. 2016).

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PEDRO HENRIQUE GALLOTTI KENICKE, ANA CAROLINA DE CAMARGO CLÈVE
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ESTRITA NA SEARA ELEITORAL
461

o equilíbrio entre as funções do Estado, o qual é fundamental para que se preserve a


separação de poderes. Vânia Siciliano Aieta tem denominado esse ativismo da Justiça
Eleitoral de “judicialização do processo eleitoral”, que nada mais é do que a “excessiva
intromissão do Poder Judiciário na atividade política”. Segundo a autora, e esse raciocínio
coincide com a ideia aqui defendida, a Justiça Eleitoral deve garantir a legalidade e a
serenidade do pleito, de modo que a atividade política não seja cerceada, mas apenas
modulada.43
No que tange ao uso exacerbado do poder regulamentar na seara eleitoral,
tornou-se polêmico o caso, por exemplo, da filiação partidária. Nesse caso, de acordo
com Eneida Salgado, elegeu-se “a fidelidade partidária como elemento fundamental do
sistema brasileiro”, a partir da resposta formulada à Consulta nº 1.398,44 e igualou os
sistemas proporcional e majoritário, embora a Constituição prezasse pela vontade do
eleitor, que vota na pessoa do candidato, no que concerne ao mecanismo majoritário.
O Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre o caso no julgamento das ações
diretas de inconstitucionalidade nºs 3.999, 4.086 e 5.081, o que já se discutiu alhures.45
Nas duas primeiras, o Supremo Tribunal reconheceu que as resoluções do
Tribunal Superior Eleitoral são importantes para a concretização do entendimento da
própria Suprema Corte, ainda que excepcionalmente tenha substituído a função de um
“omisso” Poder Legislativo no que se referia à fidelidade partidária.46 Na última ação
direta, o STF entendeu, por fim, que prevalece a vontade do eleitor no que concerne ao
sistema majoritário, não se aplicando as regras da filiação partidária restritas ao sistema
proporcional.47
Portanto, podemos afirmar que, se de um lado o poder regulamentar da Justiça
Eleitoral é fortemente reconhecido pela jurisprudência pátria, de outro, tem-se que, a
despeito dos limites legais que devem ser observados para a edição de atos normativos,
o fato é que há exemplos de temas disciplinados pela Justiça Eleitoral que transbordaram
as balizas formais e materiais.
De todo modo, tendo em vista que estamos a tratar de ato normativo, o qual,
ainda que seja secundário, possui características próprias de tal espécie (generalidade
e abstração), é certo que, na hipótese de tais atos desbordarem dos limites impostos
consti­tucionalmente, poderão ser questionados junto ao Supremo Tribunal Federal.

43
AIETA, Vânia Siciliano. Liberdades públicas e a tentativa de controle do poder legislativo pelo Poder Judiciário.
In: LEITE, George Salomão; LEITE, Glaucio Salomão; STRECK, Lenio Luiz (Coord.). Jurisdição constitucional e
liberdades públicas. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 204.
44
SALGADO, Eneida Desiree. Princípios constitucionais eleitorais. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 242-243.
45
CLÈVE, Clèmerson Merlin; CLÈVE, Ana Carolina de Camargo. A evolução da fidelidade partidária na
jurisprudência do STF. Revista Jus Navigandi, ano 20, n. 4492, 19 out. 2015.
46
COÊLHO, Marcus Vinicius Furtado. Poder regulamentar do TSE na jurisprudência do Supremo. Conjur, 29
out. 2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-out-29/constituicao-poder-regulamentar-tse-
jurisprudencia-supremo>. Acesso em: jan. 2018.
47
Segundo o Relator Min. Roberto Barroso, “a perda do mandato, em razão de mudança de partido por candidato
eleito pelo sistema proporcional, decorre logicamente da Constituição para que se preserve a soberania popular
e as escolhas feitas pelo eleitor. Essa proposição é a que se extrai daqueles mandados de segurança anteriores
que o Supremo julgou. Em seguida, eu acrescento: a mesma lógica não se aplica aos candidatos eleitos pelo
sistema majoritário, sob pena de violação da soberania popular e das escolhas feitas pelo eleitor [...] no sistema
majoritário a ‘regra da fidelidade partidária’ não consiste em medida necessária à preservação da vontade do
eleitor, como ocorre no sistema proporcional, e, portanto, não se trata de corolário natural do princípio da
soberania popular (arts. 1º, parágrafo único e 14, caput, da Constituição)” (STF. ADI nº 5.081. Rel. Min. Roberto
Barroso, j. 27.5.2015. DJe, n. 162, 19 ago 2015).

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462 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

7.4 Audiências públicas efetivas no poder regulamentar e o respeito ao


princípio da legalidade
Consoante argumentamos até o momento, atender ao princípio da legalidade
significa conferir a devida observância à competência do Parlamento, que, para além de
ter sua função expressamente reconhecida constitucionalmente, trata-se de um poder que
se constitui de mandatários legitimamente eleitos pelo povo e que, por isso, veiculam sua
vontade. Logo, no contexto da estrita legalidade da seara eleitoral, tem-se que o uso das
resoluções pelo Tribunal Superior Eleitoral deve observar exatamente esse pressuposto.
Então, se é certo que, de acordo com Torquato Jardim, essas mesmas resoluções são
decisões que explicam os fins e traduzem em linguagem mais acessível aos candidatos,
aos partidos políticos e aos eleitores “os requisitos e os procedimentos adequados
ao exercício da cidadania”,48 permitir que a sociedade participe do seu processo de
formulação é, também, uma das formas de atendimento ao princípio da legalidade.
Realizar audiências públicas anteriormente à edição das resoluções que regulamentarão
especificamente a eleição vindoura é medida de atendimento, simultaneamente, ao
princípio da legalidade e de respeito à vontade popular. É o que vem fazendo a atual
gestão do Tribunal Superior Eleitoral, presidido pelo Min. Gilmar Mendes e pelo Min.
Luiz Fux.
No fim de 2017, o TSE lançou as audiências públicas sobre as eleições gerais de
2018, momento que serviu para o “aprimoramento das minutas de resoluções do pleito”
de 2018.49 Para tanto, o Tribunal Superior Eleitoral criou página em seu site oficial para
acompanhar as sugestões e as críticas das minutas das resoluções já disponibilizadas no
site. Essa abertura e transparência permitiram que representantes de partidos políticos,
de entidades, públicas privadas, e advogados que militam na área eleitoral pudessem
contribuir para o aperfeiçoamento das regulamentações editadas pelo TSE.
O mecanismo teve a vantagem de possibilitar a transparência na confecção das
instruções e o seu fácil entendimento. Nas palavras do Ministro Fux, “[...] devemos falar a
linguagem que o povo entende. E se existe um segmento da justiça que tem compromisso
e deve contas à sociedade é a Justiça Eleitoral. Só se adquire legitimidade democrática
de um tribunal a partir da confiança que o cidadão tem na justiça”.50
A iniciativa teve o privilégio de manter a sociedade interessada nos desígnios das
Eleições Gerais de 2018 e colocou o poder regulamentar do Tribunal Superior Eleitoral,
frequentemente contestado tanto nas provocações ao Supremo Tribunal Federal quanto
nos escritos da doutrina especializada, efetivamente mais perto daqueles que vivem o
direito eleitoral. Com isso, pode-se projetar menor falibilidade das regulamentações
futuras, mais esclarecimento na interpretação jurisdicional e maior previsibilidade nas
regras do jogo democrático.

48
JARDIM, Torquato Lorena. Processo e justiça eleitoral: introdução ao sistema eleitoral brasileiro. Revista de
Informação Legislativa, v. 30, n. 119, p. 25-46, jul./set. 1993. p. 45.
49
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. TSE fecha ciclo de audiências públicas sobre resoluções das Eleições Gerais de
2018. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/eleitor-e-eleicoes/eleicoes/eleicoes-2018/audiencias-publicas>.
Acesso em: jan. 2018.
50
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. TSE fecha ciclo de audiências públicas sobre resoluções das Eleições Gerais de
2018. Disponível em: http://www.tse.jus.br/eleitor-e-eleicoes/eleicoes/eleicoes-2018/audiencias-publicas Acesso
em: janeiro de 2018.

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PEDRO HENRIQUE GALLOTTI KENICKE, ANA CAROLINA DE CAMARGO CLÈVE
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ESTRITA NA SEARA ELEITORAL
463

Portanto, é possível dizer que a Justiça Eleitoral se torna mais um exemplo de


campo com debates qualificados sobre a democracia brasileira, a flexibilizar a apli­
cação do princípio da legalidade estrita por meio das resoluções agora informadas
por audiências públicas efetivas, mas não deixando nunca de observar os parâmetros
impostos pela lei aprovada no Parlamento.51

7.5 Conclusões
O princípio da legalidade estrita na seara eleitoral tanto baliza quanto informa.
É baliza quando exige que toda norma que cria deveres, direitos e prerrogativas seja
veiculada por lei formal. Não há discussão neste ponto: vive-se o Estado de Direito.
Mas esse Estado também é qualificado por ser democrático e, por isso, o princípio
da legalidade também é informador do momento em que a lei é formulada. É o povo,
por meio dos seus representantes parlamentares, quem dirá o fundamento da norma a
ser veiculada por lei. Assim, em condições democráticas normais, toda lei provém da
vontade do povo.
Viu-se que a contradição do poder regulamentar que o Tribunal Superior Eleitoral
detém para com o princípio da legalidade é tão somente aparente. Isso porque não
há contradição, uma vez que toda norma regulamentar, não importando seu nomen
iuris, depende de autorização legislativa para ser válida e eficaz. É o que ocorre com as
resoluções da Justiça Eleitoral.
Assim, a lei é o fundamento e o limite. Às normas regulamentares é impossível
permitir a extrapolação e, por consequência, a criação de direitos e deveres não previstos
em qualquer texto legal. Analogamente, é o que ocorre com os decretos regulamentares
de execução e de organização que o presidente da República edita para a fiel execução
da lei.
Nesse sentido, a Justiça Eleitoral tem grande função de conglobar as discussões
no Estado Democrático, especialmente no contexto das eleições. É ela que balizará, no
caso concreto, a possibilidade ou não de permitir a igualdade de oportunidades para
diferentes candidatos e levará o programa político-partidário a cada eleitor interessado.
Assim, quanto mais porosidade para que a sociedade também participe da confecção
das instruções do poder regulamentar, melhor.
Com as audiências públicas efetivas verifica-se maior aceitação das resoluções
editadas e se dá mais legitimidade para Justiça Eleitoral continuar a regulamentar a
legislação pertinente ao processo eleitoral. Não se perde o balizamento do princípio da
legalidade estrita, porque ele é obrigatoriamente observado, mas se garante a abertura
democrática do órgão jurisdicional por meio dos seus regulamentos.

51
Segundo Luiz Fux e Carlos Eduardo Frazão, “não pode o TSE renunciar à sua condição de instância protetora
dos direitos políticos fundamentais e do regime democrático. Tal como assentei em outra oportunidade, a
própria legitimidade democrática da Constituição e da jurisdição eleitoral depende, em alguma medida de sua
responsividade à opinião popular” (FUX, Luiz; FRAZÃO, Carlos Eduardo. Novos paradigmas do direito eleitoral.
Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 249-250).

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
464 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

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PEDRO HENRIQUE GALLOTTI KENICKE, ANA CAROLINA DE CAMARGO CLÈVE
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ESTRITA NA SEARA ELEITORAL
465

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1 de 1969.
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Acesso em: janeiro de 2018.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

KENICKE, Pedro Henrique Gallotti; CLÈVE, Ana Carolina de Camargo. Princípio da legalidade estrita na
seara eleitoral. In: FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura (Coord.);
PECCININ, Luiz Eduardo (Org.). Direito Constitucional Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 453-465.
(Tratado de Direito Eleitoral, v. 1.) ISBN 978-85-450-0496-7.

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PARTE V

SISTEMAS ELEITORAIS E REFORMA POLÍTICA

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CAPÍTULO 1

MAIS EXÓTICOS QUE JABUTICABAS?


OS SISTEMAS ELEITORAIS BRASILEIROS

HELGA DO NASCIMENTO DE ALMEIDA

LARISSA PEIXOTO GOMES

1.1 Introdução: o que significa estudar o sistema eleitoral brasileiro?


Um sistema eleitoral é composto por normas que variam entre a Constituição do
país até resoluções judiciais. Leis complementares, legislações ordinárias, decretos e,
importantemente, regras informais e ações habituais criam um quebra-cabeça em que
saber por onde começar é o menor dos problemas. Por isso mesmo, sistemas eleitorais
são como digitais – nenhum é idêntico a outro. Mesmo que se instalassem conjuntos
de regras idênticos em dois países diferentes, o resultado não seria o mesmo. É nesse
sentido que damos o título ao capítulo: a jabuticaba é uma fruta particular ao Brasil,
que só cresce aqui e é tão frágil que não pode ser transportada para outros lugares. A
analogia pode ser feita para outros lugares, porque, mesmo as frutas que sobrevivem
ao transporte, nunca têm o mesmo sabor.
O Brasil é terreno fértil para o estudo de sistemas eleitorais, já que ao longo de
sua história republicana variados arranjos vieram à baila. Por essa razão decidimos fazer
uma comparação interna, o que também nos permitiu analisar como certas regras são
perpetuadas em nossa vida política. De fato, no país destaca-se a grande variação em
regras eleitorais através do tempo, além de algumas combinações que acabam sendo um
tanto quanto particulares, mas também certas formulações que permanecem as mesmas
desde a República Velha. Mesmo que não haja dois sistemas iguais, existem algumas
regras que tendem a andar juntas, ou nunca se combinam, como veremos à frente. Mas
no Brasil nem sempre esses padrões são vistos.
No capítulo que se segue, ler-se-á um trabalho comparativo dos sistemas eleitorais
que o Brasil já vivenciou desde 1891, demonstrando como são frutos de suas épocas,
como ainda afetam o sistema que temos hoje, e quais foram as consequências práticas
de algumas dessas regras.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
470 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

1.2 Sistemas eleitorais e seus desdobramentos


Instituições políticas não são formadas de um dia para outro – elas são construídas
e desconstruídas durante décadas e séculos, de acordo com as teorias, filosofias, e
necessidades contextuais (REIS, 2003; THELEN, 2004; MACKAY, 2014). Mudanças são,
em sua maioria, incrementais, e atreladas a pequenas alterações, internas ou externas.
March e Olsen (2008), ao discutirem o novo institucionalismo, tratam da dinamicidade
das instituições e as consequências intencionais e não intencionais de mudanças feitas
sobre a estrutura vigente. Enquanto ação individual (agência) é uma variável importante,
regras políticas não são reformadas e cristalizadas sem que haja apoio social e/ou algum
tipo de controle que sustente a nova regra (MACKAY, 2014; CHAPPELL; GALEA, 2017).
Dessa forma, mudanças normalmente são feitas de formas tortuosas, maleáveis, graduais
e, às vezes, uma grande mudança em lei pode identificar somente a institucionalização
de uma prática, assim como pode ser insignificante por não ter consequências reais.
Antes de tudo, é crucial ter em mente o que entendemos aqui por instituições
políticas. De acordo com a definição relativamente consensual (WAYLEN, 2014) de
March e Olsen (2006, p. 3), instituições são regras e práticas duradouras “inscritas em
estruturas de significados e recursos que são relativamente invariáveis face à mudança
de indivíduos e relativamente resilientes às preferências e expectativas idiossincráticas
de indivíduos e mudanças em circunstâncias externas”. Ou seja, uma instituição, no
caso, política, pode ser uma regra formal ou informal, que traz certeza e estabilidade
à dinâmica política de uma região. Nesse sentido, tratamos o sistema eleitoral como
uma instituição política, uma combinação de leis, decretos, legislação complementar,
códigos, resoluções e a Constituição, podendo vir do Legislativo ou do Judiciário, além
de regras informais e hábitos comuns.
A confusão que isso gera na população também existe para a classe política e entre
os poderes e são nesses espaços em que nem tudo está previsto em lei ou que existe
discordância que os conflitos são gerados e normas são contestadas. Antes de tudo, é
necessário entender que a classe política não é homogênea e os indivíduos e grupos
pertencentes a ela não trabalham com os mesmos objetivos, através dos mesmos meios
ou com as mesmas informações (MARCH; OLSEN, 1984). Boix (1999), por exemplo,
observa os cálculos dos legisladores no final do século XIX e começo do século XX,
quando a luta por sufrágio universal finalmente ganha força para todos os homens.
De acordo com ele, esta mudança incentiva legisladores europeus a modificarem as
regras eleitorais de majoritárias para proporcionais, de forma a garantir que os partidos
dominantes continuassem sendo eleitos, ao invés de serem substituídos por partidos de
massa, ligados a trabalhadores.
Mahoney e Thelen (2009) descrevem as quatro formas em que uma instituição pode
ser transformada de forma gradual: deslocamento, superposição, desvio e conversão.
Deslocamento significa a troca de uma instituição antiga por uma nova, podendo ocorrer
durante conjunturas críticas, ou seja, momentos de alta dinamicidade em que o status
quo está em fluxo, como revoluções, golpes, transições e reformas (WAYLEN, 2014).
Superposições acontecem quando não é possível “deslocar” uma regra, mas é possível
reformá-la ou adicionar a ela, sendo um tipo de reforma extremamente comum quando
se trata da inclusão de minorias na política. Desvio é a modificação do impacto de uma
instituição através de mudanças contextuais – a não reação a mudanças no ambiente

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HELGA DO NASCIMENTO DE ALMEIDA, LARISSA PEIXOTO GOMES
MAIS EXÓTICOS QUE JABUTICABAS? OS SISTEMAS ELEITORAIS BRASILEIROS
471

político faz com que a regra funcione de forma diferente. Finalmente, a conversão é a
ressignificação de uma regra e normalmente ocorre nas lacunas e omissões que podem
ser contestadas. A Tabela 1 a seguir simplifica a diferença entre estes tipos e veremos
que todas essas possibilidades ocorrem na transformação do sistema eleitoral brasileiro
em o que é hoje.

Tabela 1 – Tipos de mudança gradual nas instituições

Deslocamento Superposição Desvio Conversão

Remoção de regras antigas Sim Não Não Não

Desatenção com regras antigas _ Não Sim Não

Mudança de impacto/uso de regras antigas _ Não Sim Sim

Introdução de novas regras Sim Não Não Não

Fonte: Mahoney e Thelen (2009, p. 16) (tradução nossa).

Por outro lado, além de manter a atenção nas possibilidades e formulações das
mudanças e transformações do sistema eleitoral, também devemos nos atentar para
suas continuidades. Thelen (2004), ao explicar a modificação das instituições, afirma que
devemos nos manter atentos às criações feitas em conjunturas críticas mesmo no passado
distante, entendendo que certas características atuais podem ter sido moldadas por
decisões tomadas muito antes. Isso não significa que essas características institucionais
não tenham sido modificadas ao longo do tempo ou que funcionam com a intenção
original. Ademais, conjunturas críticas não, necessariamente, destroem velhas instituições
e as substituem com práticas completamente novas. Mais ainda, a criação de hábitos e
tradições facilmente passa uma regra inovadora para algo imutável, pois é impossível
pensar outra forma de fazê-la. Por isso, Thelen (2004, p. 8) chama atenção para o fato
de que o estudo de instituições deve incluir um entendimento de “retornos crescentes”
– a autossustentação do sistema por mecanismos que o reforçam – negociação política
e adaptação institucional. A autora continua, explicando que os processos que criam
uma instituição nem sempre são os processos que a mantêm. Elementos como sequência
temporal, informação disponível e mesmo sorte também têm seu papel na determinação
de porquê “esta” e não “aquela”.
Novas instituições nunca são completamente novas. A tábula rasa é um mito e,
de fato, instituições são criadas, reformadas, desconstruídas e repensadas dentro de
possibilidades limitadas pelo contexto histórico, atores críticos, informação disponível
e inúmeros outros fatores (WEIR, 1992). Mais que isso, mesmo quando novidades
conseguem ser pautadas na agenda, como cotas eleitorais por exemplo, essas regras
devem interagir com o mesmo sistema de regras formais e informais, num processo de
interação em que essas regras dificilmente existem e podem ser explicadas de forma
isolada (MACKAY, 2014).

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472 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

De fato, a modificação do sistema vigente depende da força dos novos agentes


e até que ponto conseguem forçar inovações. É necessário observar fatores endógenos,
como a insatisfação de membros ou o funcionamento ineficiente da instituição (MARCH;
SIMON, 1975; COX, 2006), assim como fatores exógenos, como a inclusão de novos
agentes (SGOURAKI; SHVETSOVA, 2008). A falta de informação sobre essas novas
variáveis e como o sistema irá reagir a elas pode causar a criação de regras pouco favo­
ráveis para agentes dominantes.

1.3 Debatendo sistemas eleitorais: pensar em múltiplos encaixes


Consequências de sistemas eleitorais são mais facilmente percebidas quando
estu­dadas empiricamente, como faremos neste artigo. Para entender suas muitas possi­
bilidades de interação, os estudos comparativos são a melhor opção para pesquisa.
Grofman e Lijphart (2002; 2003), Norris (2004), Nicolau (2004), Jones (2009) e Lijphart
(2012) produziram estudos profundos e abrangentes para analisar essas consequências
e demonstram como elas se dão em diferentes países e contextos.
Por exemplo, o sufrágio eleitoral de cada período histórico demonstra claramente
quais grupos dominavam a política e eram assim “merecedores” do direito cidadão de
demonstrar opiniões políticas e ter essas opiniões levadas em conta. Em contrapartida,
se veem também os grupos minoritários os quais as elites políticas mantinham apartados
da vida política do país.
Sobre os sistemas de alocação de cadeiras, o sistema de representação proporcional
(RP) é consensualmente visto como mais permeável que o majoritário, por permitir
que os partidos apresentem mais de uma candidatura e por atrelar a quantidade de
representantes à população representada. De forma geral, ele permite que mais pessoas
de variados backgrounds façam parte da representação política. Mesmo assim, diferentes
variações de regras da RP podem produzir resultados distintos.
O tamanho do distrito também pode afetar a proporcionalidade e a diversidade
deste grupo de eleitas e eleitos. Um distrito muito pequeno pode causar efeitos similares
ao majoritário. Um distrito muito grande pode pulverizar a campanha. Outra questão
é a fórmula usada para o cálculo: quantos votos se traduzirão em quantas cadeiras?
Para quais partidos? Para quais regiões? Também deve-se considerar o tipo de lista
partidária: a lista aberta individualiza a campanha e os votos; a lista fechada fortalece
os partidos; uma opção mista pode ou não ter sucesso em garantir proporcionalidade e
partidos fortes, dependendo de outros fatores. A existência de coalizões pré-eleitorais
também afeta o resultado final, abrindo espaço para partidos menores e aumentando a
fragmentação na casa legislativa.
Sem dúvida, a opção que mais favorece a entrada de minorias políticas, incluindo
mulheres, é a representação proporcional. Além disso, é importante ter distritos
de magnitudes de média a grande, assim como uma lista partidária fechada e com
alternância de gênero (NORRIS, 2004; 2006; JONES, 2009). Grandes distritos oferecem
mais vagas, mas se a lista for aberta, a campanha pode ser tão pulverizada que somente
os candidatos com o perfil tradicional e muitos recursos têm chances de sucesso. Isso
se dá porque mulheres e outras minorias (negros, indígenas etc.), ao serem excluídas
da política por tanto tempo, não possuem o capital político, financeiro e social para
atingirem posições de liderança (ARAÚJO, 2001; 2005; MIGUEL, 2003). Simplesmente,

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MAIS EXÓTICOS QUE JABUTICABAS? OS SISTEMAS ELEITORAIS BRASILEIROS
473

elas não formaram as redes de apoio necessárias para sobreviver dentro do mundo
político (MURRAY, 2010).1
Também deve-se incluir o componente geográfico, já que em alguns países, par­
ticularmente os poucos que ainda fazem uso do sistema distrital majoritário, o debate
sobre gerrymandering é profundo e conflituoso. Distritos precisam ser redesenhados para
garantir seu tamanho populacional. Por exemplo, nos Estados Unidos, os distritos não
conformam com linhas geográficas naturais ou fronteiras históricas, mas são fronteiras
contestadas para garantir o assento para determinado partido ou mesmo determinada
pessoa (PHILLIPS, 1995).
Outro aspecto importante é o multipartidarismo, que aumenta a quantidade de
candidaturas possíveis e abre mais espaço para a presença de minorias. A seleção
de candidaturas feita pelos partidos busca, primariamente, o aumento de cadeiras no
parlamento, não a ascensão política de membros. Narud (2006), Bernauer, Giger e Rosset
(2015) afirmam que, em países com representação proporcional, partidos buscam can­
didatos e candidatas que possam representar todo o espectro do eleitorado, de forma que
sua seleção passa por certos crivos: incumbência, conexões locais, afiliação com grupos
de interesse, e background (ocupação prévia, idade, gênero e origem).2
Alguns aspectos principais dentro da grande temática do financiamento eleitoral
são também pontos importantes dentro do sistema eleitoral de um país e que, assim,
devem ser discutidos: o encarecimento de campanhas, a desigualdade financeira na
disputa eleitoral, a influência indevida de atores externos e o abuso de poder econômico,
a vulnerabilidade de candidatos eleitos em relação a seus financiadores e a falta de
transparência nas finanças eleitorais (SOUZA, 2013).
Sobre as realidades problemáticas em relação à sub-representação de algumas
minorias sociais no sistema representativo, muitos países têm feito ajustes através da
aplicação de cotas. O uso de cotas na política institucional pode ser justificado pela
existência de uma relação estreita entre democracia e inclusão, isso porque “a justiça
implica o reconhecimento de diferenças através da participação ativa de membros
desses grupos nos processos políticos decisórios” (SACCHET, 2012). As cotas para
minorias sociais podem variar, podendo ser aplicadas a candidaturas (destinando certa
porcentagem de candidaturas) ou a assentos (determinando que certa quantidade de
assentos da legislatura seja reservada para a minoria política em questão); entre essas
opções, na lista fechada os partidos podem ser obrigados a ordená-la de forma a intercalar
as candidaturas ou o grupo visado pode ser designado ou eleito por distritos ou terem
assentos proporcionais garantidos aos mais votados (NORRIS, 2004; JONES, 2009).
A construção de uma ferramenta de cotas deve levar em conta suas consequências
em potencial, já que cotas ineficientes não passam de estratégias retóricas (JONES, 2009,
p. 65). Sendo que cotas garantidas em lista fechada e diretamente em assentos têm mais
impacto do que cotas que garantem obrigatoriedade na lista eleitoral. Uma questão

1
A exclusão das mulheres da política é feita de maneira informal, com obstáculos sociológicos e políticos, ao
invés de leis formais. Isto resulta em câmaras legislativas majoritariamente masculinas e brancas, indo contra a
probabilidade de resultados aleatórios (PHILLIPS, 2004).
2
Em casos de competição interna, como o brasileiro, partidos preferem quem pode levantar fundos
individualmente (SAMUELS, 2001a; 2001b) Por outro lado, Norris (2004) se preocupa com o fato de as mulheres
não serem selecionadas para posições “ganháveis”, incluindo o posicionamento na lista, quando fechada. Leis
eleitorais variam de estratégias retóricas, por igualdade de oportunidade, até ação positiva.

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474 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

altamente debatida é sobre qual tipo de cota é mais eficiente, e é importante notar que
isso depende do contexto histórico, tanto do momento em que as cotas estão sendo
criadas e do processo e sequência temporal que desaguaram nesse ponto. Htun (2004)
argumenta que reserva de candidaturas é mais eficiente para grupos sub-representados
que são transversais, como mulheres, e que reserva de assentos é mais adequada para
minorias étnicas, pois são populações com demandas relativamente coincidentes. Por
outro lado, reservas de assentos têm sido usadas em países africanos com sucesso,
e argumentar pela homogeneidade das demandas de grupos étnicos pode ser algo
conflituoso (CRENSHAW, 1989).
Na continuidade deste texto avaliamos os sistemas eleitorais que o Brasil já
vivenciou em todo seu período Pós-Império, demonstrando que mudanças nem sempre
são lineares ou drásticas e que o inovador, muitas vezes, já vem sendo construído há muito
tempo. Muito do que fazemos hoje foi criado no começo do século passado, sob outro
pensamento e outros objetivos. É o nosso objetivo aqui demonstrar a multicausalidade
do sistema eleitoral e sua capacidade de afetar muitos aspectos da nossa vida coletiva.

1.4 1891-1932: o período em que quase ninguém votava


Normas principais:
– Decreto nº 511, de 23.6.1890;
– Lei nº 35, de janeiro de 1892;
– Decreto nº 1.542, de 31.8.1893;
– Lei nº 426, de 7.12.1896;
– Lei nº 1.269, 15.11.1904.

1.4.1 Principais características


– Voto distrital, majoritário;
– sufrágio altamente restrito;
– votação para presidente e vice-presidente separadas;
– sistema partidário pouco enraizado.
O sistema eleitoral brasileiro no período após o fim do Império e até o golpe de
Getúlio Vargas é quase irreconhecível se comparado ao dos dias atuais. De fato, restam
poucos ou quase nenhum resquício desta época e por isso ela se faz tão interessante para
estudo. A principal diferença se encontra no uso da representação distrital e majoritária.
Durante a chamada República Velha (mas quão republicana e democrática ela era está
aberto para debate), usou-se a representação distrital plurinomial, com voto aberto e
cumulativo e contagem majoritária. Ou seja, os estados eram divididos em distritos
que elegiam cinco deputados (antes de 1904, eram três deputados), a eleição era por
maioria simples (os mais votados levavam), o voto podia ou não ser secreto e cada pessoa
votava em dois terços da quantidade de vagas, podendo votar pelo mesmo candidato
com todos os seus votos. A Câmara dos Deputados era composta por 205 deputados
até 1893, quando o número de cadeiras passou para 212.3

3
Decreto nº 511, de 23.6.1890 e Decreto nº 1.542 de 31.8.1893.

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MAIS EXÓTICOS QUE JABUTICABAS? OS SISTEMAS ELEITORAIS BRASILEIROS
475

Eleitores eram considerados os cidadãos brasileiros maiores de 21 anos. É possível


constatar também que havia uma permissividade abrangente na concessão de direito a
voto aos estrangeiros, possivelmente pela recente independência dos Estados Unidos
do Brasil e da possibilidade de estrangeiros, incluindo portugueses, no território.
Assim, foram naturalizados estrangeiros que se achavam no Brasil até 15.11.1889 e que
não haviam declarado a pretensão de conservar sua nacionalidade original e aqueles
estrangeiros que possuíam imóveis no Brasil e fossem casados com brasileiras ou tivessem
filhos brasileiros, contanto que residissem no Brasil, salvo se manifestarem a intenção de
não mudar de nacionalidade.4 De fato, em 1889 foram 409 naturalizações contabilizadas
pela Directoria Geral de Estatística, sendo 250 portugueses.
O sufrágio eleitoral brasileiro, no entanto, descreveu-se com amplas exceções,
como incapacidade física ou moral, condenação criminal enquanto durassem seus
efeitos, naturalização em país estrangeiro, aceitação de emprego ou pensão de governo
estrangeiro, por alegação de crença religiosa com o fim de isentar-se de qualquer ônus
imposto por lei aos cidadãos, por aceitação de condecorações ou títulos nobiliárquicos
estrangeiros. Também não poderiam alistar-se os mendigos, os analfabetos, os praças
de pré, excetuando os alunos das escolas militares de ensino superior e os religiosos
de ordens monásticas, companhias, congregações ou comunidades de qualquer
denominação sujeitos a voto de obediência. Tanto o alistamento quanto o sufrágio eram
facultativos.
O analfabetismo é, sem dúvida, uma das questões mais preocupantes, pois
com poucos anos após a abolição completa da escravidão, essa regra tinha um alto
impacto sobre essa população e sua nova experiência como cidadãos e cidadãs. De fato,
pouquíssimas pessoas eram alfabetizadas durante o período da República Velha e pouco
é sabido sobre quem realmente sabia ler e escrever e quem sabia escrever o suficiente para
ser eleitor (nome, estado, filiação, idade, profissão e residência, Lei nº 1.269, 1904, art. 17).
Mas podemos inferir que, se em 1910, eram 700 mil eleitores no Brasil (NOGUEIRA;
BALEEIRO; POLETTI, 2012), com mais de 3 milhões sabendo ler e escrever (em 1900)
(IBGE, 1995) numa população de 23 milhões (DIRECTORIA GERAL DE ESTATÍSTICA,
1912), não havia uma forte presença negra neste grupo eleitoral.
Também é interessante ver que as comissões que realizam o alistamento de
eleitores eram compostas pelos maiores contribuintes do município de referência.5 Ao
discutirmos o coronelismo e o patrimonialismo e como estão enraizados na cultura
política brasileira, é difícil ter dimensão do que era isso no cotidiano daquela época
(FAORO, 1975; 1994; CAMPANTE, 2003).6 Mas a legislação eleitoral deixa claro que a
mistura entre o público e o privado era fato dado; os patrões eram os encarregados de
alistar eleitores, num sistema de voto facultativo e troca de favores. Não havia nada de
escuso na lógica desses indivíduos – o público pertencia a eles, assim como o privado.

4
Lei nº 35 de janeiro de 1892.
5
Lei nº 1.269, de 15.11.1904.
6
O povo deve ao coronel; o coronel deve à elite. O contrato social estabelecido através da “relação de compadrio”
constrói um senso formal de liberdade, mas na realidade cria-se um padrão de dominação no qual a tradição
comanda que não haja traição (FAORO, 1975, p. 634). O poder do coronel, de acordo com Faoro, não era,
necessariamente, dependente de sua riqueza econômica. Seu poder era derivado, principalmente, de seu status
social. De acordo com a relação amizade-dominação, a eleição é uma mera formalidade. Mas uma formalidade
necessária para sustentação da imagem republicana, já que a ideologia liberal não se aplicava a todos, pelo
menos “parecia” que sim (CAMPANTE, 2003, p. 175).

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476 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

No pensamento da época, era perfeitamente correto e legal instruir seus empregados a se


alistaram e “sugerir” em quem votar. Os arts. 5º e 9º da Lei nº 1.269, 15.11.1904 ilustram
como a comissão deveria ser formada.

Art. 5º Os collectores ou agentes encarregados da arrecadação das rendas publicas


extrahirão dos livros de lançamentos de impostos uma lista dos maiores contribuintes do
municipio assim classificados: 15 do imposto predial e 15 dos impostos sobre propriedade
rural ou de industrias e profissões (art 9º); ou a requisitarão dos chefes das repartições
competentes, si os livros já tiveram sido recolhidos. [...]
Art. 9º A commissão de alistamento compor-se-á, na sede da comarca, do juiz de direito
ou do seu substituto legal em exercício; nos municípios que não forem sede de comarca,
da autoridade judiciaria estadoal de mais elevada categoria, e onde não houver autoridade
judiciaria estadoal, do ajudante do procurador da Republica, como presidente, só com
voto de qualidade; dos quatro maiores contribuintes domiciliados no município, que
sejam cidadãos brazileiros e saibam ler e escrever, sendo dois do imposto predial e dois
dos impostos sobre propriedade rural, qualquer que seja a sua denominação, e de três
cidadãos eleitos pelos membros effectivos do governo municipal e seus immediatos em
votos, em numero igual.7

Além dessa associação entre os mais ricos e a política local, o voto não “precisava”
ser secreto. Chamado de “voto descoberto”, este permitia que o eleitor levasse consigo
uma cópia da sua cédula, além de votar perante a mesa (conforme o art. 57). O que
podemos subsumir da combinação dessas regras é que qualquer eleitor dependente de
seu patrão e sendo forçado a um voto de cabresto era obrigado a levar essa cédula-cópia
para verificação. Nota-se que ambas cédulas eram assinadas e carimbadas ao mesmo
momento de acordo com a lei. Os eleitores eram chamados em voz alta para votar, sendo
público quem estava presente ou havia faltado ao pleito. Por outro lado, a partir do
Decreto nº 21.425, de 27.11.1905, o voto em descoberto é restrito somente a casos que a
seção do município, por qualquer razão, não esteja em funcionamento e o eleitor tenha
que ir na seção mais próxima, podendo votar após todos os eleitores daquela seção
terem votado (arts. 4 e 18). É extremamente difícil saber até que ponto qualquer uma
dessas regras, incluindo a formação de comissão, foram, de fato, utilizadas. O período
da República Velha é um em que detalhes dessa natureza, além de nebulosos, podem
ser altamente contextuais – pode ser que em alguns lugares as regras fossem aplicadas
à risca, com certas consequências, e, em outros, elas fossem adaptadas à realidade
local, gerando resultados diferentes. Toma-se como fato dado o “voto de cabresto”,
por exemplo, a ampla penetração dessa crença pode indicar que o decreto de 1905 teve
pouco efeito; mas isso não quer dizer que não teve efeito algum.
O Decreto nº 4.226, de 30.12.1920, determinou que o alistamento eleitoral seria
permanente, podendo ser revisado a pedido do eleitor ou por demonstração de que
ele não correspondia às exigências necessárias. Esse parece ser o primeiro passo no
sentido da obrigatoriedade do voto no Brasil, ao criar uma institucionalização e uma
permanência do eleitorado – uma vez eleitor, sempre eleitor. Como será visto à frente, é
em cima disso que as regras vão se acomodando até atingir a obrigatoriedade do voto.8

7
Todas as citações na grafia original.
8
Como curiosidade, incluímos aqui o art. 7 do Decreto nº 21.425, que determina a obrigatoriedade de fotos e
impressões digitais, tiradas no momento do alistamento: “Art. 7. A photograhia e as impressões digitaes do

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HELGA DO NASCIMENTO DE ALMEIDA, LARISSA PEIXOTO GOMES
MAIS EXÓTICOS QUE JABUTICABAS? OS SISTEMAS ELEITORAIS BRASILEIROS
477

A regra sobre o sufrágio, no entanto, não excluía ou incluía as mulheres como


detentoras de direitos. Falava-se sobre os homens, deixando as mulheres, tecnicamente,
como caso omisso, ainda que na prática fosse uma proibição. Essa lacuna na lei, por
outro lado, foi explorada pelo movimento sufragista brasileiro, permitindo que mulheres
conseguissem votar e ser eleitas antes da instituição do sufrágio feminino nacional
em 1932. O Rio Grande do Norte foi o estado pioneiro nesse sentido, tendo a primeira
eleitora (Celina Guimarães Viana) e a primeira mulher eleita (Alzira Soriano) em 1928
(HAHNER, 1981).
Durante a República Velha, usou-se a representação distrital plurinomial, com
voto aberto e cumulativo e contagem majoritária. Os estados eram divididos em distritos
que elegiam entre três (até 1904) a sete deputados e estavam eleitos os mais votados (por
maioria simples). Cada pessoa votava em dois terços da quantidade de vagas, podendo
votar pelo mesmo candidato com todos os seus votos. Quando um estado tinha menos
de sete deputados, o mesmo coincidia com o distrito. Senadores, como representantes
federativos, eram eleitos pelo estado.

Art. 58. Para a eleição de Deputados, os Estados da União serão divididos em districtos
eleitoraes de cinco Deputados, equiparando-se aos Estados para tal fim o Districto Federal.
Nessa divisão se attenderá á população dos Estados e do Districto Federal, de modo que
cada districto tenha, quanto possível, população igual, respeitando-se a contiguidade do
territorio e integridade dos municipios.
§1º Os Estados que derem sete Deputados ou menos, constituirão um só districto eleitoral.
§2º Quando o numero de Deputados não fôr perfeitamente divisível por cinco, para a
formação dos districtos, juntar-se-á a fracção, quando de um, ao Districto da capital do
Estado e sendo de dois, ao primeiro e ao segundo districtos, cada um dos quaes elegerá
seis Deputados.
Art. 59. Na eleição geral da Camara, ou quando o numero de vagas a preencher no districto
fôr de ou mais Deputados, o eleitor poderá accumular todos os seus votos ou parte delles
em um só candidato, escrevendo o nome do mesmo candidato tantas vezes quantos forem
os votos que lhe quizer dar.9

O Decreto nº 5.453, de 6.2.1905, define a quantidade de deputados por estado


e o Decreto nº 1.425, de 27.11.1905 faz a divisão dos distritos eleitorais.10 Formavam,
cada um, um só distrito os estados do Amazonas, Pará, Maranhão, Piauí, Rio Grande
do Norte, Paraíba, Alagoas, Sergipe, Espírito Santo, Paraná, Santa Catarina, Goiás e
Mato Grosso. A quantidade de deputados designada a cada estado pode ser vista na
Lista 1 a seguir. Nota-se o forte peso de Minas Gerais, com 37 deputados, bem acima
de qualquer outro estado.

alistando que devem constar da carteira de identidade, exigida para o alistamento nos municípios em que houver
Gabinete de Identificação Federal ou Estadoal reconhecido pela União e cujo serviço seja gratuito, só poderão
ser tiradas no próprio Gabinete, incorrendo em responsabilidade criminal, além da multa de quinhentos mil réis
a dois contos de réis, imposta pelo presidente da Junta de Recursos, o chefe ou encarregado desse serviço, que
consentir ou tolerar que sejam ellas tiradas fora da própria repartição”.
9
Lei nº 1.269, de 15.11.1904.
10
A Câmara dos Deputados era composta por 205 deputados até 1893, quando o número de cadeiras passou para
212 (Decreto nº 511, de 23.6.1890 e Decreto nº 1.542 de 31.8.1893).

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478 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Lista 1 – Quantidade de deputados por estado – Decreto nº 5.453/1905

Amazonas....................................................................................................... 4
Pará................................................................................................................... 7
Maranhão........................................................................................................ 7
Piauhy............................................................................................................... 4
Ceará...............................................................................................................10
Rio Grande do Norte................................................................................... 4
Parahyba.......................................................................................................... 5
Pernambuco................................................................................................17
Alagoas............................................................................................................ 6
Sergipe............................................................................................................. 4
Bahia...............................................................................................................22
Espírito Santo................................................................................................ 4
Rio de Janeiro..............................................................................................17
São Paulo.......................................................................................................22
Paraná.............................................................................................................. 4
Santa Catharina............................................................................................ 4
Rio Grande do Sul......................................................................................16
Minas Geraes...............................................................................................37
Goyaz................................................................................................................ 4
Matto Grosso................................................................................................. 4
Districto Federal.........................................................................................10

Entrar nos detalhes da Primeira República é uma tarefa árdua, pois são poucos
os estudos sobre essa época. Existiam alguns partidos e tentativas de nacionalização
dos partidos republicanos estaduais, mas sem sucesso. Sabe-se, principalmente, dos
Partidos Republicanos paulista e mineiro, que deram a alcunha de “café com leite” ao
período por sua aliança que garantia sempre a presença de um e outro na presidência e
na vice-presidência. À época, estes cargos eram disputados independentemente, e chapas
eram feitas de maneira informal. O sistema distrital é focado na territorialização do voto,
associando o representante ao local que representa. Sendo formulado originalmente no
Reino Unido como uma forma de a aristocracia se manter próxima à monarquia, seu
objetivo era a representação de interesses diretamente conectados ao local e à pessoa
que o representava. Em sua evolução para um sistema por eleição, Edmund Burke, por
exemplo, fica famoso ao afirmar que o representante nunca precisa ir ao seu distrito, e
foi o que fez ao ser representante de Bristol.
Entendendo esse aspecto do sistema que existia na República Velha, podemos
compreender melhor a dinâmica instalada ali. O sufrágio era restrito e altamente vigiado
por coronéis e patrões; os partidos eram agremiações locais que reuniam os interesses
da classe socioeconômica mais alta, mas sem direcionamento ideológico, com as duas

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MAIS EXÓTICOS QUE JABUTICABAS? OS SISTEMAS ELEITORAIS BRASILEIROS
479

maiores elites estaduais entrando em um acordo de compartilhamento de poder; o


sistema eleitoral era desenhado de forma a garantir a presença e atuação política daqueles
que se sentiram excluídos no período monárquico, garantindo o direito de voto somente
a homens alfabetizados (em sua esmagadora maioria, brancos).
No final dos anos 20, essa situação passa a se tornar insustentável, com o cresci­
mento do tenentismo, demandas por reforma constitucional e o acirramento das disputas
entre Minas Gerais e São Paulo. Isso pode ser avaliado na escrita e publicação da emenda
à Constituição Federal de 3.9.1926, que chega a incluir que o governo federal pode
interferir em assuntos dos entes federados para garantir a representação de minorias,
considerando que aos estados era permitido ter seus próprios sistemas eleitorais.
Essas minorias não eram o que hoje consideramos minorias; não queriam dizer aqui
interesses sociais e de grupos como mulheres e pessoas não brancas. Percebe-se que há
um descontentamento geral com a representação, ou falta dela, e a inserção desta norma
parece ser um primeiro passo para a introdução do sistema proporcional, que ocorre
com o golpe dado por Getúlio Vargas, apoiado por vários setores sociais agrupados na
Aliança Liberal.

1.5 1932-1945: entre o fascismo getulista e a representação proporcional


Normas principais:
– Decreto nº 19.398, de 11.11.1930;
– Decreto nº 21.076, de 24.2.1932;
– Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16.7.1934;
– Lei nº 48, de 4.5.1935;
– Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 10.11.1937;
– Lei Constitucional nº 9, de 28.2.1945;
– Decreto-Lei nº 7.586, de 28.5.1945.

1.5.1 Principais características


Representação proporcional;
– estados são as circunscrições eleitorais;
– candidatura avulsa;
– voto expandido;
– sufrágio secreto;
– golpe de 1937.
As insatisfações do fim da década de 20 culminaram em 1930 e na ascensão de
Getúlio Vargas ao poder. O Decreto nº 19.398, de 11.11.1930, determina a manutenção
da república e do federalismo e dos direitos individuais prescritos na Constituição de
1891. É interessante notar a diferença de tom e estilo nos textos legais a partir desta
época, pois passam a ser abertos por preâmbulos que buscam contextualizar e justificar
as medidas sendo tomadas ali.
Já em 1932 é estabelecido o Código Eleitoral, através do Decreto nº 21.076, de
24 de fevereiro. A primeira mudança que se nota é a expansão do sufrágio para a
clara inclusão de mulheres. Além disso, expande-se também a cidadania feminina,
incluindo a mulher estrangeira casada com brasileiro. O Código também traz o respeito

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480 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

à convicção ideológica e política, equiparando-a à crença religiosa. No entanto, são


mantidas todas as outras exclusões, incluindo analfabetismo. O Decreto nº 21.076 é
interpretado historicamente como a tentativa do governo provisório de acalmar os
liberais conservadores que exigiam o regresso do regime constitucional, nesse aspecto
alguns avanços importantes foram realizados. A primeira mulher eleita nesse contexto
foi Carlota Pereira de Queirós, como deputada federal, sendo também a única eleita
nesse momento. Outro aspecto notável desse momento é a permissão de escolha de um
“domicílio eleitoral” diferente do domicílio do eleitor ou eleitora (essa regra é desfeita
na Lei nº 48, de 4.5.1934, art. 68).
O art. 56 institui o sufrágio secreto, resguardando assim o sigilo do voto, sendo
que o eleitor deveria permanecer isolado em gabinete indevassável. É ainda interessantís­
simo ler que no Código Eleitoral de 1932 já se citava o uso de uma “máquina de votar”11
(art. 57, II.2), que pode ser comparada a uma urna eletrônica rudimentar. Outro aspecto
modificado que demonstra o interesse em desconectar as oligarquias tradicionais do
processo político é a mudança de composição dos responsáveis pelo processo eleitoral,
sendo instituída a Justiça Eleitoral, à qual foi atribuída a responsabilidade de organizar
o processo eleitoral, incluindo o alistamento de eleitores, a organização das mesas de
votação, a apuração dos votos, o reconhecimento e a proclamação dos eleitos.
O processo que seguimos hoje ao votar não mudou muito do estabelecido pelo
Código Eleitoral de 1932: o art. 81 descreve o processo de votação, em que a eleitora ou
eleitor, após ter sua identidade conferida, passa à cabine e rapidamente faz seu voto de
forma secreta; o art. 98, inc. 3, determina que não haja propaganda eleitoral 24 horas
antes e depois do pleito e o inc. 7 determina que dia de eleição seja feriado nacional.
Em conjunto com o alistamento permanente, o feriado nacional em dia eleitoral se
torna mais um passo em direção ao voto obrigatório, ao garantir um dia dedicado à
votação para toda a população. Além disso, o art. 119 determina algumas situações em
que é necessário apresentar o título de eleitor(a), indo um pouco mais além na institu­
cionalização do alistamento, tornando-o obrigatório para realizar certas ações. Nota-se
que as mulheres permaneceram, neste momento, isentas dessas obrigações.12

Art. 119. O cidadão alistavel, um ano depois de completar maioridade ou um ano depois
de entrar em vigor este Codigo, deverá apresentar seu titulo de eleitor para poder efetuar
os seguintes Atos:
a) desempenhar o continuar desempenhando funções ou empregos publicos ou profissões
para as quais se exija a nacionalidade brasileira;
b) provar identidade em todos os casos exigidos por lei, decretos ou regulamentos.

11
“O mecanismo da máquina de votar é o seguinte: trata-se de uma caixa de ferro, de formato regular; que possui
cinco dispositivos especiais, onde o eleitor coloca uma chave, no ato de votar, escolhendo, de acordo com a
inspiração partidária correspondente, a chapa que lhe convém. Isto posto, o eleitor faz um movimento na chave,
que é registrado por uma campainha, não havendo possibilidade de fraude, pois que, quando se registra a
operação, os outros dispositivos receptores, destinados a outros partidos, ficam automaticamente protegidos.
Realizado o movimento, o aparelho registra na coluna partidária respectiva o voto do eleito, podendo ser a
máquina colocada em cabine indevassável especial, afim de que o escrutínio seja rigorosamente secreto” (Folha
da Tarde, 9 set. 1937. p. 1 apud MEMORIAL DA JUSTIÇA ELEITORAL GAÚCHA, 2016).
12
Lembrando que a normatização eleitoral do período republicano anterior desta época se restringiu a definir
o escopo de cidadãos alistáveis para votar, se assim quisessem, não imputando obrigação de votar a nenhum
indivíduo, mas apenas descrevendo os indivíduos que poderiam votar se o quisessem e facultativamente.

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481

Art. 120. Não se aplicam as disposições do artigo anterior:


a) aos cidadãos residentes no estrangeiro, ou domiciliados no Brasil, ha menos de um ano;
b) aos homens maiores de sessenta anos, e ás mulheres em qualquer idade.
Art. 121. Os homens maiores de sessenta anos e as mulheres em qualquer idade pedem
isentar-se de qualquer obrigação ou serviço de natureza eleitoral.

A Constituição de 1934 determina, no art. 109, que o alistamento e voto são obri­
gatórios para homens e para mulheres que exerçam cargo público remunerado e passa
a maioridade para 18 anos, mudança mantida pela Lei nº 48, de 4.5.1935, que adiciona a
obrigatoriedade para quem tiver se alistado. Ou seja, quem se apresentasse como eleitor
ou eleitora assumia para si a responsabilidade obrigatória de votar ou justificar ausência.
O título também passa a ser obrigatório para que homens comprovem sua identidade.
O art. 58 do Código de 32 estabelece o sistema de representação proporcional,
sendo também a primeira vez que a legislação eleitoral fez referência aos partidos polí­
ticos. Partidos e grupos de mais de cem eleitores e eleitoras podiam registrar listas de
candidatos e candidatas com uma legenda, assim como era permitida a candidatura
avulsa. O quociente eleitoral (QE) era contabilizado dividindo a quantidade de votos
por cadeiras na circunscrição eleitoral (quota Hare) e o quociente partidário dividindo
o QE pela quantidade de votos recebidos em legenda (desconsiderando, portanto,
avulsos). Tendo em vista o alto valor que a quota Hare gera, o voto era contabilizado em
dois turnos (votados simultaneamente). No primeiro turno, eram eleitas as pessoas que
alcançassem o QE até que acabassem as vagas. Calculava-se, então, o QP, determinando
quantas cadeiras cada partido tinha direito e, se já não tivessem sido preenchidas pelo
QE, observava-se a pessoa mais votada da legenda. Caso o QP tivesse sido satisfeito e
o QE não fosse alcançado por um número suficiente, no segundo turno levava-se em
consideração os votos em legenda e nominais, mas não havia mais proporcionalidade:
a ordem de eleição era definida de forma majoritária pela soma do voto em legenda e
nominal do candidato ou candidata. Essa fórmula também é conhecida como “maiores
sobras”.
A extrema confusão causada por esse sistema foi altamente criticada à época e
modificada em 1935, com a Lei nº 48 de 4 de maio (RICCI; SILVA, 2016, p. 4). O art. 90
explica que a eleição em primeiro turno inclui tanto os candidatos e candidatas que
igualassem ou ultrapassarem o QE (mesma fórmula, incluindo votos brancos como
válidos) e os candidatos e candidatas mais votados nominalmente dentro de uma
legenda que tenha alcançado o QP (mesma fórmula). O segundo turno serviria para
preencher os assentos vagos com os candidatos e candidatas mais votados ainda não
eleitos dos partidos que atingiram o QE. Nota-se que o sistema somente corrige a
confusão feita pelas etapas do processo, continuando extremamente complexo. A pro­
porcionalidade não vem acompanhada, necessariamente, de uma complexificação do
processo eleitoral; os cálculos pensados na década de 30 demonstram isso por serem
uma combinação de proporcional com majoritário e por não terem uma visão clara da
origem da proporcionalidade. O método favorecia os mais votados nominalmente e
suas legendas, incentivando a pertença a partidos apesar da liberação para candidaturas
avulsas e por grupos independentes.
É também neste período que os estados passam a ser as circunscrições eleito­rais,
mas a consideração na característica proporcional deve ser vista de maneira crítica.

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482 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

O Decreto nº 22.621, de 5.4.1933, por exemplo, determina que “O número de deputados


será fixado por lei na proporção que não excederá de um por setenta mil habitantes, não
devendo esse número ser inferior a quatro por Estado”. Já na Constituição de 16.7.1934,
afirma-se:

o número de deputados será fixado por lei; os do povo, proporcionalmente à população


de cada Estado e do Distrito Federal, não podendo exceder de um por 150 mil habitantes,
até o máximo de vinte, e, deste limite para cima, de um por 250 mil habitantes; os das
profissões, em total equivalente a um quinto da representação popular. Os Territórios
elegerão dois Deputados.13

Na Constituição do golpe de 1937, no entanto, isso é modificado novamente:


“Art. 48. O número de deputados por estado será proporcional à população e fixado por
lei, não podendo ser superior a dez e nem inferior a três por estado” (mas o Congresso
nunca foi reestabelecido). Não há, a qualquer momento, uma explicação por trás da
proporcionalidade escolhida.
Já em 1937 percebe-se a importância do partido político na organização da disputa
política. Tanto é que o golpe do Estado Novo justifica, no Decreto-Lei nº 37, de 2.12.1937,
a dissolução de todos os partidos políticos

Considerando que o sistema eleitoral então vigente, inadequado às condições da vida


nacional e baseado em artificiosas combinações de caráter jurídico e formal, fomentava a
proliferação de partidos, com o fito único e exclusivo [sic] de dar às candidaturas e cargos
eletivos aparência de legitimidade [...].

Com o fechamento do parlamento, Getúlio Vargas faz uso do art. 180 da Consti­
tuição de 1937, outorgada por ele, para governar por decreto-lei até 1945. Até fevereiro
de 1945, não houve eleições no Brasil, mas é importante notar que o período até 1937
não foi tranquilo ou democrático. Inclusive, a Prefeita Alzira Soriano foi deposta por
não ser getulista.

1.6 1945-1965: a curta esperança democrática


Normas principais:
– Decreto-Lei nº 7.586, de 28.5.1945;
– Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18.9.1946;
– Lei nº 1.164, de julho de 1950 (Código Eleitoral de 1950).

1.6.1 Principais características


– Representação proporcional;
– lista aberta;
– multipartidarismo;

13
Desde a Assembleia Constituinte que as associações profissionais tinham representação política, com 40 repre­
sentantes naquele momento, 20 representantes de empregados e 20 de empregadores.

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MAIS EXÓTICOS QUE JABUTICABAS? OS SISTEMAS ELEITORAIS BRASILEIROS
483

– introdução de regras sobre financiamento político;


– voto obrigatório;
– Golpe de 1964.
A partir de 1945, Vargas começa de fato a reabertura política, sem mais condições
de se manter no poder. Primeiramente é publicada a Lei Constitucional nº 9, de 28.2.1945,
com o seguinte preâmbulo:

Considerando que se criaram as condições necessárias para que entre em funcionamento


o sistema de órgãos representativos previstos na Constituição;
Considerando que o processo indireto para a eleição do Presidente da República e do
Parlamento não somente retardaria a desejada complementação das instituições, mas
também privaria aqueles órgãos de seu principal elemento de força e decisão, que é o
mandato notório e inequívoco da vontade popular, obtido por uma forma acessível à
compreensão geral e de acordo com a tradição política brasileira [...].

Foi feita assim a remoção dos aspectos mais autoritários da Constituição de 1937
e estabelecida a regularidade eleitoral a partir de 1946, de quatro em quatro anos. Nesta
norma também é mantida a proporcionalidade e a circunscrição eleitoral nos estados,
“não podendo ser superior a trinta e cinco nem inferior a cinco por Estado, ou pelo Distrito
Federal”. Em conjunto com o Decreto-Lei nº 7.586, de 28.5.1945 (“Lei Agamenon”),
Vargas parece buscar consolidar seu legado no quesito eleitoral. Reorganizaram-se a
Justiça Eleitoral brasileira, os pleitos eleitorais e o alistamento eleitoral dos cidadãos.
Com a reintrodução da Justiça Eleitoral no país houve à época a preocupação de
fazer campanhas de conscientização dos cidadãos em relação ao ato de votar, já que o
Estado Novo havia desconstruído as possibilidades institucionais de participação do
cidadão.
O voto se torna obrigatório para todos os homens e para todas as mulheres que
exerçam função lucrativa (com algumas exclusões da obrigatoriedade, como os inválidos,
os maiores de 65 anos, os brasileiros a serviço do país no estrangeiro, os oficiais das
forças armadas em serviço, os funcionários públicos em licença ou férias fora de seus
domicílios, os magistrados). É inquietante ver que mulheres que exerciam trabalhos
domésticos e não lucrativos eram tratadas como cidadãs apartadas da política e que
suas vontades nestes assuntos eram consideradas menos relevantes que as dos cidadãos
do sexo masculino, afinal de contas não há cláusulas exclusivamente masculinas que
os faculte o voto.
Analfabetos continuaram excluídos do direito ao voto, algo também preocupante,
considerando que esta população impedida de tomar parte em sua cidadania era a que
mais precisava garantir sua representação e voz em meio à elite.
Os quocientes eleitoral e partidário e a distribuição de votos ficaram como antes.
Partidos políticos, que antes podiam ser registrados com apenas 200 assinaturas de
membros do eleitorado, passam a precisar de 10 mil eleitores e eleitoras para registro,
em cinco ou mais estados; partidos estaduais passam a ser proibidos. Se antes os partidos
maiores já eram beneficiados pela quota Hare e pelo quociente partidário, agora essa
barreira é colocada ainda mais alta, com a dificuldade na formação de partidos. Ainda
vemos consequências dessas medidas, com a existência somente de partidos nacionais
no Brasil (países como a Argentina e a Suécia possuem partidos locais e regionais).

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484 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Os outros dois pontos importantes desta época são a obrigatoriedade do voto


e o sistema proporcional. Enquanto podemos pensar que os objetivos de Vargas eram
outros, ao estabelecer essas duas regras – uma ideia fascista de dever cívico e a inclusão
de seus aliados enquanto eleitores e candidatos são as fortes possibilidades (WEIR, 1992,
p. 208) –, essas regras se mantêm e são relevantes atualmente por outras razões, como
veremos à frente.
A normatização eleitoral posterior ao de 1945 veio rapidamente, ainda em 1950,
e fez pequenas mudanças em relação ao sufrágio. A obrigatoriedade do voto ficava
definida a todos os cidadãos menores de 70 anos. Também se facultou o voto a todos,
não somente a funcionários públicos, que estivessem fora de seu domicílio no dia de
eleição; ainda aos funcionários civis, não só aos funcionários militares, que estivessem
de serviço no dia da eleição. É importante que se entenda que o alargamento do sufrágio
no período Vargas não significou necessariamente uma expansão do entendimento de
quem se qualificaria como cidadão. Na verdade, mais provavelmente, o aumento do
número de eleitores teve mais a ver com a possibilidade pragmática do governo à época
de conseguir mais votos para sua coalizão governativa e para candidatos aliados, assim
como também algum tipo de associação às próprias crenças políticas de Vargas.
A Constituição de 1946 ainda faz um adendo e descreve que não podiam se
alistar aqueles que não sabiam exprimir-se na língua nacional – fortalecendo a exclusão
da população pobre, negra e indígena, os militares em serviço ativo, salvo os oficiais,
os mendigos e os que estivessem, temporária ou definitivamente, privados de direitos
políticos. Ainda na Lei nº 7.856, de 28.5.1945 – permanecendo no Código Eleitoral de
1950 –, mulheres que não exerciam profissão lucrativa tinham voto facultativo.
A quantidade de cadeiras variou entre 1946 e 1970, começando com 304 deputados
e terminando com 409. O cálculo do quociente eleitoral a partir de 46 é mantido com a
quota Hare (votos válidos divididos por cadeiras), contando os brancos como válidos.
O quociente partidário também continua o mesmo. Já com o Decreto-Lei nº 7.586, de
28.5.1945, se extingue a possibilidade de candidatura avulsa no país. O art. 39 define que
somente podem concorrer às eleições candidatos registrados por partidos ou alianças
de partidos. Sendo que o registro para se tornar partido só seria concedido, de acordo
com o art. 109, àquelas associações de, pelo menos, dez mil eleitores, de cinco ou mais
circunscrições eleitorais, ou seja, a requisição era que, de fato, os partidos tivessem uma
mínima base nacional. Essa norma tinha a pretensão viabilizar a reconstrução de um
quadro partidário de base nacional, principalmente sustentada por raízes regionais,
como era no Estado Novo. No entanto a lei prejudicou profundamente os partidos que
ainda estavam em processo de estruturação e os partidos de oposição que não tinham
a estrutura do governo para ajudar em sua organização. Assim, em 1945, trinta e cinco
partidos tiveram o registro provisório concedido, no entanto, ao final de 1948, apenas
doze restaram oficialmente registrados. No bojo desses acontecimentos, dois partidos
foram criados com o apoio getulista, o Partido Social Democrático (PSD), que tinha o
voto dos intervencionistas e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que tinha o voto do
operariado e alistamento ex-officio, e em oposição a Vargas surgiu a União Democrática
Nacional (UDN), que teve muitas dificuldades para recolher assinaturas por não contar
com a máquina de governo. Além disso, muitos pequenos partidos tiveram que se
associar à UDN para conseguir espaço.

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485

Ainda no Código Eleitoral de 1950, instituiu-se cláusula de barreira para


funcionamento de partidos ligada ao sucesso parlamentar destes. Em parágrafo único
do Capítulo VI normatiza-se que terá cancelado seu registro o partido que em eleições
gerais não satisfizer uma destas duas condições: eleger, pelo menos, um representante
no Congresso Nacional ou alcançar, em todo o país, cinquenta mil votos de legenda.
A justificativa para a criação da cláusula era a tentativa de evitar fragmentação partidária
e legendas de aluguel (SOUZA, 2013). No entanto, essa cláusula nunca chegou a ser
posta em prática. O argumento foi que candidatos eleitos não poderiam ser impedidos
de tomar posse se seus partidos não tivessem obtido sucesso eleitoral perante a cláusula
de barreira14 (SOUZA, 2013).
Outra inovação exótica e, alguns diriam, de viés “cesarista”, surgiu com o
decreto de 1945, a possibilidade de candidatura múltipla, ou seja, candidatos podiam
concorrer simultaneamente a diversos cargos. Getúlio Vargas nas eleições de 2.12.1945,
por exemplo, foi candidato a senador em cinco estados e a deputado federal em nove
estados, sendo que foi eleito senador no estado do Rio Grande do Sul pelo Partido Social
Democrático (PSD) e no estado de São Paulo pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB)
e, ainda, a deputado federal pelos estados da Bahia, Rio de Janeiro, Distrito Federal
(antigo estado da Guanabara), São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul e Minas Gerais,
sempre pelo mesmo partido, o PTB. De fato, não há casuísmo na instituição da regra de
candidatura múltipla, isso porque, unida à lei da absorção das sobras pelo partido mais
votado de cada estado, foi usada pelos personagens políticos dominantes, como Vargas,
para aglomerar votos em suas legendas partidárias e eleger seus aliados.15
A partir do Código Eleitoral de 1950, o Brasil passa a usar uma fórmula de
“maiores médias” ou D’Hondt. De fato, o Brasil estabelece uma divisão equivalente à
D’Hondt, já que o art. 56 mantém o uso da quota Hare para a determinação do quociente
eleitoral e o art. 57, a mesma fórmula para o quociente partidário, o que é desnecessário
para o cálculo da D’Hondt (LIJPHART, 2003, p. 172). Como explica Lijphart (2003), a
fórmula D’Hondt funciona da seguinte forma: os votos de cada partido são divididos
pela sequência de divisores 1, 2, 3, 4..., n e o assentos, dados aos valores mais altos. No
caso do Brasil, após o cálculo da quota Hare e do quociente partidário (determinando
quantos votos são necessários para se eleger e a quantas cadeiras cada partido tem
direito), os votos são divididos seguindo a fórmula D’Hondt e os assentos distribuídos
para quem atinge o QE. Porque a fórmula D’Hondt começa com o divisor 1, ela tende
a privilegiar os maiores partidos ou coalizões, assim como as candidaturas individuais
com mais votos. Nota-se que a partir da Lei nº 9.504, de 1997, votos brancos deixam de
ser contados como votos válidos.
Em 1945, viram-se as primeiras normas que tratavam de legislar sobre finan­
ciamento político partidário e eleitoral. Em 1945, por exemplo, houve a primeira proibição
quanto à origem do financiamento partidário, nela ficaram vetadas as contribuições
de origem estrangeira (SOUZA, 2013). Já em 1950 o Código Eleitoral determinou a

14
“[...] Em 2006, finalmente, o STF declarou a inconstitucionalidade da cláusula de barreira” (SOUZA, 2013, p. 5).
15
Em 2015 o Deputado Federal Leonardo Picciani (PMDB – RJ) propôs que dentro do pacote da reforma política
se reintroduzisse a candidatura múltipla. Esta permitiria que candidatos disputassem na mesma eleição até dois
cargos, um majoritário e um proporcional. Então, se o candidato levasse as duas cadeiras ele poderia escolher
qual gostaria de ocupar.

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486 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

proibição de fontes de recursos provenientes de economia mista, de concessionárias


de serviço público e de doadores anônimos para partidos. Essa foi a forma encontrada
de resguardar as instituições políticas partidárias de tornarem-se marionetes de capital
estrangeiro e de não prejudicarem, de alguma forma, a colocação do Brasil no mercado
externo (SOUZA, 2013). Também houve ainda em 1950 a instauração do primeiro registro
de financiamento público indireto, assim, os partidos ficaram isentos do pagamento
de selos, papéis, reconhecimento de firma e serviço de tabelionato para a feitura de
requerimentos para fins eleitorais.
Sobre os limites de gastos para despesas eleitorais, é impressionante observar que
o descrito no Código Eleitoral de 1950 ainda é o que rege os pleitos eleitorais brasileiros
nos dias de hoje. Dessa forma, os partidos fixam a quantia máxima que um candidato
gastará com sua candidatura e a quantia global máxima que o próprio partido gastará
(SOUZA, 2013).16

1.7 1965-2017: ditadura, reabertura e reformas


Normas principais:
– Lei nº 4.737, de julho de 1965;
– Constituição da República Federativa do Brasil de 1988;
– Lei nº 9.504, de 30.9.1997;
– TSE – Resolução nº 22.610 de 2008;
– Lei nº 13.165, de 29.9.2015;
– Lei nº 13.488, de outubro de 2017.

1.7.1 Principais características


– Período ditatorial militar, com eleições restritas;
– Constituição de 1988;
– sistema proporcional, federalista, com lista aberta;
– cotas de gênero.
Em 15.7.1965, o Código Eleitoral brasileiro, que ainda vigora nos dias de hoje (Lei
nº 4.737, de 15.7.1965), era publicado no país. O sufrágio eleitoral continuou incluindo
cidadãos e cidadãs maiores de 18 anos, mas ainda não considerou cidadãos de direitos
em sua plenitude os analfabetos, os que não sabem se exprimir na língua nacional e os
que estejam privados temporária ou definitivamente de direitos políticos. Há também
uma transformação quanto ao voto de militares no Código Eleitoral de 1965 em relação
à ampliação do sufrágio, descreveu-se assim que os militares seriam alistáveis desde
que oficiais, aspirantes a oficiais, guardas-marinha, subtenentes ou suboficiais ou alunos
das escolas militares de ensino para a formação de oficiais.
Somente no Código Eleitoral de 1965 o sufrágio feminino e masculino é finalmente
equiparado em sua totalidade. A partir desse Código Eleitoral se retira qualquer
possibilidade de voto facultativo para mulheres e o torna obrigatório, modificando então

16
“Estabeleceu-se em 2006, entretanto, que caberia também à lei fixar esses limites até o dia 10 de junho de cada
ano eleitoral. Somente se a lei silenciasse sobre os limites é que os partidos deveriam fixá-los. A prática tem sido,
de fato, a lei do silêncio” (SOUZA, 2013, p. 7).

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MAIS EXÓTICOS QUE JABUTICABAS? OS SISTEMAS ELEITORAIS BRASILEIROS
487

as regras que duraram até 1950, em que mulheres que não exercessem trabalho lucrativo
poderiam escolher não participar do pleito eleitoral. Além disso, se formos mais a fundo
na análise, possivelmente essa regra está vinculada a uma política de desincentivo ao voto
feminino de forma mais ampla. Pensemos bem, em um momento histórico – início da
República até os anos 50 – em que apenas 10% das mulheres faziam parte da população
economicamente ativa do país (PINHEIRO, 2012), isso significava que apenas 10% das
mulheres participariam obrigatoriamente como eleitoras. Sendo que, é bom que se
observe, não havia nenhuma regra associando o voto masculino facultativo ao exercício
de alguma atividade lucrativa, pelo contrário, todos os homens, independentemente de
sua situação laboral, eram obrigados a votar. Enfim, a supressão desta regra do Código
Eleitoral de 1965 é um pequeno avanço no tratamento de mulheres de forma geral como
sujeitas pensantes e com direito à cidadania.
No caminho de uma expansão normativo-democrática, a Constituição de 1988,
apesar de transcrever grande parte do Código Eleitoral de 1965, trouxe, pela primeira
vez, a possibilidade de analfabetos serem eleitores, mas ainda os mantém inelegíveis.
O sufrágio eleitoral para militares também se amplia e se restringe o voto apenas de
conscritos durante o período militar obrigatório. O alistamento eleitoral e o voto conti­
nuam obrigatórios aos cidadãos que tem entre 18 e 70 anos, no entanto se adiciona o voto
facultativo a maiores de 16 anos e menores de 18 anos, aumentando assim a população
de eleitores.
A norma eleitoral também mantém que, para se candidatarem, brasileiras e brasi­
leiros deveriam estar, obrigatoriamente, registrados em partidos. Contudo a possibi­
lidade de candidatura múltipla desaparece.
Atualmente a Constituição de 1988 determina (através da Lei Complementar
nº 78, de 30.12.1993) o número fixo de 513 cadeiras, sendo a divisão que determina o
tamanho das bancadas estaduais ainda feita com a população brasileira de 1998. Chega-
se a 513 cadeiras estabelecendo a proporcionalidade um(a) representante por 370 mil
eleitores(as), porém não há, em nenhuma norma, explicação ou mesmo determinação
formal para esse valor. Para decidir o tamanho das bancadas de cada estado, divide-se
toda a população por 513 e a população de cada estado por esse resultado. Respeita-se
limites mínimo e máximo de oito e 70 representantes – assim quando um estado não
alcança, naturalmente, oito representantes, este número lhe é garantido. Somente São
Paulo teria mais de 70 representantes, sendo o único estado a ter essa quantidade de
deputados e deputadas.
A representação proporcional é mantida e é sempre alvo de debate, mas pouca
perspectiva. De fato, a proporcionalidade pode ser feita em relação a qualquer critério
definido no momento da constituinte. Pode-se fazê-la em referência a quem tem cabelos
curtos e longos; que têm animais domésticos; casa ou apartamento; ou, mais logicamente,
à população de cada estado assim como os votos recebidos pelos partidos, como é o
nosso caso. Assim, o número de cadeiras é definido a partir da população da cidade/
estado e a distribuição delas é proporcional aos votos recebidos pelos partidos.
Em nossa jabuticaba eleitoral se vê que o Brasil é um dos poucos a usar a
representação proporcional com lista aberta e se destaca por ser o maior país a fazê-lo e
pela duração desta combinação, desde 1945 (NICOLAU, 2006, p. 57). Essa combinação
favorece o multipartidarismo que, no nosso caso, é combinado com coligações pré-
eleitorais. A junção dessas várias regras serve para aumentar a proporcionalidade de
estados e partidos representados (LIJPHART, 2012; NICOLAU, 2006, p. 36).

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488 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

O principal resultado da combinação de representação proporcional, lista aberta,


grandes distritos, e grande número de candidaturas é, sem dúvida, a alta competição
entre partidos, mas também intrapartidária. Candidatas e candidatos são incentivados
a realizar campanhas individualistas, que mostrem sua habilidade pessoal de ter cargo
político, independente do partido, e contra seus colegas de legenda. Partidos, por sua
vez, têm interesse em ter o maior número de candidaturas possível, de forma a aumentar
a quantidade de votos contados para o partido e que determina o número de cadeiras
recebidas.
Busca-se garantir o maior número de cadeiras e a vantagem eleitoral de algumas
pessoas bem-posicionadas na cúpula partidária (NICOLAU, 2006, p. 695). O eleitorado,
por sua vez, deve escolher uma candidata ou candidato sabendo que, provavelmente,
seu voto fará pouco para elegê-la. Volta à tona o voto estratégico, mas com a alta
individualização do voto, candidaturas grandes, de incumbentes com altos gastos de
campanha, ou de celebridades, a filiação partidária da candidata ou candidato torna-
se opaca e o eleitorado tende a votar em quem já vai ganhar. Os partidos brasileiros
escolhem alguns privilegiados que serão “cabeça de chapa”, terão mais tempo de fala,
e receberão mais dinheiro para campanha (que poucas vezes são indivíduos de grupos
minoritários). A combinação com o sistema majoritário somente comprova que vencem
aquelas pessoas selecionadas para eleição pelo partido. Em cargos majoritários, o partido
somente tem direito a um candidato ou candidata e, logo, apoia totalmente essa pessoa.
A campanha se torna, de fato, uma caça a doações, já que a maioria das candidatas
e candidatos não pode contar com o apoio do partido (SAMUELS, 2001a; 2001b; MIGUEL,
2003; NICOLAU, 2004; 2006; ARAÚJO; ALVES, 2007). Dada a elevada dificuldade em
arrecadar fundos, talvez fosse mais eficiente que candidatas e candidatos se unissem
e buscassem a eleição de forma unificada. No entanto, além de não existir uma união
programática, partidos tendem a apoiar candidaturas “garantidas”, com apoio financeiro,
publicitário e até na distribuição de tempo do horário eleitoral gratuito (ARAÚJO, 2005).
O processo de seleção de candidaturas no Brasil é desconhecido em sua maior
parte, sendo determinado internamente, informalmente ou em estatutos partidários.
Dadas as condições do sistema eleitoral, os partidos tendem a não ser excludentes
(NICOLAU, 2006; ÁLVARES, 2008). No entanto, isso não indica qualquer tipo de abertura
real dos partidos, somente uma medida para angariar mais votos para a legenda.
Muita novidade também ocorreu em relação ao financiamento político no
período histórico de 1965 aos dias de hoje. Ainda em 1965, no início da ditadura militar,
determinou-se a LOPP (Legislação sobre a prestação de contas) que determinava a pres­
tação de contas de partidos e comitês eleitorais ao fim de cada campanha. Os can­didatos
também ficaram vetados de receber recursos por meio direto e de realizar despesas
individualmente, tudo isso teria que ser realizado através dos partidos. Apenas após
a redemocratização os candidatos individualmente voltaram a “ser atores ativos nas
conduções das finanças eleitorais” (SOUZA, 2013, p. 8). Em 1965 também houve a criação
de um fundo de financiamento público direto, em um primeiro momento o objetivo
do fundo era fazer com que partidos não dependessem tanto de recursos privados
para seu financiamento e que as campanhas não fossem tão influenciadas pelo capital
econômico. No entanto, a desorganização temporal e nos recursos no momento da
implantação do fundo prejudicou os resultados. Com as eleições de 1982 e o evidente
encarecimento de campanhas e da dependência destas em relação ao capital privado,

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MAIS EXÓTICOS QUE JABUTICABAS? OS SISTEMAS ELEITORAIS BRASILEIROS
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demonstrado no caso Fernando Collor/PC Farias, o fundo de financiamento partidário


foi regulamentado novamente, em 1995, com a Lei de Partidos. Esta regulação instituiu
regras que aplicavam multas e legislavam sobre doações; ainda, dotações orçamentárias
da União foram estabelecidas.17
Até a reforma política de 2015 as empresas tinham limite de doação de 2% da
renda anual e pessoas físicas, 10% da renda anual para campanhas. Limites de gastos
existem somente para candidaturas, não para partidos. O Brasil também proíbe doações
estrangeiras, de grupos de interesses, e doações anônimas. Estas proibições incluem
ONGs que recebem doações do estrangeiro ou recursos públicos, e organizações
religiosas ou desportivas. Além disso, também são proibidas outras doações do poder
público fora do financiamento previsto. Não há recebimento de taxas de membros.
Partidos legalmente registrados recebem financiamento de cinco por cento destes
recursos, sendo que são iguais para todos os partidos; o restante é proporcional à
quantidade de votos recebida. O uso dos fundos é regulamentado: não mais que 50%
pode servir para pagamento de aluguéis e salários; 20% deve ir para algum instituto
ou fundação do partido dedicado à pesquisa e capacitação; 5% deve ser utilizado para
promover a participação de mulheres na política. Além do cotidiano e atividades
partidárias, os recursos podem ser utilizados em campanhas. O HGPE também é dividido
igualmente para todos os partidos com candidaturas com um adicional proporcional
para partidos com representantes. Partidos têm liberdade para definir seus programas,
salvaguardando 10% do tempo para suas candidatas. Existem várias regulamentações
com relação à publicidade, de forma a limitar oportunidades para compra de votos.
Partidos também devem relatar suas finanças anualmente, nos três níveis da federação.
Enfim, de fato, a existência de muitas regulamentações e sanções, no caso bra­si­
leiro, vem da desconfiança da população com relação às instituições políticas e repre­
sentantes (INTERNATIONAL IDEA, 2014). Samuels (2001a), Casas-Zamora (2008) e
International Idea (2014) apontam para o volume de doações empresariais no Brasil e a
associação desse recurso com relacionamentos impróprios com representantes.
Focando nas inovações, as cotas sociais eleitorais, que vieram somente a partir da
década de 90, demonstram algum avanço na política brasileira. Foi após a IV Conferência
Mundial da Mulher, em Pequim, que as brasileiras atuantes na política viram uma
oportunidade de introduzir cotas de gênero na Lei Eleitoral brasileira, tendo em vista
que o Brasil foi signatário da plataforma de ação resultante. É importante notar que a
demanda veio, portanto, de membros da própria classe política e não de movimentos
societários. Assim, desde a Lei nº 9.100, de 29.9.1995, o Brasil também possui cotas de
gênero regidas por lei, mas com uma mecânica interessante. Inicialmente separando 20%
das candidaturas, a lei foi redigida sem determinação do sexo que deve preenchê-la, de
acordo com o preceito institucional que afirma que não se pode legislar para um grupo.18

17
“[...] distribuídas em 12 parcelas para os partidos. Tais dotações foram definidas em valor nunca inferior, a
cada ano, ao número de eleitores inscritos em 31 de dezembro do ano anterior ao da proposta orçamentária,
multiplicado por R$0,35 (em valores de agosto de 1995). Os valores deflacionados – tendo como base o ano
de 1994 – indicam que, em apenas dois anos, o montante distribuído por meio do FP aumentou em mais de
30 vezes. Em 1994, o fundo não alcançou um milhão de reais. Apenas dois anos mais tarde, no ano de 1996, esse
valor já passava de 20 milhões de reais (valor deflacionado relativo aos quase 50 milhões de reais distribuídos
naquele ano)” (SOUZA, 2013, p. 5).
18
Usa-se indiscriminadamente, aqui, sexo e gênero. Apesar de serem conceitos contestados, já é consenso nas
ciências sociais que estas palavras não são sinônimas, mas devem ser definidas diferencialmente, assim como

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490 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

A Lei nº 9.504, de 30.9.1997, por sua vez, aumenta a reserva para 30%, com a seguinte
redação (grifos nossos):

§3º Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou
coligação deverá reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento
para candidaturas de cada sexo.

A Lei nº 12.034, de 29.9.2009, modifica a redação, trocando “deverá reservar”


por “preencherá”, aparentemente de forma a reforçar a obrigatoriedade das cotas.
No entanto, as cotas foram criadas em conjunto com o aumento de candidaturas que
cada partido pode apresentar (1,5 vezes o número de cadeiras para partidos; 2 vezes
o número de cadeiras para coligações, redação de 1997), e assim o efeito da cota tem
sido quase nulo (ARAÚJO, 2001). Ao aumentar em 50% o número de candidaturas, os
30% da cota não impactaram o modo como os partidos selecionam suas candidatas e
candidatos. Como o Brasil faz uso da lista aberta, os partidos não pré-ordenam como
suas candidatas e candidatos serão eleitas e eleitos, tendo como consequência que o
que determina a eleição são outros múltiplos fatores, incluindo o apoio partidário que
é decidido de maneira informal e de acordo com as alianças partidárias internas que são
altamente excludentes. Com uma grande quantidade de assentos em disputa, uma ainda
maior quantidade de candidaturas e regras frouxas na questão partidária, as mulheres
se perdem num “mar de candidaturas”, afetando inclusive o financiamento político,
tendo em vista que mulheres tendem a gastar mais por voto sem garantia de vitória ou
mesmo um bom posicionamento (GOMES, 2015).

1.8 Conclusão: a jabuticaba eleitoral brasileira


A combinação de várias regras gera resultados que podem ser imprevisíveis
– ainda mais em uma situação em que não há espaço para teste. No entanto, existem
alguns padrões que podem ser observados no mundo, como exemplo, ser comum o
uso da representação proporcional com a lista fechada. Enquanto é importante ter em
mente que nenhum sistema eleitoral é idêntico a outro, é também válido ressaltar que o
Brasil faz uma combinação de regras que é, pelo menos, heterodoxa, com consequências
bastante particulares.
Por exemplo, não é possível a criação de um sistema proporcional sem algum
tipo de distorção. Nenhuma proporcionalidade, feita com referência a qualquer aspecto
populacional, é passível de ser exata quando transferida para o mundo real. No caso
brasileiro se desistiu do sistema distrital/majoritário, mas manteve-se a ligação territorial
e federalista da representação política. O cálculo de proporcionalidade, até certo ponto
aleatório (por exemplo, nunca é claro como a quantidade de cadeiras é determinada),
pode ser feito de várias maneiras. O respeito ao princípio federalista significa que é

possuem, entre si, complexas relações de interação que podem ou não serem causais. Nos últimos anos, esse
debate tem sido amplamente sentido na legislação brasileira, com disputas em plenários em todas as esferas
assim como modificações em propostas de lei de forma a usar uma ou outra palavra. Pretende-se, com o uso
único de “sexo” determinar que somente o que é determinado pela medicina ao nascer deve ser considerado pela
lei; no entanto, à época da formulação das cotas eleitorais, esse debate ainda não era tão detalhado entre a classe
política.

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HELGA DO NASCIMENTO DE ALMEIDA, LARISSA PEIXOTO GOMES
MAIS EXÓTICOS QUE JABUTICABAS? OS SISTEMAS ELEITORAIS BRASILEIROS
491

necessário proteger a representação dos estados com populações menores. É comum ver
isso tratado como uma “injustiça” com os estados maiores, mas a consequência disso
é que a região Sudeste não é capaz de governar o país sozinha e de acordo com seus
interesses em detrimento das outras regiões do país.
Outra regra eleitoral relevante para a compreensão da dinâmica política brasileira
é a lista aberta. Apesar da sua extrema importância e seu longo histórico de uso no Brasil,
a expressão em si e seu significado são pouco conhecidos. De fato, é tão comum para
a cidadã ou o cidadão brasileiro ir à urna e votar em uma pessoa ao invés de em uma
legenda, que essa mecânica já é tomada como fato dado. Para efeitos de comparação,
pensemos no funcionamento da lista fechada na Argentina. Antes das eleições todos os
partidos apresentam suas listas de candidaturas, com a cota de 30% de candidaturas
femininas. As listas já vêm ordenadas: se determinado partido consegue dez assentos,
as dez primeiras pessoas nessa lista serão eleitas. Como a cada dois nomes masculinos,
obrigatoriamente, deve-se apresentar um nome feminino (ou a cada dois femininos, um
masculino), pelo menos três mulheres deste partido serão eleitas. No caso brasileiro, os
partidos apresentam um grupo de candidaturas, sem ordenação. O eleitorado vota e,
somente após a contagem dos votos, a lista é ordenada. O quociente partidário é aplicado
e descobre-se quantos assentos cada partido irá receber.
Além de decidir a população votante e estabelecer a formação de partidos, o
sistema eleitoral também decide as fronteiras populacionais nas quais essa população
vota e seu voto será contado. Por exemplo, em países unitários, como o Uruguai ou a
Suécia, mesmo o voto proporcional é contabilizado de forma nacional, ou seja, é somente
proporcional à população e não a algum distrito eleitoral. Como o Brasil é um país
federalista, a proporcionalidade de cada cargo segue a população das circunscrições
eleitorais, cidades e estados.
Duas questões ainda afetam diretamente a lista aberta: a magnitude dos distritos
e a quantidade de candidaturas. Como falamos acima, os distritos ou circunscrições
eleitorais, no Brasil, coincidem com as fronteiras geográficas dos estados e dos muni­
cípios. Assim, quando falamos de magnitude do distrito no Brasil, no caso de Minas
Gerais, estamos falando de 53 deputados e deputadas federais e 77 deputados e de­
putadas estaduais que, no papel, concorrem em todo o estado. Avaliar a eficiência do
tamanho de um distrito é uma questão complexa incorporando, além de fatores políticos
e logísticos, questões culturais e históricas.
É também importante que se entenda que omissões institucionais – no sistema
eleitoral, por exemplo, podem ajudar a perpetuar situações de injustiça social nos
estados. No caso brasileiro chama atenção que ainda hoje não houve a concretização
de cotas garantidoras de assentos para minorias historicamente oprimidas, como
mu­lheres, negros e indígenas. No caso da representação política de pessoas negras,
a resul­tante da falta de uma norma eleitoral específica gera resultados desastrosos.
Pessoas negras, que constituem quase 50,7% (2014) da população brasileira (somatório
de pretos e pardos, segundo dados do IBGE), representaram apenas 20% da Câmara dos
De­putados na legislatura iniciada em 2015 (103 deputados) e somente 18,5% (5 sena­
dores entre os 27 eleitos) do Senado.19 O mesmo acontece com mulheres, que são 51%

19
Candidatas enfrentam múltiplos obstáculos que não são associados com campanhas masculinas e mesmo as que
atingem maior sucesso não se comparam aos candidatos em termos de volume arrecadado e de gastos por voto
(GOMES, 2012; SPECK; SACCHET, 2012a; 2012b).

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492 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

da população brasileira, e que mesmo que tenham cotas de 30% garantidas nas listas
abertas eleitorais dos partidos – cotas essas pouco eficazes se comparadas à reserva de
assentos e à cota em lista fechada –, ocuparam apenas 9,9% das cadeiras na Câmara dos
Deputados na legislatura de 2015 e no Senado correspondem a apenas 13,6% do total
de senadores, apresentando resultados de representação feminina piores que de países
tradicionalmente conservadores em relação às mulheres, como a Arábia Saudita.
Enfim, o sufrágio eleitoral no Brasil foi consolidado ao longo do século XX e
baseou-se no princípio da igualdade do voto entre cidadãos. O problema, que resultou
na não incorporação de todas as brasileiras e todos os brasileiros no escopo do direito de
voto logo de início, foi o entendimento de que parte do povo brasileiro não era dotada
de cidadania e, portanto, não deveria ter direitos políticos. E, mesmo quando o sufrágio
teve sua completude com Getúlio Vargas, não havia o entendimento de justiça cidadã
imbuída no princípio, mas o desejo de aumentar o número de votantes com o interesse
em ganho próprio. Somente atualmente o voto obrigatório adquiriu uma perspectiva
de inclusão social e garantia de direito político. O Brasil, sendo um país com dívidas
históricas com vários segmentos populacionais e com uma grande expansão territorial,
precisa garantir que todo o eleitorado tenha acesso ao seu direito de voto. Assim, a
obrigatoriedade do sufrágio existe tanto para a população (que facilmente justifica,
anula ou paga uma multa irrisória) quanto, e principalmente, para o Poder Público,
que é obrigado a fornecer urnas padronizadas, colocadas em todas as seções, mesas
completas, transporte e, inclusive, o horário gratuito de propaganda eleitoral.
Sobre o debate com relação à moralização das formas de financiamento eleitoral,
pode-se afirmar, como observou-se ao longo do texto, que acontece no Brasil desde os
idos de 1945 e concretizou-se em iniciativas para corrigir irregularidades identificadas
no âmbito das finanças eleitorais (SOUZA, 2013). O que se pode dizer é que o sistema
eleitoral brasileiro é, de uma só vez, extremamente aberto e permeável e extremamente
concentrador de poder e dinheiro. Ao permitir milhares de candidaturas e representação
proporcional, a impressão que se tem é que tudo está em fluxo e o sucesso pode ser de
qualquer pessoa. Mas o alto nível de incerteza da competição eleitoral leva investidores
e investidoras, candidatos e candidatas, a buscar essa certeza de outra forma: através
do dinheiro.20
Concluindo, vê-se que nosso sistema eleitoral não surge pronto em 1988, 1997,
2015 ou 2017, mas é formulado ao longo de toda nossa história republicana, sendo ainda
afetado pela exclusão de mulheres e pessoas não brancas da política, pela concentração
de renda, coronelismo e patrimonialismo, assim como fazendo uso de regras formais
adotadas ainda no começo do século XX. Em um momento de instabilidade política,
pensa-se que uma reforma, além de possível e provável, é também salutar, mas a
história nos mostra que nem sempre as reformas vêm para o bem e nem sempre são tão
inovadoras. Enquanto população, o que esperamos é que qualquer reforma, mudança e
releitura de regras políticas e eleitorais seja feita com maturidade e sabedoria, tendo em

20
A forte aproximação de investimento na campanha e quantidade de votos mostra que é necessário ter grandes
volumes de dinheiro para garantir uma campanha (SPECK; SACCHET, 2012b). Por outro lado, dinheiro
não é tudo. Candidaturas de representantes de populações minoritárias, como mulheres e pessoas negras,
precisam gastar muito mais para garantir seu sucesso, dada a falta de características associadas com o perfil
político tradicional. Com menores probabilidades de serem apoiadas pelos partidos, elas precisam arrecadar
completamente sozinhas (GOMES, 2012).

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HELGA DO NASCIMENTO DE ALMEIDA, LARISSA PEIXOTO GOMES
MAIS EXÓTICOS QUE JABUTICABAS? OS SISTEMAS ELEITORAIS BRASILEIROS
493

vista que manipulação mal-intencionada pode resultar em eventos esdrúxulos, como o


que ocorreu com a presidenta democraticamente eleita Dilma Rousseff em 2016. Mais
que tudo, é preciso entender o sistema eleitoral e as instituições políticas de forma geral
como produtos do seu tempo e contexto histórico.

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PÁGINA EM BRANCO

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CAPÍTULO 2

DESAFIOS DO SISTEMA REPRESENTATIVO BRASILEIRO:


SOBRE QUANDO A NORMATIVIDADE DOS IDEÓLOGOS
E OS INTERESSES DOS AGENTES POLÍTICOS
SE UNEM PARA PRODUZIR RESULTADOS OPOSTOS
ÀS DEMANDAS DO PÚBLICO

EMERSON URIZZI CERVI

2.1 Introdução
Por entender que sistemas políticos são meios para o funcionamento adequado
de democracias nacionais e que todo arranjo institucional é resultado de um conjunto
de interesses que definem o que é o funcionamento adequado de um sistema, o presente
capítulo não pretende fazer um apanhado sobre os diferentes modelos, instituições,
regras e formas de funcionamento dos sistemas políticos nas democracias modernas. Esse
tipo de abordagem já está bem documentado na literatura, tanto no campo do direito
(ZIPPELIUS, 1974; BARRACHO, 1977, SCHWARTZ, 1984; ZILVETI, 2004), passando
desde os tratamentos mais normativos e prescritivos até as descrições de efeitos das
regras. Assim como na ciência política, muitos autores têm se debruçado, seja na descrição
do funcionamento dos sistemas políticos, com suas consequências e resultados; seja na
prescrição normativa de funcionamento esperados de sistemas políticos a partir dos
efeitos esperados de regras e arranjos institucionais (DUVERGER, 1980; LIJPHARD,
1984; ABRANCHES, 1988; PALERMO, 2000; NICOLAU, 2002; COMPARATO, 2007;
LASSANCE, 2012; ARAÚJO, 2016). O desenvolvimento das análises na área gerou
uma especialização, com consequência distinção entre sistemas de governo, sistemas
partidários e sistemas eleitorais, como três dos principais subsistemas que conformam
um sistema político representativo nas democracias modernas (ARRETCHE, 2004;
SOUZA, 2005).
Os sistemas políticos têm a dupla função de organizar os processos de repre­
sen­­tação institucional e de conformar demandas, permitindo maior ou menor hetero­
ge­nei­dade interna no sistema. Em geral, os Estados podem ser organizados como

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
498 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

uma única unidade nacional ou como uma federação de subunidades que, juntas,
conformam uma nação. Os sistemas de governo podem ser parlamentaristas, quando
há forte interdependência entre Legislativo e Executivo; ou presidencialista, quando
existe uma independência maior entre governo e parlamento. No parlamentarismo o
chefe de Estado é distinto do chefe de governo. Este último é escolhido pelo parlamento
e tem sua permanência à frente do Executivo ligada diretamente ao apoio obtido no
parlamento. Assim, sistemas parlamentaristas preveem que os mandatos não têm
duração predefinida, a manutenção deles depende da capacidade de gerir as forças
políticas no parlamento. Já no presidencialismo, chefe do Executivo é o mesmo que o
chefe de Estado, sendo escolhido diretamente pelos eleitores em sistemas democráticos.
Integrantes do parlamento são eleitos de maneira independente do chefe do Executivo.
Com maior independência entre os poderes, os tempos de mandatos são fixados
previamente e apenas em casos raros eles podem ser interrompidos – via processos
de impeachment do chefe do Executivo, do próprio parlamento ou via recall, quando o
processo de destituição passa por uma consulta direta aos eleitores. Existem variações,
com semipresidencialismo ou semiparlamentarismo, que são organizadas a partir da
maior ou menor independência do Executivo em relação ao Legislativo e da capacidade
de influenciar a formação de governos diretamente pelos eleitores (DUVERGER, 1980;
ELGIE, 1999; CHEIBUB, 2007).
Outro subsistema que integra os sistemas representativos é o partidário. Parti­
dos políticos são organizações especializadas em fazer a representação política da
socie­dade frente ao Estado e em organizar as relações entre elites políticas dentro
das insti­tuições estatais, principalmente. O sistema partidário pode ser mais fechado,
quando dá exclusividade aos partidos políticos como representantes de demandas da
sociedade, ou mais aberto, quando permite que os partidos concorram com outras orga­
nizações, como sindicatos, entidades sociais, classistas, na escolha de representantes
para as instituições estatais. Uma forma intermediária é a dos sistemas partidários
que permitem a participação formal de segmentos da sociedade independentes dos
partidos, porém, integrantes das listas apresentadas pelas organizações partidárias em
eleições, por exemplo. Outra característica dos sistemas partidários é se eles permitem a
existência de partidos regionais/locais ou se aceitam apenas o registro de partidos com
abrangência nacional. Sistemas partidários nacionalizados geram maior homogeneidade
na representação e mais poder aos líderes dos partidos, enquanto sistemas que permitem
partidos regionais geram maior capacidade de representação de demandas específicas
no sistema político, o que faz crescer heterogeneidade na representação de interesses
segmentados do público dentro do sistema político formal (SARTORI, 1976; SAMUELS,
1979; ALCÁNTARA, 1985; PANEBIANCO, 1988; KINZO, 1993; MAINWARING;
TORCAL, 2005).
O último dos subsistemas relevantes do sistema político é o eleitoral. Ainda
que existam centenas de variações e particularidades para a adaptação prática, eles
são divididos em dois grandes grupos. Há o sistema eleitoral majoritário, no qual os
candidatos são eleitos por maioria de votos em determinado distrito eleitoral. Pode ser
maioria simples ou maioria absoluta. Nesse caso, partidos indicam o equivalente ao
número de vagas em candidatos por distrito. O resultado é uma concentração em poucos
candidatos e um risco permanente de grandes diferenças entre a vontade do eleitor
expressa em votos e a composição dos legislativos. Outra matriz de sistema eleitoral é

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DESAFIOS DO SISTEMA REPRESENTATIVO BRASILEIRO: SOBRE QUANDO A NORMATIVIDADE DOS IDEÓLOGOS E OS INTERESSES DOS AGENTES...
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a baseada no voto proporcional, em que partidos apresentam listas de candidatos em


número igual ou superior ao número de vagas em disputa no distrito. A composição
dos parlamentos é definida pela participação proporcional de cada lista no montante
de votos. Esse sistema reduz os riscos de diferenças entre a distribuição de votos dos
eleitores e a ocupação das cadeiras nos parlamentos, porém, aumenta a fragmentação
nos parlamentos.
Em sistemas majoritários o partido se confunde com o candidato, pois ao se votar
no candidato também se está votando no partido. Já nos proporcionais é possível tanto
votar no partido quanto diretamente no candidato, pois existem duas grandes formas
de organização e apresentação das listas de concorrentes. Quando o partido preordena
a lista, isso significa que só cabe ao eleitor definir quantas cadeiras cada partido terá,
pois a ordem de ocupação das vagas está definida pelo partido, antes do início da
campanha. Esse sistema tende a dar mais poder às estruturas burocráticas partidárias.
Ou então os partidos podem apenas indicar os candidatos que compõem cada lista e
deixar que o eleitor decida o número de vagas e quais concorrentes as ocuparão. Esse é
o sistema proporcional de lista pós-ordenada. Com a lista pós-ordenada há menos poder
das cúpulas partidárias na definição dos eleitos e maior relação direta, ou personalista,
entre o representante e o representado (SARTORI, 1986; GOFFMAN; LIJPHART, 1986;
LIJPHART, 1994; NICOLAU, 2012).
No caso do Brasil, apesar de uma cultura de permanente reforma, o sistema político
vigente tem suas bases inalteradas há aproximadamente 80 anos, desde a década de 1940.
Do que importa para a discussão deste capítulo, a República brasileira é federativa, ou
seja, o resultado da reunião de um conjunto de unidades da federação com algum grau
de autonomia. Também somos desde sempre uma República presidencialista, excetuando
um curto espaço de tempo no início dos anos 1960. Ou seja, sempre elegemos chefes de
Executivo da União, estados e municípios, de maneira independente dos legislativos,
que por sua vez não têm poder de ingerência formal sobre os ocupantes dos governos.
O nosso sistema representativo concentra muito poder nas mãos dos partidos
políticos e seus líderes. Ele prevê apenas a existência de partidos nacionais, o que impede
a competição com partidos regionais pela representação de demandas específicas. Além
disso, apenas partidos políticos podem apresentar candidatos aos cargos eletivos. Nem
mesmo a formação de sublegendas, incorporando movimentos e organizações específicas,
é aceita formalmente no sistema partidário brasileiro. Apesar do uso equivocado do
termo, o Brasil possui um sistema de lista fechada nas disputas proporcionais, pois
apenas os partidos podem apresentar candidatos. A lista é fechada e pós-ordenada no
Brasil. O uso equivocado do termo se dá pela confusão ao se propor a lista preordenada
e chamá-la de lista fechada – desconsiderando que são coisas distintas.
Já o sistema eleitoral brasileiro é misto, com cargos para o Poder Executivo e
Senado sendo definidos pelo voto majoritário e parlamentos compostos pelo sistema
proporcional de votação. Isso faz com que a oferta de candidatos em disputas para os
parlamentos brasileiros seja muito grande, potencializando a fragmentação de partidos
no sistema representativo. Como forma de equilibrar a concentração de poder das cúpulas
dos partidos, do sistema partidário, o sistema eleitoral destina ao eleitor uma dupla
decisão. O voto define quantas cadeiras no parlamento cada partido ocupará, assim como
quem serão os candidatos eleitos. Isso só é possível porque no Brasil o sistema eleitoral
prevê a eleição proporcional por lista fechada (exclusividade dos partidos em definir os

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integrantes da lista antes do início da campanha) e pós-ordenada (com ordem definida


pelo número de votos que os eleitores destinam a cada integrante da lista partidária).
O objetivo do capítulo não é revisar exaustivamente as abordagens descritivas
e normativas dos sistemas apresentados acima e seus efeitos nas democracias
contemporâneas. Até porque os novos desafios apresentados às democracias no século
XXI exigem uma profunda revisão dos modelos vigentes devido, entre outros motivos,
à massificação de demandas que entram nos sistemas representativos e a concorrência
que as instituições tradicionais sofrem dos novos mecanismos de representação e
acompanhamento das decisões dos representantes. O aprofundamento da demo­cra­
cia pela maior transparência dos atos dentro das instituições políticas tem gerado um
efeito de descrença nos resultados políticos, dada maior proximidade com os processos.
O efeito negativo se dá quando a transparência é absoluta e se transforma em pornografia
(HAN, 2013). Outro desafio para os sistemas políticos no século XXI é o crescimento
exponencial da capacidade de demanda individual por decisões políticas. Com a maior
formalização das demandas do público, as instituições representativas passam a ser cada
vez mais objeto de questionamento. É o que Keane (2010) chama de democracias pós-
representativas. Essa definição não tem a ver com democracia direta ou horizontal e sim
é uma proposta de modelo democrático em que as instituições são questionadas direta
e permanentemente por cidadãos individuais ou organizados em novos organismos
representantes de demandas sociais. Os atuais sistemas políticos não estão preparados
para os desafios que se apresentam para as democracias do século XXI (PÉREZ-LIÑAN,
2008).
Este capítulo tem o objetivo de discutir a relação entre as origens do atual sistema
democrático ocidental e suas instituições, além de tratar das ligações entre esse modelo
geral e o sistema democrático brasileiro. Para tanto, o texto está dividido em três
partes a partir daqui. Na primeira, recorro a uma descrição da justificativa, origens e
transformações da atual democracia ocidental – que tem pouco mais de duzentos anos de
existência. Em seguida há uma aproximação da análise sobre o papel das instituições em
tensão com os ciclos políticos, que raramente na literatura são associados aos formatos dos
sistemas políticos vigentes. Por fim, para uma aproximação do caso brasileiro, trato de
um dos componentes de maior instabilidade da democracia brasileira, que é o ambiente
de permanentes reformas políticas e as consequências delas para a democracia brasileira.

2.2 A democracia moderna e sistemas políticos


Ainda que se recorra à democracia antiga como ponto de partida para os sistemas
democráticos, há mais diferenças do que semelhanças entre a democracia contemporânea
e os primórdios da antiguidade. Não é possível fazer relação direta entre sistemas
representativos em sociedades escravocratas, limitadoras de cidadania e baseada em
Cidade-Estado para as democracias atuais, com cidadania universal, capitalistas e de
grandes nações. Markoff (1999) lembra que o atual sistema democrático tem sua origem
por volta de 1790, quando as sociedades começaram a defender um sistema polí­tico
fundamentado em novas instituições que não fossem as tradicionais formas de or­
ganização vigentes até então, sustentadas pela família e pela Igreja. Até o século XVIII
essas duas instituições justificavam sistema políticos centrados na figura de um

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EMERSON URIZZI CERVI
DESAFIOS DO SISTEMA REPRESENTATIVO BRASILEIRO: SOBRE QUANDO A NORMATIVIDADE DOS IDEÓLOGOS E OS INTERESSES DOS AGENTES...
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imperador, sucedido por direito familiar, e com poder político concentrado nas mãos
de poucos integrantes da sociedade.
A partir do final do século XVIII, em pequenos países da região norte da Europa,
segmentos populares da sociedade começaram a reivindicar capacidade de intervenção
nas decisões políticas (MARKOFF, 1999). Naquele período acreditava-se que a
transposição do direito a tomar decisões da nobreza para o povo diretamente só seria
viável em pequenos países, dada a complexidade das demandas em países com amplos
territórios. A revolução francesa e, ao mesmo tempo, o federalismo norte-americano
buscaram alternativas para garantir maior capacidade de representação de segmentos
populares. A Constituição norte-americana é a primeira a reconhecer o cidadão comum
como agente promotor do sistema representativo (SCHWARTZ, 1984). A bill of rights
começa com “nós, o povo...”, o que é algo revolucionário se considerarmos que até então
os segmentos populares eram, no máximo, o polo passivo de qualquer organização
política. É no final do século XVIII que o sistema passa a considerar como central o
interesse popular e a essa nova conformação se dá o nome de democracia moderna.
Assim, temos como característica fundante dos sistemas políticos modernos o
interesse popular como o mais relevante. No entanto, em grandes Estados havia uma
dificuldade em colocar esse sistema em funcionamento, pois as demandas do povo não
podiam ser reunidas em um único conjunto de “entradas” no sistema. O passo seguinte
à legitimação das demandas populares como fundantes da política representativa foi
incorporar ao sistema um conjunto de organizações especializadas em promover a
representação de interesses populares junto ao Estado. Essas organizações ganharam o
nome de partidos políticos (MARKOFF, 1999). Assim, nas democracias representativas
modernas, partidos cumprem o papel de representar interesses de segmentos da
sociedade em sistemas de livre competição pelo poder de representação popular. A ideia
de partido só faz sentido se considerada no plural, o que significa que sistema de partido
único é um desvio; e, além disso, os partidos devem integrar um sistema competitivo
para garantir a representação de partes de todas as forças populares dentro do Estado.
Estabelecido o princípio da centralidade das demandas populares e criado o
sistema partidário ligado a sistema eleitoral competitivo, o próximo passo das demo­
cracias modernas foi estabelecer instituições que fossem capazes de representar no
Estado as demandas daqueles que não estão no Estado, via representantes partidários
eleitos periodicamente. A principal dessas instituições é o parlamento, local onde
os representantes do povo, escolhidos por algum mecanismo aceito por todos, se
reúnem para defender os interesses de diferentes segmentos populares (DAHL, 2001).
A consequência disso foi a quarta inovação das democracias modernas e que obrigou
os sistemas a se adaptarem institucionalmente a algum tipo de prestação de contas
(accountability). A primeira e em muitos sistemas ainda principal forma de accountability
é a eleitoral (MARKOFF, 1999).
Nos últimos dois séculos a engenharia institucional dos sistemas políticos se viu
obrigada a incorporar algum tipo de prestação de contas dos representantes eleitos
aos representados eleitores, os populares. Antes, o sistema político não se preocupava
em estabelecer canais formais de prestação de contas ao povo. Com a transformação
das eleições em momento-chave para a organização dos atores políticos no sistema, no
século XIX o voto passa a ser secreto. Até então, os cidadãos tinham o dever de tornar
público seu voto, apresentando-se publicamente como apoiadores de determinado

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
502 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

partido ou representante político (MARKOFF, 1999). Esse princípio da publicidade


foi sendo substituído gradualmente pelo princípio da segurança do representado, que
passa a agir como alguém que premia ou pune os representantes em função de seu
desempenho e não mais por formas de identidade ideológica de longo prazo. Assim, o
sistema representativo evolui para garantir mecanismos de liberdade individual como
prioritários.
A publicidade dos atos políticos, que até então estava focada na tomada de
posição dos populares/representados, migra para as ações dos representantes/eleitos
que precisam prestar contas permanentes de suas ações para garantir a manutenção ou
crescimento do número de votos obtidos na eleição anterior. A partir daí o sistema político
busca uma nova adaptação, que permita maior transparência dos atos dos políticos
dentro do Estado e maior segurança para o representado poder tomar a decisão eleitoral
sem risco de represálias. Uma das consequências da ampliação das bases políticas dos
representantes foi o combate às barreiras para a cidadania política, que na transição
do século XIX para o XX se dá pela redução nos limites de renda, exclusão étnica, até
chegar ao voto feminino e ao princípio da universalização. A ampliação da cidadania
política mostra ser um novo desafio para os sistemas representativos do início século XX.
Segundo Markoff (1999), o que caracteriza a democracia nesse período é a independência
pessoal do representado em relação aos representantes, a liberdade de opinião, o direito
à manifestação pública e o sigilo na decisão eleitoral. Um dos principais outcomes das
transformações do sistema político no período foi a centralidade dos direitos humanos
na justificativa para qualquer sistema democrático de representação política.
Na transição do século XIX ao XX as sociedades ocidentais passaram por
profundas transformações que terão impacto sob o sistema representativo posterior.
Do ponto de vista social, há praticamente a erradicação do analfabetismo nos países da
Europa central, dá-se um crescimento de renda real como consequência da produção
em larga escala. Além disso, surge a moderna indústria farmacêutica que garante
melhor condição de vida e maior longevidade à população (ORTEGA Y GASSET, 2014).
As novas condições de então levaram a um grau de inclusão social, econômica, de bens
de consumo, conforto individual e maior tempo de vida para a população geral como
não havia sido experimentado pelas sociedades anteriores. Essas mudanças criam
um padrão de comportamento social pouco consequente em relação às instituições
existentes. Surge o que Ortega y Gasset (2014) chama de “homem-massa”, para o qual o
sistema representativo não estava preparado. Por mais consolidadas que estivessem as
instituições da democracia liberal no século XIX, elas não foram suficientemente fortes
para garantir a manutenção dos regimes democráticos. A primeira tentativa de mudança
no sistema democrático foi a universalização de bens sociais mínimos, indo além da
universalização política, conhecida como a social-democracia do início do século XX.
Não bastou, o homem-massa e a socialdemocracia europeia sucumbiram aos regimes
totalitários, principalmente na Itália e na Alemanha, mas também em Portugal, Espanha
e em outros países no primeiro quarto do século XX, gerando a primeira grande crise
dos sistemas representativos da democracia moderna.
Com a incorporação de novos valores do século XX, a vinculação a eles garantiu
o aprofundamento de um tipo de democracia predominante no século passado, que foi
a democracia representativa, mediada por instituições que garantem a transmissão de
demandas sociais de maneira direta e rápida. Os desafios dos sistemas políticos passam

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DESAFIOS DO SISTEMA REPRESENTATIVO BRASILEIRO: SOBRE QUANDO A NORMATIVIDADE DOS IDEÓLOGOS E OS INTERESSES DOS AGENTES...
503

pelo crescimento da capacidade de incorporação de demandas coletivas e individuais,


de interesse geral ou particular no sistema político. Novas formas de participação não
institucionalizada geram uma tensão entre instituições tradicionais, responsáveis pela
representação de interesses coletivos, das que permitem a incorporação de demandas
pessoais, via representação de interesses particulares diretos no sistema representativo.
Isso gera uma nova crise no modelo tradicional de democracia, o da democracia
representativa do século XX.
Os novos desafios do sistema político a partir do século XXI podem ser identi­
ficados no surgimento das chamadas campanhas permanentes (ABRAMSON; ALDRICH;
ROHDE, 2005; DOHERTY, 2007), com uso de ferramentas de campanha durante todo o
período de mandato dos representantes; crescimento de accountability pessoal, direto e
não institucionalizado; volta da prática de voto aberto para justificar posições pessoais
sobre partidos e políticos em espaços públicos ou semipúblicos, fenômeno muito presente
em redes sociais on-line (RSO); retorno do debate sobre o direito à cidadania ampliada,
com crescimento da defesa de que nem todos devem ter o direito de participar para
não inviabilizar o sistema e uma hiperindependência individual que enfraquece as
instituições de defesa de interesses coletivos (GOMES, 2005; ROVER, 2006). O sistema
político, pensado para organizar uma democracia representativa fundada em bases
de debates racionais para apresentação de demandas coletivas por agentes políticos
independentes e responsivos (predominante a partir da segunda metade do século XX),
agora enfrenta uma avalanche de demandas individuais, mobilizadas por conversações
estimuladas por mecanismos publicitários, emotivos e persuasivos, afastando-se do
debate racional (como descrito nas crises da democracia no início do século XXI).
Os desafios para os atuais sistemas políticos são encontrar formas de
institucionalizar as fortes demandas individuais em detrimento de demandas coletivas,
com predomínio da representação particularizada e posições públicas dos representados
sustentadas por convicções pessoais que tendem ao fanatismo para conversão dos que
pensam diferente ao invés de respeito às diferenças presentes no debate público. Caberá
cada vez mais aos sistemas políticos a responsabilidade de garantir interação social e
paz cívica, sem as quais a democracia não se sustenta (BERGER; ZIJDERVELD, 2012).
Mais do que pensar na preservação de instituições, os sistemas políticos dependem
cada vez mais das garantias de respeito à pluralidade de ideias e visões de mundo para
a preservação da representação pública. Quanto mais plurais forem as manifestações
no sistema político, maior insegurança e instabilidade, reduzindo a paz cívica e
aumentando a intolerância social. Nesse sentido, intolerância pode ser considerada um
tipo de reação natural à pluralidade de visões de mundo. Cabe aos sistemas políticos
garantir a manutenção da paz cívica como fim, independentemente da preservação das
instituições-meio desses sistemas. O crescimento da capacidade de interação pública
e o maior volume de informações disponíveis não resultam em mais tolerância e paz
cívica, ao contrário, quando não constrangidas por mecanismos garantidores, geram
intolerância e desagregação social.

2.3 Sistemas, instituições e ciclos políticos


No tópico anterior discutiu-se como os sistemas políticos passam por uma constante
necessidade de adaptação devido às mudanças sociais de longo prazo. Centralidade nas

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
504 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

demandas populares, partidos competitivos, voto secreto e accountability moldaram os


sistemas democráticos do século XX. A partir de então surgem novas características,
como personalização, hiperindividualização de demandas, formas alternativas de
partici­pação e enfraquecimento das instituições tradicionais do sistema político. Para
além dessas mudanças de longo prazo, os sistemas políticos enfrentam outro desafio,
que são as mudanças geracionais, de curto prazo, das elites políticas. Essas mudanças
são iden­tificadas por ciclos políticos e têm impacto direto sobre como se organizam os
represen­tantes no sistema. Como todo ciclo, há movimentos de crescimento, manutenção
e substi­tuição geracional. Não raras vezes o fim de um ciclo passa não apenas pela reno­
vação geracional, mas também pela substituição de perfis de governantes – favorecido
quando o sistema político possui um subsistema partidário competitivo. Assim, uma
das preocupações que mobilizam a elite política nos sistemas democráticos é buscar
condições institucionais para se proteger dos movimentos cíclicos e retardar ao máximo
as mudanças. Aqui repousa outro desafio dos sistemas políticos no século XXI, conseguir
se blindar dos interesses de sobrevivência da elite política e ao mesmo tempo gerar
condições para permitir movimentos cíclicos naturais e evitar a manutenção artificial
de uma elite que já perdeu a capacidade de representação.
Há duas formas principais de encerramento de um ciclo político: pela substituição
ou pela renovação. A substituição se dá quando um grupo político encerra o ciclo e é
substituído pelo seu principal concorrente. Já a renovação acontece quando toda uma
geração de representantes é substituída por uma nova, que se posiciona como oponente
política aos tradicionais. A eleição nacional de 2002 no Brasil, dentro da normali­dade
institucional, é um exemplo de substituição de grupo político no governo federal.
A crise política iniciada em 2013 e com possível conclusão em 2018 é um exemplo de
fim de ciclo de uma geração de políticos. Prova disso é que as instituições e práticas
são questionadas pela nova geração, não integrada ao sistema político tradicional e os
novos movimentos políticos demonstram não ter compromisso com o funcionamento
do sistema político atual – em alguma medida uma retomada do que Ortega y Gasset
(2014) identificou cem anos atrás.
Até então, as renovações políticas brasileiras não permitiam identificar encerra­
mentos de ciclos, pois tradicionalmente há um rejuvenescimento da elite política ao invés
da substituição propriamente dita. Os ocupantes de cargos eletivos ficam mais jovens
quando são substituídos por filhos, netos, sobrinhos ou representantes da linhagem do
clã familiar ampliado. Isso explica porque temos um sistema partidário formalmente forte
e nacional, porém, na prática, submetido a interesses de caciques e líderes regionais que
conseguem subverter as estruturas partidárias em favor dos interesses de clãs familiares
ampliados. Daí surge um dos elementos pouco explorados na literatura brasileira sobre os
partidos, que é a convivência entre um sistema partidário nacional gerido por lideranças
regionais: os barões locais.
A representação personalizada é uma das explicações para a falta de identidade
partidária no sistema. As relações são predominantemente de líder a líder ou de
líder a liderado. As lideranças não estão vinculadas a visões de mundo e, na maioria
das vezes, nem mesmo a segmentos específicos da sociedade. Líderes políticos
modernos desenvolvem a capacidade de se adaptar a novos temas, apresentando-
se como representante de distintas demandas, para garantir continuidade eleitoral.
Essa característica gera uma “independência” dos líderes em relação aos partidos e

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às regras institucionalizadas. Todo o sistema sustenta-se na capacidade individual


das lideranças em conseguir organizar e manter uma coalizão de forças políticas
heterogêneas regionalmente (ABRANCHES, 1988). Se no ápice do sistema está um
político incompetente para gerir a coalizão, as instituições políticas não têm força para
manter a estabilidade e surgem crises políticas agudas, como aconteceu no impeachment de
Dilma Rousseff em 2016. Ainda que tenhamos mantido as bases do sistema representativo
brasileiro praticamente inalterado, a partir do último quarto de século, é possível
identificar pelo menos quatro ciclos políticos distintos, grosso modo, limitados cada
um a uma década, que geraram mudanças na elite política e na forma como os agentes
estatais se relacionam com os segmentos da sociedade.
- Entre os anos 1974 e 1984, durante o período de transição para a democracia há
o fim do ciclo político de uma elite pouco ligada a valores democráticos e republicanos
no Brasil. É significativo que em 1974 o empresário paulista Eugenio Gudin lança uma
campanha publicitária “pela livre iniciativa”, por considerar que o regime militar estava
estatizando a economia e atrapalhava o país. Se os principais representantes dos empre­
sários reclamam da ditadura civil-militar em nome do capitalismo de mercado, é sinal
que o ciclo se esgotou.
– Entre 1984 e 1994, ciclo político caracterizado pelo pacto democrático e em
favor da reorganização institucional. A Constituição de 1988 é o ápice desse
período. Marca a opção da sociedade por uma retomada do republicanismo e
do fortalecimento de instituições estatais de representação político-partidária
diretamente ou de instituições de representação difusa dos interesses públicos.
A reorganização do Ministério Público como poder com mais autonomia é um
exemplo das mudanças ocorridas nesse ciclo.
– De 1994 a 2004, encerrado o período da reorganização estatal, passa-se à etapa
de maior relevância para a sociedade. Há substituição do Estado-centrismo
nos anos 1990 por uma maior liberalização social e econômica. É o período
das privatizações, notadamente do sistema financeiro e de setores ligados às
operações de telecomunicações no Brasil, que ainda estavam sob responsa­
bilidade direta do Poder Público.
– Entre 2004 e 2014 o Brasil e a maior parte dos países sul-americanos passam
por um ciclo político pós-colonial, com substituição do neoliberalismo pelo
neopopulismo de esquerda, por defender a transferência da centralidade do
mercado econômico para as camadas mais populares. É o ciclo político em que
se dá o giro à esquerda nas eleições presidenciais, porém, com crescimento de
forças mais à direita nos parlamentos nacionais. No caso brasileiro esse ciclo é
marcado pela manutenção da matriz econômica nacional, institucionalizando
políticas de estabilidade econômica. Porém, apesar dos avanços em outras
áreas, em especial a da assistência social, não foi capaz de promover a
institucionalização de políticas sociais na mesma medida.
A partir de meados de 2013 o ciclo político de então começa a dar sinais de
exaustão. Não só no Brasil. Em toda América Latina os presidentes de esquerda sofrem
derrotas eleitorais (por exemplo, a eleição do empresário Maurício Macri pelo movimento
Cambiemos para presidência da Argentina) e/ou dentro da área política. Em alguns
casos, como o brasileiro, o enfraquecimento das instituições do sistema representativo
propriamente dito abre espaço para que outros agentes ganhem centralidade política,

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mais especificamente as áreas criminais do Ministério Público e do Poder Judiciário. São


eles que se apresentam como sucessores da representação política e únicos capazes de
promover o combate à corrupção enraizada no sistema político.
O ativismo judicial sobre o sistema político é identificado como uma das causas da
precipitação do mais recente ciclo político brasileiro (ARANTES, 1997; VIANNA, 1999;
BARROSO, 2012). Além disso, deve-se considerar também o canibalismo da classe política
que, ao tentar livrar-se das garras do ativismo judicial, empurra líderes e instituições
representativas inteiras para o julgamento pré-conceituado da opinião publicada pelos
meios de comunicação. No atual fim de ciclo, demorou para a elite dirigente perceber que
o canibalismo da classe política digere todos os atores relevantes (líderes e partidos) de
seu tempo. A terceira explicação para a crise de fim de ciclo acentuada do sistema político
brasileiro, que está na origem das duas anteriores, é a corrupção descontrolada em todas
as esferas do Poder Público. Entre as consequências mais danosas do descontrole sobre
a corrupção política está a não institucionalização de programas sociais e manutenção
dos ganhos sociais alcançados no ciclo político mais recente.
Ainda que pareça novidade, a corrupção pública tem estado no centro dos fins
de todos os ciclos políticos recentes (VILLORIA MENDIETA; IZQUIERDO SÁNCHEZ,
2016). Os principais motivos para fins de ciclos políticos ou são crises econômicas ou são
crises morais, identificadas por corrupção desenfreada. Não raras vezes, as duas crises
caminham juntas, causando estresse no sistema político. Aqui, entendemos corrupção
pública como a quebra de normas legais (jurídicas) ou de normas éticas não escritas, com
apoio social sobre como se deve exercer a atividade política para proporcionar serviços
a grupos de cidadãos de forma direta ou indireta. Sendo assim, corrupção pode ser
medida diretamente pela baixa capacidade de atendimento das demandas públicas e pela
baixa qualidade nos serviços prestados pelo Estado; ou pode ser identificada de forma
indireta, pela publicização de enriquecimento ilícito, com desvio de recursos públicos
que deveriam ser destinados a fins públicos. É incompleto pensar a corrupção política
apenas limitada ao segundo tipo, o dos desvios de valores monetários propriamente
ditos. Corrupção pública vai além de malas de dinheiro sendo transferidas de mãos sem
registro formal (VILLORIA MENDIETA; IZQUIERDO SÁNCHEZ, 2016).
O ciclo político brasileiro dos anos 1970 terminou pela junção de hiperinflação
com crise econômica aliada à corrupção institucional generalizada, que não era pública
por não estarmos em uma democracia à época. Assim, a alternativa naquele momento
para o combate à corrupção era a retomada da democracia, com mais transparência e
liberdades. Nos anos 1980 a crise econômica continua fora de controle e a democracia não
varreu a corrupção do Estado. A conclusão é que a crise era geracional, pois os “velhos”
do regime anterior seriam responsáveis pelos desvios de finalidade do Estado. A solução
passava por manter a democracia e renovar a elite política. Esse foi o argumento central
que levou dois políticos relativamente jovens e desconhecidos em 1989 ao segundo turno
da primeira eleição direta para presidente da república depois da ditadura civil-militar
de 1964-1985 (Fernando Collor de Melo, então PRN, e Luís Inácio Lula da Silva, PT).
A década de 1990, após a crise do impeachment de Collor, trouxe estabilidade
econômica e redução do tamanho do Estado. Porém, com o processo de privatização
vieram novas suspeitas de corrupção, em especial na quebra do monopólio para algumas
atividades da Petrobras, privatização do sistema de bancos públicos regionais e da
infraestrutura de telecomunicações. O golpe final ao ciclo político dos anos 1990 foram

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denúncias de corrupção para que a emenda constitucional que permite a reeleição a


cargos do Poder Executivo fosse aprovada em 1997. O fim do ciclo mostrou que não
bastava ter democracia, renovação geracional e reestruturação do Estado, era preciso a
substituição do partido governante.
O ciclo seguinte, que começa a se esgotar em 2013, ajuda a entender que a simples
substituição do partido governante em um sistema político de coalizões regionais com
o governo federal não é suficiente para encerrar desvios de finalidade pública. Ao
contrário, mesmo com a substituição do partido governante, o modelo de corrupção
dentro do Estado foi mantido e suas bases ampliadas na mesma medida do crescimento
econômico durante a década de ouro das commodities nos mercados internacionais. Com a
queda dos preços internacionais e redução da capacidade do Estado em se autofinanciar,
abre-se uma crise fiscal que coincide com a presença de um governo pouco competente
para organizar uma coalizão política em períodos de crise. Além disso, há um fator
externo, que é a pressão do Ministério Público e Poder Judiciário por investigações
contra corrupção organizada, usando pela primeira vez de maneira ampla a prática
das delações premiadas por parte dos acusados. Esses três principais fatores (crise
fiscal, incompetência para gerir a coalizão e investigações criminais transformadas em
escândalos nacionais) explicam o fim antecipado do governo Dilma Rousseff (PT), via
impeachment em 2016. Em todos os ciclos políticos recentes do sistema representativo
brasileiro é possível encontrar exemplos de corrupção em pelo menos uma das quatro
dimensões seguintes:
i) como quebra de normas legais, com resultados diretos na forma de benefícios
privados (normalmente financeiros) para políticos ou burocratas;
ii) pela quebra de normas legais com benefícios indiretos aos envolvidos, tais
como concessões, subvenções públicas, requalificações legais para favorecer
grupos ou segmentos específicos;
iii) pela simples quebra de normas éticas aceitas socialmente, com benefício direto
para o agente da corrupção, como exemplo, acesso privilegiado a informações
específicas ou regulações que favoreça determinados grupos ou segmentos; ou,
iv) pela quebra de normas éticas aceitas socialmente pelo menos pela maioria e
com benefícios indiretos para o corrupto. Normalmente não é pecuniário e
envolve a burocracia estatal predominantemente. É a forma de mais difícil
controle e prevenção. Ocorre quando agentes da burocracia usam seus cargos
em favor de visões de mundo religiosas ou ideológicas, extrapolando o que
preveem os regulamentos da função exercida.
A análise descritiva da conjuntura de um sistema político precisa considerar não
apenas as características próprias do sistema, tais como intensidade de competição,
capacidade de representação de demandas, liberdade de expressão ou a forma de orga­
nizar políticas públicas. Ela também deve considerar o papel das instituições não direta­
mente ligadas aos subsistemas políticos, tais como os meios de comunicação e agora
as RSO, o Poder Judiciário e a própria opinião pública. Como contramedida a todos os
estímulos por renovação e fim de ciclos políticos, os representantes eleitos contam com
alguns mecanismos institucionais. O principal dele é a capacidade de adequação dos
subsistemas partidário e eleitoral para garantir condições de manutenção da elite atual
nos postos eletivos.

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No próximo tópico do capítulo é apresentada uma descrição de como o perma­


nente estado de demandas por reformas no sistema político brasileiro tem gerado
melhores condições para manutenção da atual elite política, ao contrário do esperado
pela opinião pública.

2.4 Minirreforma eleitoral de 2015 e o encastelamento dos barões


Esperava-se do sistema político brasileiro uma estabilidade a partir dos anos
1990, quando foram aprovadas duas leis: uma que organiza o subsistema partidário, a
Lei nº 9.096/1995, e outra, o subsistema eleitoral, Lei nº 9.504/1997. Ambas, discutidas e
aprovadas no Congresso Nacional, organizaram os subsistemas políticos brasileiros logo
após o plebiscito de 1993, previsto na Constituição de 1988, para definição do sistema de
governo brasileiro. Na consulta de 1993, a sociedade brasileira optou diretamente pela
república presidencialista, rechaçando a volta da monarquia parlamentar e a opção de
uma república parlamentarista. A expectativa de que a formalização em leis específicas
traria estabilidade ao sistema não se concretizou. Nas últimas décadas, mais de duas
centenas de propostas de reforma no sistema partidário e eleitoral foram apresenta­
das no congresso nacional. Algumas pontuais, outras com objetivo de reformas mais
profundas, inclusive alterando a Constituição. De maneira geral, em anos ímpares parte
dessas propostas avança e consegue se transformar em lei com validade a partir das
próximas eleições.
Para exemplificar esse processo de permanente reformismo, neste tópico final
do capítulo serão analisadas as transformações no sistema político geradas pela Lei nº
13.165/2015, conhecida por minirreforma eleitoral. Isso porque a proposta de reforma
foi apresentada e discutida em meio à crise política iniciada em 2013 e pouco antes do
início formal do processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff (PT), ou seja,
no bojo da crise de fim de ciclo descrita no tópico anterior. A análise se dá a partir de
três abordagens distintas. A primeira é que embora o debate público sobre as reformas
concentre-se em poucos temas abrangentes que raramente são aprovados, muitas outras
questões formais de organização do sistema são alteradas a cada nova reforma, sem que
a opinião pública consiga perceber as mudanças. A segunda dimensão é a que aponta
que toda reforma política é autointeressada, ou seja, atende aos interesses, públicos
ou não, dos que ocupam cargos eletivos no momento em que as mudanças ocorrem.
Todo agente político que propõe uma reforma tem interesses legítimos em garantir
melhores condições de permanência no sistema. A consequência é que na maioria das
vezes os efeitos práticos das reformas são mais conservadores do atual status quo do que
transformadores dele. Por fim, a terceira abordagem visa substituir a discussão pontual
das reformas por uma aproximação geral sobre o que se esperar como resultado efetivo
do sistema político.
O primeiro ponto tem por objetivo mostrar como, apesar da concentração de
cobertura da mídia em poucos itens do sistema político e eleitoral, a minirreforma de
2015 alterou centenas de dispositivos em três leis que organizam o sistema político.
O tipo de voto, se majoritário, misto ou proporcional; a forma de organização da lista, se
antes ou depois da votação, no caso das disputas proporcionais; e as prerrogativas dos
candidatos, são os grandes temas. Dificilmente há acordo sobre eles no parlamento. Mas
nem por isso deixam de ser feitas mudanças. O Quadro 1 a seguir sumariza o número

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de dispositivos alterados pela minirreforma eleitoral de 2015 No Código Eleitoral, na Lei


das Eleições e na Lei dos Partidos Políticos Brasileiros. Ao todo, foram 269 dispositivos
alterados nas três leis.

Quadro 1 – Alterações promovidas pela Lei nº 13.165/15 – Minirreforma eleitoral

Lei original Número de alterações

Lei nº 9.504 /1997 – Lei das Eleições 153 alterações, sendo:


– 81 mudanças na redação original;
– 49 inclusões no texto legal;
–23 dispositivos revogados.

Lei nº 9.096/1995 – Lei dos Partidos Políticos 71 alterações

Lei nº 4.737/1965 – Código Eleitoral 45 alterações

Fonte: Organização do autor a partir de Portal da Legislação (BRASIL, [s.d.]).

Como demonstra o Quadro 1 acima, a minirreforma de 2015 alterou principalmente


dispositivos da legislação eleitoral, embora também tenha modificado a Lei dos Partidos
Políticos e o Código Eleitoral, que está vigente desde 1965. Apesar da permanente
sensação de frustação da opinião pública ao final de cada processo de reforma dos subsis­
temas políticos com o não avanço das mudanças sobre grandes temas, as reformas tendem
a aprovar um grande número de pequenas alterações que interferem no funcionamento
cotidiano dos subsistemas políticos brasileiros.
As alterações pontuais na legislação tendem a fortalecer as lideranças partidárias,
reduzir a capacidade real de intervenção popular nas estruturas partidárias e diminuir a
transparência tanto do sistema partidário, quanto das eleições. A consequência é que as
reformas acabam gerando resultados muitas vezes contrários às demandas da opinião
pública. Foi o que aconteceu com a Lei nº 13.165/15, discutida e aprovada em meio a uma
forte mobilização da opinião pública por novos mecanismos de transparência e combate
à corrupção. No entanto, como mostra o Quadro 2 a seguir, o resultado foi deixar os
subsistemas menos transparentes, dificultar a fiscalização e punição pelo uso inade­
quado de recursos públicos pelos dirigentes partidários, além de reduzir o tamanho e a
inten­sidade das campanhas eleitorais, o que favorece as elites políticas já estabelecidas.
As propostas de reformas servem para atender aos interesses da elite política
que as discutem e aprovam. Todo agente político que propõe mudanças nas regras é
autointeressado na organização do sistema, ainda que do ponto de vista do discurso
dirigido aos seus representados defenda o atendimento às demandas públicas. Os
resul­tados práticos nas últimas décadas no caso brasileiro têm sido garantir condições
mais confortáveis para manutenção das atuais elites políticas e dificultar a renovação
elei­toral de fato – ou seja, tornar mais lenta a transição de fins de ciclos políticos, quando
não interromper esses processos. O Quadro 2 a seguir sumariza alguns exemplos de
alterações na legislação eleitoral e partidária que vão ao encontro dos interesses políticos
das elites e contra as demandas da opinião pública.

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Quadro 2 – Exemplos de alterações na legislação promovidas pela


minirreforma eleitoral de 2015

Lei original Mudanças válidas a partir da eleição de 2016

Lei nº 9.504/1997 – – Filiação deferida pelo partido 6 meses antes.


Lei das Eleições – Se a convenção não preencher lista, o órgão de direção pode preenchê-la.
– TSE define limites máximos de gastos de campanha.
– Candidato pode usar recursos próprios até o limite estabelecido para o cargo.

Lei nº 9.096/1995 – Fim de balancetes mensais dos partidos em ano de eleições. Quatro meses antes e dois
– Lei dos Partidos meses depois da campanha.
Políticos – O §5º do art. 32 da lei passa a estabelecer que a desaprovação da prestação de contas
do partido não ensejará sanção alguma que o impeça de participar do pleito eleitoral. 
– A redação do art. 37 passa a ser que a desaprovação das contas do partido implicará
exclusivamente a sanção de devolução da importância apontada como irregular,
acrescida de multa de até 20% do valor.
– Além disso, o artigo também estabelece que a multa deverá ser aplicada de forma
proporcional e razoável, pelo período de até doze meses. O pagamento será feito por
desconto nos futuros repasses de cotas do Fundo Partidário, desde que a prestação
de contas seja julgada, pelo juízo ou tribunal competente, em até cinco anos de sua
apresentação. 

Lei nº 4.737/1965 – – Passa a valer o cociente individual de 10% do cociente partidário.


Código Eleitoral – Prevê voto em trânsito para municípios com mais de 100 mil eleitores.
– Estabelece redução do período de campanha eleitoral, com propaganda sendo autorizada
a partir de 15 de agosto.
– Deixa de aceitar prova testemunhal exclusiva para perda de mandato.

Fonte: Organização do autor a partir de Portal da Legislação (BRASIL, [s.d.]).

Como é possível perceber nos exemplos de alterações apresentados no Quadro 2


acima, a Lei das Eleições teve reduzido o prazo mínimo de filiação dos candidatos, que
antes era de um ano; deu mais poderes para as cúpulas partidárias montarem as listas de
candidatos independentes das convenções de filiados e acabou com o limite percentual
do patrimônio do candidato para autofinanciamento de campanha eleitoral. A partir
dessa mudança, quanto mais rico o candidato for, maior a possibilidade de financiar
com os próprios recursos a sua campanha. Trata-se de uma mudança fundamental no
cenário em que os financiadores externos de campanhas são limitados a pessoas físicas
ou fundos públicos controlados.
Na Lei dos Partidos Políticos as principais alterações reduziram a capacidade de
fiscalização da Justiça Eleitoral sobre o uso dos recursos do fundo partidário. Além disso,
estabeleceu limite de cinco anos para punição por possíveis desvios, limitou multas a
20% do valor julgado irregular e, por incrível que pareça, a lei estabelece a partir de
2015 que o pagamento da multa será por descontos em parcelas futuras de repasses do
fundo partidário. O que na prática significa que deixa de existir punição pecuniária real
para desvios que sejam identificados e julgados em menos de cinco anos pela Justiça
Eleitoral. Uma medida em sentido absolutamente contrário à demandada pela opinião
pública a partir de 2013.
No Código Eleitoral, a minirreforma de 2015 incorporou a previsão de um cociente
eleitoral individual para garantir que sejam eleitos candidatos com pelo menos 10% de

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votos em relação ao cociente partidário. Isso evita que “puxadores de votos” consigam
eleger vereadores ou deputados com votações próprias muito baixas. Também houve
redução do tempo de propaganda eleitoral e a partir de 2015 as denúncias de abuso do
poder econômico ou compra de votos deixa de contar apenas com provas testemunhais
para condenação. Passa-se a exigir prova material para perda de mandato de quem é
eleito exercendo abuso de poder econômico na campanha. Como se percebe, em geral, os
resultados das reformas promovidas pela elite política em 2015 foram na direção contrária
às demandadas pela opinião pública durante o período de crise política iniciada em 2013.

2.5 Notas conclusivas


Para evitar a armadilha do fortalecimento das elites políticas em detrimento das
instituições no sistema é preciso terminar com a cultura do reformismo permanente da
legislação. Na impossibilidade de inexistirem as propostas periódicas de reformas, a
melhor alternativa é pensar as mudanças em termos gerais e não na forma de propostas
isoladas. O mais adequado é saber o que se quer perguntar antes de buscar as respostas.
O que se quer do sistema político brasileiro? Uma resposta que parece estar
presente nas manifestações de especialistas (do campo da ciência jurídica e da ciência
política) e nas manifestações da opinião pública e publicada apresenta três características
fundamentais. Primeiro, que o subsistema eleitoral represente mais fielmente possível a
vontade do eleitor na composição das casas legislativas. O Brasil é um país continental,
com grandes heterogeneidades e desigualdades regionais. Para esse tipo de país o melhor
sistema eleitoral é o proporcional, pois ele garante a incorporação de minorias no sistema
representativo e reduz as diferenças entre vontade do eleitor e resultado das eleições.
Em segundo lugar, que os partidos políticos sejam fortes instituições especializadas
na representação de demandas de diferentes setores sociais. Para tanto é preciso que
o subsistema partidário diferencie fortalecimento das estruturas dos partidos do
fortalecimento de dirigentes. Ajudaria a fortalecer as estruturas partidárias se detentores
de mandatos no poder legislativo tivessem que entregar suas vagas caso aceitassem
ocupar cargos no Poder Executivo. Com isso, seriam criadas pelo menos duas elites
dirigentes nos partidos. Uma com cargos eletivos, principalmente no Legislativo, e outra
com características técnicas para ocupar cargos no Executivo, por indicação política. Estas
duas elites seriam interdependentes, pois, sem ocupação de cadeiras no Legislativo, um
partido não é chamado a participar de governos.
Por fim, em terceiro lugar, um sistema político moderno deve possuir mecanismos
efetivos de fiscalização permanente da elite política por parte dos representados, com
transparência e democracia interna nos partidos políticos. Isso evitaria o encastelamento
dos caciques políticos, dos barões regionais e a consequente formação de clãs familiares
ampliados nas direções partidárias.
No Brasil temos reformado muito e muitas vezes os subsistemas políticos. A maior
parte das mudanças é sobre o funcionamento cotidiano dos subsistemas e não aparece
no debate público. O resultado é que o sistema político tem se tornado menos trans­
parente, mais concentrado nas mãos de poucos dirigentes políticos e menos responsivo
às demandas sociais. A forma de financiamento das campanhas eleitorais nos últimos 20
anos criou uma plutocracia, com predomínio de candidatos ricos que têm mais recursos
para se elegerem. Uma das consequências imediatas desse cenário foi o estabelecimento

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de relações pouco republicanas entre a elite política e a elite econômica do país, visando
ao atendimento de interesses mútuos. Porém, considerar que em um país continental
como o Brasil é possível fazer representação política sem recursos financeiros é um
equívoco primário, que abre as portas para corrupção e caixa 2 nas atividades políticas.
Assim como considerar que o problema da corrupção no Estado será resolvido com
reformas eleitorais. Não. O problema é administrativo e não eleitoral. Está na capacidade
de desvio de recursos públicos destinados originalmente a políticas ou obras públicas.
A fiscalização desses pagamentos e formas de contratação é a única alternativa para
combate à corrupção organizada no sistema político brasileiro.
A redução da influência de interesses econômicos que distorcem o sistema
representativo só se dará quando a questão do financiamento foi equacionada de fato e
os partidos políticos produzirem quadros para serem candidatos ao invés de buscarem
lideranças sociais externas para garantir a ocupação de cadeiras nos legislativos. Para
tanto, é preciso fortalecer os partidos como instituições especializadas na representação
de demandas da sociedade no Estado e para organizar o debate político nos parlamentos.
Por mais que se desenvolvam as capacidades individuais de vocalização de demandas
na arena política e por mais que as instituições tradicionais sofram concorrência de
novas organizações de representação de demandas sociais, a democracia representativa
baseada em partidos políticos ainda é a forma mais eficaz de promover a paz cívica nos
sistemas políticos do século XXI.

Referências
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Permanent Majority? Political Science Quarterly, v. 120, p. 33-57, 2005.
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CAPÍTULO 3

UMA ANÁLISE ECONÔMICA DA LEGISLAÇÃO


REFERENTE AO FINANCIAMENTO DA POLÍTICA NO
BRASIL: REFORMAS E EFEITOS

ANA CLAUDIA SANTANO

3.1 A análise econômica do direito e o pensamento político


A política está longe de ser linear. Algumas vezes, poderá ser racional, em outras,
poderá atender a uma lógica egoísta ou que busque uma melhor distribuição de poder
que se distancia de uma explicação coerente. Quando se afirma que uma questão é
política, também se remete a uma ideia de participação no poder ou na luta para influir
na distribuição dele, que considera o Estado como a única fonte do direito de “usar a
violência”. Portanto, esta distribuição de poder pode ocorrer entre Estados, ou entre
grupos de um Estado. A fundamentação política de uma decisão desta distribuição estará
sempre conectada aos interesses sobre isso, de distribuição, manutenção ou transferência
do poder. Neste sentido, Weber aduz que, quem participa do poder, o faz como um
meio de servir objetivos egoísticos ou ideais, ou o faz para obter “o poder pelo poder”,
desfrutando desta sensação de autoridade que só ele proporciona.1
Nesta linha, tem-se que, tanto nas eleições quanto dentro dos próprios partidos,
não existem grandes incentivos para adotar um comportamento racional. E dentro desta
perspectiva, o papel dos recursos econômicos na política é ambíguo,2 o que faz com que
as reformas das leis que se relacionam ao tema não possam ser analisadas somente com
base no “dever-ser”, sem um diagnóstico do seu impacto e das possíveis mudanças que

1
WEBER, Max. A política como vocação. In: WEBER, Max. Ciência e política, duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1996.
p. 56.
2
Sobre isso, cf. Burnell, que entende que a quantidade de dinheiro utilizado para o financiamento e a sua influência
no resultado das eleições não podem ser sobre-estimadas, pois existem outros elementos que têm influência
decisiva (BURNELL, Peter. Introduction. In: BURNELL, Peter, WARE, Alan (Ed.). Funding democratization.
Manchester: Manchester University Press, 1998. p. 6).

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
516 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

produzem no sistema democrático.3 Aliás, o fato de ser, no fundo, uma autorregulação


por parte dos partidos políticos sempre pode produzir alguma “ilusão do jurista”, em
que as demandas doutrinárias de normativização se veem acompanhadas por uma
frágil efetividade jurídica, que permite aos partidos se manter sempre em uma zona
nebulosa, sendo diretamente beneficiados pelas insuficiências dessas normas.4 Com
isso, pretende-se destacar que a regulação do financiamento da política (considerada
aqui como o financiamento dos partidos políticos e de campanhas eleitorais)5 é um dos
maiores problemas das democracias atuais, e um âmbito em que são os próprios partidos
os sujeitos e os destinatários da regulação normativa.6
É indiscutível o fato de que o dinheiro nas democracias modernas possui um
forte protagonismo.7 Claro está que não há democracia sem partidos, e não pode
haver partidos sem os recursos necessários para mantê-los.8 Além disso, os processos
eleitorais também têm um custo, e os partidos devem estar preparados para estas
consultas populares periódicas.9 No entanto, existem pelo menos duas questões a serem
postas quando se realiza uma análise sobre o financiamento: o primeiro problema é a
desigualdade econômica, que se contrapõe ao princípio da igualdade de oportunidades

3
MILYO, Jeffrey. The political economics of campaign finance. The Independent Review, v. III, n. 4, p. 537-547, 1999.
p. 541-545.
4
MARTÍN DE LA VEGA, Augusto. Los partidos políticos y la Constitución de 1978. Libertad de creación y
organización de los partidos en la Ley Orgánica 6/2002. Revista Jurídica de Castilla y León, p. 201-228, jan. 2004.
p. 207.
5
Nassmacher considera que o termo “financiamento da política” tem diferentes conotações. Uma que contrasta o
financiamento privado com o público tanto de partidos e eleições, ou o que somente se refere ao financiamento
de partidos e campanhas eleitorais, sem mencionar se é privado ou público. (NASSMACHER, Karl-Heinz.
Comparing party and campaign finance in Western Democracies. In: GUNLICKS, A. B. (Ed.). Campaign and party
finance in North America and Western Europe. Colorado: Westview Press, 1993. p. 238). Por sua vez, Gruenberg sugere
duas definições para o financiamento da política, uma restrita aos recursos arrecadados pelos partidos e candi­
datos, para sustentar gastos eleitorais e suas atividades permanentes, e outra mais ampla, que engloba todo e qual­
quer recurso usado na política, como os lobbies (GRUENBERG, Christian: El costo de la democracia: poder económico
y partidos políticos. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2007. p. 17). Neste trabalho, será usada a concepção restrita.
6
Weber já manteve posição de que as finanças dos partidos constituem a parte menos clara da sua história, o que
se contrapõe com o fato de que também seja um dos pontos mais importantes (WEBER, Max. Economía y sociedad
I: teoría de la organización social. México: Fondo de Cultura Económica, 1944. p. 303).
7
ALEXANDER, Herbert. E. Introduction. In: ALEXANDER, Herbert. E.; SHIRATORI, R. (Ed.). Comparative political
finance among the democracies. Colorado: Westview Press, 1994. p. 1-2. Contudo, cabe a ressalva de que os estudos
e dados empíricos não comprovam terminantemente a real importância que o dinheiro tem na política, já que
não se pode afirmar que realmente exista uma relação direta e unidirecional. Se o mercado do financiamento
político não funciona bem, a intervenção estatal só deve ser adotada se realmente implica uma melhora, porque
uma reforma na regulação requer custos, e quanto mais detalhada seja a regulação, maiores serão esses custos.
Tais regulações acabam gerando problemas de equidade, afetando principalmente aos partidos pequenos, e são
sempre os partidos maiores os que se encontram em condições de cumprir a lei (GARCÍA VIÑUELA, Enrique.
La regulación del dinero público. Revista Española de Investigaciones Sociológicas – REIS, n. 118, p. 65-95, abr./jun.
2007. p. 76-77).
8
Nassmacher aponta três critérios para a competição entre os partidos, sendo o primeiro a organização, o segundo
o trabalho voluntário, e o terceiro o dinheiro. Todos estão muito ligados porque, para ter uma boa organização,
é necessário haver um trabalho voluntário, sendo que a quantidade de trabalho voluntário dependerá do nível
de integração do partido com a sociedade. Para aumentar e maximizar tudo isso, devem-se organizar meetings,
eventos etc., o que requer dinheiro. O dinheiro é, obviamente, indispensável em quase todas as atividades dos
partidos, desde a seleção dos candidatos e as estruturas permanentes de suas sedes, como para a campanha
eleitoral em si, uma vez que os gastos com os meios de comunicação serão maiores. (NASSMACHER, Karl-
Heinz. Introduction: political parties, funding and democracy. In: AUSTIN, R.; TJERNSTRÖM, M. (Ed.). Funding
of political parties and election campaigns. Stockholm: International Idea, 2003. p. 4).
9
CASTILLO VERA, Pilar del. La financiación de partidos y candidatos en las democracias occidentales. Madrid: CIS
Siglo XXI, 1985. p. 1.

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ANA CLAUDIA SANTANO
UMA ANÁLISE ECONÔMICA DA LEGISLAÇÃO REFERENTE AO FINANCIAMENTO DA POLÍTICA NO BRASIL: REFORMAS E EFEITOS
517

e que pode, por sua vez, ameaçar a estabilidade do sistema.10 O segundo problema é a
dependência econômica dos partidos políticos e candidatos de fontes de financiamento
mais vantajosas, acompanhada pelo encarecimento contínuo das campanhas eleitorais
e a redução de fontes de financiamento e de receitas.
Contudo, apesar de existirem muitos estudos voltados ao tema do financiamento
da política brasileira desde a sua perspectiva jurídica, há pouca comunicação entre tais
análises e outras ciências, ressalvando-se, talvez, as análises vindas desde a ciência
política, o que isola os resultados de outros importantes aspectos e os limita somente
a recomendações de como deveria ser a legislação ou quais mudanças seriam mais
adequadas, dentro da ideologia de quem as profere. Sabe-se que há uma opção ideológica
positivada nas normas jurídicas11 e que é uma tarefa difícil abstrair a sua própria
concepção interna,12 principalmente quando se está interpretando a lei. A norma é fruto
de uma ideologia. O ato de interpretar também é. O intérprete deve captar a ideologia
positivada na norma, embora a distorça com base na sua própria. Daí a necessidade de
uma intermitente autocrítica. Interpretar pressupõe autocrítica contínua.
E neste campo incerto do financiamento, no qual ocorre a junção da política e
do direito, é que surgem outros elementos muito ignorados pelos juristas e que são
oriundos das ciências econômicas. Afinal, o dinheiro é o fator central do financiamento
da política, o que não o torna imune às intervenções estatais necessárias para manter – ou
ao menos tentar controlar – a sua influência sobre a democracia. É a partir disto que se
sugere uma reflexão a partir da análise econômica do direito (AED). O comportamento
dos indivíduos dentro de uma sociedade pode ser entendido como um reflexo da forma
como a legislação vigente é aplicada. As sanções impostas pelo ordenamento jurídico
são ferramentas que podem condicionar o agir das pessoas frente às normas legais.
Se estas sanções não têm efetividade ou não são aplicadas de forma devida, não terão
resultados na vida social, sendo o contrário também verdadeiro, ou seja, sanções efetivas
também são sinônimo de eficiência das normas, com efeito direto no comportamento
dos indivíduos. Este raciocínio é fundamentado na relação dos custos e benefícios, típico
das ciências econômicas.
A análise econômica do direito (AED) faz exatamente esse raciocínio.13 Trata-se
da análise teórica dos efeitos da alteração das sanções previstas na lei e na probabilidade
da sua aplicação. Os modelos do comportamento à margem da norma consideram que

10
Nesse sentido, cf. LANCHESTER, Fulco. Introduzione: il finanziamento della politica tra forma de stato e vincoli
sistemici. In: LANCHESTER, Fulco (A cura di). Finanziamento della politica e corruzione. Milano: Giuffrè, 2000. p.
7-10.
11
Nesse sentido, cf. DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 13. ed. São Paulo: Saraiva,
2001. p. 485.
12
Segundo Gadamer, o intérprete deve estar consciente das suas próprias concepções para, então, compreender as
concepções alheias (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método – II. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis:
Vozes, 2002. p. 75-76). Hesse também destaca a importância da pré-compreensão do intérprete (HESSE, Konrad.
Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 1998. p. 61-62).
13
Devido aos limites deste trabalho, não é possível dissecar detalhadamente a AED, fato que não impede, contudo,
de se fazer um pequeno bosquejo sobre a doutrina clássica. Ronald H. Coase elaborou um trabalho emblemático
sobre o tema, estabelecendo o que se denominou posteriormente de “teorema de Coase”, que dita que, se
os agentes envolvidos com externalidades podem negociar (sem custos de transação) a partir de direitos de
propriedade bem definidos pelo Estado, o farão e, com isso, chegarão a um acordo em que as externalidades
serão internalizadas. Ocorre que a realidade não é isenta de custos, sendo estes geralmente muito altos.
É nesse ponto que o direito atua como um condicionante do comportamento dos agentes econômicos (COASE,
Ronald H. The problem of social costs. The Journal of Law and Economics, v. III, out. 1960. p. 15 e ss. Disponível em:

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
518 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

o indivíduo age com base no raciocínio que realiza dos custos e benefícios esperados,
formando o que a doutrina denomina de princípio da racionalidade.14
Entende-se que a adoção dos pressupostos econômicos ao direito é muito útil, já
que as normas têm como objetivo central a regulação do comportamento humano, sendo
a economia a área de conhecimento que avalia como o ser humano se comporta e toma
as suas decisões em um contexto de recursos escassos, bem como as suas consequências.
Sabe-se da dificuldade do direito em explicar realidades sobre as que realiza um juízo
de valor, da ausência de instrumento para a realização dessa análise, ou mesmo da
inexistência de uma teoria jurídica que explique o comportamento humano. É nessa
lacuna que a análise econômica do direito pode ser uma boa ferramenta para a avaliação
de prováveis consequências da aplicação de uma legislação específica por parte dos
agentes sociais. A análise da forma como estes agentes responderão face à variação de
incentivos é um meio objetivo de se obter um diagnóstico mais concreto, superior a um
que resulte da mera intuição.15
Diante disso, tem-se que o indivíduo é um maximizador de prazer.16 O princípio
da racionalidade dispõe que o indivíduo busca maximizar o seu prazer, a sua utilidade,
a satis­fação de seus interesses e desejos, com um custo mínimo. Se há conflito entre o
inte­resse geral e interesses pessoais, normalmente o indivíduo tende a satisfazer os
seus próprios.17 Nesse sentido, a norma gera custos ou benefícios para o indivíduo, que
podem ou não o persuadir a tomar uma decisão diante de uma situação específica, ou
respei­tando o ordenamento vigente, ou infringindo-o.

<http://www.econ.ucsb.edu/ ~tedb/Courses/UCSBpf/readings/coase.pdf>. Acesso em: 4 dez. 2017). Gary S.


Becker também analisou o comportamento humano por meio de pressupostos econômicos. Segundo o autor,
o indivíduo calcula a probabilidade de punição e a sua gravidade para a prática de crimes. Os criminosos
atuam racionalmente quando verificam que os benefícios do crime superam os custos da pena. Este estudo
causou muita polêmica devido aos desdobramentos morais das conclusões do autor (BECKER, Gary S. Crime
and punishment: an economic approach. The Journal of Political Economy, v. 76, n. 2, p. 169-217, mar./abr. 1968.
Disponível em: <http://www.soms.ethz.ch/sociology_course/ becker1968>. Acesso em: 4 dez. 2017). Contudo,
provavelmente o autor mais citado na AED é Richard A. Posner, que afirma que o principal fundamento da AED
é aportar segurança e previsibilidade ao ordenamento jurídico, uma vez que, da mesma forma que os mercados
necessitam de segurança e previsibilidade para ter um funcionamento adequado, a AED é uma ferramenta para
dotar maximização, equilíbrio e eficiência as relações jurídicas (POSNER, Richard A. Values and consequences:
an introduction to economic analysis of Law. Coase-Sandor Institute for Law & Economics Working Paper, n. 53, 1998.
Disponível em: <http://www.law.uchicago.edu/files/files/53.Posner.Values_0.pdf>. Acesso em: 4 dez. 2017).
14
DONÁRIO, Arlindo. Análise econômica do direito – Probabilidade umbral. Instituto Nacional de Administração,
2010. Disponível em: <http://www.universidade-autonoma.pt/upload/galleries/probabilidade-umbral.pdf>.
Acesso em: 4 dez. 2017.
15
Nesse sentido, conceitua Ivo T. Gico Jr.: “A Análise Econômica do Direito, portanto, é o campo do conhecimento
humano que tem por objetivo empregar os variados ferramentais teóricos e empíricos econômicos e das ciências
afins para expandir a compreensão e o alcance do direito e aperfeiçoar o desenvolvimento, a aplicação e a
avaliação de normas jurídicas, principalmente com relação às suas conseqüências” (GICO JR., Ivo T. Metodologia
e epistemologia da análise econômica do direito. Economic Analysis of Law Review, v. 1, n. 1, p. 7-33. jan./jun. 2010.
p. 8).
16
Não se ignora que o utilitarismo possui um importante peso nesta análise. No entanto, parece ser que a política, a
partir da explicação de Weber, também é, muitas vezes, utilitarista. Neste sentido, pode-se propor uma tentativa
de analisar as normas de financiamento da política com base neste comportamento utilitário, já que, como já dito,
elas são fruto de autorregulação. Não há como ser ingênuo e ignorar os interesses contidos em tais normas.
17
DONÁRIO, Arlindo. Análise econômica do direito – Probabilidade umbral. Instituto Nacional de Administração,
2010. Disponível em: <http://www.universidade-autonoma.pt/upload/galleries/probabilidade-umbral.pdf>.
Acesso em: 4 dez. 2017.

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ANA CLAUDIA SANTANO
UMA ANÁLISE ECONÔMICA DA LEGISLAÇÃO REFERENTE AO FINANCIAMENTO DA POLÍTICA NO BRASIL: REFORMAS E EFEITOS
519

3.2 A trajetória histórica da legislação sobre o financiamento da política


brasileira – a distância entre o mundo do ser e o do dever-ser
As normas referentes ao financiamento da política sempre padeceram de uma
significativa fragmentação e de uma instabilidade interpretativa e temporal que termina
influenciando sua aplicação. Como ocorreu em muitos países de democracia ocidental, as
regras sobre o financiamento acompanharam o desenvolvimento da democracia com a
ampliação do sufrágio, a massificação – e correspondente encarecimento – das campanhas
eleitorais, bem como as mudanças sofridas pelos partidos políticos, que paulatinamente
deixaram de ser agremiações de quadros para, logo, tornarem-se catch-all, sendo que há
autores que já cogitam em outra etapa, a dos partidos cartel.18
Na Primeira República (1889-1930), ou República Velha, embora a Constituição de
1891 previsse a eleição do presidente e do vice-presidente por meio de sufrágio direto,
este não era concedido universalmente a todos os cidadãos.19 Diante da limitação do
direito de voto, a questão do financiamento destas campanhas eleitorais também não
era uma preocupação, mesmo sendo realizadas “eleições”. Com a aprovação do Código
Eleitoral de 1932 e a promulgação da Constituição de 1934, já na Segunda República – ou
Era Vargas –, o sufrágio é ampliado, o que, logicamente aumentou a competição política,
principalmente com o surgimento dos partidos de massas, que dispunham de ampla
militância, levantando recursos por meio de publicações e mobilização política direta,
mas que ainda tinham grandes dificuldades de estruturação, considerando a pulverização
de partidos regionalistas e de perfil elitista.20 No entanto, a barreira econômica já se
mostrava resistente frente às mudanças ocorridas no sistema democrático, pois o período
foi também caracterizado pela prevalência de práticas como o coronelismo e fraudes às
eleições, que vinham se enraizando desde o período anterior. Além disso, a realização
de somente uma eleição, até 1945, fez com que o financiamento da política não fosse
uma pauta central de debate. Antes havia o confronto sobre o modelo de democracia
a se seguir.21
Foi a partir do Código Eleitoral de 1950 (Lei nº 1.164/50, de 24 de julho) que se
trouxeram as primeiras normas sobre financiamento. O Título II intitulado “Dos Par­
tidos Políticos”, em seu Capítulo V, abordava questões sobre a contabilidade e as finan­
ças das agremiações partidárias, estabelecendo a (i) a obrigatoriedade de os partidos
estabelecerem parâmetros para controlarem suas finanças, com escrituração rigorosa
de receitas e despesas; (ii) a fiscalização das contas por parte da Justiça Eleitoral; (iii)
vedações para contribuições (são impedidos de doar as entidades estrangeiras, as

18
Sobre o tema, há farta literatura. Vide, por todos, SANTANO, Ana Claudia. O financiamento da política – Teoria
geral e experiências do direito comparado. 2. ed. Curitiba: Íthala, 2016.
19
Segundo o art. 70, §1º da Constituição Federal de 1891, não poderiam ser eleitores “1º) os mendigos; 2º) os
analfabetos; 3º) as praças de pré, excetuados os alunos das escolas militares de ensino superior; 4º) os religiosos
de ordens monásticas, companhias, congregações ou comunidades de qualquer denominação, sujeitas a voto
de obediência, regra ou estatuto que importe a renúncia da liberdade Individual” (BRASIL. Presidência da
República. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 24 de fevereiro de 1891). Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.htm>. Acesso em: 4 dez. 2017).
20
CHACON, Vamireh. História dos partidos brasileiros – Discurso e práxis dos seus programas. 2. ed. Brasília: UnB,
1985. p. 90-95.
21
BACKES, Ana Luiza. Legislação sobre financiamento de partidos e de campanhas eleitorais no Brasil, em
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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
520 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

autoridades públicas e empresas de economia mista ou concessionárias). Tais vedações


atendiam a uma lógica latino-americana do financiamento da política, já que a proibição
de recursos estrangeiros é muito comum em praticamente todos os países da região,
além de ser muito justificada no Brasil naquele tempo, uma vez que predominava um
modelo de forte inserção na economia mundial e com a presença maciça do Estado em
todas as atividades econômicas, o que poderia fazer com que Brasil fosse “interessante”,
desde o ponto de vista perverso da política, para os olhos de entes estrangeiros.22 Apesar
disto, doações de pessoas físicas ou jurídicas não eram limitadas, o que denota uma
cultura de financiamento privado.
Ainda, a Resolução do TSE nº 3.988 determinava que o TSE e os TREs, mediante
denúncia, investigariam atos que violem as prescrições legais. No entanto, não há
registros sobre a efetividade destas normas no controle das finanças, o que leva a crer
que não eram eficazes em seus objetivos, uma vez que não havia penalidades previstas
ou mecanismos que viabilizassem a fiscalização por parte da Justiça.23
Contudo, o cenário internacional também influenciou o desenvolvimento da
democracia brasileira, já que, junto com a democratização do país, houve o avanço do
comunismo (bem como do temor que ele provocava); e o início da Guerra Fria, o que
afetou o Brasil em diversos aspectos. Durante este período, a mobilização esquerdista
era muito perceptível, processo este que só foi contido pelo golpe de 1964. Além disso, o
receio do crescimento do comunismo levou à criação de grupos de direita,24 organizados
por empresários nacionais e estrangeiros com o intuito de apoiar eleitoralmente grupos
anticomunistas. Foi esta conexão que representou um fator determinante para a proi­
bição às doações de empresas privadas pela Lei Orgânica dos Partidos Políticos de 1965,
nº 4.740, de 15 de julho.25 Esta norma foi a responsável pela considerável ampliação da
regulação do financiamento de campanhas e de partidos, mesmo tendo sido aprovada
em um período conhecido muito mais pela restrição da democracia do que por sua
promoção. Surgem sinais muito claros da preocupação de controlar o poder do dinheiro
nas eleições, como é o caso da Emenda Constitucional nº 14 de 1965, que introduz a
noção de abuso do poder econômico, tornando inelegíveis quem se envolvesse nestes
abusos.26 O Código Eleitoral de 1965 (Lei nº 4.737, de 15 de julho, ainda em vigor) trouxe
uma detalhada regulação sobre abuso do poder econômico e de autoridade; compra de
votos e crimes eleitorais em geral, punidos com pena de reclusão e multa. Por outro
lado, aprovou-se a Lei nº 5.682, de 21.7.1971, Lei Orgânica dos Partidos Políticos, que
trazia dispositivos semelhantes aos do Código Eleitoral de 1950. No entanto, foram

22
SPECK, Bruno Wilhelm. Reagir a escândalos ou perseguir ideais? A regulação do financiamento político no
Brasil. Cadernos Adenauer, Rio de Janeiro, ano VI, n. 2, p. 123-159, 2005. p. 129. Disponível em: <http://www.kas.
de/wf/doc/9796-1442-5-30.pdf>. Acesso em: 4 dez. 2017.
23
BACKES, Ana Luiza. Legislação sobre financiamento de partidos e de campanhas eleitorais no Brasil, em
perspectiva histórica. Câmara dos Deputados, 2001. Disponível em: <http://pdba.georgetown.edu/Parties/Brazil/
Leyes/financiamento.pdf>. Acesso em: 4 dez. 2017.
24
Um dos mais famosos foi o Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática). Sua influência visando ao
desequilíbrio de forças políticas por meio de recursos econômicos de origem estrangeira foi analisada por
DUTRA, Eloy. IBAD – Sigla da corrupção. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.
25
Art. 56, inc. IV, da Lei nº 4.740/65.
26
Inteiro teor em BRASIL. Câmara dos Deputados. Emenda Constitucional nº 14, de 1965. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/emecon/1960-1969/emendaconstitucional-14-3-junho-1965-364975-
publicacaooriginal-1-pl.html>. Acesso em: 4 dez. 2017.

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ANA CLAUDIA SANTANO
UMA ANÁLISE ECONÔMICA DA LEGISLAÇÃO REFERENTE AO FINANCIAMENTO DA POLÍTICA NO BRASIL: REFORMAS E EFEITOS
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introduzidas novas vedações aos partidos, como a proibição de receber recursos de


empresas privadas de finalidade lucrativa e de entidades de classe ou sindicais. Outra
inovação foi o estabelecimento de limites de gastos para as campanhas eleitorais, ainda
que este limite estivesse a cargo de cada partido. Também consta nesta lei a primeira
menção ao financiamento público dos partidos, com o Fundo Partidário, que durante
todo aquele período sempre contou com valores baixos.27
Foi com esse modelo bastante limitado de financiamento somente a partir de
contribuições de filiados dos partidos e das doações de pessoas físicas, ou recursos
próprios, que o Brasil teve que afrontar a abertura de seu sistema político na década
de 80.28 Entretanto, a realidade das necessidades de financiamento de campanhas
mudou extremamente neste trajeto. Intensificou-se a competição eleitoral, o modo de se
comunicar com o eleitorado migrou para um formato de comunicação de massas para
grandes territórios, o próprio modelo de partidos havia sido drasticamente alterado
com a sua forma catch-all, o que gerou descrédito na política e diminuição no número
de filiados dos escassos partidos que conseguiram se manter estruturados durante o
regime militar. Os novos partidos – criados às pressas em meio a um processo constituinte
iminente – tiveram pouca capacidade de se readaptar à moderna maneira de se fazer
política. As novas técnicas de campanha e seu respectivo encarecimento não poderiam
ser custeados somente com recursos próprios dos candidatos ou com financiamento dos
partidos, o que permitiu a entrada de doações de empresas para cobrir esse déficit, mesmo
que isso representasse a violação contínua da legislação em vigor. Logo nas primeiras
eleições gerais diretas, ficou evidente o grande descompasso entre a norma e a realidade
política brasileira, tornando a proibição de doações de empresas, no mínimo, hipócrita.29
Como consequência do processo de impeachment do Ex-Presidente Fernando
Collor de Mello, o financiamento da política foi redirecionado para o centro do debate
sobre uma nova legislação eleitoral a ser adotada. A CPI que resultou no impeachment
evidenciou a importância desta discussão, uma vez que as investigações se concentravam
nas atividades de tesoureiro de campanha de Collor, nas doações ilegais e no tráfico de
influência entre doadores e governo. Na ocasião, foram intensamente debatidas as causas
do aumento dos gastos eleitorais, bem como as deficiências da legislação, produzindo
a elaboração de um relatório com um capítulo específico sobre o financiamento,
acompanhado de sugestões de solução de deficiências.30 A primeira lei eleitoral posterior

27
BACKES, Ana Luiza. Legislação sobre financiamento de partidos e de campanhas eleitorais no Brasil, em
perspectiva histórica. Câmara dos Deputados, 2001. Disponível em: <http://pdba.georgetown.edu/Parties/Brazil/
Leyes/financiamento.pdf>. Acesso em: 4 dez. 2017.
28
SOUZA, Cíntia Pinheiro Ribeiro de. A evolução da regulação do financiamento de campanhas no Brasil (1945-
2006). Resenha Eleitoral, n. 3, jan./jun. 2013. Disponível em: <https://www.tre-sc.jus.br/site/resenha-eleitoral/
edicoes/n-3-janjun-2013/integra/2013/06/a-evolucao-da-regulacao-do-financiamento-de-campanha-no-
brasil-1945-2006/indexb7dc.html?no_cache=1&cHash=9e86778cb4f0a1ef62855dfd15e012f4>. Acesso em: 4 dez.
2017.
29
SPECK, Bruno Wilhelm. Reagir a escândalos ou perseguir ideais? A regulação do financiamento político no
Brasil. Cadernos Adenauer, Rio de Janeiro, ano VI, n. 2, p. 123-159, 2005. Disponível em: <http://www.kas.de/wf/
doc/9796-1442-5-30.pdf>. Acesso em: 4 dez. 2017.
30
Inteiro teor do relatório em BRASIL. Congresso Nacional. Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de
Inquérito. Brasília, 1992. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/88802/CPMIPC.
pdf?sequence=4> Acesso em: 4 dez. 2017. Até o próprio relatório, em sua página 321, considera a legislação sobre
financiamento “hipócrita” e responsável pelo fomento ao abuso do poder econômico, clamando ao Congresso
Nacional a aprovação de uma lei mais rígida no que tange ao controle.

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à CPI (Lei nº 8.713, de 30.9.1993), de caráter temporário, visava somente à regulação das
eleições de 1994, acolhendo algumas das propostas da CPI, trazendo juntamente vários
novos dispositivos, como mecanismos que possibilitavam uma maior fiscalização dos
gastos e o estabelecimento de penalidades. Uma mudança importante foi a permissão
de doações de empresas, com limites. Passados dois anos, foi aprovada a Lei nº 9.096,
de 19.9.1995, a Lei dos Partidos Políticos, responsável por consolidar uma legislação
permanente para as organizações partidárias a partir das regras que já haviam sido
aplicadas nas eleições de 1993. Já em 1997, publicou-se a Lei nº 9.504/97, Lei das Eleições,
também permanente, mantendo basicamente o já contido na Lei nº 8.713/93.31
Apesar destes importantes avanços, o sistema de financiamento da política fixado
nas leis nºs 9.096/95 e 9.504/97 sofreu muitas críticas, além de constantes intervenções
oriundas das “minirreformas” eleitorais e das resoluções do TSE. De fato, tratava-se de
regras com diversos problemas de aplicabilidade, o que, de certa forma, comprometia
a dinâmica econômica das eleições. No entanto, no afã de combater a corrupção e de
somente reagir a escândalos, a legislação terminou sendo costurada como uma “colcha
de retalhos”, tanto por parte do Poder Legislativo como pelo Poder Judiciário, perdendo,
inclusive, a sua coerência em alguns pontos, bem como permitindo o significativo
aumento da judicialização de suas disposições, já que durante este tempo também se
presenciaram mudanças no modo de se julgar questões eleitorais. A judicialização das
causas eleitorais conferiu um poder desmedido – e muitas vezes muito mal utilizado –
aos juízes eleitorais, produzindo-se resultados pouco democráticos, como a substituição
do legislador ou, em algumas situações, a substituição do eleitor.32
É este cenário que acompanha as últimas radicais modificações no financiamento
da política no Brasil.

3.3 O conturbado estado da arte do sistema de financiamento da


política no Brasil
A discussão sobre a tão aclamada reforma política no Brasil não é recente. Ela é
acompanhada pelas diversas tentativas de se conseguir consensos no Congresso Na­
cional, mas que, seja pela ambição das propostas, seja pelo próprio pragmatismo polí­
tico que impera, nunca foi possível alcançá-los, resultando em “minirreformas” que
são aprovadas quase sempre em anos ímpares, anos em que não se realizam eleições.33
De fato, não há como negar que ajustes merecem ser feitos na legislação eleitoral, em
busca de seu constante aperfeiçoamento e adaptação às novas realidades, uma vez que
a política por si mesma já é bastante dinâmica. No entanto, constantes modificações –
muitas delas provocadas pelo Poder Judiciário, representando uma mera reação do

31
BACKES, Ana Luiza. Legislação sobre financiamento de partidos e de campanhas eleitorais no Brasil, em
perspectiva histórica. Câmara dos Deputados, 2001. Disponível em: <http://pdba.georgetown.edu/Parties/Brazil/
Leyes/financiamento.pdf>. Acesso em: 4 dez. 2017.
32
COELHO, Margarete de Castro. Sobre o envolvimento de instituições judiciais em disputas políticas: o papel
da Justiça Eleitoral brasileira. In: SANTANO, Ana Claudia; SALGADO, Eneida Desiree. Direito eleitoral: debates
ibero-americanos. Curitiba: Íthala, 2014. p. 16.
33
São estas: Lei nº 11.300/06; Lei nº 12.034/09; Lei nº 12.891/13; Lei nº 13.165/15; Lei nº 13.487/17 e Lei nº 13.488/17.

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UMA ANÁLISE ECONÔMICA DA LEGISLAÇÃO REFERENTE AO FINANCIAMENTO DA POLÍTICA NO BRASIL: REFORMAS E EFEITOS
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Poder Legislativo diante de “perdas” de direitos ou de prerrogativas – podem causar


mais problemas do que os já existentes.34
O debate sobre o financiamento da política ganhou força em 2013, quando do
início do julgamento da ADI nº 4.650 no STF (de relatoria do Min. Luiz Fux), apre­
sentada em 2011 pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. A ação
foi baseada em uma proposta enviada pela Procuradoria do Rio de Janeiro, de autoria
de Daniel Sarmento e de Claudio Pereira de Souza Neto, objetivando a declaração de
inconstitucionalidade de diversos pontos da Lei nº 9.096/95 e da nº 9.504/97, notadamente
relacionados à permissão de doações de pessoas jurídicas às campanhas eleitorais e
aos partidos políticos. O argumento principal é que, do modo como estava regulado,
o financiamento de campanhas eleitorais fazia com que as empresas tivessem muita
influência do poder econômico, o que ofendia os princípios democrático, republicano
e de igualdade, constantes na Constituição Federal de 1988. Ou seja, trata-se de uma
petição fundamentada em princípios (ou, na linguagem utilizada na petição inicial,
em cláusulas pétreas), já que nem mesmo a própria Constituição aborda um modelo
específico de financiamento. Ainda na inicial, outro pleito era o de que o Congresso
Nacional fosse instado a legislar, estabelecendo um limite per capita uniforme para
doações à campanha eleitoral ou a partido por pessoa natural, em patamar baixo o
suficiente para não comprometer excessivamente a igualdade nas eleições, parâmetros
legais a serem aplicáveis também para os recursos próprios dos candidatos.
No momento em que o Min. Gilmar Mendes pediu vistas (2.4.2014), o resultado
já estava determinado, ainda que parcial: 6 votos a 1, pela inconstitucionalidade do
modelo. Passado um ano, o julgamento prosseguiu, confirmando a procedência da ação.35
Contudo, durante o período de vistas do processo do Min. Gilmar Mendes, o
Congresso Nacional se articulou no sentido de garantir recursos para as campanhas,
reagindo por meio de votação de um projeto de emenda constitucional (nº 182/2007
na Câmara, nº 113/2015, no Senado), bem como de um projeto de lei que culminou na
aprovação da “minirreforma” eleitoral, nº 13.165/2015.36 As negociações foram realizadas
com uma incomum rapidez, uma vez que o Presidente da Câmara dos Deputados (biênio
2015-2016), Dep. Eduardo Cunha (PMDB/RJ), acelerou o processo legislativo, dando total
prioridade na pauta para estes projetos, já esboçando uma reação ao resultado da ADI
nº 4.650. Com votações polêmicas – principalmente a da Emenda Aglutinativa (nº 28)
à Proposta de Emenda Constitucional nº 182/07 –37 tanto a PEC mencionada, como os

34
Como exemplo menciona-se o episódio sobre a verticalização das coligações, com relação à qual, após a
aprovação da Res. nº 21.002/2002 pelo TSE, o Congresso Nacional reagiu e aprovou a Emenda Constitucional
nº 52/2006, que posteriormente foi apreciada pelo STF (ADI nº 3.685. Rel. Ellen Gracie).
35
Votaram pela procedência da ação, ainda que com divergências quanto à sua extensão: Min. Luiz Fux (relator);
Min. Joaquim Barbosa, Min. Luís Roberto Barroso; Min. Dias Toffoli; Min. Ricardo Lewandowski; Min. Marco
Aurélio; Min. Rosa Weber e Min. Cármen Lúcia. Votaram pela improcedência da ação: Min. Teori Zavascki; Min.
Gilmar Mendes e Min. Celso de Mello.
36
Resultante dos PL nº 5.735-F de 2013 e PLC nº 75/2015.
37
Tal emenda aglutinativa (nº 28) foi objeto de uma grande polêmica, já que foi discutida e aprovada, mesmo com
a rejeição pelo Plenário da Emenda Aglutinativa nº 22, que autorizava a doação por pessoas físicas e jurídicas
a partidos e a candidatos. Ocorre que a emenda objeto de controvérsia limitou a autorização das doações de
pessoas jurídicas somente para os partidos, não para os candidatos, algo que, segundo os que defendem o
resultado da votação, mudou o objeto da emenda e permitiu a sua regular votação na mesma sessão legislativa.
Neste sentido, a conduta foi questionada perante o STF por alguns parlamentares (Mandado de Segurança
nº 33.630. Rel. Min. Rosa Weber), amparando-se no disposto no art. 60, §5º da Constituição Federal, que determina

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524 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

PL que culminaram na Lei nº 13.165/15 demonstraram a disposição do Congresso em


superar o julgamento do STF sobre o financiamento da política brasileira. Cabe destacar
que toda a atividade legislativa foi realizada com base em um modelo de financiamento
que permitiria a doação de pessoas jurídicas, tanto no texto da PEC38 como no que
originaria a Lei nº 13.165/15.39
Foi justamente ao final desse processo de votação da reforma infraconstitucional
que o Min. Gilmar Mendes proferiu o seu voto-vista, prosseguindo o julgamento da ADI
nº 4.650 para a sua conclusão. Assim, mesmo que o texto definitivo da Lei nº 13.165/15 já
tivesse sido enviado para sanção presidencial, não restou alternativa à então Presidente
Dilma Rousseff (2015-2018) senão vetar os dispositivos relacionados com a matéria
julgada pelo STF.40
Não é possível, dentro dos limites deste trabalho, comentar o resultado da ADI
nº 4.650.41 Porém, deve-se fazer constar, a título de registro, que havia muita incerteza
no que tange aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade das doações de pessoas
jurí­dicas, tanto para partidos como para campanhas. Embora não houvesse número de
mi­nistros suficiente para modular os efeitos (nos termos do art. art. 27 da Lei nº 9.868/99),
o fato é que, ao analisar o voto do Min. Relator Luiz Fux, ele se posiciona pela incons­
titucionalidade das doações de pessoas jurídicas, porém opta pela não redução de texto,
determinando a eficácia ex tunc da decisão, “salvaguardadas as situações concretas
consolidadas até o presente momento”.42 Com a publicação do acórdão somente seis

que as matérias constantes de emendas rejeitadas ou havidas por prejudicadas não poderão ser objeto de nova
deliberação na mesma sessão legislativa. Ainda, por ter natureza material distinta, de uma nova proposta de
emenda à Constituição, a emenda não contava com o apoio mínimo de assinaturas necessárias (1/3), o que a
impedia de ser votada, nos termos do art. 60, I, da Constituição. No entanto, a ministra indeferiu a liminar, o
que permitiu a aprovação da emenda em dois turnos, seguindo ao Senado (BRASIL. Supremo Tribunal Federal.
MS 33630 MC/DF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28
%28MS+33630%29%29+NAO+S%2EPRES%2E&base=baseMonocraticas>. Acesso em: 4 dez. 2017).
38
O texto originário da PEC privilegiou claramente a constitucionalização de um modelo misto de financiamento,
com foco central na permissão das doações de pessoas jurídicas. Segundo o texto aprovado pela Câmara dos
Deputados, o art. 17 da Constituição Federal de 1988 terá nova redação em seu §5º: “Art. 17. [...] §5º É permitido
aos partidos políticos receber doações de recursos financeiros ou bens estimáveis em dinheiro de pessoas físicas
ou jurídicas, devendo a lei estabelecer os limites máximos de arrecadação e gastos de recursos para cada cargo
eletivo”. Contudo, a PEC foi posteriormente “fatiada” pelo Senado (Parecer nº 1.166, de 2015-PLEN), a fim de
constituírem proposições autônomas, o que permitiu a aprovação de somente um artigo de seu texto original,
referente à janela para mudança de partido político (Emenda Constitucional nº 91/2016). As demais disposições
serão objeto de apreciação futura (11.12.2015). Não há previsão para estas votações.
39
No caso do texto final da Lei nº 13.165/15, as negociações geraram 3 versões, sendo as duas primeiras
comprometidas desde o ponto de vista técnico do financiamento (e também de outras matérias, como pode
ser a propaganda eleitoral) e, após a devolução pelo Senado, alterada novamente pela Câmara, uma vez que
as modificações aprovadas pelo Senado não correspondiam aos objetivos dos deputados. O seu envio à sanção
presidencial ocorreu em 10.9.2015, sendo que o julgamento da ADI foi concluído em 17.9.2015, permitindo que a
presidente vetasse os pontos que conflitavam com a declaração de inconstitucionalidade. A lei foi publicada no
Diário Oficial em 29.9.2015, justo em tempo de ser válida para as eleições de 2016, respeitando-se o princípio da
anualidade constante no art. 16 da Constituição Federal.
40
Ressalte-se que o Congresso Nacional manteve o veto para a possibilidade de candidatos ou partidos polí­
ticos receberem dinheiro de pessoas jurídicas para campanha eleitoral. Foram 190 votos a favor, 220 contra e 5
abstenções. Eram necessários 257 votos para derrubar o veto.
41
Para isto, sugere-se a leitura de FRAZÃO, Carlos Eduardo. A PEC do financiamento empresarial de campanhas
eleitorais no divã: a constitucionalidade material à luz da teoria dos diálogos institucionais. Revista Brasileira de
Direito Eleitoral – RBDE, ano 7, n. 12, p. 57-69, jan./jun. 2015.
42
Contudo, para acentuar a dificuldade na compreensão do resultado do julgamento, esta é a decisão final
publicada, de procedência parcial: “O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Ministro Relator, julgou
procedente em parte o pedido formulado na ação direta para declarar a inconstitucionalidade dos dispositivos

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UMA ANÁLISE ECONÔMICA DA LEGISLAÇÃO REFERENTE AO FINANCIAMENTO DA POLÍTICA NO BRASIL: REFORMAS E EFEITOS
525

meses depois,43 já tinham sido proferidas algumas decisões sobre aspectos envolvendo
representações por excesso de doações realizadas por pessoas jurídicas. Embora os Tri­
bunais Regionais Eleitorais tendam a barrar decisões de primeiro grau que extinguem
representações44 baseadas no anterior art. 81 da Lei nº 9.504/97,45 revogado pela Lei
nº 13.165/15, a instabilidade do atual sistema de financiamento da política foi evidente
durante este período.
A situação após as eleições de 2016 tornou-se ainda mais complexa. Diante da
escassez de recursos verificada no pleito municipal realizado nesse ano, buscou-se uma
solução já prevista: a adoção de um mecanismo de financiamento público de campanhas
eleitorais, algo inédito no país.46
Dessa forma, as negociações começaram em 2017, culminando na aprovação das
leis nºs 13.487 e 13.488, ambas de 6 de outubro. A dificuldade na costura dessas regras
causou algo inusitado para quem não acompanha a dinâmica do Congresso Nacional, já
que foram enviados à sanção presidencial dois projetos de lei versando sobre o mesmo
objeto, mas que foram compatibilizados por meio de vetos presidenciais. Assim, não
é possível entender uma sem a leitura da outra. Tudo para atender ao princípio da
anualidade, do art. 16 da Constituição Federal.47

3.4 A análise econômica do sistema de financiamento político no Brasil


O modelo de financiamento adotado pelo Brasil é consideravelmente detalhado,
embora padeça de diversas lacunas que podem, em um caso concreto, comprometer
a sua eficácia. Diante da lógica aportada pela análise econômica do direito (AED), três
pontos serão examinados, a fim de verificar se a legislação atualmente em vigor tem
o condão de preservar a democracia e de combater a corrupção, que são (i) o limite
de gastos constante na aprovada Lei nº 13.165/15; (ii) a vedação completa das doações
de pessoas jurídicas para partidos e para candidatos; (iii) os mecanismos de controle
de entrada e de saída de recursos. Julga-se que, dentro dos limites deste trabalho, a
submissão destas questões à AED já poderá ser um indicativo da suficiência ou não do
sistema no âmbito brasileiro.

legais que autorizavam as contribuições de pessoas jurídicas às campanhas eleitorais, vencidos, em menor
extensão, os Ministros Teori Zavascki, Celso de Mello e Gilmar Mendes, que davam interpretação conforme,
nos termos do voto ora reajustado do Ministro Teori Zavascki. O Tribunal rejeitou a modulação dos efeitos da
declaração de inconstitucionalidade por não ter alcançado o número de votos exigido pelo art. 27 da Lei 9.868/99,
e, consequentemente, a decisão aplica-se às eleições de 2016 e seguintes, a partir da Sessão de Julgamento,
independentemente da publicação do acórdão. Com relação às pessoas físicas, as contribuições ficam reguladas
pela lei em vigor. Ausentes, justificadamente, o Ministro Dias Toffoli, participando, na qualidade de Presidente do
Tribunal Superior Eleitoral, do Encontro do Conselho Ministerial dos Estados Membros e Sessão Comemorativa
do 20º Aniversário do Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Eleitoral (IDEA Internacional),
na Suécia, e o Ministro Roberto Barroso, participando do Global Constitutionalism Seminar na Universidade de
Yale, nos Estados Unidos. Presidiu o julgamento o Ministro Ricardo Lewandowski. Plenário, 17.09.2015”.
43
Em 24.2.2016.
44
Como na sentença dos autos 26-90.2015.6.11.0055, de Cuiabá, da 55º Zona Eleitoral/MT.
45
Para mencionar alguns casos, processos nºs 22-31.2015.626.0283 e 55-14.2015.626.0253, do TRE/SP.
46
A movimentação em torno do tema começou com o PL nº 6.368/2016 (de autoria do Dep. Marcus Pestana, PSBD/
MG) e que, desde então, compôs todos os relatórios elaborados pela Comissão Especial para Análise, Estudo e
Formulação de Proposições Relacionadas à Reforma Política (Cepoliti).
47
“Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à
eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”.

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526 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

3.4.1 O limite de gastos constante na Lei nº 13.165/15


Na legislação anterior, o mecanismo para determinar o limite de gastos pratica­
mente não existia, já que, nos termos do revogado art. 17-A da Lei nº 9.504/97,

a cada eleição caberá à lei, observadas as peculiaridades locais, fixar até o dia 10 de junho
de cada ano eleitoral o limite dos gastos de campanha para os cargos em disputa; não
sendo editada lei até a data estabelecida, caberá a cada partido político fixar o limite de
gastos, comunicando à Justiça Eleitoral, que dará a essas informações ampla publicidade.

Na prática, esta lei nunca chegou a ser aprovada, cabendo aos próprios partidos
estabelecer tetos de gastos segundo seus critérios.
Com a aprovação da Lei nº 13.165/15, o mecanismo foi alterado para o seguinte:

Art. 5º O limite de gastos nas campanhas eleitorais dos candidatos às eleições para Presi­
dente da República, Governador e Prefeito será definido com base nos gastos declarados,
na respectiva circunscrição, na eleição para os mesmos cargos imediatamente anterior à
promulgação desta Lei, observado o seguinte:
I - para o primeiro turno das eleições, o limite será de:
a) 70% (setenta por cento) do maior gasto declarado para o cargo, na circunscrição eleitoral
em que houve apenas um turno;
b) 50% (cinquenta por cento) do maior gasto declarado para o cargo, na circunscrição
eleitoral em que houve dois turnos;
II - para o segundo turno das eleições, onde houver, o limite de gastos será de 30% (trinta
por cento) do valor previsto no inciso I.
Parágrafo único. Nos Municípios de até dez mil eleitores, o limite de gastos será de
R$100.000,00 (cem mil reais) para Prefeito e de R$10.000,00 (dez mil reais) para Vereador,
ou o estabelecido no caput se for maior.
Art. 6º O limite de gastos nas campanhas eleitorais dos candidatos às eleições para Senador,
Deputado Federal, Deputado Estadual, Deputado Distrital e Vereador será de 70% (setenta
por cento) do maior gasto contratado na circunscrição para o respectivo cargo na eleição
imediatamente anterior à publicação desta Lei.
Art. 7º Na definição dos limites mencionados nos arts. 5º e 6º, serão considerados os gastos
realizados pelos candidatos e por partidos e comitês financeiros nas campanhas de cada
um deles.

Não há como se questionar a importância de um limite para os gastos, se o obje­


tivo é controlar o encarecimento das campanhas. Sem um teto máximo, os partidos se
sentem à vontade para realizar as despesas que pensam ser necessárias para a vitória
nas urnas, provocando uma elevação nos gastos em geral, já que, se há expectativas de
que o adversário gaste X, outro gastará X+1.48
Muito se tentou mudar essa fórmula durante as negociações de 2017, já que
as distorções do modelo adotado pela Lei nº 13.165/15 já haviam sido identificadas e

48
SOLER SÁNCHEZ, M. Campañas Electorales y Democracia en España. Valencia: Universitat Jaime, 2001. p. 223;
BLANCO VALDÉS, Roberto L. La bolsa o la vida – ¿Deben prohibirse las donaciones anónimas a los partidos
políticos?. El País, 18 dez. 2005; SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones
electorales. Madrid: CEPC, 2007. p. 199-200.

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ANA CLAUDIA SANTANO
UMA ANÁLISE ECONÔMICA DA LEGISLAÇÃO REFERENTE AO FINANCIAMENTO DA POLÍTICA NO BRASIL: REFORMAS E EFEITOS
527

requeriam aprimoramentos. No entanto, tudo o que se logrou aprovar ao final consta nas
disposições transitórias constantes na Lei nº 13.488/17, em que se estabelecem limites de
gastos segundo o cargo a que se concorre.49 São valores nominais e que também fixam
o valor máximo de arrecadação por candidato, porém bastante aquém da realidade
até então presente nas campanhas. Após as eleições de 2018, regressa-se à regra acima
exposta.
A matemática constante no mecanismo legal vigente poderá, em um primeiro
momento, controlar o aumento dos gastos, já que parte de números bastante altos para
diminuí-los a cada eleição (no modelo de 2015) e de valores bastante reduzidos em 2018.
Veja-se um exemplo simples simulado aplicando-se a regra da Lei nº 13.165/15: nas
eleições de 2014, a candidata eleita Dilma Rousseff declarou gastos à Justiça Eleitoral
no valor de R$350.575.063,64, que foi o maior gasto declarado.50 Como ocorreram dois
turnos, incidiria a regra constante no art. 5º, I, “b” para o primeiro turno das eleições de
2018, com o limite de gastos fixado em 50% deste valor. Já a partir da regra estabelecida
para as eleições de 2018, os candidatos para a Presidência somente poderão gastar 70
milhões de reais.
Trata-se uma redução importante já de imediato e que poderá fazer com que os
partidos racionalizem suas despesas ou refaçam as suas estratégias para que não incidam
na violação da norma.
No entanto, isto somente se concretizará se a própria norma oferecer vantagens no
seu cumprimento, bem como desvantagens para a sua inobservância. Um dos incentivos
é que, desde o ponto de vista da competição política, todos estejam submetidos à regra
e, assim, todos serão obrigados a reduzir seus gastos e ninguém correrá o risco de se ver
“prejudicado” na corrida eleitoral. Ocorre que a sensação dessa diminuição de despesas
somente será percebida quando os partidos e candidatos visualizem que há uma sanção
sobre a conduta violadora da norma. Neste caso, a Lei nº 9.504/97 dispõe em seu art. 18-B
que “o descumprimento dos limites de gastos fixados para cada campanha acarretará
o pagamento de multa em valor equivalente a 100% (cem por cento) da quantia que
ultrapassar o limite estabelecido, sem prejuízo da apuração da ocorrência de abuso do
poder econômico”.
A partir disto, o candidato ou o partido fará um cálculo sobre as vantagens
de se realizar gastos além do limite e as desvantagens de ter que arcar com a sanção
im­posta. Se “valer a pena”, o limite será ignorado. Ainda no exemplo acima, sabe-se

49
Limite de gastos para 2018, nos termos dos arts. 5, 6 e 7 da Lei nº 13.488, são: (i) presidente da República –
R$70.000.000,00 (setenta milhões de reais). Segundo turno – 50% do valor; (ii) governador (data de corte 31.5.2017):
estados com até um milhão de eleitores: R$2.800.000,00; com mais de um milhão de eleitores e de até dois
milhões de eleitores: R$4.900.000,00; com mais de dois milhões de eleitores e de até quatro milhões de eleitores:
R$5.600.000,00; com mais de quatro milhões de eleitores e de até dez milhões de eleitores: R$9.100.000,00; com
mais de dez milhões de eleitores e de até vinte milhões de eleitores: R$14.000.000,00; com mais de vinte milhões
de eleitores: R$21.000.000,00. Segundo turno: 50% do valor do primeiro; (iii) senador: estados com até dois
milhões de eleitores: R$2.500.000,00; com mais de dois milhões de eleitores e de até quatro milhões de eleitores:
R$3.000.000,00; com mais de quatro milhões de eleitores e de até dez milhões de eleitores: R$3.500.000,00;
com mais de dez milhões de eleitores e de até vinte milhões de eleitores: R$4.200.000,00; com mais de vinte
milhões de eleitores: R$5.600.000,00; (iv) deputados federais: R$2.500.000,00; (v) deputados estaduais e distritais:
R$1.000.000,00.
50
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Eleitor e eleições. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-
anteriores/eleicoes-2014/prestacao-de-contas-eleicoes-2014/coligacao-com-a-forca-do-povo-dilma>. Acesso em:
4 dez. 2017.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
528 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

que o território brasileiro é continental e que as despesas decorrentes disto são muito
expressivas. Além disso, com as novas restrições na propaganda eleitoral – para além
das que paulatinamente foram introduzidas na legislação – o modelo de campanhas
está cada vez mais caro, o que contrasta fortemente com a abrupta redução das despesas
impostas pela lei. Diante da obrigação de se fazer conhecido e de ganhar nas urnas, não
parece haver grandes incentivos para se cumprir o limite legal de gastos.
Por outro lado, a sanção imposta de 100% do valor excedido pode não ser tão
dissuasória quanto para fazer com que os agentes cumpram a norma, principalmente
despesas que alcançam a propaganda eleitoral, quando o retorno oferecido pelo excesso
de gastos sob este título pode ser determinante para a vitória, e isto, segundo a lógica do
poder, por si só já é um motivo para se “arriscar”. Pois bem: utilizando-se do exemplo
anteriormente dado, a redução imposta pela lei foi de pouco mais de R$175 milhões,
segundo a regra da Lei nº 13.165/15. Diante disto, pode-se cogitar a hipótese de que os
agentes estão dispostos a pagar sanções até este valor, já que nas eleições anteriores, este
montante estaria integrado aos gastos de todos os modos. Para se alcançar este valor a
título de sanção do art. 18-B, eles deverão exceder em gastos de mais de 87 milhões de
reais, o que, em termos eleitorais, representa muito e poderá ter importantes reflexos no
resultado das urnas. Portanto, não parece ser um mecanismo dissuasório de penalidade.
Obviamente que este raciocínio pode não ser o mesmo em caso de campanhas de menor
tamanho, como para eleições municipais, o que, em termos numéricos, fica ainda menos
dissuasório já que relaciona valores menores. Contudo, o político pensa em como ganhar
nas urnas, e não em como respeitar a lei, se a sanção lhe parecer pequena.
Para que a sanção fosse realmente percebida como uma penalidade grave, uma
fórmula escalonada poderia ser adotada, a exemplo do que ocorreu recentemente na
Espanha, na reforma da legislação eleitoral de 2015 (Lei nº 3/2015, de 30 de março). Há
uma escala de gravidades de conduta sancionáveis, cada uma submetida a um tipo de
punição, sempre de cunho pecuniário. Ou seja, há uma dosimetria que varia sobre o
valor excedido e que se classifica em uma sanção leve, grave ou gravíssima. Os valores
impostos pela violação do limite de gastos são calculados com base no percentual
excedido, mas que tem um teto mínimo objetivo, que não é menor do que 50.000 euros.
O peso do pagamento da sanção deve ser muito maior que qualquer benefício que possa
vir desde o eleitorado.
Porém, outro fator que poderia ser dissuasório é o julgamento popular sobre uma
eventual violação do limite de gastos por parte do candidato. A opinião pública também
deve ser considerada, mesmo que a sanção pecuniária não seja totalmente expressiva.
A condenação moral pode pesar sobre o agente no momento de decidir violar o teto
máximo de despesas.
Para que se possa considerar o peso real da opinião pública sobre a conduta dos
candidatos, deve existir accountability. A publicidade complementa a transparência. A
publicidade se refere ao que é público, conhecido, não mantido em segredo. Já a trans­
parência se conecta ao que é límpido, transparente, nítido.51 A transparência se refere
à divulgação das informações que foram tornadas públicas. Porém, não é qualquer
divulgação. A transparência só será atendida se as informações forem transmitidas à

51
MOTTA, Fabrício. Notas sobre publicidade e transparência na Lei de Responsabilidade Fiscal no Brasil. A&C –
Revista de Direito Administrativo e Constitucional, ano 7, n. 30, out./dez. 2007.

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ANA CLAUDIA SANTANO
UMA ANÁLISE ECONÔMICA DA LEGISLAÇÃO REFERENTE AO FINANCIAMENTO DA POLÍTICA NO BRASIL: REFORMAS E EFEITOS
529

sociedade de forma inteligível, acessível, aberta. A informação, neste sentido, deve ser
abrangente, atual, divulgada desde a sua fonte original e sem alterações, bem como
ser de livre acesso por toda e qualquer pessoa que esteja interessada em alguma delas.
Caso existam informações publicadas em linguagem difícil ou a partir de formatos
muito técnicos, desatualizados ou manipulados desde a sua origem, não há como
se falar em transparência, pois não se facilita o controle cidadão do que está sendo
divulgado.52 A transparência possibilita o controle cidadão, que, por sua vez, abre
caminho para a accountability.53 Esta noção traz a possibilidade de prêmios e castigos ao
responsável. Porém, a decisão de quem é o responsável passa pela legitimidade para o
exercício do poder, ou seja, pela questão democrática. É inegável o estreito vínculo que
a accountability tem com a democracia. Quanto mais avançado o estágio democrático,
maior também será o interesse pela realização da accountability. Esta, em seu formato
governamental, acompanha os valores democráticos, como a igualdade, a dignidade
humana, a participação e a representatividade. Para tanto, a percepção da res publica é
fundamental.54
Não parece ser este o caso brasileiro. Para que possa exercer este controle, uma
sociedade precisa alcançar certo nível de organização de seus interesses públicos e
privados, iniciando-se uma sucessão de fatores: (i) o desenvolvimento de uma consciência
popular; (ii) cidadãos que não sejam meros consumidores de serviços públicos; (iii) o
desenvolvimento de um sentimento de comunidade (podendo ser também produzido
capital social55 positivo); (iv) despertando cidadãos ativos que brigam por direitos,
e não por favores; (v) culminando em uma ampla participação cidadã para além do
voto.56 Por outro lado, não há como negar que a cobertura midiática sobre os políticos
em geral aumentou muito nos últimos anos, provocando, notadamente, o incremento
do descrédito na política e o fomento do discurso antipolítico. Neste sentido, o filtro
da mídia também deve ser considerado, já que as informações podem ser parcialmente
transmitidas, favorecendo uma ou outra opção eleitoral. A influência dos meios de
comunicação brasileiros também pode gerar abalos no ambiente social, o que variará
na capacidade da Justiça Eleitoral em coibir a violação das leis eleitorais, que é o que
determinará o sentimento social diante destas ocorrências. Caso a Justiça Eleitoral seja
eficiente na apuração dos fatos e na imposição de sanções, a confiança nas instituições

52
Neste sentido, cf. BLIACHERIENE, Ana Carla; RIBEIRO, Renato Jorge Brown; FUNARI, Marcos Hime. Go­
ver­nança pública, eficiência e transparência na Administração Pública. Fórum de Contratação e Gestão Pública –
FCGP, ano 12, n. 133, jan. 2013.
53
FILGUEIRAS, Fernando. Além da transparência: accountability e política de publicidade. Lua Nova, n. 84, p. 65-
94, 2011. p. 66.
54
CAMPOS, Anna Maria. Accountability: quando poderemos traduzi-la para o português?. RAP – Revista de
Administração Pública, v. 24, n. 2, p. 30-50, fev./abr. 1990. p. 34-36.
55
A análise do capital social está muito relacionada com o que se entende por cidadania dentro de uma sociedade.
A cidadania, dentro desta linha, vincula direitos e deveres a todos dentro de uma comunidade civil, em níveis
iguais (MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. p. 76). Assim, os cidadãos
dessa comunidade são mais que meros ativistas, tendo eles espírito público, disposição à colaboração, respeito,
confiança em si e nos outros, não importando as suas diferenças sociais. O capital social, entendido aqui como
normas de reciprocidade e redes de colaboração cívica, é abordado por Putnam, que afirma que a expressão se
traduz nos aspectos da organização social, como confiança, normas e redes que possam fomentar a eficiência da
sociedade na facilitação de ações coordenadas (PUTNAM, Robert. Making democracy work. Princeton: Princeton
University Press, 1994. p. 87-89).
56
CAMPOS, Anna Maria. Accountability: quando poderemos traduzi-la para o português?. RAP – Revista de
Administração Pública, v. 24, n. 2, p. 30-50, fev./abr. 1990. p. 36.

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530 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

aumentará. No entanto, geralmente acontece o contrário: as agências estatais demonstram


não conseguir intervir ou exercer o controle devido sobre outros entes públicos,
provocando um sentimento de descrédito na sociedade com a própria democracia.
A reação da sociedade pode ser ainda mais prejudicial, quando esta adota os meios
de comunicação como os verdadeiros tribunais do país, uma vez que julga o Poder
Judiciário tão corrupto quanto ou mesmo incapaz de efetuar o seu controle horizontal.
Neste contexto, a seleção de informações transmitidas pela mídia pode ser temerária,
determinando quem será o culpado por atos considerados corruptos, ao mesmo tempo
em que pode poupar outros corruptos que pratiquem ainda mais ilícitos que os expostos
publicamente.57 É esta assimetria de informação que pode fazer com que o controle moral
prevaleça sobre os mecanismos institucionalizados de accountability.58
Outro ponto que também merece consideração é que, em médio e longo prazo,
o limite de gastos sufocará a viabilidade de qualquer campanha eleitoral, sendo que
este resultado já se mostrou presente nas eleições de 2016. Os primeiros afetados foram
os pequenos municípios, logo se expandindo a todo o país. É uma questão de tempo,
já que, a cada processo eleitoral, o limite de gastos será fortemente diminuído. Sem
mencionar a função política e social de uma campanha eleitoral e de sua importância
para a informação do eleitoral e para o refinamento da escolha do voto,59 o fato é que,
aplicada a regra em dez eleições ou mais, não há como se fazer uma campanha, por
mais modesta que seja, obrigando todos a voltar aos tempos do “porta em porta”, algo
de difícil concretização em uma sociedade moderna massificada. Isto fará, quase que
automaticamente, que os candidatos violem sistematicamente o limite de gastos, em
nome de sua sobrevivência no mundo político.60 Ou seja, em um primeiro momento, o
limite pode parecer adequado. Passado este período, este teto poderá ser irreal ou de
impossível cumprimento.
Além disso, é importante ressaltar que a rigidez da norma, combinada com o
seu difícil cumprimento na prática, pode “arrastar” candidatos para a ilegalidade, já
que eles podem optar por não incluir uma despesa realizada licitamente, também com
recursos lícitos, mas que ultrapassa o seu limite de gastos, somente para não sofrer as
pena­lidades previstas. Nestes casos, o candidato fica à mercê do julgador, que a partir de
critérios como o da razoabilidade e proporcionalidade pode condená-lo ou não. Entre se
colocar em uma situação incerta com o juiz eleitoral ou optar por cumprir a lei, mesmo
que com razão, o candidato provavelmente preferirá sonegar esta informação. Regras
muito estreitas podem conduzir os agentes à ilegalidade.
Portanto, desde o ponto de vista político-eleitoral, não parece haver fortes incen­
tivos para obedecer aos limites de gastos, porque mesmo com a imposição da sanção do
art. 18-B, pode ser que a “recompensa” por se exceder nas despesas seja muito superior do
que os prejuízos do pagamento de 100% deste valor. O que poderá ter alguma influência

57
O’DONNELL, Guillermo. Accountability horizontal e novas poliarquias. Lua Nova, n. 44, p. 27-48, 1998. p. 29-30.
58
RODRIGUES, João Gaspar. Publicidade, transparência e abertura na Administração Pública. RDA – Revista de
Direito Administrativo, v. 266, p. 89-123, maio/ago. 2014. p. 115.
59
Sobre o tema, cf. NEVES FILHO, Carlos. Propaganda eleitoral e o princípio da liberdade política. Belo Horizonte:
Fórum, 2012.
60
ROSE-ACKERMAN, Susan. Political corruption and democratic structures. In: JAIN, A. K. (Ed.). The political
economy of corruption. Nova York: Routledge, 2001. p. 35-40.

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ANA CLAUDIA SANTANO
UMA ANÁLISE ECONÔMICA DA LEGISLAÇÃO REFERENTE AO FINANCIAMENTO DA POLÍTICA NO BRASIL: REFORMAS E EFEITOS
531

sobre isto é o peso da opinião pública, o que, sem embargo, não se tem mostrado um
fator determinante de comportamento dos agentes até o presente momento, mesmo
diante de situações mais graves.61

3.4.2 As fontes de arrecadação de recursos e a restrição das doações de


pessoas jurídicas
Como já exposto, a Lei nº 13.165/15 foi aprovada considerando o modelo anterior de
doações de recursos, incluindo as pessoas jurídicas como fonte autorizada de arrecadação.
Contudo, com o julgamento da ADI nº 4.650, o panorama muda radicalmente, fazendo
com que os candidatos e os partidos disponham de escassas alternativas de obtenção
de renda, algo que se tornou ainda mais complexo com a aprovação do Fundo Especial
de Financiamento da Democracia (FFD – art. 16-C, Lei nº 9.504/97).
Atualmente, o sistema arrecadatório de recursos para campanhas e para partidos
conta com as seguintes fontes permitidas: (i) recursos próprios; (ii) doações de pessoas
físicas; (iii) doações de outros candidatos ou partidos políticos; (iv) repasse de recursos
provenientes do Fundo Partidário; (v) receita decorrente da comercialização de bens ou
da realização de eventos; (vi) recursos provenientes do Fundo Especial de Financiamento
da Democracia. Já as fontes vedadas são:62 (i) pessoas jurídicas; (ii) entidade ou governo
estrangeiro; (iii) órgão da Administração Pública direta e indireta ou fundação mantida
com recursos provenientes do Poder Público; (iv) concessionário ou permissionário de
serviço público; (v) entidade de direito privado que receba, na condição de beneficiária,
contribuição compulsória em virtude de disposição legal; (vi) entidade de utilidade
pública; (vii) entidade de classe ou sindical; (viii) pessoa jurídica sem fins lucrativos
que receba recursos do exterior; (ix) entidades beneficentes e religiosas; (x) entidades
esportivas; (xi) organizações não governamentais que recebam recursos públicos; (xii)
organizações da sociedade civil de interesse público; (xiii) sociedades cooperativas de
qualquer grau ou natureza, cujos cooperados sejam concessionários ou permissionários
de serviços públicos ou que estejam sendo beneficiados com recursos públicos; e (xiv)
cartórios de serviços notariais e de registros.63 Com isto, o modelo se mostra restritivo
e limitado, desde o ponto de vista político e econômico, tendo em vista a desproporção
entre o número de fontes de captação de recursos permitidas e proibidas.
Sem entrar no mérito sobre a conveniência ou não da proibição de algumas fontes,
bem como sobre a polêmica da autorização de doações de pessoas jurídicas,64 deve-se
observar os incentivos e as desvantagens legais que os agentes possuem para respeitar

61
Não se desconhece, contudo, outros problemas que o atual limite de gastos acarreta em sua aplicação, como
distorções entre a proporção de gastos e a população dos municípios, ou mesmo o fato de que, em alguns
municípios, se possa gastar mais nas eleições de 2016 com a aplicação do cálculo do limite de gastos do que foi
gasto nas eleições anteriores. Contudo, estas análises não serão aqui debatidas, por ultrapassar o objetivo de
analisar economicamente o sistema de financiamento vigente.
62
Conjugando-se aqui o contido na Resolução do TSE e na Lei nº 9.504/97.
63
Introduzido na Res. TSE nº 26.406/2014. Sobre o tema, cf. GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 10. ed. rev., atual. e
ampl. São Paulo: Atlas, 2014. p. 339-345.
64
Sobre o tema, cf. SANTANO, Ana Claudia. A proibição das pessoas jurídicas em doar recursos econômicos para
as campanhas eleitorais brasileiras: certo ou errado?. In: SANTANO, Ana Claudia; SALGADO, Eneida Desiree.
Direito eleitoral – Debates ibero-americanos. Memórias do V Congresso Ibero-americano de Direito Eleitoral e do
IV Congresso de Ciência Política e Direito Eleitoral do Piauí. Curitiba: Íthala, 2014. p. 363-382.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
532 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

estas expressivas limitações, diante da pressão de ganhar as eleições e de realizar uma


campanha em um ambiente altamente competitivo.
Em primeiro lugar, cabe a observação de que, no Brasil, não há uma tradição de
doações de pessoas físicas para campanhas ou para partidos. Do total de doações reali­
zadas em 2010 e 2012, cerca de 11% e 22,6%, respectivamente, correspondem a doações
de pessoas físicas, sendo quase todas praticamente referentes ao autofinanciamento.65
Com a eliminação das pessoas jurídicas como fonte autorizada de arrecadação, pode-se
dizer que haverá um forte e imediato impacto na maneira de se fazer campanha, isso
porque a interrupção abrupta dessa grande transferência de recursos para os partidos
os deixa em uma situação bastante delicada para arcar com seus compromissos, seu
sustento e suas campanhas. A redução das fontes de arrecadação, por outro lado, não
foi acompanhada de medidas que pudessem mitigar este resultado, como mecanismos
de fomento de doações de pessoas físicas66 a partir de abatimento fiscal de valores.67
Não há incentivos para as pessoas físicas realizarem doações e mudarem a cultura de
participar à distância da política, ainda que isso possa se ver alterado com a introdução
do financiamento coletivo de campanhas (art. 23, IV da Lei nº 9.504/97).
O Fundo Partidário pode ser visto como uma alternativa. No entanto, seus valores
continuam sendo muito aquém dos necessários para suprir as demandas eleitorais,
embora tenha sido aumentado em 2015 já visando a uma solução – paliativa – às
dificuldades financeiras que afrontarão candidatos e partidos em um futuro próximo.
Na proposta original da Lei de Orçamento de 2015 (LOA), o valor destinado ao fundo
partidário era de 289 milhões de reais. Ao passar pelo Congresso, o montante foi
aumentado para 867,5 milhões de reais.68 Contudo, este valor não alcança sequer 25%
dos custos gerais das últimas eleições municipais de 2012, por exemplo.69
Um sistema que tenha regras muito estritas com respeito às contribuições pri­
vadas para as campanhas eleitorais pode simplesmente motivar pagamentos ilegais, ou
o que se conhece por “caixa 2”, os quais por sua vez são mantidos em segredo frente
aos votantes e aos que fiscalizam.70 Portanto, um dos incentivos dos candidatos a não
cumprir a lei é justamente este: a rigidez da norma, que não oferece condições realistas

65
ABRAMO, Claudio Weber. Poder econômico e financiamento eleitoral no Brasil – Parte 1: custo do voto.
Transparência Brasil, jan. 2014. p. 4. Disponível em: <http://www.excelencias.org.br/docs/custo_do_voto.pdf>.
Acesso em: 4 dez. 2017.
66
Em 2010 e 2012, cerca de 92% dos recursos de pessoas físicas correspondiam a doações iguais ou superiores
a R$1.000,00, que são geralmente de empresários que não desejam que as suas empresas apareçam nas listas
de doadores, parentes de candidatos etc. As doações de pequeno valor (menos de R$100,00) representam
tão somente 0,3% do financiamento eleitoral, deixando claro o afastamento do cidadão para com a política.
(ABRAMO, Claudio Weber. Poder econômico e financiamento eleitoral no Brasil – Parte 1: custo do voto.
Transparência Brasil, jan. 2014. p. 4. Disponível em: <http://www.excelencias.org.br/docs/custo_do_voto.pdf>.
Acesso em: 4 dez. 2017).
67
Concorda-se com a opinião expressa por Claudio Weber Abramo em Poder econômico e financiamento eleitoral
no Brasil – Parte 1: custo do voto. Transparência Brasil, jan. 2014. p. 12. Disponível em: <http://www.excelencias.
org.br/docs/custo_do_voto.pdf>. Acesso em: 4 dez. 2017
68
MIRANDA, Tiago. Dilma sanciona Orçamento de 2015 com aumento do fundo partidário de R$580 mi. Câmara dos
Deputados, 22 abr. 2015. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/486334-
DILMA-SANCIONA-ORCAMENTO-DE-2015-COM-AUMENTO-DO-FUNDO-PARTIDARIO-DE-R$-580-MI.
html>. Acesso em: 4 dez. 2017.
69
GASTOS eleitorais de 2012 superam R$3,5 bilhões. Estadão, 28 nov. 2012. Disponível em: <http://politica.estadao.
com.br/noticias/geral,gastos-eleitorais-de-2012-superam-r-3-5-bilhoes,966339>. Acesso em: 4 dez. 2017.
70
ROSE-ACKERMAN, Susan. Political corruption and democratic structures. In: JAIN, A. K. (Ed.). The political
economy of corruption. Nova York: Routledge, 2001. p. 47-48.

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ANA CLAUDIA SANTANO
UMA ANÁLISE ECONÔMICA DA LEGISLAÇÃO REFERENTE AO FINANCIAMENTO DA POLÍTICA NO BRASIL: REFORMAS E EFEITOS
533

de seu cumprimento. As necessidades financeiras de todos permanecem, mesmo com


a imposição de limites de gastos, já que, talvez, os agentes podem não ter recursos
econômicos sequer para gastar dentro do valor estipulado como teto. A redução na
entrada de recursos é muito expressiva, sem haver formas de amenização desses
resultados.
No que tange ao Fundo Especial de Financiamento da Democracia, trata-se, por
óbvio, de uma alternativa de recursos para os candidatos. É composto por duas fontes:
(i) dotação orçamentária da União, específica para ano eleitoral, em valor ao menos
equivalente ao definido pelo TSE a cada eleição; e (ii) 30% dos recursos da reserva
específica de emendas de bancada estadual de execução obrigatória e de despesas
necessárias ao custeio de campanhas eleitorais.
No caso do valor a ser definido pelo Tribunal Superior Eleitoral, para os fins do
inc. I do caput do art. 16-C da Lei nº 9.504, de 1997, ele será equivalente à somatória da
compensação fiscal que as emissoras comerciais de rádio e televisão receberam pela
divulgação da propaganda partidária efetuada no ano da publicação desta lei e no ano
imediatamente anterior, atualizado monetariamente, a cada eleição, pelo Índice Nacional
de Preços ao Consumidor – INPC, da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística ou por índice que o substituir.71
Já no que se refere aos recursos de reserva de emendas de bancada estadual de
execução obrigatória e de despesas necessárias ao custeio de campanhas eleitorais,
trata-se de valores pouco utilizados antes, mas que já vêm despertando dúvidas sobre
a sua inconstitucionalidade.72
O que determina o êxito ou a falência desse Fundo Especial são os seus critérios de
acesso e de distribuição dos recursos. Para tanto, a lei dispõe que 2% serão distribuídos
para todos, igualmente; 35% divididos entre os partidos que tenham pelo menos um
representante na Câmara dos Deputados, na proporção do percentual de votos por eles
obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados (data de corte – após as
eleições); 48% divididos entre os partidos, na proporção do número de representantes na
Câmara dos Deputados, consideradas as legendas dos titulares; 15% divididos entre os
partidos, na proporção do número de representantes no Senado Federal, consideradas
as legendas dos titulares.
Ainda, os recursos somente serão entregues aos partidos após a definição para
a sua distribuição, aprovados pela maioria absoluta dos membros do órgão de direção
executiva nacional, com divulgação pública. Essa medida claramente concentra poderes
na diretiva nacional, algo que pode agudizar os problemas de democracia interna dos
partidos, já tão deficitária. Por outro lado, havia a reserva mínima de 30% do valor
acima para ser distribuído para todos os candidatos ao mesmo cargo no partido político,
na mesma circunscrição. Isso acabou sendo vetado da versão final sancionada pela
Presidência da República. Cabe ressaltar que o candidato que deseje receber valores
do Fundo Especial deverá manifestá-lo por escrito, silenciando a lei sobre eventual
indeferimento do pedido pelo partido.

71
Contudo, é importante salientar que pouco se sabe ou é divulgado sobre esses valores, além de haver dificuldades
em saber esse dado antes do ano das eleições.
72
Para maiores detalhes sobre isso, cf. KUFA, Karina; KUFA, Amilton; RAMAYANA, Marcos. Da incoerência e
ilegalidade parcial do fundo de campanha. Estadão, 14 nov. 2017. Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/
blogs/fausto-macedo/da-incoerencia-e-ilegalidade-parcial-do-fundo-de-campanha/>. Acesso em: 4 dez. 2017.

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Independentemente de outras análises que possam ser feitas com base na igual­
dade de oportunidades entre os candidatos e em eventuais distorções no sistema de
partidos que podem ser causadas pela adoção desse modelo preponderantemente público
de campanhas, o fato é que se trata de uma fórmula tão desigual como a aplicada para
o fundo partidário, fazendo com que esses recursos possam sequer chegar a todos os
candidatos.73 Assim, ainda que seja uma fonte de recursos importante, com a grande
dependência das decisões da diretiva executiva nacional, fatalmente haverá muitos
que não poderão contar com o acesso a esses valores. Nesse cenário, a elite partidária
elegerá quem prefere que seja o destinatário dos recursos, pouco ou nada sobrando para
a grande massa de concorrentes.
Já no que se refere às sanções referentes à arrecadação de recursos, há duas
disposições na Lei nº 9.504/97: uma constante no art. 24, §4º, que determina que o partido
ou candidato que receber recursos provenientes de fontes vedadas ou de origem não
identificada deverá proceder à devolução dos valores recebidos ou, não sendo possível
a identificação da fonte, transferi-los para a conta única do Tesouro Nacional; e outra no
art. 25, estabelecendo que o partido que descumprir as normas referentes à arrecadação
e aplicação de recursos perderá o direito ao recebimento da quota do Fundo Partidário
do ano seguinte, sem prejuízo de responderem os candidatos beneficiados por abuso
do poder econômico.
Não há dúvidas sobre o peso das sanções, porque não só atingem o fundo parti­
dário – que promete ser a principal fonte de recursos de agora em diante – mas também
submetem os candidatos às penas impostas por abuso do poder econômico, que pode
levar à sua cassação. Na prática, haverá um forte questionamento entre violar a lei em
busca da vitória nas urnas, correndo os riscos inerentes a esta decisão, ou respeitar a
norma, mesmo na iminência de uma derrota ou da realização de uma campanha já fadada
ao insucesso. Esta decisão depende muito de como a Justiça Eleitoral está processando
a sua fiscalização e de como está julgando casos de abuso de poder econômico.
Sabe-se que o número de cassações aumentou muito desde a aprovação da Lei da
Ficha Limpa. Um levantamento da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), feito
com base em decisões do TSE, revela que, após as eleições de 2012 e passado somente
um ano da posse dos eleitos, em todo o Brasil houve a troca de prefeitos em pelo menos
125 cidades, sendo que a grande maioria, 107, deixou o cargo em razão da cassação de
mandato, motivada por abuso de poder econômico e político.74 No entanto, sabe-se que
prefeitos e vereadores costumam sofrer mais as penalidades legais do que cargos mais
altos, como os de governador ou presidente.75 Há, sabidamente, uma aplicação variada
das normas sobre abuso de poder econômico.

73
Sobre o tema, cf. SANTANO, Ana Claudia. Parecer jurídico – Projeto de Lei 6368/2016, Câmara dos Deputados.
Revista Eletrônica Direito e Política, v. 12, p. 462-481, 2017.
74
Sobre o estudo, PIMENTEL, Carolina (Ed.). Um ano após posse, 107 prefeitos têm mandato cassado. EBC,
10 jan. 14. Disponível em: <http://www.ebc.com.br/noticias/brasil/2014/01/um-ano-apos-posse-107-prefeitos-
tem-mandato-cassado>. Acesso em: 4 dez. 2017.
75
Isto decorre de muitos fatores. As condições de uma campanha municipal são diametralmente inferiores às de
uma campanha estadual ou federal. Além disto, a própria Justiça Eleitoral, devido a sua estrutura, conta com
juízes que não são especialistas em direito eleitoral, o que prejudica a aplicação desta legislação tão específica.
Por outro lado, é inegável que a atual postura dos juízes eleitorais, mais “proativa” e mais “contundente”
também colabora para este desequilíbrio no julgamento de causas eleitorais.

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ANA CLAUDIA SANTANO
UMA ANÁLISE ECONÔMICA DA LEGISLAÇÃO REFERENTE AO FINANCIAMENTO DA POLÍTICA NO BRASIL: REFORMAS E EFEITOS
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Aqui há duas hipóteses de comportamento: (i) devido ao rigor da Justiça Eleitoral


em apurar casos de abuso de poder econômico, os candidatos podem escolher não captar
recursos de fontes vedadas, como as pessoas jurídicas, a fim de se preservar no processo
eleitoral e se manter na disputa; ou (ii) pode haver uma quebra coletiva e sistemática
da norma por parte dos candidatos, a partir da conduta do “acórdão” (sem denúncias
mútuas), colapsando a efetividade do sistema de fiscalização da Justiça Eleitoral e, por
conseguinte, maculando o processo eleitoral, pois ao se aplicar a regra para todos os que
a violaram, pode ser que não restem candidatos para o exercício dos cargos. Isto, é bom
lembrar, também afeta a democracia, vulnerando o voto, já que fará com que a Justiça
Eleitoral tenha a palavra final, para além do que já tem.76 Considerando a trajetória
histórica do Brasil e o atual pragmatismo político, parece mais provável que ocorra a
violação sistemática das regras de arrecadação, dada a distância entre o realismo da
norma e a política brasileira hodierna.
Os mesmos comentários expostos anteriormente sobre a opinião pública também
cabem aqui. Talvez até com mais força, já que a arrecadação de recursos para campanhas
tornou-se o centro de um discurso moralizante e de combate à corrupção nos últimos
tempos. A vinculação das doações com casos de corrupção é frequente, ainda que ina-
dequada desde o ponto de vista teórico, o que certamente concede à opinião pública
um peso maior em caso de violação de regras de arrecadação de recursos do que na
inobservância do limite de gastos. Não obstante, ressalte-se que a influência da mídia
também adquire maior densidade nesta questão, considerando que ela é a que, prova-
velmente, formará esta opinião pública, que pode condenar alguns e absolver outros.
Apesar disto, parece que os agentes têm mais incentivos para violar o sistema de
arrecadação de recursos, do que para cumpri-lo, sendo esta conclusão amparada pelo
modelo de fiscalização adotado pela Justiça Eleitoral.

3.4.3 Os mecanismos de controle de entrada e de saída de recursos


Uma rede de financiamento político, grosso modo, atende à seguinte lógica:77

76
Sobre o tema, cf. ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. O avanço da justiça eleitoral sobre o resultado das urnas. Conjur,
5 nov. 2012. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-nov-05/ruy-samuel-espindola-avanco-justica-
vontade-urnas>. Acesso em: 4 dez. 2017.
77
Modelo extraído de HOROCHOVSKI, Rodrigo Rossi et al. Redes de financiamento eleitoral nas eleições de 2008
no litoral do Paraná. Paraná Eleitoral, v. 3, n. 1, p. 103-131, 2014.

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536 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Pois bem. Cada um dos atores que pode receber doações e assumir despesas
no processo eleitoral é obrigado a fazer prestação de contas ao TSE. Esta prestação de
contas possui a forma de uma contabilidade de partida dobrada, zerando a relação
entre receitas e despesas, por um lado, e facilitando a fiscalização do ponto de vista
contábil, por outro. Não há um exame material das prestações de contas, somente
este contábil, confrontado com o cruzamento de dados realizado também pela Receita
Federal (art. 34, §1º, Lei nº 9.096/95).78 Ou seja, as planilhas disponibilizadas pelo TSE
atendem a esta lógica, e uma de suas consequências é que não há um identificador
único que permita capturar um agente em diferentes planilhas de prestação de contas.
Por exemplo: um candidato a vereador que, ao receber recursos de um candidato a
prefeito, declara o recebimento ora usando o CNPJ da candidatura correspondente, ora
o CPF do candidato a prefeito (“doador”, neste caso), o que pode sugerir a existência
de dois doadores distintos quando, na realidade, trata-se de um mesmo agente. Ou,
então, situação semelhante pode ocorrer quando uma candidatura e um candidato,
na qual este, ao declarar receita advinda daquela, cita apenas o nome, frequentemente
genérico, de “Comitê Financeiro Único” da candidatura, omitindo a unidade eleitoral e
o partido. Em termos numéricos: uma doação de R$100.000,00, destinada a um partido,
transferida a um comitê e distribuída entre várias candidaturas, poderá replicar-se nas
diferentes tabelas de receitas, fazendo com que se tenha a impressão de que há um valor
significativamente maior, falseando o cálculo do “custo do voto”, por exemplo. Além
disso, ressalte-se que partidos e candidaturas também podem arcar diretamente com
despesas de candidaturas, parcial ou totalmente. Neste caso, na prestação de contas do
candidato, esta despesa não aparece como doação.79
Por outro lado, e também considerando o elevado número de candidaturas a cada
processo eleitoral,80 reconhece-se que não há condições reais para um exame material da
contabilidade das campanhas e dos partidos por parte da Justiça Eleitoral. A verificação
detalhada e específica de cada nota, cada aquisição e cada gasto efetuado não é factível,
como deveria ser em um mundo ideal, mesmo reconhecendo todo o esforço da Justiça
Eleitoral em realizar uma mudança no paradigma da verificação das prestações de contas.
Assim, nota-se que o sistema de fiscalização das contas, bem como o fato de a
legislação ser razoavelmente pormenorizada, ainda padece de algumas deficiências que
comprometem a sua eficácia, o que pode encorajar candidatos a se arriscar e a praticar
condutas violadoras das regras de financiamento. As lacunas oferecidas pela legislação
que possibilitam a entrada de recursos de fontes vedadas e a verificação meramente
contábil das prestações de contas podem ser um incentivo ao não cumprimento da lei.
Mesmo que de difícil execução, nada impede que grandes doações sejam diluídas em
muitas pessoas físicas, a fim de que entrem nas arcas do partido, ou ainda que sejam
emitidas notas fiscais “frias” justificando serviços ou aquisições inexistentes, para que
tais valores sejam “lavados”. Neste ponto, a dificuldade de se realizar uma fiscalização
à prova de fraudes colide com a capacidade criativa dos agentes em encontrar brechas

78
Para as eleições de 2016, o Tribunal Superior Eleitoral realizou convênio com diversos bancos de dados para o
cruzamento das informações enviadas pelos partidos e candidatos no que tange ao financiamento.
79
HOROCHOVSKI, Rodrigo Rossi et al. Redes de financiamento eleitoral nas eleições de 2008 no litoral do Paraná.
Paraná Eleitoral, v. 3, n. 1, p. 103-131, 2014.
80
Nas eleições de 2014 foram 26.172 candidatos. Nas eleições de 2012 foram 481.785 (de acordo com o site do TSE:
<www.tse.jus.br>).

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ANA CLAUDIA SANTANO
UMA ANÁLISE ECONÔMICA DA LEGISLAÇÃO REFERENTE AO FINANCIAMENTO DA POLÍTICA NO BRASIL: REFORMAS E EFEITOS
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na legislação, além da disposição que eles possam ter para praticar tais atos, na busca
incessante pela vitória nas urnas. Este, provavelmente, é o maior incentivo que os agentes
têm para não seguir as regras sobre o financiamento: a probabilidade de não serem pegos
pela malha fina da fiscalização.
Neste ponto, o jogo torna-se de “soma-zero”, ou seja, um jogo em que o ganho
de um jogador representa necessariamente a perda para o outro.81 O risco se transforma
em válido para o candidato quando ele não teme as consequências, caso seja descoberto,
ou quando este temor não abala a sua disposição de violar a lei, como pode ocorrer
em situações de sanções brandas. Trata-se de um jogo de probabilidade, de quantos
são descobertos frente à imensidão de quebra das regras. Cabe mencionar que a não
aprovação de contas não acarreta fortes sanções práticas, mas indica que algo impediu
a verificação contábil das informações ou que há elementos irregulares nas contas que
violam a norma. Contudo, é cediço que não há consequências graves para o candidato,
até porque a não aprovação de contas não enseja, diretamente, abuso de poder econômico
nem o impede de obter a quitação eleitoral, podendo apresentar-se como candidato
sem problemas.
Há um outro detalhe importante: nem todos os candidatos possuem conheci­mento
técnico necessário para seguir à enredada estrutura de regras referentes à prestação de
contas. Pelo contrário, a maioria dos candidatos sequer possui condições de contratar
um advogado para auxiliá-lo a isso, ainda mais em tempos de escassez de recursos
econômicos. Assim, é possível que o sistema de fiscalização, no afã de exercer um bom
trabalho, termine penalizando aqueles que têm boa-fé e que desejam seguir as regras,
mas que não têm capacidade técnica para isso. Um modelo mais punitivo e menos
dissuasório de fiscalização não o torna mais eficiente. Torna-o mais injusto.
Obviamente que se reconhecem as desvantagens de uma violação das normas
referentes ao financiamento, principalmente no que tange ao seu controle. No entanto,
ainda considerando os avanços dos últimos anos, problemas com financiamento
irregular continuam surgindo, o que poderá se agravar a partir da expressiva restrição
provocada pelas últimas reformas. O pragmatismo político tende a resistir mesmo diante
de punições crescentes, porém insuficientes. Não há claros motivos para se pensar que,
aqui, o pensamento político do “poder pelo poder” não prevalecerá.
No entanto, devem-se aprofundar as pesquisas já com os dados das prestações
de contas das eleições de 2016 e 2018.

3.5 Considerações finais: expectativa e pessimismo


É inegável que o financiamento da política sempre será uma questão muito
espi­nhosa e de complicada solução. Nem mesmo as democracias mais desenvolvidas
conse­guiram alcançar resultados perfeitos, embora tenham caminhado na direção da
adequação de seus próprios modelos às suas culturas políticas.
Uma reforma do sistema de financiamento somente será bem-sucedida quando
não ignorar as conjunturas políticas sobre as quais atuará. Não é realista impor regras
que aumentam a abismal distância entre o direito e a política. Deve-se fomentar a

81
FIANI, Ronaldo. Teoria dos jogos. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006. p. 35.

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538 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

transparência da democracia e relegitimá-la a partir de mudanças de comportamentos


viáveis para todos. A restrição acentuada do modelo apenas fortalece a elitização do
poder.
As últimas mudanças no sistema de financiamento vão no sentido contrário
às necessidades do país, podendo provocar ainda mais descontentamento social com
a política, a apatia e a desafetação com a democracia. Não é exagero recordar que a
democracia brasileira ainda é jovem e já vem sendo alvo de muita desconfiança, o que
é especialmente temerário. É preciso restaurar a confiança cidadã na democracia e
reequilibrar forças na esfera eleitoral. Entende-se que não é por meio de proibições que
isso será possível, mas é através do envolvimento cada vez maior da sociedade na política
que estes efeitos poderão ser perseguidos. Além disso, o próprio combate à corrupção
requer uma maior participação do eleitorado, tanto no custeio do processo eleitoral e
de seus atores, como também na fiscalização de tudo isso.
Portanto, ainda que se reconheçam os esforços para a melhora do panorama, parece
que se perdeu uma boa oportunidade para realmente se implementar medidas adequadas
para a racionalização do financiamento da política e para o combate à corrupção. No
entanto, embora neste tom um tanto quanto negativo, ainda se espera que esta análise
se mostre equivocada nos processos eleitorais vindouros.

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UMA ANÁLISE ECONÔMICA DA LEGISLAÇÃO REFERENTE AO FINANCIAMENTO DA POLÍTICA NO BRASIL: REFORMAS E EFEITOS
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CAPÍTULO 4

CANDIDATAS DE FACHADA: A VIOLÊNCIA POLÍTICA


DECORRENTE DA FRAUDE ELEITORAL E DO ABUSO DE
PODER E AS RESPOSTAS JURÍDICAS PARA EFETIVAÇÃO
DOS GRUPOS MINORITARIAMENTE REPRESENTADOS

GEÓRGIA FERREIRA MARTINS NUNES

LORENA DE ARAÚJO COSTA SOARES

4.1 Introdução
É comum o argumento de que as antigas fraudes na votação estão sendo eliminadas
com a adoção de mecanismos de fiscalização da votação e com o cadastramento biomé­
trico. Porém, novas formas de se obter fins ilícitos por meio de processos aparentemente
legítimos ou por meio da prática de atos puramente fraudulentos vinham ganhando cada
vez mais espaço nos últimos pleitos eleitorais, a exemplo da substituição de candidaturas
às vésperas do pleito, para confundir o eleitor – recentemente afastada por alteração
legislativa –1 e do descumprimento das cotas de gêneros, especialmente no que se refere
a candidaturas femininas, em escamoteada violação do art. 10, §3º, da Lei nº 9.504/97.

1
Antiga regulamentação pelo Código Eleitoral no art. 101, §2º, ipsis litteris: “Art. 101. Pode qualquer candidato
requerer, em petição com firma reconhecida, o cancelamento do registro do seu nome. [...] §2º Nas eleições
majoritárias, se o candidato vier a falecer ou renunciar dentro do período de 60 (sessenta) dias mencionados no
parágrafo anterior, o partido poderá substituí-lo; se o registro do novo candidato estiver deferido até 30 (trinta)
dias antes do pleito serão utilizadas as já impressas, computando-se para o novo candidato os votos dados ao
anteriormente registrado. [...]”.
Novo disciplinamento mediante o art. 13, §3º da Lei nº 9.504/97, com redação dada pela Lei nº 12.891, de 2013,
in verbis: “Art. 13. É facultado ao partido ou coligação substituir candidato que for considerado inelegível,
renunciar ou falecer após o termo final do prazo do registro ou, ainda, tiver seu registro indeferido ou cancelado.
[...] §3º Tanto nas eleições majoritárias como nas proporcionais, a substituição só se efetivará se o novo pedido
for apresentado até 20 (vinte) dias antes do pleito, exceto em caso de falecimento de candidato, quando a
substituição poderá ser efetivada após esse prazo”.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
544 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Por algum tempo, a doutrina e a jurisprudência majoritária entenderam que o


desrespeito ao percentual mínimo e máximo de candidaturas por sexo somente poderia
ser verificado no momento do registro do demonstrativo de regularidade dos atos
partidários – DRAP, mediante impugnação à quantidade de candidatos e candidatas
apresentadas. Uma vez transitada em julgado a decisão de deferimento do DRAP, não
seria mais possível verificar o efetivo preenchimento das cotas de candidaturas pelos
partidos e coligações.
Contudo, tal raciocínio excluía da apreciação do Judiciário uma fraude muito
comumente praticada pelas agremiações partidárias, com a anuência dos candidatos que
se registram sob sua legenda para pleitos proporcionais, qual seja a utilização de mulheres
filiadas, sem nenhuma competitividade ou intenção eleitoral, para o preenchimento
mínimo de candidaturas femininas. Trata-se de uma nova forma de violência contra
as mulheres, a política, que se configura de diversas formas, em especial, mediante
a sujeição delas à condição de candidatas de fachada, fazendo com que, em troca de
benefício financeiro, por pressão familiar, por assédio laboral, por motivos emocionais
ou até sem o seu conhecimento/anuência, ela submeta seu nome à disputa eleitoral pela
legenda partidária.
Nas últimas quatro eleições (2010/2012/2014/2016), o tema das candidaturas de
fachada de mulheres vem sendo motivo de debates acadêmicos e, inclusive, questio­
namentos judiciais,2 sendo apontado como um verdadeiro “gargalo” intransponível na
efetivação da política afirmativa de cotas instituída na Lei das Eleições como mecanismo
de solução para o problema da sub-representação feminina na política no Brasil. Ora,
se os partidos continuarem preenchendo as cotas femininas com candidaturas não
competitivas, a desigualdade sexual na representação política jamais será combatida.
Desse modo, o enfrentamento das candidaturas de fachada pelo Judiciário
brasi­leiro apresenta-se como condição sine qua non para a concretização da política de
cotas inserta na legislação eleitoral e, consequentemente, para a efetivação da represen­
tatividade das mulheres na política.
No Brasil, segundo dados extraídos do site do Tribunal Superior Eleitoral,3 a
maioria do eleitorado é composta pelo sexo feminino (52,43%), alcançando um total de
setenta e seis milhões e setecentos e noventa e duas mil mulheres cadastradas na Justiça
Eleitoral – 7,1 milhões a mais que os homens –, tendo ultrapassado o eleitorado masculino
em todos os 27 (vinte e sete) estados do país. Nos partidos políticos, dos 16 (dezesseis)
milhões de filiados, 8,8 milhões são homens e 7,2 milhões são mulheres.4 Ainda assim, a
mulher encontra-se inserida entre os grupos minoritariamente representados na política,
tanto no Parlamento como nos cargos executivos.

2
TSE. REsp nº 78.432/PA, PSS 12.8.2010. No mesmo sentido, o Agravo Regimental nº 846-72.2010.6.14.000,
9.9.2010. Recurso Especial Eleitoral nº 784-32.2010.6.14.0000, Belém/PA, j. 12.8.2010. TRE-RS. Recurso Eleitoral nº
124-28.2012.6.21.0144, Planalto/RS, j. 18.12.2012. Recurso Especial Eleitoral nº 214-98.2012.6.21.0091, Humaitá/RS,
j. 23.5.2013.
3
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Estatísticas do eleitorado: por sexo e faixa etária. Disponível em: <http://
www.tse.jus.br/eleitor-e-eleicoes/estatisticas/estatisticas-de-eleitorado/estatistica-do-eleitorado-por-sexo-e-
faixa-etaria>. Acesso em: 15 jan. 2018.
4
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. TSE disponibiliza dados sobre filiados a partidos políticos no Brasil. 27 maio 2016.
Disponível em: <http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2016/Maio/tse-disponibiliza-dados-sobre-filiados-
a-partidos-politicos-no-brasil>. Acesso em: 15 jan. 2018.

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GEÓRGIA FERREIRA MARTINS NUNES, LORENA DE ARAÚJO COSTA SOARES
CANDIDATAS DE FACHADA: A VIOLÊNCIA POLÍTICA DECORRENTE DA FRAUDE ELEITORAL E DO ABUSO DE PODER E AS RESPOSTAS JURÍDICAS...
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A sub-representação feminina na política brasileira coloca o país em situação


internacional vexatória. De acordo com a União Interparlamentar, órgão global que
estabelece relações entre parlamentos mundo afora, na contagem de 2017,5 realizada em
parceria com a ONU Mulheres, entre um total de 174 (cento e setenta e quatro) nações, o
Brasil aparece na posição 167ª no ranking de participação de mulheres no Executivo e na
154ª posição na lista de representação feminina no Legislativo, atrás, inclusive, de países
do Oriente Médio, de forte tradição cultural e religiosa machista, como Afeganistão (54ª),
Arábia Saudita (98ª), Jordânia (130ª), Síria (137ª), Iraque (67ª) e Emirados Árabes (96ª).
Desde os anos 90, o Brasil registra uma participação de cerca de 10% de mulheres
em vagas legislativas em todo o país, de acordo com números do TSE, que abarcam
câmaras municipais, assembleias legislativas e Congresso. Nas onze eleições de 1994
para cá, o patamar se manteve sempre em torno desses 10%. As variações são mínimas.
Enquanto deputadas estaduais chegaram quase nos 13% do total de cadeiras nas eleições
de 2014, deputadas federais ficaram em 9%.6 Na disputa para governador, a mesma
eleição foi mais desfavorável às mulheres: depois de um pico em 2006, com 11,11% de
candidatas eleitas, 2014 registrou apenas 3,7% de mulheres vencendo disputas a esse
cargo (uma governadora).
No âmbito municipal, a situação é de extremo desequilíbrio. De acordo com o TSE,7
em 2016, o número de mulheres eleitas prefeitas caiu em relação ao resultado eleitoral
de 2012, de 659 (seiscentos e cinquenta e nove) para 641 (seiscentos e quarenta e um)
chefes dos Executivos municipais, o que representa apenas 11,57% dos 5.570 (cinco mil,
quinhentos e setenta) municípios brasileiros. Também no parlamento municipal, houve
redução do número de vereadoras em 13 (treze) capitais, comparadas ao pleito anterior.
Diante dessa humilhante realidade, o Poder Judiciário passou a ser confrontado
com um número cada vez maior de ações eleitorais discutindo a violência política contra
as mulheres, manifestada através de fraude à legislação eleitoral e abuso de poder dos
partidos políticos e candidatos. Após o pleito municipal de 2012, finalmente, a jurispru­
dência começou a dar sinais de mudança, apontando para a possibilidade de utilização
de instrumentos processuais de combate ao descumprimento das cotas de candidaturas
pelos partidos, ainda que sua comprovação somente se verifique após o trânsito em
julgado do demonstrativo de regularidade dos atos partidários – DRAP, ou até mesmo
após a eleição e a diplomação dos eleitos. De fato, até então prevalecia o entendimento
exarado no julgamento pelo Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul (TRE/RS)
quanto ao cabimento da discussão somente através da ação de impugnação de registro
de candidatura (AIRC), não sendo possível discutir essa condição de registrabilidade
quando já transitado em julgado o mencionado DRAP.
O posicionamento daquele Regional não destoava da jurisprudência dominante
na Corte Superior, que privilegiava apenas o preenchimento formal, sem enfrentar

5
ONUBR. Brasil fica em 167º lugar em ranking de participação de mulheres no Executivo, alerta ONU. Disponível em:
<https://nacoesunidas.org/brasil-fica-em-167o-lugar-em-ranking-de-participacao-de-mulheres-no-executivo-
alerta-onu/>. Acesso em: 12 nov. 2017.
6
ROCHA, Camilo et al. Mulheres ainda são minoria nos poderes do Brasil. Nexo Jornal, 8 mar. 2016. Disponível
em: <https://www.nexojornal.com.br/especial/2016/03/08/Mulheres-ainda-são-minoria-nos-poderes-do-Brasil>.
Acesso em: 4 jul. 2016.
7
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Eleições 2016: número de prefeitas eleitas em 2016 é menor que 2012. 8 nov.
2016. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2016/Novembro/eleicoes-2016-numero-de-
prefeitas-eleitas-em-2016-e-menor-que-2012>. Acesso em: 4 jul. 2016.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
546 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

devidamente a questão da fraude e/ou abuso de poder. É o que se vislumbra na ementa do


acórdão julgado pelo TSE em sede de Agravo de Instrumento – AI nº 1242820126210144
Planalto/RS 33512013:

Recurso. Representação. Reserva legal de gênero. Pedido de impugnação da chapa pro­


porcional. Eleições 2012. Alegada burla ao disposto no artigo 10, §3º, da Lei nº 9.504/97, pois
apesar de observado o preenchimento de 30% da quota do sexo feminino pela coligação,
as candidatas deste gênero não realizaram propaganda eleitoral e não se afastaram de
seus postos de trabalho. Extinção do feito, com resolução do mérito, no juízo originário.
Matéria preliminar superada. Irregularidades observadas apenas durante o período de
campanha. Circunstância de fato superveniente, não incorrendo em preclusão. Apesar
de transcorrido o pleito, a legitimidade da coligação permanece hígida, inclusive para a
propositura das ações eleitorais que têm prazos fatais, até mesmo em período posterior
à diplomação.
No mesmo sentido, não reconhecido o litisconsórcio necessário entre a coligação e os
partidos que a compõem, pois inexiste relação de prejudicialidade ou qualquer ônus a ser
suportado pela agremiação. Também ausente a supressão de instância, diante da extinção,
no primeiro grau, em face de decadência.
Alcançado, pelo partido, o desiderato estabelecido pela norma ao nomear as candidatas
na ocasião do registro de candidaturas.
Preenchimento das cotas conforme estabelecido na legislação de regência. Inexistência de
comprovação da alegada ocorrência de burla ou fraude.
Provimento negado.8

Nessa esteira, o presente artigo trata dessa viragem jurisprudencial, apontando as


ações eleitorais cabíveis para transpor o “gargalo” existente, que impedia a efetivação da
política afirmativa de cotas instituída no art. 10, §3º da Lei Geral das Eleições, bem assim
apresenta alguns dos mais recentes julgados dos Tribunais Regionais Eleitorais, que
transmitem aos partidos políticos e candidatos uma clara mensagem da refrega intran­
sigente à violência política praticada contra as mulheres, decorrente da fraude eleitoral
e abuso de poder, responsáveis, em grande parcela, pelo atual cenário de insignificante
participação feminina na política brasileira.

4.2 As candidaturas de fachada em violação à cota feminina: violência


política contra as mulheres na fraude eleitoral e no abuso de poder
A política afirmativa fixada pelo art. 10, §3º, da Lei nº 9.504/97 objetiva modificar o
quadro da sub-representação das mulheres na política brasileira, como forma de avançar
concretamente na construção da igualdade de direitos entre homens e mulheres, in verbis:

Art. 10. Cada partido ou coligação poderá registrar candidatos para a Câmara dos Depu­
tados, a Câmara Legislativa, as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais no
total de até 150% (cento e cinquenta por cento) do número de lugares a preencher, salvo:
(Redação dada pela Lei nº 13.165, de 2015) [...]

8
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Pedido de impugnação da chapa proporcional. AI 1242820126210144
Planalto/RS 33512013. Rel. Min. José Antônio Dias Toffoli, j. 18.10.2013. DJe, 25 out. 2013. Disponível em:
<https://tse.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/301315052/agravo-de-instrumento-ai-1242820126210144-planalto-
rs-33512013>. Acesso em: 12 nov. 2017.

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GEÓRGIA FERREIRA MARTINS NUNES, LORENA DE ARAÚJO COSTA SOARES
CANDIDATAS DE FACHADA: A VIOLÊNCIA POLÍTICA DECORRENTE DA FRAUDE ELEITORAL E DO ABUSO DE PODER E AS RESPOSTAS JURÍDICAS...
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§3º Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação
preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para
candidaturas de cada sexo. (Redação dada pela Lei nº 12.034, de 2009)
§4º Em todos os cálculos, será sempre desprezada a fração, se inferior a meio, e igualada
a um, se igual ou superior.9

Resgatando a história desse dispositivo, que trouxe a cota de gênero no direito


pátrio, foi a Lei nº 9.100/95, que contribuiu com o primeiro texto inovador, dispondo
no art. 11, §3º, que “vinte por cento, no mínimo, das vagas de cada partido ou coligação
deverão ser preenchidas por candidaturas de mulheres”. Esta lei somente vigorou para as
eleições municipais de 1996. A Lei nº 9.504/97 já passou a estabelecer que “do número
de vagas resultantes das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação deverá
reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para candidatura
de cada sexo”. Com a minirreforma da Lei nº 12.034/2009, a exigência de percentual
mínimo de candidaturas tornou-se ainda mais incisiva, dispondo que cada agremiação
partidária “preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta
por cento) para candidatura de cada sexo”.
Diante da nova redação, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em 2010, decidiu que
os partidos e as coligações seriam obrigados a registrar a cota mínima de 30% (trinta por
cento) de mulheres para a disputa eleitoral aos cargos de deputado federal e estadual,
bem como valendo para as eleições de vereadores. Dessa forma, nas eleições de 2012, a
Justiça Eleitoral passou a verificar com bastante rigor o preenchimento desse requisito
como condição sine qua non para o deferimento do DRAP. O próprio sistema eletrônico
de registro de candidaturas já apontava o (des)cumprimento dos percentuais mínimo
e máximo de candidatos por sexo.
Contudo, não obstante a imposição legal, tal requisito vem sendo fraudado por
alguns partidos e coligações, sendo que os registros de mulheres candidatas possuem
a única intenção de preencher a cota mínima, para garantir o efetivo registro da lista
composta pelos candidatos masculinos.
Segundo leciona Elaine Harzheim Macedo,10 em sua obra sobre A cota de gênero
no processo eleitoral como ação afirmativa na concretização de direitos fundamentais políticos:
tratamento legislativo e jurisdicional, o estabelecimento das cotas de gênero não está
logrando efetivo resultado para o tratamento da igualdade entre homens e mulheres,
mesmo diante da vigência da Lei nº 12.034/2009, conforme expõe:

O tema das cotas de gênero no processo eleitoral sofreu uma evolução legislativa lenta, com
previsão franciscana e de pouca aplicabilidade prática, até o advento da Lei nº 12.034/2009,
quando as cotas foram estabelecidas de forma coercitiva, passando a exigir do intérprete
uma releitura do sistema. Contudo, já passadas duas eleições sob sua vigência, ainda pouco
se logrou evoluir ao efeito de obter um resultado mais efetivo tratamento da igualdade

9
BRASIL. Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9504.
htm>. Acesso em: 15 dez. 2017. Grifos nossos.
10
MACEDO, Elaine Harzheim. A cota de gênero no processo eleitoral como ação afirmativa na concretização
de direitos fundamentais políticos: tratamento legislativo e jurisdicional. Revista da AJURIS, v. 41, n. 133,
2014. Disponível em: <http://www.ajuris.org.br/OJS2/index.php/REVAJURIS/search/authors/view?firstName
=ELAINE%20HARZHEIM&middleName=&lastName=MACEDO&affiliation=&country=>. Acesso em dez 2017.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
548 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

frente aos direitos políticos, em especial o direito de ser votado, entre homens e mulheres,
encontrando a norma resistências tanto no âmbito dos partidos políticos como no Judiciário,
quando provocado por eventual descumprimento de sua adoção.

Destarte, face à pouca aplicabilidade prática, nota-se que após o preenchimento


da vaga do sexo feminino referente aos 30% (trinta por cento) de candidatas, tem se
verificado a prática de atos fraudulentos denominados “percentual branco por renúncia”
e “percentual branco com votos irrisórios”. Aquele procede quando, atingido o per­
centual mínimo de 30% (trinta por cento), se promove a renúncia das candidatas após
o deferimento do registro e, preferencialmente, após o período que não mais se admite
a substituição da candidatura. E já a última ocorre quando as candidatas assumem o
compromisso de não realizar a campanha, não obtendo nenhum voto, isto é, nem ela
própria vota em si, ou tendo votação pífia, para não atrapalhar os demais candidatos
da coligação.
A existência da fraude – e o seu aumento com a Lei nº 12.034/2009 – é bastante
perceptível quando se observam os resultados dos últimos pleitos municipais. Verifica-
se na tabela a seguir a mudança relativa ao ano de 2012 quando comparado ao de 2008,
depois da incidência da obrigatoriedade das cotas de gênero, isto é, em 2012 duplicou a
quantidade e o percentual dos candidatos com zero votos, conforme se nota da pesquisa
extraída pela Assessoria de Gestão Estratégica – Diretoria Geral do TSE,11 divulgada em
4.11.2016, durante reunião realizada na Corte para debater medidas para aumentar a
participação de mulheres na política:

Ano Gênero Quantidade %

Feminino 2.327 44,66%

2008 Masculino 2.883 55,34%

Total 5.210 100,00%

Feminino 21.432 86,28%

2012 Masculino 3.408 13,72%

Total 24.840 100,00%

Feminino 15.957 85,90%

2016 Masculino 2.620 14,10%

Total 18.577 100,00%

Ressalte-se que a disposição legal em discussão é condição de registrabilidade


geral e compulsória, portanto, não tendo adequação ao percentual de candidaturas de
cada sexo, acarretará na recusa do registro de toda a lista de candidatos para eleição
proporcional.

11
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Medidas para aumentar participação da mulher na política. Disponível em:
<http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2016/Novembro/ministra-luciana-lossio-debate-com-instituicoes-
medidas-para-aumentar-participacao-da-mulher-na-politica>. Acesso em: 3 mar. 2018.

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GEÓRGIA FERREIRA MARTINS NUNES, LORENA DE ARAÚJO COSTA SOARES
CANDIDATAS DE FACHADA: A VIOLÊNCIA POLÍTICA DECORRENTE DA FRAUDE ELEITORAL E DO ABUSO DE PODER E AS RESPOSTAS JURÍDICAS...
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Concessa venia, para repisar que tal ilicitude consubstanciada na fraude e/ou do
abuso de poder recebe a denominação de candidata laranja, ou, como preferem as autoras
deste artigo, candidatas de fachada, tendo em vista o significado depreciativo do termo
“laranja”, conforme destacado por José Sérgio Martins Juvêncio:12

Muitas dessas candidatas que contribuíram para aumentar a percentagem de mulheres nas
disputas eleitorais foram consideradas como ocupantes de candidaturas descritas como
“laranjas”. O uso desse termo é depreciativo. Utiliza-se esta terminologia geralmente para
pessoas que ocupam, com ou sem o consentimento prévio, alguma ação desviante, tanto
do ponto de vista moral quanto do legal. Nas eleições de 2010 candidaturas consideradas
“laranjas” ficam conhecidas por infringirem as duas regras.

Nessa senda, é imprescindível exemplificar as formas como se revelam as candi­


daturas de fachada, isto é, o modo de restarem configuradas, tais como a ausência de
voto (resultado de zero voto) ou mesmo votação pífia, inexistência da expressão da ideia
da candidata, falta de anunciação da candidatura, não realização de campanha eleitoral,
nenhuma movimentação ou falta da apresentação da prestação de contas relativa aos
recursos financeiros utilizados durante a campanha eleitoral.
Insta salientar, ainda, o entendimento expressado pelo então ministro do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE), Henrique Neves, de acordo com a fonte do artigo científico
Candidatas de verdade, no qual vaticina a imprescindibilidade da observância do percentual
de 30% (trinta por cento) destinado às mulheres para o registro de candidatura, ressalta
a importância de que sejam verificados os atendimentos das disposições contidas na Lei
das Eleições para primar pela busca da igualdade de gênero na política brasileira, desta
forma menciona as situações em que restam demonstradas as candidaturas de fachada
para serem analisados/julgados os elementos das fraudes e/ou abuso de poder, como
se observa nestes dois relevantes trechos:

Não há dúvida que o eleitor é o verdadeiro detentor do poder e somente ele pode – na sua
individualidade protegida pelo sigilo – decidir o destino do seu voto. No entanto, sem
muito esforço, sabe-se que os candidatos buscam conquistar a confiança do eleitor por meio
da divulgação e da fixação da sua imagem, das suas qualidades e das suas ideias. Afinal,
se a candidatura não é anunciada, se não há campanha eleitoral, os eleitores não sabem
que o candidato existe, quais são suas propostas e, por consequência, não votam nele. [...]
Tais valores demonstram que o registro de candidatura não pode ser considerado algo fútil.
Por muito tempo, os brasileiros ansiaram por eleições diretas e pela liberdade de escolher
seus representantes. Ser candidato é poder expressar suas ideias, participar ativamente
da democracia e apresentar-se ao crivo popular. Por outro lado, a candidatura também
atrai responsabilidades. Além da obrigação de representar o seu partido, honrar os votos
confiados pelos eleitores e responder por seus atos, os candidatos devem prestar contas
dos recursos financeiros utilizados nas campanhas eleitorais.13

12
JUVÊNCIO, José Sérgio Martins. As candidaturas consideradas “laranjas” e sua relação com a lei de cotas. Disponível
em: <http://www.sinteseeventos.com.br/ciso/anaisxvciso/resumos/GT06-23.pdf>. Acesso em: 13 nov. 2016.
13
SILVA, Henrique Neves da. Candidatas de verdade. Jota, 19 ago. 2016. Disponível em: <https://www.jota.info/
opiniao-e-analise/colunas/e-leitor/e-leitor-candidatas-de-verdade-19082016>. Acesso em: 11 nov. 2017.

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Por conseguinte, indubitavelmente, observa-se com clareza solar as ocorrências


de casos nos quais há o cumprimento formal do disposto no art. 10, §3º, da Lei
nº 9.504/97, no entanto no âmbito material/conteúdo/finalidade não corresponde o mesmo
cumprimento, haja vista que diante do preenchimento formal da cota de gênero não se
visualiza a realização da campanha eleitoral pelas candidatas e entre outros atos que
reverberam na aludida configuração da violação na política afirmativa em tela, consoante
aventado em linhas anteriores do presente estudo.
Ademais, com o resultado proveniente das urnas, seja pela ausência de voto ou
votação pífia, juntamente com as colaborações de outros fatores acima elencados que
desvendam a nítida intenção de burlar o dispositivo legal supracitado, id est, através
da não realização da campanha eleitoral (falta de anunciação da candidatura) e/ou não
prestação de contas, fica comprovado que na verdade nenhuma mulher efetivamente
concorreu ao cargo eletivo para o qual se candidatou, merecendo serem devidamente
colacionadas as provas desta ilicitude, para demonstrar o descumprimento da norma
legal e a consequência do completo vício da chapa, haja vista que os requerimentos dos
registros de candidaturas femininas foram elaborados mediante fraude/abuso de poder,
logo contaminando toda a chapa, seja de vereadores ou deputados.
Nessa toada, tornam-se imperiosas as aplicações tanto de medidas inibitórias, a
fim de impedir as ocorrências destas práticas configuradoras de candidaturas de fachada,
como de medidas relativas a sanções, quando demonstradas tais incidências violadoras,
pois a democracia brasileira não pode nem deve estar envolvida em verdadeiros teatros
com o fito de tão somente transmitir a aparência de legalidade em preencher no aspecto
formal a determinação legal, sendo que deve ser respeitado o sentido material da norma
para atingir o objetivo da ação afirmativa nela inserida.
E, uma vez que somente é possível constatar a ocorrência de burla à lei pelos
partidos durante a campanha e/ou após o pleito, com o resultado das urnas, não se pode
continuar restringindo a sua apuração à impugnação de registro de candidatura, razão
pela qual está ensejando a evolução jurisprudencial no tocante aos instrumentos ade­
quados para fustigar tais condutas violadoras do preceito legal atinente à cota de gênero.
Em outros termos, a questão que exsurge é a do instrumento processual cabível
para discutir, perante a Justiça Eleitoral, a violação ao art. 10, §3º, da Lei nº 9.504/97, cons­
tatado somente após o deferimento do DRAP, com a total ausência de campanha pelas
candidatas e/ou com votação individual zerada, ou seja, além de não pedir votos, a can­­
di­­data sequer vota em si mesma. Desta feita, é preciso verificar, portanto, o cabimento de
re­pre­sentação eleitoral (RP), ação de investigação judicial eleitoral (AIJE), ação de im­­pug­­
nação de mandato eletivo (AIME), e/ou recurso contra a expedição de diploma (RCED).
A modificação no posicionamento jurisprudencial ergueu-se quando do julga­
mento de duas ações eleitorais, quais sejam, AIJE e AIME, no emblemático caso do
município de José de Freitas-PI, julgado após o pleito municipal de 2012, o qual será
expen­dido mais adiante em momento oportuno.
Em geral, impende consignar que, quanto aos fatos que motivam o oferecimento de
uma dessas ações, estes também poderiam ser enquadrados na causa de pedir das demais,
inclusive do recurso contra expedição de diploma (RCED), cujo cabimento, por força
da Lei nº 12.891/2013, que alterou a redação do art. 262 do Código Eleitoral, alcança os
“casos de inelegibilidade superveniente ou de natureza constitucional e de falta de condição
de elegibilidade”. E, haja vista que a proporcionalidade das candidaturas registradas

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é condição de elegibilidade (há quem entenda ser condição de registrabilidade), no


entendimento das autoras, seria igualmente viável o ajuizamento de recurso contra
expedição de diploma.
Portanto, compreende-se o cabimento de qualquer das ações, ou mesmo, de
todas elas, em especial diante dos entendimentos pacificados tanto na doutrina como
nas jurisprudências das Cortes Regionais e da Excelsa Corte Eleitoral no sentido de que
não se configura litispendência quando as representações eleitorais, a AIJE e a AIME
possuem as mesmas partes e são fundamentadas nos mesmos fatos, tendo em vista que
os instrumentos processuais são autônomos, com causa de pedir própria. Pode até haver
reunião de ações, com fundamento na nova disposição do art. 96-B da Lei nº 9.504/97,
mas não se pode falar em litispendência.
Por uma questão de delimitação desta pesquisa, passa-se, então, a enfrentar
apenas o cabimento de AIME e AIJE, em razão de já estarem respaldadas pelos recentes
julgados do colendo TSE.

4.2.1 Do cabimento da ação de impugnação de mandato eletivo


(AIME): a incidência da fraude eleitoral
No que tange à AIME, importante mencionar que este instrumento processual
apresenta índole constitucional, com previsão no art. 14, §§10 e 11 da CF/88.14
Pela redação do sobredito dispositivo constitucional, a ação objetiva coibir os
vícios que desvirtuam o processo eleitoral, isto é, afastando do poder o candidato eleito
e empossado mediante abuso de poder econômico, corrupção ou fraude. Contudo,
ressalta-se que os referidos pressupostos precisam ter gravidade a ponto de turbar tanto
a normalidade como a legitimidade do processo eleitoral.
Corroborando a finalidade precípua do processo contencioso eleitoral em comento,
torna-se essencial enfatizar as lições do jurista José Jairo Gomes,15 nos seguintes termos:

Trata-se, pois, de ação de índole constitucional-eleitoral, com potencialidade desconstitutiva


do mandato. Por óbvio, não apresenta caráter criminal. Seu objetivo é tutelar a cidadania,
a lisura e o equilíbrio do pleito, a legitimidade da representação política, enfim, o direito
difuso de que os mandatos eletivos apenas sejam exercidos por quem os tenha alcançado
de forma lícita, sem o emprego de práticas tão censuráveis quanto nocivas como são o
abuso de poder, a corrupção e a fraude.

No que toca ao descumprimento do art. 10, §3º, da Lei nº 9.504/97, acerca do não
preenchimento da cota mínima de 30% (trinta por cento) referente às candidaturas de
mulheres – muitas vezes acontece de as coligações e/ou partidos procederem mediante
atos fraudulentos de percentual branco por renúncia e/ou percentual branco com votos

14
“Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual
para todos, e, nos termos da lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular. [...] §10. O mandato
eletivo poderá ser impugnado ante a Justiça Eleitoral no prazo de quinze dias contados da diplomação, instruída
a ação com provas de abuso do poder econômico, corrupção ou fraude. §11. A ação de impugnação de mandato tramitará
em segredo de justiça, respondendo o autor, na forma da lei, se temerária ou de manifesta má-fé” (grifos nossos).
15
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2011. p. 541.

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irrisórios –, a AIME consiste na via eleita adequada, pois a apuração da fraude somente
ocorre após a proclamação do resultado, assim se dando durante o processo eleitoral.
A fraude tem por escopo desvirtuar tanto os princípios como as regras do direito,
porquanto a ação, aparentemente, é praticada em consonância com o direito, contudo
a finalidade pretendida o contraria, em virtude de malograr a finalidade e o sentido da
lei através da utilização de meio ardil, astúcia, artifício ou artimanha.
Como os fatos que ensejam a AIME somente são conhecidos após o dia das eleições,
já não se torna mais possível ajuizar ação de impugnação ao registro de candidatura
(AIRC), logo aquela deve ser reconhecida como meio cabível para apurar a fraude ora
esposada, qual seja, a fraude para suprir a exigência da cota. Desse modo, com a votação
pífia ou zerada ou renúncias de candidatas, resta comprovado que as candidatas foram
colocadas apenas para viabilizar o registro dos candidatos do sexo masculino.
Repise-se que há duas correntes acerca da temática da discussão repercutida
em torno da noção de fraude com o fito de manuseio da AIME, uma com aplicação
pela interpretação restritiva (fraude ocorrida no processo de votação) e a outra pelo
posicionamento mais abrangente, isto é, interpretação ampliativa.
Embora a referida questão não seja, ainda, pacífica em doutrinas e jurispru­dên­
cias, torna-se essencial citar o precedente do Colendo TSE (Agravo de Instrumento
nº 4.661, Rel. Ministro Fernando Neves), estendendo o conceito de fraude para além
da ocasião da votação, podendo tal fraude restar configurada através da utilização de
artifício ou ardil que induza o eleitor a erro, com a intenção de influenciar a vontade
do eleitor durante o voto.

AIME. FRAUDE. PREFEITO REELEITO. CANDIDATO EM OUTRO MUNICÍPIO.


MESMO CARGO. INELEGIBILIDADE CONSTITUCIONAL. EXTINÇÃO DO FEITO
SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. RECURSO. PRELIMINAR DE CARÊNCIA DE AÇÃO.
REJEITADA. MÉRITO. FRAUDE. POTENCIALIDADE LESIVA AO RESULTADO DO
PLEITO. PROCEDÊNCIA. CASSAÇÃO DOS MANDATOS. EXECUÇÃO IMEDIATA.
NOVO PLEITO.
Muito embora o entendimento jurisprudencial incline-se no sentido de entender a fraude constante
do art. 14, §10 da CF/88, atrelada ao processo de votação, é de se entender que a matéria sob
apreciação, por sua expressa previsão constitucional, macula não só o processo de votação, mas sim
todo o processo eleitoral, inclusive o de votação, pois, em verdade, implicitamente o eleitor estará
sendo induzido a erro, tendo em vista que estará votando em candidato inelegível.
De acentuar que o referido diploma traz em si o germe da Democracia Representativa,
fundada em referenciais ético-políticos de real grandeza, e traduzida em verdade objetiva.
Admitir-se a frustração do dispositivo é permitir o relativismo contratual, bem assim
a preclusão da matéria afim, posta na presente Ação; provada inelegibilidade – fraude,
atentativa à verdade em comento, deve-se, a rigor, decretar a perda do mandato eletivo
do infrator, nos termos do §10, do art. 14 da Constituição Federal.
Constata-se que o candidato utilizou-se de um artifício que viciou todo o processo eleitoral.
Assim, não se deve restringir a fraude eleitoral somente ao processo de votação, razão
porque é de rejeitar a preliminar de carência de ação, por inadequação da via eleita.
Embora tenha ocorrido a extinção do processo sem resolução do mérito, é possível a análise
por este Tribunal da matéria apontada na inicial, a teor do disposto do art. 515, §3º do CPC, já
que a questão posta em discussão versa exclusivamente sobre inelegibilidade de candidato.
Com a nova interpretação do colendo TSE sobre reeleição de candidatos aos cargos do Poder
Executivo, entende-se que a renúncia ao Cargo no município de Canavieira/PI não auto­
rizaria ao Impugnado sua candidatura ao cargo de Prefeito no município de Bertolínia/PI,

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por se tratar de mesmo cargo e, desta forma, configurando-se inevitavelmente o exercício


do terceiro mandato consecutivo, o que se afigura impossível no atual contexto jurídico.
Procedência do pedido de cassação dos mandatos dos Recorridos.
Realização de novo pleito, em face de os Recorridos terem obtido mais de cinquenta por
cento dos votos válidos, à luz do que disciplina o art. 224 do Código Eleitoral.16

Ainda aplicando as regras eleitorais vigentes para o pleito de 2008, quando se


discutia o mandato itinerante de prefeito, o Tribunal Regional Eleitoral do Piauí também
já havia direcionado sua interpretação ampliada do conceito de fraude para o cabimento
da AIME. Na ocasião, ao julgar a AIME nº 5, originada de Bertolínia/PI, o Relator MM.
Juiz Ricardo Gentil Eulálio Dantas, acompanhado da maioria dos seus pares, consignou
que a interpretação restritiva da fraude (somente ao processo de votação) acarreta a
frustração do dispositivo de modo a permitir o relativismo constitucional:

Ação de impugnação de mandato eletivo. Art. 14, §10, da Constituição da República. Candidato.
Vereador. Distribuição. Folhetos. Véspera. Eleição. Notícia. Desistência. Candidato adver­
sário. Fraude eleitoral. Configuração. Responsabilidade. Potencialidade. Comprovação.
Reexame de fatos e provas. Impossibilidade. Recurso extraordinário. Interposição. Decisão.
Tribunal Regional Eleitoral. Não-cabimento. Erro grosseiro. Princípio da fungibilidade.
Não-aplicação.
1. O recurso extraordinário somente é cabível contra decisão do Tribunal Superior Eleitoral,
configurando erro grosseiro a sua interposição em face de acórdão de Corte Regional
Eleitoral, o que torna inaplicável o princípio da fungibilidade. Precedentes.
2. A fraude eleitoral a ser apurada na ação de impugnação de mandato eletivo não se deve restringir
àquela sucedida no exato momento da votação ou da apuração dos votos, podendo-se configurar,
também, por qualquer artifício ou ardil que induza o eleitor a erro, com possibilidade de influenciar
sua vontade no momento do voto, favorecendo candidato ou prejudicando seu adversário.
Agravo de instrumento provido.
Recurso especial conhecido parcialmente, mas improvido.17

No que tange à interpretação ampliativa, merecem destaques os ensinamentos


de dois doutrinadores, José Jairo Gomes e Adriano Soares da Costa, os quais defendem
que o significado de fraude não abarca apenas o momento da votação, sob pena de
retirar a máxima efetividade do comando constitucional, tornando-se necessário que
seja feita uma nova leitura para proporcionar maior eficácia, todavia evitando amplitude
semântica para que nem tudo seja cabível na AIME.
Nessa toada, consoante fora ventilado anteriormente quanto ao processo que atuou
como “mola propulsora” para novo entendimento jurisprudencial, enfatiza-se que incide
no caso do município de José de Freitas/PI, em que a coligação proporcional derrotada
e um suplente de vereador nas eleições de 2012 ofereceram AIME em face dos eleitos
aos cargos de vereadores do município de José de Freitas, dos diretórios municipais ou
comissões provisórias dos partidos que se coligaram e lançaram candidatas de fachada,
bem como do representante da coligação devido à prática de fraude eleitoral quanto
ao preenchimento na cota de 30% de candidaturas por sexo nas eleições proporcionais.

16
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Potencialidade lesiva ao resultado do pleito. AI 4661/SP. Rel. Min. Fernando
Neves da Silva. DJe, 6 ago. 2004. Grifos nossos.
17
TSE. Agravo de Instrumento nº 4.661, 15.6.2004. Rel. Min. Fernando Neves. Grifos nossos.

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Ocorre que, neste caso da AIME nº 1-49.2013.6.18.0024, na sentença, foi mencionado


não ser qualquer fraude que consiste em causa de pedir dessa ação, mas tão somente
aquela que de algum modo tenta influenciar a vontade do eleitor, mesmo que não seja
capaz de mudar o resultado da eleição, assim tendo compreendido pela inadequação da
via eleita. O TRE/PI, ao julgar o recurso, também entendeu pela inadequação da via eleita.
Na esfera Superior, o TSE decidiu, na análise do Recurso Especial nº 1-49, que o
conceito de fraude para fins de cabimento de AIME é aberto e genérico e pode envolver
todas as situações capazes de afetar a normalidade das eleições e a legitimidade do
mandato eletivo, inclusive nos casos de fraude à lei, como mostra a seguir a ementa
deste julgamento, tendo determinado que os autos fossem remetidos ao Egrégio TRE/PI
para apreciação da ação, posto que considerada adequada a via eleita. A inadmissão da
AIME propiciaria violação do direito de ação e de inafastabilidade da jurisdição.

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE MANDATO ELETIVO. CORRUP­


ÇÃO. FRAUDE. COEFICIENTE DE GÊNERO.
1. Não houve violação ao art. 275 do Código Eleitoral, pois o Tribunal de origem se mani­
festou sobre matéria prévia ao mérito da causa, assentando o não cabimento da ação de
impugnação de mandato eletivo com fundamento na alegação de fraude nos requerimentos
de registro de candidatura.
2. O conceito de fraude, para fins de cabimento da ação de impugnação de mandato eletivo (art. 14,
§10, da Constituição Federal), é aberto e pode englobar todas as situações em que a normalidade
das eleições e a legitimidade do mandato eletivo são afetadas por ações fraudulentas, inclusive nos
casos de fraude à lei. A inadmissão da AIME, na espécie, acarretaria violação ao direito de ação e à
inafastabilidade da jurisdição.
Recurso especial provido.18

A razão do preceito do art. 14, §10, da CF é a apuração de toda e qualquer fraude,


além daquela que permitiu o cumprimento fictício a fim de simular a observância da
cota de 30% de candidatura do sexo feminino. Deve haver ainda uma interpretação
sistemática do art. 14, §§9º e 10, deste diploma legal com o intuito de impedir condutas
abusivas. Dessa forma, proibir a apuração da fraude por meio da AIME seria incentivar
o sentimento de impunidade do candidato que agiu ilicitamente e uma afronta ao direito
de ação e à inafastabilidade de jurisdição, bem como não haveria outro meio hábil para
julgamento da fraude.
O Ministro Henrique Neves consignou, em seu voto na AIME, que o conceito de
fraude abrange todo e qualquer tipo de abuso, corrupção, abuso de poder político ou
econômico, assim como consiste na mesma linha do AgR-REspe nº 330-48. Nesse sentido,
reportou-se ao seguinte trecho do voto do eminente Ministro Ayres Britto, relator do
REspe nº 28.040, cujo acórdão foi publicado no DJ em 11.7.2008:

Em síntese, a palavra “corrupção”, tanto quanto o vocábulo “fraude”, ambos estão ali no
parágrafo 10 do art. 14 da Magna Carta sob o deliberado intuito de se fazer de uma acepção
prosaica um lídimo instituto de Direito Constitucional-eleitoral. Não propriamente de

18
REspe nº 1-49. Rel. Min. Henrique Neves. DJe, 21 out. 2015. Grifos nossos.

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Direito Constitucional-penal, renove-se o juízo. Com o que se afasta o paradoxo de supor


que a Constituição-cidadã incorreu no lapsus mentis de não considerar o abuso do poder
político – logo ele – como pressuposto de ajuizamento da AIME.19

Na realidade, Neves reconheceu que a AIME deve ser admitida como instrumento
processual de salvaguarda da legitimidade e da normalidade das eleições contra toda
sorte de abuso, corrupção ou fraude, não cabendo impor limitações ao texto constitucional
que não estejam previstas na própria Constituição Federal. Cumpre ressaltar ainda
que conceito de fraude para fins de AIME não encerra, em si, interpretação extensiva,
mas o mero reconhecimento de que, onde o constituinte não distinguiu, não cabe ao
legislador ordinário ou ao intérprete distinguir para efeito de reduzir o alcance do
comando constitucional.
Assim, segundo o eminente jurista supracitado, a interpretação do dispositivo
constitucional deve considerar a existência das demais regras e princípios contidos no
corpo da Constituição, de forma a permitir a harmonização das hipóteses de cabimento da
AIME com os fins lídimos de eleições. Nesse aspecto, as alegações relevantes de fraude à
lei não podem ter a sua análise extirpada do âmbito da impugnação de mandato eletivo.
Para o Ministro Henrique Neves, importante destacar que a hipótese em debate
não contempla mera aferição da observância ou não dos percentuais de gênero das
candidaturas previstas na legislação eleitoral, o que é, em si, matéria a ser aferida no
momento da impugnação ou da análise do demonstrativo de regularidade dos atos
partidários – DRAP, conforme é pacífico na jurisprudência do TSE. O que se narra cuja
veracidade deve ser oportunamente verificada é a existência de candidaturas fictícias
lançadas apenas para atender aos patamares exigidos pela legislação eleitoral.
Assim, por certo não se pode exigir que os temas que envolvam ações ou omissões
praticadas ou incorridas no curso da campanha eleitoral sejam objeto de impugnação ao
pedido de registro de candidatura ou ao DRAP. Por outro lado, não há como impedir que
tais temas sejam levados ao conhecimento e ao julgamento pela Justiça Eleitoral, com a
observância do devido processo legal e das garantias da defesa, sob pena de manifesta
contrariedade ao direito de ação e à inafastabilidade da jurisdição, insculpida no inc.
XXXV do art. 5º da Constituição Federal. Por fim, há que se recordar a lição de Miguel
Reale no sentido de que as normas valem em razão da realidade de que participam,
adquirindo novos sentidos ou significados, mesmo quando mantidas inalteradas em
suas estruturas formais.
Ao fixar a importância do conceito do princípio da força normativa da Constituição
e da necessidade de interpretar, nas palavras de Hesse, o ministro assevera que os fatos
apontados pelos impugnantes não podem ser considerados, a priori, insuficientes para
configurar hipótese de cabimento da AIME.
Ainda com base no julgamento do REspe nº 1-49, em diálogo entre a Ministra
Luciana Lóssio e o Ministro Henrique Neves da Silva, eles destacam a necessidade de
conferir interpretação mais ampla ao conceito de fraude nos processos semelhantes
prove­nientes do estado do Piauí, pois as condutas reveladas demonstram prática
reiterada nas eleições piauienses, consequentemente haverá impunidade caso não seja

19
REspe nº 28.040. Rel. Min. Ayres Britto. DJe, 11 jul. 2008.

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556 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

admitido o conhecimento da AIME pela Justiça Eleitoral, e essa configuração da fraude


não chegaria à apreciação da Justiça.

4.2.2 Do cabimento da ação de investigação judicial eleitoral para o


combate da violência política contra as candidatas sob a ótica do
abuso de poder
A propositura da ação de investigação judicial eleitoral (AIJE) por abuso de poder
possui como desiderato a tutela da normalidade, legitimidade e idoneidade das eleições,
com esteio na Lei Complementar nº 64/90, mais especificamente nos arts. 19 e 22, inc. XIV.
Segundo as valorosas palavras dos juristas Alexandre Ávalo, Anderson Chadid
Warpechowski, Antenor Ferreira de Rezende Neto e outros,20 de modo a ratificar o
objetivo estabelecido em lei, descrevem a intenção do processo contencioso eleitoral
em análise nos seguintes termos:

A finalidade original da ação de investigação judicial eleitoral é a apuração da influência


do poder econômico, político, o desvio ou abuso do poder de autoridade e a utilização
indevida de veículos ou meios de comunicação social, em desfavor da normalidade e do
equilíbrio da disputa eleitoral.

Nota-se que o fato apurado deve conter a potencialidade ou a aptidão de gerar


prejuízos na higidez do processo eleitoral, tanto que se faz essencial que os elementos
do evento sejam considerados graves, até mesmo pela aplicação do art. 22, XIV, da LC nº
64/90. Porém, diante desta aplicação, tal fato não precisa alterar o resultado das eleições.
Ademais, importante ressaltar o cabimento da AIJE para os casos de candidaturas
de fachada. Para tanto, torna-se imprescindível que a Justiça Eleitoral, caracterizado
como o órgão que possui influência no jogo democrático, atue no papel de objetivar
tanto a efetivação, a implementação, como a fiscalização das políticas públicas para o
devido cumprimento da participação da mulher na política brasileira. Desse modo, a
AIJE consiste em um dos meios de viabilizar tais objetivos mencionados.
O posicionamento no que tange à adequação da AIJE referente ao abuso de poder
é corroborado pela própria decisão do TRE/PI nos autos da AIJE nº 243-42.2012.6.18.0024,
de origem no município de José de Freitas, quanto ao não cumprimento da exigência de
cotas por sexo nas eleições de 2012, verificando-se pela ementa adiante:

RECURSOS. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES MUNI­


CIPAIS. CARGO VEREADOR. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE PASSIVA DA
COLIGAÇÃO. ACOLHIMENTO. PRELIMINAR DE INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA.
ACOLHIMENTO EM RELAÇÃO À FRAUDE. NÃO ACOLHIMENTO PARA A HIPÓTESE
DE ABUSO DO PODER. PROVIMENTO PARCIAL DO RECURSO DO MINISTÉRIO
PÚBLICO ELEITORAL. MÉRITO. ABUSO DO PODER ECONÔMICO E DE AUTORIDADE.
CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO. NÃO CARACTERIZAÇÃO. SENTENÇA MAN­
TIDA. NÃO PROVIMENTO DO RECURSO DA COLIGAÇÃO RECORRENTE.

20
ÁVALO, Alexandre et al. O novo direito eleitoral brasileiro: manual de direito eleitoral. 2. ed. rev., atual. e ampl.
Belo Horizonte: Fórum, 2014.

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CANDIDATAS DE FACHADA: A VIOLÊNCIA POLÍTICA DECORRENTE DA FRAUDE ELEITORAL E DO ABUSO DE PODER E AS RESPOSTAS JURÍDICAS...
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1. As coligações partidárias, embora tenham legitimidade ativa para a propositura de


ação de investigação judicial eleitoral, não possuem legitimidade passiva, pois inviável a
aplicação da inelegibilidade ou a cassação do registro do candidato em caso de condenação.
2. Alegações de fraude para obtenção de resultado favorável no pleito, por meio de induzimento de
eleitoras a se candidatarem para suprir a cota de gênero de 30% do sexo feminino, não correspondem
ao âmbito de cabimento da ação de investigação judicial eleitoral, conforme preceitua o art. 22,
caput, da Lei Complementar nº 64/90.
3. O contexto probatório colacionado aos autos não permite extrair a existência de
exorbitância, desbordamento ou excesso de recursos financeiros. Também não restou
demonstrado abuso de poder de autoridade, de modo a proporcionar aos investigados se
utilizarem de um ato da administração, como conceder emprego público ou aposentadoria,
com o objetivo imediato de favorecimento eleitoral.
4. Na presente hipótese discute-se a própria ocorrência da captação ilícita de sufrágio,
que deve estar alicerçada em sólida e harmônica versão probatória para embasar uma
condenação.
5. A prova colhida não teve o condão de corroborar o possível abuso de poder econômico
ou de autoridade e, muito menos, o ato de captação noticiado, de modo a demonstrar a
efetiva materialização das condutas descritas no art. 41-A da Lei nº 9.504/97.
6. Recurso do Ministério Público conhecido e provido parcialmente. Recurso da Coligação
“Vitória Que o Povo Quer” conhecido e não provido.21

Diante desta exposição, nota-se que a referida Egrégia Corte entendeu pelo
acolhimento parcial da preliminar de inadequação da via eleita, no que toca ao aspecto
da fraude, pois esta é tratada no âmbito da AIME, com base nas fundamentações jurídicas
alhures, enquanto julgou pelo não acolhimento dessa preliminar referente ao caso de
abuso do poder, posto que se enquadra no cabimento da ação de investigação judicial
eleitoral.
Ora, há que se destacar, quanto a essa interpretação, que o próprio Colendo
TSE já reformou esse posicionamento, ao julgá-lo precedente de José de Freitas/PI, em
sede de REspe nº 243-42, conforme decisão prolatada em 16.8.2016, como se observa na
ementa a seguir:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. FRAUDE.


PERCENTUAIS DE GÊNERO. CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO.
1. Não houve ofensa ao art. 275 do Código Eleitoral, pois o Tribunal de origem entendeu incabível
o exame da fraude em sede de ação de investigação judicial eleitoral e, portanto, não estava obrigado
a avançar no exame do mérito da causa.
2. “É pacífico o entendimento jurisprudencial desta Corte no sentido de que o partido
político não detém a condição de litisconsorte passivo necessário nos processos nos quais
esteja em jogo a perda de diploma ou de mandato pela prática de ilícito eleitoral” (AgR-AI
nº 1307-34, rel. Min. Marcelo Ribeiro, DJE de 25.4.2011).
3. Para modificar a conclusão da Corte de origem e assentar a existência de oferta de benesse
condicionada ao voto ou de ato abusivo com repercussão econômica, seria necessário o
reexame do conjunto probatório dos autos, providência inviável em sede de recurso especial
(Súmulas 7 do STJ e 279 do STF).

21
BRASIL. Tribunal Regional Eleitoral do Piauí. Não cumprimento da exigência de cotas por sexo. Recurso
Eleitoral na AIJE nº 24342. Rel. Dr. Francisco Hélio Camelo Ferreira, j. 11.11.2013. DJe, 19 nov. 2013. Grifos nossos.

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558 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

4. É possível verificar, por meio da ação de investigação judicial eleitoral, se o partido político
efetivamente respeita a normalidade das eleições prevista no ordenamento jurídico – tanto no
momento do registro como no curso das campanhas eleitorais, no que tange à efetiva observância da
regra prevista no art. 10, §3º, da Lei das Eleições – ou se há o lançamento de candidaturas apenas
para que se preencha, em fraude à lei, o número mínimo de vagas previsto para cada gênero, sem o
efetivo desenvolvimento das candidaturas.
5. Ainda que os partidos políticos possuam autonomia para escolher seus candidatos e
estabelecer quais candidaturas merecem maior apoio ou destaque na propaganda eleitoral, é
necessário que sejam assegurados, nos termos da lei e dos critérios definidos pelos partidos
políticos, os recursos financeiros e meios para que as candidaturas de cada gênero sejam
efetivas e não traduzam mero estado de aparências.
Recurso especial parcialmente provido.22

Observa-se que neste julgado destaca-se que a AIJE tem aplicabilidade para tutelar
o bem da normalidade das eleições, devendo ser considerado não somente na ocasião do
registro, mas como no curso das campanhas eleitorais também, no que toca ao efetivo
cumprimento da norma constante no art. 10, §3º da Lei das Eleições, tudo isso para que
não sejam realizadas as candidaturas de forma a fraudar o real sentido da lei, ou seja,
preencher a cota mínima de 30% (trinta por cento) de candidatura feminina sem atender
à verdadeira finalidade do que vaticina a norma.
Com base nos ensinamentos do Ministro Henrique Neves da Silva, que apresentou
o seu entendimento no artigo intitulado Candidatas de verdade, no espaço e-Leitor do
site Jota,23 não basta que a regra do percentual seja obedecida formalmente, necessitando
ser observada de forma material durante as eleições. O autor também entendeu, acerca
do cabimento da apuração do ilícito através da AIJE:

A Justiça Eleitoral voltou a afirmar que lançar mulheres como candidatas apenas para
preencher o percentual mínimo exigido pela legislação eleitoral pode ser considerado ilícito
grave. Em julgamento concluído na última terça-feira (REspe nº 243-42), o TSE decidiu
que, além da possibilidade de se verificar se o percentual de candidatura foi formalmente
atendido no momento do registro das candidaturas, é também possível investigar se a
regra é materialmente respeitada no curso das eleições, por meio da ação de investigação
judicial eleitoral, com consequências para o partido político e todos os seus candidatos.

Indiscutivelmente, o desrespeito ao percentual mínimo destinado para as


candidaturas de mulheres não possui relação somente com o aspecto da fraude, mas
como apresenta diversas hipóteses quanto à divergência do número de candidatas e o
número de eleitas, entre elas a questão do financiamento de campanha, revelando-se
em verdadeiro abuso de poder.
Seguindo a fonte de pesquisa supracitada, verifica-se outra interessante temática
intitulada como A falácia das cotas de gênero ante a ausência de recursos para as campanhas
de mulheres, de autoria da ilustre Professora Eneida Desiree Salgado:24

22
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Percentuais de gênero. Recurso Especial Eleitoral na AIJE nº 24342. Rel.
Min. Henrique Neves da Silva. DJe, 16 ago. 2016. Grifos nossos.
23
SILVA, Henrique Neves da. Candidatas de verdade. Jota, 19 ago. 2016. Disponível em: <https://www.jota.info/
opiniao-e-analise/colunas/e-leitor/e-leitor-candidatas-de-verdade-19082016>. Acesso em: 11 nov. 2017.
24
SALGADO, Eneida Desiree; FARIAS, Marina Cardoso; SANTOS, Rayssa Porto. A falácia das cotas de gênero
ante a ausência de recursos para as campanhas de mulheres. Jota, 14 out. 2016. Disponível em: <https://www.

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CANDIDATAS DE FACHADA: A VIOLÊNCIA POLÍTICA DECORRENTE DA FRAUDE ELEITORAL E DO ABUSO DE PODER E AS RESPOSTAS JURÍDICAS...
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Há várias hipóteses para explicar essa disparidade entre o número de candidatas e o número
de eleitas, assim como a baixa expressividade eleitoral das mulheres. Pode ser a pouca
permeabilidade dos partidos às mulheres, pode ser uma cultura machista e misógina que
acha que lugar de mulher na política é apenas no cargo de primeira dama, de preferência
com uma roupa e um penteado que deixem claro sua posição subalterna, talvez seja a
imagem que as mulheres têm de si mesmas. Talvez. Nossa aposta aqui será outra: a falta
de acesso a recursos financeiros e à propaganda eleitoral neutraliza a previsão de cotas de
candidatura e a exigência de participação das mulheres nas instituições políticas.

Estes atos da ausência de acessos aos recursos financeiros e à propaganda eleitoral,


da baixa adesão dos partidos políticos em relação às mulheres, entre outras causas, as
quais são consideradas, infelizmente, como culturas machistas, ensejam o afastamento da
mulher na participação da política, em virtude da prática de tais ações caracterizadoras
do abuso de poder.
Portanto, pelas razões ora esposadas, inarredavelmente, tornam-se plenamente
cabíveis as proposituras da ação de investigação judicial eleitoral (AIJE) para apurar o
fundamento do abuso de poder, e da ação de impugnação de mandato eletivo (AIME),
referente ao exame da fraude questionada.

4.3 Das consequências advindas da violação do art. 10, §3º, da Lei


nº 9.504/97: presença de candidatura de fachada punível com a
cassação do registro/diploma/mandato de todos os candidatos
beneficiados pela fraude/abuso de poder
É imprescindível colacionar uma interessante jurisprudência ao tema em baila,
cons­tante no acórdão do julgamento do REspe nº 2.939, no qual o TSE manteve a decisão
regional que indeferiu o registro coletivo à Coligação “Frente Renovadora pela Decên­cia
Política e Justiça Social”, da cidade de Jataúba/PE, devido à não observância dos per­
centuais de candidatos por sexo determinados em lei, como se verifica adiante da ementa:

Registro de candidaturas. Percentuais por sexo.


1. Conforme decidido pelo TSE nas eleições de 2010, o §3º do art. 10 da Lei nº 9.504/97, na redação
dada pela Lei nº 12.034/2009, estabelece a observância obrigatória dos percentuais mínimo e máximo
de cada sexo, o que é aferido de acordo com o número de candidatos efetivamente registrados.
2. Não cabe a partido ou coligação pretender o preenchimento de vagas destinadas a um
sexo por candidatos do outro sexo, a pretexto de ausência de candidatas do sexo feminino
na circunscrição eleitoral, pois se tornaria inócua a previsão legal de reforço da participação
feminina nas eleições, com reiterado descumprimento da lei.
3. Sendo eventualmente impossível o registro de candidaturas femininas com o percentual mínimo de
30%, a única alternativa que o partido ou a coligação dispõe é a de reduzir o número de candidatos
masculinos para adequar os respectivos percentuais, cuja providência, caso não atendida, ensejará
o indeferimento do demonstrativo de regularidade dos atos partidários (DRAP). Recurso especial
não provido.25

jota.info/opiniao-e-analise/colunas/e-leitor/e-leitor-falacia-das-cotas-de-genero-ante-ausencia-de-recursos-para-
campanhas-de-mulheres-14102016>. Acesso em: 11 nov. 2016.
25
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Registro de candidaturas. Recurso Especial Eleitoral nº 2939. Rel. Min.
Arnaldo Versiani Leite Soares, j. 6.11.2012. DJe, 6 nov. 2012. Grifos nossos.

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560 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Desta forma, compreende o entendimento da jurisprudência a configuração da


fraude quando não há o atendimento ao dispositivo do preenchimento da cota por
sexo, de modo a requerer o indeferimento coletivo da chapa apresentada ou mesmo a
cassação dos mandatos conquistados por meio ilegal. Logo, em razão da ocorrência da
burla no preenchimento da cota mínima de 30% (trinta por cento), deverão ser cassados
os diplomas de todos os eleitos a cargo de vereador e suplentes da chapa viciada, posto
o completo vício da chapa.
No que tange à votação pífia de candidatas, isso foge da normalidade, desse modo
a Justiça Especializada não pode relativizar a Lei Eleitoral com o posicionamento de que
o voto irrisório ou nenhum voto obtido não configura fraude. Por consequência, a Justiça
Eleitoral necessita coibir tais práticas, com a devida cassação dos diplomas conferidos
a todos os eleitos e suplentes que concorreram através da chapa inexistente (viciada),
anular os votos obtidos pelos candidatos, além de recalcular o quociente eleitoral para
dar posse a quem de direito, para assim assegurar a lisura do pleito.
Destaca-se que, em situações de renúncias de candidatas, durante o período de
substituição, deve ser realizada a substituição da candidata que renunciou mediante
a candidatura de outra mulher para ocupar/preencher o percentual de no mínimo em
30% (trinta por cento), de modo a ajustar e regularizar a situação, em conformidade ao
que o dispositivo da lei preceitua, pois, caso contrário, poder-se-á incorrer naquelas
consequências supramencionadas. Nesse sentido, da necessidade da regularização,
segue jurisprudência:

Candidatos para as eleições proporcionais. Preenchimento de vagas de acordo com os percen­tuais


mínimo e máximo de cada sexo. 1. O §3º do art. 10 da Lei nº 9.504/97, na redação dada pela Lei
nº 12.034/2009, passou a dispor que, “do número de vagas resultante das regras previstas
neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o
máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo”, substituindo, portanto,
a locução anterior “deverá reservar” por “preencherá”, a demonstrar o atual caráter imperativo
do preceito quanto à observância obrigatória dos percentuais mínimo e máximo de cada sexo.
2. O cálculo dos percentuais deverá considerar o número de candidatos efetivamente
lançados pelo partido ou coligação, não se levando em conta os limites estabelecidos no
art. 10, caput e §1º, da Lei nº 9.504/97. 3. Não atendidos os respectivos percentuais, cumpre
determinar o retorno dos autos ao Tribunal Regional Eleitoral, a fim de que, após a devida intimação
do partido, se proceda ao ajuste e regularização na forma da lei. [...].26

Essa substituição não pode ser concretizada através da ocupação da vaga por
outro sexo, bem como, na impossibilidade de substituição por outra candidata, a ação
que deve ser adotada pelo partido político ou pela coligação reside na diminuição de
candidatos homens, com o escopo de adequar os respectivos percentuais, em consonância
aos termos do julgamento supracitado do REspe nº 2.939 pelo Tribunal Superior Eleitoral,
sob pena de recair no “percentual branco por renúncia” já devidamente conceituado.
Ocorre que há situações de formalização das renúncias pelas candidatas depois
do prazo permitido para substituição das candidaturas, de forma a alegar-se que o
partido não poderia ser penalizado, conforme é o entendimento desta jurisprudência:

26
Ac. de 12.8.2010 no REspe nº 78432. Rel. Min. Arnaldo Versiani. Grifos nossos.

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Representação. Eleição proporcional. Percentuais legais por sexo. Alegação. Descumprimento


posterior. Renúncia de candidatas do sexo feminino.
1. Os percentuais de gênero previstos no art. 10, §30, da Lei nº 9.504197 devem ser observados
tanto no momento do registro da candidatura, quanto em eventual preenchimento de vagas
remanescentes ou na substituição de candidatos, conforme previsto no §60 do art. 20 da
Res.-TSE nº 23.373.
2. Se, no momento da formalização das renúncias por candidatas, já tinha sido ultrapassado
o prazo para substituição das candidaturas, previsto no art. 13, §30, da
Lei nº 9.504197, não pode o partido ser penalizado, jurídica de serem apresentadas
substitutas, de modo a considerando, em especial, que não havia possibilidade readequar
os percentuais legais de gênero.
Recurso especial não provido.27

No entanto, são esses casos que exigem maior atenção, pois, muitas vezes, tal
prática de renunciar à candidatura feminina após o prazo da substituição visa exatamente
burlar o preenchimento da cota mínima de 30% (trinta por cento), diante de um prévio
acordo/consentimento da candidata com o partido ou a coligação para que essa exerça
a renúncia da candidatura, assim tornando-se relevante o ajuizamento da ação para
apurar o referido ilícito.
Em sede de AIJE, esta tem por objeto, id est, consequência do pedido a declaração
de inelegibilidade durante 8 (oito) anos, com base no art. 22, XIV, da Lei Complementar
nº 64/90, em virtude da comprovação do abuso de poder. Já a AIME visa ao reconhecimento
da fraude, para desconstituir os mandatos dos impugnados, de modo a retirar a
eficácia dos diplomas concedidos aos eleitos e suplentes, devendo ser feito o recálculo
do quociente eleitoral, a fim de diplomar e empossar a quem possui direito; e após a
confirmação da fraude eleitoral, a determinação da cassação dos diplomas, aplicação
de multa no valor máximo em virtude da gravidade do ilícito, e a inelegibilidade pelo
prazo de 8 (oito) anos.
Ademais, a aplicabilidade da cassação e retirada da eficácia dos diplomas conce­
didos aos eleitos e suplentes deve-se ao fato de que todos obtiveram benefícios com
o ilícito da prática de candidaturas de fachada e também o consentimento de tal ato,
porquanto o partido político possui autonomia para escolher os seus candidatos, princi­
palmente, por determinar quem receberá maior ênfase ou apoio na propaganda eleitoral.
Ressalta-se ainda que os partidos políticos são responsáveis por realizar o lançamento
das candidaturas. Por consequência, incabível a alegação de que os candidatos não
conhecem os demais, uma vez que têm a intenção de saber a força de outrem diante da
população, em virtude do meio competitivo.
Portanto, a efetiva incidência das sanções, quando apuradas e comprovadas as
ações realizadas através de fraude e/ou abuso de poder, restando na configuração da
chamada candidatura laranja, viabiliza o desestímulo de práticas tanto futuras, que
reiterem na conduta ilícita, como a serem exercidas por outros(as) candidatos(as) e
partidos políticos.

27
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Percentuais legais por sexo. Recurso Especial Eleitoral nº 21498. Rel. Min.
Henrique Neves da Silva, j. 23.5.2013. DJe, 24 jun. 2013.

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562 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

4.4 A Justiça Eleitoral no combate às candidaturas femininas de


fachada: análise dos recentes julgados relativos ao pleito municipal
de 2016 e a expectativa para as eleições 2018
Diante da análise detida acerca das candidatas de fachada, também pejorativamente
denominadas candidatas “laranjas” – numa espécie de violência simbólica contra a
mulher –, perpetradas mediante fraude eleitoral e abuso de poder, conforme delineado
em linhas anteriores, não se pode olvidar de tecer considerações no tocante aos
estudos de respostas jurídicas extraídas das decisões prolatadas pela respeitável Justiça
Especializada Eleitoral, com igual grau de relevância, porquanto esta se trata de jurisdição
necessária ao exercício da cidadania.
Nesta senda, concessa venia, impende consignar algumas das importantes decisões
jurídicas, relativas ao pleito de 2016, monocráticas e colegiadas, sobre a matéria encartada
neste estudo científico e jurídico, tais como as proferidas nos municípios de Valença e
Piracuruca, do estado do Piauí, bem como no município de Cuiabá do estado de Mato
Grosso, no município de Lunardelli do estado do Paraná, e no município de Cafelândia
do estado de São Paulo.
Inicialmente, o julgamento proferido nos autos do Processo nº 193-92.2016.6.18.0018,
oriundo do município de Valença do estado do Piauí (DJe, n. 256, de 15.12. 2016),
asseverou a sua inaplicabilidade para combater a fraude objeto da lide, pelas razões
supra, com supedâneo no cabimento da AIJE. Porém, pautada no entendimento do
Colendo Tribunal Superior Eleitoral manifestado, em agosto de 2016, no Recurso Especial
de nº 243-42.2012.6.18.0024/PI, a magistrada compreendeu que o comportamento da
fraude pode caracterizar até mesmo o abuso do poder político praticado pelos partidos
ou coligações que lançam candidaturas fictícias no intuito de tão somente mascarar a
suposta obediência do requisito legal da cota de gênero.
E, no mérito, notou elementos caracterizadores das candidaturas laranjas, tais
como a ausência de realização dos atos de campanha e obtenção de números ínfimos
de votos, inclusive até mesmo nenhuma votação, assim constatando o desrespeito ao
comando legal da cota de gênero para os cargos proporcionais, por causa da presença
de 5 (cinco) candidaturas fictícias nas coligações.
As atitudes que demonstram o desinteresse de constituir-se em candidata de
fato e de direito não se resumem apenas a não votar em si e tampouco desenvolver
atos de campanha eleitoral, ainda que detenha poucos recursos financeiros, visto que
uma das candidatas do feito em questão era servidora efetiva da prefeitura municipal,
tendo registrado a candidatura no intuito de preencher a citada cota de gênero, em
contrapartida a obter benefício com a licença de afastamento destinada para finalidade
da campanha eleitoral. Deveras, essa conduta é revestida de maior gravidade, em razão
da prática de improbidade administrativa.
Ademais, também existem candidatas que declararam ter feito campanhas com
poucos recursos financeiros, em razão da alegada crise financeira, porém uma delas
apoiou o seu filho, tendo despendido gastos financeiros consideráveis para este, enquanto
a outra demonstrou nitidamente o interesse no apoio da candidatura para candidato
diverso, que coincidentemente é o marido dela, circunstância notória e pública.
É estarrecedor, outrossim, o fato de as candidatas “laranjas” depositarem valores
em suas contas de campanha depois de recebida a notificação do juízo eleitoral, na

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CANDIDATAS DE FACHADA: A VIOLÊNCIA POLÍTICA DECORRENTE DA FRAUDE ELEITORAL E DO ABUSO DE PODER E AS RESPOSTAS JURÍDICAS...
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manifesta intenção de “criar” provas para esconder a fraude cometida, a qual restou
guerreada judicialmente.
Nesse diapasão, urge destacar as consequências advindas com a presença
dessa irregularidade no resultado das eleições, em razão de existirem mulheres que
efetivamente concorreram, e balancear duas possibilidades de soluções para resolver o
impasse, quais sejam, anular por completo as participações das coligações violadoras
da norma eleitoral, de forma a declarar nulos todos os votos recebidos pelos candidatos
das respectivas coligações, ou fazer incidir o percentual com base na quantidade de
candidatas que realmente concorreram aos cargos de vereador, através da diminuição
da quantidade de candidatos masculinos e mantendo aqueles como eleitos com o maior
número de votos.
O julgamento prolatado na Zona Eleitoral de Valença/PI se arrimou na decisão
proferida pelo Colendo TSE quanto à aplicabilidade do atendimento da cota mínima
por cada sexo mediante a contabilização com fulcro no número de candidaturas verda­
deiramente lançadas. Em suma, a eminente juíza eleitoral em sua judiciosa decisão
manifestou pelas cassações dos registros de candidatura de todos os candidatos cons­
tantes nos demonstrativos de regularidade dos atos partidários das coligações que exce­
deram a efetiva quota de gênero e em seguida declarou nulos os votos por eles recebidos.
Por consequência, declarou ainda a inelegibilidade destes candidatos para as eleições
que ocorrerão nos 8 (oito) anos subsequentes, contados a partir da eleição de 2016.
A priori, vale destacar que, na análise do cabimento da AIJE para julgar demandas
que versam sobre fraude quanto ao percentual da cota de gênero estabelecida no art. 10,
§3º da Lei nº 9.504/97, o plenário do Colendo TRE/PI, além de reiterar os fundamentos da
sentença no que tange ao sentido de que o abuso de poder deve ser entendido de forma
ampla, incluindo até mesmo as condutas fraudulentas e em desrespeito à legislação
eleitoral, asseverou com maestria que a admissão desta medida processual é consentâneo
ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, o qual está plasmado no art. 5º, inc. XXXV
da Constituição Federal de 1988,28 que vaticina que “a lei não excluirá da apreciação do
Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Sobre as consequências da ilicitude, os membros da Corte Regional Eleitoral, no
Acórdão nº 19.392,29 enfatizou que não basta se ater à quantidade de votos obtidos por
cada uma das candidatas, mas principalmente a outros fatores, como a averiguação da
prestação de contas, a realização de campanha e as situações em que foram mostradas
as referidas candidaturas, consoante se depreende da ementa do julgado adiante:

RECURSOS. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES MUNICIPAIS


2016. PRELIMINAR. AUSÊNCIA DE LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO. NÃO
ACOLHIMENTO. MÉRITO. FRAUDE. ABUSO DO PODER POLÍTICO. BURLA AO
INSTITUTO DAS COTAS DE GÊNERO. VIOLAÇÃO AO ART. 10, §3º, LEI Nº 9.504/97 E
AO ART. 5º, I, DA CF/88. COMPROVAÇÃO. A CONSTATAÇÃO DE FRAUDE NA COTA
DE GÊNERO MACULA TODA A CHAPA, PORQUANTO O VÍCIO ESTÁ NA ORIGEM.
CASSAÇÃO DOS DIPLOMAS E REGISTROS DOS CANDIDATOS ELEITOS, SUPLENTES
E NÃO ELEITOS, RESPECTIVAMENTE, OS QUAIS CONCORRERAM AO PLEITO

28
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.
29
Diário de Justiça Eletrônico do TRE/PI, n. 176, 27 set. 2017.

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564 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

PELAS CHAPAS PROPORCIONAIS CONTAMINADAS PELA FRAUDE. NULIDADE


DOS VOTOS ATRIBUÍDOS AOS CITADOS CANDIDATOS, RECONTAGEM TOTAL
DOS VOTOS E NOVO CÁLCULO DO QUOCIENTE ELEITORAL. INELEGIBILIDADE.
SANÇÃO DE CARÁTER PERSONALÍSSIMA. ALCANÇA OS CANDIDATOS QUE
DERAM CAUSA AO ILÍCITO. RECURSOS PARCIALMENTE PROVIDOS.
1. Os fatos narrados na inicial não foram atribuídos aos Presidentes das Agremiações.
Preliminar de ausência de litisconsórcio rejeitada.
2. Candidaturas registradas com único propósito de preencher o regramento do art. 10, §3º
da Lei nº 9.504/97. Manifesto desvio de finalidade, comprometendo a lisura, a normalidade
e a legitimidade das eleições proporcionais, circunstâncias que se amoldam às condutas
previstas no art. 22, incisos XIV e XVI, da Lei Complementar 64/90.
3. A existência de vício ou fraude na cota de gênero contamina toda a chapa, porquanto
o vício está na origem, ou seja, o seu efeito é ex tunc e, assim, impede a disputa por todos
os envolvidos.
4. Reconhecida a fraude, devem ser cassados os diplomas e registros dos candidatos eleitos,
suplentes e não eleitos, respectivamente, declarando nulos os votos a eles atribuídos, com
a imperiosa recontagem total dos votos e novo cálculo do quociente eleitoral.
5. Em não havendo prova da participação efetiva dos demais candidatos, e diante do
caráter personalíssimo da inelegibilidade prevista no art. 22, XIV, LC 64/90, seu alcance
restringe-se às candidatas fictícias, pois concorreram para efetivação da fraude às cotas
de gênero, porquanto conscientemente disponibilizaram seus nomes para fins de registro
de candidatura, sem a intenção de disputar o pleito eleitoral de 2016.
6. Não existindo comprovação da participação dos candidatos majoritários, deve ser
mantida a sentença que julgou improcedente o pedido nessa parte.
7. Recursos parcialmente providos.30

Interessante mencionar que, no referido caso, foram apontadas as circunstâncias


específicas da situação apresentada por cada candidata, como parentesco próximo com
outros candidatos ao mesmo cargo, ausência às urnas, prestação de contas contendo
informações que permitem a compreensão da inexistência de efetiva realização da
campanha política pessoal, votação inexistente ou irrisória, bem assim promoção de
propaganda em favor de candidato familiar sem sequer ter pedido voto para si mesma;
tudo isso repercute na citada fraude.
Deveras, nada obstante a aplicação do entendimento acima referido no que toca à
cassação dos registros de todas as candidaturas fictícias para, a partir das candidaturas
remanescentes (aquelas que efetivamente disputaram o pleito eleitoral), fazer novo
cálculo das cotas, e após cancelar os registros das candidaturas que ultrapassaram
o número permitido para cada gênero, levando-se em consideração os que menos
obtiveram votos, de modo a declarar nulos estes votos, em virtude das divergências na
doutrina e na jurisprudência, importa consignar relevante fundamento no que se trata
da imprescindibilidade de assegurar os princípios da indivisibilidade e unicidade da
chapa, fator esse que acarretaria as contaminações de todos os registros da coligação,
por residir vício existente ab initio da constituição das coligações infratoras.
Ademais, a importância do motivo retromencionado encontra guarida não apenas
na origem do vício, pois deve ser vislumbrado no que tange ao seu efeito, e ex vi ao que

30
BRASIL. Tribunal Regional Eleitoral do Piauí. Burla ao instituto das cotas de gênero. Recurso Eleitoral na AIJE
nº 19392. Rel. Dr. Astrogildo Mendes de Assunção Filho, j. 12.9.2017. DJe, 27 set. 2017.

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CANDIDATAS DE FACHADA: A VIOLÊNCIA POLÍTICA DECORRENTE DA FRAUDE ELEITORAL E DO ABUSO DE PODER E AS RESPOSTAS JURÍDICAS...
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fora relatado enseja na modalidade ex tunc, de maneira a obstaculizar a disputa no pleito


por todos os envolvidos naquelas coligações violadoras do dispositivo que concerne à
cota de gênero.
Deste modo, o Desembargador Presidente do TRE/PI, ao proferir o voto de
minerva, em virtude da votação empatada quanto à caracterização da fraude e os seus
efeitos legais, asseverou que a constatação da fraude nessa cota de gênero no município
de Valença do Piauí é suficiente para visualizar claramente a violação do princípio da
isonomia entre os candidatos que disputaram o prélio eleitoral de 2016.
Convém ressaltar que, em outros termos, não precisa de muito esforço para inferir
a configuração de conduta grave perpetrada pelas coligações infratoras, tendo em vista
que possibilitaram a candidatura de todos aqueles pertencentes a estas coligações, ou
seja, por mais que os demais candidatos não tenham participado diretamente da fraude
não há dúvidas de que eles se beneficiaram, sendo inclusive alguns eleitos à míngua do
verdadeiro atendimento dos quesitos legais.
Como se não bastasse a violação concernente do preenchimento da cota de gênero
estabelecida legalmente, também é possível constatar casos – bastante frequentes – em
que o partido político sequer viabiliza a propulsão das candidaturas femininas, ou as
exclui de suas estratégias propagandísticas, fato este que ratifica o único desiderato de
promover tão somente as candidaturas masculinas. Visualiza-se essa situação nos autos
da AIJE nº 684-80.2016.6.11.0055, com origem na 55ª Zona Eleitoral de Cuiabá/MT.
Naquela demanda, foram igualmente averiguadas as circunstâncias específicas
relacionadas a cada candidata supostamente fictícia. Algumas delas se candidataram
apenas a pedido dos integrantes do partido político, em virtude de que necessitavam
de mulheres para preencher a cota de gênero, já que possuíam muitos candidatos
masculinos. Para tanto, o partido prometia fornecer estrutura financeira e material para
a campanha. Contudo, tal promessa não ocorrera, porquanto não demonstrou interesse
de promover a candidatura feminina, inclusive nem foi aberta a conta para a campanha.
Além disso, uma das candidatas soube que dois candidatos da Igreja estavam
dispu­tando as eleições, de maneira que ela deveria desistir de fazer campanha e apoiar a
candi­datura de um deles. Torna-se mais alarmante o outro fator que ensejou a desistência
da candidata, qual seja, o partido informou que ajudaria com R$5.000,00 (cinco mil
reais) para fazer campanha com os custos de materiais e que posteriormente este valor
deveria ser devolvido.
O eminente juiz eleitoral de Cuiabá asseverou, ainda, que os dirigentes e gestores
partidários utilizaram-se da vulnerabilidade de pessoa idosa tão somente na intenção de
burlar a lei para obter o maior número de candidaturas masculinas, assim as mulheres
candidatas foram preteridas politicamente, na medida em que o partido forneceu
informações desconexas e não buscou incentivar participação feminina mais efetiva,
dificultando até mesmo a realização da campanha, sob a alegação de que não tinha
recursos financeiros para ajudá-las.
Nesta toada, o magistrado da 55ª Zona Eleitoral de Cuiabá/MT seguiu o enten­
dimento firmado pelo Colendo TSE, no AgRgREspe nº 158-26.2015.6.18.0000, conforme
se verifica no acórdão publicado em 20.10.2016,31 sobre a imprescindibilidade de garantir

31
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Atividade feminina na política. Agravo Regimental no Recurso Especial
Eleitoral nº 15826. Rel. Min. Antonio Herman de Vasconcellos e Benjamin, j. 20.10.2016. DJe, 12 dez. 2016.

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real enfoque para as ações afirmativas e efetivar as lições vaticinadas na Constituição


Cidadã e na legislação correlata.
Ademais, é estarrecedor visualizar caso em que as próprias candidatas fictícias
demonstram ausência de interesse de fazer campanha e tampouco continuar na
disputa eleitoral, fato este ocorrido no município de Lunardelli/PR, apurado mediante
a AIME nº 437-24.2016.6.16.0132. Ali, a sentença, de 23.6.2017, considerou suficiente o
arcabouço probatório colacionado aos autos para concluir a efetiva fraude mencionada.
As candidatas tidas como de fachada obtiveram votação zero, o que retrata por si só
que nem elas votaram em si, mostraram coincidentemente a única quantia de R$200,00
(duzentos reais) como doação de campanha, inclusive desconhecem o referido valor e,
pari passu, contraditoriamente, porque não fizeram campanha.
Na instrução, as próprias candidatas afirmaram que tinham renunciado às suas
candidaturas, no entanto foram mantidas como candidatas no prélio somente para que
a coligação permanecesse atendendo à cota de gênero preceituada na aludida legislação,
a pedido do coordenador de campanha, que também confirmou o fato em juízo.
Reafirma-se que, para a efetividade do tratamento isonômico almejado entre
homens e mulheres, com o escopo de atender à finalidade da lei, não basta apenas preen­
cher o percentual mínimo da cota de gênero no momento do registro de candidatura.
Nessa esteira, o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo proferiu o julgamento nos
autos do Recurso Eleitoral nº 409-89.2016.6.26.0031, em 21.11.2017, nos seguintes termos:

RECURSO ELEITORAL. ELEIÇÕES 2016. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEI­


TORAL. FRAUDE. ABUSO DE PODER POLÍTICO. LANÇAMENTO DE CANDIDATURA
FICTÍCIA PARA ATENDIMENTO DO PERCENTUAL FIXADO PARA A COTA DE
GÊNERO. SENTENÇA. IMPROCEDÊNCIA. RECURSO. PRELIMINARES: ADEQUAÇÃO
DA VIA ELEITA. APLICAÇÃO DA AIJE PARA APURAR PRÁTICA DE FRAUDE
À LEI POR ABUSO DE PODER POLÍTICO. PRECEDENTES TSE. ILEGITIMIDADE
DOS PARTIDOS E COLIGAÇÕES PARA FIGURAREM NO PÓLO PASSIVO DA AIJE.
EXCLUSÃO “DE OFÍCIO DA COLIGAÇÃO E DAS AGREMIAÇÕES DO PÓLO PASSIVO
DA DEMANDA. MÉRITO. CONJUNTO PROBATÓRIO SUFICIENTE PARA COMPROVAR
A ALEGADA FRAUDE POR ABUSO DE PODER POLÍTICO. COTAS DE GÊNERO. ART.
10, §3º DA LEI Nº 9.504/97. REFORMA DA SENTENÇA. APLICAÇÃO DAS SANÇÕES DE
INELEGIBILIDADE AOS RESPONSÁVEIS PELA CONDUTA, NOS TERMOS DO ART.
22, XIV, DA LEI COMPLEMENTAR 64/90 E DE CASSAÇÃO DO DIPLOMA A TODOS OS
DIRETAMENTE BENEFICIADOS PELO ATO ILEGAL. PROVIMENTO DO RECURSO.32

O Tribunal paulista apurou que as próprias partes demandadas não negaram os


fatos alegados pelo Ministério Público Eleitoral. Algumas das candidatas tidas como de
fachada possuem graus de parentescos entre si, o que demonstra o objetivo direcionado
para proporcionar apoio familiar e político, e não com o fito de oferecer concretude ao
real intento insculpido na norma que disciplina a matéria em tela.
Noutro giro, não se pode olvidar que as respostas jurídicas sobre a matéria em
dis­cussão não são uníssonas, conforme é possível inferir do julgamento prolatado no

32
BRASIL. Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo. Lançamento de candidatura fictícia para atendimento do
percentual fixado para a cota de gênero. Recurso Eleitoral na AIJE nº 40989. Rel. Dr. Marcus Elidius, j. 21.11.2017.
DJe, 27 nov. 2017.

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CANDIDATAS DE FACHADA: A VIOLÊNCIA POLÍTICA DECORRENTE DA FRAUDE ELEITORAL E DO ABUSO DE PODER E AS RESPOSTAS JURÍDICAS...
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município de Piracuruca/PI, em sede de AIME nº 1-19.2017.6.18.0021,33 que divergiu


no seu posicionamento quando comparado aos entendimentos exarados nos julgados
acima relatados.
Nesta ação, aduziu-se que as candidaturas de duas mulheres aos cargos de verea­
doras não tiveram nenhum voto, ou seja, nem elas, as próprias candidatas, votaram em
si, surpreendentemente, o que reflete, sem dúvidas, as suas participações na coligação
como meras candidatas “laranjas” ou de fachada.
Aqui, chama a atenção uma suposta situação de assédio laboral, uma vez que há
acusação de que uma das candidatas se registrou apenas para atender ao patrão, can­
didato a prefeito. Enquanto isso, outra candidata também se registrou para dar apoio
familiar e promover parente, que figurava como candidato, todos pertencentes à idêntica
coligação, para viabilizar o amparo político.
Contudo, mesmo assim, o juiz eleitoral entendeu que as circunstâncias de votação
inexpressiva, falta de movimentação financeira e ausência de divulgação de material
publicitário não residem em elementos suficientes para desconstituir os mandatos de
todos os candidatos da coligação impugnada, por inexistir a comprovação do dolo
específico de fraudar o processo eleitoral.

4.5 Conclusão
É consabido, indiscutivelmente, que a representatividade feminina na política
brasileira tem sido sempre assaz tímida, devido a diversos aspectos, mormente o cultural,
que advém dos frutos da sociedade machista. Posto isto, torna-se notório que após as
lutas sociais enfrentadas pelas mulheres para conquistar a tão sonhada igualdade de
gênero, a fim de conquistar espaços na sociedade, sobretudo na vida pública, a repre­
sentatividade feminina na política continua a passos lentos. Contudo, não se pode es­que­
cer a importância consubstanciada nas ações afirmativas, tal qual a que reside, verbi gratia,
no campo da obrigatoriedade de percentual mínimo de candidaturas por um dos sexos
aos cargos proporcionais, retratada no dispositivo legal já exaustivamente relatado.
Importante ressaltar que, muitas vezes, a fraude em tela não é perceptível de
imediato quando da ocorrência do processo legal para o deferimento ou indeferimento
do registro dos candidatos, por isso a tão polêmica questão se resvala no âmbito da
Justiça Eleitoral, seja mediante as proposituras da AIJE e AIME, na ocasião do início dos
atos de campanha, id est, que vêm à tona as provas relacionadas às figuras fictícias das
candidatas cujos nomes estão inseridos nos denominados DRAPs.
Cabe salientar que seria incoerente se a Justiça Eleitoral apresentasse a argumen­
tação da observância do caráter meramente formal, a ponto de se omitir no enfrentamento
para o combate desta situação alhures que viola e macula o resultado do pleito, uma
vez que se espera a normalidade e a legitimidade do pleito, consequentemente do seu
resultado nas urnas.
Impende registrar que não é pertinente a inexistência da prestação jurídica efetiva
no período correspondente entre a apreciação do DRAP e a propositura da AIME, já
que esta tem como elemento fático a presença de mandato a ser impugnado, caso seja

33
DJe, n. 121, 7 jul. 2017.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
568 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

considerado estritamente o aspecto formal em relação aos eventuais atos fraudulentos


quando praticados no curso das campanhas eleitorais, para o atendimento do requisito
legal inserto no art. 10, §3º da Lei nº 9.504/97, a ser apurado apenas pela via da AIME.
Pari passu, o verdadeiro sentido da referida norma restaria relegado em virtude de que só
poderia ser examinada quando fosse conquistado o mandato eletivo, assim não existiria
momento para a investigação da ilicitude em casos em que os autores das fraudes ou
das pessoas delas beneficiadas não lograssem o mandato eletivo.
Nessa esteira, não há dúvidas do quanto é essencial analisar cuidadosamente cada
caso levado a juízo no que tange ao desrespeito da norma ora aludida, uma vez que
torna imperiosa a sanção rigorosa e pronta pela Justiça Eleitoral, em razão da construção
do estado de aparências para burlar os dispositivos legais que regem a proteção da
isonomia plena.
Este estado de aparências para fraudar a norma que preceitua a cota mínima
de gênero não reside apenas quando possui votação ínfima ou nenhum voto e/ou não
realização dos atos de campanha, mas como também quando a candidata não comparece
nem no próprio pleito, o que denota com clarividência o completo desinteresse com a
campanha, não restando dúvidas de que a candidatura é simplesmente uma fachada.
Essa candidatura de fachada é revestida em violência política direcionada às
mulheres, em razão de que estas, por diversas situações, terminam por se submeterem
ao quadro das candidatas conhecidas como “laranjas”, diante das ocorrências de
assédios laborais, imposições familiares e/ou religiosas, vínculos de amizades para
promoverem apoios políticos, determinações de integrantes dos partidos políticos em
troca de benefícios financeiros, e até mesmo sem as próprias anuências das candidatas
para figurarem como tais.
Desse modo, não pode ser admitida a ocorrência de burla em vista de desconstituir
o preceito legal que objetiva assegurar a isonomia e a igualdade de gênero, tornando-
se imperiosa ação enérgica pela Justiça Eleitoral para combater e repudiar tais atos
revestidos de fraude e abuso de poder, uma vez que cabe a esta Justiça Especializada
garantir a normalidade e a legitimidade do pleito.

Referências
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Belo Horizonte: Fórum, 2014.
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do percentual fixado para a cota de gênero. Recurso Eleitoral na AIJE nº 40989. Rel. Dr. Marcus Elidius, j.
21.11.2017. DJe, 27 nov. 2017.
BRASIL. Tribunal Regional Eleitoral do Piauí. Burla ao instituto das cotas de gênero. Recurso Eleitoral na AIJE
nº 19392. Rel. Dr. Astrogildo Mendes de Assunção Filho, j. 12.9.2017. DJe, 27 set. 2017.

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GEÓRGIA FERREIRA MARTINS NUNES, LORENA DE ARAÚJO COSTA SOARES
CANDIDATAS DE FACHADA: A VIOLÊNCIA POLÍTICA DECORRENTE DA FRAUDE ELEITORAL E DO ABUSO DE PODER E AS RESPOSTAS JURÍDICAS...
569

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
570 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

NUNES, Geórgia Ferreira Martins; SOARES, Lorena de Araújo Costa. Candidatas de fachada: a violência
política decorrente da fraude eleitoral e do abuso de poder e as respostas jurídicas para efetivação dos
grupos minoritariamente representados. In: FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA,
Walber de Moura (Coord.); PECCININ, Luiz Eduardo (Org.). Direito Constitucional Eleitoral. Belo Horizonte:
Fórum, 2018. p. 543-570. (Tratado de Direito Eleitoral, v. 1.) ISBN 978-85-450-0496-7.

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SOBRE OS AUTORES

Adriana Soares Alcântara


Técnica Judiciária do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará. Especialista em Direito Processual
Civil, Direito e Processo Eleitoral. Mestranda em Planejamento e Políticas Públicas na Uece –
Universidade Estadual do Ceará.

Adriano Sant’Ana Pedra


Doutor em Direito Constitucional (PUC/SP). Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais (FDV).
Pós-Doutorado na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professor do Curso de
Direito da Faculdade de Direito de Vitória (FDV) e do seu Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu – Mestrado e Doutorado – em Direitos e Garantias Fundamentais. Procurador Federal.

Aline Osorio
Mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2015). Mestre (LL.M.)
pela Harvard Law School (2018). Autora do livro Liberdade de expressão e direito eleitoral e de diversos
artigos publicados no Brasil e no exterior. Professora de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral
do Centro Universitário de Brasília – UniCEUB.

Ana Carolina de Camargo Clève


Advogada. Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em
Direito Administrativo pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Professora de Direito
Constitucional e Eleitoral do Centro Universitário Autônomo do Brasil – UniBrasil. Secretária
Adjunta e Membro-Fundadora da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).
Membro da Diretoria do Instituto Paranaense de Direito Eleitoral (Iprade). Membro da Comissão
de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – Seção do Paraná.

Ana Claudia Santano


Professora do Programa de Mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia do Centro
Universitário Autônomo do Brasil – Unibrasil. Pós-Doutora em Direito Público Econômico pela
Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Doutora e Mestre em Ciências Jurídicas e Políticas pela
Universidad de Salamanca, Espanha. Pesquisadora do Observatório de Financiamento Eleitoral,
do Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. Autora de diversos trabalhos acadêmicos sobre
o tema do financiamento político. Currículo Lattes: <http://lattes.cnpq.br/6241908411721255>.

Anderson Sant’Ana Pedra


Doutor em Direito do Estado (PUC/SP). Mestre em Direito (FDC/RJ). Pós-Doutorado na Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra. Professor de Direito Administrativo e de Direito
Constitucional da FDV. Procurador do Estado do Espírito Santo. Advogado.

Bruno Galindo
Professor Associado da Faculdade de Direito do Recife/Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE). Doutor em Direito pela UFPE/ Universidade de Coimbra-Portugal (PDEE). Conselheiro
Estadual da OAB/PE.

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
572 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Bruno Meneses Lorenzetto


Professor de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Coordenador do Programa de
Mestrado em Direito (Direitos Fundamentais e Democracia) e Professor da Graduação do Centro
Universitário Autônomo do Brasil – UniBrasil. Visitng Scholar na Columbia Law School, Columbia
University, New York (2013-2014). Doutor em Direito pela UFPR na área de Direitos Humanos
e Democracia (2010-2014). Mestre em Direito pela UFPR na área do Direito das Relações Sociais
(2008-2010). Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2003-2007).
Bolsista pela Capes durante o Mestrado na UFPR.

Carla Pinheiro
Doutora em Direito. Psicóloga pela PUC-SP. Professora Pesquisadora do Grupo CELA/REPJAL
(Centro de Estudos Jurídicos, Econômicos, Sociais e Ambientais da América Latina) do PPGD
Unifor.

Carlos Eduardo Frazão


Mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Secretário-Geral
da Presidência do Tribunal Superior Eleitoral. Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados.
Professor de Direito Constitucional e Eleitoral do IDP. Membro do IBRADE.

Cristina Maria Gama Neves da Silva


Advogada. Mestre em Direito pela Universidade da Califórnia, Berkeley. Especialista em Direito
Constitucional pelo IDP. Integrante do Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral.

Eduardo Borges Espínola Araújo


Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB. Especialista em Direito Eleitoral pelo IDP.
Ex-Assessor de Presidente Nacional da OAB. Advogado em Brasília. E-mail: <eduardo.bfr@
me.com>.

Eduardo Meira Zauli


Bacharel em Ciências Sociais (1986) e Mestre em Sociologia (1991) pela Universidade Federal de
Minas Gerais. Doutor em Ciência Política (1996) pela Universidade de São Paulo. Pós-Doutor em
Ciência Política (2013) pela Università di Bologna.

Elaine Harzheim Macedo


Doutora em Direito (Unisinos). Mestre em Direito (PUC/RS). Especialista em Direito Processual
Civil (PUC/RS). Desembargadora do TJ/RS aposentada. Ex-Presidente do Tribunal Regional
Eleitoral do RS. Professora dos Cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado em Direito da PUC/
RS. Professora da Escola Superior da Magistratura/Ajuris e da Escola Superior da Advocacia – ESA/
RS. Membro do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul (IARGS), da Academia Brasileira
de Direito Processual Constitucional (ABDPC), do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP),
da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep). Presidente do Instituto Gaúcho
de Direito Eleitoral (Igade). Advogada. E-mail: <elaine@fhm.adv.br>.

Emerson Urizzi Cervi


Professor Associado do Departamento de Ciência Política da UFPR. Professor Permanente dos
Programas de Pós-Graduação em Ciência Política e Pós-Graduação em Comunicação da UFPR.
Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ, com Estágio Pós-Doutoral em Partidos e Eleições pela
Universidad de Salamanca/Flacso-España. Pesquisador nas áreas de Comunicação Política,
Partidos e Eleições. Coordenador do Grupo de Pesquisa em Comunicação Política e Opinião
Pública (<www.cpop.ufpr.br>).

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SOBRE OS AUTORES 573

Emiliane Alencastro
Advogada. Cursando Introdução à Filosofia do Direito em Harvard. Graduada em Direito pela
Faculdade ASCES/PE (2015).

Fernando Gustavo Knoerr


Pós-Doutor em Direitos Humanos na Universidade de Coimbra/Portugal pelo Instituto Jus
Gentium Conimbrigae. Doutor e Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do
Paraná. Professor Permanente do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania
do Unicuritiba. Professor de Direito Administrativo da Escola da Magistratura do Paraná e da
Fundação Escola do Ministério Público do Paraná. Foi Juiz do Tribunal Regional Eleitoral do
Paraná no biênio 2009/2011 e Membro da Comissão de Direito Eleitoral e Reforma Política do
Conselho Federal da OAB.

Fernando Neves da Silva


Advogado. Ministro do Tribunal Superior Eleitoral entre 1997 e 2004. Fundador e Ex-Presidente
do Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral.

Filomeno Moraes
Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional – Mestrado e
Doutorado da Universidade de Fortaleza. Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo.
Livre Docente em Ciência Política pela Universidade Estadual do Ceará. Mestre em Ciência Política
pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. Líder do Grupo de Pesquisa “Estado,
Política e Constituição” (CNPq/Unifor). E-mails: filomenomoraes@uol.com.br; filomeno@unifor.br

Geórgia Ferreira Martins Nunes


Advogada. Procuradora-Geral do Município de Teresina/PI. Professora. Mestre em Direito Público
pela Unisinos/RS. Especialista em Direito Público, em Direito Privado e em Direito Eleitoral pela
UFPI. Membro-Fundadora e Coordenadora-Geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e
Político – Abradep.

Gina Pompeu
Doutora em Direito pela UFPE. Coordenadora dos Cursos de Mestrado e Doutorado do PPGD
Unifor. Professora Pesquisadora do Grupo CELA/REPJAL do PPGD Unifor.

Helga do Nascimento de Almeida


Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

João Andrade Neto


Doutor em Direito pela Universität Hamburg (UHH)/Albrecht Mendelssohn Bartholdy Graduate
School of Law (AMBSL). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Analista Judiciário do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais (TRE/MG). Professor de Direito
Eleitoral e Constitucional em cursos de Graduação e Pós-Graduação.

Juliana Rodrigues Freitas


Doutora em Direito pela Universidade Federal do Pará, com estágio na Università di Pisa, Itália.
Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará. Pós-Graduada em Direito do Estado
pela Universidad Carlos III de Madri, Espanha. Professora da Graduação e Mestrado do Centro
Universitário do Pará.

Larissa Peixoto Gomes


Doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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LUIZ FUX, LUIZ FERNANDO C. PEREIRA, WALBER DE MOURA AGRA (COORD.) • LUIZ EDUARDO PECCININ (ORG.)
574 DIREITO CONSTITUCIONAL ELEITORAL

Lenio Luiz Streck


Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos (RS) e Unesa (RJ). Doutor
e Pós-Doutor em Direito. Procurador de Justiça aposentado (MP/RS). Advogado Parecerista.
Presidente de Honra do Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ).

Lorena de Araújo Costa Soares


Advogada. Bacharel em Direito pela Faculdade Integral Diferencial – Facid I DeVry (2015), com
láurea acadêmica conforme Portaria Diretoria FACID nº 25, de 26.11.2015. Pós-Graduanda em
Direito Civil e Processual Civil pela DeVry I Facid.

Luiz Fux
Ministro do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral. Professor Catedrático de
Processo Civil (UERJ). Doutor em Direito Processual Civil (UERJ). Membro da Academia Brasileira
de Letras Jurídicas. Membro da Academia Brasileira de Filosofia. Presidente da Comissão de
Juristas do Novo Código de Processo Civil.

Marcelo Roseno de Oliveira


Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza. Professor da
Universidade de Fortaleza e da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (Esmec).
Juiz Estadual no Ceará. Contato: <marceloroseno@unifor.br>.

Marco Antônio Martin Vargas


Juiz de Direito/SP. Ex-Juiz Assessor da Presidência do Egrégio Tribunal Regional Eleitoral de São
Paulo. Conselheiro da Escola Judiciária Eleitoral Paulista – EJEP.

Miguel Gualano de Godoy


Doutor em Direito Constitucional pela UFPR com período como Pesquisador Visitante (Visiting
Researcher) na Faculdade de Direito da Universidade de Harvard (Estados Unidos). Mestre em
Direito Constitucional pela UFPR com período como Pesquisador Visitante (Investigador Visitante)
na Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires (Argentina). Advogado Associado
de Justen, Pereira, Oliveira e Talamini Advogados Associados. Ex-Assessor de Ministro do STF.
E-mails: <miguel.godoy@justen.com.br>; <miguelggodoy@hotmail.com>.

Néviton Guedes
Desembargador Federal do TRF da 1ª Região. Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
Professor no Uniceub.

Paulo Victor Azevedo Carvalho


Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra. Advogado.

Pedro Henrique Gallotti Kenicke


Advogado e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Membro da Comissão de
Direito Internacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – Seção do Paraná.

Richard Pae Kim


Doutor em Direito pela USP. Pós-Doutorado em Políticas Públicas pela Unicamp. Professor
do Curso de Mestrado em Direito da Unimep/SP. Coordenador Pedagógico dos cursos de Pós-
Graduação e Conselheiro da Escola Judiciária Eleitoral do TRE/SP. Juiz de Direito/SP. Ex-Juiz
Auxiliar e Instrutor no STF.

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SOBRE OS AUTORES 575

Ruy Samuel Espíndola


Advogado Publicista. Fundador e Sócio-Gerente da Espíndola e Valgas Advogados Associados,
com sede em Florianópolis/SC. Militante nos Tribunais Superiores. Atuante no Direito Eleitoral,
Constitucional, Criminal e Administrativo. Professor de Direito Constitucional e de Direito
Eleitoral de Pós-Graduação lato sensu em várias instituições jurídicas brasileiras. Mestre em Direito
Público pela Universidade Federal de Santa Catarina. Membro da Comissão Nacional de Estudos
Constitucionais do Conselho Federal da OAB. Membro das Comissões de Direito Constitucional
e de Direito Eleitoral do Conselho Seccional da OAB/SC. Imortal da Academia Catarinense de
Letras Jurídicas, cadeira de número 14, Patrono Advogado Criminalista Acácio Bernardes. Membro
Fundador do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina – IDASC. Conferencista
Nacional e Internacional sobre temas jurídico-públicos. Autor de obras jurídicas e de inúmeros
artigos em Direito Constitucional e Direito Eleitoral publicados em revistas especializadas,
nacionais e estrangeiras. Autor do livro editado pela Habitus, 2018: Direito Eleitoral: a efetividade
dos direitos políticos fundamentais de voto e de candidatura.

Vânia Siciliano Aieta


Juspolitóloga. Advogada especializada em Direito Eleitoral. Professora Adjunta do Programa
de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ. Pós-Doutora em Direito
Constitucional pela PUC-Rio (2017). Doutora em Direito Constitucional pela PUC-SP (2003). Mestre
em Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio (1997). Visiting Researcher na
Universidade de Santiago de Compostela, Espanha (2018). Líder do grupo de pesquisa no CNPQ
Observatório do Direito Eleitoral. Presidente da Escola Superior de Direito Eleitoral (Esdel). Editora
da Revista Ballot, especializada em Direito Eleitoral Internacional.

Waldir Franco Félix Júnior


Pós-Graduando em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná.

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Esta obra foi composta em fonte Palatino Linotype, corpo 10
e impressa em papel Offset 75g (miolo) e Supremo 250g (capa)
pela Gráfica Expressão e Arte, em Belo Horizonte/MG.

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