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Gálatas 1.

6-10 - A Ameaça de um Outro Evangelho

Depois das palavras iniciais de saudação, Paulo entra


diretamente no assunto principal que o motivou a escrever a
epístola: o desvio dos galateus para as sendas do
“evangelho” legalista, isto é, a crença de que para ser salvo
e prosseguir na vida como um cristão modelo, é necessário
ser um bom prosélito do Judaísmo, guardando a Lei
Mosaica em todos os seus aspectos.

Paulo demonstra-se admirado com o desvio tão rápido dos


crentes da Galácia (6). De fato, como já vimos, a carta em
análise foi escrita entre o fim da Primeira Viagem Missionária, quando Paulo visitou a Galácia
(At 13-14) e o Concílio de Jerusalém (At 15). Assim, os galateus começaram a abandonar o
verdadeiro Evangelho tão logo Paulo os deixou! Isso causava espanto no Apóstolo.
Lembremos que o problema na Galácia não dizia respeito ao desvio relativamente comum de
alguns novos convertidos que com certa freqüência retornam para o mundo (Mt 13.1-23). Paulo
trata aqui da apostasia de, pelo menos, quatro igrejas, ocorrido quando mal ele virara as
costas.

No v. 6 o Apóstolo mostra que abandonar o Evangelho equivale a abandonar o próprio


Deus. Isso se torna ainda mais grave quando lembramos que Deus é “aquele que os chamou
pela graça de Cristo”. Mais uma vez a origem da salvação é colocada em Deus (Veja v. 4).
Nota-se aqui que é ele quem chama (tb. v.15), sendo essa uma convocação cujo atendimento
implica ser resgatado (Rm 8.30; 1Ts 2.12; 2Ts 2.13-14; 1Pe 2.9). Esse chamamento é
viabilizado pela graça de Cristo (2Tm 1.9-10a). Deus chama o pecador porque, pela graça de
Cristo dada a nós desde os tempos eternos e revelada em sua manifestação, é possível agora
ter acesso ao Pai (2Co 5.18-19; Ef 2.17-18; 3.11-12; Hb 10.19-20). Os galateus, ao
abandonarem o Evangelho, estavam dando as costas para o Deus que havia realizado tudo
isso em seu favor.

Esse abandono de Deus se expressava na disposição para seguir “outro evangelho que, na
realidade, não é o evangelho” (vv.6-7). Na busca de agradar a Deus por meio da Lei os crentes
da Galácia tinham, na verdade, abandonado a Deus, seguindo uma mensagem que não era
dele, um evangelho tão desfigurado que não podia, de modo algum, ser chamado de
evangelho. Daqui se depreende duas preciosas lições. Primeira: quem quer aproximar-se de
Deus à parte do único Evangelho acaba por distanciar-se ainda mais dele. Segunda: qualquer
acréscimo à mensagem de salvação que esvazia a obra de Cristo de suficiência, perverte o
Evangelho verdadeiro e deve ser de pronto rejeitado por nós como ímpio e profano.

Paulo aponta para a causa daquele desvio tão rápido. Diz ele: “O que ocorre é que algumas
pessoas os estão perturbando, querendo perverter o evangelho de Cristo.” (7). É evidente que
Paulo está se referindo aos mestres legalistas que, possivelmente vindos de Jerusalém (Veja
“Aspectos Introdutórios”), anunciavam que para ser justificado diante de Deus era necessário
que o cristão fosse circuncidado (5.2-6; 6.12-13) e guardasse toda a Lei (2.16; 3.11; 4.10, 21).
Tal era, de fato, o conteúdo dominante do “outro evangelho” combatido por Paulo na Carta aos
Gálatas.

Essa perversão do Evangelho trazia perturbação às igrejas. “Perturbar” aqui significa agitar,
promover distúrbios, tumultuar ou criar confusão. Em Atos 15.24, onde o mesmo
verbo ταράσσω aparece, aprendemos que essa perturbação consistia especificamente em
transtornar ou confundir a mente dos crentes com discursos heréticos. Esse efeito da mentira é
útil aos falsos mestres porque a mente confusa é vacilante e, aos poucos, pela insistente
proclamação do erro, termina por ceder aos apelos da heresia. A mente dos novos crentes
onde a Sã Doutrina, pelo pouco decurso do tempo, ainda não foi digerida, assimilada e
firmemente incorporada, é alvo fácil dessa estratégia. Os falsos mestres sabiam disso e
usaram com maestria o repugnante artifício na Galácia, onde as igrejas haviam acabado de
nascer.

Por outro lado, que essa mesma mente vacilante seja encontrada em crentes antigos é
inadmissível, pois neles se espera que a verdade esteja claramente delineada e solidamente
fixada, ao ponto de não poderem mais ficar confusos ou perturbados, cheios de questões e
dúvidas, quando doutrinas estranhas lhes são propostas (Cl 4.12; 2Pe 1.12).

O pronunciamento de Paulo em face da atuação dos mestres judaizantes se constitui num dos
mais impetuosos de todo o Novo Testamento. Ele afirma com rigor: “Mas ainda que nós ou um
anjo dos céus pregue um evangelho diferente daquele que lhes pregamos, que seja
amaldiçoado!” (8). Com o pronome “nós”, o Apóstolo se refere a si próprio. Dessa forma ele
pretende levar a hipótese ao absurdo a fim de mostrar com que grau de firmeza o crente deve
comprometer-se com o evangelho genuíno. Por outro lado, ainda que a hipótese do próprio
Paulo pregar um falso evangelho fosse praticamente impossível, havia a real possibilidade de
alguém ensinar mentiras através de cartas e assiná-las fraudulentamente com o nome do
apóstolo. Parece que falsificações desse tipo aconteceram nessa época no ministério de Paulo
(2Ts 2.1-2). Tanto que para frustrá-las, ele assinava suas epístolas de próprio punho (2Ts
3.17).[1] O que Paulo diz no v.8, portanto, serviria, inclusive, para prevenir os crentes contra
heresias ensinadas em seu nome.

Ainda no v. 8, o leitor se vê diante de uma hipótese ainda mais incrível. Desta vez é um anjo
celeste que Paulo apresenta como eventual proponente de um evangelho diferente daquele
que fora pregado aos galateus. A possibilidade de um ser angelical maligno apresentar-se
como um mensageiro de Deus e, assim, enganar os homens é vislumbrada em 2Coríntios
11.14, onde Paulo diz que o próprio Satanás se disfarça de anjo de luz.[2] Dificilmente,
contudo, Paulo estava receoso disso realmente acontecer com os crentes da Galácia. Sua
intenção era apenas expressar quão fortemente os crentes devem se opor a qualquer pessoa
que se aproxima deles com uma mensagem que tira da cruz de Cristo a sua suficiência.

Diante das duas hipóteses levantadas por Paulo no v.8, a reação do crente deve ser uma só:
considerar o tal mensageiro, seja ele quem for, maldito. Na prática isso não significa que o
crente tenha que pronunciar maldições contra o falso mestre. O que Paulo ensina é que o
cristão deve considerar quem anuncia um evangelho falso como estando debaixo da ira de
Deus (Cf. Rm 9.3 e 1Co 16.22, onde esse é claramente o sentido em que a palavra
“amaldiçoado” deve ser entendida). Essa orientação tem que sempre estar presente na mente
dos crentes de todas as épocas, uma vez que mensageiros mentirosos existem desde os
primórdios da igreja (Rm 16.17-18; 2Co 11.3-4) e podem ser encontrados em qualquer lugar.
Se essa postura rígida fosse adotada pelos cristãos modernos, há muito veríamos nossas
igrejas livres do estranho evangelho que é pregado em nossos dias.[3]

O v.9 repete o que foi dito no 8 com ligeiras modificações. Aqui ele não fala de “nós ou um anjo
vindo dos céus”. Antes usa a palavra “alguém”, um termo amplo que lógica e propositalmente
inclui os falsos mestres que perturbavam os galateus. Além disso, Paulo substitui a expressão
“evangelho... que lhes pregamos” por “evangelho... que já receberam”. Com a primeira fórmula
Paulo evoca a fonte da mensagem pregada inicialmente na Galácia, ou seja, um apóstolo
enviado pelo próprio Deus (1.11-12). Com a segunda Paulo traz à lembrança dos seus leitores
o compromisso que assumiram com essa mesma mensagem. Nos dois casos ele quer
estimular as igrejas da Galácia a reafirmar sua fidelidade ao evangelho puro.
A força do texto em análise, contudo, não está em suas pequenas variações. É a repetição que
naturalmente dá ênfase ao que é dito. Através da repetição Paulo realça e assume plenamente
o que afirma, mostrando coragem, convicção e clareza, ao anular qualquer possibilidade de
que às suas palavras seja dada uma interpretação mais branda. De fato, ele afirma e repete
que o proponente de um outro evangelho deve ser considerado maldito!

O v. 10 parece a princípio apresentar uma rápida digressão. Nele Paulo rejeita


terminantemente a idéia de ser um ministro que no exercício de suas funções se preocupa em
agradar a homens. O que ocorre aqui, contudo, não é propriamente um desvio do assunto. Na
verdade, o que o Apóstolo diz nos vv. 8-9 são uma prova clara de que não tem receio de
desagradar quem quer que seja. Ademais, é possível que na Galácia fermentassem
comentários maldosos (estimulados pelos mestres judaizantes) de que ele pregava a
necessidade da guarda da Lei quando isso lhe era conveniente (Veja-se 5.11). A sensibilidade
de Paulo aos escrúpulos dos judeus incrédulos, demonstrada muitas vezes na sua prática
evangelística, pode ter servido de base para essas falsas acusações (1Co 9.20-21). Paulo
agora destaca a falsidade delas. Segundo ele, seria impossível ser servo de Cristo e ao mesmo
tempo buscar o aplauso humano. Parece que para Paulo uma coisa exclui a outra e esse fato
deveria ser levado em conta por todos quantos se dizem chamados para o ministério. A
tentativa de esvaziar o trabalho de Cristo dessa dimensão incômoda tem levado muitos
pastores a abandonar o ensino escriturístico para pregar e fazer o que agrada as mentes
carnais.

Pr. Marcos Granconato

[1] As duas cartas de Paulo aos tessalonicenses foram escritas por volta do ano 50 AD, ou seja, bem
pouco tempo depois que ele escreveu aos crentes da Galácia (48 AD).

[2] 2Coríntios 11.14 e Gálatas 1.8 geralmente são textos usados contra o mormonismo cujos adeptos
afirmam que sua religião foi revelada a Joseph Smith por um anjo chamado Moroni. Essas aplicações são
cabíveis, ainda que dificilmente Smith tenha realmente tido contato com algum espírito. Pelas informações
que temos acerca de sua vida e caráter, com certeza o próprio Smith inventou aquela história e a levou
adiante a fim de atingir propósitos egoístas e escusos.

[3] Nos dias modernos alguns exemplos de falsos evangelhos são: a Teologia da Prosperidade cuja
salvação proposta consiste apenas no livramento de doenças e de problemas financeiros; o Catolicismo
Romano que ensina a salvação pelas obras; e o Adventismo que, exatamente como os falsos mestres da
Galácia, crê que o homem é salvo pela prática da Lei (Gl 2.16; 4.10-11). Todos os mestres desses
movimentos devem ser considerados malditos pelos crentes genuínos.

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